EROS E AFRODITE

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EROS E AFRODITE um estudo de anatomia do amor plat么nico

Marcelo Moraes Caetano 1


Primeiro, casa-te com tua alma, imprime, carimba e estimula o ritmo da tua dança. Depois, convida alguém para vir dançar contigo e com ela. Deixa o acaso te conduzir. Ó Fortuna! Quando estiverdes dançando, os três, ou os quatro, enfim, podereis esquecer completamente as regras do ritmo, porque, da fusão de ti com os outros, nascerá uma dança desprovida de compasso, alheia à ordem, triunfante na aparente volta ao caos primitivo, que agora se chama Harmonia Eterna. Sereis mais de dez bebendo pela mesma fonte, fitando livres para a mesma estrela, sorrindo com os mesmos dentes. E sereis um só. Vossas salivas poderão transbordar oceanos e não serão capazes de encher um dedal. Tantas lágrimas amamentarão teus rebentos de felicidade. Porque a sede do corpo e a sede do espírito serão uma só. Sede-a! A carne já não segrega corpo de espírito. Mãe de filho, pai de irmã. Ora, dançai, perseverai, fundi, eternizai-vos. Sede o que sois. Água! Leite e mel! Valentia e doçura. Justiça e flores. Altares e passeios na floresta. Medo e coragem. Banquete podre de carne de porco no lixo. Homem e mulher. Silêncio e canto. Sereia e foguete. Ostra e tocha olímpica. Taça aberta e garrafa sem rolha. Flecha em campo de centeio. Terra baixa ribeirinha, várzea abençoada, longas aves pernaltas, revoadas de marrecos selvagens. Fogo ancestral. História. Pré-hominídeos. Rios de água clara. Cro-magnon. Aleph. Cirurgia atômica. Notas musicais esparzidas. Os três movimentos da Sonata de todas as vidas. A coruja que vela a noite com a asa tapando-lhe o bico. O Sol que viu tudo. E o Sol que acorda com cor de metal em brasa arrefecido pela neve alva de água da montanha cristalina sem ter visto nada. Silêncio da Lua que verbaliza. A Lua que nunca não vê. Com paradigmas da Ontologia. Com paradigmas da Consciência e da Inconsciência. Taça de vinho. Com paradigmas da Linguagem. Mas, sobre todos, sereis o novo paradigma: a União. Sereis um. Ora, escuta-me. Sereis aquilo que és. Avança. Revela-te. Casai-vos. Ide em Paz. Levanta o véu e diz: Aceito! Uni-vos, pois. Vai. E não voltes a pecar-te. (Marcelo Caetano. In: Marcelo Moraes Caetano: auto-análise do bem e do mal)

O filho de Vênus, deus Cupido, logo avança, Conduzindo a linda amada em transe. Após enfrentar tantos labores, Eis que, com a aprovação dos deuses todos, Há de torná-la sua esposa eterna. E, de tal himeneu, irão dois gêmeos, Juventude e Alegria, venturosos, Muito em breve nascer: Jove o jurou. (Milton. In: Comus)

Ó mais bela visão! Ó derradeira imagem da estirpe celestial, da olímpica linhagem! Mais bela que Diana livre de seu véu E que Vésper erguida entre os astros do céu! Que no Olimpo pudeste reluzir e ofuscar, Embora sem um templo, embora sem altar! (Keats. In: Ode a Psique)

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A São Francisco de Assis e Santa Clara; A Martin Heidegger e Hanna Arendt; A Sigmund Freud e Amália Nathanson; A Santo Agostinho e Santa Mônica; A Cícero e Hélvia. Às três Marias e Jesus.

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ROMANCES DE ENTRESSAFRA: Um estudo de anatomia do amor platônico SUMÁRIO

CAPÍTULO I (1) ...............................................................................................................11 Mil formas de estar (conto)

CAPÍTULO II (2) ..............................................................................................................14 O tipo de arte do amor: a Romancidade ou Cinema Paradiso ou O elogio da loucura

CAPÍTULO III (3) ..........................................................................................................21 Trinta perguntas inicialmente definitivas

CAPÍTULO IV (4) ...........................................................................................................22 História Natural: Helena, a mulher grega e seus ancestrais divinos

CAPÍTULO V (5) ............................................................................................................25 Minha extrema-unção: o que é liberdade? Como libertá-la? (memória crônica)

CAPÍTULO VI (6) ..........................................................................................................30 Os monges do amor (Capítulo para ser observado exclusivamente por mulheres)

CAPÍTULO VII (7) ........................................................................................................ 30 Origens históricas do beijo (conto)

CAPÍTULO VIII (8) .......................................................................................................40 Cosmogonoescatologia: Entender a Luz Teológica para entender o homem profundo

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CAPÍTULO IX (9) ..........................................................................................................43 A Conseqüência Divina  Renascença  Idade Média

CAPÍTULO X (10) .........................................................................................................44 A Conseqüência Humana: estudo sobre o Poder

CAPÍTULO XI (11) .......................................................................................................47 A inconseqüência

CAPÍTULO XII (12) ......................................................................................................48 Poema seco

CAPÍTULO XIII (13) ....................................................................................................51 Materialismo ou veritismo? A equação universal

CAPÍTULO XIV (14) ....................................................................................................52 Por que amor platônico? O coeficiente 

CAPÍTULO XV (15) .....................................................................................................56 Oblação aos deuses gregos: deixemos passar o filme de suas origens

CAPÍTULO XVI (16) ....................................................................................................65 Um pouco de Tempo

CAPÍTULO XVII (17) ..................................................................................................68 Eu nasci no lodo

CAPÍTULO XVIII (18) ...............................................................................................71 O poderoso feminino  Apolo ou Dioniso?

CAPÍTULO XIX (19) ....................................................................................................74 Jesus diante do poderoso feminino: Santa Maria Madalena

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CAPÍTULO XX (20) ......................................................................................................82 Percepção divina ou coragem?

CAPÍTULO XXI (21) .....................................................................................................85 AO SANTÍSSIMO PROFANÍSSIMO HOMEM DE FELICIDADE

CAPÍTULO XXII (22) ....................................................................................................86 Σιμβλώς  transformando flores em mel

CAPÍTULO XXIII (23) ..................................................................................................87 A vara de condão

CAPÍTULO XXIV (24) ...................................................................................................90 A entressafra se refestelou na poltrona branca de nossas vidas!

CAPÍTULO XXV (25) ....................................................................................................92 Lírios e rosas

CAPÍTULO XXVI (26) ..................................................................................................96 Violência ou As rosas devotas: um encontro de todo amor (conto)

CAPÍTULO XXVII (27) ...............................................................................................101 Três estudos sobre o Perdão Ou Três estudos sobre a loucura Ou Três estudos sobre 

CAPÍTULO XXVIII (28) ..............................................................................................104 Subtítulo: Perdão II

CAPÍTULO XXIX (29) .................................................................................................109 Análise algébrica e pitagórica da vida

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Evoco os egípcios e sua sanha numeradora infernal e genial CAPÍTULO XXX (30) ...................................................................................................110 Subtítulo: Perdão III

CAPÍTULO XXXI (31) .................................................................................................112 Subsubtítulo: Crime & Castigo

CAPÍTULO XXXII (32) ...............................................................................................116 DUAS CABALAS

CAPÍTULO XXXIII (33) ..............................................................................................124 Bola

CAPÍTULO XXXIV (34) ..............................................................................................125 C 1: Concreto

CAPÍTULO XXXV (35) ................................................................................................126 C 2: Caricatura de gente: a águia

CAPÍTULO XXXVI (36) ..............................................................................................127 C 3: Casa

CAPÍTULO XXXVII (37) .............................................................................................128 Divindade

CAPÍTULO XXXVIII (38)............................................................................................129 Espaço

CAPÍTULO XXXIX (39) ..............................................................................................130 Fluido

CAPÍTULO XL (40) ......................................................................................................131 Grandeza

CAPÍTULO XLI (41) ....................................................................................................133 7


Hibridismo

CAPÍTULO XLII (42) ..................................................................................................134 (1) Impulso

CAPÍTULO XLIII (43) ................................................................................................135 Janeiro ou, simplesmente, 01

CAPÍTULO XLIV (44) ................................................................................................136 Luzazul

CAPÍTULO XLV (45) ..................................................................................................137 Matéria-Movimento

CAPÍTULO XLVI (46) .................................................................................................138 Nada

CAPÍTULO XLVII (47) ................................................................................................139 Ovo

CAPÍTULO XLVIII (48) ...............................................................................................140 Pérola: ovo escultura do mar

CAPÍTULO XLIX (49) ..................................................................................................141 Quintessência

CAPÍTULO L (50) .........................................................................................................142 Rio pantanoso

CAPÍTULO LI (51) .......................................................................................................143 Sonho

CAPÍTULO LII (52) ......................................................................................................144 Terra

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CAPÍTULO LIII (53) ................................................................................................150 Uva: ovo pérola escultura do mar na terra que pode ser comida

CAPÍTULO LIV (54) ................................................................................................151 Vida: infindos, paralelos encontrados poemas

CAPÍTULO LV (55) .................................................................................................159 Versos Faustos

CAPÍTULO LVI (56) ................................................................................................161 SIM!

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     

Arte citae veloque rates remoque moventur, Arte leues currus; arte regendus Amor (*) (Ovídio, Ars Amatoria)

(*)Tradução nossa: Por causa da Arte é que barcos vão no mar vogando com remos e com vela, também vão os carros, por causa d’Ela, mais ligeiros no caminho a deslizar.

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Mil formas de estar (conto) Meu nome é Áurea Virgínia. Estou na rua. Vou às compras. Odeio levar sacolas em ruas de paralelos desencontrados. Mas levo. E com amor é leve, em vez de simplesmente levo. Ou será que é o amor que me leva? Ou é a sacola? Persigo com o olhar um cachorro na praia, porque seu dono seria um marido bastante perfeito... Por que este cachorro tinha que arrastá-lo de mim? Cão ávido, guloso, imagem do cão! Coleira reboque! Ele agora se foi e levou com ele seu bastante. Que lavasse o perfeito! Deixou por quê? Esta perfeição?! Mas quem liga para um osso abandonado? Perfeição é osso abandonado! O absoluto adere em mim com uma consistência de plasma. E sua gelatina me comove. Comoção é como pulgas no asfalto. Ai pulgas pulando! Aqui está mais um “perfeito” para a minha longa lista de renúncias querendo-se lúdicas à imperfeição... Perfeição é pipoca, três quilos de carne suína! Se eu me esqueço da manteiga, o que farei? Lambo a sombra de um namorado ideal que passeia com licitude sobre a esteira perpetuada na academia. Que gosto ruim têm as sombras!... Ó pedra de Sísifo! Só quilômetros nos separam. Quilômetros tão estancados... Que olhos presos na televisão! Santa Clara, clareai! Como era boa a idéia eu tivera dele! Quanta idéia eu fizera de sua idéia! Agora sim, este vem, esse passa, aquele vai... ido... ... ih... Mas como pôde ter ido se estava parado? Será que as pernas acreditaram que estava de fato correndo e sua mente e seu coração correram de mim várias léguas?  Você está parado!  eu lhe gritei  mas ele não me ouviu. Quando será que as pernas vão de fato correr para recuperarem a mente e o coração daquele que se congelou e já se foram na frente atropelando outras mentes e outros corações?  (corra)  eu lhe sussurrei  e ele se voltou para mim escandalizado!  E sussurrou:  NÃO!!! Acabo de me impressionar por dois minutos exaustos, fragmentos de milênio, com uma bicicleta que levava o príncipe da minha torre confinada. Ai, como eu o quis! Meu Deus! ... como eu o quis... Pois acho que com este da bicicleta ocorreu um contrário qualquer: seu corpo corria sentado enquanto a mente e o coração permaneceram rijos num almoxarife da existência. Lá atrás. Atraso! O “ele” corre e o “elo” se congela. “Elo” porque mente e coração são os únicos que verdadeiramente permitem uma aliança, um casamento, uma união, um elo, enfim, comigo.

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Meu Deus! Quando afinal encontrarei eles e elos andando juntos? Quando é mesmo que eles verão o “comigo” que meu coração descongelou há três dias, chamando-o de comigo? Quando verão o verão? Quando encontro ele sem elo, num corpo corredor que vai destituído de sua alma, o ele nem existe, tecnicamente falando. Quando encontro só o elo, atropelando-me sem um ele que o represente e eduque para a cortesia e a delicadeza, posso dizer que o próprio elo é que, tecnicamente sofrendo, não existe. Elo sem ele não existe. Ele sem elo não existe. Meu Deus, só tenho encontrado farsas e não-existes? Quero um tu, um tu existes! Quero eles e elos, pode? Quando afinal encontrarei eles e elos andando junto? E, principalmente, junto comigo! Agora eu não sou mais eu, sou comigo. Vinde junto a mim! Um galã no carro ao lado não parou de me olhar pela eternidade de quase dois milênios-fragmento de sinal vermelho. Pessoa  ele! Ele existe! Carro parado  elo! Elo existe! POS-SI-BI...Li...da...d... Parece-me que tudo estará bem... Sinal vermelho! Verme... Ver... ...de? O sinal ESTAVA vermelho. VERDE. O carro zune. Depoimento. Aprendi as flexões verbais. Elas são muitas, quase incontáveis, dir-se-ia mesmo infindas infundadas flexões flébeis! Mas, dentre todas, por que será que ESTAR pode ser flexionado no pretérito imperfeito do indicativo?... ESTAVA!? Quem lhe deu esta permissão? E conjugado em terceira pessoa do singular... ELE!? E pior: terceira pessoa se confundindo com primeira  ELE e EU iguais! Tamanha higidez jornalística!... Semelhante firula prosaica!... Rasgue-me o verbo! Salva-me, tu! Salva-me, tu! Protesto. Por que é que existe um verbo que chamaram de “estar”? Quem foi que fragmentou o “ser”? E quem andou pondo tantas aspas em verbos? Verbo não é ação e ação não é coisa que se faz? Coisa desumana! Um “o sinal estava vermelho” qualquer aniquilou o rei dos meus amores. A culpa não foi do sinal, de ter ficado verde, mas do estava. Toda culpa é do estava. Indecente! O verbo pretérito preterido mais uma vez adiou um sonho sonhado! Raios o partam! A banana aumentou de novo! Dois reais a dúzia! Levo abacaxi e devoro a salinidade do caju até chorar! Choro de engasgo quadrado nunca fez mal a ninguém! Raios! ESTAR... O infinitivo de “estar” tem sido “estava”. O dicionário terá que inserir este verbete autônomo  e entre aspas  no futuro Dicionário de Romancidade. Sugiro a Marcelo Moraes Caetano algo assim:  Estava  1) Verbo infinitivo e infinitamente adiador e gladiador: Exempli gratia: Estava em pleno encontro... Estava mal de amores...

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2) Verbo de ligação e de desligamento: Exempli gratia: Pedro estava tão feliz... Júlia estava apaixonada... Piaget estava certo... Freud também estava... certo... Já Romeu estava enganado... 3) Verbo auxiliar imprestável e demissionário: Exempli gratia: José estava amando... Mariana estava contando com aquele homem... 4) Verbo que, quando complexado semanticamente, torna-se auxiliar da categoria dos acurativos, mas incapaz de fazer curativos na ferida deixada aberta por ele próprio: Exempli gratia: Ela estava prestes a encontrar um amor definitivo em sua vida... Ela estava a ponto de explodir... 5) Verbo intransitivo e intransigente, inconjugável, fixo, que não permite a duas pessoas ficarem juntas por mais de alguns fragmentos de milênio. Exempli gratia: Roncesvales estava num romance... Diderot estava com Voltaire... E mil etcéteras encheriam as páginas do Dicionário de Romancidade. Ouviu, Marcelo!?... O sinal estava vermelho...  Verbo infinitivo de uma ligação com auxiliar intransitivamente complexado, sem curativos e intransigente. Em outras palavras: burros n’água! Sinal! Verde, ele, príncipe, escapou de minha janela fechada com medo de assaltos e se foi possivelmente numa ida para sempre além do tráfego e do combustível. Confissão. Eu, logo eu, eu não queria assaltá-lo, juro... Teria delicadeza... Teria tido respaldo na singeleza da semente de amor que eu plantara. Ter-lhe-ia dado o cachecol de crochê que eu fiz durante a eternidade do acalanto de inverno da minha vida em espera até agora. Ele seria a razão do meu crochê, será que não entendeu nada? Ainda bem que aquele, aquele rapaz de terno lindo no metrô que me olhava seriíssimo, com dois ii sublinhados apontando-me através dos olhos, com certidão de casamento assinada entre as sobrancelhas e a boca... está indo embora? Está? Ou indo? Ou, pior, embora? Que hora ingrata para o “estar” se rebelar e me mostrar um presente do indicativo tão seco, tão assertivo, tão mão-na-massa!... Insensível “está”! Aspas nele! Olhares. Por que será que tive um tão grande ímpeto de arroubo violento de timidez separatriz ante aquela felicidade eterna resumida  e baixei o olhar recatado? Terei visto há pouco um anjo que acaba de voar? Terá avoado? Mercados, metrôs, dicionários, carros, sinais, calçadas, praias, cachorros, sombras e coleiras. Onde ele estará? Alunos, mestres, dias, noites, invernos, verões, carnavais, liturgias, pecados e salvações. Onde ele estará? Estará tem tido a mesma frieza de estava. Aquela maravilha será que vai de costas há horas porque teria sido um esposo para o resto da vida? Será que ele existe? Será que me olhava mesmo? Será que ele quis se casar? Será que era só uma transa a dois e pura caretice? Ou será que ele é gay?

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O tipo de arte do amor: a Romancidade ou Cinema Paradiso ou Elogio da loucura Áurea Virgínia lançou o termo “Romancidade”. Desenvolvo todas as perguntas frutíferas que me façam. Porque uma pessoa se desenvolve muito mais fazendo perguntas frutíferas do que repetindo como papagaio respostas decoradas através de mil fórmulas prontas, quer sejam de livros, quer sejam de experiências. Só quem não pode repetir fórmulas prontas é a Santa Loucura, de que os homens têm tido tanta “vergonha”... Uma das poucas vezes em que o Velho do Restelo e os nautas se entendem: ambos têm limites claros aqui. Perguntam. O desenvolvimento humano lança olhar para o futuro, para a frente. Ainda bem que os olhos ficam na frente da cabeça... Melhor que sejam a Vitória de Samotrácia, a qual o Louvre esconde tão sigilosa. O cérebro humano quer o futuro. A memória é passado, mas cérebro não é só memória. É também. E é et coetera, acima de todas as coisas. Metaforicamente o que é o cérebro? Cérebro é memória, olhos e mãos. Respostas estagnadas e brilhantes são sinal de boa memória. Mas olhos atentos são sinal de bom futuro. Mãos que agem significam amor. Aliança é tudo. Aprender é aplicar. Aplicar é ter perguntado livre. Por isso espantar-se é a chave do homem que terá um futuro excelente. Ele não sabia. Graças a Deus! O espanto! Uma espécie de febre do bem. Porque olhos que se espantam já não recorrem só ao baú  sem dúvida salutar  da memória. Têm a tampa do baú aberta para trocas necessárias e férteis com as duas mãos do futuro, e dançam valsa, face a face, enamorados. Ser jovem é manter a capacidade de espantar-se. Rir. É saber também usar adjetivos com inocência, puerilidade e pujança. Inocência é ousadia, é navio que corta sem medo. A pujança de Alice, de Dorothy, de Emília, de Hansl e Grettel, João e Maria em minha língua, crianças que, ardilosas, ludibriam sozinhas a bruxa e fogem de sua “convidativa” casa de doces e biscoitos. Crianças na acepção pura da palavra: iniludíveis. Crianças que não temem a insensatez, porque não existe “insensatez” no campo da infância. Como um pujante navio teria medo de sua proa? A proa é assegurada pelo equilíbrio da popa e de todo o corpus do navio gigante. Faça-se gigante para fazer-se criança. Erasmo de Rotterdam, um homem belíssimo e um belíssimo homem, o maior erudito de seu tempo  disputado, graças à sua brilhante mente-coração, por papas e por antipapas, como o próprio Martinho Lutero  em seu mirífico Elogio da Loucura, obra dedicada ao amigo Morus, aquele mesmo da Utopia... escreve-nos: Dizer disparates, falar com insensatez, não é ali que reside todo o encanto da infância? Não seria detestável monstro a criança que raciocinasse como adulto? Esta é a criança que quero retornar. Esta criança não retorna ao passado, mas é um retorno ao futuro. Não posso abrir mão do raciocínio que já adquiri, mas posso abrir-lhe o baú. Posso fazer com que ele deixe de ser “detestável monstro”, coisa que ele é de fato quando retorno ao estado de criança que sempre fui. Baú aberto, caixa de músicas da valsa do futuro. Dançando, o raciocícnio se funde à beleza de seu par, a criança, e já ambos são

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beleza pura. É uma subversão cronológica, porque só mesmo as crianças poderiam subverter até a linha rígida de Chrono. Crianças matam Chrono de rir. Mais Erasmo: Acrescente-se a isso que os velhos adoram as crianças e que estas se apaixonam por eles, porquanto quem se assemelha se aproxima. Quem eu tenho aproximado de mim?... E por que não falarmos em Hans Christian Andersen e em sua sereiazinha, no bicentenário do gênio dinamarquês, nato em 1805? A sereiazinha que, no rigoroso manual bíblico dos gregos, seduz e devora os nautas de Odisseu, agora é uma menina de voz suave que nos seduz para nos devorar o ímpeto guerreiro de homens maus que temos sido. Ela me quer junto a ela. Eu quero ser devorado pela sereiazinha de Andersen, por favor, desamarrem-me do mastro deste navio humano em que navego lúcido e lúdico. Não quero mais guerras. Quero a paz do colo da sereiazinha, porque A nobre guerra é feita por parasitas, alcoviteiros, ladrões, sicários, boçais, imbecis, devedores insolventes, em resumo, pelo refugo da sociedade e, de modo algum, por filósofos que velam à luz da lamparina. A proa do meu navio corta as águas para o futuro! Iluminado pela lamparina infinita. Equilibrado pelo corpus. O dejá-vu passou. O que me espera é o je-verrais... Mas temos tido a impressão de que estamos planando a um metro do chão sobre o avião que sobrevoa a Lua de Júpiter. A Romancidade deveria se chamar, até ontem, Lua de Júpiter. Sem constelações chinesas, fenícias, gregas, romanas, mas simplesmente Lua de Júpiter. O planeta de gás de proporções titânicas. Júpiter. Trezentas vezes maior do que a Terra. A sinfonia em Dó Maior de Mozart. Júpiter. O dom de Júpiter. O dominus... Júpiter! Por que desprezo a Plutão (Hades), o deus de que falarei à frente e que, com Netuno (Poseidon), me dá a Romancidade finalmente derretida, isto é, REALIZADA?! A Sagrada Loucura nasceu de Plutão: Nasci de Plutão [....] Um simples gesto dele, hoje como outrora, resolve o mundo sagrado e o mundo profano. É ele que regula a seu bel-prazer as guerras, a paz, os impérios, os conselhos, os tribunais, os comícios, os matrimônios, os tratados, as alianças, as leis, as artes, o prazer, o trabalho... falta-me a respiração... todos os negócios públicos e privado dos mortais. E o que dizer sobre o que diz Virgílio do mesmíssimo Plutão? Isto: Facilis descensus Averni; Noctes atque dies partet atri janua Ditis: sed Revocare gradum superas que evadere ad auras, hoc opus, hic labor est. (Tradução: A porta de Plutão fica aberta noite e dia. Mas voltar e retornar à atmosfera superior, aí está o trabalho, aí a dificuldade) 15


Estamos planando? No entanto, não de enlevo, nem de gozo, mas de... como dizer... de desespero? Que vergonha! Como dizer “desespero”? Será que desespero é uma forma de gozo? Gozo! Que vergonha! Gozo! Desespero! Ícaro estendido no mar? Não estou falando pânico, mas desespero. Abriu-se mão da loucura e do desespero em nome de uma horrenda “sabedoria”, uma “sensatez” que martiriza e tortura, um “bom-senso” livresco, social, uma conduta “admirável”... Admirável à Kolaxia  adulação. Tu és adulado, tu não és admirado. Admiradas são as crianças. Somos nós. Deixai-me ser Ícaro por um único segundo. Anjo caído, humano, terrestre. Caído! Bodhidarma, o fundador do Zen Budismo, sabe bem: quem cria a tensão é o homem que resiste. Quando eu resisto, cria-se-me tensão. Quando eu cedo, cria-se-me tesão! Palavra louca, escorre pela boca e desce garganta adentro como mel e de repente o desespero é mel com limão. E garganta é só garganta. E gozo nem se fala... A cidade repudia ícaro e lisonjeia Dédalo, pai de Ícaro, com seu labiríntico Minotauro. Dédalo fez um labirinto com Minotauro devorador, assuntos que eu trato em dois de meus livros, e que, como Radamanto, tenho tentado severa e ludicamente mostrar às pessoas que compartilham de meu desespero entabulado. Meu tesão! Radamanto!... A cidade ensina a mascarar o desespero. Quantas máscaras! Muros, muretas, muralhas. Por que você espera o reconhecimento? Por que não te reconheces, não te aplaudes, não te abraças, não te amas? Se não tens quem te elogie, elogia-te a ti mesmo! Kierkegaard escreveu um livro por nome de “O desespero humano”. Limão que ativa glândulas salivais. Livro tão piedoso e claro quanto “Ou isso/ ou aquilo”. Sartre, “O muro”, “A náusea”... (Evangelhos da cidade!) O desespero de Poincaré. O desespero de Camus, de Aldous Huxley e  por que não?  de Robert King Merton, com sua propaganda quase fatal, com seus “tipos”. Um Kafka e um Bukovski desesperados. Um Gorki (e sua mãe), um Tolstoi (e seu diabo), um Dostoievsky (e seus irmãos). A cidade nos empurra para um reino das sombras. A cidade mascara o desespero. A sombra é a máscara, não o desespero em si. A sombra é a púrpura da sabedoria? As trevas não são sombra, são Plutão. As sombras são a Luz do Fogo e os muros. Metaforicamente são o cérebro: os olhos e a memória e as mãos. Navegação é a palavra necessária. Navegar é preciso. Sabedoria?... Sabedoria?! Quanto menos sabedoria, maior a felicidade!  Já diz Sófocles pela boca de Erasmo. Navigare necesse est. E diz assim: Não ponho a máscara, como aqueles que pretendem representar um papel de sábios e andam desfilando como macacos vestidos de púrpura e como asnos com pele de leão. Que se vistam com disfarces quanto quiserem, que suas orelhas sobressalentes revelarão sempre um Midas oculto.(*) (*) Midas recebeu o castigo de ter orelhas de burro quando, solicitado por Pan e por Apolo para ver qual deles melhor executava seu instrumento (Apolo a lira e Pan a flauta), Midas elegeu Pan. Furioso, e muito mais poderoso do que Pan, Apolo deu a Midas as orelhas de burro.

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Muitos têm tentado ver a cidade com olhos de outra seara. Temos tido “Cidades de Deus”, “Cidades do Sol”... Agostinhos e Campanellas... Não são errados, são luzidios. Mas e as sombras  também? Cidades das sombras... Bruxuleantes vultos que se cosem às paredes da cidade, e nos acometem de medo hirundino, quase patético, somos andorinhas solitárias, à espera de um verão shakespeariano. Queremos Puck, Oberom e Titânia, Píramo e Tisbe, Teseu e Hipólita. Quero o extrato, o sumo da flor do amor. Vinho, nepente, lótus. Será que não pudemos perceber que este casamento mítico foi só o pano de fundo para milhões de outros encontros citadinos na selva de Shakespeare, filósofo panteístico? Puck é um seu alter-ego, clown mais perfeito, portanto. Queremos Baco, Dioniso. Nietzsche será falado à frente (como em toda a minha obra), mas desde agora clamo pelo nome de Baco, sob a tutela de Erasmo: Por que Baco é sempre o jovem efebo de bela cabeleira? É porque passa a vida, embriagado e inconsciente, em meio a banquetes, bailes, festas e jogos, recusando qualquer relação com Minerva. (*) (*) Deusa da sabedoria e da guerra. Extremamente rígida, possivelmente não sorria, assim como Juno, esposa legítima de Júpiter. Foi uma das deusas que atestaram o rapto de Perséfone (Prosérpina) pelo deus Plutão.

Queremos Ero, Cupido, Vênus, Afrodite  mãe e filho: Cupido não deixa nunca de ser criança. Por quê? Porque, sendo frívolo, só se ocupa e sonha com coisas insensatas. Por que a áurea Vênus mantém sempre uma beleza que é uma eterna primavera? Porque pertence à minha família [a da Loucura] e traz no rosto a cor de meu pai. Por isso Homero a chama de Afrodite dourada. Enquanto houver matéria e houver Sol, haverá sombra. Quando falamos em cidade de Deus e em cidade do homem, só podemos dizer: cidade da sombra. E cidade da loucura. A matéria é “o muro” que permite a projeção de sua própria sombra sobre outros muros. Esta matéria é mítica, na verdade. É Oberom e Titânia, rei e rainha das fadas. Poucos homens têm olhos de ouvir e ouvidos de ver... A Romancidade requer um tipo amplo de inteligência e educação, de que falarei muito. Os olhos do homem não ouviram, nem os ouvidos do homem viram, nem a mão do homem poderia conceber, nem seu coração expressar o que era meu sonho. (William Shakespeare, O sonho de uma noite de verão) O que eu quero é, como um músico singelo que sou, aprender a lidar com esta nova matemática. Liras e flautas. Mas é CLARO que eu prefiro liras! É claro que eu prefiro o tocar de Apolo ao manejar de Pan! Ouviu bem, APOLO?! Vinde! Quero prelibar a genialidade musical matemática das luzernas para conhecer-lhe a fonte geradora de infinitas sombras. Porque, neste ponto, poderei ter tocado, sem me queimar, a Luz. A genialidade da matemática é inteiramente análoga  como poucas analogias poderiam ser tão bem emparelhadas  à genialidade da música.

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Deuses tocam liras cujas cordas são feixes de Luz. E quero unir a tudo isso a arte de conviver. Quero viver com amor-próprio e conviver com um quinhão razoável e pronto de Loucura. Erasmo: De fato, tudo o que há nos homens não é feito com Loucura? Não é feito por loucos tratando com loucos? Aquele que se obstina em ir contra o sentimento geral só lhe resta imitar Timon e retirar-se para o deserto, onde possa se deleitar solitariamente com a sua sabedoria. O homem só terá seu desenvolvimento pleno quando prestar atenção às suas faculdades humanas intelectual, física, emotiva e espiritual. E unir tudo isso à arte da convivência, que pode bem ser entendida como a arte da política ampla. Por que Midas, que era REI, ganhou orelhas de burro? Porque foi BURRO, ao não dar o prêmio de melhor músico ao mais poderoso dos deuses oraculares  o próprio Apolo! Infringiu o oráculo de Apolo e deu o prêmio a Pan, criando-se o pânico! Exemplo de necedade na arte de conviver. Saia daí! Espiritualidade já, sem máscara para a Romancidade, nudez, alma, olhos e coração despido. Sim, porque Romancidade é também Espiritualidade. É Luz. É metanóia. É parousia. É escatologia apocalíptica. É fé. É amor. É caridade. É teologia da espécie. É pedra de esmeralda. É iniciação nos mistérios de Elêusis. É rito dionisíaco. É oblação a Apolo. É circuncisão. É aliança. É sacrifício. É arte. É vôo. É Ícaro. É Dédalo. É vitória definitiva. Romances podem ser sombras, manejos de se compreender o todo, mas Romancidade é Luz. É Cidade de Deus, é Cidade do Sol. E a Luz formará tantas sombras quantos sejam os muros que eu me predispuser erguerlhe à frente. Tensão e tesão. Não derrube muros, use-os. Para que a sombra se arremesse, necessitarei sempre de mais muros. Muros que projetam e muros onde são projetados os muros que se projetam. E, acima de tudo, Luz do Sol. Atores, atrizes, cenários, luz, câmera, ação  e telas de cinema! Representação REAL, da VERDADE! Precisamos lidar com ambos em dez, para que nossa mão não esbarre num fogo que queima e cozinha a carne cuidada com tamanho afinco e comprada a altíssimo custo. Cinema Paradiso, célebre filme italiano, pegou fogo... Como assim? O filme pegou fogo? O abstrato ou o concreto? O quê pegou fogo? Ai, como é ter inteligência e educação para o abstrato? O Cinema Paradiso pegou fogo? O filme pegou fogo? Não sei dizer, porque, afinal, o filme tem o nome do lugar onde o próprio filme é projetado! Portanto, se, no filme, o Cinema Paradiso pega fogo, O FILME PEGA FOGO por si mesmo. Devo afirmar ou continuar perguntando? O local e o objeto localizado estão de tal forma indissociáveis que, se um pega fogo, o outro também pegará. Pergunto? Ou com meu amor-próprio e um gole de loucura me fundo ao outro na convivência? Aceito? Isto só será visto por quem tiver olhos de ver o abstrato. Isto é fruto de uma educação para o abstrato. Esta mesma educação é que motiva “bobagens” como a solidariedade, a

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caridade e o amor ao próximo ainda quando tudo esteja bem com o próprio indivíduo solidário. A inteligência para o abstrato me expande a todo o universo e me faz sentir a dor da fome de uma mulher a milhares de quilômetros da porta da minha geladeira. E me faz, “insensato”, ajudar a alguém que eu nunca havia visto. E com isso, as nossas dores, uma só dor, se extinguem. Amar é ser solidário. Como você quer um romance se não sabe sentir a necessidade do outro? Aprenda a sua ética pelo amor-próprio, passe a sentir a ética do outro, e o amortotal floresce em ambos. Sentir a dor do outro é um quê de Loucura? E daí?! É trazer para si a dor do outro e queimá-la com fogo sagrado do si-união. É muito fácil dizer: Quero um amor. É muito difícil dizer: Aceito o seu amor. Assim. O que ele tiver de “errado”, por que você não o convida para si mesmo e o queima em você? Você conseguirá calcular o tamanho do fogo em seu corpo, mas nunca será capaz de medir os estragos desse mesmo fogo no corpo do outro. Queime os “defeitos” do outro em você, e o amor terá campo fértil à Luz em ambos. Cinema Paradiso é uma metáfora completa e incompleta do que é a aliança no amor e no especular e espetacular jogo de Fogo, Luz, Sombra e muros que a Romancidade nos obriga a compreender. Por isso abstração é inteligência, e por isso requer educação. Porque a inteligência humana é um azougue, um alazão dourado indômito correndo nos vergéis da essência. Louco para ser domado por ti!... Deixe-o também correr à revelia, porque sua beleza indômita é inigualável. Mas tenha-o por perto educado, também. É um luxo humano! O sábio se refugia nos livros dos antigos e neles só aprende firas abstrações. O louco, ao enfrentar a realidade e os perigos, adquire, a meu ver, o verdadeiro bom-senso. Homero percebeu muito bem isso, apesar de sua cegueira, quando disse: “O louco aprende às minhas custas”. Livros e loucura. A vida é bela! Toda metáfora clama por vida. Se o nome do filme é “Cinema Paradiso” (entre aspas...) e este mesmo “nome” é o nome do local onde os filmes do grande filme são projetados sobre telas sombreadas e inflamáveis de um fogo tão existente (e existencial) que chegará a incinerar o plano amplo de projeção absoluta, abstrata e memorizada, estarei errado ao afirmar que o fogo que consumiu o local consumiu igualmente todos os filmes do local e  então  o próprio “nome” de toda essa metalinguagem conematográfica, queimando o absoluto na medida em que queima os fragmentos poliédricos concretos deste? Creio que não! Digo, que sim! Digo... o nome pressentido e ressentido por Goethe, por Umberto Eco... Concessão: os únicos fragmentos “sobrados” do imenso incêndio do Cinema Paradiso foram fragmentos de...? Amor. Porque o amor, metaforicamente ou simplesmente assim, resiste a tudo. Não digo mais nada. Parei para simplesmente contemplar, como se eu estivesse numa ampla sala de projeções cinéfilas, o filme da vida humana. O Romance é uma Religião. Memória e loucura. Ação. Tensão. Tesão. Religião. Eduquemo-nos para Ela, em seu nome. Em nome da rosa... Por enquanto me resta rir, e muito. E graças a Deus! e quero sempre rir. Rir. 19


Assim é a fala de Brontos, deus dos trovões, “assustador”, personagem de minha peça A aurora da rainha Walburga, tão logo lhe ocorre a maior peripécia histriônica da peça, numa extravagância digna do próprio cetro do deus Momo (rebaixado a rei humano devido às suas críticas mordazes), quando o deus dos trovões poderoso dialoga com a Morte:

ATO II, CENA II: CAVERNA DE BRONTOS:

BRONTOS: (Furioso.) Raios partam de meus dentes em direção a esta malfadada família... (Para Morte.) Sua burra! Nem pegar alguém mais tu sabes? Burra mesmo! MORTE: Ó Brontos, entendei que fui escorraçada por aquela megera, fui posta a termo, fui humilhada pela Tataravó de vossa Princesa... Como eu poderia ter continuado naquele recinto após tão pungentes e humilhantes palavras em relação a mim? Pior: em relação àquilo que nobremente venho fazendo desde o dia em que surgiu a primeira vida no primeiro rincão do mundo. Quando a primeira vida surgiu, o que fui eu encarregada de fazer? BRONTOS: (Interrompendo.) Cala-te! Não quero mais escutar uma palavra de tua boca aziaga. (Pausa.) Principalmente porque de um tempo para cá, não sei... não... mas me parece que... talvez... é... o clima anda muito tenso e sobrecarregado nestes ambientes, (Começa a rir.) e isto não me agrada... (Dá uma gargalhada, o que faz com que se escutem trovões altíssimos.) MORTE: (Aterrorizada. De joelhos.) Ó Brontos, não fiqueis tão feliz assim, eu vos suplico, não poderei suportar o ronco de tamanhas trovoadas... BRONTOS: Mas o que posso fazer? O que posso fazer se me divertem sobremaneira estas tuas tentativas estúpidas e frustradas de seqüestrar uns e outros naquele planeta engraçadíssimo? (Dá outra gargalhada. Outro trovão.) Nem pegaste a rainha... (Marcelo Caetano, in: A aurora da rainha Walburga)

Pois agora, Rotterdam, cidade sem máscara, homem-cidade, cidade-mulher (como a Sevilha de João Cabral de Melo Neto), Loucura e Amor-próprio, fechará este capítulo: Nascida no meio de tantas delícias, não saudei a vida com prantos, mas logo desatei a rir para minha mãe.

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Trinta perguntas inicialmente definitivas

1) Por que costumamos pensar que só a grosseria machuca? 2) Por que não conseguimos ver que a insensibilidade, a falta de aceitação, o descaso e o escárnio não machucam, mas dilaceram? 3) Como devemos pentear nossos próprios pêlos de modo que não machuquemos ninguém e ao mesmo tempo nos protejamos? 4) A árvore vazia de frutos e folhas espicaça os galhos para cima com altivez, mas a árvore carregada de frutos e folhas pesa e aponta humilde para o chão. Por que é? 5) De que forma o dinheiro afasta a confiança e faz com que tenhamos trabalho dobrado para readquiri-la? 6) Por que será que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser comprado com dinheiro? 7) Qual a extensão da poesia inserida num ato de aceitação? 8) Como a introspecção ajuda nos momentos de alegria? 9) Como a alegria ajuda nos momentos de introspecção? 10) Como a consciência fixa pode manter-me equilibrado em cordas bambas e em extensos platôs? 11) Qual o tamanho da minha disposição para aceitar a diferença e a semelhança do outro? 12) Como posso admitir que só sou capaz de mudar no outro o que sou capaz de mudar em mim mesmo? 13) Quais os erros que eu gostaria de repetir, desta vez com consciência daquilo que os poderia classificar como “erros”, e acertá-los? 14) Onde, quando e como posso me perdoar? 15) Por que ainda não me perdoei hoje? 16) Quem não ouve a minha voz merece ouvi-la? 17) A que sou endereçado? 18) Quanta importância sobre o julgamento a meu próprio respeito depositei nas mãos do outro? 19) O que dói mais: a fome ou a causa da fome? 20) Ajuda e domínio devem ter necessariamente um vínculo? 21) Onde posso me perder que não me fira? 22) Estou disposto a ouvir, manter um dia de silêncio, para, só então, responder? 23) É melhor “rir por último” ou “rir junto”? 24) Qual o nome do meu coração? 25) Eu algum dia batizei minhas mãos? 26) Por que meus olhos nunca olham para meus pés? 27) Eu posso justificar uma omissão com a inconsciência dos fatos? 28) Que inconsciência? 29) Será que quando o gelo derrete o fogo aquece e acende? 30) De que adianta que os anos lhe tenham feito bem, se os dias, as horas e os minutos o têm torturado? (Prefiro dias a anos... Casemo-nos logo!)

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História Natural: Helena, a mulher grega e seus ancestrais divinos. Antes de tornar-se heroína, entre os mortais  posição a que foi rebaixada, mantendo-se, contudo, segundo a visão homérica, imortalizada (por ser filha de Zeus) , Helena fora uma deusa do panteão matriarcado, em ordem cujo nome era Grande Mãe (ou Terra-Mãe), de que, juntamente com ela, faziam parte, ainda, Hera, Ilítia, Core, Réia, Ártemis, Atená e Ariadne, esta última também rebaixada posteriormente da escala de deusa. Perceba-se a intrincada importância que aponta a mesma fonte de onde são oriundas as deusas citadas: Hera e Ilítia personificam a Legitimidade, absoluta, sobretudo do ponto de vista social, matrimonial; Core, Réia e Ártemis podem ser agrupadas por sua capital importância de Começo, e igualmente de Fim, sendo consideradas, em muitos aspectos, formadoras da Grande Trindade Grega, como ocorre em religiões comparadas de todo o mundo ocidental e oriental; por fim a grande Atená, filha dileta de Zeus, personagem “maior” do Tempo Inexorável e Justo. E, entre Elas, Helena. Homero a manteve, em sua concepção, como a mulher mais bela do mundo dos mortais, não sendo, com ele, a traidora perniciosa como fora encarada pelos escritores que lhe sucederam. A diferença de opiniões acerca da índole de Helena se dá, basicamente, por causa da chamada distinção das idades culturais a que pertenciam os autores: as idéias de Homero refletem o período áureo da poesia épica, pelo que se dá ao desfecho a felicidade integral da heroína, que é, dessa feita, preservada a contento, assim em seu temperamento como em sua conduta. O período que veio após esse trouxe a lume, todavia, um outro, pejado de idéias sobremodo incompatíveis com às do anterior, em que, à imagem de Helena, não foram poupados os vitupérios mais mordazes possíveis, achincalhando-lhe o imaculado semblante com que a pintara Homero em sua religião grega de ouro. Nas duas obras homéricas  Odisséia e Ilíada  vê-se, em Helena, a mera vítima da sagacidade de Afrodite, absolvendo-se-lhe (a Helena) culpa que houvesse, porventura, quanto a ser ela suposta causa da guerra de Tróia. Na verdade, Homero como que acata a atitude de Helena, justificando-a (e mesmo abonando-a) como advinda diretamente do processo catártico, sendo, pois, algo repleto, até, de um caráter sobrevindo de tudo aquilo que se configura como indispensável. Ela praticamente é precursora dos santos católicos, porque tomou para si as faltas e pecados de seu povo, para, por um ato de martírio, purgálos no que seria uma espécie de metafórica geena grega. Um como que feitiço de Afrodite  esta sim, portanto, causadora direta dos males a que se refere o Poeta  atinge a insipiência de Helena, que, desconcertada, cede às artimanhas da Deusa do Amor. Esta última, por sinal, foi a única deusa com caminho oposto ao de Helena e Ariadne: Afrodite ascende da mortalidade rumo a uma condição imortal... Seria como se o primeiro santo da Igreja Católica fosse Judas Iscariotes... Tal assunto traz consigo inconcussa materialidade antropológica. Os dois caminhos da mulheridade humana são Judas e Jesus. Não havia, na Grécia Antiga, associação (ou organização) social, jurídica e política, pelo que, ausente esta unidade, não se poderá, tampouco, analisar a mulher grega de forma unilateral, senão que, em vez disso, devemos decompô-la em três subunidades articulatórias, quais sejam: a espartana, a ateniense e a grega. Desde logo, cumpre

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assinalar que a mulher grega viveu, na maioria das cidades, sob a égide inequívoca do machismo, sendo alvo das mais peremptórias formas de preconceito, que contra ela se vertiam, quase sempre em moldes de críticas, desvalorizações diversas e, sobretudo, de ferrenho misoginismo, de que raramente escapavam, portanto. Em Creta, era a mulher vista, no entanto, com relativa parcimônia no trato que se lhe dava, participante que era, guardadas as ressalvas devidas, da sociedade em que vivia: embora não devêssemos  por exagero que cometeríamos  afirmá-la membro de uma espécie de ginecocracia, sua participação era tamanha, que, amiúde, as exercia em paridade com os homens, o que os colocava lado a lado, em pé de igualdade social. É evidenciado, com Homero, o lado “valoroso” da mulher (como no caso da fidelidade de Penélope, da ternura de Andrômaca ou da amabilidade de Nausícaa, mesmo da reverência e moralidade ética por parte de Circe e Calipso). Por outro lado, havia evidências nítidas da subserviência feminina aos homens, enquanto maridos, pais, irmãos, filhos etc. Tal quadro se deu, sobretudo, com Hesíodo, que, modelando seu estereótipo feminino em Pandora, pôs termo das qualidades femininas com cujo pictórico esboça Homero as suas mulheres. Para Hesíodo, à mulher cabe, se muito, o papel de escrava. E nisto se concentra parte substancial de sua Teogonia. Entrando na Idade Lírica, vemos que se dividiram os poetas em três grupos: 1) os que não quiseram usar a mulher como propulsão de suas obras; 2) os que violentamente as combatiam e; 3) os que as celebravam. No 1o grupo, podemos indicar Sólon, Focílides, Braquílides, Píndaro e Teógnis; no 2o, destacam-se Semônides e Hipônax, ficando, no 3o, Alceu, Anacreonte e Safo. O ódio despendido por Semônides chega a fazê-lo pintar dez tipos (ou perfis) de mulheres, dos quais de apenas um dimana certa dose de honestidade e virtude. Ultrapassando a fúria de Semônides, Hipônax de Éfeso vem com ainda maior desprezo pelas mulheres em suas poesias. No que tange à exaltação que se predispunha à mulher, há tão-somente pequenos e parcos fragmentos, dos quais, certamente, se destacam os da poetisa Safo  proveniente da Ilha de Lesbos , sendo ela a maior representante, provavelmente, da literatura preposta a uma feição sensual e libertária da mulher. O pertencer, como dissemos, à Ilha de Lesbos dava a Safo um fino e apurado senso estético, na medida em que os íncolas daquela região mantinham estreito contato com o Egito, o que lhes legou, por assim dizer, “o amor ao luxo, à vida social e intelectual e, em conseqüência, uma grande liberdade nos costumes”, segundo palavras posteriores de Flavio Josefo, o historiador romano. Na capital de Lesbos  Mitileno , Safo deu cabida a um como que “clube de mulheres”, a Residência das Musas, onde artes eram ensinadas e aprendidas, além de se cultuar ostensivamente, em festas, banquetes, ágapes e cerimônias religiosas, o físico. Já do nascimento se desvalorizava a mulher em Atenas: no mais das vezes, eram elas indesejadas desde então; não possuíam qualquer direito político-jurídico, pelo que permaneciam malfadadas ao manejo da roca, ao tear e a atividades congêneres, sendo-lhes vetadas as pertinentes à leitura, ao cálculo, à música ou a outras afins, ligadas que fossem, primordialmente, ao intelecto. No casamento, a posição da mulher era a de objeto do (e pertencente ao) marido, que faria dela o que houvesse por bem. A despeito de tal quadro de inconcusso machismo, havia umas poucas de festas de que a mulher poderia participar, como as dionisíacas, ou as da grande mãe (Deméter ou Core). Dioniso sempre abriu as portas à mulher...

