Nelson Rodrigues, sua vida, sua obra

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Nelson Rodrigues, sua vida, sua obra

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Nelson Rodrigues, sua vida, sua obra

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Publicado pela editora Sextante Coordenação Taylor Schilling Conselho editorial (Design) Kate Mulgrew, Dascha Polanco, Danielle Brooks e Yael Stone Projeto gráfico do miolo Uzo Aduba Projeto gráfico da capa Laura Prepon Composição Taryn Manning Revisão Laverne Cox Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nelson Rodrigues, sua vida, sua obra São Paulo: Editora Sextante, 2015 35pp., 16 fts. ISBN 123-12-1234-123-1 1. Biografia I. Rodrigues, Nelson II. Literatura brasileira Índice para catálogo sistemático: 1. Biografia 123.4 2. Literatura brasileira 123.4

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“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura” Nelson Rodrigues

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su mรก rio 9

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Biografia

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As muitas obras de Nelson

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A censura brasileira


bio gra fia biografia


Infância Nascido na capital de Pernambuco e quinto de quatorze irmãos, Nelson Rodrigues mudou-se para o Rio de Janeiro ainda criança, onde viveria por toda sua vida. Seu pai, o ex-deputado federal e jornalista Mário Rodrigues, perseguido politicamente, resolveu estabelecer-se na então capital federal em julho de 1916, empregando-se no jornal Correio da Manhã, de propriedade de Edmundo Bittencourt. Segundo o próprio Nelson em suas Memórias, seu grande laboratório e inspiração foi a infância vivida na Zona Norte da cidade. Dos anos passados numa casa simples na rua Alegre, 135 (atual rua Almirante João Cândido Brasil), no bairro de Aldeia Campista, saíram para suas crônicas e peças teatrais as situações provocadas pela moral vigente na classe média dos primeiros anos do século XX e suas tensões morais e materiais. Sua infância foi marcada por este clima e pela personalidade do garoto Nelson. Retraído, era um leitor compulsivo de livros românticos do século XIX. Nesta época ocorreu também para Nelson a descoberta do futebol, uma paixão que conservaria por toda a vida e que lhe marcaria o estilo literário.

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Na década de 1920, Mário Rodrigues fundou o jornal A Manhã, após romper com Edmundo Bittencourt. Seria no jornal do pai que Nelson começaria sua carreira jornalística, na seção de polícia, com apenas treze anos de idade. Os relatos de crimes passionais e pactos de morte entre casais apaixonados incendiavam a imaginação do adolescente romântico, que utilizaria muitas das histórias reais que cobria em suas crônicas futuras. Neste período, a família Rodrigues conseguiria atingir uma situação financeira confortável, mudando-se para o bairro de Copacabana, então um arrabalde luxuoso da orla carioca. Apesar da bonança, Mário Rodrigues perderia o controle acionário de A Manhã para o sócio. Mas, em 1928, com o providencial auxílio financeiro do vice-presidente Fernando de Melo Viana, Mário fundou o diário Crítica. Como cronista esportivo, Nelson escreveu textos antológicos sobre o Fluminense Football Club, clube para o qual torcia fervorosamente. A maioria dos textos eram publicados no Jornal dos Sports. Junto com seu irmão, o jornalista Mário Filho, Nelson foi fundamental para que os Fla-Flu tivessem conquistado o prestígio que conquistaram e se tornassem grandes clássicos do futebol brasileiro. Nelson Rodrigues criou e evocava personagens fictícios como Gravatinha e Sobrenatural de Almeida para elaborar textos a respeito dos acontecimentos esportivos relacionados ao clube do coração.


