Frigga Zine

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l a i r o t i Ed A zine que você agora lê começou com uma ideia, 7 mulheres e o desejo de reproduzir e criar conteúdo que representasse e traduzisse nossas experiências em um mundo que desde os primeiros momentos de nossa existência insiste em nos ditar regras e imposições. Foi assim que surgiu a Frigga, pronta para divulgar conteúdo autoral de mulheres para mulheres. Entre músicas, ilustrações, manifestos e girl power, o projeto que começou timidamente no Facebook (facebook.com/friggazine) agora respira e começa a dar seus primeiros passos. Frigga é a deusa nórdica que representa a mãe do universo. Por isso escolhemos ser Frigga. Queremos ser fortes, grandiosas e nos colocar no mundo. Nossas ideias e nossas vozes n ão s e rão silenciadas. Nas páginas que seguem você vai encontrar pedaços de cada uma de nós. Sabemos que eles não representam as vivências de todas as mu lh e re s , mas esperamos que você se identifique e veja partes suas e de sua vida nas matérias que produzimos. Acreditamos no questionamento de valores opressores, no empoderamento feminino e na luta. Luta por um espaço, por voz, por respeito. Acreditamos no feminismo. Acreditamos em mulheres produzindo conteúdo próprio e gerando novos pensamentos e discussões. Acreditamos na Frigga.

Boa leitura.


Selfies

LANA KANTOR

liLA RAFAELA

NADINE ALVES

dayanne campos

LĂ?GIA ARNAUT

marcela vieira lizandra muniz


Índice

Intersecção pÁg. 5

eu não sou seu filme pornô pÁg. 7

meninas, sejam as heroínas de suas próprias histórias pÁg. 12

a minha história antes de mim* *matéria exclusiva para web

pÁg. 17

gênero? pÁg. 23

sobre as nossas marcas pÁg. 27

Como fazer uma armadura de balões pÁg. 29

eu não ligo pÁg. 33

quadros(s) em branco pÁg. 35

Seus dizeres não fazem minha vida

pÁg. 36



eu poderia dizer das mulheres: negras, brancas, indígenas, ocidentais, orientais, magras, gordas, heterossexuais, bissexuais, lésbicas, panssexuais, assexuadas, trans*. com útero, sem útero. com seios grandes, médios, pequenos, sem seios. de cabelos, longos, curtos, carecas. de prostitutas porque precisam, porque gostam, porque são obrigadas. de ricas, pobres, classe média. das que gostam de maquiagem, das que preferem não usar, das que tem vergonha. de deficientes, de mutiladas, das que tiveram seu corpo marcado por algo que não queriam, das que preferiram esperar. das que queriam brincar de carrinho, de boneca, de lavar a louça e serem astronautas quando crescessem. de quem nunca viu uma lousa, de quem segura o giz. das que se depilam com cera, gilete, satinelle, das que não se depilam. das jovens, adultxs, das idosxs. das que querem ter filhos, das que não querem, das que não podem. das que preferem biquíni, maiô, topless, das que não viram o mar. das que preferem um livro, das que gostam de novela. das que não crêem, de católicas, evangélicas, muçulmanas. de Malalas, Madonnas, Cláudias, e de tantas outras lembradas, esquecidas e sufocadas pelo patriarcado. mas nunca falar por elas. e nem é esse meu lugar. minhas palmas das mãos rosadas, as moedas de cobre no bolso de trás e os sapatos que passaram por tantos atalhos me lembram de que em meio a tantos privilégios, como mulher, eu não estou livre de ser oprimida, nem mesmo de oprimir, e o inverso é inverdade. mas há uma liberdade em reconhecer que o mundo pode ser maior para mim e pra todxs. há vozes que precisam ser ouvidas, e elas não saem só da minha garganta. há identidades que atravessam a foto 3x4. há intersecção. não por gentileza, ainda que pareça doce, mas por justiça. texto + arte Lana Kantor fotos transparent-flowers.tumblr.com