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Em Esparta, semelhantemente com o que ocorria em Atenas, a mulher via-se circunscrita a um rígido código machista, de que não poderia retirar subsídios para a consecução de atividades intelectuais. Porém, aqui, ao contrário de Atenas, onde à mulher se incutiam as atividades caseiras, era cultuada a prática de esportes  pois que se dava valor excessivo ao bem-feito de um corpo, cuja robustez sugeriria saúde e fertilidade. A mulher de Esparta era obrigada, assim digamos, ao casamento, sendo ela a escolhida de um marido, não partindo a escolha de sua vontade. Expomos, agora, a completa Teogonia, numa visão panorâmica e estritamente fiel à obra original. Daqui, toda a tradição clássica (compendiada, ao menos) teve seu ponto de partida. Futuramente, a tradição medieval literária da mulher, do amor e da Divindade Unificada foram a um único homem. Revogavam-se alguns ditames gregos? O fato está em que a Grécia jamais deixou de ministrar seus louros ao conquistador: Graecia capta ferum victorem cepit (Horácio) (“A Grécia conquistada conquistou o rude vencedor.”) Como isso se processou e a que ponto os gregos são os responsáveis por essa nossa cultura amorosa e mística, iniciada com os Aedos, Rapsodos? Isto é assunto para um ensaio inteiro, de proporções razoavelmente grandes. Além disso, seria importantíssimo acercar-se das influências mouriscas, árabes, arautos de um amor sensual um tanto ou quanto mais livre do que o grego propriamente dito. Mas creio que esta pequena gota sobre a mulher grega tenha dado azo a que pudéssemos nos conduzir com mais leveza e graciosidade à situação platônica de amor, arte e religiosidade, trindade que, a meu ver, nunca se dissocia em Platão e deve ser extraída como exemplo (meramente ilustrativo, embora) de um tipo especificamente abstrato e absoluto (por que não?) de Romance: a Romancidade. Encerro este capítulo com a fala da minha personagem Tataravó-rainha, da peça “A Aurora da Rainha Walburga”. Trata-se do II Ato, na cena em que a Morte entra no palco para dialogar com a Tataravó-rainha: TATARAVÓ-RAINHA: Nunca há de morrer sedenta uma mulher... Antes a insanidade do que o pouco, do que a vigência do quase nada... a mulher, mulher, é saciada a contento por uma força motriz que a faz, sendo mulher, enfim, que a faz restituída da infâmia por que passou (e com que, porventura, igualmente tenha matado criaturas errantes, ainda que aparentadas). Agora, a propósito, que se me escutem os conselhos, os quais de minha generosidade intermitente navegam ao mundo: antes, e em maior grau, não desprezar uma mulher é saber dar a si um pouco de segurança e sobriedade; escutar, ouçam, senhores, escutar uma mulher é, quando mais não seja, desprender limites e marcos divisores do certo e do errado-estético; não se morre de fome se se está junto a uma mulher; erguer os olhos ao céu é  antes de qualquer coisa  prestar reverência à mulher, que, como a terra atávica alimenta de seiva os seus bebês, assim essa mulher aleita de terra os seus brotos; e, agora, guarda lá contigo esta última e maioral lei: Quando morre uma mulher e o céu chora, é porque o inferno melhorou. Como não?! Como seria diferente?! (Ouve-se, ao largo, a VOZ da Morte, que entra com calma, sorridente, mantendo um saudável esgar desértico, plácido, constante, fluido, arejado, estéril.)

(Marcelo Caetano, In: A Aurora da Rainha Walburga.)

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Minha extrema-unção: o que é liberdade? Como libertá-la? (memória crônica)

Eu escrevo confuso por uma razão irracional: quando meus dedos tocam as teclas do computador, pensam tocando o piano. Pensam livres. É um caso clássico de memória corporal: meus dedos se habituaram a passar uma vida em exaustivas horas de piano e piano. Agora as transpõem. Transpõem a lúdicas horas de fala e fala. Para os cegos, dedos são como dois olhos; sendo que cegos têm, portanto, dez olhos... Por isso vêem melhor. Pelo menos diferente. Mais fundo, sim. Eu, mudo, rouco, gago, fanho, roufenho, falo pelos dedos: tenho dez bocas a meu dispor. Rio com todas elas. Choro com meus dez olhos de cego, também, que sou, a falar alvissareiro livre. Meus dedos nunca esbarram, eles nunca erram. Se houver um esbarro ocasional, não foi erro, foi “expressividade exacerbada”. Eu me expresso exacerbadamente várias vezes. Se houver um erro, fique errado. Que fique! Se Deus mandou errar, se Deus fez esbarrar, não é erro, não é esbarro  é acertok! E tenho dito! Meus dedos acertam até que sangram. Acertam até sangrar. Sangrar é o limite para acertar. Depois disso já não é acertar, é aventura, é brincadeira. Quando sangram é que eles acertam mesmo. Se os dedos são olhos e são bocas, o sangue dos dedos são lágrimas e são saliva. Com elas eu choro, com elas eu beijo. O sangue dos meus dedos é a saliva que lubrifica a gengiva; é a lágrima que purifica os olhos. Sem sangue, o acerto caminha para a totalidade. Com sangue, ele chega. Você olha este livro e acha que o está lendo. Eu olho os homens, do alto de uma montanha, e acho estar vendo formigas elegantes carregando farelos de bolsa, pasta de ouro, chapéu de ponta fina. Ilusão. Eu coloco-te numa câmara de concerto e sugo-te a seiva até que tu te exauras. Só então tu te entregas a meu piano e podes, enfim, morrer em paz. Eu te faço exausto. E tu gostas. Se não gostaste, não soubeste te entregar. O meu piano não é inútil como aquele do célebre conto de Jorge Luís Borges, O Aleph. Meu piano não foi feito para ficar mudo, mas para fazer justiça, para falar por mim o que meus dedos escribas não souberam nem gaguejar. Não, o meu piano é vida. Vida negra e vida branca. Em harmonia. Agora, enquanto o senhor padre, meu leitor, pensa que está lendo letras, está na verdade ouvindo notas. Notas graves e notas agudas. Órgãos. Notas plangentes, notas alegres, notas unitárias e notas soltas no som do infinito universal. Notas. O leitor se equivoca comigo, mais uma vez. Tu não conheces da missa a metade. Tu nem conheces a minha missa. Eu sou negro e sou branco. Sou Aleph e Ômega. Tu pensas em ti mesmo e te esqueces de que a aventura da música é o duo. Eu e meu piano sabemos. Mas tu... Eu te convido. Eu te convido à Appassionata, eu te chamo ao fragor de Debussy, eu te mostro a sinceridade de Schubert, o espírito de Chopin, a resistência e liberdade de Liszt. Mas se tu não queres me acompanhar, fica onde estás. Parado. Eu te levo do eslavo ao hindu. Da alegria húngara ao pessimismo asteca. Do esquimó áureo ao abissínio plúmbeo.

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Escuta-me, tira o teu autismo-portátil, que teu eufemismo chama “walkman”. Stay, man! Up! Escuta-me: eu não tenho nenhum compromisso contigo a não ser a honestidade. Eu a chamo de ética, e também de ótica, enquanto tu a consegues simplesmente vislumbrar, como um navio perdido no meio da neblina, tu a consegues vislumbrar como uma tal senhora por nome de “moral”. Eu a jogo no lixo do oceano, porque ela jamais me guiou. Meu compromisso contigo é a ética e a ótica. Ótica é sonoridade visual. Enquanto tu não a vires, tu não terás comigo nenhuma espécie de alargamento. E tu nem mesmo serás capaz de ouvir minha nota. Parado e cego no auditivo cântico do Sol atômico. Eu agora morro, deixa-me sucumbir, felizmente. Deixa-me calar. Não me faças rir, nem ouvir, nem respirar. Eu me calo. Morrer é voltar a afogar-se. Quando eu estava sendo gerado, não me lembro de nada deste momento. Quando eu morro, não sei nada que me gerará neste momento. Mas gerar-me-ei, assim como me gerei quando não sabia nada, nem que seria gerado. Quando eu abraçar definitivo a terra e meu corpo finalmente se entregar à Mãe dando-lhe de volta o que Ela me emprestou em moldes de Química Orgânica e de Geologia Mineral puras, meus átomos poderão servir como espoleta para que uma florzinha roxa abra suas pétalas ao mesmo Sol que sempre me fez acreditar na existência do Sol. Eu tenho um papel análogo ao do trinitolueno, e mesmo ao da bomba atômica, espoleta-gatilho da ameaça plangente-mor do Globo: a bomba de hidrogênio! Tremei, é preciso respeitar o homem! É preciso respeitar a mulher! Temei! Quando nós éramos feto, não tínhamos ninguém a nossa volta, éramos sozinhos, isolados. Quando nascemos, tantas pessoas... Agora, enquanto somos pessoas, estamos isolados, não temos ninguém a nossa volta. Quando realmente nascermos, tantas pessoas... Isto é, entregar-se. Deixar-se nascer em florzinha roxa. A florzinha roxa se chama Consciência da Comunhão. Não estar isolado. Enquanto houver não-entrega, há isolamento. Com entrega, partilha, banquete, Comunhão. Sede a espoleta-gatilho da única força capaz de neutralizar o hidrogênio devastador da Bomba H: sede a Bomba de Amor. Liberdade é entregar-se nas mãos certas. Aceita minha extrema-unção, e deixa-me morrer para ti. Deixa-me no cenário da paz. Nascer e morrer é a mesma verdade. Eu não sabia o que era no pré-nascer, mas nasci. Eu não saberei o que será no pré-viver, mas viverei. Não existe “pós”, só existem prés... A única escola verdadeira é a pré-escola. A única história verdadeira é a pré-história. Présocráticos, pré-diluvianos, pré-vida. Pré-pré será o grande aprendizado de dedos e olhos. Só então dedos serão bocas justas. Imagino que os fetos racionais fiquem, uterinos, se indagando: Que besteira! Dizer que há vida após o útero, que há vida!  e devem gargalhar, doutorais e científicos  Há! Há! Há! A mesma coisa. Somos fetos na pré-vida.  Dizer que há vida após a vida! Há! Há! Há! Eu te peço um pouco de ódio nesta hora, só um pouco de ódio. Eu te peço movimento. Eu te mostro a música e tu me retribuis com ódio, tudo certo? Eu em breve ressuscitarei. Ao terceiro dia eu volto para te mostrar minhas chagas abertas, que se chamam música. A música é minha ética secreta. Minha ótica é o som da terra. Eu a levo para o berço e a trarei de volta para ta mostrar. Tu te encantarás com aquilo

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que eu sou. Eu sou aquilo que sempre serei. Eu sou o movimento eterno do mais fixo galardão universal. Eu sou também aquilo que o Deus fez de mim num momento de festa! O meu projeto nasceu da picardia. O teu idem. Acalma-te. Cala-te e contempla-te. E eu não passo de um átomo, ai de mim! Ai de mim, que sei o meu tamanho no universo. Ai de mim, que vi o Sol e que te vi. E que vi a todas as formigas da terra. E a todos os Sóis da minha galáxia. Eu entendi: o homem não é o centro do universo quântico. Mas ao mesmo tempo é. Meu Deus! Sim, o que será que as baleias pensam de nós quando nos vêem em seu mar fácil sobre navios difíceis e enormes tentando nos equilibrar sobre dois pequeninos pés enquanto ela, baleia, tem à sua disposição três quartos daquilo que nós, desequilibrados, supomos ser nossa “terra”? (Gatilho!) O que será? Qual será o lugar reservado a esta estranha criatura humana na Universidade das Baleias do Ártico? Provavelmente a disciplina terciária chamada “Estudos superficiais: a pessoa humana”. Pois é o que nos resta. Por que presunção, por que tristeza, por que frustração? Somos o que somos mesmo, isso é tudo. Não é presunçoso, não é triste, não é frustrado: é simplesmente tudo. É muito mais do que supúnhamos. É parceria, é contradição, é paradoxo, é chão, é céu, é compreender-se, é ser, é ter, é estar, é continuar sendo. É rasgar o certificado e abraçar a baleia. Querida! E tu entendeste comigo a primeira parte da brincadeira universal: eu não quero te matar vivo, nem te ressuscitar morto. Eu quero me renascer vivente. E a ti outrossim. Eu quero nadar, eu quero nadar! Sou confuso porque sou confuso, se não fosse confuso não seria simples. Ser aquilo que é é simples, e cada um de vós não passais disso. De mim também. Sois simples... minha respiração vacila... somos simples. Agora, então, deixai-me ir em braços que me abraçam reto. Em braços que me acolhem firme. Em braços que me têm suaves. Em braços de baleia. O seu olho emerge e me sorri três quartos de terra que, na verdade, são água. A vitória é feita de água, senão não é vitória o que se supunha ser vitória. É picardia. É picadeiro. É circo e não vitória. É circo russo, magiar, cigano, cossaco, tradição de aliunde... É Paixão segundo São João, de Bach. Eu quero amar a Deus como quem já tirou toda a roupa. Ele me dirá: Tira tua máscara, diz teu nome. Eu quero que Ele veja um músico, eu preciso que Ele escute Amor. Todo o resto é estupidez. Todo o resto é loucura. A música foi a minha escada de Jacó, mas o anjo que me tomou pelas mãos se chama Amor. Ele é que me guia em direção ao Trono da Luz e em direção ao pântano sagrado. Ele desquebrou as sonatas de Beethoven que um qualquer quis impor aos pianos do meu local. Que ficasse longe, de onde veio, bem longe da minha terra! Amor refez a integralidade do meu ser ao remendar e cicatrizar completamente a mazurka, a pollonaise e o scherzo de Chopin, este valente vitorioso. Ele me deu Liszt e seus três temperamentos: fúria, justiça, delicadeza. Ele desquebrou Beethoven, e isto é muito mais do que quaisquer poderiam supor em suas tacanhices, suas rabugices, suas ranhetices... Ele desindustrializou a verve de Beethoven! Amor cicatrizou Beethoven, e as baleias do Atlântico têm seus próprios Beethovens e suas naturezas temporais muito mais fáceis e estáveis que os nossos Beethovens da superfície. Mas elas nos amam, nos convidam e nos recebem. Deus é semelhante a uma baleia. Seus anjos se assemelham a golfinhos. O homem é só uma pequena pérola incrustada na ostra mais secreta que a areia do chão do mar sucumbe e expele como um parto dá à luz um rebentinho. O homem é um rebentinho de 27


ostra, e Vossa Baleidade talvez não consiga enxergar a pequenez de uma pérola, embora a respeite muito mais do que a simples visão permitiria. Quem respeita a harmonia respeita a tudo, respeita a Deus. Respeita a si. Não pode haver qualquer Amor onde não houver respeito. Amor leva e traz. Isso é tudo! O primeiro nome para a ética é respeito. O nome maior da ótica é harmonia. O cenário principal da ética é a paz. A principal escrava da ótica é o tempo. O escravo da escrava da ética é a sociedade. Tempo e sociedade se casam, mas Harmonia e Respeito continuarão sempre soberanos herdeiros da ótica. Tudo isto está envolto em águas de um mar de oxigênio que nos dá vida e respiração. Hidrogênio ora feito em harmonia de respirar-se e beber-se. H, 2, O! A respiração é o respeito da terra a nós. A terra é nossa grande ostra. Nós somos as pérolas da terra. Nossas mãos são nosso respeito à terra. Com as minhas, escreverei sempre música para ser vista. Mas sobre nós, sem ver-nos e respeitando-nos acima de nossas superficialidades, há uma Baleia Infinita que nunca deixará de saber que sobre a superfície da areia das águas brilham homens e mulheres redondinhos em movimentos perolados. Seres humanos não têm pernas, pois se movimentam rodando e dançando como pérolas. E agora que eu já morri eu posso finalmente me desfazer deste entrave aventureiro e tolo que muitos teimam em chamar de “livre-arbítrio”. Eu não tenho “livre-arbítrio” coisíssima nenhuma! Ficai com os vossos, se quereis, que eu fico cá com minha Liberdade... Casa-te contigo mesmo, e depois me pede em casamento. Agora estou pronto para me casar.  Aceito!  Aceito! E só então tu sabes o que é Liberdade Não-rarefeita, mas abundante, e que ao mesmo tempo não afoga, mas ampara.  Eu vos declaro marido e mulher! *** Eusébio Extraí uma gota que pinga. Vá. Passado futurístico impreterível No que pinga. Feita de mim, Vai nascer dela uma árvore De prumo. Rota De folha e de flor de jasmim Que vingará Elegante já. Vim Gota pura Com peito e cintura. Zero.

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De rerum Natura. Lucrécio e Lucrécia, iluminura: Idade Média Trovadoresca sem rédea. Assim. Luz de mesmo quem? Explosão de amém Além  soma Do não e do sim. Par de perna. Já vim  a Roma. Agora vem eterna Com teus seios plenos, Minha admirável, dulcíssima, envolvente Vênus... (Marcelo Caetano, Eusébio. In: A bomba de Hidrogênio e outros poemas.) No dia-a-dia do engenho Toda a semana, durante, Cochichavam-me em segredo: Saiu um novo romance. E da feira do domingo Me traziam conspirantes Para que os lesse e explicasse Um romance de barbante. (João Cabral de Melo Neto, A descoberta da literatura. In: A escola das facas.) A Romancidade nasceu com a invenção humana? Máquinas, literatura, Deus e Amor? O culto supremo? Barbantes para salvar-nos do labirinto. Romances... Romancidade já!

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Os monges do amor (Capítulo para ser observado exclusivamente por mulheres.)

Monge é uma palavra que vem do latim e significa solitário. Mas um solitário de gozo, como os monges do Mosteiro de São Leibowitz, a quem eu amo indefinidamente na ficção do famoso conto homônimo. Belo conto, Bergier e Pawels, obrigado por mais esta!... Obrigado também a Gregor Mendel, nosso introdutor na genética, um Monge Tcheco inspirado... Henri Lefebvre, em seu Hegel, Marx e Nietzsche ou O reino das sombras, terá razão? Num dado momento, discorrendo sobre Agostinho, diz-nos, assustador, sobre este Santo Agostinho das irmandades castas dum mosteiro em Antioquia: Tradução nossa: O homem, à imagem de Deus, análogo ao divino, inicialmente é desejo infinito. A veleidade e o pecado romperam este infinito do sujeito separando-o de seu “objeto” infinito. Caído na degenerescência do finito, o desejo se apodera de objetos finitos, mas não encontra neles senão angústia e frustração, em vez da alegria infinita cuja existência, ainda e sempre, este desejo do homem pressente. (1) (In: Hegel, Marx e Nietzsche ou Le royaume des ombres, Casterman, deuxième édition, 1975, p. 29) (1) L’homme à l’image de Dieu, analogon du divin, initialement est désir infini. La brise e la péché brisèrent cet infini subjectif en le séparant de son “objet” infini. [....] Tombé dans la déleriction du fini, le desir s’empare d’objets finis mais n’y rencontre qu’angoisse et frustration, au lieu de la joie infinie qu’encore et toujours il pressent.

Não há jeito: para falarmos de Romance, de Romancidade, é preciso que falemos em pecado, em infinito, em desejo, em objeto finito, em angústia, em frustração, em degenerescência, em rompimento, em veleidade, em Deus, em imagem, em queda, em sujeito, em poder, em análogo, em encontro, em pressentimento... Luz lançada no centro do diamante. Luz centrípeta que reverbera com poder de som-luz centrífugo. E é preciso falar também em desespero. Antes desespero do que estupidez. Pelo menos o desespero alarga a minha percepção e a faz pressentir o infinito. Estupidez é merda. A dor do elo mente-coração-eu-tu é o desespero. Desespero, então, é dor da alma. Desespero é britador de pedras no caminho da aliança. Se o desespero for mascarado, perde-se uma potente britadeira. Se o desespero for dissolvido, pedras não são quebradas. Desespero é a dor da alma. Se dói, há algo errado. Onde dói é que se deve procurar a cura e ali é apontada a existência de vida. A angústia pode me fazer voltar ao centro, e ali comungar com as minhas atenções, e, com isso, volto a me reconhecer um ser vivo e saudável. Infinito. O problema da degenerescência não é a degenerescência: é não ser percebida. Não se deve diluir nem mascarar. A minha percepção não se assemelha a um balbuciar tímido, mas, pelo contrário, está gritando e agindo com a força de uma mulher que dará à luz em poucos instantes. Isso é meu desespero. O desespero de uma grávida. Como uma mulher que dará à luz poderia “fingir” que não percebe a hora

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do parto? O rompimento do parto já se deu. Quem se debate estapafúrdio como um peixe que se conformou em morrer placidamente é o que nega a força criativa da arte de parir fantasiada de pós-desespero, a que eu chamo imagem de Deus. O pecado é a dor de Deus. Se eu pequei, ali mesmo encontro a chave para o infinito. Por isso eu amo o pecado. A angústia e a frustração apontam para o centro, e o “objeto” infinito assegura uma explosão de raios análoga à do Sol. A dor do desespero é doce como o bebê que já nasceu. A dor do pecado é doce como Deus. Quanto mais para o centro do diamante for focalizada a luz, maior o Sol de imagem que explodirá dali. Deus é a Luz que se define como laser no centro do meu diamante. A Romancidade precisa seguir este exemplo, caso contrário me deixará isolado, sem elos... O infinito não passa da proteção da maior carpintaria humana  a criatividade! E o amor é a maior criatividade humana. Meu infinito carne-e-osso. Um diamanteSol. Por isso mesmo é que o infinito é de criança. Por isso mesmo é que seu segredo estará sempre em mãos seguras... Infinito carecerá, sabe lá Deus como, de dados. Eu diria seguramente: também de pessoas. Eu não diria dados, pessoas: infinito, enquanto tal, carece de prismas e vetores. O prisma poligonal do infinito se assemelha a um diamante lapidado. Descreva um diamante por completo, e você terá descrito o infinito. Por enquanto uma parte. O diamante: O diamante é substância dura dentre as mais duras  as pedras  que se conhecem na terra. E o diamante é transparente. O diamante, quando colocado na água, que é coisa mole que conhecemos na terra, e se ajeita a tudo, fica invisível, deixa de ostentar sua transparência em prol da flexibilidade do mais flexível dos flexíveis: a água. O diamante, portanto, “duro e inflexível”, aparentemente, é feito de água, e, na água, prova que o é ao, simplesmente, como água, ficar invisível. O diamante é tão água quanto água  e o diamante água. O diamante é o rei das relações. O diamante se transparece sem deixar de ser essência. Não mostra que o é, porque mostrar é só mostrar. Ele, pelo contrário, prova que é água ao não mostrar: é invisível, nem se mostra, some. E continua sendo o que é, apenas. O diamante. (Marcelo Caetano, In: A terceira metade) Schlegel diz que só será artista “quem tiver uma religião própria, uma concepção original do infinito”.

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Esta é a minha religião. O amor. A Romancidade. Eu concebi meu próprio infinito. Ele é adamantino. Se o infinito é a casa de todas as metáforas, é claro que a metáfora para infinito só poderia ser o mais concreto e duro dos rochedos da terra. A única metáfora possível para infinito é  diamante. O diamante é a água que eu pego nas mãos. O infinito que eu posso ter. quando o diamante deixa de ser ele é infinitamente água. Quando ele passa ser, ele é igualmente meu, e somos dois diamantes fundindo-se na mesma água-terra. Estamos quites, e eu, em vez de ser chamado de religioso, posso ser chamado de artista, preciso deste último título nobilitante e vulgarmente preciso. Até porque quero o vulgo. Sou um artista, um religioso  mas meu objeto agora é o Amor. Minha arte e meu Deus. Por que não temos conseguido um rito secreto de iniciação na Missa do Amor, que é a Romancidade? O que temos feito por nós, ó Deus? Ó Afrodite! Ó Dioniso! Mas, agora, o que eu quero é o infinito da carne e do osso, pode ser? É difícil? Tem sido, mas será que é?... Aristóteles sempre falou que é preferível dizermos o que se assemelha à verdade, ainda que seja mentira, a dizermos aquilo que, embora seja verdade, em nada se parece com esta. Tocava, neste somenos, no aspecto primordial da criação dramática. Falava, portanto, na representação humana. Os atores e as atrizes. Persona é uma palavra que significava, no latim, “máscara”. “Hipócrita” é uma palavra que significava, no mesmo latim filho do grego, “ator”. Vamos com muita calma. Porque eu não sou nenhum Stanislavsky para lhe pedir que lapide do corpo a essência material da representação dramática tomado por um êxtase dionisíaco em direção à transcendência do irrealizável tornado novamente pedra bruta sem lapidações artífices. Mas longe de mim dizer o contrário no que se refere ao amor... Porque o amor é aquilo ali. O teatro é a metáfora ritualizada da vida. O diamante é a metáfora do infinito. Carne e osso terão sido apenas metáforas do romance? Oh, deixar de ser... O materialismo não é a finalidade das coisas, mas apenas a sua mais rude metáfora. Assim como o bode expiatório do teatro ritualiza o sacro ofício de toda a população inebriada em vinho e em verdade. In vino veritas. A Origem da Tragédia, de Nietzsche, versa um tanto sobre esta concepção de artevida que transponho para o amor. Só que a minha gritante diferença para Nietzsche é o fato de que eu não considero conflitante a “tensão” entre Apolo e Dioniso, mas, pelo contrário, considero revelador e fértil. (Se bem que fértil o próprio Nietsche considerava... Se bem que revelador também... Ai, Nietzsche sempre está certo, até quando estava certo!) Já Romeu estava enganado. Como tem o homem lidado com o rito de passagem do Romance? Como tem vivenciado a Romancidade? Onde tem erguido seus altares, construído suas ermidas, levantado seus mosteiros, celebrado suas missas?

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Origens históricas do beijo (conto)

Somente quando a população humana vigente acomodou-se às vicissitudes passadas e pôs em um lugar seus haveres, sedentarizando-se, foi que a mulher principiou a necessidade premente de comunicar aos encarregados suas missões. Nunca foi tão necessário comunicar quanto no momento em que se inventou o dividir. Havia crianças, havia outras mulheres, havia também homens, alguns animais, porém com estes últimos sem dúvida foi um tanto mais difícil a adequação dos fatos concretos à linguagem que, então, apenas engatinhava. Desde muito antes, ao homem cabiam as tarefas mais graves do ponto de vista da sobrevivência propriamente dita. Coisas que precisavam de uma atitude menos pensada, mais explosiva, imediata, eram responsabilidade masculina. Não é à toa que a estrutura física do homem foi se tornando angulosa, ao passo que a mulher foi sendo lapidada de modo mais arredondado, o que culminou nas diferenças patentes que hoje em dia reconhecemos com relativa facilidade entre homens e mulheres, principalmente na classe de atrizes, atores e postulantes. Exemplifique-se com uma metáfora visual: a mulher, num intervalo espacial de um metro, precisava alinhavar gestualmente mil milímetros inteiros e perfeitamente, agulhando cada um deles como se fosse o único, não os vendo como meio, e sim como objetivo a alcançar agora; enquanto o homem, naquele mesmo intervalo de um metro, conseguia apenas apontar cada uma das extremidades relevantes para a existência do referido intervalo, batendo apenas o começo e o fim do metro cavalar, sem seus pontos intermediários de acesso. O homem via princípio e fim; a mulher, tudo. O homem via um metro; a mulher via mil milímetros. Foi desse minimalismo que as mulheres se valeram  e se valem  com sutileza e argúcia dramatúrgicas. Eis porque, até hoje, o melhor ator dentre os melhores atores jamais será sequer igual à pior atriz dentre as melhores atrizes. Mesmo as grandes exceções masculinas (que são os de estrutura final capaz de apontar mil em vez de um) vêm a reafirmar o quanto digo. Exatamente porque ser ator ou atriz, o teatro, enfim, é a cópia exata de tudo o que se processou desde a pré-história com os seres humanos e neles mesmos. A mulher agulha mil milímetros; o homem bate começo/fim. O teatro é um resumo de toda a evolução, assim como também o é a gestação de nove meses, em que o ser humano volta a ser água-do-mar, ameba, monocélula, mórula, peixe, gástrula, mesoderme, blástula, tudo passo-a-passo homem. Cada um em seu posto, só na união de homens e mulheres o clã começou a tomar consciência de que existia. Só que no começo a união não era nada estável; muito pelo contrário, havia uma desunião causada (e aumentada cada vez mais) justamente pela diferença funcional que se percebia entre homens e mulheres. Sim, é claro que todo o instrumental da sociedade hodierna há de ter nascido de um maniqueísmo notório; tanto de um maniqueísmo levando à desunião, quanto de um igual levando, contudo, à união. As diferenças de função geraram grande cisma entre os seres dúbios da pré-história: homens e mulheres. Ao homem, repita-se, cabiam as tarefas mais imediatas, rombudas. Foi por isso, inclusive, pelo fato de as tarefas menos delicadas terem de caber a ele, que a este mesmo 33


homem acabou vindo como espécie de lastro a supremacia hierárquica sobre o clã. Porque a responsabilidade “maior” pressupunha maiores prerrogativas, privilégios de comando com que se conseguissem realizar as tarefas necessárias. Mas a hierarquia, no princípio, era igualmente rombuda, como se apontasse apenas “o começo e o fim do metro cavalar”, uma hierarquia divisível por dois, apenas, de onde os “mil milímetros” hierárquicos subseqüentes só chegaram muito mais tarde. Pelo fato de garantir a sobrevivência primeira, deu-se ao homem o posto número dois na hierarquia, isto é, o de comando. Isso porque se imaginava a primeira sobrevivência  de que falaremos melhor  como espécie de casca do ovo dentro do qual as atividades sutis se iam desenvolvendo. Então cabia ao homem ser o guardião da casca. E, muito embora tenha havido tribos em que a mulher se destacava no cargo de comando, o chamado Matriarcado, mesmo nessas, no entanto, era ao homem que cabia a atitude final que, não raro, era a da força bruta sobre a destreza sutil de que dispunha a mulher. Mas, por fim, ainda quando a brutalidade “cabia”, eventualmente, às mulheres, era nos homens que elas iam buscar reconhecimento e observação quanto à forma viril de agir. Portanto, o mister da bruteza coube na origem ao homem. O próprio fato de algumas amazonas potentíssimas arrancarem por vontade própria o seio em que se empunhava a lança mostra que a cópia ao homem, física e gestualmente, nesse ofício, era óbvia. Não achamos que esse mister de bruteza, entretanto, tenha sido em gênese intrínseco ao homem, nem que lhe seja originário. O fato é que, por alguma razão, ainda perdida, ao homem foi sendo dado aquele ofício, o que o encaminhou aos poucos (e desde a sociedade pré-histórica) ao ponto em que estamos. As tarefas mais imediatas do homem eram, sem dúvida, a caça e a proteção à tribo: com a primeira, alimentavam-se os integrantes; com a segunda, era possível que mais indivíduos fossem preparados em ambiente favorável para, mais tarde, cumprirem suas missões de alimentar a tribo ou administrá-la, conforme fosse respectivamente homem ou mulher o novo indivíduo. A caça era desempenhada, no princípio, com auxílio de meios mágicos, de que fazem testemunho as pinturas rupestres sobreviventes até os dias de hoje. Era desse modo que o caçador, antes mesmo do Verbo Bíblico, acreditava ter soberania e superioridade sobre o ser caçado; e, de tanto acreditar, parece que até ganhou certo impulso vencedor natural. Parece, parece. A título de curiosidade, diríamos que, nos tempos em que cabia à mulher a caça  fato coetâneo com certas tribos de Patriarcado, e freqüente até hoje em algumas espécies animais, como a dos leões, e também em certas tribos que se mantêm assim , nesse tempo (ou nessas tribos) é de se notar que a mulher não procurava subjugar a caça, mas, em vez disso, como que se igualava àquela, dominando-a por equanimidade. Portanto, podemos quase apontar, contradizendo-nos, uma origem natural do meio bruto masculino e do meio destro feminino. Talvez aproveitando-se da habilidade que obtivera em dividir as coisas menores, a mulher preferia dispor de meios mais minimalistas também em atividades em que o homem procurava o ato conciso. Aqui, perceba-se, a mulher criara seu meio próprio de agir, com sua inteligência, já desde muito tempo mais sensível e refinada que a do homem (até pelo fato de ela não precisar farejar nada, nunca dispondo do nariz na mesma proporção do homem; veremos adiante a importância de o homem ter deixado de ser um farejador).

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Diferentemente daquele tipo de caçadora que copiava a virilidade masculina, “arrancava o próprio seio”, parece-nos que o tipo agora perquirido de caçadora fabricara uma forma menos truculenta de domínio: a dança. E os seios perfeitos são indício do Novo Modus Operandi. Por isso a perfeição dos seios passou a ser uma ferramenta de poder e prestígio das mulheres, bem retratadas, nesse ponto, pelas Hierodulas, ou prostitutas sagradas, de seios túrgidos perfeitos, o que se tornou um grande arquétipo eterno, talvez só comparável ao fálico do peixe-mãe. Bem, mas voltando à caça masculina, em que o homem, reitere-se, buscava em veículos mágicos o subjugo de sua presa, não foi difícil a transição de tais vislumbres mágicos para uma concreta ritualização. O primeiro rito que se pode rascunhar, mapear, é o de que a caça “retratada” em murais ficaria sobremodo combalida. Assim surgiram os artistas muralistas da pré-história, homens vencendo bisões, mamutes, tigres. Esse ato retratador também devia caber ao homem, porque ele detinha o poder da caça, como foi mostrado várias vezes. Talvez se tenham delegado atribuições artísticoritualísticas às mulheres, ou a algumas delas, mas sua missão, no que tangia à caça, restringia-se, repita-se, ao zelo pelo retorno breve e proveitoso dos homens, com eventuais títulos de responsabilidade que não aquele zelo. Algo semelhante às mulheres de Jorge Amado, em que elas esperam mágica e resolutamente a volta do marido “pescador” (leia-se Mar Morto, daquele Jorge, vejam a Rosa), de seu mar de dúvidas e agitações, “rezando”. Por sinal, as tribos em que a pesca era superior à caça justamente provam que esta última atividade contribuiu com a brutalidade gradativa do homem. Nas tribos pesqueiras, havia homens sobremodo mais refinados de inteligência, quase femininos, e de menor senso supersticioso (acreditem!). Nestas, o homem agia sempre de modo mais objetivo, já que não poderia  mesmo se quisesse  vir a “subjugar” o peixe, mas deveria atraí-lo, seduzi-lo, semelhantemente ao modo de caçar das mulheres. Então diríamos que o pescador é uma transição entre (não raro simultânea com) o truculento caçador e o ávido por poder hierárquico. Deve ser por isso que o peixe foi sempre o arquétipo humano mais óbvio. Mas era a mulher pré-histórica, repare-se, que insuflava o ânimo gerador nos homens. Daí também retratar-se esta mulher, tardiamente, como a Grande Deusa. O que o homem não explicava ele atribuía a causas mágicas. O que a mulher não explicava ela administrava e resolvia, não raro com a cópia de tudo aquilo que já se mostrara funcional e eficiente na Natureza. E isso a tornava, sob diversos aspectos, uma primeira personificação de Divindade. Mais que o homem. Parece-nos, quem sabe, que a Divindade em forma de homem somente pôde vir como resultado de uma conquista de Poder por parte daquele homem, porque este mesmo era sempre dependente da resolução soprada pela mulher. A título de exemplo, tragamos ao horizonte a gestação humana propriamente dita. Nesse tempo, o homem nem sequer sabia que era dele que saía a “semente” humana, o sêmen: pensava apenas que à mulher estava destinado o ser terra fecunda, e que agia por conta própria. Ele não sabia; achava que a mulher era como a terra em que a semente pousa por qualquer razão e faz brotar um ser. Simplesmente quando uma mulher paria, pensava-se que era como o broto que, espontaneamente, nasce de um galho de árvore maior. A mulher era como a madeira da árvore, de onde provavelmente advieram os nomes “mater”, “madeira”. Penso que vem daí, dessa crença de que o parto era processo de responsabilidade exclusiva da mulher, o mesquinho pensamento de que a mulher era ser menor, porque não seria capaz de controlar o limite do grupo, enchendo-o de indivíduos que, muitas vezes, por contingências climáticas e atmosféricas, eram mesmo indesejáveis. 35


Portanto aquela mulher, ao mesmo tempo mágica e poderosa ao dar à luz seres capazes de alimentar, manter e administrar o clã, ao mesmo tempo era indesejada, se se queria pôr um limite momentâneo, por alguma razão, ao mesmo clã. Pois como falávamos, o homem não sabia ser ele o semeador, e afastava-se obsessivamente para as caçadas, blasfemando ou louvando a mulher, conforme fosse de interesse do grupo respectivamente o seu decréscimo ou o seu aumento. Mas a mulher “sabia” que seu fruto o era também do homem. Se não sabia, administrava o fato indiferentemente a saber ou sentir. Prova disso é que sua menstruação regulou-se  e é assim até hoje  de acordo com a lua cheia, período em que o homem passava noites na caça, porquanto o céu claro permitia, naquela fase, devido à sua claridade natural, um grande aproveitamento sobre os seres notívagos tão raros e preciosos. (Não é à toa que o morcego viria a simbolizar um “homem sorteado”, porque, além de ser igualmente alimentado a leite, era capaz de caçar as mais preciosas criaturas, do alto observando cego plantas e animais de grande valor, que eram aqueles encontrados à noite.) A mulher precisava ajustar sua fertilidade de acordo com a disponibilidade masculina, suas saídas e retornos noturnos, e o fez silenciosamente, mirando-se, para isso, na própria Lua Cheia. Mas voltando à atividade masculina de caça, certamente por influência silenciosa (sempre) do modo de caçar das mulheres de antanho (a equanimidade da dança), os homens começaram a querer igualar-se à caça, em vez de apenas subjugá-la com notória superioridade física e (um pouco) mental. E o fizeram literalmente, porque a linguagem do homem sempre foi visual, apreensível, não entendia desde então o invisível: vestiram-se com as peles dos animais caçáveis, e empunharam lanças que serviam de garra, muito mais poderosa, e sobre a cabeça encetaram galhos imitando o chifre do cervo, do antílope, do animal abatido, enfim, para, copiando-o, detê-lo. Alguns desses caçadores até punham imitações de cauda, para que se aparentassem mais com determinados animais, munidos da cauda ali imitada. Desse mimetismo, naturalmente, começou-se a associação de que as pessoas (homens) que se vestiam daquela maneira tinham o condão de fornir ao clã sua sobrevivência alimentar. E, de roldão, vinha igualmente a acalentada proteção do grupo, já que força ao caçar é igualmente força ao proteger. A força da Paz vem da força da Guerra (a proteção deriva da caça)  era o lema sub-reptício. Foi daí, portanto, que surgiu a figura dos primeiros Reis  homens com imenso poder bélico, tanto de caça quanto de manutenção da Paz (união), empunhando a capa real (pele de animal caçado), o cetro (a lança) e a coroa (simplificação dos galhos que imitavam o chifre do animal caçado); parece-me que também daí surgiu o estereótipo feito pela Igreja sobre o diabo (repare na soma da cauda àquelas características atribuíveis ao Rei), que, para a instituição católica, representava um reconhecimento já inato de poder extremamente ameaçador aos dogmas sem origem tão antiga. A figura das bruxas, mais tarde, veio como afirmação (não-negativa) do patente posto masculino de grau dois. A própria vassoura que as “bruxas” usam entre as pernas, que se difunde como “vassoura voadora”, na verdade representa o poder fálico masculino, com que as mulheres, então, coadunavam, sendo igualmente fálicas e, pois, masculinas. Daí também terem sido caçadas pela Igreja, porque se prostravam ante uma unidade arcaica muito poderosa, e que, então, poderia derrubar conceitos dogmáticos sobremaneira frágeis e

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recentes (mesmo dois mil anos é pouquíssimo se comparados aos milhões de onde se origina todo o exposto). Repare-se que, embora se tenha atribuído a origem da arte aos homens (muralistas caçadores), em sua irrefreável ânsia de conter o inexplicável da caça, o desenvolvimento (e quiçá uma origem paralela) do mimetismo veio fortemente com as mulheres, que, como dito anteriormente, imitavam sempre que necessário. A diferença grosseira talvez seja que as mulheres imitavam para resolver de pronto, e os homens imitavam por crenças inexplicáveis no que por si só era igualmente inexplicável. Portanto, no que tange à arte, como patamar entre o ideal e o material platônicos, podemos afirmar que homens e mulheres tiveram papéis que, se não foram complementares, foram, no mínimo, paralelos. A Aristóteles essa explicação também se encaixa, de certa forma. O homem começava a subir no panteão do poder por conta de sua habilidade rude, como vimos. A propósito, esta instituição humana, panteística, com todos os seus membros  o Poder, o Estado, a Legião, como o disse Barthes , foi sem dúvida invenção do homem, não da mulher. Esta devia cuidar das tarefas administrativas mais finas, que lhe eram dadas, e, para isso, começaram a sentir falta de um veículo pragmático eficiente, menos mágico e ingênuo do que o dos homens, já que a forma pela qual estes se comunicavam entre si dava apenas uns poucos votos de ação, geralmente braçais, como dissemos, rombudos. E a mulher precisava da mão, mil vezes mais requintada e sutil do que os braços masculinos, a mão que acariciava o filho e lhe dizia então num gesto: Liberdade. E a mão que lidava com aves pequenas, com miudezas impensáveis àquele homem labrego. (Talvez as origens de “Mão” e “Mãe” nem sejam distintas; como mater e madeira; vimos antes em que se comparava a mulher à madeira das árvores, “parideiras licenciosas e descontroladas”, como bacantes famintas, sagradas e temíveis.) A mulher observara o desgarramento do polegar, enquanto o homem via apenas que seus poderosos braços poderiam assegurar-lhe infinitamente a Paz, que a essa altura já se confundia perigosamente (e é o que acontece até hoje), como foi visto, com o Poder. Não havia outra forma de sobreviver à paulatina quantidade crescente de caça advinda do também crescente poder de caçar do homem. Quanto mais o homem trazia, mais a mulher precisava gerenciar, manualmente. Por isso foi que ela deixou o homem criar a ficção do Poder, porque ela não podia se dar ao luxo de inventar falácias, já que sua tarefa de limitar e gerir o clã era invisível e, por isso mesmo, mais preciosa, na essência, que a dos homens. É o que acontece até hoje: o progresso de uma vertente gera a necessidade de criação de um arcabouço administrativo em outras vertentes. E sempre em algum lugar é preciso que haja postura de silêncio para que a ilusão possa ser mantida como “Verdade”. A postura de silêncio cabia à mulher; hoje, não sei nem se existe “postura de silêncio”. Portanto foi assim que, lentamente, a mulher foi sofisticando o aparelho fisiológico de que podia dispor  respiratório, digestivo  para, aos poucos, repita-se, ir criando a linguagem. A linguagem foi o primeiro ato administrativo da História, e começou na mulher. Porque seus votos de comando eram muito mais minimalistas, principalmente após o domínio do fogo, graças ao qual se cozinhavam as carnes até então impensáveis, iluminavam-se os interiores das cavernas mais fundas. Como ela faria para pedir certas finuras com as poucas “palavras” desenvolvidas braçalmente pelos homens? Eram necessários outros modos, igualmente refinados.