Adolescência e juventude Nelson seguiu os seus irmãos Mílton, Mário Filho e Roberto integrando a redação do novo jornal. Ali continuou a escrever na página de polícia, enquanto Mário Filho cuidava dos esportes e Roberto, um talentoso desenhista, fazia as ilustrações. Crítica era um sucesso de vendas, misturando uma cobertura política apaixonada com o relato sensacionalista de crimes. Mas o jornal existiria por pouco tempo. Em 26 de dezembro de 1929, a primeira página de Crítica trouxe o relato da separação do casal Sylvia Serafim e João Thibau Jr. Ilustrada por Roberto e assinada pelo repórter Orestes Barbosa, a matéria provocou uma tragédia. Sylvia, a esposa que se desquitara do marido e cujo nome fora exposto na reportagem invadiu a redação de Crítica e atirou em Roberto com uma arma comprada naquele dia. Nelson testemunhou o crime e a agonia do irmão, que morreu dias depois. Mário Rodrigues, deprimido com a perda do filho, faleceu poucos meses depois. Sylvia, apoiada pelas sufragistas e por boa parte da imprensa concorrente de Crítica, foi absolvida do crime. Finalmente, durante a Revolução de 30, a gráfica e a redação de Crítica são empastelados e o jornal deixa de existir. Sem seu chefe e sem fonte de sustento, a família Rodrigues mergulha em decadência financeira. Foram anos de fome e dificuldades para todos. Pouco afinados com o novo regime, os Rodrigues demorariam anos para se recuperarem dos prejuízos causados pela tuberculose. Ajudado por Mário Filho, amigo de Roberto Marinho, Nelson passa a trabalhar no jornal O Globo, sem salário. Apenas em 1932 é que Nélson seria efetivado como repórter no jornal. Pouco tempo depois, Nelson descobriu-se tuberculoso. Para tratar-se, retira-se do Rio de Janeiro e passa longas temporadas em um sanatório na cidade de Campos do Jordão. Seu tratamento é custeado por Marinho, que conquistou a gratidão de Nelson pelo resto de sua vida. Recuperado, Nelson volta ao Rio e assume a seção cultural de O Globo, fazendo a crítica de ópera.

No O Globo, foi editor do suplemento O Globo Juvenil. Além de editar, Nelson roteirizou algumas histórias em quadrinhos para o suplemento, dentre elas, uma versão de O fantasma de Canterville, de Oscar Wilde. Em 1940 casou-se com Elza Bretanha, sua colega de redação. A partir da década de 1940, Nelson dividiu-se entre o emprego em O Globo e a elaboração de peças teatrais. Em 1941 escreve A mulher sem pecado, que estreou sem sucesso. Pouco tempo depois assinou a revolucionária Vestido de noiva, peça dirigida por Zbigniew Ziembiński e que estreou no Teatro Municipal do Rio de Janeiro com estrondoso sucesso. O teatrólogo Nelson Rodrigues seria o criador de uma sintaxe toda particular e inédita nos palcos brasileiros. Suas personagens trouxeram para a ribalta expressões tipicamente cariocas e gírias da época, como “batata!” e “você é cacete, mesmo!”. Vestido de noiva é considerada até hoje como o marco inicial do moderno teatro brasileiro.

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Maturidade

Seus últimos anos

Em 1945 abandonou O Globo e passou a trabalhar nos Diários Associados. Em O Jornal, um dos veículos de propriedade de Assis Chateaubriand, começou a escrever seu primeiro folhetim, Meu destino é pecar, assinado pelo pseudônimo “Suzana Flag”. O sucesso do folhetim alavancou as vendas de O Jornal e estimulou Nelson a escrever sua terceira peça, Álbum de família. Em fevereiro de 1946, o texto da peça foi submetido à Censura Federal e proibido. Álbum de família só seria liberada em 1965. Em abril de 1948 estreou Anjo negro, peça que possibilitou a Nelson adquirir uma casa no bairro do Andaraí e em 1949 Nelson lançou Dorotéia. Em 1950 passou a trabalhar no jornal de Samuel Wainer, o Última Hora. No jornal, Nelson começou a escrever as crônicas de A vida como ela é..., seu maior sucesso jornalístico. Na década seguinte, Nelson passou a trabalhar na recém-fundada TV Globo, participando da bancada da Grande Resenha Esportiva Facit, a primeira “mesa-redonda” sobre futebol da televisão brasileira e, em 1967, passou a publicar suas Memórias no mesmo jornal Correio da Manhã onde seu pai trabalhou cinquenta anos antes.

Nos anos 70, consagrado como jornalista e teatrólogo, a saúde de Nelson começa a decair, por causa de problemas gastroenteorológicos e cardíacos de que era portador. O período coincide com os anos da ditadura militar, que Nelson sempre apoiou. Entretanto, seu filho Nelson Rodrigues Filho tornou-se guerrilheiro e passou à clandestinidade. Nesse período também aconteceu o fim de seu casamento com Elza e o início do relacionamento com Lúcia Cruz Lima, com quem teria uma filha, Daniela, nascida com problemas mentais. Depois do término do relacionamento com Lúcia, Nelson ainda manteria um rápido casamento com sua secretária Helena Maria, antes de reatar seu casamento com Elza. Nelson faleceu numa manhã de domingo, em 1980, aos 68 anos de idade, de complicações cardíacas e respiratórias. Foi enterrado no Cemitério São João Batista, em Botafogo. No fim da tarde daquele mesmo dia ele faria treze pontos na Loteria Esportiva, num “bolão” com seu irmão Augusto e alguns amigos de “O Globo”. Dois meses depois, Elza atendia ao pedido do marido — de, ainda em vida, gravar o seu nome ao lado do dele na lápide de seu túmulo, sob a inscrição: “Unidos para além da vida e da morte. E é só”.