EU NÃO SOU

SEU FILME

PORNÔ


D

esde criança sempre soube que havia algo de “errado” em mim. Seja por que aos 7 fingia que uma modelo da propaganda Dove era minha namorada ou por que aos 10 minha mãe me perguntou se eu era lésbica. Independente de qual fosse a evidência, sempre soube que eu não era a menina da propaganda de rosa e com uma boneca na mão (até por que odiava bonecas e jogava todas no telhado do vizinho).Cresci sem saber o que fazer com aquilo que sentia, perdida em meio a um turbilhão de sentimentos prometi a mim mesma que nunca ficaria com garotas, não importa o que acontecesse. Eu estava completamente enganada, refugiada na minha inocência infantil. A verdade é que não tem como controlar sentimentos tão arrebatadores e, na realidade, não existe nada de errado com eles. O que existe de errado é um pensamento homofóbico social, construído em cima de regras de gênero binário e heteronormatividade que tentaram naturalizar ao longo dos séculos, mas que não são naturais.

Por isso causam tanta dor a uma menina de 7 anos, a um menino de 15 anos, a qualquer um que sinta a verdade. Não se controla sentimentos, não se condiciona sentimentos, não se naturaliza sentimentos. A única coisa que podemos fazer é sentí-los.

PROMETI A MIM MESMA QUE NUNCA FICARIA COM GAROTAS, NÃO IMPORTA O QUE ACONTECESSE. Essas falsas verdades resultam em algumas ações coercitivas, como a tentativa de esconder homossexuais como se assim você fosse eliminá-los aos poucos, como se fosse uma anormalidade. Por isso, algumas ferramentas que temos hoje em dia são essenciais para quebrar essa ilusão de que ser hetero é normal e todo o resto não, pois você humaniza figuras que antes eram os “gays” e mostra que são muito mais além disso,


são pessoas como qualquer outra. Essas ferramentas são filmes, novelas, séries, qualquer forma de nos representar, nos mostrar ao mundo, deixar saber que estamos aqui, estamos bem e vamos ficar. Imagino que várias pessoas assim como eu ficaram extasiadas ao saber que a nova novela das nove, “Em família”, teria um casal lésbico. Feliz por finalmente poder estar se vendo representada em uma novela, uma representação da vida real, feliz por estar se vendo representado como uma cidadã verdadeira, que existe, vive e tem tantos problemas e felicidades como qualquer outra pessoa.

o casal é construído em cima da falta, como se sempre estivesse faltando um homem para completar as duas ,

Mas, pelo menos para mim, a felicidade durou pouco. Nas primeiras cenas em que vi Taina Müller, uma das atrizes que faz o uma das personagens do casal lésbico, estava sempre em uma cena construída visando encaixar cada peça nos estereótipos existentes, não na sua maneira mais óbvia que seria se usassem o corpo das atrizes, mas sim de uma forma sutil e muito mais perigosa. Essas cenas representavam a personagem sempre fotografando mulheres nuas, uma cena sensual, com uma trilha que endossava esse aspecto, enquanto a outra personagem lésbica que ainda não se descobriu, Clara, interpretada pela Giovanna Antonelli, estava sempre representada como a personificação da inocência caindo em uma armadilha. Vocês percebem o problema dessa construção? É como se as lésbicas vivessem inseridas em um mundo sórdido, vivendo para ser sensual. O problema dessa representação é que não nos mostra como pessoas, que amam, tem família, trabalham, estudam,


transam, brigam, choram, é você diminuir um ser humano a uma simples característica, a lesbianidade.

Mas sim como objetos de desejo, estando ali somente para alimentar o fetiche de outros.

Além dessa diminuição que é a fonte de vários argumentos homofóbicos, como não poder doar sangue por estar no grupo de risco, também existe o problema que o casal é construído em cima da falta, como se sempre estivesse faltando um homem para completar as duas, transformando assim esse casal em um simples objeto de fetiche.

Assim nos transformamos novamente em seres visíveis aos olhos, mas invisíveis à sociedade. Inseridos em um espaço mas sem realmente ocupar lugar algum. Estando ali como reles elementos figurativos de desejos alheios, e não como sujeitos de sua própria história, de sua própria luta, de sua própria vida.

Essa falta se mostra quando você não vê as duas agindo como um casal, é quase como se fossem amigas românticas (inclusive manchete já utilizada pelo site da Globo), o toque de ambas é de duas amigas, leve, suave, sempre evitando áreas de perigo que poderiam caracterizar um casal, basta comparar as cenas, como seria o comportamento dos personagens caso fosse um casal hetero? O principal problema nessas construções é a não representação das lésbicas como sujeitos sociais, que tem direitos, que são pessoas.