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Só que, para emitir sons refinados e compreensíveis (após adequada convenção: o que se chama de fonema), era necessário que se reconstruíssem alguns detalhes anatômicos, já que os fisiológicos, aparentemente já eficazes, deveriam cumprir suas tarefas, ao passo que anatomicamente o ser humano ainda apresentava inadequações. O fato é que a arcada humana, muito proeminente, à moda de gorilas, não permitia o ato do que hoje se concebe como fala. Foi onde entrou o cachorro, que, de ser caçado como lobo, passou, aos poucos, para o lado humano, co-caçador. Com aquele auxílio imenso, o homem pôde ir deixando a necessidade forte de farejar, uma vez que o cachorro o fazia muitas vezes melhor. Então, sem precisar farejar tanto a caça, o nariz do ser humano foi retraindo-se, e remodelando toda a estrutura óssea do homem, e, por passagem genética, obviamente, da mulher, deixando-os mais refinados e muitas vezes mais propícios à sobrevivência feliz. (Como já vimos, essa retração necessária já ocorria mais nitidamente com as mulheres, desde que elas não precisavam estar farejando caça, uma vez que não caçavam; a mesma coisa ocorrera um pouco antes nas tribos pesqueiras, em que homens também não necessitavam farejar. Por isso os narizes femininos são mais delicados que os masculinos.) Até é bastante provável que esse encurtamento mandibular tenha sido responsável pela remodelagem de músculos cranianos, lato sensu, que, assim, propiciaram um aumento cerebral, com conseqüente aumento de faculdades cognitivas. Era o de que precisavam as mulheres. As mulheres são as pioneiras das línguas. É por isso que se diz “língua materna”. Porque foi na maternidade que elas tiveram origem. Por que você acha que o timbre lírico mais elevado  o soprano  é de domínio usual de mulheres? Porque foram elas que estiveram na vanguarda da voz, merecem um prêmio. Os próprios homens começaram a esboçar um gestual menos truculento, já que não era preciso usar a potência de seus braços todo o tempo. Com toda a fisiologia esboçada e a anatomia pronta, homens e mulheres puderam falar entre si. Deu-se à luz a palavra, herdeira da sílaba, entroncada mais tarde em letras e fonemas, em ordem inversa, com paternidade e maternidade juntas. De fato, no princípio deve ter havido algum caráter imitativo da Natureza, mas refutou Saussure a suposta origem estritamente onomatopéica, e concordamos que não foi apenas na imitação que se originou a palavra, até porque ela não é a única forma de expressão, senão a mais refinada; e isso nem é fator por ora relevante (leia-se talvez o Cours de Linguistique Général, do brilhante mestre suíço; leia-se o sempre justo Platão, seu Banquete). As bocas estavam agora abaixo dos narizes e inferiores a estes, que progresso enorme!... se me permitem a falta de cientificismo exclamada numa interjeição “!” Não havia mais mandíbulas simiescas, os queixos estavam na linha da testa, os narizes venciam o ar e cortavam-no quando necessário, a boca já estava corretamente posicionada, lábios em parelha perfeita. Tudo pronto, foi quando surgiu o primeiro beijo de que se tem notícia. Um beijo. E do primeiro beijo até hoje, o fato é que muito pouca coisa mudou. Mas mudar para quê? Para que se inicie toda uma nova cidade; administração, poder, caça e paz?

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O beijo é muito melhor. O beijo é a Nova União, a Nova Aliança. O beijo é como um evangelho estritamente humano. É óbvio. Até porque é o que vem após o êxtase da coroação de um longo processo evolutivo. Depois de todo um trabalho de milhões e milhões de anos, conseguimos concluir que o beijo é descanso. Ou: que o beijo sempre será em homens e mulheres como a lua, Sevilha.

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Cosmogonoescatologia: Entender a Luz Teológica para entender o homem profundo Assim é a pequena dedicatória que escrevi para encetar minha peça “A morte-aurora da rainha Walburga”: Em comemoração aos duzentos anos de composição e publicação da Sonata Aurora, opus 53, de Beethoven, este grandiloqüente despudorado que vaticinou os efeitos da industrialização até mesmo sobre o espírito do homem contemporâneo sempiterno. A Waldstein, outro epíteto para a mesma Aurora, é uma máquina-a-vapor que torna estupefaciente o mais incrédulo e agnóstico ateu, e sem dúvida constitui uma interseção, porém exuberante, quase amazônica, pantaneira, praticamente selvagem em brasilidade, entre a maravilha humana e a de Deus. Viva Beethoven, este germano-brasileiro! que sempre soube que o universal é o regional sem muros! [....] 1805 é o ano de nascimento da Aurora, de Beethoven; de Hans Christian Andersen... Pretexto metafilosófico! A filosofia das máquinas e dos homens. Das pessoas! Crianças! Pré-caos! No princípio de todas as coisas, latência, em cujo fim a ressequidão definitiva do Universo  Cosmogonoescatologia , um ponto de tal forma obscuro e ao mesmo tempo sem-luz que é possível sabê-lo conquanto não se veja o quanto se sabe. A transubstanciação do Universo, que é cíclica, isto é, Ele passa por períodos de descanso ou Repouso inercial, partindo, após o Impulso, rumo a outro estado de inércia, o Movimento, é notória. E de tudo isso o que resta é a Consciência. Mas se não vemos o tamanho desta Consciência, isto ocorre porque não a olhamos ainda? ou nem a teríamos olhado? porventura com medo de um confronto ostensivo em que não teríamos chance de vitória? E não querer vencer? já é uma vitória? E a quem ela pertence senão a Deus? O maior dos Vitoriosos. Por isso não se crer não significa que não se tenha crença. Mas que não se crê, o que é bastante outra coisa. Podemos, em vez de expressar um ato de crer, apenas saber de certa figura, dispensando, pois, até mesmo a crença. Quem sabe não precisa ser crente. Saber é maior e fica além ou aquém de vicissitudes, caracteres fortuitos da vida. Então podem ser lançadas, daqui, as seguintes Variantes Latentes e Primitivas (VLPs), num caráter linear que bem poderia ser ascendente, assim como a descendência lhe causaria imenso gozo:

PENSAMENTO:

Ação, Luz, Consciência, Visão, Confronto.

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Parece-me que entre a Ação e a Luz (ou entre  mas em eternidade entre  uma e outra dessas variantes que impusemos: Luz e Consciência; Consciência e Visão; Visão e Confronto), houve aquilo que designamos, antes, verbo (melhor: Verbo), e, depois dele, enfim, a Palavra para designá-lo (ou ensiná-lo). O Verbo liga, a Palavra ensina. Há portanto um sem-número de tonalidades do Verbo, já que este se imiscui entre todas essas vertentes-variantes, entre uma e outra. Certo é que Verbo e Palavra me parecem tão pequeninas manifestações visíveis da invisível Ação (ou Luz ou Consciência ou Visão ou Confronto),  sendo Dela (ou Deles) igualmente tão conseqüência e causa,  quanto o são todas as outras manifestações igualmente (ou não) apreensíveis: trata-se, portanto, de Dupla-ação. Assim, no princípio era mesmo só Ação, porque Verbo e Palavra foram vindo à medida que se lhes surgiam casas. Depois que surgiram, surgiram como Dupla-ação àquela primitivíssima Ação. A Palavra é a Dupla-ação do Ato. Mas o Ato? é a manifestação da Ação. Quero dizer que a Palavra é por si mesma a primeira manifestação visível do Verbo. E que é esta a maior metonímia do Senhor Onividente ao homem. Quero dizer também que o Verbo sim é a primeira manifestação visível da Palavra. Assim, à Ação  Deus Primitivo  só corresponderá depois a Dupla-ação  Homem Derivado?  Verbo-Palavra. Homem Primitivo seria, portanto, a volta à Inocência Divina, retorno à Ação, o que faria, neste ponto, daquele Homem Primitivo um Deus Derivado, sem Palavras, puro Ato. Utopia das utopias? ou o Casamento. Por fim, diria eu que Deus é Ação e Luz. As três últimas Variantes Latentes e Primitivas  a primeira (primeira ou terceira?) das quais a Consciência  não passam do desdobramento dessas duas primeiras (primeiras?), sendo, portanto, o Homem. Ei-lo nascido a espelhar, calcado nas primeiras VLPs, ESQUEMINHA 1:

Espelho (DeusR -DeusV*): Ação, Luz  Consciência  Luz,

Ação.

Pensamento (DeusR-Homem): Ação, Luz  Consciência  Visão, Confronto.

* DeusR significa a Imagem Real de Deus; DeusV, a Sua Imagem Virtual.

Como vemos, a única Palavra capaz de definir Tudo é  MOVIMENTO. Até podemos dizer, ousar dizer, que, do Descanso de Deus, Repousável Plenissíssimo, hão de ter não surgido, mas aumentado, qualitativamente, as Trevas, opostas à Luz. (Digo não surgido porque, bem o sabemos, a Treva nasceu, ela sim, antes da Luz. Um antes estrangeiro... sem ter vindo na frente...) Ele, Deus que é, descansou para deixar: crescer, fermentar, alargar. Atenção, não é algo ruim, mas opositivo ou, melhor, a-positivo: a Não-Ação de Deus, naturalmente, leva à Não-Luz... etc. Não é conseqüência, é é, apenas um é.

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Não-Ação, Não-Luz, Não-Consciência, Não-Visão, Não-Confronto.

E talvez o equivalente a: IGNORÂNCIA:

Repouso, Treva, Inconsciência, Cegueira, Obediência.

Eis ali o outro lado da moeda, o reverso embutido sagradamente na Criação, a mesma moeda. Religiões podem lidar com o lado que quiserem... Em comum põem sobre os ombros humanos pesos que elas próprias não poderiam suportar. Apregoam o sacrifício como o fardo mais insuportável possível. Não dizem nem mostram o quão natural é o sacro ofício de Baco ou Helena para o homem, preconizam-no como se fosse maldição de Deus. Não o encaram com amor, e por isso recusam, pungentemente, a Natureza Íntegra de Deus. Não aceitam (embora digam) que o sacro ofício é só percalço. Mostram sempre mais que o ofício-liturgia-peça é o próprio objetivo de Deus para os homens. Grande mentira. Em geral estas religiões levam o lado humano (Inconsciência, Cegueira, Obediência) ao nefando de sua realidade, fenecendo homens, quando os fazem repousar. Mas que pecado!...

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A Conseqüência Divina  Renascença  Idade Média.

Deus é uma eterna conseqüência de si mesmo. Porque é o maior Movimento existente no Universo. O QUE É Deus? Risos, risos, risos! RESPEITO! AMOROSIDADE ROMÂNTICA! É a conseqüência de todas as causas, mas a causa de todas as conseqüências. A abstração máxima e a concretude suprema. Romancidade! É como o ciclo da vida, conseqüentemente a si próprio. Sua conseqüência vem do fato de haver em si tudo o que há. Não há nada em Deus, exceto onde não há Deus, e como não há nada em que não haja Deus, em um terço de Sua Criação Deus é representado pelo Ponto-de-início, o que prova, portanto, que há UM em Deus. (Um terço é o Xis, porque 1 sobre 3. Ou o Ponto-de-início sobre o Tudo.) Deus não precisaria do homem se não quisesse precisar. Deus pode querer; nós queremos poder. É nossa consciência da degenerescência. Porque uma coisa só é feita por homens se estes podem fazê-la. Ao querer fazer algo, assim, o que o homem quer é poder este algo, igualando-se, em termos de lugar, a Deus. A consciência do finito pode levar o homem à Romancidade. Não pense muito, devore com o cérebro aberto como pára-quedas. Senão Ícaro volta a cair... Mas por que no Renascimento  após uma Idade Média calcada na Ação, mas sobretudo na Luz (a Idade da Luz é no fundo esta Média, em que se calca, no Abstrato  ou seja, no UM  de Deus  a Luz , Seu Tudo  A Consciência), se dividia o Homem entre, apenas (ou peremptoriamente), Visão e Confronto? Na Visão, o Amor contemplativo, ideal e livresco? No Confronto, o Amor experimentado? Ah, quantos desconcertos Camões não nos pôs com tal duplicidade... Ora numa recompensa máxima da Ilha dos Amores (olhar e não-fazer, admirar a Fábrica do Universo), ora na carnavalização das brumas romanescas da não-Ação (ou melhor, do não-Confronto) em Concreto (isto é: Confronto). Porque se buscava apenas na parte humana  leia-se: Refletida  a Presença de Deus. Abriu-se mão Dele por acreditar-se que nas manifestações visíveis do Homem (Visão e Confronto) estaria Ele, como conseqüência (não como causa), refletido. Ele refletido e Nós refletores. Assim podia-se dizer, em renascença pura: sou não sendo; e, sendo, não sou. Porque Deus, sendo invisível, ou, em outras palavras, não-sendo, é intrínseco, e, portanto, descritível em visibilidades, passando, pois, a ser em (e graças a) mim; e o Homem, por seu turno, uma vez sendo, é-o exatamente por não-ser, na medida em que o foi por ter tido o não-foi como lastro divinizante, graças, portanto, a Deus. É muito claro, basta que se ilumine. Viva a Glasnost!

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A Conseqüência Humana: estudo sobre o Poder E na Idade da Luz  Média  Deus era visto como Suprema Causa de Tudo. A conseqüência, Homem, portanto, vinha após a Luz. Após ali... Descobrir-se-á que após é outra coisa. A Idade Média ainda contava sutilmente com aquilo que neste tédio não há: Matriarcado, apogeu da fêmea-ancestral, Mulher de raiz-raiz. Mãe-mulher. África! Por exemplo! Alguém já se intitulou “Filho de Adão”? Em Eva o interior, o útero, o “Ela” da coisa. Mas me parece que no Egito a mulher era mais bem venerada, haja vista a preferência pelos gatos... (Como diria Camile Paglia, com quem, aqui, até concordo.) E porque a Consciência, que é Homem, é a visualização externo-interna das duas Faces do mesmo papel: Ação-Confronto, Luz-Visão  Deus-Homem. A diferença única entre a Ação-Deus e a Ação-Homem (chamo a esta última de Confronto; q.v. nosso ESQUEMINHA 1) é que, assim como aquela (Ação) é sempre por Amor, Passiva (Idade Média?), esta última (Confronto) será sempre por Atividade palpável, sempre rebelde e ativa (Renascimento!). Luz-Deus é rebeldia também, atenção; Luz-Homem (a que chamei Visão) é, esta sim, a visibilidade da Luz, sendo, pois, a Rebelião. Letras embutidas em esculturas. A humildade é Rebelião, contra o estado excelso Primitivo. Ocorre que esse estado foi rompido e para se tornar a ele é preciso Rebelião, porque Passividade é para Deus e Homem não se move no Passivo, mas no Ativo. Homem é Consciência, Visão e Confronto. Confronto é tônica de Homem. (Ação de Deus.) Humildade é a tautologia humana: húmus, terra, ponto. Até a oração me soaria, agora, Rebelião: trata-se de pedirmos a Deus-Homem o que sabemos que Ele sabia que Lhe pediríamos. Por que pedimos ainda assim? Porque no espelho que somos de Deus, eis o cotejo:

Pensamento (Deus-Homem): Ação, Luz  (Consciência)  Visão, Confronto.

Oração (Homem-Homem):

Pedir, Saber (Consciência)  Saber,

Pedir.

Ou seja, tudo muda: O Homem pede  não a Deus, mas a si mesmo, e, portanto ao seu Deus, porque orar é do âmbito Homem-Homem, realce de sua franqueza divina ou, melhor ainda, divinizada (pelo próprio Homem)  por saber que Deus (que é a sua Consciência, “sua” dele, Homem) sabe que pedirá. Também Deus pede que saibamos (através da Consciência,  que é Homem) que Ele sabe que Lhe pediremos... ou que Ele sabe o que Lhe pediremos. Ou pedir o saber, com Consciência, significa saber pedir. Porque me parece que o que Nos liga, Homens, a Deus, sendo Consciência, é o que Nos dá discernimento não apenas para pedirmos ou para sabermos pedir: é o que nos inspira (Inspiração? Sim!) a sabermos pedir, sim, aquilo que Deus pede que saibamos que poderemos-pedir.

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Instaura-se portanto outro Ato: Poder. Ato é manifestação visível de Ação, sendo, portanto, neste Estado Primitivo Deus/Homem, patrimônio comum Deste e Daquele. (A vida é antes fincada no Poder que no Querer.) Quando se separarem, contudo, Ato fica exclusivo, por tempos, de Deus, sendo-Lhe a manifestação visível da Ação, que passa a ser, nesse momento (e ei-lo) , o Poder. O Poder de Deus não é mesmo não ter pecado?  porque para Ele tudo são Atos. É a Face “Atividade” de Deus, que será, depois, legada ao Homem, deixando a Ele, Deus, a Luminescência do Passivo. Um é conseqüência e causa do Outro simultaneamente. Ato é, então, exclusividade de Deus, e manifestação visível de Sua Passividade. Como ainda estamos no estado Primitivo  em que chamarei Deus/Homem de Homúnculo , Ato é mais do que Poder: É Poder-Pedir, o que constituirá, mais tarde, AçãoDupla-ação: eis o Ato Derivado. Ocorre que a oração me parece o pedido, através da Consciência, do que passamos a saber que é a Permissão (de Deus em Nós)  reflexo em Nós do Seu Poder  para que peçamos: cada um pede, portanto, aquilo que merece, ou que julga, pela Consciência Indivisível, naturalmente, merecer. “Merecer” significa... o que nos leva ao mesmo ponto  revertere ad locum tuum ... significa Poder Pedir. “Consciência de Merecimento” significa, portanto, Saber Poder Pedir. Cada Homem pede  a Si mesmo  e se dá aquilo que julga merecer. Por isso é fundamental o desenvolvimento da ética individual. Por isso a Oração é a manifestação interna da Necessidade de Deus. Além disso, apenas Nada. O estado de Inspiração seria exatamente a prova de que, para o homem, saber vem como a mola do experimentar; ou que ver é anterior a olhar... Tudo isto está embutido na Consciência, que é semente Bem-Mal, é semente, no homem, Visão-Confronto. Para Deus, esta mesma Consciência não é semente, é fruto, porque, n’Ele, Ação-Luz é o que origina Consciência. Não, filhotes, não é difícil de entender, é simplesmente impossível de entender, não pense que está entendendo, porque não é assunto para a Inteligência, mas para a Consciência mesmo... Aquele que apenas tentar inteligir... apenas nada. Voltemos à questão do Poder. A própria Rebelião faz da Consciência, também, emanação autônoma de Poder, o que A traz indissoluvelmente  fazendo-A pertencer em sua cara-metade  apenas ao Homem. (Embora Consciência seja Deus; mas em outra metade. É como se houvesse três metades: 1) Homem / 2) Deus / 3) Deus-Homem.) Não, não, desculpai-me: ocorre que Consciência ainda não é Deus. Tampouco é Homem. É Ambos, por isso não é nenhum porque é justamente a Sagrada Esquizofrenia de Deus para o homem e a do homem para Deus, que precisa ser assimilada e curada... Não há nem sequer metades, senão que Inteireza.

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A inconseqüência.  Consciência é  Homúnculo. É o elo que une indissoluvelmente Deus-Homem, não mais Deus/Homem, ou que O une, Uno: tratar-se-ia de um império abandonado por excesso de imperadores? Mas aqui são Um só, inconseqüente. Isto é, o retorno à Inocência. Poder é Inocência. Porque o passivo  Ação  é de Deus, e o ativo  Dupla-ação  é do homem. Em Deus, como sabemos, a união suprema entre Bem e Mal, porque “um Reino dividido não sobreviveria”. Deus não divide nada, porque é a Inocência Suprema da Multiplicação, Deus é “crescei e multiplicai-vos”, jamais “dividi-vos”... Ação é psy, Dupla-ação é phy. Ação é Alma e Dupla-ação é Natureza (Instinto-Intuição). Assim sendo, a Aceitação seria o estado humano em que todas as coisas se unem numa só e grande Coisa. Aceitar é psy, Rebelar-se é phy. Não se perdoa nada, mas se aceita tudo. Não há o que ser perdoado quando se aceita intransitivamente. Aceitação é Amor. A única manifestação de Amor dada ao homem. Fora isto é zumbi. Aceitar é ser grato. A falta de pecados (Inocência), portanto, é Mentira, sim, mas para o corpo, apenas (a mente também lhe pertence...), porque todos nascem sem pecado, já que nascem da pura Ação de Deus, que não “peca”, o que é, aqui e agora, Verdade. É tudo uma questão de Consciência, esta semente-raiz-fruto Ação-Dupla-ação, AlmaCorpo. Alguns chamaram Consciência de Razão, outros de Memória, talvez firmando, neste último conceito, a soberania da Revelação-Divina, enquanto naquele primeiro (sucedâneo?) ficaria calcada firmemente a da Formulação-Humana. Ou seja, apela-se ora para a supremacia da subordinação (Teologia-Memória), ora para o apogeu da independência (Filosofia-Razão). Como a famosa brincadeira entre orações subordinadas ou coordenadas (talvez se tenha relegado a aposição a planos inferiores por ser ela o resumo das duas anteriores...). Como se vê, é na linguagem que muito se prova. (Prevejo que Helena Blavatsky, lingüista e conhecedora do piano, como eu, sabia-o.) Assim sendo, preferi açambarcar os dois conceitos num Macro: Consciência é Razão & Memória. Mas não é só isso, é também olho para a frente da cabeça. E outros fatos. Apulas numa só criteriosa forma. Também à Memória se deu o cunho estrito  e neste me fio melhor eu  de receptáculo de experiências, não apenas vividas, como também que se viverão, ou que são apenas conhecidas, embora jamais tenham sido experimentadas (o saber, de novo). Porque a verdade é que não se acrescenta um côvado àquilo que já é. Também deste mesmo aquilo não se retira nem sequer um fio de cabelo que seja. O que é sempre foi. O que é continua sendo para sempre. O que é é. E é de novo. Quem tem acesso à Verdade tem acesso à Verdade. A este alguém, nosso alguém, não é preciso que lha mostrem, ele a sabe. A Verdade é aquilo que de mais perigoso e inofensivo pode haver. Outros chamaram Memória simplesmente de Memória, Fé ou mesmo Razão (num cruzamento epistemológico), e a esta última, termo de identificação semântica, além dela mesma, naturalmente, também de Inteligência ou Esperança. Repare-se em que a Razão tem um dos mais importantes lugares na relação ativo-passiva Homem/Deus: é a tênue linha em que a Consciência  Deus/Homem (ou Homúnculo, como dissemos)  se divide

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em Deus e Homem, equiparando-os, coordenando-os, sopesando-os. E embaixo de tudo, devo continuar, onde situei eu o Confronto, eis a Vontade ou Caridade, sinônimos. Mas fica possível? Pai, Filho e Espírito Santo; Fé, Esperança e Caridade. Consciência, Visão e Confronto. Memória, Inteligência e Vontade; Alma, Mente, Corpo. Etc.? Omne trinum est perfectum. Até aí, desculpai-me, até aí não falo eu nada de novo (e nem minha intenção era fazêlo), mas me parece que traçar origem de Deus do invisível me seria incômodo. Por isso precisei da Luz. Por isso o Renascimento errou? Trevas. No princípio era Ação. Mas eram Trevas. Era a Noite do Homem e a de Deus. Porque também na Ação estava o Repouso  no sétimo dia! Depois a Luz se fez. Antes dessa Luz, que veio tanto com Prometeu quanto com Jeová em forma de Fogo, era tudo Ação e Homem era portanto Deus na Tenebrosidade da Mulher-Arcano (mas este livro a trata). Tudo era escuro porque o próprio Homem era-não-era, não havia carência de Luz porque Tudo era Um. (Digamos que na Água.) A Luz, o Fogo foi a primeira Rebelião de Deus contra o Homem e a Seu favor (que por seu turno se rebela contra Deus e a Seu favor com a providência da Morte, a volta à Água), porque pôde dar claridade à Consciência Divina Nele próprio, Homem, dando-Lhe, pois, a Razão Luminosa... do Mal. Como separa ser de não-ser, separa Bem de Mal, Tudo e Nada. (Quando mais não seja de sua própria ruptura.) O Mal veio, portanto, como conseqüência inevitável do Bem Supremo: a Luz. (Mostrarei que, se veio como conseqüência, é, na verdade, a grande causa: o Mal é a causa do Bem. Atentem: o Bem não precisaria  palavra-chave  existir se não fosse para o equilíbrio com o Mal, sua, portanto, causa. Muito se falará acerca!) Seria esta ruptura o que anima incidiosamente o Homem à vida, em furiosa resignação por vencê-la e aceitá-la com Amor e Rebeldia? O Mal é nascido, como se pode provar, da Luz.  Pecado, Hýbris, Falta, Crime, Excesso, Desmesura.  Da mesma Luz que dividiu o Homem de Deus com a luminosidade da Consciência, que é, sim, no paradoxo, o que Os faz Um. É como a união das linhas paralelas no Infinito: Consciência. Ou como a luta entre fogo e gelo de Horbigger. Quero a pilha atômica, para isso, de Fermi. Onde está Oppenheimer? CUIDADO! QUE ALÍVIO! Com a mesma Luz Única que é a primeira manifestação visível de Deus dentro de nós, antes mesmo de Nós sermos, de haver Nós, deu-se-Nos a centelha primitivamente indispensável. O Indispensável é o Absoluto  Kierkegaard? Mas este Absoluto (ou Kierkegaard?), manifestação invisível de um Todo ainda maior e por isso mesmo visível em certas faces, é a Consciência? (Receptáculo e Registro do...

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Poema seco

De que me vale a realeza do condado britânico Na conta de seus mil súditos leais? Me interessa em quê o globo pânico Fugaz? Importante não é a Bruxelas do rei belga, titânico, Em mil anos de cidade reinando lilás. Sabe Deus se o rei Artur virou corvo E voa vasto pelo negro indo fundo... O que eu sei é do imenso estorvo Que a rua suplanta com seu esgoto imundo Da Glória, do Rio e do beco Espalhafatosos num poema seco... De que me valem tantos mundos: Cinema A enquete O desespero  Se o que eu vejo são os fundos Da Rua Rainha Elisabeth Ipanema Rio de Janeiro? Se eu pudesse pressentir a nobreza, riria No meio da escola de samba da gíria Cantada na boca do traveco Fazendo michê à luz do dia Língua no Inferno Com lordose Enquanto o advogado reco-reco Faz pose de mestre-sala de terno Parado nu diante da Praça da Apoteose. E goze! No que me acrescentaria o rei Se eu mesmo sou e sei? Quando eu ouvir Beethoven, calar-me-ei:  Lotei!

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E aos que me crerem real cansado Asseguro que não há mundo hipotecado no estar-se em dança Com o enredo-de-samba da realeza Onde se descansa O que se apraz e o muscular forçoso retesa. Amansa. Ocorra a avenida criança E calma seja a surpresa:  Que é no batuque absoluto na macumba que se reza.

(Marcelo Caetano, In: a Bomba de Hidrog6enio e outros poemas.)

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Materialismo ou veritismo? A equação universal.

Peguei a palavra veritas e a costurei num sufixo de doutrina, -ismo, para tentar entender o que é a metanóia humana. Falo no veritismo. Na Eucaristia católica, no rito romano, a hóstia e o vinho se transubstanciam na carne e no sangue do Cristo. Isto se dá pela chamada Metanóia. A própria missa é uma metáfora viva, porque é o teatro das passagens relevantes no Evangelho. Rudolf Steiner, em Das Johannes Evangelium, chega a afirmar que “o materialismo, quando interpenetra os mistérios religiosos, é mais pernicioso do que quando densifica ainda mais a vida exterior”. É conhecida esta sua passagem, e por isso mesmo citada amiúde. Mas eu me pergunto francamente se toda a vida não pode ser considerada um ritual. E, assim sendo, se o ritual da vida não é um completo ciclo de materialidades e espíritos. Sim, arte, religião, artista e Deus, como teríamos existência se não dispuséssemos de matéria, ao menos no quesito “criação”? DEZ, NOTA DEZ! Eu pugilo que... “são insensatos por natureza todos os que desconheceram Deus, e, através dos bens visíveis, não souberam conhecer aquele que é, nem reconhecer o artista, considerando suas obras”. (Livro da Sabedoria, 13, 1) Esgrimo ainda que devemos pensar na possibilidade de insuflar no amor um gel plasmado de realização. Penso que devemos pensar menos e fazer mais. Um florete pode ser uma injeção de cura eterna! Se isso for chamado materialismo... Sou-o. Bem, já fomos considerados religiosos, agora por que não poderíamos ser chamados de materialistas? Será que a arte é o elo entre materialismo e religiosidade? Sem sombra de dúvida? Que mal há com a sombra? Não foi graças à sombra da Terra na Lua que se descobriu a esfera terrestre? O tipo de arte do amor é a Romancidade  religião e matéria. Olhos e boca. Ouvidos e mãos. Mente e coração. Alma e corpo. Sombras, muros e absoluto, em trabalho de artesão do próprio fogo. Isto é oração-enunciação. Chamar-nos-ão de todas as coisas, porque a verdade é que na amplidão do coração humano caberão sempre todos os rótulos do universo. Somos religiosos, materialistas, artistas, magos, gurus, alquimistas e  Românticos. Queremos Romancidade: espírito e matéria. A metáfora nos ajuda na compreensão de mais este ritual. O rito de passagem, de transmutação. Quando se representa a metáfora, ocorre a metanóia. Atores, atrizes, mentira  verdade. Hipócrita e persona, tudo junto. Representar o amor significa, sim, cavar-lhe um nicho para que este monumento, quando chegar, tenha para si um lugar digno de colocação sagrada e venerável. Como você quer receber a sagrada escultura divina sem ter para ela um nicho vital digno e igualmente

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sagrado em seu coração? A Divindade não lhe dará monumentos sagrados enquanto você não tiver para eles um altar de oblações igualmente sagrado. Ritualize-se. É preciso que você passe a obladar os pequenos primeiros frutos à Romancidade. Como o Pidion Aben hebraico, resgate seu primogênito oferecendo um sacro ofício à Romancidade. Sacrifique seu filho Isaac. Disponha-se a tanto. O rito dá vida à essência celebrada. É a festa. Nietzsche gritava que (até) o castigo é uma festa! Adoro particularmente a profundidade desta sua frase. Por isso todo rito é uma celebração. A natureza ritualiza porque celebra a si mesma. Por isso é que se diz que se vai celebrar uma missa. Ou celebrar um casamento. Ou celebrar um contrato. Ou celebrar o amor. É um papel análogo ao de Deus, em que o homem, envolto no Espírito Santo da arte e do infinito materno, pode dar vida a coisas inanimadas e ressuscitar outras que eram consideradas mortas. O que era pão passa a ser carne; o que era vinho passa a ser sangue. O relâmpago e o raio de Frankenstein. O flashpoint de uma explosão, sua ignição. O triângulo de combustão: combustível, comburente  flashpoint! Talita, cumi, as palavras em hebraico que significam  menina, levanta! O resumo da missa é a transubstanciação. A missa é um ritual de alquimia. O romance é uma missa. Como todo ritual religioso, a missa guarda as sementes da criação e da criatividade humanas. Se ela põe tudo isso como “sagrado”, é porque esta faculdade humana  a mais vasta de todas  é, de fato, sacra. Ela é a equação universal. O romance é sagrado. O papel do sagrado é  sendo representado  ser derramado sobre nós. O papel da Catedral do Romance é derreter-se sobre nossas cabeças. O relógio se derrete como Salvador Dalí derrete cavalos ludicamente. Jogo lúdico. É consabida a pergunta de Einstein no fim de sua vida, citada por Bergier e Pawels: “A natureza joga sempre o mesmo jogo?” Santos e pessoas se amam. E muito! E esteja atento para os jogos. E levanta-te! * * * Eis que os santos olharam-nos do alto dos altares e desceram a nós, transformados em carne e osso, irmãos, mães e pais, amigos e vizinhos, filhos e avós. Namorados... Recebamo-los. A possibilidade de transpor o falso em verdadeiro. Por que não chumbo em ouro? Por isso Aristóteles tem falado que é preferível a mentira que convence à verdade que destoa. Se bem que esta afirmação precisa de outras ferramentas de hermenêutica, isto é, de interpretação “posta em caixinhas”. Puzzle. Este mundo das impressões aristotélicas... Os povos da América Central o chamariam de MAYA. Na mitologia grega ela é a mãe de Hermes (o antiqüíssimo Trismegisto alquimista), cujo pai é o próprio Zeus. Mas entre Zeus (elevação) e Plutão (descida) há Netuno  as águas, o oceano da vida, os ¾ de água-útero da terra. Oh, só falta ¼... Já está em comunhão com a vida e a saúde nossa de cada dia? Aceito! Aceito!

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Por que amor platônico? O coeficiente  Em Platão, usa-se uma CAMA como modelo; podem-se entender os “três degraus” da CAMA: a episteme (plano ideal, divino, uma cama abstrata, a “camidade”); a doxa (opinião concreta, como o trabalho do carpinteiro, a “cama” em si); e a eikasía (o simulacro de cama, o embuste, o ato do pintor, a “semicama”). Quem tem sido meu namorado afinal? Qual a equação (ideal) a eu me tenho prestado? Episteme, doxa ou eikasía? Tenho tido “namoridades”, “namorados” ou “seminamorados”? Pão e vinho ou carne e sangue? Tenho procurado Zeus, Plutão ou Netuno? Santos ou pessoas? Altares ou assembléias? Será que toda a dialética hegeliana, que se conforma com uma síntese, deveria ser “prismada” antes como um diamante do que como um eixo de ordenadas e abscissas? E de repente pula um Z, de que Descartes não poderia ter dado conta. Mas mesmo X, Y e Z não têm sido suficientes para me darem o plano concreto do romance, muito menos do amor. Quero a vivência de tudo, desde o plano olímpico da ascensão de Zeus até o plano tartárico da geratividade de Plutão, entrando triunfal na vulgaridade de Netuno, o Limpo dos Limpos. A geratividade do lodo não chafurda em vão, mas origina a vida que se eleva às alturas da Glória (Kléo) como a naja encantada pelo flautim do faquir. O faquir é o flashpoint. Ou melhor: seu flautim! Nos ritos africanos, posso partir de Nanã Buruquê e chegar a Obá Oxalá, a Olorum, a Caô Xangô, mas, antes, é preciso pedir a bênção de Yemanjá e de Omulu. Tudo na vida é igualmente questão de respeito, de licença, porque todos os domínios da vida pertencem a uma Natureza Maior. Com licença, você passará. Sem isso, a sua arrogância se transforma em azorrague, em férula, em chicote, em flagelo  e você é expulso do Templo do Amor. É preciso passar pelo meio, senão a passagem não ocorre. A metanóia. A pedra filosofal. E do que preciso? Neste momento, objetificar ao máximo a Santa Trindade do Romance, para que se crie em minha mente um timbre que, muito além de ser inteligível, é pré-inteligência, com fito de pontificado entre mente e mãos. Preciso saber, transformar este saber em conhecimento e, finalmente, derreter esta matéria sacra sobre a minha cabeça e a de todos. É um nãoentender que se timbra em meu subconsciente, e daí adere mais fundo no inconsciente. É como passar do infravermelho para o ultravioleta com o feixe de luz imiscuído. E agora meu inconsciente aponta a flecha que o universo protege para que chegue ao rumo endereçado. Tenho necessidade da aventura da arte sagrada de profanar a madeira e esculpir, com ela, a cama que a Divindade em mim formulou. Carpinteiro José, carpinteiro Platão. Deus, este carpinteiro! Quero que a Romancidade me permita enxergar uma pessoa. A necessidade, como a Romancidade, é a mãe de toda ação justa. Ter necessidade, ainda quando não se age em seu nome por um tempo, é o princípio da criação do timbre humano que, em breve, se transubstancia em criação-criatividade. Saber, conhecer, derreter. Não se trata de uma “lógica da imaginação”, mas de uma tentativa de ver o mínimo de lógica que há  e há de fato  na criação. De coeficiente ômega.

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E ver tudo o que ela tem de espontâneo, de carpinteiro, de celebrante, ritual, e mesmo de mágico, alquímico, derretido, romanceado, romântico. Eu quero entender assim o romance: um prisma infinito de diamantes que se transubstanciam , com a pedra filosofal (onde ela está?), em carne, osso. Numa pessoa. Não quero criar uma pessoa, mas quero que a lógica da criação se timbre em mim e me faça comer o entendimento sobre a criação mais profunda. E só então estarei me dando o banquete para entender, enfim, uma pessoa ao meu lado. Não vou criar uma pessoa, mas vou comer o entendimento sobre ela. Eu não crio pessoas: eu derreto pessoidades. Meu santo acaba de descer do altar sagrado e me deu as mãos. Eu não entendia nada, mas este não-entender gerou em minha carne, espontaneamente, células capazes de digerir todo o entendimento matemático e metamatemático das vivências humanas. Foi preciso criar a rudis indigestaque moles (Metamorfoses, de Ovídio)  matéria rude e informe  em minha mente lamaçal para que filhotes de vida saudável e eterna começassem a se gerar a caminho do mar oceânico, onde poderei ser uma tartaruga de ônix ou de âmbar agora com sopro prânico de vida  homem glíptico feito em ordem de trindade aquática. Levo comigo a minha própria casa. Tudo ao meu redor me acolhe como líquido amniótico. Encontrei a suprema harmonia e  NASCI NO LODO! Afrodite Pandemia e Venus Genetrix finalmente se reconheceram face a face de um mesmo espelho! Viva a criação! Viva o coeficiente ômega! Temos aonde chegar!

HOMEM PRÉ-HISTÓRICO GLÍPTICO (do pré-verbal pré-pedra à apoteose artística pós-verbal pedra-a-pedra) TOMO I Contar-se-lhes-á caso assaz esquisito e insólito Sobre a passagem do grosseiro para o apuro esteta: Trata-se do hoje desenfreado senso de arte monólito De que o homem sempre foi vitimador e vítima direta. Não se trata portanto de poema apocalíptico Desses corriqueiros em minha verve néscia, Mas antes de procedimento crítico Em que poetizarei o Neanderthal da magna Grécia. E nesta breve e confusa exortação Peço fôlego à Musa Calíope, responsável da Épica A fim de que meu verso deixe o ser pagão no domínio de Talia, a irresponsável da Comédia. Se bem que rir dos fatos nunca é tão mal Desde que se anulem atitudes pregressas Pejadas de azinhavre, fogo-de-santelmo e de sal E com a proa se construam novas promessas. Enfim, volto ao exórdio mas o que vale agora

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É falar sobre a transição do rude Neolítico Para a fase da apreciação da arte que, na flora, Deveria ser chamada “a fase do homem glíptico”. TOMO II No início de todo este período Mesmo antes de ter havido uga-buga Um historiador se mergulha no rio do Haver ou existir uma tal tartaruga por nome um tanto eu diria impossível impronunciável em forma (quero dizer rupestre) E antes de sua lentidão cavalgar sem nível Se via sair do mesmo mar onde se adestre Com pedras verdes meio-semipreciosas o período em que tudo eram semi-pedras E os apetrechos e as armas todas ociosas Mal cortavam água, eram cegas, toantes pedras... Pois bem a história de repente, já que sai Do estatuto pré chega aos poucos a meio, de onde se olha bem fosca para esse bicho-pai (a tartaruga) que lá de seu formato interveio. E dela com casco e tudo o primeiro dos quelônios retratado em pseudoescultura de âmbar surge a madrepérola à mímese de futuros hormônios De toda a ouriversaria da pacacidade, furta-cor e branca. Há de ter sido um broche, um brinquedo ou um brinco A primeira jóia do homem histórico (digo pré)? Porque na verdade quem a quis com afinco Foi remuito a sua companheira criança mulher. Imitou a tartaruga isso decerto Com a pedra-corte mesmo sem ferramenta hábil Para cortar a pedra-beleza foi um tanto mais esperto O homem dir-se-ia ali o primeiro grande sábio. Porque a bela jóia-tartaruga de rapidez morosa Enfeitava a orelha da pré-donzela tanto mais (Rupestre desgrenhada e extremamente vaidosa) Quanto de uga-buga chegava a versos ditos celestiais. Pois assim os elementos agora rudemente historiados De serem prés correram a meios poemas e supridos Até chegarem a ser tão pós hipercobiçados que o que deu arte-poesia deu também mortos e feridos. Tratados Rompidos Estados Destruídos Dados 54


Invertidos Ditados garantidos Amados Construídos Esperados Vividos Fados Sentidos Amordaçados Pedidos Pecados Remidos Salvados Cridos Lados Relidos Libertados Ressurgidos Bons-grados Agradecidos Gados Idos Prados Vencidos Palatos Apitos Fatos Ritos

(In: Marcelo Moraes, O livro dos santos e das pessoas)

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Oblação aos deuses gregos: deixemos passar o filme de suas origens.

É preciso que, neste momento, tenhamos um conhecimento sinóptico da Hélade com seu panteão olímpico-tartárico. Tenha seu tempo santo em seu próprio olhar-pulmão. Respire em seu ritmo. Veja a Fábrica do Universo, ó nautas vitoriosos, filhos de Luso e Febo, Enéias e Dido, Píramo e Tisbe: TEOGONIA  A ORIGEM DOS DEUSES HESÍODO (1) RESENHA e DOXOGRAFIA

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(1) Algumas variantes e comentários não pertencem à obra em pauta, sendo, todavia, oriundas da tradição clássica, oral e escrita. (2) Trabalho publicado por ocasião do XXX Congresso Internacional de Língua, Literatura e Filologia da UERJ, agosto de 2000.

A) INVOCAÇÃO ÀS MUSAS* (versos 1-115): * As Musas são as filhas de Zeus com a Titânida Mnemósina, surgidas após pedido dos deuses para que se criassem divindades capazes de cantar e rememorar as vitórias alcançadas contra os Titãs. Também eram conhecidas como “Piérides”, graças à vitória conquistada contra as nove filhas do rei Píero, da Emácia (tal disputa foi no monte Hélicon, e consistiu no desafio das filhas de Píero contra as Musas no sentido de que aquelas cantariam melhor que estas úlimas). À mesma raiz etimológica de “Musa” estão ligadas, pois, as palavras “música” e “museu”, que não deixam de ser depósitos vivos da memória de façanhas dos homens e dos deuses. São, portanto, cantoras: não só satisfazem o orgulho bélico dos deuses, como, também, dão inspiração a quantos mortais as invoquem condignamente: poetas, dançarinos, cantores. Eram nove,  resultantes das nove noites consecutivas em que Zeus se deitou com Mnemósina,  tendo cada uma um tipo específico de arte sob sua tutela, artes estas às quais presidiam: Calíope: poesia épica; Clio: história; Polímnia: retórica; Euterpe: música; Terpsícore: dança; Érato: lírica coral; Melpômene: tragédia; Talia: comédia; Urânia: astronomia.

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A.1) NARRATIVA (v. 1-34) A.2) HINO (V. 35-115)

B) NASCIMENTO DO UNIVERSO (COSMOGONIA*) (v. 116-132): ERA PANTEÍSTICA

*Trata-se de uma cosmogonia ctônia, pois ocorre sempre na direção das trevas à luz, isto é, do Caos até a elevação suprema, Zeus. Haverá, no entanto, bases também celestes e telúricas, encontradas adiante, no percurso natural da evolução do cosmo, dos deuses, dos heróis assim como dos homens e mulheres.