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1 Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, mais conhecido como Assis Chateaubriand ou Chatô, (Umbuzeiro, 4 de outubro de 1892 — São Paulo, 4 de abril de 1968) foi um dos homens públicos mais influentes do Brasil nas décadas de 1940 e 1960, destacando-se como jornalista, empresário, mecenas e político.Foi também advogado, professor de direito,escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Ilustração de Roberto Rodrigues

Em 2015, estreia o filme Chatô, o Rei do Brasil, dirigido e produzido por Guilherme Fontes, com roteiro baseado na obra homônima de Fernando Morais. Marco Ricca foi escalado para interpretar o protagonista Assis Chateaubriand. Chateaubriand foi um magnata das comunicações no Brasil entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960, dono dos Diários Associados, que foi o maior conglomerado de mídia da America Latina, que em seu auge contou com mais de cem jornais, emissoras de rádio e TV, revistas e agência telegráfica. Também é conhecido como o co-criador e fundador, em 1947, do Museu de Arte de São Paulo (MASP), junto com Pietro Maria Bardi, e ainda como o responsável pela chegada da televisão ao Brasil, inaugurando em 1950 a primeira emissora de TV do país, a TV Tupi. Por seu empenho contra a entrada do capital estrangeiro no país e seu nacionalismo econômico foi visto como ameaça pela CIA que financiou Roberto Marinho depois que uma empresa de SP não lhe fez aliança (talvez por que na altura não enxergou o impacto que uma capitalização daquele tamanho para sair do sector impresso para a televisão fosse causar mesmo na história da geo-concentração midiática no contexto do país). Foi Senador da República entre 1952 e 1957.

2 Zbigniew Marian Ziembiński (Wieliczka, 7 de março de 1908 — Rio de Janeiro, 18 de outubro de 1978), mais conhecido como Ziembinski, foi um ator e diretor de teatro, cinema e televisão. Desde os doze anos envolvido com o mundo teatral, deixa sua terra natal em 1941, com 33 anos, quando emigra para o Brasil. Chamado carinhosamente de Zimba, é considerado um dos fundadores do moderno teatro brasileiro por sua encenação inovadora do texto Vestido de Noiva, em 1943 do dramaturgo Nelson Rodrigues. Com esta montagem e por seu processo de ensaio, introduz-se a noção de diretor no teatro brasileiro, aquele que cria uma encenação, quase como um pintor da cena, substituindo a de ensaiador, aquele que se preocupava apenas em distribuir papéis e ordenar a movimentação em cena. A direção de Ziembiński de Vestido de Noiva, soube equacionar os vários planos propostos por Nelson Rodrigues, que contrastam entre o imaginário, o sonho e a realidade de forma brilhante, aliada à cenografia de Tomás Santa Rosa, com enorme quantidade de variações de luz — fala-se em 132 diferentes efeitos utilizados na encenação, fato marcante na história do teatro brasileiro da época.

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as muiTas obras DE NELsoN as muiTas obras DE NELsoN

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A trajetória profissional de Nelson Rodrigues engloba a criação de dezenas de peças teatrais, filmes, crônicas jornalísticas, romances e contos. A dramaturgia entrou em sua vida de por acaso. Uma vez que se encontrava em dificuldades financeiras, achou no teatro uma possibilidade de sair da situação difícil em que estava. Assim, escreveu A mulher sem pecado, sua primeira peça. Segundo algumas fontes, Nelson tinha o romance como gênero literário favorito e suas peças seguiram essa predileção, pois as mesmas são como romances em forma de texto teatral. Nelson é um originalíssimo realista. Não é à toa que foi considerado um novo Eça de Queiroz. De fato, sua prosa era realista e, tal como os realistas do século XIX, ele criticou em suas obras a sociedade e suas instituições, sobretudo o casamento. Sendo esteticamente realista em pleno Modernismo, Nelson inovou as artes cênicas brasileiras tal como fizeram os modernos em outras áreas da arte e da literatura. Ele transpôs a tragédia grega para o sociedade carioca do início do século XX, e dessa transposição surgiu a "tragédia carioca", com as mesmas regras daquela, mas com um tom contemporâneo. O erotismo realista está muito presente na obra de Nelson Rodrigues, o que lhe garante o título de realista. Nelson, tal como o fez Eça de Queiroz em suas obras, não hesitou em denunciar a sordidez da sociedade e teve sua gênese em obras do século XIX, como O Primo Basílio, sendo que esta característica foi sendo sucessivamente desenvolvida na sua obra como uma carcterística reincidente. Em síntese, Nelson foi um grande escritor, dramaturgo e cronista, e está imortalizado na literatura brasileira.