Então não, não me senti representada por essa novela, pois eu não sou somente lésbica, sou um alguém que chora, ri, ama, sofre, luta, estuda, trabalha, tem olhos e cabelos castanhos e que também gosta de mulheres. Por isso me recuso a ser diminuída a uma característica, pois sou muito mais, sou uma pessoa

.

texto lila rafaela arte lana kantor


E

m junho de 2013 eu estava cansada de precisar colocar meia calça para sair de shorts à noite. Meus fones já não conseguiam filtrar palavras ditas de bocas cheias de machismo a cada esquina. Eu conseguia observar os olhares queimando corpos em uma inquisição cotidiana.

12

Mas nada precisava cobrir minha visão, orelhas ou pernas. Eu poderia ser barulhenta e assertiva, mesmo que em um ambiente controlado por mim mesma. Toda microagressão pode gerar uma microresposta:

6 7 8 9 10

mudem a indústria alimentícia ou os padrões de beleza

um policial me cantou na rua me sinto muito mais segura agora obrigada

3 4 5

programas de tv engenhosos com forte protagonista feminina

a mulher multitarefas capa de revista de negócio de tailleur um bebê no colo uma pasta executiva nos braços passa blush enquanto bochecha eu preciso do feminismo porque meu pai acha que estou mandando mensagens eróticas secretas pro vizinho ao pendurar calcinhas no varal

gente pera que eu esqueci de polir minha militância hoje

pela sua cara seu pinto não deve ser tão grande assim pra você ocupar metade do meu assento dicas do transporte público

competição feminina não faz bem aos glúteos

“posers do feminismo” por isso que a mãe quando limpa o quarto tira o cabo da internet

eu deveria ser avaliada em termos como “capacidade de segurar lágrimas e ímpetos de discursos feministas no cotidiano”

texto/tweets @lanakantor arte Lana Kantor


MENINAS, SEJAM AS HEROÍNAS

DE SUAS PRÓPRIAS HISTÓRIAS


M

e lembro da primeira vez que c onhe ci uma heroína na li te ratu ra . Eu tinha 11 anos. Ela também. Ela, assim como eu na época, tirava as maiores notas da classe e era ridicularizada por várias coisas que saíam de seu controle: sua aparência, sua família, seus interesses. Ela era Hermione Granger e pela primeira vez eu entrava em contato com uma personagem feminina que era tão (se não mais) importante, talentosa e inteligente que os homens na história. Ela não era a protagonista em Harry Potter, mas representou para uma geração de garotas uma mudança enorme de pensamento: nós não precisamos nos diminuir. O que Hermione nos mostra é bem mais profundo do que uma simples identificação com uma personagem. É extremamente comum que mulheres na literatura, na TV, na publicidade e no cinema sejam retratadas de maneira objetificada e simplista. As mulheres são apenas pares românticos, mães, esposas. Elas não são parte da história principal - são apenas partes do caminho do herói. Representação é importante. Qualquer pessoa que diga o contrário claramente não faz parte de uma

minoria que não consegue se reconhecer na ficção. Vemos versões estereotipadas do nosso gênero. Eu tive sorte de compreender logo cedo através de uma personagem bem desenvolvida que está tudo bem em ser inteligente e ambiciosa - mas ainda cresci sendo bombardeada com imagens que me diziam para abaixar a cabeça, fechar as pernas, sorrir, não responder, ignorar as agressões. Vi propagandas e filmes me dizendo que o meu valor está puramente baseado na minha aparência. Por isso a cada personagem bem desenvolvida e complexa que encontro sinto esperança na noção de como as novas gerações de meninas (e meninos) lidarão e questionarão um mundo que não acolhe as mulheres. A cada Katniss e Tris (protagonistas de Jogos Vorazes e Divergente, respectivamente) que tornam-se líderes da revolução em seus países e tentam combater um sistema quebrado de governo vemos garotas percebendo que sim, elas também podem lutar suas próprias batalhas. As duas trilogias de livros (ambas escritas por mulheres) obtiveram um sucesso íncrivel de vendas entre o público jovem. Isso mostra que a aceitação de mudança na narrativa de papéis restritivos de gênero foi aceita pelo público que mais cons ome entretenimento.