1) CAOS

ÉREBO (escuridão profunda) ÉTER NIX (noite) HEMERA (dia) ÚRANO (céu)

GÉIA (terra)

MONTES PONTO (mar)

2 )

TÁRTARO* (habitação profunda)

EROS (amor)

* Mais tarde, com os órficos (sécs. VII e VI a.C.), traça-se a topografia do Hades, dividindo-se este em: Érebo, Campos Elísios e Tártaro. Dá-se a este último a noção de “local de suplícios”, sendo, inclusive, a única das moradas eternas do Hades, onde os sentenciados sofriam os flagelos das Erínias, de que se falará. Há uma variante segundo a qual Nix juntou-se a Caos. Dessa união veio um ovo, do qual nasceram, de seu miolo, Eros, e, das metades da casca, Géia e Úrano.

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C) REINADO DE ÚRANO (TEOGONIA) (v. 133-452): PRIMEIRA GERAÇÃO DIVINA. Úrano se une a Géia, dando origem às seguintes divindade 1) TITÃS: OCEANO, CEOS, CRIO, HIPERÍON, JÁPETO, CRONO. 2) TITÂNIDAS: TÉIA, RÉIA, MNEMÓSINA, FEBE, TÉTIS, TÊMIS. 3) CICLOPES: ARGES (raio), BRONTES (trovão), ESTÉROPE (relâmpago). 4) HECATONQUIROS: COTO, BRIARÉU, GIAS. Géia pede a seu filho caçula, Crono, que mutile Úrano, pois que este comia os filhos à medida que nasciam. Para isso, é feita uma foice, com a qual Crono, obediente à mãe, corta o testículo do pai, lançando-o no mar. Do sangue de Úrano sobre Géia nascem:

1) ERÍNIAS: ALETO, TISÍFONE, MEGERA. 2) GIGANTES. 3) MÉLIAS OU MELÍADES (NINFAS DOS FREIXOS) AFRODITE*, da união do testículo de Úrano com o mar. * Segundo uma variante, encontrada também na Ilíada, Afrodite poderia ter nascido da união de Zeus com Dione (de que estaremos tratando à frente), motivo pelo qual a deusa poderia atender pelo epíteto “Dionéia” (além de possuir outros, como “Cípris”, “Cípria”, “Citeréia”  pela boa acolhida que tivera nas ilhas de Chipre e Citera  “Anadiômene”, etc.). Pelo eterno caráter dúplice de tal deusa, eminentemente causadora de união (daí a própria energia de Eros, o Amor), inclusive no que tange a seu sexo, que ora seria concebido como masculino (havendo templos em que a deusa era adorada com barbas, sem contar em sua união com Hermes, que deu à luz Hermafrodito, o ser andrógino), e também quanto aos aspectos ctônio e celestial, claro e escuro, era ela concebida, hierofanicamente, ora como “Afrodite Urânia”, a dos amores sublimes, a “sem-mãe”, a Celeste, ora como “Afrodite Pandéia”, ou “Pandemo”, a venerada por toda a gente, a dos amores vulgares e eróticos, a da Terra, e mesmo a do Submundo. A esses epítetos poderia ajuntar-se o modificador chruse, “áureo”, visão relativamente comum que se fazia da “Áurea Deusa do Amor”. Ela era, por essa duplicidade, associada a deusas por assim dizer exclusivas de certos aspectos, aspectos estes que se punham mais bem evidenciados por uma de suas hierofanias. Por isso, associava-se não raro a deusa às Erínias, às Moiras, a Hécate, a Hera etc. Muitos outros são os domínios da Deusa do Amor, que, como se sabe, foi trazida diretamente do Oriente, a deusa semítica da fecundidade, onde era conhecida por Istar ou Astarote (Astarté), sendo que um de seus casos amorosos mais conhecidos  o com Adônis

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(do vocativo semítico, cf. Kerényi, Adoni, “Meu Senhor”)  também deve ser mero recorte do caso de Istar com o babilônico Tamuz. Assim, por exemplo, Karl Kerényi aponta, em Os deuses gregos, entre nomes e sobrenomes da deusa, os seguintes principais que a identificam (rememoram e evocam): “Afrodite Zeríntia”, “Genetílis”, “Pelágia”, “Apostrófia”, “Eleêmon”, “Hetaíra”, “Porne”, “Kalligloutos”, “Kallipygos”, “Senhora” (ou “Afrodite Hera”), “Afrodite Enóplio”, “Afrodite Morfo”, “Ambológera”, “Afrodite en kepois”, “Epitragídia”, “Afrodito” (um dos nomes masculinos para a deusa), “Melênis”, “Escócia”, “Andrófono”, “Anósia”, “Timborico”, “Basílis”, “Epitimbídia”, “Pasifessa” e, entre os latinos, “Venus Genetrix” (nascimento) e “Venus Libitina” (morte).

NIX gera, sozinha, entre outros: MORO (destino) TÂNATOS (morte) HIPNO (sono) MOMO (sarcasmo) HESPÉRIDES MOÎRAS QUERES NÊMESIS GUERAS (velhice) ÉRIS (discórdia, emulação)

C.1) GERAÇÃO DE PONTO (E GÉIA): PONTO gera NEREU, o “velho do mar”. NEREU se une a DÓRIS, a Oceânida (filha de OCEANO e TÉTIS), originando as 50 NEREIDAS: ANFITRITE, TÉTIS*, EUNICE, PSÂMATE, DINÂMENE, GALATÉIA etc. * Não se trata de Tétis a Titânida, “Urânia”, mas de outra, a Nereida, como vimos. Ocorre que, por motivos gráficos, houve convergência das formas escritas (e, logo, pronunciadas), resultando numa polissemia  ou homonímia  dentro da língua portuguesa, proveniente, como se mostrou, de vocábulos homeotrópicos. PONTO se une a GÉIA, dando origem a: TAUMAS FÓRCIS CETO EURÍBIA TAUMAS se une a ELECTRA, a Oceânida: ÍRIS HARPIAS: AELE, OCÍPETE e, mais tarde, CELENO.

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FÓRCIS se une a CETO, originando: GRÉIAS (as velhas): ENIO, PEFREDO, DINO. GÓRGONAS: ÉSTENO, EURÍALE, MEDUSA*.

* Há duas variantes acerca do nascimento de Medusa. Um o reporta a certa competição entre Minerva e a Górgona, em que, por vingança, aquela teria transformado esta no monstro que passou a ser. Outra aponta um ato de amor entre Posídon e Medusa ocorrido no templo de Minerva, suscitando-lhe (à deusa), portanto, a ira e a vingança, recaídas furiosamente sobre a mortal.

MEDUSA, decapitada por PERSEU (filho de ZEUS e DÂNAE), gera, com seu sangue: PÉGASO (o cavalo alado) CRISAOR (o gigante) CRISAOR e CALÍRROE (Oceânida): GERIÃO (gigante de três cabeças) ÉQUIDNA (metade mulher, metade serpente) ÉQUIDNA se une a TIFÃO, o terrível monstro de cem cabeças (filho de GÉIA TÁRTARO), gerando: OSTRO (o cão de Gerião) CÉRBERO (o cão que guarda a saída do Hades) HIDRA DE LERNA QUIMERA FIX (Esfinge) LEÃO DE NEMÉIA

e

CRIO se une a EURÍBIA*: ASTREU PERSES PALANTE *Pusemos aqui esta última união por termos, anteriormente, feito o subitem “Geração de Ponto”, de quem Euríbia é filha. Tal geração se desenrolará, todavia, na próxima parte da Teogonia.

C.2) OUTRAS UNIÕES: OCEANO se une a TÉTIS (a Titânida): RIOS: Nilo, Alfeu, Eurídano, Estrímon, Istro, Fásis, Aquelôo etc. OCEÂNIDAS (3000): ELECTRA, DÓRIS, CLÍMENE, CALÍRROE, DIONE, PLUTÓ, EUROPA, MÉTIS, CALIPSO, ESTIGE etc.

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HIPERÍON se une a TÉIA: EOS (Aurora) HÉLIO (Sol) SELENE (Lua)

ASTREU se une a EOS, dando origem aos VENTOS: ZÉFIRO BÓREAS NOTO PALANTE se une a ESTIGE: ZELO (ciúme, emulação) NIQUE (vitória) BIA (força) CRATO (poder) CEOS se une a FEBE: LETO ASTÉRIA PERSES se une a ASTÉRIA: HÉCATE

D) SEGUNDA GERAÇÃO DIVINA (v. 453 - 885): Marcado notadamente pelas lutas entre Zeus, em busca do poder, contra Crono, seu pai. Também lutou o “Olímpico” contra os Gigantes e contra os demais Titãs e Titânidas. Para tal peleja, Zeus contou com a ajuda dos Ciclopes, que, além de lhe darem o raio (Arges), o trovão (Brontes) e o relâmpago (Estérope), deram a Posídon o tridente e a Hades o capacete da invisibilidade. Ademais, os Hecatonquiros, uma vez tendo bebido o néctar, foram tomados de tal ímpeto bélico, que prestaram, também, grande ajuda a Zeus. CRONO se une a RÉIA, de quem nascem: HÉSTIA, DEMÉTER, RÉIA HADES, POSÍDON, ZEUS Ainda da primeira geração, é posta, entretanto, nesta segunda, em que estamos, a união de JÁPETO com CLÍMENE, gerando: ATLAS MENÉCIO PROMETEU EPIMETEU

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Quando EPIMETEU se une a PANDORA (a mulher feita por HEFESTO, o ferreiro, feito este, por seu turno, por Hera, em vingança contra as infidelidades de seu marido), têm início as lutas olímpicas de Zeus. GÉIA se une, então, a TÁRTARO, dando origem a TIFÃO, de que se já falou. Quando tal gigante é fulminado por Zeus, inicia-se seu reinado E) VITÓRIA DE ZEUS (886 - 964): Ao vencer os obstáculos, Zeus reparte com as demais divindades olímpicas suas honras. Nasce, portanto, a DIQUE, a “Nova Justiça”, não mais a justiça dos deuses (Têmis). Essa “Nova Justiça” é (ou será) o presente que Zeus lega (ou que bem haverá de legar) aos homens. A primeira esposa divina de ZEUS foi MÉTIS (sabedoria, prudência), de quem nasceu ATENÁ, engolida pelo pai (de cuja cabeça, contudo, veio mais tarde a nascer). Zeus procedera daquela forma graças a um oráculo que havia previsto que tal filha haveria de ser mais poderosa do que o próprio pai. Adiante, sobretudo em Homero, veremos que Atená se torna a filha dileta de Zeus, que, cedo ou tarde, acaba por atender-lhe a todos os pedidos, como que a deixando “solta” e “livre” no Olimpo para fazer o que houver por bem. A propósito, será esta uma queixa recorrente dos demais Imortais, que vêem naquela predileção um estorvo constante a seus próprios caprichos e vontades. Primeiramente, vamos catalogar as uniões divinas de Zeus, após Métis, que foi a primeira delas, como vimos:

UNIÕES DIVINAS:

ZEUS se une a TÊMIS (lei divina, eqüidade), de quem nasceram*: HORAS: EUNÔMIA (disciplina), DIQUE (justiça), IRENE (paz) MOÎRAS**: CLOTO, LÁQUESIS, ÁTROPOS * Há uma variante segundo a qual, dessa união, também teria nascido ASTRÉIA, deusa da inocência, a constelação de VIRGEM, que se retirou para a Via Láctea  a qual se criara por ocasião do conselho convocado por Zeus aos demais deuses  por causa da decepção causada graças ao estado em que se encontrava o mundo. ** Só agora as Moîras serão personificadas, pois, como se pôde observar, já haviam nascido de Nix anteriormente, na forma de “Destino”, juntamente com MORO e outras divindades (q.v.).

ZEUS se une a DIONE: AFRODITE*

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* Como se pôde perceber, trata-se da variante de que faláramos, segundo a qual a deusa da beleza e do amor não teria nascido (dite) das espumas (afro) causadas pelo sêmen de Úrano jogado ao mar, e, sim, desta segunda geração de imortais, entre Zeus e a Oceânida Dione. O epíteto “Dionéia”, dado a Afrodite, é fruto de tal variante, conforme já havíamos salientado. ZEUS se une a EURÍNOME: CÁRITES: AGLAIA, EUFRÓSINA, TALIA ZEUS se une a LETO: APOLO e ÁRTEMIS ZEUS se une a DEMÉTER: PERSÉFONE (ou CORE) ZEUS se une a HERA: ARES, HEBE e ILÍTIA

UNIÕES COM HUMANAS OU COM HEROÍNAS*: * Retiradas não apenas da Teogonia, mas de relatos de outros classicistas.

ZEUS se une a ALCMENA: HÉRACLES ZEUS se une a ANTÍOPE: ANFIÃO, ZETO ZEUS se une a CALISTO: ARCAS ZEUS se une a DÂNAE: PERSEU ZEUS se une a EGINA: ÉACO ZEUS se une a ELECTRA: DÁRDANO, IÁSION, HARMONIA ZEUS se une a EUROPA: MINOS, SARPÉDON, RADAMANTO ZEUS se une a IO: ÉPATO ZEUS se une a LAODAMIA: 63


SARPÉDON ZEUS se une a LEDA: HELENA, DIOSCUROS (CASTOR, PÓLUX), CLITEMNESTRA ZEUS se une a MAIA: HERMES ZEUS se une a NÍOBE: ARGOS, PELASGO ZEUS se une a PLUTÓ: TÂNTALO ZEUS se une a SÊMELE: DIONISO ZEUS se une a TAÍGETA: LACEDÊMON

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Um pouco de Tempo

Os povos ágrafos possuíam uma relação mais próxima ao proferimento das palavras. Cada vez que isto ocorria, a própria coisa nomeada era trazida magicamente à luz, ali, na hora, presentificada, como está na moda dizer em meios acadêmicos. Palavra não era exatamente o símbolo, mas a res. Por isso os aedos eram respeitados como reis  sem trocadilhos greco-latino-portugueses (como basileis) , porque traziam, em sua Voz, Foné, a origem (ovo) da Revelação (aletéia poética) daquilo que precisava ser revelado, sem o que não haveria a Glória, que é Desvelação. É, mas os aedos tinham já na época umas concepções próprias de infinito que lhes dava a graça da arte em sujeitos sensíveis e sensibilizados pelo tom. Era, no entanto, fundamental que se dominasse a origem da palavra, cuja origem e originalidade vem da boca  a palavra oral. Os aedos eram tidos na conta de reis porque revelavam as façanhas e as presentificavam pelo fato de dominarem a palavra que as ritualizava em representações. E quem dominasse pela descrição a origem fazia duas benesses: uma, provar que conhecia, e, portanto, vivera aquilo que fora descrito, pois que se não o tivesse conhecido não teria podido descrevê-lo; a outra, o fato de que dava à audiência o domínio completo sobre a coisa descrita (e descrever era o mesmo que trazer naquela hora à luz, ali mesmo, diante do pasmo e da Glória de todos, a pujança da coisa, da res), domínio este que já havia sido aprisionado devidamente por este herói de toda a gente  o aedo, poeta-cantor, o que revela (por isso a atividade é poética) e o que distribui seu achado revelante  genetrix , passando pelo sentimento (atividade estética), a todos os que o cercarem de admiração (por isso poeta-cantor). A música tem três funções: revelar, divertir, criar cenário para reconhecimento e admiração justos. Mas tem uma quarta também: inebriar  como o vinho e a bebida da Ilha dos Lotófagos, na Odisséia de Ulisses, a racionalidade, para que se desenvolva uma inteligência mais alargada, evitando que tal alargamento precise ser operado por meio do desespero. A música substitui o desespero. Não é mais o desespero que precisa alargar a minha percepção para o infinito, porque o adormecer da racionalidade também se concretiza com a revelação lúdica e admirável da música. Este é o sagrado papel do espectador. Voltando aos aedos, a audiência não necessariamente sabia que havia aquela resposta ali revelada, porque o nicho da pergunta não havia sido escavado em rocha. Digo: aprendiam coisas que nem sabiam que deveriam aprender. Ultrapassavam, pois, o aprender. Não buscam, mas recebem! Vem-lhes como unção dos deuses. Para outros a revelação já havia sido feita, por isso o artista lhes faz apenas re-revelar. O grande  não único  papel da audiência era receber o que nem sabia que deveria receber. A Metarrevelação. Eis porque um artista precisa ser admirado: está nas origens de seu sacrifício, sacro ofício, o farmacon apenas se revela para ser aplaudido, já que, ao ser cônscio de que traz uma revelação (ainda que metarrevelação, o que pouco importa), é igualmente cônscio da relevância imaterial daquilo que traz, o que pressupõe, não apenas acarreta, portanto, admiração. Conhecendo ou reconhecendo é ponto passível de admirar-se, pelos outros 

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que me liberte a gramática histórica desta voz passiva pronominal com agente da passiva! , e admirar-se por si mesmos. A Meta-admiração. Este artista não é tão-só um protomártir vazio, que aja em vão. Nenhum artista quer sê-lo em vão, porque são deuses que sabem, e muitíssimo bem, a divindade que trazem consigo, em suas palavras. Ninguém menospreze este homem, porque ele traz o fogo dos deuses do Olimpo Eterno. Era assim, é assim. Será. Mas a História segue. Com o alfabeto, a palavra deixou de ter um pouco daquela força primitiva. Por ser aprisionada. Não apenas aprisionada, mas sobretudo arranhada nas entrelinhas da celulose ou de sabemos lá bem o quê, do tipo, as pedras ou tábuas, enfim. O que redunda em prisão. Mas, por ser aprisionada, ganhou em força o que perdera em intensidade (entende?), porque passou a precisar, subjugada, do que não precisava até então: libertar-se. Por ser primitiva  o primitivismo sempre salva tudo de influências externas , aquela força adormeceu invicta, apenas rindo por dentro da tentativa que arrogantes mostravam diante dela. Todavia, esses arrogantes adormeceram a fera das palavras, levando-as à NãoMemória (que os gregos chamam lesmosyne), uma vez que a Memória é, por definição, a presença-pujança de Deuses, que os gregos nomeavam segundo manifestações sempre acarretadas em suas vertentes humanas  os arquétipos. Eu diria que é como a esfinge calada pelos decifradores, do tipo a geração de Édipo, causadora de maldição de guénos cortada pelos olhos furados de Jocasta (palavra cuja etimologia significa “mel” e “veneno”), pelas mãos de Antígona, pelo vaticínio do cego Tirésias, pelas mãos lavadas de Creonte, o Pôncio Pilatos da sociedade dramatúrgica de Sófocles e de todos nós. O preço pecuniário pelo pecado seria alto. Pecúnia e pecado. Agora nos libertamos daquele elo etimológico-vital pecus. Não somos mais gado, sem pecuárias. Portanto, aquele que  eis os argonautas de hoje, eis-nos, homens Clássicos do Século XXI, Guerreiros Gregos da Civilização Cibertrônica, os Cavaleiros medievais com a lança nua da Palavra Velocirraptor , aquele que dominar as origens daquele que dominou as origens da palavra (que era, aí, oral), há de dominar a própria força latente-divina daquele palavra primitiva e, portanto, há de dominar o Seu Deus, Uno e Ele, porque domina a Essência  e só o há em Seu Deus  de tudo o que houver. Precisa-se então dominar a palavra escrita para dominar-se o que dominou a palavra falada, que foi (será?) a própria palavra escrita. (Peço vênia para confundir-me sempre com a temporalidade no campo dos gregos.) Neste momento, teremos em nosso poder toda a força latência-realidade (que é a consumação-resguardo) que nos trouxe, de nossas origens, até nossa Glória atual  o Eu que nos habita e nos mantém. Com o fogo do dominador é que se acende a chama adormecida do dominado. É óbvio, pois ele foi dominado em sua chama por uma chama decerto mais pujante, que, pois, deve ser encarada e agigantada. Não se deve subjugar um dominador, mas unir-se a ele para, dele, tirar-se a força atávica que lhe permitiu poder vencer aquilo que nos daria  e dará  o sustento de que precisamos (no presente e no passado, e um é “portanto” do outro). É a descrição da força dominante que nos permitirá recorrer à prisão do domínio da  liberdade. E todos precisamos do domínio.

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A palavra-chave é esta: precisamos. E também aprender com a força do inimigo, aquele que dominou, porque o pôde, o que nos sustentará: nossa casa. Ele acaba de deixar de ser meu inimigo. Dançará comigo como amigo. Enfim, sugar dele o que ele soube retirar de nossa origem. Ele é a flor que, por meu trabalho, se converterá em mel. Dar à palavra escrita a força atávica de sua ancestralidade subjugada: a palavra oral. Como a esta última foi assimilada e somada a ancestralidade simbólica. Uni-las, unir-nos a elas, dominar sua indecomponibilidade. Muito mais que vivê-la, descrevê-la. E muito mais do que tudo isso: dizê-la.

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Eu nasci no lodo

Dizer, falar. Falar, de fabulare: fábula é verdade. Andersen e Beethoven! Do que preciso quando falo “Romance”? Antes de tudo, independentemente de entender, eu preciso e tenho vontade, agora, de perguntar o Romance. Criar matéria, criar lama, pedir material informe para a argila da criação. Criar meu Adão. Dele, criar minha Eva. Perguntar é o que me faz neste sempre respirar. Cria-me timbre. Do que preciso quando pergunto “Romance”? Do que preciso quando pergunto? Do sumo da flor de Puck ou do casamento real de Hipólita e Teseu, duque de Atenas? Preciso de...? Se eu disser “namorado”, que é a doxa de Platão, o degrau intermédio da escada, precisaria eu empreender uma tarefa de carpinteiro? Teria eu vislumbrado o fato de que o namorado concreto precisa de um processo de carpintaria também da minha parte? Não de pintura, mas de carpintaria? Será que o trabalho do homem é ser São José carpinteiro? A metafísica não é estúpida, mas o metafísico consegue não raro sê-lo. Aliás, a função do metafísico é ser estúpido. Até deixar de ser. A metafísica é um espelho límpido, por isso mesmo é que, se a sua imagem for horrenda, o que você verá neste espelho só poderá ser horrendo. A metafísica é como aquele momento raro em que Shakespeare é metateatral, e Hamlet fala por ele: o drama segura um espelho para a natureza. A metafísica é o drama humano. Em todo meta- há a proteção do radical subseqüente. A metalquimia (o termo é meu, mas já usaram o que penso estar pondo em designata METALQUIMIA com várias outras designatas) a metalquimia de um Paracelso, de um Trithenius, de um Goethe são capazes de proteger a arte da transmutação hermética? Estarei delirando tanto quanto São João ao escrever o Apocalipse? Ou tanto quanto Alexandre Baumgarten ao escrever, em 1750, seu Aesthetica? Ou será que o templo das minhas certezas desmoronou impiedoso quando gritaram “Romance!” e eu nem ouvira, embora ele se tenha apaixonado por mim? Desmoronou ou derreteu? Estarei diante do templo de Afrodite amado por Heidegger? Nem tanto ao mar, nem tanto à terra? Tens procurado um namorado ou um espelho? Ou uma tela em branco? Ou madeira, matéria, maternidade, maturidade? Tens cuidado, para isso, de tua própria imagem? Não queres segurar espelho algum? Ou tens segurado um espelho sujo? Ou uma tela em branco manchada? Queres apenas que lhe empunhem um espelho? Tens de participar... Tens de ter matéria para a criação. Tens de ter argila do mangue, tens de ter madeira da floresta. Precisas, para criares, de matéria. Temos de administrar o nosso mangue e o nosso oceano. Um não vive sem o outro. Os químicos Louis Pawels e Jacques Bergier, professores da Universidade de Sorbonne, em “Le matin des magiciens” (“O despertar dos mágicos  Introdução ao Realismo Fantástico”, Bertrand Brasil, 23a. ed., Rio de Janeiro, 1989), parafreaseando um outro cientista, Nobel de Física, dizem uma frase realista e fantasmagórica: Deus só falará com você quando você tiver um rosto para lhe apresentar.

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Você tem procurado exclusivamente espelhos, mas talvez tenha se esquecido dos “três degraus” do seu próprio rosto. Episteme, doxa e eikasía. Zeus, Netuno e Plutão. Mangue e oceano. Ou talvez você tenha interpretado Platão como um matemático da década de 50 o interpretaria (tipo de exegese que já esteve em voga), e, talvez, como caricatura de Platão, você esteja querendo ter um rosto matemático, como uma pintura egípcia, isto é, você pode ter interpretado que o ser humano ideal é uma seqüência de equações , traços “limpos”, irreais, sorriso “corrigido” pelo programa de correções de imagem de um computador divinal... Tens legado à tecnologia o papel “superior” ao da Natureza de Deus?... O extrato do homem, muito mais do que matemático, é metamatemático. Este sumo de flor nem Puck seria capaz de ministrar com enganos ledos e comediógrafos... O seu deus é semelhante ao anão do Mágico de Oz, ostentado por maquinarias de parafernália lúdico-fantástica... Sim, deve haver diversão. Por isso todo rito religioso é, também, diversão. Todos eles celebram a criação. Por isso a dança, a música, os ornamentos, as beldades, a maravilha. Romance é diversão. Mas também o sacrifício, a penitência,  a criação da matéria informe para a Glória da ascensão. O romance não é só lazer. Não é só diversão. Como toda criação humana, como toda arte, o romance é matéria-vida. Isto é Metarromance. Se só levássemos em consideração o aspecto lúdico de toda criação diríamos que Michelangelo e Donatello e Rafael e Da Vinci estariam exclusivamente preocupados com um suposta função propedêutica de “educação para o futuro” pela brincadeira e pelo jogo em suas criações. Compartilho, aqui, da indignação de Ernst Cassirer. Delere cum delectare  aprender deleitando-se: como diria Horácio  sim. Para educar, sim; para todas as coisas  NÃO. Para a arte de amar... Nem tanto à terra... Ao mar, nem tanto... ¼ de terra e ¾ de mar. Quase uma “receita”. A equação universal não é “sucessivista”, nem dialética, nem antitética, nem “complementarista”, nem indutiva, nem dedutiva, nem opositiva. A equação universal é SIMULTANEIDADE. É preciso que criemos uma personalidade superior simultânea para derretê-la sobre nossas cabeças. A minha catedral não submerge, mas derrete sobre mim. Eu não pe\co filas, eu exijo, de mim, colunas. O divino desce a nós e nos enche a taça de êxtase, ampliando nossa sensibilidade para um fora que, somente agora, pode incluir a presença do outro, no meu sonhado romance. Se você somente “sonha”, pode não estar tendo acesso a nenhum tipo de matéria com a qual a criação poderá se realizar. Não basta subir à gávea do navio... O divino dá vida ao material. O sagrado dá vida ao profano. Eles se amam porque um se complementa no outro. Não se trata de tese/antítese  síntese. Trata-se de inspirar, expirar, inspirar, expirar... Trata-se das asas do pássaro, que, subindo e descendo, causam espontaneamente, agora, o vôo da ave, deixando-a em equilíbrio. A síntese da respiração é processual, e não pára, não pára, não pára. O homem precisa do divino, e o põe  ainda que o negue a ferro e fogo  em mãos tão numerosas quantas são as de Brahma, Vixnu e Xiva, a trimúrti hindu. Como diria Marx, quem não se prostra diante do divino se prostrará ante um “divino” qualquer. De preferência o capital, o dinheiro. Se você se prostrar exclusivamente diante do

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dinheiro, não terá nada de divino em si, e procurará um romance como um cidadão que procure pés de alface na Lua. A Divindade Verdadeira só lhe falará quando você lhe apresentar o seu ROSTO. Ela segurará o seu espelho Infinito, que é feito de aço de diamante. E esteja pronto para lhe retribuir segurando-lhe um espelho de semelhante jaez. Esta é a celebração mútua. Esta é a luz do Sol  a luz da Lua. Talvez você “sonhe” em transformar o seu próprio rosto em , ou em , um coeficiente de dilatação térmica qualquer, uma raiz dúplice dialética, incerta, indefinível, uma cosmologia esférica como o universo. Você precisa definir para que seja tocado pelo “ponto de mutação”, a pedra filosofal, a taça e a patena da hóstia e do vinho, o Espírito Santo, o êxtase dionisíaco, a apoteose, a ascese, o TAO da física. O coeficiente .

O poderoso feminino  Apolo ou Dioniso?

Meu amigo, o mal está no fato de que cada complexidade quer você de corpo inteiro. Cada muro o faz desviar inteiramente. Ou, antes mesmo disso, digo-lhe que o mal está apenas se você se entregar de corpo inteiro a tudo. Sempre digo que o mal nunca está no mal em si, porque isto não existe. O mal está na entrega, na interpretação, na fala. Ocorre-lhe, se a entrega realmente acontece, algo semelhante ao que aconteceu na peça de Eurípides As bacantes, furiosas despedaçadoras de pessoas e animais, que arrancavam para todos os lados as partes de quem lhes caísse sob o poder. Também algo semelhante se dá no mito de Diana e Actéon, em que este, um famoso caçador, flagra a deusa tomando banho, e ela, com ódio por tamanha intromissão e curiosidade, transforma o caçador em caça, e ele é despedaçado pelos próprios cães que levava. Reparem que, nos dois casos, os agentes que despedaçam são mulheres, que devemos interpretar como o feminino: entrar em contato com este feminino pode despedaçar aquele que não souber ser amoroso, afetuoso, cordial, em vez de meramente curioso, impertinente, indiscreto. O feminino tem em nós, antes de tudo, o caráter de prevenção, de aviso. Também de acolhimento no nascer. Mas, neste momento, enfatizo o lado ativo do feminino, o seu poder da Verdade, semelhante ao próprio parto, não ao acolhimento futuro que a este fruto do parto se endereçará. Não estou falando do aconchego. Falo agora do poderoso feminino. O mundo sempre quis, de uma maneira ou de outra, tapar os olhos ao poderoso feminino, por medo de seu poder de prevenir a respeito do perigoso dilaceramento. Esse medo do feminino ocorreu, certamente, por duas razões principais: assim como ocorre com as vítimas das bacantes e com Actéon, o caçador-caça, o ser humano que não souber olhar para o feminino, homem ou mulher, será estraçalhado. O medo, portanto, fez com que a sociedade, inconscientemente, fosse deixando de lado a essência do feminino. Outro fator principal é o fato de que o feminino está também nas águas turvas e escuras da complexidade (porque ele está em tudo), assim como estava nos cães do caçador

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Actéon, que obedeceram à ordem de Diana, o feminino. Portanto, na própria tentativa de resgate de tais águas, na tentativa de fuga dos cães de caça, preferiu-se optar exclusivamente pelo masculino, já que este é mais, digamos, claro, apolíneo, visível, não podendo o dionisíaco feminino ser tão bem investigado quanto o seu oposto dialético. Preferiu-se, por assim dizer, não se encarar de nenhuma maneira o feminino. O que acontece, na verdade, é que o feminino precisa contar com o masculino, e vice-versa. Mas o ser humano “entendeu” que uma força exclui a outra... Que o feminino dilacera por si só. Eis o equívoco. O feminino precisa, de fato, da ajuda do masculino, mas isso não significa que deva desaparecer por causa de tal masculino. Não significa que não deva ser encarado, mas significa que precisamos mudar a nossa forma de o encararmos. Este é o equívoco-mor, se posso assim dizer, das sociedades: tapar a visão e o sentimento do feminino, por medo do dilaceramento. Em primeira instância, isso é semelhante a alguém que quisesse impedir que uma carta chegasse ao destinatário “matando” o carteiro. Outro carteiro viria... Toda mensagem chegará, com ou sem carteiro, da maneira como for. Não é o carteiro, vivo ou morto, que impede a chegada da mensagem. Toda mensagem chegará. Não há nada oculto que não venha a ser revelado. Não adianta voltar-se contra o feminino, porque a sua mensagem implícita, seja como for, chegará. O ser humano flagrou Diana em seu banho, foi dilacerado pelos próprios cães (que indicam fidelidade à humanidade), e, agora, ficou com medo, preferindo nunca mais flagrar Diana. Só que Diana continua existindo, e, se nós não aprendermos a encarar a Deusa com olhos de amor e paz, e continuarmos simplesmente fingindo que ela não existe, um dia, quando, “sem querer”, flagrarmos de novo aquele banho, em algum lugar que não poderíamos sequer prever, enfim, se não a soubermos olhar, ela nos despedaçará da mesma forma como fez a Actéon, com seus “fiéis cães de caça”... Não adianta “fugir” da Deusa, fingir que ela não existe: é preciso que se aprenda a COMO OLHAR A DEUSA. Muitos outros fatores convergiram para o enfraquecimento do poder feminino em todos nós. Há razões mais diretas e históricas, de cunho pecuniário (a mesma palavra em latim que deu “pecúnia”, isto é, “dinheiro”, deu “pecado”: ambas vêm de uma raiz que significa “gado”, “pecuária”). Trata-se da passagem do poder matriarcal para o poder patriarcal, ocorrida há tantos séculos, que nem se pode com muita precisão determinar a data. Tal passagem “precisava” de uma mulher submissa, obediente ao marido, porque a descendência da família e toda a linha de herança e sucessões dependiam, agora, do nome e do sangue do pai, não mais da mãe. Nesse tempo, uma mãe que tivesse liberdade e filhos com vários homens representaria o “caos” naquele novo sistema em que o homem, repito, determinaria a estirpe, a linhagem da prole e a sua herança “devida”. A obediência, a servilidade e a subserviência da mulher ao homem foram uma necessidade DO HOMEM, não da mulher. O homem precisava dessa “garantia” para que soubesse, sem sombra de dúvida, que os filhos daquela mulher eram DELE e não de outra pessoa qualquer. Por isso é que se repudiava tão severamente a prostituta, porque ela guarda em seu arquétipo o poder feminino da LIBERDADE. (Lembro que o nome latim de Dioniso, o Baco, era Líber... Além desses, muitos outros nomes tem o deus do recôndito feminino, deus da civilização, da remissão de faltas, da expurgação dos “pecados”, do “deus em si”, como revela a palavra “entusiasmo”: Brômio, Iaco, Zaqueu etc.) Por isso também, como no oposto dialético, natural à terra, do repúdio à prostituta, havia as prostitutas sagradas, hierodulas, hetaíras, responsáveis pelo fogo, vestal, do feminino secreto. Esse arquétipo 71


engloba o poder ancestral de liberdade do feminino. A mulher  o feminino  detém o monopólio do parto, da vida. Liberdade e libertinagem são as duas cores da face feminina, repudiadas/veneradas. Líber... Portanto, com esse “medo” da mulher, cuja “sombra” exala antes de tudo o poder libertador infinito da própria liberdade de ação que caracterizava a mulher, podendo-se confundir mesmo com libertinagem, e que despedaça a ousadia desenfreada, com medo disso, portanto, repita-se, é que se construíram as sociedades humanas, oriental e ocidental. Elas foram construídas em cima do medo do feminino. Posso ousar dizer que oriente e ocidente têm, em comum, mas não exclusivamente, este fato: o feminino relegado a segundo plano, e, em ambos os pólos, pelo mesmo medo, da dilaceração e da falta de clareza. Afora o fator pecuniário, que já mencionei, o medo de encarar o feminino, e conviver harmonicamente também com ele, ao lado do masculino, se dá, portanto, pelo fato de que o ser humano, afogado em pensamentos teóricos de todas as origens imaginárias, pretendeu “extrair” deles tão-somente os traços visivelmente claros, sem se dar conta de que tais traços têm o objetivo, exatamente, de fazer com que o segredo do feminino tome forma. A clareza do masculino só existe para se casar com o feminino e, JUNTOS, possibilitarem o nascer da verdade. Como relegar o inconsciente se o consciente existe para que, unidos, digo mais uma vez, consciente e inconsciente dêem ao mundo a verdade? O feminino por si só não é claro na acepção corriqueira da palavra. O feminino é rico, riquíssimo, tem milhões de possibilidades dentro de si. Na verdade, o feminino tem TODAS as possibilidades de solução e de milagre dentro de si, e, portanto, não poderia ser claro  é como um raio com TODAS as cores do arco-íris. Cabe ao masculino torná-lo compreensível. Não é preciso dizer, para este objetivo-mor, quem veio antes, quem veio depois, masculino OU feminino, quem dá origem a quem: ambos nascem JUNTOS  MASCULINO E FEMININO. A teoria da linguagem nos ajuda na ilustração do que digo. Lacan pode continuar dizendo que o significante (estrato físico) é anterior ao significado (estrato significativo), Saussure pode continuar dizendo que o significado é anterior ao significante. Nessa roda de “quem veio antes, ovo ou galinha?”, digo que tudo veio JUNTO. É da tentativa de separar em “antes” e “depois”, e na tentativa de se dar importância maior a tal ou qual fator, que nasce a cisão da crise existencial e da falta de paz. É por tentar escravizar um ao outro que nasce a fenda humana. Na teoria da linguagem, a discussão pode ter valia, e digo mesmo que seria bom que assumíssemos, mais ou menos, tal ou qual postura regular. No caso da verdade, apenas posso dizer que só a união é o caminho lúcido e racional, na acepção ampla dos termos “lucidez” e “racionalidade”... Pensamentos pseudorracionais fiquem no almoxarife, nunca me alimentarei deles, embora os possa ver, só agora, com toda a clareza do universo, que é a clareza da paz da Romancidade. Esta clareza me permite ver que eles se debatem e entram em conflito de tal maneira, que, se eu me predispusesse à entrega completa a eles, me despedaçaria. Ouça todos os pensamentos filosóficos pseudorracionais que você puder, mas nunca se entregue de corpo inteiro a eles, que são o exemplo claro de que a verdade não se presta a cisões, a rachaduras, porque rachaduras despedaçariam como as bacantes fazem às vítimas ousadas que se jogam de corpo inteiro a seu domínio. Os cães que você leva devem servir a você, nunca devem despedaçar você...

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Ainda que você não veja o poder destrutivo das correntes que entram em conflito, o feminino  bacantes e Diana  está em nós para nos REVELAR o poder destrutivo que nós, com teimosia, não enxergamos. Bacantes e Diana justamente lhe avisam que a insolência o destruiria. Elas são o lado ativo da nossa porção feminina. O feminino é o poder de adaptação, de invenção divina, de revelação, de cura, de aceitação e transmutação, de liberdade e finalmente de amor. Ele não pode ser “claro” na acepção maniqueísta do ser humano, porque ele investiga os mais sigilosos recônditos da alma, do espírito, do corpo, da mente, dos olhos, de toda a essência humana e divina, e faz um julgamento perfeito sobre as necessidades e carências daquele ser investigado. E, então, fornece o que for necessário e o que está carente dentro dessa mesma essência, promovendo, com isso, a cura total. Por isso é que o feminino é a essência transparente e prática do milagre. Como ele poderia ser “superficial”, “linear”, “claro”? Como você “explica” um milagre...? Se for pseudorracional, de muitas “maneiras”... Sabemos que op feixe de luz “visível” é uma espécie de analogia do infravermelho e do ultravioleta, este último de dimensão infinita, raio gama, raio X etc. Você julga as “coisas” por aquilo que vê, exclusivamente? Talvez seja necessário um adejo em Física, Matemática, Metafísica, Metamatemática. Ritualize-se, eduque-se para a Romancidade. Sem isso, eis um ser incompleto. O feminino precisa do masculino, que este sim é linear, claro, superficial, para se expressar. Homem e mulher UNIDOS permitem a fecundação e o nascer da verdade. Estão JUNTOS, não “antes” ou “depois”. Então, acredite, você e eu fomos treinados, desde sempre, para termos medo do feminino, até para repudiarmos a sua liberdade (o exemplo desse repúdio está no tratamento social “oferecido” às prostitutas, e às “bruxas” da Idade Média  fogueira, execração), porque ele ameaça o status quo da sociedade patriarcal, com a sombra da liberdade feminina a pairar sobre todos nós, e, ao mesmo tempo, ameaça nossa integridade anímica, se formos insolentes ou se nos entregarmos às correntes do conflito, assim como as bacantes e Diana ameaçam a quem for orgulhoso diante delas. É preciso RESPEITO pelo feminino. É preciso MUITO respeito pela Deusa! Todo amor é preciso.

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Jesus diante do poderoso feminino: Santa Maria Madalena.

Jesus tantas vezes se reportava com imenso respeito às prostitutas... Ele as amou. Quem não tiver pecados que lhes atire a primeira pedra...  disse. Por que será? De onde vem tanto respeito e consideração e, sobretudo, tanto amor às prostitutas? A liberdade feminina é capaz de revelar todas as coisas, e a sociedade tem imensa cautela diante do feminino, porque aqui está toda a cura do universo, todas as respostas. Confinou-se o feminino, limitaram-se-lhe as atuações por medo da revelação enorme que ele proporciona. Outro medo é o da própria dor que a verdade ocasiona no ato de seu nascimento. A verdade nasce, mas não nasce sem dor. Por isso o feminino precisa do apoio masculino para não sucumbir, ele próprio, feminino, diante da dor que o parto representa. A responsabilidade do parto da verdade é do poder feminino, mas sem o poder masculino essa dor seria inviável. Ocorre assim: Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida de Sol, a Lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz. (Apocalipse, 12, 1-2) A ajuda do masculino é fundamental neste momento de parto, é o “domínio” masculino, que deve ser entendido como “auxílio”, nunca como “subjugo”. [Deus] disse também à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. (Gênesis, 3, 16) Na verdade, este versículo deve ser entendido para cada um de nós, sejamos homens ou mulheres. O nosso feminino sofre uma dor de parto para dar à luz o conhecimento divino, a essência da verdade, da cura geral, e, portanto, deve estar sob domínio do masculino, que ajudará na consumação do parto. O domínio não significa subjugo ou escravidão, repito, mas é sinônimo de auxílio, ajuda. Estar sob o domínio significa contar com a ajuda, a providência, o socorro, o trabalho do masculino. O masculino ajuda o feminino, não o afoga, nem se despedaça... a evolução do domínio é o auxílio. Sejamos homens ou mulheres, todos nós precisamos do masculino para que o feminino dê à luz as respostas de Deus. Este masculino pode ser entendido, por exemplo, na própria figura de Jesus, que encarnou o verbo divino em forma masculina, de carne, sangue, vida eterna, fixa. 74


O feminino revela Deus, mas, para isso, precisa do auxílio do masculino. Maria foi tomada pela Graça do Espírito Santo, que é a Verdade, e deu à luz a própria Verdade, feita homem entre nós todos. Feminino e masculino estão UNIDOS para que a verdade possa nascer. Só com masculino e feminino, portanto, é que a revelação completa se efetiva. O verbo se faz carne e habita no meio de nós, oh São João. Você não precisa ter medo do feminino, mas lhe previno que tampouco deve ser insolente ante sua presença. Foi a insolência de Eva (do hebraico Hava, que quer dizer vida) que a fez desobedecer a Deus, comendo o “fruto proibido”... Repare que, neste mito original, os dois elementos do feminino estão igualmente presentes: a liberdade feminina (da desobediência), e a insolência do feminino (da mesma desobediência). Um só ato já revelou em si as duas faces da mesma moeda: insolência e liberdade. A insolência leva a caminhos de perdição, mas a liberdade levará a caminhos de vitória recuperada, de “achamento”. Com a insolência, foi-se expulso do paraíso. Com a liberdade, voltar-se-á ao paraíso. E ambos os fatores  insolência e liberdade  nascem do mesmo instante: comer o fruto da árvore da vida. Daqui para a frente, o ser humano deixou de ser UM, passou a ser DOIS. E é neste DOIS que achará as chaves para o paraíso perdido, onde voltará a ser UM, como era no princípio e será igualmente no fim. Foi, portanto, graças ao caminho feminino que Deus proporcionou o caminho humano na dualidade: a confusão da própria vergonha (Adão e Eva, após comerem o fruto, sentiram-se envergonhados de estarem nus; Noé não se envergonha da nudez, como falo em outro livro meu), enfim, a confusão da vergonha do “pecado” nasceu POR CAUSA DA desobediência, que foi insolência, orgulho. O Senhor Deus disse: “Quem ter revelou que estavas nu? Terias tu porventura comido do fruto da árvore que eu te havia proibido de comer?” (Gênesis, 3, 11) Mas foi graças a essa mesma desobediência, que foi também uma liberdade, que, na verdade, DEUS PERMITIU que homem e mulher tivessem “consciência da árvore do bem e do mal”, e ganhassem a faculdade de transcendência, isto é, eles tiveram todas as chaves para o mundo de dualidades masculino-femininas, podendo caminhar no meio do caos imperante sem tropeços, mas com trabalho de mão própria e parto auxiliado, casando novamente feminino a masculino. E o Senhor Deus disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Agora, pois, cuidemos que ele não estenda a sua mão e tome também o fruto da árvore da vida, e viva eternamente”. (Gênesis, 3, 22) No momento em que Deus nos “puniu” pela nossa insolência humana, não permitindo que comêssemos o fruto da árvore da vida, ali mesmo o Senhor já nos perdoava, dando-nos a liberdade, o trabalho, a consciência e a faculdade intrínseca de transcendermos, a volta ao paraíso de que fomos expulsos. A “punição” de Deus foi, na verdade, o perdão divino, que vinha à luz. Junto com o pecado, nasce o perdão. Deus fez assim para que nós o imitemos,

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sejamos feitos também aqui à sua imagem e semelhança, e aprendamos que a insolência revela a humildade, e que só na humildade está a PAZ, que é o PARAÍSO do PERDÃO. Mas voltemos à quantidade sufocante de teorias acadêmicas do nosso mundo, em todas as épocas. São tantas as correntes e pensamentos, épocas e fundamentalismos, que, se você se dispuser à entrega a eles, repito, será despedaçado, pelas bacantes ou por seus próprios cães de caça. Cada uma puxando você para um lado  e seu corpo se despedaçaria. Você seria expulso do paraíso  assim já estamos, desde que nascemos , mas, o que é grave, sem chance de encontrar as chaves que o reabrem. Não entregue seu corpo a nada, não perca o foco da sua lucidez, porque um mergulho poderia sorver você de maneira definitiva, e precisamos de você para que a paz aconteça. Não queremos você perdido nas águas profundas, queremos que o seu cordão à paz o possa sempre guiar rumo à visão clara e lúcida do Portão do Paraíso. Há querubins armados de espadas flamejantes guardando a Porta, postos por Deus, e você só entrará ali com humildade, porque as espadas não permitem a insolência. Atrelado ou não à Bíblia, ateu ou teísta, a sua paz está analogamente num paraíso guardado por querubins armados de espadas flamejantes. Não ache que ali se entra com o orgulho que o seu academicismo fez crescer em você; pelo contrário, ali só se entra sem nenhum orgulho, pois foi justamente este último que nos expulsou de lá, fazendo com que tivéssemos que renunciar justamente a ele, o orgulho, para redescobrirmos a inocência original, que não nos deixava termos vergonha nem de nossa própria nudez, assim como Noé não se envergonhava de estar nu diante dos filhos e de quem quer que ali estivesse, homens, mulheres, racionais, irracionais. Há uma silenciosa corrente de conflitos entre todas as coisas, e é com essa corrente que você vai sendo embaralhado, esquecendo-se de que o objetivo do ser humano é a construção da paz. A paz não é apenas um meio em que o ser humano deva agir, mas, além disso, é o próprio objetivo humano de maior relevância. A paz é voltar ao Paraíso. É o início e o fim. É a UNIDADE recuperada. Deus respondeu a Moisés: “EU SOU AQUELE QUE SOU”. E ajuntou: “Eis como responderás aos israelitas: Aquele que se chama EU SOU envia-me junto de vós.” (Êxodo, 3, 14)

A paz é a eternidade de todos os tempos unidos finalmente num só tempo.