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“Todas as vaias são boas, inclusive as más”

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Peรงas teatrais

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Nelson Rodrigues e Rodolfo Mayer discutem o cenário de “A Mulher Sem Pecado”

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1941 Dirigida por Rodolfo Mayer

A MULHER SEM PECADO

A trama de A Mulher sem Pecado apresenta Olegário, que vive preso a uma cadeira de rodas. Ele é marido de Lídia, mulher pela qual demonstra um ciúme patológico. Na tentativa de controlar os passos da mulher, usa o motorista Umberto e a empregada Inézia como espiões. Na residência do casal, vivem a mãe de Olegário, que é Dona Aninha, e o irmão de criação de Lídia. Cansada das atitudes ciumentas do marido, Lídia acaba fugindo com o motorista. Então, descobre-se que, na verdade, a paralisia de Olegário era puro fingimento, uma ferramenta mórbida para testar a fidelidade de Lídia. Justamente quando o marido toma ciência da total fidelidade da esposa é que ela se dispõe a traí-lo. Ao final da peça, fica a seguinte dúvida. Olegário conseguiria ter mantido seu casamento com Lídia caso não inventasse a doença? O autor deixa a questão no ar, sendo que apenas nos pensamentos de Lídia são revelados os dias de relacionamento estável do casal. Olegário acaba sendo duplamente punido, primeiramente por perder Lídia para um empregado e, segundo, por ficar com a culpa moral de ter implantado vários pensamentos pecaminosos na cabeça da mulher. O destino foi o fator primordial desta tragédia (ou tragicomédia): o final, além da punição de Olegário pelas mentiras e pelas desconfianças, há também a punição moral, pois se ele não tivesse implantado na cabeça da esposa tantos pensamentos pecaminosos, talvez ela jamais teria abandonado o conforto da casa do marido e fugido com o empregado (rebaixamento de classe), causando humilhação para Olegário. A peça, norteada pelo ciúme excessivo de um marido por sua segunda mulher, foi o primeiro texto teatral escrito por Nelson Rodrigues e teve uma primeira encenação realizada em 1942.

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Montagem original da peรงa em 1943

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1943 Dirigida por Zbigniew Ziembiński

VESTIDO DE NOIVA

Encenada pela primeira vez em 1943, a peça de Nelson Rodrigues mostra ações simultâneas em três planos - da realidade, da alucinação e da memória e deu início ao processo de modernização do teatro brasileiro. Despojada da leveza da cena e compondo diálogos fortes e desnudados, a peça apresenta ainda outra inovação, a subdivisão do palco que aparece iluminado de três maneiras, cada uma representando um dos três planos. A primeira montagem foi realizada sob a direção do polonês Zbigniew Marian Ziembinski, que chegara ao Brasil cerca de dois anos antes. Experiente encenador, Ziembinski deu forma ao texto de Nelson. Seu rigor na encenação, com a exigência de ensaios constantes, levou a concepção brasileira de teatro a novos níveis. A grande tensão que permeia a peça não se mostra apenas no antagonismo entre as personagens Alaíde e Lúcia, mas nas relações conflitantes entre todos os personagens. Nas cenas, a angústia da culpa supera sempre os tons de ternura amorosa com que geralmente são apresentados os laços familiares. As relações de desejo são também relações de ódio. A peça configura uma crítica cáustica a determinada classe da sociedade carioca. Tal como ressalta o crítico Ronaldo Lima Lins: “Vestido de Noiva movimenta seu drama dentro de um círculo fechado. Ali está uma peça cujos problemas se passam no nível da pequena burguesia, que a aplaudiu e lhe deu notoriedade”. Nessa maneira velada de ação, está o êxito do teatro de Nelson Rodrigues: agradar a sua plateia, ao mesmo tempo em que a insulta.