2013 foi o ano de dominação feminina no cinema, com dois filmes protagonizados por mulheres entre os três filmes que mais faturaram mundialmente: Jogos Vorazes: Em chamas e Frozen. Se o fato de que histórias sobre mulheres são lucrativas, por que ainda existem tão poucas histórias protagonizadas por mulheres que não sejam comédias românticas? Por que uma super heroína como a Mulher Maravilha nunca teve um filme próprio produzido, mas vemos anualmente filmes com super heróis chegarem às telas?

“Representação é importante. Qualquer pessoa que diga o contrário claramente não faz parte de uma minoria que não consegue se reconhecer na ficção. “ De todos os ganhadores para a categoria de melhor direção nos 86 anos do Oscar apenas uma mulher foi premiada. Kathryn Bigelow levou a estatueta em 2010 por Guerra ao Terror. Estamos falando de 85 anos em que histórias dirigidas por mulheres foram completamente ignoradas pela premiação. Se produções feitas por homens são as únicas sendo reconhecidas e a indústria criativa continuar a ser mais

uma forma de propagar a dominação masculina, as histórias contadas permanecerão a terem o ponto de vista masculino e objetificado sobre as personagens femininas. Duas das maiores séries da atualidade são a prova da importância do protagonismo feminino em suas produções. Mad Men (AMC) e Game of Thrones (HBO) são grandes exemplos da diversidade de suas personagens e ambos possuem roteiristas mulheres em suas equipes. Adaptadas em contextos completamente diferentes (em Mad Men vemos a Nova York - machista - dos anos 60 e em Game of Thrones vemos a idade média fantasiosa também machista - criada por George R. R. Martin), as séries nos apresentam personagens lutando pelo poder, pela sobrevivência e por autonomia em cenários nos quais a violência e a misoginia são predominantes. Suas mulheres são fortes, sagazes e tão destruidoras quanto os homens nas séries. Essas narrativas que não subestimam as mulheres e não nos apresentam como seres unidimensionais, submissos e cuja vida existe apenas para o prazer masculino devem ser valorizadas. Que existam mais Hermiones, mais Katniss, mais garotas capazes de se defenderem, mais protagonistas onde as histórias de amor são apenas


um sub-enredo, onde sua aparência física não é o que confere valor a elas como pessoas. Que mais garotas se identifiquem com uma personagem e vejam nela um conforto e gratitude pelas novas portas e caminhos que elas nos mostram.

“Essas narrativas que não subestimam as mulheres e não nos apresentam como seres unidimensionais, submissos e cuja vida existe apenas para o prazer masculino devem ser valorizadas.” E espero, acima de tudo, que mais autoras, cineastas, roteiristas e produtoras ganhem espaço e tenham suas vozes ouvidas. Que suas histórias não sejam ignoradas por convenções estúpidas sobre papéis de gênero. Que mais meninas de 11 anos se surpreendam ao abrir um livro e nele encontrar alguém como eu, você e todas as outras mulheres desse mundo: complexas, com defeitos, qualidades, sonhos próprios e que desejam reconhecimento. texto Lizandra Muniz ARTE Lígia Arnaut


A MINHA HISTÓRIA ANTES DE MIM Venho de uma família de descendentes italianos. Meu bisavô, avô de minha mãe, era um italiano que, ainda menino, se misturou com o lado de cá do oceano. Seu pai achou que voltaria rápido para a Itália – nunca voltou. Por aqui, criou raízes: casou-se, tornou-se comandante da cavalaria da polícia militar, trabalhou no Palácio do Governador. E, o que acho mais imp ortante para minha história, teve cinco filhas e nenhum filho. Estas cinco mulheres criadas por um militar italiano, as minhas tias-avós e avó, começaram a construir minha história muito antes de eu nascer. São e foram mulheres fortes. Não sentem medo de ocupar e s p a ç o e falar alto. Foi com elas que aprendi, desde criança, a não esconder ou negar o que sou ou o que sinto. Sei que minha história e minha imagem vêm da imagem e história delas e de todas as mulheres que vieram antes de mim. Que o que

sou é consequência do que elas s ão e f o r a m . E que, ao contar sobre elas, conto também sobre mim. A Belo Horizonte onde minha avó e tias avós cresceram segue em frente, assim como a onde eu moro agora seguirá depois de mim. Toda cidade possui seus fantasmas, e o que proponho é que olhemos para eles com mais carinho. Afinal, é imp ortante que n os le mbre m os das mulheres do passado. É importante que suas imagens ainda resistam nas cidades e espaços onde viveram. A determinação das mulheres antes de mim me deixou liberdades e conquistas como herança. Aqui, reúno algumas de suas imagens como forma de admiração e, mais importante, de gratidão.