Eu sou Alfa e Ômega (1), diz o Senhor Deus, aquele que é, que era e que vem, o Dominador. (Apocalipse, 1, 8) (1) Respectivamente, a primeira e a última letra do alfabeto grego.

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Você não deve esperar pela paz, você deve fazer com que ela aconteça. Se você simplesmente se sentar para esperar, digo-lhe que ela nunca virá... Você precisa trabalhar: Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar”. (Gênesis, 3, 19) O pó significa a falta de conceitos, a liberdade do vento, o amor. O pó significa a humildade na consciência, único veículo que nos conduz à paz. A paz é proveniente do trabalho, do discernimento para a paz, do objetivo-mor na paz. É a “terra de que foste tirado”. Você tem que retornar a ela. Com o suor do seu rosto. A paz não é apenas algo que já deveríamos ter tido desde que nascemos, mas, acima de tudo, é algo que devemos construir após o nosso próprio nascimento, com nossas próprias mãos, para os nossos próprios corações, corações da humanidade, com o suor de nossos rostos. Somos operários da paz, somos “formigas” da paz. Você só veio ao mundo porque lhe foi depositada uma enorme confiança no sentido de que você trabalharia pela paz. A única frustração cósmica em relação a você seria se você não contribuísse no trabalho da paz. Você nasceu para a paz, todo o resto é bobagem, se comparado à paz. As pessoas acomodadas se lamentam de que não haja paz, de que a paz deveria ter sido dada há muito tempo. “Onde está o Paraíso?” perguntam-se. As pessoas conscientes e lúcidas, em vez de lamentarem-se, conscientizaram-se de que a paz é uma obrigação do aqui e agora, não do ontem, nem do amanhã. Nós nos guiamos pela paz, e, uma vez que ela esteja instalada, nós vivemos e produzimos muito mais fertilmente, agora sim, na paz. Se você tirar o seu coração de todas as coisas e o colocar na paz  tendo-a como objetivo maior a ser alcançado , você verá todas as coisas com outro olhar, e este sim é o olhar que lhe permite o discernimento. Este é o lado masculino, ativo, da paz. Eis o auxílio que o masculino dá ao feminino, é um amparo, não uma escravidão. Masculino e feminino casam-se, nunca poderiam “oprimir-se”... A paz “se cansou” de ficar calada e passiva e, agora, age, tem um poder masculino que a protege e ampara, toma as rédeas da história, e dá aos homens e mulheres as diretrizes acertadas. Enfim, a paz se agiganta e toma o que sempre foi seu reino: o nosso planeta como membro inseparável de todo o universo, cujo centro é a própria paz. Se você perguntasse a Aristóteles, ele lhe diria que o centro do universo é a terra. Se fosse a Copérnico, ele lhe diria que o centro do sistema solar é o Sol, e que a terra é só um planeta. Se perguntasse ao astronauta norte-americano, ele lhe completaria a sentença: “A terra é azul”. Se for a um físico quântico, ele lhe dirá que o universo é infinito e está em expansão. Outros lhe dirão que o universo respira, expandido-se e retraindo-se como um pulmão. Outros ainda lhe dirão que há uma imensa sombra algures, um buraco negro, este sim infinito, que poderia ser uma prova física de Deus... (O que diria Heráclito?) Outros lhe dirão coisas ainda mais fabulosas e verdadeiras, deixando você pasmado e inebriado como uma criancinha que escuta histórias de fantasmas numa noite de chuva, próxima à lareira de um sítio no meio da floresta, fora e longe, muitas léguas, da cidade iluminada por pinguinhos de luz...

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Eu só lhe digo uma coisa, como se estivesse acendendo a luz do sítio no meio da floresta e, como sua mãe, estivesse lhe dizendo: “Muito bem, crianças, é hora de dormir, chega de fábulas fantásticas”... Eu lhe digo: o centro do universo sempre foi e sempre será apenas e tão-somente A PAZ! Desculpem, crianças, se eu quebrei o clima em que vocês se permitiam navegar, um clima de curiosidades e fantasmas, porém a hora não é de dormir, como a mãe diria às crianças que escutam atentas as histórias fantasiosas, mas a hora é DE ACORDAR para a única coisa real  a paz! Você dormia num sono de rocha, e um chamado mais “contundente” era necessário para que você acordasse. Você poderia achar este primeiro momento das mensagens um tanto “contundente”. Eu lhe digo que o amor de Deus por você é tão grande, que, não tendo outra forma de colher seu coração, Deus às vezes é um pouco “contundente”, para que você o escute... Ora, ora, criança, você me chama de “contundente”? Você sabia que, antigamente, Deus falava por meio de pestes terríveis, de montanhas e mares que se agitavam, de raios e tempestades intermináveis e de águas diluvianas?... Hoje, Ele só fala pelo amor, e você ainda o acha “contundente”. Ele somente ama você. Apesar da sua teimosia em não acordar... É como eu sempre digo: se eu quero acordar uma pessoa, mas ela demora um pouco a despertar, apesar do meu chamado insistente, uma hora eu terei que ser um pouco mais “contundente”, falar um pouco mais alto... Só lhe digo uma coisa: não se entregue de corpo inteiro a nada. Estão tentando tirar de você a sua consciência de infinito. Não pense que eu estou lhe “indicando” um novo estilo de vida, uma solução milagrosa para o caos reinante, uma panacéia para todos os males do homem... Não. Eu quero ajudá-lo. Você tem que começar a esboçar seus primeiros passos na paz. Isso significa andar sozinho: ajudado, sim; carregado, não! Não ache que isso é “fácil”, até porque poucos foram os homens que estiveram a seu lado para lhe dizerem isto: só a paz vale a pena. Não é fácil andar sozinho, com ajuda, mas sobre as próprias pernas, comandando a própria vida, guiada pela paz. Você vai encontrar muitos homens lhe dizendo que só o luxo vale a pena, que o dinheiro, exclusivamente, vale a pena, que o status, também exclusivamente, vale a pena etc. Eu lhe digo que, sem a paz, nada tem valor nenhum. Mas a paz só vem do trabalho, porque está determinado que devemos trabalhar para colher o que nos sustenta. É o suor de nosso próprio rosto. E nada nos sustenta tanto quanto a paz. Portanto, seria incoerente se não tivéssemos que trabalhar para o sustento maior, que é a paz. Seria incoerente... E não há leis cósmicas incoerentes. A incoerência está ou na interpretação que lhe deram, ou na ignorância de um fator determinante que lhe tirasse o “conflito”. Porque não há  repito  nenhum conflito nas leis do universo. Porque a lei do universo é a PAZ. Sem conflito. Toda dualidade conflitante é da terra, e só existe com o objetivo de que devemos aprender a UNIR, não a separar. Portanto, quaisquer armas de separação que você vir  preconceito, intolerância, segregação, apartheids etc.  são armas de conflito, e, portanto, avessas à Lei Cósmica  que é a paz. De tais conflitos, você tem que extrair, justamente, a paz.

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Só há uma coisa em que podemos nos entregar de corpo inteiro: a paz, que é a mesma coisa que o amor, que é a mesma coisa que a felicidade verdadeira. A felicidade não está em livros, mas na forma como aplicamos o conteúdo extraído de qualquer coisa da vida, inclusive livros. Muitos livros fazem você extrair bobagem, muitos fazem você extrair bons frutos. Quem lhe revelará um e outro são os olhos da paz. Você não precisa deixar de fazer nada, nenhum livro lhe é proibido; mas você precisa aprender quem é o guia universal verdadeiro  a paz! Então, se você permitir que este livro o toque onde deve  seu coração , apesar da possível “contundência” deste primeiro momento, eu posso lhe dizer que você, aos poucos, poderá se predispor à única entrega válida: amor, paz, felicidade verdadeira. Tenha um pouco de paciência e de discernimento, até com este livro. Neste primeiro momento, leia-o como se estivesse se permitindo uma experiência. Faça como fazemos nos nossos sonhos: desligamos o nosso ego, e, sem bloqueios, permitimos que todos os símbolos humanos e divinos desfilem por nossas mentes, seguindo a sua própria “lógica”, sem “tabus”, sem “censuras”, sem “correntes”. Desligue um pouco o seu ego e se permita, agora, uma experiência. Eu posso lhe dizer que este livro tem caráter experimental, que busca um campo de atuação com que pouquíssimas vezes alguém já lidou. Queremos ter acesso à nossa ética verdadeira, que é interna e tem uma lógica particular, em que está embutida a paz que temos procurado em algum lugar lá fora... É por essa razão que eu preciso que você desligue momentaneamente o seu ego. Não leia este livro como uma ofensa pessoal, mas como um chamado um pouco mais alto a alguém que teima em acordar, para despertar do sonho... porque você não poderá viver eternamente sonhando. Este livro é semelhante ao seguinte: você saiu de casa e esqueceu a torneira do banheiro aberta, vazando água sem parar. Você estava na rua e não se lembrava desse fato. Enquanto não se lembrava, você estava “tranqüilo”, “em paz”... Porque você não sabia que tinha deixado a torneira aberta, que a água vazava. De repente, você passa por uma casa, com janela aberta, e vê, lá dentro, uma torneira aberta. Imediatamente você se lembra, como num milagre, que a sua torneira está aberta também, e que a água vaza sem parar, dentro da sua própria casa. Aquela janela aberta não foi apenas uma “janela aberta”. Para muitos que ali passavam, não significou nada, mas PARA VOCÊ, a “janela aberta” foi um aviso fundamental. Você agora SABE! Você continuaria “tranqüilo” e “em paz”, agora que você SABE A VERDADE, ou melhor, que você LEMBROU A VERDADE? Obviamente, não! Você volta para casa e fecha a torneira, cessando a torrente de águas que aquilo poderia vir a ser, mas que, por sua intervenção, não será. Fechada a torneira, a paz verdadeira  que é fruto da verdade, não de um estado de ilusão proveniente do desconhecimento da própria verdade , enfim, a paz verdadeira reina. Enquanto você caminhava sem saber, você tinha uma “paz” ilusória. Agora, você foi avisado: “Há uma torneira aberta em sua casa...” É impossível que você permaneça “igual” após o aviso. A menos, é claro, que você não entenda o aviso... Você poderia ter passado por mil janelas abertas e não entender o aviso... Você poderia querer fechar a janela daquela casa... Mas a torneira NA SUA CASA continuaria vazando... Mas, se você entendeu o chamado para despertarmos, isso soa em nossos corações de maneira muito análoga àquele aviso da “torneira aberta” dado pela “janela aberta” numa

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casa na rua, que não era nem mesmo a nossa casa. Quem o entende não pode agir da forma como vinha agindo até então. É impossível, amigo. Você não conseguirá, agora que SABE, porque LEMBRA (a paz é semelhante mesmo a uma lembrança), você NÃO CONSEGUIRÁ agir da maneira mecânica e ilusória como vinha agindo até saber, até ser avisado, após ler e interpretar a “janela aberta”, e se lembrar... Viva a realidade, e saiba a maneira de encontrar, nela, a felicidade verdadeira  a paz, o amor. Consulte seu oráculo interno, infalível, e descubra, na sua ética verdadeira, o nome da paz. Este livro é apenas um leme  para muitas pessoas, um leme novo  , mas quem comanda a embarcação, afinal, é você mesmo. A embarcação também é sua. A ética com que você vai lidar é a sua embarcação. Tantas coisas de fora nos são “ensinadas”, que nem LEMBRAMOS, às vezes, que a ética interna e verdadeira não é ensinada, mas floresce como um jardim. E é no centro deste jardim que a paz vive. Este jardim é o Paraíso. Não encare este livro como uma “ofensa”, porque isso seria um ardil da sua própria intelectualidade, que, com isso, quer evitar que você encontre, onde quer que seja, neste livro ou fora dele, o leme que conduz à paz, ao amor, à felicidade. Com ou sem este livro, a paz fulge no interior do seu jardim da ética. Imaginem se o homem que esqueceu em casa a torneira aberta tomasse a “janela aberta” daquela casa da rua como uma ofensa, em vez de como o que realmente é  um aviso! O intelecto quer, de certa maneira, impedir a sua felicidade. Para isso, “pega” aquilo que lhe poderá fornecer chaves e lemes para o amor, e lhe diz que aquilo é “mentira”, “ofensa”, “estupidez”, “embuste”... Para lhe dizer isso, ele lançará mão de todos os preconceitos que você alimentou dentro de você. O preconceito é a maior arama contra a paz e a felicidade verdadeira. Pega você de corpo inteiro para o mundo das éticas exteriores, e faz com que você se esqueça de pesquisar a paz onde ela realmente está: dentro, e não fora. A paz que vem para fora é apenas o transbordamento da sua paz interna. Por isso, eu lhe sugiro mais uma vez que você diga a si mesmo neste primeiro momento: eu não preciso deste livro para viver, mas quero experimentar o que ele diz... Afinal, os cientistas não são aqueles que, justamente, NEGAM determinado fato SOMENTE APÓS experimentarem-no? Experimente este livro. Prove-o. Pode haver uma torneira aberta dentro de você... Critique-se após a leitura. Permita-se uma viagem sem ego. Embarque momentaneamente no sonho. Se este sonho às vezes se transformou em pesadelo, violento e contundente, saiba que o pesadelo não dura para sempre. Você vai acordar também dele. O pesadelo pode ser também o aviso de que algo precisa ser investigado. E eu já vejo você DE CORPO INTEIRO apenas na paz, no amor, na felicidade verdadeira. Usufruindo todas as coisas do mundo, mas com o corpo, o coração e os olhos na paz. Você pode ter todas as coisas do mundo. Mas não deve dar a elas o diploma de suas senhoras. A sua senhora é a paz. Todas as coisas do mundo giram e brincam harmonicamente em volta da paz. Até mesmo os fantasmas das histórias que escutamos à beira do fogo, no sítio lá na floresta, longe da cidade, até eles, fantasmas, brincam em torno da paz. Dê o diploma de senhora àquilo que constrói todas as coisas, o centro eterno do universo  A PAZ.

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O centro do universo é a paz. Ela se projeta no amor e na felicidade. Aristotélicos, copernicanos, cartesianos, céticos, epicuristas, estóicos, empiristas, espiritualistas, cientistas, ateus, teístas, pré-socráticos, platônicos, politeístas, fetichistas, racionalistas, idealistas, fundamentalistas, cristãos, não-crtstãos, pagãos, libertários, amadores e profissionais, todos os credos e todas as descrenças, dêem as mãos. Embarquem sem ego. Fechem a torneira. Uma trégua... Só a experiência poderia permitir uma eventual e futura negação. Já negar a própria experiência é negar a possibilidade de infinito. Não negue antes de conhecer o que não o machucaria. Negar sem conhecer algo inofensivo é embuste do intelecto... Ele não quer que você ache seu jardim secreto. Pega os seus preconceitos e com eles monta uma muralha absurda. Vamos seguir uma investigação interna? Vamos nos lembrar de que a paz é o centro de tudo, o interior? Não é possível viver SOMENTE das coisas de fora. Isso é um sonho, um pesadelo... Isso sim é contundente e violento... Isso é uma torneira vazando água sem parar... Este livro é “só” uma janela aberta, numa casa qualquer da rua, através da qual se viu certa torneira aberta escorrendo águas... águas... tantas águas... Não sei como você interpreta esta janela. Eu a interpreto como um apelo loquaz para o cuidado com a ética. Eu a saúdo com o coração despido. Minha ética é uma pedra de rubi viva. Viva a mulher!

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Percepção divina ou coragem?

As duas coisas. Aristóteles fez com que dissessem  Aristóteles! Aristóteles!  que o papel do artista é melhorar o modelo. Melhorar é definir? Somos artistas ou carpinteiros? Arte é tudo isso menos a Divindade? Disse Aristóteles romanesco que o natural não está pronto, mas o artista lhe imprime a marca da perfeição, do belo. Que o belo é belo e que o feio é feio. E talvez também que só é belo o que está acabado, pronto. Mas será que um Wolfgang Iser não se contristaria  com razão  ao perceber, levado por mentes pregressas, como a de Edgard Alan Poe, ou de T.S. Eliot, ou de Walt Whitman, que o processo da criação “pronta” se expande, respirando, com o receptor, com o espectador? Será que o metarromance já não está prevendo que eu deverei estar PRONTO, rosto pronto, para poder, só então, segurar um espelho de diamante e, finalmente, respirar EM HARMONIA com um parceiro platônico ideal e feito de carne osso e sangue? Quando a obra está pronta, só agora poderá ser tocada pela metanóia, pela pedra filosofal, pelo coeficiente TAO, e ganhar vida. Quase Pirandello, Pinóquio, verdades e mentiras, essências e aparências em dança... Assim é se lhe parece... Coragem para CRIAR em cima das mil possibilidades. Fazer, do possível, o fato. Coragem para acreditar. Perceber, sim; mas ação de crer. Vontade  fato. A viagem nunca está pronta, acabada, apenas há portos para que o navio empreenda suas constantes pontes água-terra. O metarromance é feito de muitos romances. O navio não foi feito para um “chegar-pronto”. O navio foi feito para navegar. Navigare necesse est. Navegar é preciso. O navio-você é o metarromance potencial, porque lhe faltava, ainda, a ponte do outro. Pontes e uma só Ponte Eterna. Deuses e um só Deus. Nada está pronto, e é com isso que eu preciso me conformar. Tanto quando me digo “Romance Eterno” como quando me digo “Realidade Agora”. Metarromance e romances de entressafra. Aprontar... que desprezo  pelo menos aparente  pelo não-pronto. Pela matéria do mangue, pelo lodo vivo, pela lama pós-diluviana de Noé, Cam, Sem e Jafé, que deram vida nova a toda a terra, pela lama sagrada do Ganges, do Nilo, da serpente Píton... de casórios e casamentos, celebrantes férteis. Será que no plano de Aristóteles os homens eram míopes, como eu, e lhes bastaria terem “aperfeiçoado” os óculos? Será que a Oftalmologia teria extinguido os problemas filosóficos e metafísicos de um punhado de séculos irrequietos? Será que o grande problema de existência e filosófico poderia ser resolvido se tivessem pensado numa metaoftalmologia? Será que Monet resolveu a pendenga estagirita desfocalizando de vez a própria tabula rasa da obra de arte, sem que houvesse qualquer “necessidade” de óculos para “aperfeiçoála”? Será que temos finalmente uma permissão para amarmos o desfocalizado alheio? Quando será que vão perceber que o sagrado de qualquer âmbito existe para dar vida ao profano? Será que quem vai focalizar e definir o alheio serei eu com minhas mãos de carpinteiro? Será que o sagrado outro precisa da minha pedra filosofal para ser o profano eu? Será que eu só serei sagrado quando o outro se fizer profano para mim e segurar o

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espelho de diamante à minha face em Luz? Será que é fato que os olhos precisam das mãos para se alimentarem? Ou será que estamos apenas discutindo opostos? Será que Fukuyama acerta ao cantar a morte de Deus? Hegel a morte da História? Pirro e Sexto empírico a morte do sentido? Qual filósofo finalmente declararei a morte do Diabo?...

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AO SANTÍSSIMO PROFANÍSSIMO HOMEM DE FELICIDADE: Briguei com Deus e com o Diabo, Quebrei a pirâmide e pisei no rabo. Os dois se irritaram comigo, ai, ai! E agora, com quem eu fico, ó Pai? Rápido, essa parafernália celeste Se arremessa do céu e investe! (Ó, minha cabeça ex-briguenta...) E chove, e troveja, e faísca, e venta. O Diabo deve ter mandado uma piada, E Deus fez de mim o centro da palhaçada. Com certeza eu briguei mas foi para aprender Que Deus e o Diabo querem compartilhar você? Agora, francamente, em tudo, o que me resta? O ser humano, a loucura da arte. A festa? Sem Deus e sem o Diabo faço o quê? Começo passo a passo a aprender. Fica bem assim, pessoa humana, Cafona, chique, sagrada, profana. Tudo o que houver de humano são Graceja na rua em oração. O santo homem que arranca A missa negra e a missa branca, Elevando-se. Altar da profundeza Vai de baixo a cima, vela acesa Vela apagada sem velas sem deuses nem diabos harém. Quero ser pessoa pura Quero ser pessoa dura Quero nunca ter a jura E confiar na lei escura E na lei clara, ruptura! Oba! nenhum outro halo? É contigo mesmo que eu falo! Pessoa humana, escuta este novo badalo... Belém, Belém, Belém, Belém, só agora o Senhor me deu A maior felicidade do mundo, que é o êxtase de ter Coração juiz-réu! (Marcelo CAETANO, In: O livro dos santos e das pessoas)

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Σιμβλώς  transformando flores em mel

A mesma palavra grega que significa “colméia”  Σιμβλώς (simblós)  significa “abundância”, “fartura”, “provisão”. E, além de tudo, se parece tanto com “símbolo”, não é uma bela coincidência?... Porque o símbolo precisa de trabalho de abelhas operárias para ser transubstanciado em mel. Toda metáfora clama por vida. Não se vive de símbolos sem uma colméia. Eu só sou sagrado nas mãos do outro profano. O outro só é sagrado nas minhas mãos profanas. Profanar é sagrar. Cassirer dizia que o homem é um animal simbólico. Eu prefiro dizer que o homem pleno é um animal simbólico-operário. Profano e sagrado com Plutão. Assim na terra como no céu  o romance é possível. Depois da definição, o que nos resta é o trabalho. A lei definiu. Agora, trabalhemos com olhos e mãos de abelhas, porque é preciso extrair o mel da flor. E onde entrou o erro, o pecado, o desvio? Acaso a salvação existe por causa do pecado? E o pecado existe por causa da lei que o definiu? Vocês pensam que só eu sei perguntar como catadupa? Pois a Montanha Paulo de Tarso o sabe também: Que diremos, então? Que a lei é pecado? De modo algum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei. Porque não teria idéia da concupiscência se a lei não dissesse: Não cobiçarás (Êxodo, 20, 17) (Romanos, 7, 7) Quando seus olhos se focalizaram em excesso, criaram-lhe um estipêndio doloroso. Você agora precisa lutar para se confinar em ermidas no deserto, como Santo Antão, com mais medo de lobos e coiotes que rondam as madrugadas estéreis do que de passar quarenta dias em meditação-labor franciscana... Quem falou na morte de Deus, da História, dos sentidos? E do Diabo? Meu Deus, minha história, meus sentidos! Meu Diabo! Será que definir permite ver, em meio à salvação, o pecado? Será que a letra mata? Mas o que você me sugere, meu leitor, além de me permitir minimamente um adejo libertário sobre as muralhas da minha própria liberdade? Posso voar e pousar e voar e pousar e voar e pousar... RESPIRAÇÃO ETERNA. Meu limite se chama , ao passo que o de muita gente boa que “anda” por aí não passa de ... o psy do pseudo... Talvez seja melhor não tentarmos tanto definir as telas de Monet, deixá-las com o som de Tolousse-Lautrec, aceitar os tatos dos Moulins Rouges da vida e simplesmente dançar à luz vetorial sem definir as coisas. Oh a luz vetorial!... Simplesmente ouvir, tornar os olhos menos lícitos, as mãos menos legiferantes, o paladar menos “convincente”. Tornar a garganta mais garganta. Menos necessidade de rótulos, senhores!

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Lei, sim, mas lei que tanto aproxima quanto afasta. A única lei que respira, portanto, é a da tautologia. Lei é lei. E tenho dito! Então, por que eu não posso criar uma lei em movimento? Por que não posso pôr a serviço, ao menos de minha constante de vida, coeficiente ômega, uma lei que dance com meus deuses? Acaso a divindade não consiste  ó Nietzsche  exatamente na existência de vários deuses? Se eu tenho a episteme, como posso ter me privado do eixo fronteiriço da doxa e pulado direto para a eikasía? Por que mesmo meu namorado tem de ser um santo? Se a divindade tem no mínimo dois braços... Quando me perguntam quem é Deus, digo-me: Deus é o Pai dos pecadores, Deus é o Pai do arco-íris, Deus é o Pai do mangue. E quando me perguntam quem são os pecadores, respondo-me: os pecadores são os filhos dos santos, são a taça divinal que mergulha no Rio Estige e no Rio Letes, promessa dos deuses  e saem ilesos. E, finalmente, quando me perguntam quem são os santos, advirto-me: os santos são a ponte carpinteira entre mim e Deus. Neste sentido, sim, quero que meu namorado seja um santo. Uma ponte entre mim e a divindade plena, com mais braços do que tetas. Mas quero aprender a arte da carpintaria, porque quero ser co-responsável pela minha própria ponte. Quero ser a obra pronta para me apresentar com rosto descoberto diante dos deuses. Quero que eles soprem em mim o ânimo da vida. Quero um Deus só. Quero ser um discípulo pintor. Quero ser meu filho meu pai. E ter Pais e Filhos. E quero finalmente que a Divindade  em vez de ser Deus ou deuses  ilumine as pontes e as águas turvas e claras da História, para que meus sentidos, assim luzentes, possam libar e prelibar no imenso Banquete. A divindade não é essência, neste amplexo, mas Luminescência. Na Luminescência a essência dorme como um bebê. Deus é essência, mas a Divindade é Luminescência. Pois tanto o pecador verdadeiro como o santo profundo são feitos da mesma Luminescência da  Divindade. A episteme não tem um braço, não. Tem dois. E como cada episteme é apenas um vetor da Divindade Esférica  e são infinitos os vetores na trigonometria esférica  acabo de ver pela física que o ser humano tem infinitos braços, infinitas tetas, infinitas bocas. E um olho de ciclope que o torna divino teratológico? Divindade é anjos e demônios. Fico então com a primeira fala de Macbeth, em que Shakespeare, por sua feiticeira alter-ego favorita, a Emília do Monteiro Lobato de Stratford-upon-avon, sempre vem para nos salvar, este cavaleiro da língua:  O belo é feio. O belo é feio, o feio é belo, o belo é belo, o feio é feio. Tudo é verdade e mentira.

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A vara de condão

Talvez o doido do B. Croce dissesse que a natureza é muda, mas o artista a faz falar com sua vara de condão de Armida! Foi Young quem disse isso, talvez. Meu Santo Afonso! Que agonia! Meu Deus, quem é Armida?! Em outras palavras: é preferível mentir e não passar por mentiroso para si mesmo e para o mundo a falar a verdade e ser considerado um insano rastaqüera. Pode? É por isso que eu digo: o namorado ideal é tão-somente uma pessoa de carne e osso. Parêntese. Reticências. Suspiro. Guindaste. Meu desespero me fez tocar o infinito, mas agora me retraio de novo, como pulmões, que se expandem e retraem, respiro, e volto ao mundo dos “objetos finitos”, por que não? Inspiração  ar expulso! Esta é a idéia. Ainda que ele seja mudo por si só, ele é de carne e osso. O mundo é mudo, mas é meu. O pulmão retrai, mas é ele que me dá VIDA! Ainda que exista o infinito, o que eu quero é um romance eternamente finito, que se dane o mundo, aliás. O infinito eu o guardo no meu coração. O finito eu o faço com minhas duas mãos e mais as duas mãos do meu destino que me ajudam sempre. A seiva bruta seiva elaborada são conduzidas por ordem manejo do meu pulmão. Dá para entender? Pasmado? Horrorizado? Emplastado? Fixado? Estúpido? Eu também! Pois libertemo-nos com sorriso. Que tal um convite a abrirmos a portinhola da jaula? Já dá para passarmos. Se bem que, quando você me olha de dentro da jaula, pelo seu ponto de vista, eu também estaria atrás das grades? Não sei... É preciso escolher  ah, a vontade humana sagrada!  até para se estabelecer a liberdade. Dentro da jaula, ou fora da jaula, qualquer um pode ser preso, e, portanto, qualquer um pode ser LIVRE! Porque a liberdade se estabelece. Elke Maravilha me disse, numa longa conversa em sua casa, em que esperávamos a gravação de um especial da Deusa Profana, Papisa Genetrix, para uma TV estatal alemã, ao som de um aedo cantando em idioma grego áticojônico:  Ser livre é escolher a prisão onde se quer estar! Porque ser livre é escolher e, mais do que isto, é SABER escolher. Vontade, para mim, não é apenas escolher, mas SABER ESCOLHER. Eu posso saber escolher não sofrer, por exemplo. Ser livre não significa “fazer falar um modelo natural de natureza muda”, mas ouvir o que a natureza tem a dar, ainda que ela não tenha a dar o som do som: então, prefira, como os gatos, VER o som. Invente o seu próprio carrasco. Escravize-o. Lamento muito informar a quem possa interessar: o meu filho amado acaba de se tornar o patrão do meu patrão. E agora? Vamos a um certo, por assim dizer, a um certo ajuste de contas? Medo de quê? Calma, o que estava abaixo de mim, ligado a meu coração por laços de família e afeto, este que estava abaixo de mim e que me ama como a um pai acaba de se elevar acima daquele que se supunha acima de mim. E agora? E agora? Contas a ajustar... HE HE HE... A questão não é escolher, meu filho. É SABER escolher! Quem somente “escolhe” não tem vontade: tem afã, tem pressa, tem desespero cego, tem laranjas na feira, é escravizado, tem sede, tem fome, tem agonia (esta palavra em grego significa ausência de lutas ou ausência de nascimentos)... A questão é SABER escolher. Não APENAS escolher... Só quem SABE é SÁBIO! Porque quem dá a lei é a realidade, SAIBA, a partir dela, ESCOLHER.

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A verdade é a realidade matéria-prima da vontade de saber. Ou, se preferir, continue não podendo optar nem mesmo sobre a prisão em que você gostaria de ficar por um tempo... Deixe que os outros inventem seu carrasco. Seja escravo do desejo tosco. Permita que todos lhe digam o que fazer... Abra o olho, meu amigo. Mãos ao alto! Tudo isso é o desespero feito mel e limão. Se não for assim, esqueça-o. Vejo cada vez mais que todos se conformam com sombras de pessoas, com cães em coleiras, com vultos se esgueirando entre bicicletas e carros, com pessoas entre grades, com migalhas em banquetes pantagruélicos, clichês, frases-feitas e lugares-comuns, quando temos à disposição todas as criações, todas as invenções e, portanto, todas as possibilidades do mundo. Com buzinas cortando o asfalto no horário de tráfego intenso, quando as pérolas guardadas nas ostras veiculares são muito mais reluzentes à luz do dia, sob os raios do sol, desencapsuladas. Ai, ainda bem que não preciso de cápsulas! Com sinais verdes que trucidam nossas esperanças de uma eternidade em conjunto. Com estações de metrô que abrem um fosso entre o amor e o nada. Sinal vermelho para nossos carros apressados e estúpidos, pelo amor de todos! Parem-nos! Eu quero rubis, chega de esmeraldas! Eu não quero mais nenhuma criptonita, enfie-a no cu, se você ma oferecer. O rubi revivifica! Venha a nós o império do rubi! Sou um ser rubicundo! Adamantino! Temos tudo, mas abrimos mão da carne e do osso? Por quê? Será que o “tudo” substitui a verdade só porque o “tudo” parece muito mais apetitoso do que a verdade da carne e do osso? Será que não estamos sabendo gozar o mel e o limão do desespero? Estaríamos querendo “melhorar” o modelo natural? Você preferiu encarnar uma mentira só porque ela se assemelha a um sabor “melhor”?... Melhor mesmo?!... Só porque é uma mentira que se assemelha à “verdade” cunhada por você? E que verdade? A verdade criada por um jogo de marionetes onde cada títere, cada boneco é exatamente igual ao outro embora, para se “destacar”, apenas possa lançar mão do esforço infrene de se mexer como pipoca na panela? Desculpem a comparação esdrúxula, mas o que temos feito de nossas vidas até agora é muito mais esdrúxulo e muito mais semelhante a proparoxítonas incômodas na boca do que seriam “esdrúxulas” as simples e branquinhas “pipocas na panela”. Até porque pipoca na panela é uma delícia, diferentemente da insanidade VERDADEIRA, que é a única coisa de VERDADE que temos conseguido abraçar até agora... Até porque pipocas se parecem com pérolas. E eu AMO qualquer pérola. Você não acha que é hora de abandonar o verbo “conseguir” e aproximar-se aos poucos, mas com VONTADE, do verbo EU POSSO, cujo infinitivo é TU PODES? Pare tudo! Tire a insanidade dos seus braços, e fique SOZINHO por um momento! Pare de abraçar a insanidade. Pare de conseguir. Possa! Deixe amanhecer um dia que seja sem ela, essa insanidade consecutível. Você vai ver outro Sol... “Vai valer a pena ter amanhecido sem os seus abraços”  ó insanidade! Você teria norteado a sua vida em com base numa verdade que, na verdade, não existe. E ela nem tchunsk para você! O homem se conforma com a entressafra. Isto também se dá por outra razão, que complementa o jogo especular verdade-mentira que o Estagirita Aristóteles com seu baba-ovo Croce sempre citavam.

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Isto se dá por um divórcio entre plantar e colher. Ou, melhor dizendo, por uma sucessão de interpretações erradas sobre a ambivalente questão de plantar-colher-comerser-comido-amar. A harmonia existe SIM, mas foi você que a mascarou de louca. Quer ver? A situação do mundo é uma eterna esteira de academia: você persegue um objetivo cuja completude não se dá no campo onde ele é plantado. Você fica contando os degraus de uma escada rolante. Você tem contado quantas voltas a hélice do moinho dá em torno do seu eixo. Você olha a tremonha, a pedra de mó e fala: ó como é belo o moinho! Você olha o lagar, os pés dançando e diz: ó como é belo o vinho! Você olha o campo dourado e diz: ó como é belo o trigo! Belo!? Você quer mesmo continuar vivendo de “belo”!? A lavoura é aqui, mas a colheita é alhures. Por exemplo, você planta seu suor na esteira da academia, mas colhe o corpo perfeito onde quer que seja, mas não na esteira. Você se acostumou a pingar dois baldes por hora de corrida, e tem a consciência de que, daquele “chuveiro humano”, você só pode ter como destino imediato a ducha mais próxima, águas do céu tão perto que pode ser tocado com um dedo. Você se acostuma a nunca colher os frutos no lugar exato onde os plantou. A sua vida tem sido uma seqüência de resumos. Resumo da terra, resumo do céu, resumo do amor... Você na esteira é semelhante ao frango que está sendo preparado para ser levado à mesa. Lá, na mesa, todos o quererão. Mas, sendo preparado, verdade é que ninguém quer o frango sendo preparado. Todos querem o frango pronto! Ninguém quer se responsabilizar pelo processo... A responsabilidade do seu processo cabe antes de tudo a você mesmo. Mas é hora de aprendermos a responsabilidade compartilhada sobre o processo do outro e de deixarmos o outro ser co-responsável pelo nosso próprio processo. Que tal? Responsabilidade é aproximar-se. Responsabilidade é afastar-se. Responsabilidade é doar olhos e ouvidos e ter boca e mãos prontas para o certo. Aprenda a ser responsável, e toda forma de amor lhe será dada à responsabilidade. Mas as nossas vidas não têm passado de uma parábola da esteira da academia: corre-se aqui, vive-se ali. “Que ninguém me toque na esteira!” Isto é apenas belo. Tem gente que é tão pobre, que só tem beleza... Isto tem meia verdade, meia mentira. Pare, também, de achar que todas as parábolas, que todas as realidades são APENAS uma coisa. Se são verdade, não podem ser mentira?!... Podem. Isto é falso. E verdadeiro. Tudo tem meia verdade, meia mentira. O ser humano é meio a meio. O romance eterno é meio a meio, só aí nasce o inteiro, o absoluto sem prismas. Eu quero mergulhar no rubi. Quero falhas. Mas quero o certo. Eu não quero apenas os prismas do rubi. Quero escolher os meus próprios prismas e mergulho! Temos empurrado as colheitas para lugares que nunca sejam os plantios. E tudo vem embalado a vácuo, antisséptico, “puro”, resumido! Isto também é meio a meio fonte de verdade. E mentira. Laranjas na feira. Viver é um eterno discernir. A verdade está nisto. Viver é catar feijão. Oh como temos sido pecadores! Por que será que temos tirado de nós mesmos a possibilidade de receber a flor singela da felicidade? Você quer se dar uma flor, e na verdade ela lhe será dado por outrem? Ai, que dor de cabeça engraçada! Onde começamos nosso autoboicote? Em não estarmos prontos para receber?

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A entressafra se refestelou na poltrona branca de nossas vidas!

Será que teríamos de rever nossos conceitos sobre um romance eterno entre duas pessoas, equilibradas e amorosas? Será que elas existimos? Será que esses elas somos gays? Ou será que todas elas finalmente deveríamos reverem o conceito da palavra “eterno”, para, só então, revermos o da própria palavra “romance”? Elas-nós deveriam fazermos o quê? Aprendermos uma língua em comum? Isto é bom, muito mais do que belo. Falar uma só língua. Ai, é mais fácil ser um santo do que ser uma pessoa! Por que será que minha vocação para santo me abandonou logo agora? Justo na areia clara de um domingo de sol entre dois coqueiros que abanam suaves sob uma luz amena de outono... Tinha que ser na frente deste príncipe me querendo para amor eterno? Que maldade! Que maldade, ó vocação sacerdotal, santificadora! Eu te quis tanto! Ó minha papisa Joana! Os romances teriam se escondido onde? Em Tristão, em Romeu, em Abelardo, em Amadis de Gaula? Devem estar com medo da insanidade reinante que perpassa os procuradores de sombras da cidade. O romance eterno quer amantes de carne e osso, não perseguidores de olhares etéreos. O romance eterno tem fugido de nós! O romance eterno odeia olhares de fogo-fátuo! Há uma fábula sufi mais ou menos assim. Certa cidade teve as águas de sua nascente tocadas por um veneno que criava alucinações em quem o bebesse. Com o tempo, toda a água da cidade estava repleta daquele veneno, e, portanto, todos os moradores estavam tendo alucinações contínuas. Um viajante chega à cidade e vê todas aquelas pessoas agindo como loucas, alucinadas, histéricas aplainadas pelo catatonismo da insanidade. Ele as tenta alertar de seus comportamentos incongruentes, mas as pessoas, que beberam a água, não poderiam sequer compreender o que dizia aquele viajante. Ele insistiu, insistiu... Ficou aflitíssimo com a sua situação e com a de todos. O inferno era os outros... Até que chega à beira da nascente onde as águas começavam a ser envenenadas... (Bem a fábula sufi tem outro fim que não o que darei agora.) Quando chega à beira da nascente, o viajante interrompe o fluxo do veneno, e a água milagrosamente deixa de ser tocada por aquele líquido alucinatório. Com o tempo, as pessoas deixarão de sofrer alucinações. Mas... o líquido não foi removido da nascente, foi apenas interrompido o contato entre eles. O viajante precisa empreender constantes viagens àquela nascente para não permitir novos contatos. Não alucinar-se requer um estado contínuo de alerta, atenção, vigília... Requer trabalho, passo a passo, mão a mão, pão a pão. Eu e tu. (E um hip-hip-hurra para Martin Buber, que escreveu o livro homônimo EU E TU.) A entressafra é um período “provisório” demasiadamente longo e longe. Não tem sido? Fico perplexo, às vezes, com a falta de perplexidade nas pessoas. Acostumar-se-iam com a “verdade melhorada”, o belo modelo aristotélico, o “falar da natureza” de um Croce qualquer, com todo o respeito, e, com isso, deixam escapar o pássaro azul que cantava em seios de amor. Qual a água que vós sorvestes, criaturas? Que loucura! Que loucura!

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Meu Deus, que loucura! Usar Aristóteles para explicar o amor!... Senhor, quanta insanidade! Usar Aristóteles para nortear um romance? E eterno?! Pois é, se Aristóteles é capaz de solucionar nosso caso, vejam bem quão simples e infantil, na verdade, ele era! Porque, se pode ser resolvido pelo Estagirita, é simples como pipoca na panela. Basta tirar a pipoca  não se esqueça de apagar o fogo! , comê-la, e prontinho! Ai! Pare de dizer que a pipoca é bela! Ela é feia, mas deliciosa!... Ela não é feia, não mesmo! Tanta gente discutindo o que é beleza, o que é beleza... Beleza é aquilo que agrada na boca! E tenho dito!