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Montagem feita em 1984 com direção de Antunes Filho

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1946 Dirigida por Kleber Santos

ÁLBUM DE FAMÍLIA

Em 1945 Nelson escreveu a peça Álbum de família, uma tragédia incestuosa de proporções bíblicas. Os censores do governo Dutra proibiram a peça em todo o país sob a alegação de que “preconizava o incesto” e “incitava ao crime”. A peça rotulou Nelson, definitivamente, de autor maldito. Álbum de Família pode ser considerada uma evolução natural na temática de Nelson Rodrigues. Depois de mostrar a semi-consciência de Alaíde, em Vestido de Noiva, e o delírio de Sônia, em Valsa nº 6, nada mais natural do que um mergulho no inconsciente primitivo do homem. Em Álbum de Família, Nelson Rodrigues escolheu mostrar o cotidiano de uma família aparentemente comum, formada pelo casal, os quatro filhos e a tia solteirona. A normalidade do clã, porém, logo é desmistificado para o público. Não há uma única personagem que não perca sua máscara em algum momento da peça. Representando arquétipos da psicologia, as personagens simbolizam idéias como o impulso natural ao incesto, a paixão carnal entre irmãos, a sexualidade instintiva e a frigidez. Extremamente ousada para a época, a peça inaugurou um novo filão na dramaturgia de Nelson Rodrigues: o teatro desagradável. Aterrorizada com “a torpeza, a incapacidade literária, a falta de nobreza, o sacrilégio e a imoralidade”, a censura do governo getulista segurou o texto e não liberou nem sob protestos de vários intelectuais da época. Manuel Bandeira, já considerado um dos melhores poetas do Brasil, saiu em defesa de Nelson Rodrigues com um artigo onde garantia que o autor de Álbum de Família era, de longe, o maior poeta dramático que já apareceu na literatura brasileira.

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Os atores Maria Della Costa e Orlando Guy em ‘Anjo Negro’, 1948.

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1947 Dirigida por Zbigniew Ziembiński

ANJO NEGRO

Ismael e Virgínia - ele negro, ela branca - parecem viver em desgraça: seus filhos morrem precocemente e de forma inexplicável. Quando, no dia do enterro da terceira criança, o casal recebe a inesperada visita de Elias, o irmão branco e cego de Ismael, inicia-se uma história macabra de desejo e morte, que beira a loucura. Ismael é um homem, rico, poderoso que renega a própria cor e que possui violentamente Virgínia, uma mulher linda, que é com ele casada à força. A trama da peça é sustentada pelo embate travado entre Virginia e Ismael, pois ela fica grávida – por diversas vezes - contra a sua vontade, e por isso, vinga-se dessa condição assassinando cada filho negro que nasce do seu ventre. Até que Virgínia conhece Elias, um homem branco cuja paixão à primeira vista impulsiona nela uma explosão de sentimentos e desejos, dando coragem para que ela tente tornar-se livre. Desse breve envolvimento nasce afinal uma criança, branca como a neve, para a felicidade da mãe. Mas o nascimento é apenas o desencadeador de novas tragédias. Com um enredo trágico e polêmico, que envolve racismo, estupro e incesto, Anjo negro esteve sob censura durante dois anos, e só estreou em 1948.

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S么nia Oiticica com Carlos Mello na montagem original em 1954

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1947 Dirigida por Bibi Ferreira

SENHORA DOS AFOGADOS

Quinta peça de Nelson Rodrigues, Senhora dos Afogados foi escrita durante fase em que o dramaturgo procurava abordar em seus textos temas míticos. Escrita em 1947, foi censurada e interditada pela justiça, só obtendo liberação em 1953. Uma montagem, na ocasião, chegou a ser ensaiada pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), sob direção de Ziembinski, mas foi rejeitada após duas semanas de ensaios. Em 1954 a peça finalmente foi montada no Teatro Municipal sob direção de Bibi Ferreira, com Nathalia Timberg e Sônia Oiticica nos papéis principais. Curiosidades cercam algumas das montagens de peças do escritor. A primeira apresentação de Senhora dos Afogados, por exemplo, foi marcada por vaias e aplausos. Ao final da peça, parte do teatro gritava ‘gênio’ e, outra parte, ‘tarado’, até que Nelson subiu ao palco e complicou mais as coisas gritando “Burros! Burros!”. A um repórter, declarou: “Tenho notado que acontece, com as minhas peças, uma coisa muito interessante: geralmente, elas desagradam aos cretinos de ambos os sexos”.