texto+arte Lígia Arnaut fotografias acervo família Ferretti que a memória de nossas mulheres não seja mais esquecida.


foto de Belo Horizonte nos anos 60


tia Lygia e seu marido tomando sol. durante a adolescência, minha avó e suas irmãs eram proibidas pelo pai de nadarem no Minas Tênis Clube para que ninguém as vissem de biquíni.


tia Lygia e tia Leda no quintal. sorridentes, sempre foram bagunceiras – não tinham medo de ser “como meninos” ou de ir além do que definiram por elas como “seu lugar”.



vovó Myriam, meu bisavô e tia Laís. minha avó, Myriam, brigou com seu pai e com seu marido para conseguir fazer faculdade, e Laís, que nunca se casou, já viajou pelo mundo todo.



Q

uando criança, nunca gostei de brincar com Barbies ou princesas. No recreio, jogava bola e brincava de luta com os meninos. Sempre gostei de usar maquiagem. Certa vez, ganhei de aniversário uma sandália masculina. Chorei todas as vezes que era obrigada a usá-la. Ficava com raiva por ser obrigada a usar vestidos rosas, aqueles de bonecas, em ocasiões festivas. Na minha cabeça confusa e inexperiente, eu me perguntava: por que eu era obrigada a gostar de “coisas de meninas”, e sempre levava bronca quando agia “como um menino”? Será que eu “vou ser lésbica quando crescer”? Qual é a minha identidade? A resposta, que eu só soube me dar há pouco tempo, é que minha identidade não reside somente em meu órgão sexual. Percebi que deixei de fazer escolhas próprias porque “não me era adequado ou esperado como menina”. E que haviam escolhido por mim o meu gênero, sem sequer saber com qual deles eu me identificava, ou se não me identificava com nenhum. Gênero é um conceito que se refere à construção social do sexo. Um assunto quase sempre evitado, cheio de controvérsias, dúvidas e certezas frágeis. Seria possível educar uma criança levando em conta suas próprias escolhas sobre si mesma? Como evitar a imposição dos papéis de gênero sobre seres que estão apenas começando a conhecer o mundo e a sociedade? Para falar sobre o assunto, entrevistei a professora de Comunicação Social da UFMG, ativista dos direitos LGBT e futura mãe, Joana Ziller.


Nadine: Como você, futura mãe e ativista, pretende abordar a questão dos papéis de gênero durante o crescimento e desenvolvimento da sua criança?

quem era o pai. Eu disse que aquele bebê tem duas mães. Ela: então vocês são casadas? Eu: sim, somos, olha aqui a aliança. Ela: mas as duas entraram de noiva?

Joana: Pretendo conversar e questionar os estereótipos. Sei que somos todxs criadxs imersxs na cultura, em jogos de força e regras que impõem tais papéis, não é possível criar um filho de maneira alheia a eles. Mas também acredito que conversar e questionar certas verdades, é nossa obrigação.

Eu expliquei que a gente só tinha casado no civil. E acabaram as dúvidas, ela voltou a brincar com o que estava brincando. Ou seja, o problema, para ela, não era duas mulheres serem casadas, mas o fato incomum de ver juntas duas noivas, de branco. Resolvido isso, não havia mais problema.

Nadine: Você acha que isso pode criar alguma confusão na cabeça da criança? Ou que só tem a contribuir desde cedo em relação à quebra de estereótipos, preconceitos e intolerâncias?

Nadine: Quais dificuldades um casal lésbico encontra ao decidir ter um bebê atualmente? Há algo que assegure esse direito perante a justiça ou a sociedade?

