Refratário, de Maraíza Labanca

Page 1


ARTE DE CAPA Daniela Jacinto



Copyright© Maraíza Labanca Correia 6121/1 – 100 – 60 – 2012 O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(s) Autor(es), proprietário(s) do Direito Autoral.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Labanca, Maraíza Refratário/ Maraíza Labanca. - - São Paulo : Scortecci, 2012. ISBN 978-85-366-2601-7 1. Poesia brasileira I. Título.

12-04600

CDD-869.91 Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia brasileira

869.91

GRUPO EDITORIAL SCORTECCI Scortecci Editora Caixa Postal 11481 - São Paulo - SP - CEP 05422-970 Telefax: (11) 3032-1179 e (11) 3032-6501 www.scortecci.com.br editora@scortecci.com.br Livraria e Loja Virtual Asabeça www.asabeca.com.br


para Antônio e Lúcia, pela palavra primeira, pela criança que ainda há.


Em branco. Verso da pรกgina.


Agradecimentos

refratário

Camila Morais, Amanda Azevedo, Erick Costa, Tiago Pissolati, Cíntia França, Suellen Dias, Nathália Valentini, Larissa Labanca, Tony Charles, Alexandre Costa, Rodrigo Guimarães, Alex Fabiano, Rafael Reis, Breno Barbosa, Alice Lotti, Camila Reis, Vânia Baeta, Roland Barthes, Nuno Ramos, Juliano Pessanha, Lourenço Mutarelli, Herberto Helder, Maurice Blanchot, Gilles Deleuze, Haroldo de Campos e outros contemporâneos.

7


Em branco. Verso da pรกgina. Em branco. Verso da pรกgina.


Lampejo para fazer livremente aparecerem palavras quando as palavras parecem prisioneiras de uma situação sem saída.

refratário

Georges Didi-Huberman

9


Em branco. Verso da pรกgina.


Prefácio Refratários são os poemas, porque resistem às que não são as suas palavras. Para ler o que resiste, o que se esquiva, é preciso bordejar a estrutura-enigma sem sucumbir à gravidade de seus abismos. Porque há risco quando histórias e manchas não são coisas distintas. Neste livro, o que vem do chão – o poema – é miudamente uma existência. Palavras de quem se rasga e se recompõe em seguida (tal qual a água em meio à água), reacendendo ininterruptamente sobre o corpo uma espécie rara de livro das faces. Primeiro, havia uma mancha, e só a palavra de riscar o corpo edificava a casa erma de uma língua aflita. Seria esse o começo, o das palavras? Nessa ilha impossível onde a memória se apaga e se escreve, um único modo de ver: como quem rasga o envelope da luz para achar o que resta atrás – uma erosão irrestrita do lugar em que se pisa.

Uma palavra, refratária, resistente, arriscar-se-ia como matéria de limpeza estranha e deixaria um rastro, só um rastro em meio às mortes. No fastígio das letras, o futuro, fundador de antes e depois como ordens de saúde, suspenderia a raiz do tempo.

refratário

Só depois, com o tempo em que o poema degradou, modelou-se o amor, modulou-se um nome. Como quem afina a própria língua. Para isso, a medida, a justa medida do olhar não saía das mãos. Nesse limbo de palavras, em que as letras estiolam todo o real, o fastígio da beleza era já o anúncio da catástrofe, esse ponto cego em que, escrevendo, a vida se reduz a um fio de chuva sobre o vidro e um eu se dilui em esfera de maios chuvosos.

11


Agora podemos então dizer: refratário será o espaço inocupado, será a desistência, será o pó, esta sala, esta casa, este tempo de sol em que a melancolia se distribui nas páginas – espaço – e se apaga, luminosa. Refratário como quem escreve entre o clique da luz e o começo do sonho. Erick Gontijo Costa