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A atriz Eleonor Bruno na peça “Dorotéia” na montagem original de 1950

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1949 Dirigida por Zbigniew Ziembiński

DOROTÉIA

Dorotéia é a última peça do ‘Ciclo mítico’ de Nelson Rodrigues. Numa casa sombria, vivem as primas viúvas: Carmelita, Maura, D. Flávia e sua filha natimorta Maria das Dores. Fechadas em si mesmas, elas são mulheres secas, feias, que não se permitem o prazer carnal e que se policiam para nunca dormir, com medo de sonhar e, em sonho, cair em tentação. São mulheres que nunca viram um homem, pois se casam com maridos invisíveis e, na noite de núpcias, têm a ‘náusea’ do amor do homem. Os maridos apodrecem e se decompõem diante delas. Na peça, Nelson esboça uma situação onde as personagens se enclausuram em uma casa sem quartos e sem janelas, em obstinada negação do amor. A palavra amor aparece aqui como sinônimo de vida. As primas D. Flávia, Carmelita e Maura, carregam consigo a maldição das mulheres da família. Em nome de um exacerbado senso de moralidade, estão privadas de viver plenamente suas núpcias, pois o sexo está diretamente associado à degradação moral feminina. No início da peça, elas vivenciam a ansiosa espera de realização de mais um ritual de noite nupcial, quando Dorotéia, que se apresenta vestida como as profissionais do amor do início do século passado, retorna a casa das primas em busca de abrigo, decidida a se regenerar. Nesse universo opressor, Maria das Dores, ansiosa, tem o seu primeiro encontro com o noivo invisível. Ela que, até então, estivera em um mundo à parte, sem se dar conta de que a aparente atmosfera de sonho não era mais que o cenário de um pesadelo, descobre o amor. Para impedi-la de interromper a tradição familiar, sua mãe lhe revela que nasceu morta, e que, portanto, ela não existe. Porém Das Dores não se detém diante da revelação, pois, uma vez tendo conhecido uma possibilidade de amor, resolve voltar ao útero materno para renascer, se fazer mulher e viver o amor.

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Processo de criação de “O vestido de noiva”

Hoje você é reconhecido no Brasil inteiro que sua obra operou uma revolução no nosso teatro. Essa revolução foi consciente ou resultou de uma série de circunstâncias independentes de sua vontade?

Como você chegou à idéia dos planos de ação diferentes?

Imaginei primeiro o sujeito na realidade, depois sonhando e delirando. Precisava então de um plano para a realidade, outro para o sonho e outro para o delírio. A idéia para a peça surgiu assim. Estava no arquivo do Globo e tinha lá uma fotografia de velório. Foi a partir dessa foto que comecei a imaginar a peça. Aliás, foi no velório de Madame Clessy que fiz aquilo. Madame Clessy... Naquele tempo a Conde Lajes era o ponto alto do grãfinismo da prostituição. Madame Clessy era uma gaúcha linda. Ficava besta: “Mas como é que ela está na vida?” – perguntava a mim mesmo. Daí é que veio a

minha idéia de que a prostituta é vocacional. Fiz grandes investigações nos prostíbulos e nunca encontrei uma prostituta triste, uma prostituta que não tivesse a maior, mais absoluta, a mais plena satisfação profissional. Diziam-me que trabalhar é chato. Por isso é que digo que a prostituta é vocacional. Se não é assim, por que a menina bonita e jeitosa vai para aquela vida e fica satisfeita? Por que ela não se mata? A prostituta só se mata por dor de cotovelo, quando seu cáften arranja outra e a abandona. Só assim. Fora disso não há suicídio de prostituta. Há suicídio de mulher honestíssima, mas não de prostituta.

Houve uma circunstância importante que foi o meu encontro com os Comediantes, que tinham Ziembisnki, um europeu que conhecia bem o teatro europeu.

Uma nova de cenogr

Uma nova c eu não diria Ziembisnki durante um reescrevera Noiva. Ima trezentas te Vestido de N aquilo que e peça foi con antes do esp


concepção rafia?

concepção de cenografia a. O nosso querido i andou espalhando m certo tempo que comigo Vestido de aginem se não tenho estemunhas de que Noiva é exatamente escrevi. Além disso, a nsagrada como texto petáculo.

É utilizado o coro na peça. Isso não teria sido sugerido pela leitura do teatro grego? Ou realmente foi pura intuição?

Foi pura intuição mesmo, se quisermos chamar isso de intuição. Aliás, confessei que só tinha lido a Maria Cachucha do Joracy Camargo apenas depois que estava mais consolidado como autor. Antes não confessava, porque iam dizer: “Esse cara aí só leu essa peça do Joracy Camargo e quer dizer que é autor teatral? Ou ele é um cínico ou uma besta.”

Como conseguiu vencer tantas barreiras – quebrando padrões estabelecidos e superando dificuldades cênicas – e encenar “Vestido de Noiva”?

Em primeiro lugar, havia Ziembisnki, que fez um trabalho espetacular. Foi a melhor coisa que ele fez no Brasil. Sua direção foi sensacional. Ficou possuído pela peça.