Joana: Acho que a cabecinha de qualquer criança é cheia de dúvidas, assim como as nossas cabeças. Mas não acho que, em si, isso seja uma coisa ruim. Penso que é preciso que a criança se sinta amada e segura, e que esse tipo de sentimento ajude a lidar com as dúvidas e confusões. E acho que nós é que complicamos demais as coisas, as crianças ainda não têm nossos preconceitos e lidam mais facilmente com as diferenças. Os problemas, em geral, vêm das mães e pais. Exemplo: a filha de um amigo, de oito anos, ao ver minha barriga, perguntou

Joana: É preciso fazer uma inseminação artificial ou uma fertilização in vitro. É um procedimento caro e desgastante. E há profissionais que estão muito preparados para lidar com um casal homoafetivo, enquanto outros não estão nem um pouco. Passei pelos dois tipos de profissional. Por fim, depois que a gravidez se efetiva, ainda é preciso entrar na justiça para pedir a comaternidade. Mesmo sendo casadas, com o contrato de inseminação no nome das duas, não há reconhecimento automático de que aquela criança tenha duas mães.


Nadine: Essas dificuldades, no futuro, podem criar embates sobre quem tem direito sobre a guarda da criança (as mães ou o doador que possibilitou a inseminação)? Vocês se sentem protegidas quanto a isso? Joana: Quanto a isso, não há problema: a doação é anônima e a legislação brasileira é muito severa: o filho não cabe ao doador sob nenhum aspecto. Nadine: O que você pensa sobre a educação infantil atual, que já aprisiona a criança no gênero decidido para ela por convenção social? (Exemplo: brinquedos vendidos para meninas são sempre bonecas ou algo de cozinha, o quarto de meninos é geralmente azul, meninas quando nascem já saem do hospital usando brinco...)?

Nadine: Você sente que os caminhos para a aceitação da diversidade de gêneros está se abrindo? Em que mão a internet e as redes sociais têm contribuído para isso? Joana: Acho que há, por meio da Internet, uma maior visibilidade à diferença. Isso, por um lado, começa a abrir caminhos; por outro, traz à tona também o conservadorismo. É sempre em um movimento assim, de visibilidade, luta e reação a elas, que se altera algo. Mas acho que é sempre um caminho árduo. Nadine: Você acha que é possível modificar essa mentalidade e esse direcionamento pedagógico voltado para a criação e educação baseada nessas convenções e reforços? De que maneira?

Joana: Não acho que seja uma prisão, mas um reforço da convenção. De toda maneira, de novo, acho esse reforço um desejo dos pais, que se sentem confortáveis vendo seus filhos cumprindo o papel de gênero desde cedo.

Joana: Acho que a conversa cotidiana, o questionamento e o aguçamento da crítica são sempre formas de se escapar de tais regras. Não que sejam formas infalíveis, mas são caminhos que precisam ser cotidianamente trilhados.

Quando o filho chora, por exemplo, logo alguém se apressa em dizer: você não é homem? Ou quando a menina quer brincar de carrinho, até hoje se escuta que isso não é coisa de menina.

Por outro lado, sei que não é simples fazer qualquer pessoa abrir mão de privilégios - e meu filho será um menino, cheio de privilégios de gênero. Portanto, muito trabalho à vista!


Sobre as Nossas Marcas Mulheres, desde crianças, são ensinadas a serem delicadas. É esperado que caibamos no molde pré-definido de “feminilidade”, onde nosso corpo, nosso comportamento e nossos sentimentos não podem ou devem incomodar o outro, especialmente se o outro é um homem. Isso tudo é, claro, uma grande bobagem. E uma das minhas formas preferidas (ainda que recém-inaugurada) de provocar o patriarcado e mostrar meu controle sobre meu próprio corpo é me preencher de tatuagens. Mulheres tatuadas já foram atrações de freakshows graças à sua pele. Mais recentemente, nos anos 90, sobreviventes de câncer de mama tatuavam as cicatrizes de seus seios no lugar de fazer implantes para “reconstruir” o que foi tirado.