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Lírios e rosas

Outro lapso no romance é o fato de que cada um busca a felicidade para si. PARA SI! Assim, dificilmente (ou nunca mesmo!) você a achará. Você a procura num lugar errado. Tudo está dentro de você. Menos a felicidade. A felicidade no romance está NO ROMANCE, não dentro de um cofre no seu coração. O seu coração é como um moinho que tritura o trigo. Ou você faz farinha e pão deste trigo triturado, ou, meu amigo, joga o pó obtido ao vento e seja o que Deus quiser... O coração é o centro do metabolismo humano. E tenho dito! A flor do trigo, você a receberá. Não queira “se dar” uma flor, ela só tem valor quando lhe for dada. Mas aceite-a, por favor, por amor. Aceite-a. Use seu moinho para o seu próprio bem. Isto é bom. Enfim, encontraremos a beleza! Há uma espécie de briga de Narciso contra Narciso dentro de nós. Nós queremos um romance em que o outro tenha exatamente as características que admiramos EM NÓS. As hélices do seu moinho se batem nas hélices do OUTRO moinho? Se somos grandes empreendedores, queremos alguém que seja assim. Se somos sumamente religiosos, queremos alguém que seja assim. Se somos aventureiros, queremos alguém que seja assim. Se somos “caseiros”, queremos alguém que seja assim. Certo, certo, é preciso um pouco de afinidades, eletivas, eu e Goethe diríamos, mas um romance não é SÓ afinidades. Na verdade, elas se elegem mesmo. São as afinidades que se escolhem, num pleito interno, não somos nós que as escolhemos. Romance é COMPLEMENTAR-SE. Você já tentou se dar ao trabalho de ACEITAR no outro características discordantes das de sua índole? Isso dá muito trabalho, não é? Mas você pensa que romance é o quê? Romance é trabalho! Assim como o viajante tem de empreender constantes viagens à nascente a fim de não permitir que o veneno a toque, você precisa constantemente trabalhar para o romance eterno ser, de fato, eterno. E  gozado  no que você se der ao trabalho de semelhante exercício, musculação do espírito, eis que a portinhola de sua jaula vai se escancarando a tal ponto, que (oh...) que você acaba de se tornar infinito, e qualquer pessoa lhe será, portanto, compatível. Porque cabe TUDO dentro do infinito. Já parou para pensar? Este é o fim do romance finito, quando, só agora, finalmente, ele é eternamente infinito. Faça chegar ao fim o finito, e você verá que existe a alegria “somewhere over the rainbow”. Volte para casa, Dorothy, e abrace grandemente a si mesma! Isto é infinito! O mágico de Oz acabou. Se eu sou aventureiro, POR ISSO eu deveria amar as características “caseiras” do meu parceiro. Com isso, naturalmente ele também amará as minhas características de aventura à flor da pele. E ambos estamos nos exercitando. É ele que me dará a flor do trigo, esqueceste? Musculação do espírito. Nós faremos um pelo outro o mesmo trabalho que o viajante tem ao empreender viagens à fonte para não deixar que ela se envenene. Eu irei à fonte dele, ele virá à minha. Ele é o personal trainer da minha alma. Isto sim é amar e, mais do que isso, é estar pronto para o amor. Ame aquilo que o complementa, e aquilo que é você será amado por aquilo que lhe faltava. Amor é ser amado. Amar é fazer amado. EU AMO é responsabilidade. TU AMAS é estado de graça. 92


Não te expliques, não te justifiques, mas aceita logo que tu tens agido sem coração. Cala a tua boca e pára de justificar-te para mim, porque sou vacinado contra tal “veneno”. Usa a tua boca para coisas melhores, pára de usá-la exclusivamente para a retórica de uma fala pueril, que eu, por mim, a transformo em pipoca pulante. É para o teu bem. Você quer um romance para SER feliz? Você está pedindo? Esqueça-o. Para esse fim, concentre-se em ganhar dinheiro, concentre-se em ter “um milhão de amigos, e bem mais forte poder cantar”. Isso lhe dará não felicidade, mas “felicidade”... É como o aroma de um pão quente. Você tem tido apenas aromas... Trigo triturado ao vento... Sua vida tem estado entre aspas, meu amigo. No fundo, até mesmo nisso observamos onde mora a felicidade: alhures. Até esta “felicidade”, resumo da felicidade, até ela lhe é dada, como uma flor de plástico, mas até as flores de plástico são singulares quando são oferecidas. E, se por enquanto só lhe oferecem flores de plástico, nem elas você deveria recusar. A flor maior já está chegando, exercite-se com as flores de plástico. Enquanto a rosa não vem, colha lírios. Mas só não deixe de colher. Eu quero amar o processo do outro. Tu és um processo. Eu sou um processo. A felicidade vem das estrelas. Assim como no caso da esteira da academia, onde você corre aqui para colher o corpo perfeito em outro lugar, assim ocorre com a felicidade. O lagar de vinho. A pedra de mó. Não que nós devêssemos agir com nossa procura assim, entendam bem, mas que é assim que nasce a felicidade, não tenha sombra de dúvida. Nós fazemos aquilo que podemos saber escolher, mas a felicidade é um presente que se deita sobre nós. É preciso discernir. Viver é discernir. Meia verdade equivale e meia mentira. Aprendemos com ambos os lados da moeda tripartida... O romance eterno é a terceira margem do rio. Você quer um romance para ser feliz? Se for COM TAL OBJETIVO, você não será feliz. É duro? É estapafúrdio? Mas é a verdade, nem melhorada, nem piorada. Apenas a verdade. Sem os melhorismos de Spencer, Aristóteles, Rousseau, Goethe, Baumgarten, Croce, Cassirer, Hume, Young, Wordsworth, Platão, Sócrates, esses filósofos da arte  sem os melhorismos de quem quer que seja. Deixe os quem-quer-que-seja para lá. Abuse apenas da boa vontade do seu coração, porque ela não tem fim. É lemniscata, um motor movido a energia estelar, energia cósmica. Moinho cibernético. O dia em que o ser humano aprender a canalizar a energia do coração, construirá, de cada pessoa, uma usina muito mais potente do que mil e oitocentas usinas nucleares trabalhando em regime máximo de produtividade! Já pensou: cidades inteiras movidas a energia cordial? Pois, então, o que faço para achar a “sonhada” felicidade? 1) Pare de “sonhar”, tire as aspas do seu sonho, sonhe com força, passe a verdadeiramente SONHAR, tire o rosa-pálido e pinte-o com vermelho-intenso. 2) Se você quer ser feliz, não procure um romance. Mas, se você quer fazer uma pessoa feliz, procure-o. 3) Pare de se ater exclusivamente às suas belas características, queira amar as características diferentes das suas que o complementem. 4) Procure a boca! 5) Beleza é o feio que você fizer belo. O segredo da felicidade está em se FAZER feliz. Felicidade combina de impacto com o verbo FAZER. O verbo SER nasce, brota, como um pé de trigo, um pé de milho, que foi 93


feito semente-na-terra, em seu campo de tranqüilidade, ó Wordsworth  experimentar a emoção na tranqüilidade... Quando você planta, você não poderia “obrigar” o nascimento: espere-o. FAÇA a felicidade, e ela simplesmente SERÁ felicidade. Espere-a, agora. Use o seu moinho metabólico para isto, é claro! Dê-se ao trabalho! Desenvene continuamente. Uma vez começado, não pare. Você quer pegar o milho na prateleira do supermercado. Você quer reduzir e resumir a sua vida a pipoca de microondas. Você esqueceu, meu caro, o que é plantar, colher, comer junto! Amor é ser amado. Amar é fazer amado. Só com amor e amar o romance eterno vai nascer. Agora RECEBA esta flor! Ela é vossa. Ela é de todos nós. Você olhava as estrelas, o cosmo, o Sol e a Lua, você olhava as usinas atômicas e esquecia o poder do seu coração? Você olhava as cidades e esquecia o que as move? ENERGIA!  Ai, Santo Aristóteles, perdoai-nos, porque nós não sabíamos o que estávamos fazendo!...  Vós estais perdoados. Agora, entretanto, tendes a responsabilidade da colheita de um campo de rosas.  E se forem lírios?  Olhai-os...  Oh, como são brancos!...  São mais majestosos do que Salomão.  Uma rosa! Uma rosa! Uma rosa!...  Sê bem-vinda!

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Violência ou As rosas devotas: Um encontro de todo amor (conto)

Não cogitávamos a chance de recusa ao convite; nem tanto porque fosse cordial ser convidado, como preponderantemente por ter vindo o chamamento de um gesto de pura educação. Nós sabíamos que educação não se recusa com pretextos. Naquele momento, então, em que o erro francamente parecia apontar-nos, irônico, para o acertar de barbas brancas, como Deus, irresistível, lúdico, amoroso, inviável seria dizer não à festa a que fôramos nós os convidados, exclusivamente, porque o ser humano é teimoso em demonstrar respeito junto ao semelhante. Respeito: entre todas as demonstrações a mais humanamente bemvinda. A que justifica sermos homens assim. Respeito: o amor social? Claro que não. Além de tudo isso era um belo dia de verão, já domingo, tarde no fim, em que nada havia a ser feito senão deitar-se nos peitos da boa amizade. Domingo naquele instante em que Barra da Tijuca, Madureira, Arpoador e Jacarepaguá põem o mesmo Sol deitando-se onde as pedras viram água. Deitar-se onde quer que seja há de ser sempre e continuar sempre sendo o ato de maior demonstração cabal de respeito ao outro. Porque deitar-se é quieto e cômodo, e deixa os outros em paz, e porque deitar-se pressupõe confiança. Confiança: o amor social? Não. Por tudo isso aceitamos. Aceitamos e íamos cordialíssimos. Sem exagero algum. Também porque esquivar-se de um abraço é tão desorientador quanto inevitável antes que um pão de centeio cresça aquecido em nossos corações. Quando cresce. Curioso  um convite informal nos deixara tão ao mesmo tempo indiferentes e felizes. Felizes como gaivotas indiferentes. Talvez mesmo porque a verdadeira felicidade há de ter um tom misterioso de indiferença? porque a felicidade partidária se chama paixão. Na real felicidade o não não assusta e, quando tem de ser, é o mesmo não que não assustava enquanto o seu irmão rezava sim. Nem é tempestuosa nem deixa de sê-lo, portanto. Isso já sabíamos. Menos ainda de nossa capacidade agora de lidarmos tão imaturamente com ela. Com a felicidade. Incorrompera-se, como se costuma aventar. Porque pensávamos: havia de requerer de seu consulente uma espécie de inesgotável fonte manancial de maturidades. E  não. Não requer nada. Nem quer nada. Éramos imaturos, e a felicidade existia. Seres humanos, e a felicidade existindo. Entes, e sendo. Quando se apresenta diz:  Eu. E o mais que disserem a seu respeito passa a configurar grosseira tentativa de erro numa atmosfera de luz dos fatos óbvia.

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 Como o guri que tem nas mãos a fruta recém-tirada à árvore, mas continua arremessando pedras ao alto, na direção de onde estava a caída, até que por fim pensa em arremessar a própria fruta pousada na mão só porque é louco. Ou mesmo porque não sabe saber. Ou em resumo porque há Alguém que o segura para que ele coma a fruta; salva. Assim é quem quer da felicidade mais do que simplesmente  Eu. Pensávamos naquele convite como quem ultrapassasse a barreira do tempo. Éramos supertemporais, portanto. E sabíamos o que fazer, porque mesmo o mais inexperiente pescador sabe que não deve lançar anzóis numa poça de piche. E mesmo o mais inexperiente Salvador sabe que não se salva um homem que se afoga no mar dandose-lhe um prato de comida, ou um agasalho, ou  um copo dágua... Portanto guardávamos: ali não; aqui sim. O que somos? Daquele momento para a frente o erro que culminou em grande acerto. Desculpem-nos, mas acertamos. Também em resumo: éramos convidados do convite, o mais importante. E, como o víssemos, éramos luz. O convite nos fartava. Não seríamos mais como Romeu e Julieta, nunca mais um amor obstado, nunca mais à escandalosa proibição de quem se volta. Seria preferível sermos prosaicos a sermos um Shakespeare tão rigoroso que escrevera as comédias de amor mais bonitas da História. Seríamos irmãos, completamente igualados pelo que se chama irmandade. Por que comédias ou tragédias? Por que não irmãos e basta? Sem compromisso uns com os outros, felicitando-nos com o mesmo silêncio com que se felicitam os filhotes da bondade à espera de peito por alimento e certezas? (Meditativos.) Lúdicos porque sabíamos: quem ama alimenta. E sabíamos também que quem alimenta passa a amar. Lúdicos, éramos, afinal, seres alimentados, alimentando-se-nos mútuas almas. O apartamento está em Botafogo, resumão do Rio, um pouco quente, não pequeno, arborizado, sem mar e com maresia, talvez liguem o ar-condicionado para nos recepcionar duvidosos. Se não ligarem, não ligaram. Por isso a maioria dos poucos convidados súbitos se compartilhavam na pequena varanda cercada de prédios e verdes vivos. Sem saber quem éramos, cada um não sabia nada. Apenas que éramos bem-vindos e que nada mais éramos bem. E aqui estamos  todos nós. Como um. Não estarmos era tão próximo de estarmos, que subitamente começava a brotar de nossos corações um aroma de pão. Não havia motivo. Era tão bom estar  como seria bom não estar? Os olhares controlavam o imenso brinde ao acaso da vida que era aquela festa. No meio de uma vida de sol, uma festa, o acaso  o lindo acaso dos olhares. A porta aberta, a sala cheia, embora com pouca gente. Aquele acaso planejado, conhecem o Rio? Ninguém teve pena de ninguém porque não havia ninguém passível de piedade. No mundo inteiro, o ser humano enfim pousava sobre o campo de trigo e baixava as asas de tantas e tantas conquistas sobre si. Quanto! Mil ciências baixavam em pouso e dormiam. Mas todos sabiam de todos porque cada um sabia de cada um. Ninguém era “amável” porque o amor jamais será elemento acessório. Ou amor é amor, ou não é amor o que se tem por nome com outros vocábulos oriundos. Tudo o que se movesse mais dez segundos haveria de ser eterno. Por isso cada convidado somado aos demais constituía uma eternidade que, em cada um e em todos, era exatamente a mesma: fracionada ou absoluta eternidade igual. Os Convidados e O Convite.

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O encontro dos Deuses. Ou Deus. Amor, alimento. Cada um podia invadir os limites do outro de tal forma que o muro humano quando se percebia estava transformado em jardim. Para floresta. A mesa com pães cortados no horizonte, e outros córregos de alimento fluidificavam a toalha da visão branca, fazendo o vinho de sangue bento na veia. Enquanto a bromélia brincava de abacaxi numa placa de terra na parede, rosas vermelhas e brancas encenavam num vaso aberto a peça “A couve-flor e seus quinze filhos”, cheias de devoção. Portanto o apartamento era um broto de fazenda. E nós, os rebentos. O Cristo Redentor lá fora é lindo e pré-histórico, porque estava muito antes de chegarmos e continuará da mesma forma indefinidamente estando já depois que tivermos partido. Assim: além de pré-histórico será cibernético? Mas ninguém havia de se preocupar  depois que partirmos tudo ainda será nosso porque aqui estivemos. O pão, a bromélia, as rosas e o vinho. E mais do que tudo isso: extrato. As coisas e suas Naturezas. No fundo: a fixação de um perfume, e não o perfume por si. Éramos ali, conseguíramos, podíamos ser não apenas os homens que éramos, como, sobretudo, sentia-se em cada flor o nosso Estado de Palavra. Este sim o amor social: o Estado de Palavra, a que chegáramos. Porque aqui estivemos aqui estaremos para sempre, como um Redentor. Como uma rosa devotada ao altar em que a plantaram, como um cão, amigo, um sol, um amigo, éramos a mesma união que um dia nos fizera cúmplices por causa do medo inexplicável do fogo.  Um dia todos os homens e todas as mulheres foram chamados tribo enquanto seus temores faziam crer na existência de Deus. Quando o medo deixou de existir  logo se concluiu  Deus deveria também deixar de ser posto em xeque, uma vez que O venceriam de pronto graças à decrépita ausência de necessidade. E, por ser Deus, é que Ele Se revelou ao  provar que existe ainda que desnecessariamente. Ora, por que não era necessário provar-se-nos, e ainda assim O quis? Por isso nossa irmandade vinha de um Deus desnecessário e por isso quanto mais desnecessário mais Deus. Ou seja: quanto mais desnecessário, mais necessariamente vivo e vívido. Assim é o paradoxo desfeito. Agora descendíamos do Horizonte achado, éramos o fruto de todas as respostas, nunca mais tínhamos sido movidos por perguntas primitivas cujo nome era semear longe e longo. Fartura agora! Não encontrávamos mais nada porque tudo em nós se achava achado. Até injustamente, acho, desprezávamos a avidez. Nesse ponto poderíamos ter um pouco mais de animalidade, e quem sabe sucumbir. Então não ríamos tanto porque de sermos tão felizes podem ser vistos vapores. Nem falávamos mais coisa. Assim como o fogo ao se apagar libera calor, acendíamos. E tanta luz, tanta luz há no fogo e no calor liberado! Que se desfaz com a dentição exagerada nos risos. Que não dávamos porque nos respeitamos como seres. Além de tudo isso éramos os descendentes da raça humana vitoriosa, Homens de Cro-Magnon que vencem Neanderthal e aqui estamos: indefectíveis Homens de bom-gosto. Os membros evoluídos em belíssimos braços e pernas e tronco e cabeça, apesar de nosso cérebro um pouco aquém há anos e além doravante. Caminhando, caminhando... O que mais dizer? Estávamos paralisados de gratidão e o amor nos movia gratos. A certeza paralisa e se você não se deixar vencer pelo amor pode congelar-se. Mas se quiser, abra a janela que o sol invade e quando você vir não há mais janela porque não há casa você está

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em uma floresta completa cujo sol derrete o que  fora gelo! Feitos de madeira negra. A madeira é de um bom gosto! E o mais importante: éramos Homens moventes na selva da luz. Do bom gosto. Que vencemos. Que já podemos descansar, que já bebêramos do néctar, que estávamos nutridos e iguais, que éramos irmãos e que ninguém dependia de ninguém. Que ainda se falássemos de nós mais do que “Homens” estaríamos provavelmente errando em muitos pontos, porque a resposta se fizera há muito: Homens. Melhor: Responsáveis. Fartáramo-nos. Estávamos juntos porque estivéramos juntos, não porque fôssemos agora obrigados à união. Porque a queríamos. Era desnecessária, mas por isso mesmo benquista. Ou era tão necessária que nem sequer poderíamos “querê-la”. Tudo há. Só por isso permanente. Porque desnecessariamente necessária. Porque ali fomos postos por acaso não havia destino, postos por uma imensa mão chamada  Nós. E que hoje enfim éramos unidos pela mesma união que  que? Vencêramos. Vencemos. E aqui estamos nós  os amados. Que  nossa descansada viagem tornava sagrado qualquer esforço a nossos ancestrais. (Saúde!)  Isso foi um brinde à nossa viagem! Todos os convites responderam: foi. Outros disseram que a viagem pode ser louca, mas o viajante precisa ser lúcido. O quadro pode ser difuso, mas os olhos não o podem. Podíamos muito além e por isso mesmo nos calávamos fartos, laboriosos, felizes. Nossa capacidade de preconceito até ali era tão grande que até mesmo a felicidade julgávamos dever ser assim ou assim. Se ela disse apenas  Saúde!  respondemos, assustados  Saúde! Erguendo o mesmo brinde, a taça de prata, súbitos como a rede que pega alguém que caía no abismo. O preço da guerra é a paz, jamais entenderei semelhante frase. A guerra custa paz. Não vale paz, mas custa paz. E cada um custa o outro. Cada um vale o outro também com os outros, e todos os outros valem cada um como cada gaivota vale peixe, oceano, planeta, universo, Deus, gaivotas. Só havia uma palavra possível: irmanação. E só havia uma palavra impossível: irmanação. O que de mais assustador  havia. Ninguém pensava ou dizia isso, mas em nossos corações o banquete dava sinais de reciclagem, o que significa vida inesgotável e manancial. O banquete já se decompunha (processo natural) e eis que dela se organizava nova peripécia de infinitos milhões de brotos de banquetes. Momentos antes, todo o rumor da liberdade era como um imenso ato, um ato violento e mudo. Era talvez como um soco de amor que nos calasse. Como a música que termina para que caiamos sentados. E só uma coisa era preciso: calar-se. Para ver. Ainda que a soco, sempre por amor. Apenas em estarmos calados sentia-se a essência floral que nos unia. Não éramos homens e mulheres, éramos nós. Fusão. Anjos sem asas. Raiva, indiferença, dança, gratidão, fertilidade, vida, amor. Oh, tanto a se dizer: como castigo, perdão, crime, promessa, divindade, gratidão, pensamento. O libertário rumor se movera aparentemente por nove segundos e parecia esmorecer ante o décimo, até que, por um fio de barba branca de milho, a que se nomeia milagre,

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resiste ao último instante e ultrapassará a fina barreira do tempo, indo além do que necessário para se dizer “Eterna” e “Liberdade”. E “Enfim”. Casais-múltiplos se abraçam porque há amor e amor. E amor. Brindavam ao tempo e brindam à luz. Claro ao amor. Todo o conhecimento humano se resumia a abraço, e nada nunca fora tão concreto quanto todo o conhecimento humano. E o mais importante continuará sendo haver amor. Acima da lei impera a fraternidade. Nem tudo são leis, mas tudo o que realmente move a graça é não-nomeado frater. Ninguém sorria mais. O silêncio era também ali “o arauto perfeito da alegria”. E o estudo, também como “o sol feroz que cega olhares insolentes”, francamente era jogado no lixo para que se curtisse um praião de domingo em Botafogo no Rio de Janeiro. Não queríamos a insolência, queríamos o amor, a alegria e, mais, a irmandade. Romance é irmandade. É o que podemos. A praia é o único lugar onde ocorre democracia. Creiam-nos. Estamos muito longe de sermos cegos. Anos-luz à frente das leis. Muito longe do nosso caminho fincado. Somos democratas do amor. Nosso nome fica Alegria Interna. O sorriso que vestimos dentro. Todos os amados se olham vez por outra como o pássaro que se reconhece no outro ser. Foi quando, se não me engano, começou a chuva nos lírios cariocas e os convivas se aninharam mais irmãos dentro da sala, sorridente, deixando a varanda como o mesmo pássaro que se olhara e retorna ao ninho filial para um imenso beijo de presença flameja as asas. A orgia se vaporizou em amor sem-limites. As sem-razões do amor! Nós nos amávamos não como quem quisesse compartilhar as dores e as alegrias, mas como quem já compartilhava sem saber de nada a fixação dessas dores e alegrias em todos nós, os indivisíveis gigantes orgíacos. Orgia de essências. Gozo de espíritos. Ninguém ria da chuva, mas com a chuva todos ríamos de nós como se ríssemos do vento. Sim: todos éramos nós, amantes. O pão, a bromélia, as rosas e o vinho. Os iguais. Os frutos. Os tantos erros transformados em acerto. Os aceitados. Cada um, todos. A chuva. Os justos. Alienados da compaixão: os sérios. Os lindos. Os  enfim, enfim  os gratos. Amor. Já disse, mas repito, que a gratidão é sempre a forma que há mais limpa de amor. Porque a gratidão é o amor que tem nome. Todos os outros não têm. Mas a gratidão se chama todos. Que seríamos o presente pelo simples fato seguinte: estar, coisa concreta. “Nossos corpos são jardins; nossas vontades, jardineiras.” Presença pura este amor. Nomes. Pedro, João, Maria, Leonice, Marta, Joana, Cristina, Rodrigo, José, Tiago, Antônio, Clarissa, Marcos, Fernanda, Benedito, Sônia. Nós  Nós  Nós. Mãos nas mãos. Um convidado novo acaba de retinir na porta.  Entra e sê bem-vindo... (...) Essa característica humana de cometerem-se atrocidades em nome do amor... Poderíamos chamá-la aprendizagem? Ou por que será o amor cabe em cada um de nós como o vulcão expõe fogo da terra à moda de água?... e um dia os transforma todos em mar

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recheado com peixes vivos gratos pulando em uma fazenda de 芒nimo rural no oceano sem fronteiras do infinito amor de estrelas havendo em n贸s...

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Três estudos sobre o Perdão. Ou Três estudos sobre a loucura. Ou Três estudos sobre 

(Preâmbulo.) Gostaria imensamente de, por vários minutos apenas. Ser um gênio. Porque todo trabalho CRIATIVO requer genialidade, num ou noutro grau. Gênio é aquele que se permite um estado passageiro de loucura. Quanto maior a permissão, maior o gênio. Quanto maior o descontrole dessa permissão, pior o gênio. Quero permitir, e rogo a Deus que mo controle. *** À medida que se aprende a perdoar uma pequena falha, abre-se caminho para o aprendizado de perdões a falhas cada vez maiores. É como a relação entre a ponta e a cabeça da agulha: se não houvesse aquela parte, esta não viria nunca (e, com ela, o objetivo maior: a linha, depois a sutura). Toda a Natureza de Deus é calcada numa única palavra: Objetivo, ou Fim. Que pressupõe, e ao mesmo tempo acarreta (assim sendo é isto causa e conseqüência simultânea do Objetivo, do Fim), fazendo existir, em resumo  o Meio. Muito mais fácil que perdoar a alguém que nos odeia é perdoar a alguém que nos despreza ou o contrário. Certo é que um leva a outro, e deve ser assim. A importância de um desses perdões (depois do perdoar é que vem o Perdão) é o ato consolidado da existência do outro, sendo ambos vitais. Parece-me que não obteremos o Perdão de Deus se não tivermos, antes, aprendido  aprendizagem é o Xis  a perdoar. Porque o Abstrato (Perdão) é para Deus; o Concreto (perdoar), para o Homem. Depois trocamos e este é para Aquele; Aquele, para Este. É preciso que compreendamos e... registremos... (Consciência) aquela Ausência (em Presença) do Perdão (pelo perdoar, repito), isto é, por experimentação própria, Ativa (o que o põe no Confronto, corpo visível do Perdão, Concreto) para vermos (Visão, corpo invisível, Abstrato), o Perdão de Deus, Passivo e Compassivo em eternidade. Depois de o termos registrado, passaremos a aceitar em Nós a maior Permissão de Deus: Perdão. É de novo no Homem, assim, que Abstração Suprema se faz Carne. Para o Homem, trabalho: quem não quer trabalhar também não coma? Disse ele, Paulo, o Santo. O Perdão se aprende ensinado pelo perdoar: ali, Deus; aqui, Nós; no “aprender” (para nós) e “ensinar” (para Deus), a Consciência, bipartida. O Abstrato, sim, nasce do Concreto (como o Fim nasce do Meio, o Conteúdo da Forma). Entenda-se: o Abstrato não precisa do Concreto mais do que Este dAquele. Porque há interdependência, eles se precisam, dão-se mutuamente precisão e a si mesmos também, cada qual precisa do outro de sua forma e segundo, obviamente, a forma externo-interna do que o outro pode dar (pode é a palavra...). Assim, eu diria que o Abstrato precisa do Concreto para existir, e o Concreto precisa do Abstrato para ser. Isto não apenas para Nós, Homens, também é assim para Deus? (Até

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porque Abstrato é Objetivo, por isso vem depois, por isso é Origem.) Enfim o Começo. O Princípio: 1. Se Perdão é Permissão é Luz e Consciência: Deus em Sua Essencialidade.A Luz é uma primeira etapa de concretização, e a Consciência uma segunda, sendo o Veículo de Comunicação (após a ruptura fomentada pela Luz) entre Deus e o Homem. Mas antes da Essência, que por natureza é mesmo só Deus, há de ter vindo, quando Deus e Homem eram Um, o Seu Estado. Antes do Conteúdo, a Forma Divina; antes de Ser, Estar (Existir). Divindade (Deus-Deus-Deus): esboço do que virá, com o homem, a constituir a sétima realidade. Com vocês, o Pensamento!

ESBOÇO 1: 7: PENSAMENTO HOMEM

Forma, Estado,

ALMA

[MENTE]

[CORPO]

(Essência 2)

(Essência 1/Estado 2)

(Estado 1)

Conteúdo

(Consciência)

[Conteúdo,

Forma]

Essência 1

(Consciência)

[Essência 1,

Estado]

Perdoar,

Perdão

CORPO

MENTE

(Estado 1) (Estado 2/Essência 1)

(Consciência)

[Perdão,

Perdoar]

ALMA (Essência 2)

DEUS

A Forma de Deus é também anterior a Seu Conteúdo. O Corpo Divino antes da Mente. Seu Estado veio antes de Sua Essência. (Corpo e Mente são  ou é  Estado.) O Estado é sempre Primitivo. A Passividade Divina é, portanto, a própria súmula de Sua Atividade: Perdoar. Perdão veio como conseqüência, até em Deus: é Ato, não Ação. Ação é Estado; Ato é Essência. Toda Ação (talvez só haja uma) é composta de (não por) Atos. E Ação é anterior: Causa ou Conseqüência do Ato? Causa antes da Luz rompedora; Conseqüência após esta, digamos que por enquanto, no retrocesso natural HomemConsciênciaDeus: PrincípioMeioFim é retroceder. De onde se avança (por isso Cosmogonia é Escatologia e vice-versa, um vice-versa eterno, mais que nos jardins de Adônis, Tamuz, Adhonai). Antes de pensar em fazer digo então que homem fez. E fez sem Dúvida. O Pensamento  Pensamento é a Suma Teológico-Filosófica da Ação, Luz, Consciência, Visão, Confronto 102


 em sua raiz vem na verdade da Ação, que é, como se sabe, o Absoluto. Esta Ação que é tão Homem quanto é Deus. Porque no princípio era só Ação, e, assim o sendo, não havia este marco limitador entre Deus e Homem: a Consciência não havia. Ou então era só o que havia. Tanto faz. Já falei mas repito porque repeti. O que havia era Ação e tudo não passava  só e apenas  de Ação. Homem e Deus. Tudo na Ação. Não podia ter havido ainda Reação porque nem havia Luz... Era só Ação e bastava. Nem Proação, mas Ação, ponto! Quando se fez a Luz Tudo mudou. Passou a ser um tudo pequeno, ou menor, no mínimo. E aí a divisão rompeu em forma de Consciência e o Homem foi cuspido? Exaltado? Mas separou-se de Deus. Se é para voltar para Aí, quem se pergunta é o Homem. E num estado humilhante ou glorificado? Não é questão de soma, é questão de aderência, como a gota de mercúrio (Mercúrio!) que o tanto que se divida é o tanto que se reconstrói e multiplica vertiginosa e factualmente. Depois  só depois das coisas prontas pudemos pegá-las e descrever-lhes a prontidão repletos de orgulho (já em Palavra), afinal, como poderia saber o que sente sem antes ter visto o que disse (sentir)?  o Homem, que fizera, o mesmo Homem que já havia feito aquilo de que não se desvencilha pôde, então, descrever não apenas tal como sobretudo como e  por quê não?  por que se desvencilhara. Tenta até agora, pobre Homem, descrever o porquê, sem cuidar, contudo, por quê. Nem saberá. E então fazer veio antes do pensar: em fazer e sobre o fazer. (Repare que neste interregno é que Homem e Deus são Entes paralelos, foram feitos numa relação não de Cronos, mas de Kairós  este último o “tempo” primordial, illo tempore, e definitivo: o encontro das linhas paralelas  o Infinito!) É desditoso o momento em que o Homem descobriu que precisava, de uma forma ao mesmo tempo visceral e intransitiva, o Homem tão-só precisava. Muito mais tarde descobre que, mais do que precisar, este Ser precisa precisar. O que O dá de bandeja às rebeliões que O mantêm vivo em meio à Morte  oh esta que será a Ele (Nós) a última e benquista entre as vilãs. Viva a Ação promove Tudo. Pois bem, doravante deixarei doutrinas em prol das  que por sinal falam melhor  parábolas, histórias de fundo apreensível por significantes diversos, como exemplo, mas antes.

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Subtítulo: Perdão II. Desculpem a ruptura da franqueza.  Perdão não existe simplesmente. * *

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Não existe Perdão porque existe Consciência: Memória para homem. Quando, lá da Consciência-Memória, se desdobra, enfim, neste homem, Visão-Inteligência & ConfrontoVontade, o fato é que aquele registro primevo ali (na Memória) se incrustara como pele e cutícula, arraiga porque seu lugar é mesmo ali e de lá não deve ir embora por isso exatamente e mais Nada. Assim perdoar só quando  o que não existe  se esquece. Porque existe a realidade mais Divina que há no homem: a Memória-Consciência (e a Consciência o liga a Deus). Como pode o homem perdoar se para tanto precisa da anulação daquilo que de mais Deus há nele? a Consciência-Memória-? Portanto, quem quer perdoar que abra mão antes de Deus! O Impossível Metafísico (o próprio Eça de Queirós, lembro-me, tratou dele), aquele que o é até para Deus. E digo mais, a religião  coisa nefasta e podre, porque apregoa em essência a anulação de Deus  conta no fundo com a sua mais pujante aliada: a prática do perdão. Este perdão, oh incipiência, este perdão é o culto de um homem a todos os outros que o queiram dominar segundo mais ou menos instituam em suas Divinas Ações o rótulo “Erro”. Explico: Segundo ela, religiosa, para obtermos o “perdão” de Deus precisamos nos arrepender... de uma...Ação? Com licença: 1) Deus não perdoa, porque... o que para nós é princípio, é para ele fim (Consciência), e n’Ele não há  agora não há  n’Ele não há Registro (portanto, não há Perdão, e sim Nada, há Nada só Nada  o que melhor define, pois, a Essência Divina): 7; 2) Se um homem não se arrepende por um ato que lhe deu alegria, ou simplesmente um ato que precisava executar, o que, pois, lhe dará mesmo alegria, mas que é dogmaticamente repreensível pela religiosa, este homem acha, se ainda está enredado nas tramas pútridas, que não obterá a maior de todas as utopias: não obterá o “Perdão de Deus” (como isso me soa agora uma Blasfêmia!). Assim, eu diria: 5 (porque quem não desdobra em 2 a consciência não chega a 6, única forma física de se atingir o 7  e então não atinge o Deus Comigo, não vê seu emanuel, seu Cristo Interior): ou ainda: Perdoai as nossas ofensas (à Vossa Maneira: Nada), assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido (à nossa maneira: Tudo). E ficaremos, Deus e nós, felizes. E não obtendo o “Perdão” Fictício, Inventado, Falastrão, Enfatuado  porque, de fato, ao obter o que Deus nos dá por Perdão, só obteremos o Seu Sacrossanto Nada , esse homem enche-se de culpa, indefeso, pelo simples fato de ter sido  feliz. E ao mesmo tempo Imperfeito (diante de outros homens...) Porque para Deus todo homem é sempre perfeito enquanto assim não se acha, pois tem registrada a própria falibilidade e sabe que, sem Perdão, pode errar, porque erra mesmo! Isto é humildade. EU POSSO ERRAR, NÃO É PRECISO QUE ME RASTEJE PARA CADA DESVIO COMETIDO ANTE OS OLHOS HUMANOS, PORQUE SÃO TÃO HUMANOS QUANTO EU, E MEUS,

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NOSSOS ERROS. (Se isto fosse tão verdadeiro, não precisaria ter vindo em gritos garrafais como veio...) Saiba disto: Deus o está (Feliz) porque o é, e este homem, embora Sua “Imagem e Semelhança” (que não é mesmo!) não o está  e portanto não o é igualmente. Só estará quando souber: pode “errar”. Pode? Sim? Enquanto não aprender  e aprender é o Xis, porque é Consciência. Aí Sim! Não! a resposta da religiosa: Manter um homem infeliz é a melhor e mais fértil arma para mantê-lo subjugado; ainda mais mesmo que o medo, a infelicidade é o monstro aniquilador que reside em um homem sem lei e sem o Deus. Não há  o Deus, distando anos-luz celestiais, Sozinho: há os Deuses. Todos Unos e Universais e residentes no Macro e no Micro: Isto tudo é  Deus Único e Só. Porque só há Deus, um Deus.. Como obrigar a uma pessoa que registra (Tudo) que esta pessoa perdoe, já que Perdão é aniquilação das faltas (então reconhecemos as faltas...): se Perdão é apagar pecados, é apagar Deus, porque d’Ele herdamos a natureza de não apagarmos, simplesmente nãoapagarmos, já que Ele nos deu Consciência  que é Registro porquanto Memória. Também porque Deus nos deu a Imperfeição, deixando o Oposto para Ele, nas Alturas em que reside, tão nós (aí sim perfeitos) quanto nós próprios. Foi preciso, logo, inventar-se a mentira do Perdão, ligada à do arrependimento (sinônimo de culpa), a fim de controlar-se o homem através de sua mais nefanda natureza: essa Culpa. Ou a culpa de não ter culpa. Ou, ainda, sentir-se culpado por não sentir-se culpado! E assim por diante, em função de toda uma variegada gama de matizes multipardacentos advindos unicamente da espiral labiríntica da culpa. Quem acredita em Perdão é controle da ganância alheia. Homo homini lupus, Homem lobo de homem  dizia Plauto. Cecílio falou que homo homini  Deus... hummm... compreensível! Deus e Lobo... Não há Perdão: há Consciência. Por havê-la não pode havê-lo. Em Deus, porque sua Consciência é Nada  Ele não registra; em nós, porque nossa Consciência é Tudo  nós registramos. (Como se vê, há duas Consciências, não uma.) E a principal função da Consciência é ser distinta, diferenciada: uma coisa para Deus (fim-vazio), outra para o homem (princípio-registro). Isso significa dizer também:  Nós principiamos onde Deus finda. Ou : temos causa onde Deus tem conseqüência; e temos conseqüência onde Deus tem causa, porque se nós não fôssemos, esta a causa maior de Deus ser, que seríamos nós próprios, Ele deixaria de existir, ou de estar, deixando Ele próprio, em Sua Essência, de ser-estar, que é só. Ele não seria se não tivesse uma causa  e ao mesmo tempo meta  e nós o somos: causa (princípio) e meta (fim). Nós somos alfa e ômega Divinos. Relativamente a nosso Deus, cada um de nós é. Portanto, de onde se parte, para aí se retorna. Cada elemento da natureza, inclusive em nós, deve ter seu centro próprio de emanação de energia, o que equivale a dizer  Deuses. Nosso Registro Cósmico está onde apenas o Vazio impera. Ou: Deus vê a todos da mesma forma porque não vê a ninguém. Nasci? então é porque Deus já me esquecera há muitos anos (Seus anos, fique bem nítido), na medida em que Eu sou uma Verdade de Deus (senão não seria), e Ele, agora, já me tendo expulsado de Sua Casa, para que Eu volte por mim mesmo a Ela, precisa precisar expulsar de Si  de Seu Santo Si  outras Verdades como Eu: homens e mulheres nascerão. Porque a Mãe de todas as Verdades é a Mentira. Está de Olho nas Outras. Eu já sou. E por eu ser ao mesmo tempo a causa e o objetivo (meta) de Deus (o que, como se percebe, é a mesma coisa, res) é muito óbvio que o que sou d’Ele é 105


conseqüência. Porque causa é necessidade: o que vem de uma necessidade é conseqüência: se sou a causa de Deus, sou a Sua conseqüência. Tudo aquilo que já nasce sendo (origem) origina a necessidade. E como a origem é apenas Uma, a necessidade o será desta mesma origem, que, então, é simultaneamente conseqüência (ao ser reatingida). É apenas questão de precisar. De precisar livrar-se para ir a outras verdades. A verdade está no phy, o físico é verdadeiro, o psy da alma é a grande mentira (real) de Deus em nós, é o pseudônimo do físico. Os dois somos nós, que se desdobram em  FILHO. Quando uma Verdade vem do precisar, nós as expulsamos (Deus idem), para que só a Mentira continue soberanamente assediada e Única, e não há mais motivo para precisarmos dela, Verdade. Ela  que sou eu e tu e nós  já é! Foi e terá de dixar virem outros és. Agora, repara, é tua vez! ... donec requisecat in... Te. Quando Deus expira nós inspiramos. Nascemos? Deus nada mais fará, porque o seu elo em nós é, como já se provou, o Nada. A Ação de Deus para conosco,  no princípio de Deus a Ação , Sua Meta, Objetivo foi tão-só fazer que nós fôssemos (e nascêssemos sendo) o que somos. (Por sermos Objetivo somos causa, já se disse.) Agora, na Sua Consciência Divina (um Nada, que é a mesma nossa Consciência Humana, porém que em seu reverso completante, um Tudo), Ele se retira para Repouso de Aconchego, Risonho, porque Ele ri de Tudo e de Nada  único lugar onde estamos em sua Inexistente Memória. De Tudo porque Tudo foi Ele; de Nada porque Nada mais é Deus enquanto não se dispuser a andar  sozinho  de volta a Ele: quando será de novo um Tudo invicto exatamente na forma como nascera, consubstancial à Criança Primeva. E Tudo será Ele de novo. Por isso Agostinho dizia que a vida longa pode afastar de Deus? estava certo? nascemos Crianças Divinas e devemos a Ela retornar. Deus é a mais leve realidade, pois não tem Memória. Cada vez que um homem se rasteja sob Ele implorando Perdão, imagino a Gargalhada reboando que deve dar... se é que viu tal cena patética e alegre. Peço, portanto, que se neutralize o ESBOÇO 1 (q.v., acima), dando-se-lhe, por ressarcimento, o ESBOÇO DE PENSAMENTO 2, abaixo: PENSAMENTO HOMEM

Forma, Conteúdo

ALMA

[MENTE]

[CORPO]

(Essência 2)

(Essência 1/Estado 2)

(Estado 1)

(Consciência)*

[Conteúdo,

Forma]

[Essência 1,

Estado]

Estado, Essência 1 (Consciência) Acão, CORPO (Estado 1)

Luz MENTE

(Consciência)

[Visão,

Confronto]

ALMA

(Estado 2/Essência 1) (Essência 2)

DEUS

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*Consciência é sempre Forma/Conteúdo/Conteúdo/Forma: é, pois, a soma dos dois Estados (Estado 1 e Estado 2), do homem e de Deus. Podemos chamar de Essência 2, assim,  a Alma , a esta Consciência. A Essência 2 é a soma de todos os Estados humanodivinizados/divino-humanizados. Por isso, Consciência só se chama Alma se atinge, por completude, a Soma Homem-Deus, como queríamos demonstrar. Por isso Alma é Tudo; a Face de deus sem Ela, Alma, é o Nada Sacratíssmo que nos anima  sem ser. Porque Deus existe. A Divindade de Deus é ser Divino, e a do homem é ser humano. A mesma Divindade é Bem e Mal indo e vindo, sobe e desce, n’Ele e em nós. “Ah!  como dizia Clarice  era mais fácil ser um santo que uma pessoa!” Porque “santidade” é coisa forjada pelo homem: é mais fácil atingirmos o que o homem inventa que deveríamos atingir do que o que Deus quer que atinjamos por necessidade. Porque santo é imagem falsa, nem virtual; pessoa, verdade! Perigo terrível: quem deforma a imagem de um espelho, fazendo-a falsa (Hipocrisia, atores hoje não-bons), deforma a única possibilidade que tem de ver a si mesmo, e, portanto, deforma a própria imagem real! O homem se vê de outro modo que não pelo espelho? NÃO?! A aparência, também no homem, a aparência para ele  nele e por ele  é a sua própria essência... como se homem não contivesse Deus, que, por ser também indivisível, não se separa em imagens (real e virtual): é Um Uno. Deus é imagem: Tudo e Nada. Deus não é reprodução do homem, nem o homem é reprodução de Deus. Mas são feitos à imagem Um do Outro e à semelhança do Pensamento que compartilhamos  no Sétimo Elo. Assim, aquele homem que deformou a imagem real  por exemplo com a falácia do Perdão , ao ter deformado a imagem virtual, aquele homem, tendo deformado a própria única realidade, repetirei até a morte, realidade una que é a única verdade apreensível de si mesmo que possui, passará, apenas, em verdade!, passará apenas a agir de forma deformada, sem saber se o que faz é ele mesmo ou se sua imagem virtual-real deformada é quem está agindo completamente errônea por ele. (É um dependente de sua imagem falsa. É um eterno “por-ele”. Nunca atingirá o estado de Por-Si?) A imagem falsa cria servidão. A imagem real, libertação. Resumo: não se conhece? não sabe agir. É criança, mas não Divina. Ele não age: reage. (Mas também não o sabe...) Não tem Consciência, porque não aprendeu; não aprendeu, porque não tem Consciência. Não deve um homem voltar a ser Homúnculo (q.v.), porque isto é impossível metafísico. Deve ele voltar à Criança Divina, o que é a mesma coisa, em termos de Imagem Virtual, que é o Homúnculo, já que ambos (ou Um, porquanto a Imagem Virtual acaba mesmo sendo a Real) nascem do mesmo Santo Primitivismo de Deus. Assim, o Homúnculo é aquele homem primitivo antes do estado de Luz  é a conseqüência, a Casa e o Virtual; e a Criança Divina o é também, só que na volta, não na ida  a causa, o Retorno, o Real. Por ser volta, é claro que será causa. Porque a ida é sempre conseqüência da volta: nunca se volta para se ir, mas sempre se vai para se voltar. (Porque no princípio do ir existe a Casa que rechama, sendo, assim volta-objetivo.) O Objetivo é a volta, e por isso é a causa da ida. Porque existe algo chamado casa. Nós nascemos graças à existência da volta: vamos apenas por conseqüência. (Insira-se nestes ângulos a variante poder.) Assim, tendo vindo antes  embora ou por isso (a evolução individual responderá)  (e um “antes” segundo nosso critério de tempo), o Homúnculo é na verdade Imagem Virtual da Criança Divina: assim, ambos são Um, porém que esta Criança Divina gerou aquele Homúnculo, por ser sua causa. O voltar a ser Deus-Homem 107


gera o termos nascido Deus-Homem. A mesma moeda: Homúnculo-Criança Divina. Imagem Virtual é sempre a Latência Pulsátil, e, como Latência, como seria outra coisa que não efeito, conseqüência em vez de causa? A causa é o “é” da coisa, enquanto que sua conseqüência não passa do “pode-ser” ou do “já-foi”. Enquanto é “pode-ser”/”já-foi” ainda é mera conseqüência, e, enquanto não houver sua causa, como poderá passar da conseqüência para o seu próprio “é” enfim poder ser, porque nada é enquanto não é? (O presente é a única causa de tudo. Ele, sendo Tudo, contrabalança em seus dois extremos o nada do passado e do futuro. Não posso dizer agora: Tudo é Nada. Mas posso: é o seu equilíbrio exato.) Quando o homem sacrifica suas Imagens, as “duas” únicas que tem  que na verdade são Uma, porque indivisíveis, porque Deus nele  deixa de ter seu veículo Pensamento (que é Tudo e Nada porque é a soma Deus-Homem); e, sem ter veículo, simplesmente não é nada (o nada virtual, que é a ausência completa de ausências, o 3, que, com a presença completa de presenças, o 3, dá 6)  exatamente por excesso de ser (excesso de presença, o 4, que com ele próprio, justamente por ser excesso, sendo reduplicação, perfaz  8): digamos que está sobressacralizado (claro: o sagrado ofício  sacrifício  não pode ocorrer no que já é sagrado: o corpo), deformou seu não-ser (virtual) passando este a “ser” (impossível!) algo que não é, porque não nasceu para ser, acarretando um ser-ser sobre o real e o virtual. Morte! Este homem é um Peso (desculpem o pleonasmo e a redundância) Morto! Quem pular do 6 para o 8 estará fulminado... Ambos são sobre. Na metade, a justiça.