“Vestido de Noiva” estreou em pleno Estado Novo. Seu teatro inovador não teve problemas com a censura?

Não, e novamente por causa da influência de Vargas Neto, que interferiu junto ao chefe da censura de então.


“O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada Crônica O teatro dos loucos - Manchete, 15 de junho de 1957

Foto da montagem original da peça em 1943


a um de nós”


“Eis o que acontecera: — aquele homem, que era um bem sucedido no lar, na sociedade, na religão, na política — metera uma bala na cabeça.” Asfalto selvagem

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Romances, cr么nicas e contos

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1944

romances ▪ ▪ ▪

1967

crônicas ▪

1948

1949

Meu destino é pecar Escravas do amor Minha vida ▪ Núpcias de fogo

1968

1953 A mulher que amou demais ▪

1970

A mentira

1972

Memórias de Nelson Rodrigues ▪

O óbvio ululante: primeiras confissões ▪

A cabra vadia

contos ▪

Cem contos escolhidos A vida como ela é...

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1959

▪ ▪

1966 O homem proibido Asfalto Selvagem: Engraçadinha, Seus Pecados e Seus Amores ▪

1974

O casamento

1977

1987

1992

O reacionário: memórias e confissões

▪ ▪ ▪ ▪ ▪ ▪

2002 O remador de Ben-Hur A cabra vadia - Novas confissões A pátria sem chuteiras Novas Crônicas de Futebol A menina sem estrela - memórias À sombra das chuteiras imortais Crônicas de Futebol A mulher do próximo

Fla-Flu...e as multidões despertaram ▪

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Elas gostam de apanhar

Nelson Rodrigues, o Profeta Tricolor

A vida como ela é O homem fiel e outros contos ▪ A dama do lotação e outros contos e crônicas ▪ A coroa de orquídeas ▪


“Há os radicais: — ‘Precisamos mudar a televisão’. Pelo contrário: — não façam isso. Muito mais correto e inteligente seria mudar o povo.” Crônica “Aristóteles adoraria Chacrinha”, 13 de setembro de 1971

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Telenovelas baseadas na obra de Nelson Rodrigues

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1963 ▪

A morta sem espelho

1964 ▪ ▪

Sonho de amor O desconhecido

1982 ▪

O homem proibido

1984 ▪

Meu destino é pecar

1995 ▪

Engraçadinha... Seus Amores e Seus Pecados

1996 ▪

A Vida Como Ela É

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Nathalia Timberg e Carlos Alberto

Nathalia Timberg e TarcĂ­sio Meira

Alessandra Negrini e Pedro Paulo Rangel

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“Ir ao cinema é o que pode haver de mais irrelevante, de mais intranscendente. Crônica “Na fila por Love Story”, 08 de julho de 1971

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Filmes baseados na obra de Nelson Rodrigues

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Somos dois

Milton Rodrigues

1950

Meu destino é pecar

Manuel Pelufo

1952

Mulheres e milhões

Jorge Ilei

1961

Boca de ouro

Nelson Pereira dos Santos

1963

Meu nome é Pelé

Carlos Hugo Christensen

Bonitinha, mas ordinária Asfalto selvagem A falecida

J.P. de Carvalho J.B. Tanko

1964

Leon Hirszman

1965

O Beijo Flávio Tambellini Engraçadinha depois dos trinta

1966

J.B. Tanko

Toda nudez será castigada

Arnaldo Jabor

1973

O casamento

Arnaldo Jabor

1975

A dama do lotação

Neville d’Almeida

1978

Os sete gatinhos

Neville d’Almeida

1980

O beijo no asfalto

Bruno Barreto

Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Rezende

Braz Chediak

Álbum de família

Braz Chediak

Engraçadinha Perdoa-me por me traíres

1981

Haroldo Marinho Barbosa Braz Chediak

1983

Walter Avancini

1990

Traição

Arthur Fontes, Cláudio Torres e José Henrique Fonseca

1998

Gêmeas

Andrucha Waddington

1999

Joffre Rodrigues

2006

Boca de ouro

Vestido de noiva nome

diretor

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Atriz Odete Lara eternizada no papel de Ritinha