Agora, quando a tatuagem cada vez mais torna-se popular e comum, mulheres tatuadas continuam sendo constantemente estigmatizadas, e se marcar continua sendo um ato revolucionário contra o patriarcado. Aos nos tatuarmos, dizemos “este corpo é meu e eu vou marcá-lo da forma que eu quiser”. Dizemos que não temos medo do “para sempre” que é nosso, que não temos vergonha de nos mostrar, que temos controle da nossa imagem. Estamos, de certa forma, dizendo “fodam-se vocês”. E, ao mesmo tempo, continuamos uma atração. Não nos encaram mais nos circos, mas os olhares permanecem nas ruas. Tenho tatuagens em locais delicados, como minhas coxas, e sempre que uso roupas curtas, tenho que lidar com ainda mais homens me encarando. Já


tive pessoas me encostando para que “vissem o desenho”. E quando reclamo? “Mas a culpa é sua, é você que quis esse desenho aí, sabia que ia chamar atenção.” Pois que fiquem sabendo: meu corpo ser marcado não torna certo seus olhares e seus toques.

gordas, sem peito e velhas. Nossas tatuagens não precisam ser “pequenas e delicadas”. Não vamos perder nossa feminilidade se fizermos uma tatuagem maior que a de nosso namorado - ou, se perdermos, talvez não liguemos tanto assim para o que definem como “feminino”.

Mulheres tatuadas tendem a ser hiperssexualizadas - basta ver qualquer programa de TV, onde sempre vão estar de salto alto, maquiagem pesada e decotes enormes.

Nossa pele ficar murcha ou receber estrias é natural enquanto envelhecemos, e, não, isso não é relevante para definir se vamos ou não nos tatuar. Estamos dispostas a enfrentar o tempo - só que, assim, do nosso jeito.

Mas nós não somos só quem você quer que sejamos.

Nosso corpo é nosso. Nossas marcas são nossas.

Mulheres

A nossa história é nossa.

tatuadas

podem

ser

texto+arte Lígia Arnaut foto livro Bodies of Subversion


*Esse texto não contêm ensinamentos ou um passo-a-passo. São apenas experiências comuns unidas em um conto.

dayanne


Ela era gorda desde criança. No fim de sua adolescência, no Fofinha, com dobrinhas, todos apertavam a bochecha e brincavam com o bebê gordinho. O auge da beleza e fofura humana. Mas, em algum momento – que ela perdeu, não viu passar, absorvida nas suas atividade infantis e adolescentes - as pessoas não sorriam mais quando viam sua barriga, suas bochechas ou sua coxa “tão gordinha que dá vontade de morder”. De repente, seu corpo estava errado, toda a sua existência estava errada e parecia incomodar - e muito - as pessoas.

entanto, ela conheceu pessoas que diziam coisas diferentes. Conheceu pessoas que lutavam contra tudo que ela tinha aprendido. Ficou maravilhada ao ver mulheres iguais a ela se amando e usando todas aquelas roupas que sempre foram proibidas a ela. Ela observou e absorveu todo esse mundo novo em que ela poderia orgulhar-se de si mesma e do seu corpo. E um dia, resolveu testar essa tal aceitação.

Colocou sua roupa mais fashion, aquela combinação de saia e blusa Ela, então, aprendeu e decorou, que tinha visto naquele blog de mesmo sem entender de verdade, moda. Olhou o volume da sua que ser gorda é errado . Ela aceitava barriga e achou uma graça. Tudo nela parecia resplandecer, poderia quando as pessoas falavam, dayanne fingia entrar nas brincadeiras, jurar que sentia o vento em seus até zombava de outras meninas. cabelos, igual ao das modelos nas As pessoas estavam certas, revistas. Pegou tudo isso e fez os médicos estavam certos, as um escudo, se sentiu protegida revistas, a televisão. Afinal, o que pelo amor-próprio, inflada de há de belo em ser gorda? Mesmo positividade, “como se vestisse assim, ela nunca quis realmente uma armadura de balões”. Cada emagrecer- o que era um absurdo, balão cheio era significava um já que toda mulher queria ou momento em que ela disse não ao ódio a si mesma, não às imposições deveria querer. ao seu corpo, E agora todos eles E, assim, ela entrou num a cercavam e a protegiam. Ela estava muito feliz e segura.

ciclo de se rejeitar e odiar outras mulheres,porque elas eram gordas e mereciam, porque elas eram magras e mereciam, porque elas eram burras e mereciam. Porque elas são mulheres e eu devo falar mal delas.