Maraíza Labanca

12


Sumário refratário ............................................................................................ 14 singularidade ............................................................................... 17 berço ............................................................................................. 18 lente de aumento ........................................................................ 19 tecnologia .................................................................................... 20 homem nu ................................................................................... 21 hospital ......................................................................................... 22 qualquer homem ........................................................................ 23 fastio ............................................................................................. 24 despojo ......................................................................................... 25 morcego ....................................................................................... 26 desígnio .............................................................................................. 27 perspectiva ................................................................................... 29 objeto impossível ....................................................................... 30 fraturas.......................................................................................... 31 poema ........................................................................................... 32 último beijo ................................................................................. 33 apenas ........................................................................................... 34 reate ............................................................................................... 35 ponto cego ................................................................................... 36 mendicância ................................................................................. 37 bicho ............................................................................................. 38 magnetismo ................................................................................. 39 desígnio ........................................................................................ 40 série: menino morto ........................................................................ 41


sem título ........................................................................................... 48 I ...................................................................................................... 51 II .................................................................................................... 52 III ................................................................................................... 53 IV ................................................................................................... 54 V .................................................................................................... 55 VI ................................................................................................... 56 VII ................................................................................................. 57


refratรกrio


Em branco. Verso da pรกgina.


singularidade segurava um pano nas mãos daqueles com histórias ocultas, porque histórias e manchas não são coisas distintas, – alcançaria o tremor incontrolado dos apaixonados – apertava o pano contra os dedos e falava como quem faz preces para homens da terra, o que viria do chão acompanhado daquilo que era miudamente a sua existência,

(tal qual a água em meio à água.)

refratário

uma dessimetria na boca, quando falava ou sorria, repuxando toda a atenção para o canto direito de seu corpo, como quem se rasga e se recompõe em seguida

17


berço a mãe era um objeto estranho: trazia um alfabeto sujo em sua língua primeira um perigo de doença no ar que falta era sua tarefa insana – esta sobra – incabível e ineficaz, uma família, reacendendo ininterruptamente sobre o corpo raquítico que nascia – não nascia – seu alfabeto sujo andava às pressas com o preço que se paga com o corpo, – meu filho – é com o corpo que se paga

Maraíza Labanca

18

um ato plenamente corrupto – que brota de minha voz – falar ainda era isto.


lente de aumento relampejar da angústia que cerra as glotes do corpo. – crescia como uma criança – o meu silêncio revirgina o barulho, sou uma mulher de fora com o peito macerado pelo roçamento com as distâncias que me desvinculam do outro. o peito só meu, desse silêncio que obseda a pureza por todos os cantos. ouço os discursos.

refratário

lavei os olhos de manhã, os dentes, o corpo. lavei o corpo com a manhã,

19


tecnologia a nova ciência ensinaria a distância exata se exatidão houvesse: (a face do livro – o livro das faces – muda estará para sempre fechada) no tempo da exposição os corpos nunca estiveram tão castos.

Maraíza Labanca

20


homem nu oferecia, em perigo, um corpo servil – não fabricara filhos nem pai –, girava o corpo sobre a própria indigência. dirigia-se à mancha em fuga das aves – como a deus –, cujas sombras eram já uma seca dissolução. pouco discernia as coisas vivas e mortas, durante toda a vida,

– estado de penúria que edificou a casa erma de uma língua aflita.

refratário

havia aquela palavra de riscar o corpo,

21


hospital – uma formiga é já esta multidão que desloca uma asa – havia medo junto ao excesso de claridade dissimulada acima do leito. com os rostos tapados, (ninguém sabe o que faz!) escandiam do corpo a perna, em torno de qualquer ponto cirúrgico e redundante de putrefação. Maraíza Labanca

22


qualquer homem era contra o esquecimento, mas o tempo lhe dá as mãos e destina seu corpo ao silêncio, – já não uso perfumes, tenho poucas roupas no armário – o mínimo. era contra o esquecimento, e tornava-se o monumento da amnésia do mundo: esta ilha impossível onde a memória se apaga. – ando junto com o tempo que trota sem domo –

ficara nem mesmo aquele cheiro enjoado no corpo de quem a vida foi, finalmente, despejada.

refratário

uma voz rouca de cigarros e cachaça, de convocar o futuro.

23


fastio pioneiro de todas as quedas havia pejo em sua vitória, embora as rugas, envelhecer era um processo de aplainamento que já descobrira nas paisagens mais desgastadas. tão perfeita e artificial era a sua forma polida de arestas, como emoções há muito sedimentadas. Maraíza Labanca

24


despojo ordinário era sua palavra de ordem no meio do corpo – um recanto sim – ecoa na imundície da fissura a distensão das bordas e uma esquecida abertura de lábios de quem começa a morrer do centro

refratário

ordinário – era o nome espetacular do fim.