PASSADO: 3 PRESENTE : 1 FUTURO: 3 SOMAS:

7

1 3 1 5

(TOTAL: 12)

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Análise algébrica e pitagórica da vida: Evoco os egípcios e sua sanha numeradora infernal e genial.

No princípio o 1, que é vazio, ou Nada, maiúsculo (o nada minúsculo é coisa nenhuma; o maiúsculo é vazio). Ele se rebela, guerreia e vira 2, com sua espada. De cujo equilíbrio, cansado-satisfeito-feliz da guerra, ao repousar, nasce o 3, mas perigoso ainda porque sente a falta de uma, de uma perna: que não há nada sustentado em 3 a sustentar-se em 3. Que amadurece, vira terra e vira 4, assentado, duas pernas  dois braços. Enfim nasce uma cabeça maravilhosa, cheia, muito cheia, muito cheia, que dá 5. A partir de agora vêm as somas-multiplicativas, a colheita começou: o 6 é a dos dois 3, ele e ele, eu diria que é o primeiro círculo perfeito, isto é, pronto para virar-se e ser o; 7, este é repouso e terra, porque é 3 e 4; 8 é um pouco perigosinho, mas um doce amoroso, Amor de verdade, pois é 4 + 4, é muito terra, acaba evidenciando o espírito (preso?) que só poderia ser água. O 9 é multiplicação puríssima, o primeiro Gozo: 3, 3, 3. O 9 é o 3 perfeito em 3: o 3 é o primeiro equilíbrio, o 6 o segundo (por isso o 6 é primo-irmão do 2), o 9 o Verdadeiro, pronto para voltar ao vazio do 1, que é enfim  o 10. E acabou-se. (O que vier daqui é Lucro!) Liberdade e Amor. O casamento Deus-Homem é livrarem-se Um do Outro, portanto, ou de suas metades excessivas, para, só assim, precisarem precisar Um do Outro, buscando em suas metades justas as complementações de que precisam precisar. Fora isso, um nada ou um tudo virtual: que são estes de agora, causa e conseqüência ao mesmo tempo, estaticamente operados. Se não fossem estáticos seriam quase o de que precisamos, nós e Deus. Precisamos do Nada e do Tudo reais, causa e conseqüência ao mesmo tempo, entretanto dinamicamente operados, em fluxos: embora simultâneos, nunca ocorrem ao mesmo tempo. Então, nesse estado de Necessidade Santa, voltam a procurar-se, Deus e Homem, como polaridades opostas  opostas  de um mesmo ímã. Se fossem iguais, se repeliriam. Quem deforma a máscara  persona  deforma a essência! E essa essência, uma vez deformada, passa a agir de modo sempre  tudo o que fizer estará sempre  igualmente deformado! Nenhuma atitude, real ou virtual, passará a ter vigência legítima, porque são exatamente a mesma coisa. Quem deformou aquela matou esta. Deus é Deus, nós, nós. Sem Perdão, em Essência Absoluta  eis o Absoluto , sem culpa de Sermos Uma só Essência, Um só e itinerante.

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Subtítulo: Perdão III.

Perdão. Mas existe sim, e da seguinte monta. Já expus o quanto me incomodava, a tal ponto, que expulsei, exorcisei de mim. As verdades reais (se é que existem outras) nos incomodam a tal ponto, sobre delas com tal ferocidade precisarmos viver, que, como o ar excessivo, se não os expulsamos de nós, acabamos morrendo por excesso de vida. (O ar que eu ponho para fora das entranhas haveria de faltar-me? Aquele, mesmo que falte, aquele já se entranhou em mim e me deu dele aquilo de que eu precisava: pode ir-se. Preciso agora de outros, preciso de mais ares, preciso precisar de mais ares; senão morrerei. Ares, o deus da guerra? Preciso sentir raiva, preciso amar, preciso esquecer, preciso estar, preciso feroz e amavelmente ser, ser, preciso compartilhar, preciso rir, chorar, e às vezes, quase sempre ambos se acumulam em mim  e quero precisar que se acumulem num gesto de amor a mim , preciso odiar um pouco, vingar-me de quem me odiou, mas com amor para não assimilar o meu ódio e o alheio, preciso querer, preciso de ausência, preciso de mim, preciso de todos os homens e mulheres por todas as searas de todos os países em todos os mundos para todas as línguas e raças e crenças serem comigo, preciso iluminar o que já trouxe em minhas entranhas aprendido e apreendido: Ar.) (Assim nunca falta.) Assim como em fontes inexauríveis de energia prânica ou vital, tantrismo puro e em essência, a Verdade que por caráter de necessário nasce em nós precisa daí mesmo ser excomungada para, tendo-se arrebentado como cascas de ovo primitivo, peço perdão pela palavra mágica, o mantra que inventarei  primitiovo , para, desse primitiovo, nascer  Eu. Com a couraça arrancada à força de eu ninguém me vencerá. Só no Sagrado Casamento de eu com Eu  Hierogamia  haverá Paz. É favor não procurar outro caminho, não há atalhos. É claro que após essa batalha muitos lanhões hei de ter  felizmente  arregimentado em minha pele. Mas ela é pele, e sua função é protegerme de tal forma, que eu posso (e devo) machucá-la às vezes, para lembrá-la de que está viva comigo. Ah sim, o Perdão. Ele existe, mas na forma de soma ou extensão acumulada dos dois subtítulos anteriores (q.v., pelo amor de Deus!). Eu não agüentarei mais repeti-los, porque já me livrei deles, precisaria agora livrar-me de outras Verdades necessárias. Get rid of all the truths you have inside, and the world will show you how grateful all the people must be on or in your shadows. Já preveni, de certa feita, que apenas em inglês eu consigo expressar alguns dilemas: to be and not to be é um deles... por que será? Porque o Perdão só existe se se retroceder no tempo até um ponto Xis em que se percebe que a falta que se supunha ter acontecido não foi, na verdade, acometida de hýbris: ela simplesmente não existe. Assim é a passagem do to-be ao not-to-be. (A hýbris mais poderosa era querer livrar-se de Cloto, Láquesis e Átropos, as fiadeiras do Destino, Moïras Benfazejas, Eumênides, Santas. São os fios que nos unem e reúnem: ancestralidade genética e cósmica: homens e Deus. Ninguém dá mais do que o que tem. Até os Deuses o sabem. Fira a timé de um Deus... Assim, those people who do not want to get rid of this lye  it is not a truth, as I have told you, because you can not go on without it, so it is not a truth  those people will never suffer any kind of “evil” from Destiny, and it will always add those men lifes’ many blessed places. Please, do not try to achieve places you could not

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reach, because you will only be wherever your Destiny wants for you, and it only picks up the best fruits the Nature could give us... nothing else could happen to your blessed life. Do I beg you pardon? Do not ask people to give you something they don’t have. It would be a sin.) Não peça licença a ninguém para viver: a vida é sua! O Perdão só existe quando se percebe que a falta não foi cometida. Assim pode ocorrer  e ocorre. Nem se preocupe em não preocupar-se. Nem tampouco busque o que buscar. Viver é melhor que buscar. Se não, é Destino puro, além do Nada Sacratíssimo e Eternamente Digníssimo de Louvores. Amen. Com Felicidade, Uma Grande. Vou explicar-me (tentar, porque este é meu grande mérito) melhor: fala-se o seguinte:

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Subsubtítulo: Crime & Castigo.  O castigo vem como conseqüência de um crime.  O crime é, portanto, causa de um castigo. Não, não é mesmo! Quanta estupidez acondicionada em temperos lógicos e inteligentes. É tudo uma grande e audaciosa mentira, porém mentira que acondiciona a sociedade em temperos lógicos e inteligentes. (Há certa mentira real. Não aqui.) Toda a sociedade e a religião pensam manter-se num silogismo perfeito; e, no entanto, vieram com base em paralogismos alegremente estúpidos. É como se falássemos: o homem é um animal porque tem duas pernas, já que galinhas, que também as têm, são animais. (Será que nos esquecemos dos animais com quatro pernas? e os que não as possuem? Já viu uma baleia?) Pergunto o seguinte: será que os peixes nadam no mar porque ele é feito de água ou o mar é feito de água porque os peixes nadam nele? E se espalharmos vírgulas como quem distribuiu milho em meio? “Os peixes nadam no mar, porque ele é feito de água? O mar é feito de água, porque os peixes nadam nele?” Causa-conseqüência se relacionam melhor na coordenação explicativa... que neutraliza tudo, porque é tautas grego, é o “isso” da coisa, ipseidade (ai que palavrinha pernóstica, metida a besta e querendo vomitar erudição), é enfim apenas o que é, chega! peixe mar ou mar peixe? Eis a pergunta que responderá à relação crime/castigo. O que aparentemente é causa é conseqüência, porque responde à necessidade de realização  ainda que virtual  de um Projeto: o objetivo, a meta. Por isso a terra é a nossa grande conseqüência, já que viemos depois dela, como que seus convidados. Todo projeto é conseqüência de uma realização, porque, se esta não existisse (mas ainda assim passível de ser uma realização virtual, já falei), aquele não teria sido sequer posto à luz, não seria expulso de Deus como num Vômito Divino (que é o que somos da natureza?) Isto é, se a realização foi realizada ou não  é outra história. Porque até nesta realização haverá o Bem e o Mal / a Realidade e a Virtualidade. Assim sendo, ocorrendo em Imagem Real ou Virtual, a Realização é sempre a causa do projeto. Eis que o futuro é o pai do passado. Assim entenda: o fato de você ter Deus em você é a conseqüência de você apenas ser o projeto já vitorioso. A causa  esta Vitória Divino-Humana  é que fez Deus precisar (ou querer precisar, porque isto, para Ele, é possível) ir correndo residir em seu âmago de filhopai, ele enquanto Pai-Filho. (E em tudo isso, o três bilateral do Espírito Santo consubstanciado no  Um.) Portanto há um Louvor a Deus: existir. Há um sublouvor: ser vitorioso em Imagem Real (porque mesmo que seja ou que fique apenas em virtual, você será sempre o vitorioso de Deus). Se você não fosse a realização desta Vitória Excelsa, Deus deixaria de precisar (ou de querer precisar) existir. Mas, cuidado, somente na Realidade de uma Realização (nossa vitória suprema) é que haverá justificação da nossa conseqüência ântero-posterior/póstero-anterior: Deus. Quem não alcança a vitória despreza a Deus. Crescei e multiplicai-vos: nossa geração futura, nossos filhos serão Deus. Porque esta geração  Deus , sendo futura, será, como já conseguimos provar, na realidade, nosso Pai, que é ou não é aquilo que Deus é de todos, homens e mulheres? Achar em si  para o crescei da coisa  a própria mola, o impulso primitivo, o Arbítrio Divino; cada um tem o seu. Quem copia um Arbítrio alheio insinua, aos brados, porém, que Deus não teve criatividade suficiente para não repetir nunca, por todos os séculos dos séculos, um único Arbítrio que fosse. Nunca os haverá repetidos. Isto é apenas

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que todos somos presos na maior de todas as liberdades, que é sermos quem ou aquilo que somos. Como nunca houve duas células, dois átomos idênticos em toda a história pregressa, futura e presente da Natureza Cíclica em que Deus mais do que em todo o mais pode ser aquilo que é, é o futuro passado pelo presente. Por vir após o crime, o castigo é a sua causa. Digo: se não houvesse castigo não haveria crime. “Crime” existe por existir para ele “castigo”. Se não fosse este viés emprestado ao universo semântico do “castigo” (do qual fazem parte “amor”, “perdão”, “compreensão”, “arrependimento”, “justiça” e outras atrocidades), aquele primeiro campo semântico, o do “crime”, não teria sido tampouco contaminado de outros vieses (“pecado”, “falta”, “hýbris”, “démeusure”). Tudo não passa de Linguagem. Sei que o homem chegou aonde chegou  com tudo  por causa da Linguagem. Sei que nenhum progresso existe sem ela. E, afora ela, tudo são Atos. Aquela é a Imagem Virtual destes. Mas, sendo Virtual, será igualmente real, como nos provou o fato de que, uma vez deformada a Imagem Virtual, será a Imagem Real (e todo o seu universo psicossemântico) igualmente deformada. (A Psicossemântica deveria preocupar-se em estudar essas implicações de alma presentes na imagem: seria o estudo da imagem através da presença prévio-posterior da alma. Mas também o estudo da alma através da presença póstero-prévia da imagem.) Tudo são Atos: o ato feito, executado (ou cometido...) por alguém é tão-somente um Ato  nem é falta, nem crime, nem pecado etc. , é um Ato. Passará a ser crime se houver, para ele, um “conseqüente” (eis a mentira paralogística, já que é o causal) castigo. Por que tomar café-com-leite de manhã com a janela aberta para o sol não será crime e matar uma pessoa o será? Porque para este último ato existirá o lastro, a legitimação prévia de um castigo, e, para aquele primeiro Ato, não. É a única diferença. O homem goza do livre-arbítrio  ser livre para fazer ou não fazer aquilo que tem obrigação de fazer (e, ainda que não o faça, ele será sempre, até o fim dos dias, exatamente aquele projeto que trouxe em sua mala psicossemântica: poderá ser um projeto real ou um projeto virtual  eis o livre-arbítrio) , e, portanto, acaba sendo um criminoso eterno, ainda que não cometa “crimes”, porque tem o dom do poder, e, principalmente, o do poder poder, e o do poder querer (etc.), podendo, por isso, fazer o Ato que lhe aprouver. Como é Bem e Mal, o homem é Tudo. Ele simplesmente. É: todos nós somos criminosos, mesmo que nunca tenhamos cometido o que a sociedade tachou  hodiernamente  como crime ou como pecado (neste último, ela socialmente se arrogou advogada e representante maciça de Deus, como se Ele tivesse dado a ela uma procuração de plenos poderes, para que ela, em Seu Nome, determinasse o que é e o que não é o pecado, que é aquilo que a Ele agrada ou desagrada, ao mesmo tempo!), já que sempre cometemos algo que ou já pode ter sido crime-pecado, ou que muito bem poderá vir a sê-lo“s” num futuro. Mas, ainda que cometamos aquele “crime”, aquele social-divino, quero dizer, como matar alguém, e, ainda assim, não havendo, em realidade, para ele, um castigo (ou seja, mesmo que este castigo venha apenas em Imagem Virtual), o tal crime será, sempre, ao menos em Imagem Virtual, como falei, um crime. Porque nada nem ninguém deixa de ser apenas por não ter. Isto é, tudo é apenas o que é, quer vejamos este é (num está ou num tem), quer não o possamos, por alguma razão, perceber sensorial ou sensitivamente. Isto não importa: se é, é: esteja ou não esteja. Tudo aquilo que é aparenta ser, ainda que não estando nem tendo.

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Diria eu que um crime com castigo virtual é igualmente um crime virtual (mas ainda pode ser chamado de crime graças à semente-raiz castigo, latente ou plenificada, pouco importa, que o realizou). Logo, o perdão é a causa do pecado. Assim como a galinha é a causa da existência de um ovo (por isso, atualmente, vem ela depois dele, como o perdão viria “depois” do pecado), porque não só o ovo nasce da galinha, como sobretudo nasce para que ela própria nasça, pelo que provo ser ela, no conjunto com a causa que é, igualmente a conseqüência da própria causalidade explicitada e legitimada em suas cascas ovais (referir-me-ia agora ao “pecado”, perfeita vítima como o próprio ovo? a forma dentre todas que maior requinte exigiu da Natura?). Daí a tripartição galinha-ovo-galinha; pecado-perdão-pecado. Só não haja o equívoco de se pensar que houve repetições, porque a galinha vinda “após” o ovo não é a mesma vinda “antes” deste, nem isso o é com o pecado-perdão: galinhaR-ovogalinhaV; pecadoR-perdão-pecadoV. (Apenas nos filhos há o caráter explícito de alguém  os pais , porque nos pais, o que há é caráter implícito de alguém  os filhos : estes são a causa de ser  já que ser significa explicitude, aparência  daqueles.) Se não fosse a existência pulsante e vivificada deste perdão não haveria a igualmente presença do pecado. Quem “peca” e espera “perdão” (ou “peca” esperando  para esperar, por esperar, com esperar  “perdão”) simplesmente assina embaixo, induzido e tolo, a sentença de nascimento e gênese e consubstanciação do próprio pecado (a ele) incômodo, porque, como o pecado é o caminho e o perdão a volta, neste estará a causa daquele, que é mera e coitada conseqüência de um seu algoz-Pai. Tudo na vida são Atos: pecado é Ato quando não houver perdão que o justifique enquanto crime; enquanto não existir o perdão criador e fabricante exímio de pecados, estes se esvaem, porque perderam sua razão de ser e sua origem. (Quem não tem origem não é, porque não tem causa nem meta, portanto, nem possui necessidade: o que fizer estará errado.) (Por isso exatamente eu falava: quem eliminar as origens, o motivo, a causa de se perdoar a alguém, terá conseguido o fim, a eliminação do pecado, porque matou sua meta  que fora virtualizada na origem. A única forma de perdão é a transformação deste em nada. Só se “perdoará” se se vir que não houve motivos para se perdoar, já que, não havendo este perdão, o que não houve tampouco foi o pecado. Só quando o Tudo passa ao Nada se obtém categoricamente a falaz e graciosa categoria psicossemântica do perdão. Perdão só é perdão se não é.) Agrupo, então, da seguinte forma: perdão-castigo é a mesma coisa. Pecadocrime também. Vemos duas moedas, quatro faces de duas moedas. O significante e o significado daquela primeira é que vêm a obscurecer os mesmos elementos dicotômicos desta segunda. Se não fosse o anteparo daquela, esta se transformaria em Ato-Ato. Por cima dela, ou delas duas, somente uma única e indescritível Realidade-Virtualidade, a Única existência Absoluta e Relativa simultaneamente em si e por si mesma: a Ação. (Mas se houvesse Ato-Ato haveria sobressacralização: por isso não haver.) E por trás dela, mais Nada. (Ainda!) Quanto à Mentira, digo o seguinte: não existe, porque é o oposto da Verdade, que, assim, tampouco existe. Apenas se equilibram mútua e tripartidamente, porque dessas “duas” metades nasce a terceira metade, esta sim existente, esta sim Real. Ou, se existir uma, porém que existir significa ser, é porque ambas existem  igualmente. (Corporificadas embora em seu “filho”: a Terceira Metade da Vida.) Posso andar mais:

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Toda verdade só o é para determinado pano de fundo, cenário, porque em outros deixa de sê-lo. Assim é com o ator, por exemplo, que, hipócrita para com os espectadores, é pessoa para si mesmo (como já nos teria sugerido Panécio de Rodes com sua persona?), passando a ser pessoa para tudo, para todas as coisas, porque aquilo que em Verdade atingiu para si há de estender-se (mas só aquilo mesmo) para o infinito dos séculos sem fim. Ou seja, o que quer que faça o ator (Tudo) é Verdade para si próprio, porque o palco é seu pano de fundo, cenográfico e vital, sendo ele próprio, ator, hipóstase quase epifânica deste mesmo palco em que pisa, passo a passo, ao passo que este Tudo é igualmente Mentira (Nada) para o espectador, cujo pano de fundo é a vida alheia ao palco. Ou em primor: 1) quando artista lida com espectador artista, é tudo verdade; 2) quando artista lida com espectador não-artista, há meia verdade e meia mentira; 3/4) quando não-artista lida com espectador não-artista, há tão-somente mentiras. (Igualmente quando o não-artista lida com o artista, porque este último se decepcionaria? Não! este sentimento  decepção  nem pode chegar-se a ele, é paradoxal à sua natureza de artista, que simplesmente reconhece a Mentira e se diverte com ela, porque sabe de sua necessidade face à Verdade que, porventura, naquele instante, não existiria: dane-se! Todo artista é belo porque sabe ajustar-se, até, à Mentira. Diverte-se horrores.) 5) a hipótese 2 não pode existir. Meu pai, Aristóteles, já me ensinou: “Filho, dizia ele, imagine você que haja certa árvore de três metros de altura; isto é verdade. Agora pense que você a observa de uma tal distância, que aquela mesma árvore passa a ser menor do que o seu dedo indicador; isto também é verdade. Portanto, a árvore ter três metros é mentira para você, e ser esta tal árvore menor que seu dedo é mentira para ela. A verdade dela é: Tenho três metros; a sua é: Tem ela quatro centímetros. Nada é tudo”, completava ele. (O cenário aqui foi o espaço; conosco, alma-corpo, Consciência-Confronto, é o tempo-espacial, de cujo casamento sagrado  Hierogamia  nasce a terceira metade, o Filho: a Velocidade-Mente. Portanto, dir-se-ia que é na Mente (ou Velocidade) que se dá o encontro entre a arte imitativomentirosa (Alma-Consciência) e a não-arte essencial-verdadeira (Corpo-Confronto). OU: lá a Paz, aqui a Guerra. Lá a Ilíada, aqui a Odisséia. (É que a mesma relação existe entre alma e corpo, já falei há poucos metros daqui... sendo-lhes pano de fundo a Visão, que é Mente.) A tudo isso chamarei Circunstância Divina, reveladas pela LUZ:

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DUAS CABALAS:

LUZ

ESPAÇO ESPÍRITO CORPO

ESPECTADOR VERDADE

CÂMERA

AÇÃO

VELOCIDADE FILHO MENTE

TEMPO PAI ALMA

CENÁRIO VEÍCULO

VIDA

TÉCNICA

PAI

FILHO

ATOR MENTIRA ARTE ESPÍRITO

Ou:

ESPAÇO VELOCIDADE

TEMPO

CIRCUNSTÂNCIA

CORPO

MENTE

ALMA 116


Interessante: a cruz (Cristo) tem quatro ângulos retos: 360 graus, ou um círculo. Cada triângulo da estrela de seis pontas (Davi) tem 180 graus: 360 graus, ou um círculo. São a mesma coisa. Meu irmão, Aristóteles, com a aristocracia de minha linhagem até na raiz do nome, já me alertava no berço a respeito da peça que nos pregam os sentidos, por exemplo, quando julgamos o tamanho da árvore segundo o que nos é a verdade do espaço, imbatível. Acho que ele se inspirava em Descartes para dizer isso, porque o rapaz sempre disse que os sentidos nos enganam, até provou para si mesmo a existência de Deus baseado, também, nisso. Meu tio Newton arrematava que “uma árvore (ou seja lá o que for de estático) está parada para si mesma e em movimento para alguém que passa correndo por ela; este alguém, parado para si mesmo (basta que saibamos que seus olhos terão sempre a mesma distância de seu nariz), estará, para a árvore, em movimento.” “Ou seja, diria meu outro tio (Einstein): Tudo é relativo.” Toda verdade é relativamente mentira a outras verdades. Toda mentira é verdade para si mesma, porque simplesmente é, se não fosse, não seria (isto é, não aparentaria ser, porque tudo aquilo que é aparenta, e tudo aquilo que aparenta é). Só existe absoluto quando se olha de si. Nada é relativo deste ponto. Ou seja, até a própria relatividade é relativa. E a mentira seria a única verdade imutável, porque é em si verdade absoluta (de si mesma) e mentira absoluta (de outros si mesmos...). A mentira acondiciona em si o absoluto. Deus é mentira? Meus parentes devem estar chorando de emoção, orgulho de mim... Isto: a busca pela liberdade é a grande prisão do homem, diria eu ser o seu verdadeiro totem. (A liberdade é sua maior mentira.) Mas, ainda que não haja em si mesma a busca, haverá de qualquer modo a prisão: que é a liberdade do ser exatamente aquilo que pode vir a ser (nada mais). O homem, com tudo isso, necessita de liberdade. Por isso o homem necessita também de prisão. Ele conhece que, através do limite  que, em relação à liberdade, é Nada , ele próprio chegará ao ilimitado de sua (cada um chegue à sua) liberdade (nem há duas repetidas), liberdade esta que, em relação ao limite, é Tudo. Com o Nada, (limites, cruzes!), ele chega ao Tudo (liberdade ou libertação). Ninguém alcança a liberdade do outro, porque seus limites não permitiriam... (Seus limites!? de quem? De ambos!) Também nenhuma pessoa é capaz de interromper a liberdade de alguém, pois apenas este alguém poderia, com aquela pessoa (que, como eu já disse, é nenhuma), interromper a própria liberdade, porque teria acreditado (pobre coitada) na verdade da nenhuma pessoa, que, para este nosso alguém, não passa, verdadeiramente, da grande mentira; se este alguém não o vir, a tomará como sua verdade, e, além de atrapalhar a liberdade própria (que é a única em que tem este condão de atrapalhar), fará cócegas, talvez, na liberdade da nenhuma pessoa, que sabe Deus como irá andando... Cada um tem o seu Nada, o nada alheio nem sequer existe. Aquele que é “obrigado” a carregar uma cruz que não é a sua, como espécie de Simão Cireneu, não vencerá por esta cruz alheia  porque ela não era a sua própria limitação, não era o seu nada, não leva a coisa alguma, quem dirá ao Tudo Individual, e não, finalmente, existe. Muito bem, ai ai, mas o Tempo é a grande guerra de Deus, Sua agonia excelsa, o maior conflito que o Ele possui. É por isso aquilo que O mantém eternamente Jovem, cada vez mais criança, porque fonte eterna de cisões e casamentos. Deus! O grande Guerreiro, Dominus Deus Sabaoth, O Senhor (...nem poderia ser de outra forma...) dos Exércitos! Só nesta guerra haverá a Sua (e a nossa) Paz. É do conflito eterno entre Bem e Mal que Deus

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emerge Eterno. Ser jovem é manter o direito de assustar-se aceso. Há dois tempos, porque Tempo é Alma (Consciência): 1 e 2. É, amigos: a Felicidade não é deste mundo! Porque a gênese da Felicidade é na Mentira da Alma: a Alma é a Mentira do Corpo, e o Corpo é a Mentira da Alma. E Deus é a Grande e Única Absoluta Mentira, através de cuja existência, pois, nasce o desequilíbrio )ou dois equilíbrios) ávido(s) por equilíbrio (um) de onde  extremos que são  nasce por fim o Filho do Homem: Nós, os Cristos, ungidos de Deus (Alma) e da Terra (Corpo). O que é Felicidade? é o que fica no âmbito da Alma, que, para o Corpo, é Mentira. Daí não sentir este Corpo a Felicidade se não encará-lA como Mentira Verdadeira que é para Ele, Corpo, vendo-A em sua Verdade Relativa: o Corpo precisa conhecer que Felicidade é Mentira (para Ele) e é, pois, a Sua Obra de Arte. A Felicidade é a Arte Profunda do Corpo. O Seu mais Profundo Apuro Estético. Não há Deus onde não há Beleza de Arte. A Felicidade tem três metros de altura, como as árvores aristotélico-einsteiniano-newtonianas, porém que apenas em relação à Verdade de si mesma, que é na Alma. Para o Corpo, a Felicidade é  ARTE! Arte Imitativa, Mimética, Imagem... Ídolo. A Felicidade é um Ídolo, Ícone, Res... Com seus três centímetros guarda a Integralidade dos três metros. Sendo Arte, é  TEKNÉ. Pressupõe desempenho e para isso demanda seu tempo, sua disciplina, seu esforço próprio: Técnico-artisticamente falando, é as duas coisas do Nada da Arte, Técnica e Arte, Desempenho e Aplauso, Trabalho e Gozo  e por fim Tudo. É a Cruz Verdadeira de todo Homem: da sonolência do horizontal nasce a avidez vívida do vertical. A Música, por exemplo, não é nada se não for apenas o que é. No “apenas o que é” está sua Beleza porque é o ajuste do “o que é” ao “apenas...” Beleza está no vislumbre da Verdade por trás do que pode ser  e é  daqui: Mentira! Assim como dos desequilíbrios Terra/Deus, Corpo/Alma nascem os equilíbrios em guerra HomemMente, é com isto que se deve chegar à perscrução do estado de Felicidade. Porque a Mente é o que liga  Anjo-Demônio  o Corpo do Homem à sua Alma. Com Ela, se for amiga, aliada, o Homem chega à Felicidade por equilíbrio de meio. Se a Mente for ardilosa, porém, eis que só se chega a deturpações de Nada-Tudo, Verdade-Mentira. O Trabalho (Disciplina) da Arte cabe à absorção labutante da Mente. Esta Mente precisa conhecer e descrever e conhecer de novo (há dois conheceres em meio dos quais um descrever: conhecer mal; descrever; conhecer bem), enfim, reconhecer o que traz Felicidade e o que A afasta do Homem. (Adoro a palavra “reconhecer”, porque, embora signifique “conhecer de novo”, graças à pulsação do prefixo re, significa, também, “conhecer pela primeira vez”, que é, no fundo, o que significa “conhecer de novo”. E.g.: “Vamos efetivar o reconhecimento desta área?”) Fez este trabalho (refiro-me à Mente)? Sai de campo e dá lugar à vivência  sinta-se o quão profunda é  do Corpo, que goza e frui o que da Alma puríssimo provém... Vive-se o estado Abstrato na perfeição incoercível do Concreto por causa de uma ponte angélica: a Mente. Se a Mente não serve para isso não serve para coisa nenhuma, ou melhor, serve para atrapalhar, porque é ponte sim, mas ponte ardilosa, quebrada e esconde sorvedouros inafiançáveis. O homem, não atravessando o rio pelo rio, confiando na presença da ponte, resvala no escorregadio piso de madeiras podres que a formam se tem Mente ardilosa. É tocaia rasa. Arapuca. A Felicidade está por fim no nãoser. Cabe à Mente trazê-lA ao ser conservando sua essência de Verdade (onde é de fato  Alma) e Mentira-Arte-Técnica (aonde se quer levá-la  Corpo), ou melhor, trazê-lA. (Eu diria que há dois lugares para a Mente: Razão & Coração. Os dois são Mente. Quando passamos da descrição do que traz e o que afasta Felicidade  vide acima  para o

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sentimento do que apenas A traz, passamos da Razão ao Coração, ponte interna da Mente, e agora só restam Corpo  vivendo  e Alma  fornecendo.) Passa que de agora em diante também o próprio Corpo há de poder fornecer Felicidade à Alma (só agora!) em pêndulos inesgotáveis de alimentação/retroalimentação etc., etc., etc., pelos séculos sem fim. Quando se diz, em religião, que do Corpo se chega à Alma, tenha-se em Mente que antes é da Alma que se vem ao Corpo  com influxo benéfico da Mente , porque nascemos na Alma e para ela é que se retorna. Não queira fazer do Corpo fonte de mananciais sem ter buscado antes na Alma a Inspiração (que é Mente: Razão-Coração) para a vivência profunda (que é Corpo) do que a Felicidade, “que não é deste mundo” (graças a Deus!, porque é Alma), tem a nos oferecer. É uma Ambrosia, um Néctar, um Vinagre de Arroz que leva à Eterna Juventude da Integralidade Alma-Corpo. É jamais terminar... Jamais. A Paz da Guerra, a Guerra da Paz. (É certo também que certo sofrimento no Corpo ativa a necessidade de equilíbrio deste com a Alma, que não tem sofrimento, porque, só então, da Cruz da Felicidade, das suas Pulsações horizontais nasce o Homem em Pé na Verticalidade de si próprio. É duro dizer, mas a pele é a Grande Metonímia do Corpo, na medida em que, como Ele, necessita de carinho e desafio, Amor e Raiva, ou Paixão, Paz e Guerra  e nada em excesso, nem mesmo esta sentença  é: seja excessivo às vezes, não em excesso! A pele é portanto Jovem como o Corpo.) Parece-me que, no que tange ao heroísmo, à guerra do Koûros grego, palavra que significa Jovem e também Guerreiro, ao mesmo tempo, existiriam basicamente três tipos de homens heróicos, ou que, no aspecto arquetípico (porventura arquetípico) de suas faculdades heróicas e inerências intelectivas ou cognoscitivas (ou, ainda, e sobretudo, criadoras), dispõem esses mesmos homens de três possibilidades, não excludentes, mas opostas em trígono  e talvez por isso coincidentes. Calco-me sobremaneira, como se vê, num aspecto opositivo não de dois elementos  como o tem sido feito por meus companheiros até o presente estado das coisas  mas numa oposição triangular, em que, só nesta forma, ocorreu (ou bem terá ocorrido) o equilíbrio (é desta palavra que todo o mais provém, a ela retornando  ou querendo retornar  alígero) dos dísticos opostos: a coincidentia oppositorum, o conjunctio oppositorum, é perfeição no três, que eu diria que se tresdobra para ser o que o torna um só ele mesmo. “Em si mesma a antítese de todas as antíteses, e, assim sendo, deixa de sê-la?”  pergunta Rei, personagem de minha segunda peça tragicômica (Poluição de anjo), referindo-se à Morte, e continua: “Porque se a antítese é o fiar-se em dois, a sua própria antítese é nada exceto a prova da existência do um...” Por fim: tudo o que é absoluto e indivisível so o é graças ao desequilíbrio-equilíbrio de duas (agora sim são duas) metades. É na terceira metade (repito) que se acha o Ser. Enfim são: 1) os que adquiriram certa gama (pequena ou grande) de vivências, transformando-a em sabedoria, manha, artimanha, astúcia  inteligência. Com esta gama, tais homens aplicam, indistintamente, por analogia e metonímia (ou seja, pela metáfora da linguagem da vida), aplicam seus conhecimentos adquiridos previamente nas demais situações futuras que lhes advierem: são, como se vê bem, homens de indução, decompositores natos, ruminantes, e, por isso, dificilmente saem do campo daquela primeira gama adquirida, já que não constroem, apenas se dão, agora, ao trabalho de ajuste do antigo sobre o “novo” (para eles não há novo, eis o Xis; se carecessem de ajuste real, seriam Grandíloquos). Ainda assim, esses homens são heróicos, meio Sísifos, por se eximirem de certas dores atrozes, na medida em que a repetição dos padrões, antigos (ou arcaicos), vem-lhes sempre como real

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medida de atenuação, isto é, a dor é constantemente repetida, mas nunca renovada, sempre está um passo aquém do que estivera momentos antes de ter reincidido sobre ele, que, assim, estará sempre acima, ainda que não perceba, porque nem olha para trás, mas apenas para agora, com demasiada confiança no passado-carapaça-de-tartaruga aonde vai sempre que amedrontado, e sempre... subindo... rumo... a... o... Olimpo... É homem de costume, de moral, homem ético, provê à sua vida o sustento que emana da força do hábito, pois se ajusta eternamente àquilo que já conhece e que, até, no mais das vezes, já pôde descrever (quanto à descrição, é outra história). É homem de ascendência explícita, e sustenta-se em sua ancestralidade genético-egóica. Este homem vencerá  um dia  pelo seu próprio esforço (maior que o necessário geral...); vitória; eu os chamaria de Homens Gama, camelos, em hebraico (Gimel); é um homem de Memória-Raiz, e apenas nela reside seu ser, é homem de Tudo, é sua própria casa, alimenta-se do mesmo, praticamente promove a fotossíntese para si mesmo, pois, parado, nunca morrerá de fome. 2) Os segundos são aqueles que adquiriram a mesma gama (que pode ser maior ou menor que a dos Homens Gama, fator este absoluto e irrelevante), porém que, sobre ela, ou nela, construíram uma nova passagem às situações futuras, onde muito bem residirão. Isto é, receberam aquele mesmo limite, porém que, antes de aplicá-lo no por-vir das coisas, tomaram o cuidado de ampliarem tal limite a zonas impensadas por um simples sequaz da raça Gama. O homem desta nova geração, geração 2, certamente superior àquele primeiro, soube lidar com a matéria adquirida  e limitada  muito antes de querer aplicá-la na vida; portanto, como plantou mais, já se vê que, no próprio plantio (que vem antes-depois da colheita), obteve conseqüências maiores, porque, exatamente por ter vindo antes, o plantio é a grande conseqüência na vida deste homem-2, de cuja própria passagem à casa (daí os chamarei de Homens Beta, casa-porta, em hebraico  Beth  e têm veia Daleth: o ovo é a casa da galinha, como o perdão é a casa do pecado, como a linguagem é a casa do ser, como Deus é a casa do homem e o homem é a casa de Deus: oh a casa  eterno local de regresso) é o maior responsável, muito provavelmente o único: perpassar os limites primitivos  a sua Gama arcaica  e dar-lhes cunho de porta-casa  um Beta Aberto  é o que buscam; e, como já renovou, por sua passagem, as vivências da primeira gama adquirida, levando-as à própria casa, onde tudo se transforma (vide gruta de bruxa, vide teia de aranha), não está mais malfadado aos sofrimentos repetíveis, porquanto já deu a estes face exígua de semente, precisando apenas plantá-las: em plantar, sim, está seu maior segredo, pois, tendo ficado mais tempo nesta empresa, que (como já repeti ad infinitum) é conseqüente, já se nota a vitória maior, porque esta vitória  é claro!  só poderia ser a conseqüência da vitória menor, que é, esta sim, a causa daquela (nesta, subir; naquela, chegar: vê-se que o caminho é a causa, a reta-final a conseqüência  o caminho a meta? sim, porque pede glorioso o seu desfecho: a Vitória Vitória). Como vemos, o segredo de não repetir é renovar. Quem não renova repete. E quem repete, embora anistie, fá-lo aos poucos, demora muito paa queimar um sofrimento (eis a necessidade da existência do carma para o nosso Homem Gama), em vez de queimá-lo por meio de sua renovação... Ou seja, quando lidamos com matéria cármica  elaborando-a, como o fazem Homens Beta  esta matéria é portal (daí, repito, Delta, Daleth) para a transformação definitiva, operada na casa daquele homem. Ele transforma o chumbo do carma no ouro da caminhada. O ouro é, portanto, apenas o chumbo renovado. (Repare-se em que, mesmo com este nosso homem de agora, não se fez ouro de “nada”, mas de matéria pré-existente: o chumbo. Um homem que não tivesse nenhum carma, portanto  isto não há  não caminharia por falta de adubo.)

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Assim , é preciso também aprender a deixar pelo caminho... E nosso Homem Beta o aprendeu. É um homem que purga certos adstratos, mas chega praticamente incólume, porque abre as portas da Memória-Raiz-Caule para: 3) os que tiveram a mesma gama (ou menos ou mais) dos homens-1. Pare-se um pouco. Pode ser que este novo homem tenha pulado a etapa dos homens-2, porque não necessariamente lidou com aquela gama arcaica, não para fazer dela a matéria de aplicação em sua vida. (Se lidou com ela? Claro que sim, porque é homem e todos têm obrigados uma origem, uma praxe, suas Moïras, seu Espaço, que é ela, gama, carma. Ninguém vive só de Tempo, nem Deus vive. Há uma velocidade triangular que une Tempo a Espaço, e, nela, o princípio das dores.) Este novo homem, homem-3, entretanto  eis o entretanto da coisa , este homem novo observou que cada situação, embora aparentemente repetida (por isso aquele homem-1 ter caído no “atalho” da analogia irrestrita), é, na verdade, nova, como ele, novo. O homem-2 já observara isto, mas com certa incipiência (ou impaciência), ao constatar que precisaria transubstanciar sua Gama em sua Beta. (Transforma o carma em casa.) Quase como deixar de precisar (o homem-1 precisava) levar a própria casa às costas, ruminar infinitamente um só alimento: tartaruga e camelamente, nômades incertos, e necessários. Homens Beta possuem solidez, mas já desligada de seus corpos, estes não são sinônimo apenas de raiz, mas também de caule, elevam-se com pujança rumo à meta, que podem ver (ou apenas vislumbrar) de altos cimos arvóreos, copas, que é onde se situam suas casas-Beta-portais. O homem-3? para este homem-3 aquela transubstanciação (Gama>Beta: Raiz>Caule = Copa) não é possível, nem suficiente, nem necessária! porque as realidades da vida são irrepetíveis, e ele precisa estar apenas isto: sempre nascendo. O seu plantio é colheita imediata: não é um homem de conseqüência-causa, mas de trígonos: planta-colhe-é (colhe-planta-é), ele é-é-é. Ele é Folha e tudo o mais. A sua Gama é, apenas, como certa praxe a ser cumprida, mas acaba e ele não mais precisa lidar com ela em termos de “matéria-prima”, porque não precisa levá-la para casa e renová-la em ouro (Chrus em grego e Cruce em latim? faço meus trocadilhos greco-latinos propositais...). Sua Cruz, seu carma, sua Gama, viveu-a passada. Vive eternamente agora no Olimpo do Tempo, mas tem a liberdade de descer à Terra do Espaço quando quiser (geralmente por seu estado pio), na Velocidade que bem entender, para daquela Terra sugar o prazer de sair e de retornar, quase Apostrófio. Este homem lida com matéria-prima dos deuses: Criatividade (há quem prefira chamar Revelação, Inspiração, Sentimento, Intuição... Etc.) Antes, havia lidado com outra: Cisão. (Aqui o Caos, ali Eros?) Este homem é, em resumo, Afrodite: cronida-uranida, possui astúcia (a Gama temporal-limitada de Cronos, espacial, enfim) e instinto (o Beta atemporal-eterno de Úrano, veloz). Apenas deuses  como este homem-3 é um deles  criam. Sobre cada situação, nova, não precisa recorrer à Díke, ao dicere, ao dizer, ao falado, sagrado, guardado, ressumado gota a gota sobre as gerações pregressas, não é moral, ético a ponto de igualar-se à Hera Furibunda: ele cria sobre elas, porque são realidades aparentes (e portanto são) que merecem o mesmo apuro de quando teriam aparecido (o que as faz parecer “repetidas”) por uma suposta primeira vez. Está um passo além da renovação: vive no florescimento próprio. Esta “suposta primeira vez”, a origem, nunca repete em si o quanto foi, mas sempre apenas o quanto é. A origem nunca foi, sempre é (será). Por isso a origem não está no passado, mas no futuro (eis porque a causa no futuro, junto ao objetivo, que é a própria origem também), porque a origem não “foi”, não é passada, legada ao Letes, mas será  e apenas enquanto não for, porque, quando for, deixará de ser este futuro-será, igualmente virtual, e passará a ser presente-é, real, tal como é atualmente, porque, então,

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simples como ela mesma furiosamente pode todas as coisas do universo, Tudo, esta origem agora, novamente, é (e mais nada) aquilo que é. Eles conhecem que só há, no mundo, primeiras vezes, ou Primeira Vez, só há és, nunca haverá uma “segunda”, nada se repete, jamais. Por isso o tempo é cíclico, o ano é anelar, oroborístico (divirto-me horrores!), como a foice, obliquamente se volta sobre si mesmo, a quem elimina por imposição de limites  daí ser tempo, este único pano-de-fundo-Nada , porque, se este tempo não não-fosse (o que se repete é a única realidade que não é, ou que lega a si mesma o não-ser, porque se fosse, em verdade não “seria” por uma “segunda” vez, daí o tempo de Cronos simplesmente não ser), assim como as coisas são, tudo se sobressacralizaria, e o mundo não teria razão de ser humano, porque seria apenas deuses-Deus. Assim, o céu-uranida é o que é (e é exatamente criado como a terra, seu espelho): eu diria que o Azul é o grande SIM da Natureza Humana. (Momento báquico, dionisíaco e profundamente inspirado por vinhos vitais...) O tempo, a dizer nãos repetidos, ele é quem justifica por necessidade agonística, guerreira e jovem a manutenção da seiva da vida de nosso Pai-que-está-no-céu, e bem o sabemos que esta seiva, que esta seiva somos nós  homens! (Desta tensão nasce a Criação, ou a necessidade de Criação, que se converte em vontade  livre-arbítrio. Da tensão nasce a tenção!) É preciso um cenário repetível para que o ator irrepetível tenha lugar. Este homem-3 é princípio eterno, porque tudo o é: Homem Alfa (Aleph, Boi). Este homem, de princípios, já entrou em sua Consciência, ligou-se ao Nada Divino, transcendeu-a. É todo Ação. Muda com mudar, o que é o mais alto estágio da evolução humana, porque é mais fácil mudar sem mudar, o que é a receita que se faz ali, aqui etc.? Atinge, por seus princípios, o Princípio Divino: a famigerada Ação. E sua Consciência é das grandes, uma Grande Memória-Raiz-Caule-Asas. O que têm em comum os três que me tenha permitido chamá-los “heróicos”? O fato de que, por seus três caminhos distintos, praticamente opostos entre si  tresdobrados em conjunções dos opostos , descobriram que há um fogo essencial em seus interiores, um fogo imutável: Deus-Ele. Mas, para manterem a imutabilidade e inalterabilidade deste fogo, precisam, eles próprios, mudar constantemente, precisam de ajuste, como água. (Pelo “ajuste” da coisa é que o Homem Gama é Pai, Menino, dos outros dois. Homens Gama são vitais porque expiram, exalam energia de Ajuste. Homens Beta ajustam e Homens Alfa apenas vivem.) Assim da água se mantém o fogo. É um princípio geral. Precisam mudar constantemente (água, mortalidade fértil  não-Belo  mudança) para manterem o equilíbrio constante do seu fogo interior, que clama (necessidade) por ajustes a fim de manter-se invicto e imortal (fogo, imortalidade estéril  Belo  constância). Mudam para serem sempre exatamente o que são. E este “o que são” não muda; e de tal forma não muda, que dele só sai, sempre, ele mesmo (daí o estéril, neste único sentido: como é objetivo, é também causa, origem: eis que da esterilidade  santa  provêm todas as formas de fertilidade da Suma-Natura, porque do imutável surgem as necessidades de mudança; acaso tivéssemos  ou se Deus tivesse  uma natureza mutável, nada mais precisaria mudar para atingi-la: se o contrário ocorresse, mudar para alcançar o que muda, haveria sobressacralização, que nada mais é do que a mesma superabundância divina que fulminaria, com a ira de todos os Titãs e com o amor de todo o Zeus  por exemplo? a Sêmele; Jesus a Santo Antônio  todos os homens: os misantropos). Por isso eu já disse que o caminho  ou o caminhar  é a grande meta: mudar para não mover-se, mover-se para não mudar, sem exclusões nas diferenças abençoadas por todo o DEUS. E além de ser

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meta, o caminho é objetivo, porque é no fundo o único objeto que se tem a fim de se ir e voltar. O que têm eles (falo das três gerações sincréticas de homens: Alfa, Beta, Gama) entre si que os difira? O tamanho, se assim posso falar, das mudanças que se dispõem a operar em si mesmos (igualmente ao redor: lembrem-se dos atoresespectadorescenários...). A memória? Daqui extrair-se-ão outras das três (duas) verdades: 1) a Memória não é a Consciência, senão simples hipóstase desta. Repare-se em que o Homem Alfa simplesmente não precisou da gama adquirida  Mnemósina?  para aplicações no novo, jogou-a no Esquecimento  Lesmosyne?  que é a cara-metade da Memória, sendo outra vertente da própria Consciência, a vertente quem sabe mais Deus porque para Ele é tudo Esquecimento, daí ser o receptáculo maior que há. Podem perguntar: “Mas, então, o que fazer com os conhecimentos adquiridos previamente, se já foram adquiridos por mim próprio? jogá-los ao léu?” Ora, ora, meu caro, não me faça rir, deixe de presunção: ninguém, homem algum atingiu ainda este tal estado divino em si: o Esquecimento Completo é a Grande Arma de Deus  o Fogo que Ele ainda mantém aceso apenas para Si , é o que O diferencia, e sempre diferenciará, de nós, homens e Homens, enquanto formos aparição, isto é: Imagens... Não cogite sobre o Impossível Metafísico: este é o maior. O homem que atingiu aquele estado não foi, dali em diante, mais um homem: é Deus em Deus junto a Deus; sumiu. Conforme-se, portanto, com seus limites de ser homem, a sua timé, o de que nos dá prova o fato de você não ter sumido, mas estar aqui ao meu lado. Enquanto estamos, é porque nossa Consciência é mais Memória do que Esquecimento. Se houver apenas uma delas, houve o desequilíbrio: ou é muito homem, ou é muito Deus: enquanto estivermos aparentes, sejamos ambos, sejamos os Dois  que são Um. Se não formos os Dois para sermos Um (ou Memória, ou Esquecimento), então seremos o “um” falaz, que na verdade, este sim, é dois, porque é a energia de cisão e autodestruição volátil que acompanhará o homem dividido por si e em si, este sim não tem Deus, quis abrir mão d’Ele ao abrir mão da única Unicidade: a Hierogamia Homem-Deus: “O que Deus uniu o homem não separa”; outra verdade áurea como Afrodite; bem, aquele homem pode escolher ( e há necessidades para isso apenas ser o Caos primitivo, em vez da instintual-civilizada Afrodite: 2) Ser é nunca repetir: 3) nunca é ser, enquanto sempre não é. Consciência? Tudo é uma Grande, um perfeito nada extraído à Grande.