Saiu à rua, andou, andou, encontrou amigos, tudo como de costume. Em um misto de receio e poder que supera todas as contradições. Pode acreditar: essa era a sensação. Pena que durou pouco. Porque aí ela começou a perceber que só ela tinha mudado.


dayanne


Ninguém elogiou o modo como a saia marcava sua cintura e revelava sua pele. Ou falou que seu rosto redondo combinava sim com franja. Sentia-se linda como nunca e desejava, implorava que alguém notasse. Ela ainda não conseguia ignorar a opinião dos outros. Ouviu as palavras “vergonha “ e “nojo” . A cada olhar incisivo ou comentário maldoso aquele em pessoa fingia que falava baixo, mas fazia de tudo para ela ouvir - um balão estourava.

e a enojava. Mas não podia deixar de se achar bonita, linda, maravilhosa. E isso fazia muito bem a ela. Cada um dos seus 102 quilos era maravilhoso, cada fio de cabelo, cada palavra que saía de sua boca: tudo transbordava beleza. Eles, os outros, estavam errados de novo, como sempre.

Ainda dói que eles não enxerguem tudo isso que ela vê em si. Ainda dói ver a amiga recebendo elogios por emagrecer e “ficar bonita”, sendo que ela mesma fez algo tão corajoso e difícil quanto: se aceitou e se sentiu linda. Mas Começou pela sua mãe em casa, passou ela restaurou sua armadura e segue em pelo homem da banca de jornal e o frente. Perdendo um balão ou outro, motorista de ônibus, continuou com mas se sentindo mais forte. Ela não a senhora no mercado e o repórter na quer e não vai mais se odiar, nunca TV. Ela sentiu cada balão estourar, o mais. dayanne contato irritado, mas reconfortante com a borracha desaparecer. Sentia os buracos que a deixavam mais fraca. O vazio. Até que ficou nua, desprotegida. Agora ela quer que cada mulher Qualquer coisa agora poderia tenha a sua armadura. Ou talvez lhe atingir, e saber disso deixou-a uma espada. Ela só pensa em desesperada. O nó já avançava em lutar e isso parece bem melhor sua garganta prestes pra explodir. do que emagrecer. As lágrimas caíam sem nenhuma cerimônia. E ela chorou e chorou. Quando terminou, ainda com o corpo quente das lágrimas, se olhou no espelho, viu suas fotos antigas. Depois pensou em tudo que já tinha feito e tudo o que era. Naquele momento, ela teve certeza: Eu sou linda. A beleza significou tudo e nada para ela. Sabia que não tinha obrigação nenhuma de ser bonita, essa imposição dada às mulheres que a castigava desde sempre

texto: Dayanne Campos arte: Marcela Vieira


Já me

falaram

muitas

coisas Marcela Vieira

marcela

Que histórias em quadrinhos não são para meninas...

“Quando temos medo, perdemos o senso de análise e de reflexão. O terror nos paralisa. Aliás, o medo sempre foi o motor da repressão em todas as ditaduras. Mostrar os cabelos ou se maquiar viraram, obviamente, atos de rebeldia.” - Marjane Satrapi.


...que alguns video games são complexos demais pra mim e que eu nunca seria melhor que um garoto…

Não encoste em mim.

marcela

...que a minha fantasia deveria agradar ao outro: eu só posso ser e mostrar o que acham bonito.

eu não ligo


.Quadro(s) em branco Uma das coisas que afasta outras meninas da leitura e da criação de quadrinhos é a construção superficial de personagens femininas, representadas como meros objetos decorativos ou sexuais. Imprima a página e use esse espaço para contar a sua própria história ou a história de mulheres que inspiram você.


Seus dizeres não fazem minha vida. texto: Lila Rafaela arte: Marcela Vieira

“É a frieza” Disseram Isso iria me condenar Me fazer inferior Me subjugar “É dele” Disseram Não era um todo Não era inteira Era um pedaço De algum outro lugar “É o encaixe” Disseram Só servia para alguém Algum outro Completar “É sua função” Disseram Deve parir e cuidar Assim deve ser Assim deverá se portar

Lila

Assim fui queimada Fui isolada Fui excluída Fui pária Agora a ordem é outra “Deve se cortar” O nariz, a boca Tudo que estiver fora do lugar Mas esqueceram Que aqui existe uma pessoa Que não vai se calar Que vai pegar cada uma de suas regras Vai quebrar Contestar E mostrar Que meu verdadeiro lugar É onde eu queira estar


FB.COM/ FRIGGAZINE


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