25


morcego tinha grande parte dos olhos quase zerados de peso – restava um coração selvagem e todo o corpo trespassado por instantes de gelo o dia amanheceu à força no meio da noite perdiam-se belezas do que não se vê – pendia das pontes sem cair

Maraíza Labanca

26


desĂ­gnio


Em branco. Verso da pรกgina.


perspectiva uma intrusa desmedida assentase por dentro (as crianças polarizam os excessos para melhor confundi-los, sabem nos objetos o magnetismo) cortam-se os dedos para não perdê-los – era um axioma. convocava

refratário

o apagamento silencioso que deixa constrangida toda normalidade das coisas médias.

29


objeto impossível há, sim, algo de muito definitivo que assombra este espaço seria este o único modo de ver – como quem rasga o envelope da luz para achar o que resta atrás, um casamento em que algo se reconhece apenas pelo lugar que parece ocupar no tempo por uma força de toque.

Maraíza Labanca

30


fraturas aqui, as falésias a dizer dos processos de degradação operados tanto pela água quanto pelo estio do mar. solapamento de sua inteireza às costas de nós, uma erosão irrestrita

refratário

do lugar em que se pisa.

31


poema na ponta o hiato duro faísca – (soldava o medo – um selo de virgens – tornava a cindir. o que fulge na véspera é esta tinta escura). adensamento que aparta o sentido. o poema degrada, modela – o amor – modula um nome. Maraíza Labanca

32


último beijo desconto o deboche no bojo do teu choro, como quem afina a própria língua. a medida do olhar não saía das mãos, mas pensaria nas linhas dos mapas que o metrô desenhou embaixo dos carros. com uma falsa ironia na esquina dos olhos, cercava o acaso:

refratário

um gole infinito de basta.

33


apenas corpos em rotação é o que muda teu deserto em cidade ao menos por tuas mãos acende o movimento à vítima acende as tuas pernas, o teu tom mais delicado, acende o teu rosto à cor que arda o frio nos contornos de tua casa alheios, os corpos alheios a cidade se contrai e irrompe-se, no fim, como avesso irretocável

Maraíza Labanca

34

inventara o sede e o mar a chuva sobre o chão mais pisado.


reate vileza nas pernas que caminham sem um rosto de dupla cor: a pele cuja densidade (o que lhe cobre transmuta-se em convite da loucura) era irrevogavelmente fria – estiola todo o real

refratário

– o fastígio da beleza era o anúncio da catástrofe

35


ponto cego num golpe de vista quando, em puro acontecimento, um gato surge atravessado de noite, cerrando o sono ao meio: na percepção trágica da criança, o andar pendido do gato – ferido – aproximava os dois lados. – digo, agora: eis o insuportável do mundo. mas ainda uma centelha nos olhos.

Maraíza Labanca

36


mendicância

refratário

armazenar em cavernas a sua pobreza acelerar a busca pela falta deixar cair das janelas as sensações distantes deixar cair dos carros os restos de cigarros os anos reduzir a vida a um fio de chuva sobre o vidro de pouca aderência e nenhum estrago mas descer até o fundo para que seja um pouco fonte um pouco nascente mesmo na morte deixar a vida rasteira como o que nem chega a ser planta recorrer ao mínimo e reagir à flor rezar por sol e renegar os pássaros ostensivos silenciosamente.

37


bicho a solidão ardente do silêncio inóspito por ora por agora nenhuma espera a não ser de voltar a esperar poder esperar descobre-se é um luxo perto do que se sente agora sem nenhum cisco no pensamento que aponte mesmo farpa algum futuro havia perdido a seta do espaço um eu diluído em esfera de maios chuvosos inversa diligência do abismo que desconcerta ainda mais quem perdeu a seta da vida e o poder de cruzar os mundos poças de chuva dentro de casa poças de silêncio intranquilo onde sucumbem os insetos que giram em estúpidas parábolas Maraíza Labanca

38


magnetismo

refratário

o espelho imita a água mas não por completo uma vez que precisa emoldurar em objeto cortante o que se curva à vivida gravidade dos abismos.

39


desígnio é este estado promíscuo de falência em que uma palavra se arrisca como matéria de limpeza estranha deixa um rastro só um rastro em meio às mortes um caco luminoso no escuro uma desconfiança de fé – puro desleixo do cético – escreve-se

Maraíza Labanca

40


sĂŠrie: menino morto


Em branco. Verso da pรกgina.


esta sonolência no espírito de um andrógino incauto leva os homens a rechaçá-lo como a um irônico sim – um medo.

refratário

à porta, segue o sonolento pelas ruas que trazem na cabeça um professor, uma empregada, uma rainha dos desassossegos, astronando, com seus cachos louros, os sonhos de um perdido.