Edgard é um rapaz humilde, fato esse que o constrange. Procurado por Peixoto, genro do milionário Werneck, dono da firma onde Edgard é escriturário, ele recebe a proposta de se casar com Maria Cecília, filha de Werneck, de 17 anos que fora currada por cinco negros. Pelo dinheiro, Edgard aceita, mas tem dúvidas por gostar de Ritinha, sua vizinha. Já com o casamento acertado, Edgard e Ritinha vão despedir-se num cemitério, onde ela conta o que faz para conseguir sustentar a mãe louca e as três irmãs. Toda a trama gira em torno das hesitações de Edgard, até sua escolha final. Uma das frases repetidas pelo personagem interpretado por José Wilker (na refilmagem de 1981), o mineiro só é solidário no câncer, é de Otto Lara Resende. De acordo com o site Cineplayers, Edgard repete a frase dezessete vezes, além de outras vezes em que ele a menciona (como a frase do Otto), pois está em um dilema: ou se casa com a filha do patrão, Maria Cecília (Lucélia Santos), estuprada por cinco negros, e recebe um cheque de um alto valor, ou fica com sua namorada, a vizinha Ritinha (Vera Fischer), que, sem que ele soubesse inicialmente, era uma prostituta.

Cartaz do filme em 1963

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CENsura

brasiLEira

a CENsura brasiLEira

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Sobre a censura brasileira, por Nelson Rodrigues (declarações feitas em entrevista concedida a Henrique Benevides, do Jornal “Última Hora”- 1973)

Nelson Rodrigues, brasileiro, jornalista, teatrólogo, futebolista, romancista e outros istas e ólogos que tem sua vida profissional marcada de conflitos, mal-entendidos e aborrecimentos com a censura de diversões públicas. Seu último choque com a censura envolve a proibição do filme de Arnaldo Jabor Toda nudez será castigada, baseado em peça homônima. A situação se complicou porque este filme foi anteriormente liberado com alguns cortes (o maior com cerca de cinco minutos – a cena em que envolvia um delegado), teve grandes bilheterias, algum sucesso de crítica e recebeu cinco prêmios do Instituto Nacional do Cinema (INC), órgão do MEC. Reincidentemente, as proibições da censura às peças e livros de Nelson Rodrigues são embasadas pelo argumento que em suas obras está sempre imbutida a “indução ao sexo e à violência”. De qualquer forma, nada melhor do que as declarações de Nelson para revidar os absurdos da censura em nosso país.

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“Não inventei nenhum dos dois. O sexo e a violência existem e aí estão para quem quiser confirmar. Se tomarmos ao pé da letra esta afirmação dos egrégios censores, tudo poderá ser proibido; assim, Branca de Neve poderia induzir à dissolução da família e à violência, o Pequeno Polegar poderia induzir ao homicídio ou à violência dos menores contra os maiores.”

“Problemas com a censura não são novidade para mim. Uma vez escrevi uma novela de televisão que foi retirada do ar depois de alguns capítulos – no entanto, era uma obra de amor, inócua e imaculada. Todas as minhas peças enfrentaram problemas para a sua liberação. Assim foi com a primeira (A mulher sem pecado) e a última (Toda nudez será castigada). Dez das minhas 14 peças foram interditadas e posteriormente liberadas sem cortes.”

“A questão da censura é uma questão de impropriedade. O adulto tem o direito de ver tudo, a criança deve ser preservada mas quando chegar ao estado adulto, deve poder escolher por si o que vai ter como divertimento ou cultura.”

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“No meu caso, realmente não entendo a posição da censura. O censor interpreta a letra da lei, que diz: deve ser proibido o que induz a violência... Pois bem, então que sejam proibidas as obras que podem induzir a violência ou façam sua apologia. Nos meus textos, os valores são precisos se definidos. O pecado e o horror são apresentados como tal, claramente.”

“Sou muito mais rigoroso do que a praia, a qual apresenta a nudez impune. Sou antes de tudo um moralista.”

“Quanto ao filme “Toda nudez será castigada”, estou certo de que ele será liberado de uma vez por todas. Seu valor foi reconhecido oficialmente nos prêmios do INC e na sua escolha para representar nossa produção cinematográfica nos festivais de Cannes e Berlim. Assim, acredito que este reexame da Censura Federal só poderá resultar em sua total e definitiva liberação.”

“É preciso que a censura tenha critérios permanentes e bem definidos, não mutáveis segundo subjetivismos pessoais pois se não for assim será impossível o trabalho em cinema, rádio, teatro e televisão.”

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este livro, composto na fonte Caslon, foi impresso na Imprensa da FĂŠ para a editora Sextante. SĂŁo Paulo, Brasil, ano de 2015.

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Nelson Rodrigues dispensa maiores apresentações. Um dos dramaturgos mais contundentes que nosso país já conheceu, o autor escreveu 17 peças de grande sucesso, inaugurando e consolidando o modernismo no teatro brasileiro. Atuou também como jornalista, destacando-se como cronista e comentarista esportivo. Este livro reúne sua história.


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