43


três barras luminosas separavam-no do lado de dentro. não via outra chance a não ser contemplar as barras censoras daquele espaço. contemplava-as sem formular o que era dentro. o que era ele, cá fora. retinha-se no luxo de quem é só olho.

Maraíza Labanca

44


refratário

mais tarde, o menino revirava os olhos na clandestinidade de sua sozinhez noturna. revirava os olhos contra o interdito, contra o que nem sabia. torpunha-se com o ato, deliciosamente, não pela transgressão óbvia incutida no giro diabólico, mas pela possibilidade de ver-lhe nada.

45


o menino já era monge e não sabia, justo monge sem reza que encontrava a clausura na multidão que o acolhia com sua indiferença. uma vez chegou uma mulher vermelha e disse: te levarei ao méxico. lá estaremos verdadeiramente sós, estremeceu. e viveu de estremecimento durante 8 meses e alguns dias.

Maraíza Labanca

46


refratรกrio

sua bela amiga achou-o tempo depois com os olhos brancos e as pupilas escuras desenhadas na parede. eram mesmo de um homem, pensou, ao lado, foto de crianรงas que sorriam e posavam para celebrar a acolhedura do mundo.

47


Em branco. Verso da pรกgina.


sem tĂ­tulo


Em branco. Verso da pรกgina.


I

refratário

rasga a pele do teu tecido, as tuas mãos teus olhos em lágrimas tua página inútil tua música e teu canto teu choro patético rasga teu fígado em álcool tua degradação mais fina em palavra todo som que emites o teu gesto interrompido sobre minha cabeça que pende e desiste e desiste e apaga.

51


II me eleva na dor. sem eu ter podido escolher. me enleva na sua dor. e devolve. o cigarro, a minha limpeza, a chave. e leva o tempo. para longe de mim a sua espuma. o ruĂ­do da casa que fica, o estalo dos mĂłveis. que comunicavam as noites. a trinca na parede que me adormecia. a sua nuca. rachadura sem casa, como era. pobreza. leva de mim tudo que me tornei. a bolsa embaixo dos olhos. o livro publicado. a meu respeito, o que se chamava respeito.

MaraĂ­za Labanca

52


III dois anos se passaram após a última morte a valentia diante do que vinha o que a manteve à espera da valentia do outro que sumia fazendo soçobrar junto a ele a própria idéia de morte. afinal, nesse ritmo, o que era a coragem se não se aproxima dessa idéia de morte que dispensa o futuro, fundador de antes e depois como ordens de saúde.

refratário

porque a saúde era imperativa, impossibilitava a ação de tudo que suspendia a raiz do tempo.

53


IV havia locomotivas de passageiros mareados pelo movimento das janelas, a velocidade da dissolução de um instante de enquadramento das janelas. havia pessoas que não sabiam enquadrar emoções e viviam na incontinência de devir absoluto. algumas delas enlouqueciam.

Maraíza Labanca

54


V estrutura não se parte em sílabas é condição para o despedaçar um lugar espesso onde inscrevo uma falsa perdição – minha festa – eu, sim, se parte em sílabas inumeráveis por todos os lugares, se despedaça, se corrompe em tu.

refratário

dessa estrutura-enigma disfarço o pó que sopras.

55


VI açúcar. esta palavra quase agressiva, escrita em vários pequenos envelopes sobre a mesa do café. açúcar, repetia a estrangeira senhora, um insulto da língua portuguesa.

Maraíza Labanca

56


VII

refratário

corte este pedaço de melancolia dominical e distribua-a pela semana corte a seco em trabalho artesanal estende os braços e respira as tintas a fumaça o cheiro de comida velha na sala de estar este risco no olho não vale a pena porque não segue não seguirá o dia ou a noite será espaço inocupado será desistência será pó esta sala esta casa este tempo de sol.

57


Em branco. Verso da pรกgina.


CONTATO COM A AUTORA maraizalabanca@gmail.com


Impressรฃo e Acabamento:

Grรกfica Scortecci Telefax: (11) 3815-1177 www.graficascortecci.com.br grafica@graficascortecci.com.br


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.