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Bola. Acho ter ocorrido evolução natural, quando ato vira bola. Ação vira bola. Ação vira e vira. Aquela idéia abstrata e sem-corpo se arredondeia, começa a bolar, bolear, bolejar de um jeito ainda bambo para real, e (outra não poderia ser a conseqüência) bamboleia nítido de vez, torna-se em bola. A cosmogonia dela bola cala decerto e é provinda de ações que fugiram da rigorosa férula do tempo: ao se desgarrarem do rigor da disciplina, a primeira nascença do mundo  já predita na anterior (todavia) , provém que, de uma Rebelião (a passagem das ações à bola), nasce, mas ainda, por inacreditável que soe, bola abstrata, essência não-acidental do estado profundo e conseguintemente superficial do ser não só estar estado-essência bola. Um dia a bola se desgarrou do último estado abstrato, que era, como se disse, estar sendo em ela ela abstrato e por isso mesmo ainda masculino e tudo, estar-ser, um “o ela”, fora de si mesmo-mesma dez mil anos luz díspares. E neste instante o bola aciona, para que, de novo, imbuído de Ação, revigorasse o ar preciso do concreto.

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C 1: Concreto. Preciso do concreto. E não só eu como esses primeiros Homúnculos que habitaram a primitiva terra que por ora presunçosamente descrevo em narrativa precisaram, também. Por séculos se deixaram à revelia de não-saber se abstrato se concreto viera antes. Quem? Se concreto tivesse nascido antes (e é esta, atendam, apenas um grito cauteloso e civilizado de questão: foi ou não foi?), seria ou teria sido ele afinal a representação do quê? para prosseguir diga não ao não e o transforme fisicamente num sim, que permeie doido a ambiência semântica em que se degradou, grau a grau, em talvez. Mundo  sim  há de nascer no sim, não no não. Cada coisa em seu lugar. Por estar em princípio acatarei com benevolência e brevidade o espírito dos maniqueus. Ocorre que tudo está correto, absolutamente tudo. Digo sempre que tudo está correto quando está no lugar correto. (Mas cada membro divisível deste tudo poderá contar para si com o condão de tornar justa a ele  e portanto a ele correta  a ambiência, o lugar, a bola, como quero dizer, em que passará a vigorar, então, e mais uma vez  correto.) E a representação deste algo teria sido, mesmo, feita com quê? Mas e o que é um quê que de tão abstrato haja merecido de supetão vir representado por algo assim tão... tão... concreto? como um quê. Não podendo ou tendo podido de longe achar a resposta me aproximo. Vejo, perto estando, que o concreto não  definitivo e não  veio antes do abstrato: mas este depois daquele, talvez. Talvez porque, pensei no termo, como o abstrato-0 teria podido vir chegando antes do concreto-1? para tanto nada mais fiz que atribuir numerais em seqüência. Conquanto o imaginássemos sorrateiro e esquivo, se lastreando num passado de gênese, oh, tão incerta, ficava não fácil vê-lo aproximar-se. Daí, por solução, entre o abstrato-0 e o concreto-1 tracei o abstrato-1 e o concreto-0, perfazendo quatro níveis de análise mentalista e tripartida.  É que o abstrato-1 e o concreto-0 vêm, no fundo, a convergir em uma só vertente, o concretoabstrato: por isso, e por ter sido algo combinado entre mim e mim, chamei-o “con-trato”, dispensando para tanto a numeração didática, que até me soaria redundante e prolixa. Basta. Análise mentalista e tripartida que, de alguma forma  como o aval do estudo da estrutura da bolha do ferro de aço e o do da da do de sabão , quem sabe, teriam correspondido à minha tese? hipotética, rascunhante? Como o rito anterior?

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C 2: Caricatura de gente: a águia.

Esta história poderia começar: a águia precisa viver. E ir além, assim: ...mas, para viver, precisa alimentar-se, lá dos seus ratos e cobras e pintos, e tantas outras vitualhas com que se banqueteia, numa algazarra calada de vida na sua eternidade. Refestela-se nas asas pródigas e de envergadura de dois metros que Deus lhe deu. Precisa também voar, porque, se não voa, não come. Também poderia começar assim, esta história: para viver, que é de uma constância atroz, simples porque é de Deus, para não-mudar (isto é viver), a águia precisa passar por um processo, no meio de sua vida, de mudança dolorosa. (Foi o que li hoje, e quis reproduzir por minha lábia.) Posso começá-la, também, história fétida, dizendo sobre a idade que uma águia atinge: setenta anos. Longeva? Sim, a eternidade viva dos pássaros, por isso a rainha, soberana mulher-homem dos emplumados voadores ou rastejantes, cobras com asas, brisas com penas, tanto faz: ela é a imperatriz. Aos quarenta anos  gostaria mais se tivésseis lido “trinta e cinco”, para dar um equilíbrio de metade , aos quarenta anos, ó entretantos do destino, ela passa por uma crise quase fatal: deixa de poder comer. Ocorre que suas unhas  garras  amolecem, o bico entorta e se vira contra ela, isto é literal, e suas penas ficam pesando chumbo. Ela morreria. Morreria... Mas aí é que está. Não aceita: procura um rochedo, esfrega o bico até que este se arranque de seu corpo, e espera nascer um novo, duro, reto e incisivo como o anterior. Parece um quiabo violento e para a frente sempre. Quando isto ocorre  lá no texto não se diz o que acontece com ela durante o tempo, nem que tempo é este , ela, com seu novo bico em folha, extirpa, uma a uma, as unhas deterioradas, para que renasçam. Então, renascidas as unhas, ela só precisa tirar as penas pesadas e, em seu lugar, esperar que venham novas, tão novas quanto o bico, a razão de tudo ocorrer (comida!), as unhas e  a vida. Vida que se estende, então, por mais trinta anos. Graças à disposição, propósito de ser a mesma, de não mudar, como cabra montês, obviamente mudando, que tem este animal irracional. Que volta à estaca Zero, casa do seu pai: é toda renovada. A metade da vida é o princípio da vida. Aliás, a história pode começar (e deve realmente), aqui: a águia é um animal acabado de nascer (de si), é todo novo. Porque volta  para dar prosseguimento. Vive o Passado! Não vive no Passado! Seu corpo é o próprio Futuro. Agora sim consigo vislumbrar a Verdade deste Futuro, no começo desta história renovado e refeito em Presente, o princípio da história é, afinal: ...O Passado...

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C 3: Casa Revertere ad locum tuum:

Qualquer pessoa quer, precisa mesmo voltar à casa do pai. Esta casa é cheia de moradas, cômodos onde se instala o homem, numa escatologia que só é definitiva  como a própria vida o é  enquanto estiver viva. Quando morre, deixa de ser definitiva para passar a ser um outro definitivo: aquele perfeito que se abre em expansão. Eu diria que o universo respira, porque se expande, expande, expande (mas nem muda) e num dado momento tanto se expandirá, que há de (ou então houve de) explodir, para do material antigo se fazer o novo artigo imaterial e profético. E retrai, retrai, retrai. Ninguém, nada abdica daquilo que acumulou para ser representação ou representativo do novo que passa, agora  expande, expande, expande , a ser ele próprio no próprio definitivo de que falo! Sabemos que a tecnologia, o progresso abreviam em tempo e em memória o homem. É como se apontassem para a frente, este “futuro”, ó futuro. Porque progresso é Velocidade e por isso é Mente. No sentido bom, fazem este homem poupar Tempo, economizar Memória. (Retrai, retrai, retrai.) No ruim, deixam-no sem saber como eles passam fluidos da mesma forma como antes: porque Tempo e Memória se ajustam às necessidades do homem. Que expande, expande, expande. Tempo-Memorial, uma só coisa, agora, se ajustará sempre ao homem. Quando este precisa pouco ou menos daquele, este se adapta  retrai, retrai  a servir menos às necessidades (que passaram a ser menores) daquele. É um este/aquele que se permeia de estes/aqueles, vão e vêm como é a relação do homem com Deus. Que se expande, expande. A casa é de Deus e do homem, ambos de dois são os donos da casa. Habitam-na. Habitare, como o sabe toda a gente, é aspecto freqüentativo de habere: neste, “ter”, naquele, “habitar”. Portanto morar significa, também, possuir. Significa mais que isso: ser responsável. Ékhousin  o grego “morar-manter”  também. Entre nossa gente se diz: “Fulano mora naquela casa”, retrai; mas também: “Fulano sustenta aquela casa”, expande; “Fulano mantém aquela casa”, retrai; e assim por diante. Expande. É preciso ter cuidado com a manutenção da Memória (Consciência) e do Tempo, os dois grandes vértices (o grande vértice tempo-memorial)  retrai!  que nos remetem de volta a casa. Como sendo o rito anterior? Expande! A casa: morar é suster severamente esta.

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Divindade. Como sendo o mito posterior? Quando entro neste terreno nem sequer mais me aventurar me aventuro: perigo tosco. Extasio diante do eterno e incansável  aqui parei um pouco  incansável? Absoluto. E dei a certa palavra  “euforia”  a raiz que ora descrevo: Estado, circunstância ou aptidão de estar o “eu” “fora”, portanto  eu + for(a) + ía. Como “êxtase”. Para dar lugar. Se misturei para isso latim com grego não me importa; e a você? (Que lindo! o “eu” do grego significa “belo”, “verdadeiro”, como de fato é eu em qualquer língua, porque aí deixa de ser assunto para lingüística.) O certo é que certos acontecimentos hão de responder a si mesmos apenas num parâmetro contemporâneo de análise, o qual por seu turno se deve dar em níveis de utilidade e adequação  a si próprios  sempre. Nihil potest duobus dominis servire. A menos que se recorra a um Zoroastro de real-possívelprovável num só mecanismo corpóreo. Mas por quê, Deus, se é tão longe quanto nem sei onde fica, teria eu de ter ido recorrer à Pérsia em minha busca? Portanto, em nexo decerto não achado, a pandoria da criação passa antes pela gradativa retirada do eu de mim. Depois do qual se abre lacuna para a inserção da divindade, ou Théos. Entusiasmo. Samadhi. Apoteose. Mahatma, que é alma. Vejo a retidão perfeita e profética (numa profecia utópica; noutra ideológica) vergar, vergou... Senti-me como que tendo trazido para cá a visão do ser supremo, com sua face reta e imponderável, sem medidas humanas porquanto a súmula de todas elas. Certamente a crença é o estado maior e Absoluto de um crer. Isto é tão, que chega a ser bobeira. Mas como então esse abstrato teria se manifestado antes de ser ação? Como cada pedaço ou parte pode ser representante e representativo e representado (e representação) do todo se esse todo antes de haver partes já havia sendo o mesmo todo de antes (antes?!) de sempre (porque um todo não pode ser menos todo, mais todo: não o é todo agora, pouco todo antes, muito todo depois; ele, enquanto todo, é sempre apenas todo  mas, oh Deus, o tempo, Senhor Inexorável, faz haver todos relativos, e, portanto, todos maiores, todos menores  e de um todo só sai um todo. Em espaço-tempo há muitos todos e em tempo-tempo  ou tempo-memorial  só há um todo?). Nem é tanto certa pergunta por quem teria sido criado este, este todo-mito (mito-total), porque isso é impossível metafísico e, de tolo, morre nascendo, mas o caso de questionar o momento preciso  e sempre o preciso da coisa  em que Deus nos fez pedaços d’Ele, abundância. Oh Vossa Onipotência, a absolutidão de Seu estado nos faz absolutinhos? Somos milhares de Vós e nem um só Vós? Ou somos um só Vós e Vós sim representais em Vossa Altura milhares de Nós? (Milhões!) Milhões de cacos esborrifados terra afora? (Bilhões!!!) Quero cegar-me no mito desta Vossa Totalidade. Preciso extasiado da perfeição de Vossa Luminiscência e Vastidão. Porque vejo que a cegueira da luz é que fulmina com amor, e dá subsídios bastantes a que possamos prosseguir, neste glossário-reverência que, impudico, alimento. A alucinação me parece estar cego na luz, ainda que privados dela, por isso a prefiro ao fascínio, na escuridão penumbrosa. MESTRIA: Há dois tipos: 1) quem fala muito (Falar é prata), por isso o que aprende; 2) quem fala pouco ou nada (Silêncio é ouro), por isso o que ensina, porque já sabe. Que se d6e ao luxo de nem crer, me dêem licença, mais eis o luxo dos luxos: não precisar crer para simplesmente  saber. De que forma haver a divindade antes de ter havido porventura o divino? é o que preciso precisar por ora. Para isso:

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Espaço.

Nenhuma constante é tão variável quanto a luz. Depois dela o espaço reina ou (melhor, vice-reina soberanamente) secunda a toda. Para que haja entretanto um lapso nesse espaço nem é tão difícil quanto se supunha ser fácil: basta que para tanto não exista e, assim de repente, não existe mesmo. É que constante espaço necessitaria além de si mesma de um fator necessário e oposto  o não-espaço. Não é verdade que antes de haver espaço-tempo havia, cosmonautando no universal, matéria só de densidade única em que tudo havia e fora de que nada vingava, matéria só de densidade única em que etc.? É que o concreto precedeu o abstrato. O algo de que se desdobra o espaço e, neste “algo” (o qual por não ter nome assim o terá), não-existindo. Portanto espaço e não-espaço caminham em tal parelha, que são sós, melhor digo, são só, um.

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Fluido. Vou me valer de um apólogo  prática exaustiva em mim  para ilustrar o prolegômeno deste verbete. Para ser uma milionária excêntrica só lhe faltava ser milionária, um pouco, porque era muito muito rica, da Graça, falta pouco, pois. E apesar de assim era sem dúvida meio esquisita, alheia, difusa, de olhos pequenos e demasiados, olhos excessivos, numa grande cabeça acéfala, dir-se-ia com correção, meio gorda, meio sempre indiferentemente cansada, meio sem-ânimos vivazes, meio meio, enfim. Era coisa de ter tudo o que tinha, mas pela metade em substância de vida. Aguada, locomove-se como em pasta de aderência duvidosa, porém amniótica. Na sua residência cansada, em que havia pedras em direções que, por lógica, chegariam a excluirse mutuamente, pendurou a carcaça de uma tintureira acanhada e de seu marido, aquele tubarão morto, de quem se alimenta parte a parte esta Baleia. Mas se alimenta em tese, não é alimento para seu corpo enorme e de cauda achatada, mas o é ainda assim para sua entranha, a da alma, que pede lhe sejam poupados os movimentos atrozmente delicados, em uma que se diria fúria pelo sono. A vida é hoje em grande parte a manutenção pelo estado de massificação das partes, a propósito. Algo talvez que se pudesse prever em função de veículos de comunicação  como a telepatia, a biopsicocinese etc. etc.  modernos que nos deixam de dar a dimensão exata daquilo de que realmente teríamos necessidade atávica. Portanto, não existe, em meio a esse fluido balenar, discordância mais contumaz do que a que apregoa que discordar é força e crescimento para a homogênea e patética massa da qual se presume sair, como que emanar “concórdia”. A éris da emulação está aí para provar que  talvez. Não se surpreende contudo, porque sabe no íntimo, com a maçã da discórdia fazendo brigar Minerva com Vênus e Juno; Palas, Afrodite e Hera? (Não há mais? e há quanto tempo não o há? uma voz que se erga em meio a esse pântano penumbroso que em tantas escuridões se assemelha ao Érebo? pior, ao Tártaro?) E por cada vez que se tenta delinqüir a massa estar essa mais corroborada, o que fazer? O paradoxo moderno é a conseqüência natural seguinte (que de agora em diante se leiam as palavras dando-se-lhes, a cada uma, o valor de conteúdo forte como a taça do Rei Artur distribui igualmente, aniquilando em aparente eqüidade, o Total centésimo qüinquagésimo da coisa): quanto mais o homem busca a individualidade a todo o custo, tanto mais amorfo se torna, sendo tragado ostensivamente, ao que se faz cego, pela massa homogênea de que mais e mais pensa querer distinguir-se; quando na verdade a engrossa na razão inversa da (presumível) força que faz no sentido de enfraquecê-la. Há portanto esse notável fenômeno que nos assola hoje: é a gradativa diminuição do indivisível, que, também talvez paradoxalmente, já que em avessos a força de seus próprios avessos, à medida que aumenta aumenta a divisibilidade em qualquer direção, qualquer sentido, a esmo, a torto e a direito, da massa sem sangues, parada, que. pois, se torna mesmo indivisível em sua macromicroessência, cheia de si mesma, cheia de fluido só, cheia de enfim.

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Grandeza.

O Belo é só e apenas o resultado do equilíbrio entre as forças interna e externa. Não há Beleza então onde houver estereótipo. Este representa antes a fealdade, a feiúra, é a própria essência do não-Belo movendo-se. Belo é o que provém do (não o que dá origem ao) equilíbrio, não é causa é causado. A discussão do Belo está no verbete “Grandeza” porque o é. Aquilo que vem como causado veio na verdade antes: assim, Beleza é caminho, é veículo, mais indispensável do que a própria meta última, que, embora seja origem, nem é a mesma original. Onde não há Beleza nunca haverá Deus, nem iluminação, só há o vazio do vácuo divino. Enquanto não houver corpos aí, não haverá propagação de luz. Esta só é vista quando houver presença daqueles. Senão, pode até existir, mas foi em vão, em vácuo. Por isso, há, anterior ao belo, a rudis indigestaque moles, ou massa que não tem forma e é repleta de elementos também sem forma e pois similares colidindo entre si. O caos é pré-Belo, como se vê. Não não-Belo. Mas no pré existe (tautologizo) apenas a prefiguração, não o próprio, Belo que o seja, nem Latência que, portanto, sendo semente que é, deixa de ser em si bela, porque esta, em masculino maiúsculo alegorizante e abstrato, “não é semente é colheita” etc. Daí: Belo. O pré-Belo não é Belo, mas também não é não-Belo. É antes de todas as coisas, antes de mais nada, e por isso me equivoco e envergo tanto ao tentar descrevê-lo; poderei? Um dia, sem maiores explicações a quem quer que fosse  muito porque Caos não é inferior hierárquico a nada, e por isso não lhe precisa dar explicações  como a própria explicação para a vida, se reconhecem sozinhos e potenciais elementos para tudo, equilibrando-se e depois. Surge a vida. Kléos (Glória): a Glória da desocultação da vida: aquilo que precisa ser desocultado apenas precisa ser desocultado: e será por isso mesmo desocultado, pela própria força de desocultação em si. Nada há de oculto que não venha a ser revelado. Porque “oculto” significa “existente”, “ente”, e, assim o sendo, não pode permanecer na escuridão, nunca no oblívio: Somos Filhos da Luz. É um preço por sermos. A Luz é Glória porque desoculta o que deve ser desocultado. Onde há medo? Na escuridão o haverá sempre. A solidão integral é decerto o princípio da vida. Já há muito tempo  com Copérnico mais forte  se soube que o equilíbrio é um intricadíssimo engenho, manejo de desequilíbrios aparentes (ou de desequilíbrios em essência), em que cada força opera sua supremacia sobre as demais, respeitando-as embora de tal forma, limitada e limitadoramente, que sobrevivem em suas solidões cósmicas sempre com necessidade vital da existência (longínqua e essencial) de outros corpos a elas similares no que tange à importância da influência exercida sobre toda a Fábrica do Universo equilibrado, só e agora, em Sua Essência. A Gravidade o seria, logo no berço. Ab ovo. Tudo o que há na Natureza é, por isso, O Belo. Há uma Beleza ancestral, uma Beleza furiosa e inocente, por exemplo, na Crueldade da Natura. Lembra-me que outro dia, em uma caminhada pouco extensa, em que fazia o sol de sua orgia diária, muito claro e limpíssimo, com raios, vi um corpo rosado, pequeno e frágil, contorcendo-se no chão. Aproximei-me, era um filhote de pássaro. Ainda não tinha recebido penas e já se revirava no chão coberto de formigas, luta inglória... Era a Natureza, orgulhosa de si, nos momentos em que faz questão de mostrar para fora o quanto pode. O que ocorre fora da hora, não importa por que ocorre fora da hora, é fulminado pela Natureza. Entendi que a única

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pergunta que a Natureza nunca fez nem fará é a seguinte: por quê. Para Ela importa é isto: o quê. E se, por um segundo apenas, o passarinho se descuidou a ponto de sair do ninho antes da hora, este segundo o fulmina. Porque para a Natureza um segundo é eterno. Ela nem conhecer o tempo conhece, porque tempo são Atos, Natureza é Ação. Em seus filhos o tempo é Sagrado! É como se alguém, ao se arremessar do vigésimo andar, se arrependesse... E daí? Perguntará a Natureza? Não, Ela não pergunta nada, simplesmente não pergunta, a Natureza constata, constatar é a função da Suma-Natura, o Ato Supremo de Deus. (Veja: a Natureza é Ação para o Homem, mas apenas mais um Ato para Deus.) Ah, a Natureza... Eu a reverenciei naquele seu Ato Belo, de extermínio à criatura que despertou a fúria do tempo, Ato Belo, Belo, comprometido, como sendo Ato que era, com a única Ação que a Natureza conhece: a Beleza. É improvável que os homens não vejam quanta Beleza há no mundo. Meu Deus, perdoai-me o Êxtase, mas Vossa Criação é só Beleza! Vossos seres, Amor, Vossa Essência, é! É o princípio do nascimento da Beleza a agonia da massa: qual sentido de agonia aplicar? batalha? falta de nascimento, com alfa privativo e raiz de gênese (em paretimologia apotropaica e fertilizante como Zeus Olímpico)? Polémos, Bía, Crato? Não quero, neste agora, ter o preciso da coisa: há coisas em cuja precisão reside a morte que deixa de frutificar; aquelas que têm no não-preciso o pulmão eterno, com cheiro de permanência. A massa luta por desfazer-se  mas com tal belicosidade que não vê aquilo em cujo prol luta  em milhares de Um, apluralizados, o verdadeiro um ímpar, não mais milhares de meros milhares iguais em tudo mas em miniatura ao Tudo (a sombra, equivocada, pois, do Total, este sim uma Grandeza), e com este pareando, o que é incrível. Há uma refutação pelo tautológico, embora seja a ele que se deva recorrer para que se dê término à tautologia. Pois também tudo já existe no interior, basta uma flecha de luz para alumbrar e tudo se nos mostra, o que faz tudo o que for dito ser antes e depois do mais a verdadeira e insofismável Tautologia do homem. Apenas uma coisa é preciso para iluminar: matéria (no vácuo? Luz?...). Por isso toda a matéria do universo precisou mesmo ter vindo antes da Luz (ou do desoculamento desta), porque, mesmo que esta Luz já existisse antes da matéria caótica, ponderemos que assim o tivesse (ou o tenha) sido, nem poderia ter sido apreendida sem tal matéria. Talvez  palavra mágica, mantra sagrado, canto gregoriano  Beleza esteja assente nessa luta inacabada, ou nessa ausência de nascimentos que vai em busca de soluções para que não deixe de haver nascimentos. (O estéril gera o fértil.) Lutar por lutar. O que é a própria belicosidade do mais odiado e sereno dos deuses: Ares! Viva a Guerra!

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Hibridismo. Tem-se tentado o ensaio, talvez por influência desses que  superódromo, ciclocibertrônico, neurorrazotérmico, megaminizás  hoje se sentem superiores apenas por serem os veículos de transporte do hoje (aliás uma coisa hilariante que se percebe é a pretensão deste hoje que há, por meramente ser hoje(1)), veículos que locomovem o homem com indizíveis velocidades atrozes, vorazes, que os caminhos mais curtos são os que levam mais longe, além de poderem amiúde ser percorridos em distâncias sempre comparativamente menores. O tempo é um só, e por isso quanto maior o espaço tanto maior há de ser a distância percorrida e a velocidade que para tal se deu. Portanto, quanto mais velocidade se imprime, tanto maior há de ser o espaço que se percorrerá também no mesmo. Inteligente? Um erro. Como já se disse aliunde ao reverso: verdades curtas, verdades passageiras. A rapidez tem querido ter ao longo da vida crescimento inverso ao da eternidade. Mas o tempi é um só, não há eternidade maior, eternidade menor, só o que há são eternidades, Eternidade! A vida não é nem  por todos os tempos ou com todos os rótulos que lhe tentaram imputar foi  curta. Nem corrida de resistência baixa, nem obstáculos atrás de obstáculos... é maratona lisa e contínua. E homogênea em sua aparente heterogeneidade, que não possui exceto que em suas filigranas. Em ser. Por isso é que é preciso que se aprenda a caminhar devagar, às vezes morro acima, com lentidão e amor. Mas para isso é preciso que se dê uma série de impulsos, que não só desfaçam a inércia como profetizem o fim da ordem semimpulso de modificação de superfícies profundas e rasas, em que, aí sim, haverá Éris, haverá...

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(1) Impulso. Nem é por outra razão que tantas vezes me encontro  o termo é este perplexo diante das pessoas atordoadas, aparvalhadas, impensadamente catatônicas que povoam o mundo de hoje, perplexas. Elas quase sempre me parece que saíram ou teriam acabado de sair da máquina do tempo, parecem ser autômatos em cuja regulagem impuseram (alguém impôs) uma ordem de comando no sentido de que marchassem marchassem marchassem, com indiferença, desdenhosas, afinal “Vós (elas) sois cada um de Vós seres superiores aos demais aparentemente semelhantes a Vós; só Vós sois Vós”. Martela-se esta que se quer impor a mais útil descoberta ao homem depois da Vida como um inferno passando. Ora como se tivesse havido homem antes da Vida. Marchai portanto com altanaria e poder  há de completar a engrenagem  pois que nada é como Vós senão no campo do que aparece. Vós se sois massa, atendei, soi-lo no estereótipo. No império do aparente ocorre que nada haveria mais válido que recorrer à aparência como argumento intrínseco a que se apregoe a supremacia desses “Vós” em face dos outros “vós” em quem não incidiria nada exceto aparente igualdade. Cada homem  é esta uma das marcas deste hoje  se sente superior aos outros idênticos que com ele compõem a Massa rude. Só não saberiam dizer (talvez falar saibam, dizer com mais dificuldade, mas ainda assim poderiam: nunca entretanto acreditar com a alma) por que superiores, a despeito da massificação a que se submetem como tolos indefesos. Em quê, superiores? Como dizia, é por isso que não é raro que me surpreendam apreciando as pessoas como se estas tivessem recém-saído da máquina do tempo: este fascínio e esta adoração pelo tempo de hoje, após passada a ressaca intelectual e bela que foram os anos 80, parece ter vindo em crescença a pouco e pouco pelas pernas dos 90, e chegou, agora, de um modo ainda mais postiço e engraçadíssimo do que o foi nos primórdios dos 20, 10, 00, nas pontas (como fogo-fátuo) dos tentáculos azulados, expirando santelmo como pirotecnia acerba. Quando os computadores confundiram 1900 com 2000 (isso teria sido o perigo do século), estavam muito mais certos do que pensávamos que não estariam: há uma ânsia pelo 0 que nos fez homens fascinados com tudo o que já havia (outro paradoxo, uma vez que o fascínio é permanência no escuro, como se fascinar com algo já tão às claras e já de há tanto?); dando-lhe novas roupas (até nem tão diferentes daquelas com que iniciou o século, no mesmo 0 que ora busca), roupas que em muito se assemelham aliás às dos 70, uma vez que estaria aí a semente para os humanos 80, em que se sentiu novamente o homem como homem, o homem, o de hoje, em nada se diferiria de um alguém entrado na máquina do tempo: retrocedeu horrores, e por isso mesmo pensa ter avançado. Ó Vós, vosso impulso não foi para a frente não, cuidai que estou certo.

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Janeiro ou, simplesmente, 01. Muito menos foi para trás, porque se o tivera sido garanto que teríeis alcançado o princípio da espiral acronológica do mito da escatologia. Isto é, teríeis podido reiniciar  como oroboro , em espécie de acróstico de vida, a cosmogonia vital das artes humanas todas. Foi vosso impulso para baixo, nada nada ctônio, se aprofundando ainda mais no mastigado e repisado “mesmo” de que pensais estar fugindo. “É preciso distância!”, gritais. Mas distância para baixo deixa criticar, avaliar? Sim, por isso preferistes tal modalidade da distância, pois sois pigérrimas criaturas que vos contentais com alimento ruminado e maturado por outrem como base de vossa ração diária, como pão vosso de cada dia, e dizeis “sim” a tudo o que se mantiver estagnado na lama fétida que por ela se metamorfoseia em rã (castigo de Zeus àqueles insolentes símeis que se recusaram ao auxílio aquático à esposa Leto  de quem falarei). Penso que em alguns casos  mais críticos  achais ser essa lama aquela que após o dilúvio cobriu de fertilidade a terra, dando-lhe, até, a serpente fantástica etc. (de nome Píton), lama de que sobreviveram Noé, sua esposa sem nome, Deucalião e Pirra. Todos nós também, vomitados pelos Titãs contendo a súmula benéfica de Baco (mas a insolência para a hýbris dos mesmo Titãs) e sacrificados  por isso renascidos , depois, na cruz de Jesus Cristo, o Messias Judeu. Vive-se no Império da liberdade, onde qualquer um faz o que entende estar correto (palavra diáfana), com a única justificação legitimadora de fazê-lo por estar satisfazendo a si mesmo (eis o “correto”). E com isso recebe o carimbo da licitude. As culpas, e os remorsos, dores morais? isto não há, nem deveria havê-lo, uma vez que são antípodas  eis que por isso mesmo ainda existem no penumbroso fascínio, pois sem eles o prazer minguava  do hedonismo de si mesmo, como que morrendo envenenados pelo gás que emana das próprias ilimitações, ou alimitações, ou dislimitações. Pois a vida (arte não raro) nasce da coação e morre da liberdade. O excesso de liberdade ou leva à morte ou ao nada ou ao reinício coagido que é como o caos primevo a fonte infinda de tudo o que há, pode haver. Ou ainda à postergação dessas três possibilidades  tendo sido essa a vertente escolhida pela Massa  até não se sabe quando, que foi o que ocorreu no momento em que o impulso vital resolveu se embriagar das águas do Letes, e descer, descer... crendo tolamente que é para baixo que se vai rumo a respostas. Descer descer. Quem sabe Estige aonde só Íris poderia ter ido... Adiou a saída mais natural e está lá como um ovo cozido quebrado sem gema e quicando. Géia e Úrano pedem para sair das cascas de tal ovo assim como o próprio Amor (Eros) saíra. Graças aos deuses enlouqueci a tempo da lucidez. Oroboro. Prever-se-á, pois, que, como no rito de um ano novo, januário, com Jano por perto, o excesso de liberdade dos significantes, das formas, a ausência esquiza de conteúdos é a porta ou o Portal primeiro para o surgimento de uma personalidade (evoco agora pela primeira vez a emergência de Indivíduos em meio àquela Massa rude) que, em tamanho grau de alucinação (ou Lucidez, como se queira), haverá de poder sozinha distinguir a enormidade do lixo infértil que a massacrou... (Massa, Massacrar) podendo enfim coagir com a mera autoridade presente as formas demasiado livres e infrutíferas, estéreis? Aqui se reinicia a coação. Como tinha que ser. Dar-se-á momento entretanto de puro intervalo, como Brahms soía fazer, Chopin, gênios...

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Luzazul. Decerto é a expressão mais perfeita havida na minha língua, porque retine em meio a obscuros “uu”, o “l” líquido e o “z” palatal em São Sebastião  Oxóssi  do Rio de Janeiro, um “Á” de esplendor negro e faiscado. E, afora a mera estrutura, forma, possui o significado, ou conteúdo, FUNDO, exato que tal estrutura impõe. Materiem superat opus. É um palíndromo só por isso é perfeito? não: é perfeito exatamente porque não teve o maugosto de vir entrosado em sua fonte radical o fim das possibilidades aviltantes que transportaria, quem sabe? Não pediu  como Dafne a seu pai, rio deus Peneu  que a transformassem em qualquer coisa para fugir de algo a ela estranho (o Amor de Febo, Apolo), e por isso deixou de ser a “árvore favorita do deus favorito de Júpiter com LatonaLeto”, me parafraseio. Nem foi qual Aretusa em fonte, Io em ovelha, Calisto em ursa maioral e mais tarde em constelação com o filho caçador, nem hamadríade, nem Tisbe morta com Píramo em amor vermelho ou amora de sangue, “cerejas púrpuras nalguma pintura”, parafraseando Camões, nem o que quer que seja, Céfalo e Prócris. Não! É luzazul, virando.

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Matéria-Movimento. Houve um instante  um instante entretanto  em que o tempo estancou do modo como a ferida esgarça jorrando na hora do contato com a faca que a fendeu, igual à racha de um terremoto abrindo. Antes de ela ser havia se manifestado na sala o quão desconfortável o frio excessivo será. Uma lareira apagada, as paredes pardacentas, e limpas, o lustre estremece com vento  que não há , e não estremece e a sala é limpa e intocada, muito branca, muito branca, pelo tempo inexistindo e chove. Não existe tempo nem existe som porque não existe a pessoa que os possua, nada excessivamente delicado ou grosseiro, tampouco, se apossa da soberania do tapete persa  Persa  e desfiando de uma sala assim tão  ao mesmo tempo  arrogante, tão pobre. De um silêncio prolixo, pássaros haveria? Três quadros em retângulo esboçam, no seu conjunto, uma pirâmide estilizada com três pontas de ponta-cabeça. Em cada um dos quais teria havido decerto os pássaros duvidosos cujo canto e vôo reais não se sabe se haverá... ali fora não. Quadros de pássaro, enigma, Kerigma, céu e alma por si sós de tal forma apagados, apagados, apagaram... hoje simplesmente não. Resta a moldura como fica a memória de quem morre. Por que em amenidades se assuntos frívolos em toque? se o instante que não passa é excessivo e seco por demais?  a ponto de não passar. Mas alguém, tolo, esperaria que o vento soprasse, quando janelas perras e aranhas que moram nelas. Há pó, silêncio, solidão, calor. E frio. O amor habita a seu modo o jeito de separá-los: criado-mudo de mogno vermelho, mesa-dejantar com seis cadeiras, feita e pronta para que se coma no vazio que ostenta. Beleza e feiúra. Conflito entre existir e ser eterno. Só o silêncio, abissal, plácida e gigantescamente cresce, a olhos vistos, intransitivo e arrogante e solene, como um verbo impessoal. E pobre. Muito pobre como é rica a variedade de espécies que habitam o mar; como é rica a paucidade das habitantes da lua. Eis uma sala que açambarcava em seus limites físicos assim o mar como a lua, sua amiga esposa, sem limitações aparentes de amor, fraternidade e compaixão. Nem um nem outro elemento toca o que passa de sua casa, mas um e outro se beijam e tocam abraçando-se, querem-se... Mais talvez que a própria querência haveria de supor aumentar. Aumentar aumenta: o silêncio petrifica o sofá de linho, intolerável. Silêncio maduro, amarelo já, sumarento e esfumaçado. Nada, nada de tédio ou excitação. Mas palor um tanto rosa a não ser visto, não se tendo, pois que sentido! Sente-se, que a casa é de alguém, alguém a faz em coerência e amor. Ouve-se uma terrível luz amarela com peso de quem tem cheiro de fá maior (como a Flauta), modulando para tonalidades de azul, violeta e jasmim... rosa e preto salgado azul e branco.

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Nada. Substrato mais primitivo. Causa e conseqüência de todas as coisas. Realidade apreensível mais imediata e escorregadia. Após percorrido exaustivamente o Tudo, chega-se à sua conclusão única: Nada. É como atravessar a densidade da terra  planeta  e sair do outro lado. Garras da existência sensível imaginada... nada... nada... eco. Latência. Realização. Princípio e Fim. Bem e Mal. Além deles... Homem e Deus. E Homem. E Deus. E.

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Ovo. Só um pequeno desabafo: ab ovo porque quem domina as origens domina as forças latentemente cósmicas  Epifania!  que lá irromperam com vulcanidade. Eis a metalinguagem completa deste livro: a quantas veio!

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Bem, bem, bem... há duas fases igualmente importantes para a consolidação da existência de tudo o que existe: a fase da vivência e a fase da inteligência. Digamos que ver e olhar. Isto é, primeiro se adentra incoerentemente na res, depois desta se traçam espécies representativas, com coerência e forma. Ou Forma  porque mais importante que a essência dessa res será sua forma  ou Forma. A diferença decerto entre o louco e o lúcido, plácido, são, é que aquele permite, louco, cheio de conivência e estrutura, que a primeira das fases se instaure e edifique, ao passo que este último (já se disse bem ao se chamar de “último” o “lúcido”, que vem de luce em latim, Luz, a grande das grandes rupturas Deus/Homem) quer, logo, partir à segunda fase, porque não aceita que antes de entender tem que ter vivenciado  e não entendido mesmo! O problema do louco, entretanto, é que, uma vez tendo de passar da primeira para a segunda fase, nada se lhe dará... E, então, pobre diabo, de suas linhas desconexamente coerentes só restarão linhas coerentemente desconexas. Morre-se afogado na profundidade. Potência semiótica in vitro. O lúcido não se sente confortável no mundo das vivências, e o pula (tenta) direto para inteligi-lo, quer coerência a todo o custo, antes de qualquer coisa, o que não conseguirá por não ter assimilado a matéria bruta na qualidade, preliminar, de matériabruta, incompreensão; ou de matéria bruta mesmo, vamos com isso. Assim será, igualmente, ineficaz, porque descrever ele descreve, sim, mas com tanta superficialidade e aproveitando-se, por falta de recursos  que teria conseguido colher no meio do caos ininteligível e cósmico (total, porque antes de fragmentar-se toda coisa é um Tudo) , de tantas ferramentas caquéticas e obsoletas, ou usadas eficazmente, mas para fins outros que de forma nenhuma aquele, que, pobre diabo, de suas linhas coerentemente desconexas só restarão linhas desconexamente coerentes. Este morreu também, por agora intoxicado com seus gases diáfanos de superfície. Ou bem abstrato sem concreto, ou bem este sem aquele. Um é terra e água; o outro fogo e ar. Busca-se o equilíbrio entre a loucura e a sanidade, ponto de partida para o conhecimento e a descrição, conseqüente domínio. Digamos que um éter metálico, feito de amor, de saber, simplesmente feito de.

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Pérola: ovo escultura do mar.

Permito-me uma experiência insólita e distinta, embora nobre. Trata-se de uma atitude que eu poderia nomear de mágica, indevida, poderia nomear de qualquer coisa porque nome não importa nunca à essência eterna da coisa, que pode, inclusive, existir sem ser. Por exemplo este verbete  pérola , que o é, mas é para falar da resignação. A primeira coisa que me veio à mente com um significante tão significativo (perdão em nome do trocadilho), mas que redondo mesmo, branco de ovo, o primeiro foi a questão de uma grande e negra e poderosa bruxa. Ocorre o seguinte, serei conciso: Começa que a maior palavra da minha língua o é em significado, conteúdo, essência:  é (ou não é?), nem sendo em físico e asséptico som grande realmente, mas surrealmente. Dessa forma que o ato de resignação é a mais poderosa forma de verdadeira rebeldia latente e virtual e, ao mesmo tempo  a única delas , concretizada. Nenhuma outra rebelião é tão ao mesmo tempo interna e externa, ou talvez demais esta por sobejar naquela, ou quem saberia? Sei apenas, o que já me é bastante, que todas as coisas do mundo, sei apenas, à medida que evoluem, foram buscando sua forma linear e simples de expressão, porque estar truncadamente expresso de certa forma, definitiva e letal, atravanca igualmente o conteúdo interno que se queria mostrar. Assim, há uma noite que só pode ser não evidenciada mas mostrada de fato pela existência precípua do dia? Parei, repare bem, de falar em contrastes necessários, imprescindíveis, olhe que por ora falo é da importância do veículo, o fato, meio com que se chega ao fim. E que o fim é o próprio fato, ou em suma a suma de seu próprio desregramento, que é, por fim, este fim, agora reorganizado. Qual é o fim? Sei que este poderia ser o próprio veículo, digo, aliás já disse de mil outras formas distintas, ser o caminho, ou ser o caminhar, ou simplesmente  ser. O que me parece é que este grande estado de ação estático-dinâmica, que vem a ser ser, é a justa soma do total e das suas partes componentes. Por isso as bruxas, com sua vassoura doméstica, símbolo da aceitação de um estado imposto, representam nobremente este meu dicionário: porque são força pulsando através da resignação de um estado impróprio; e do símbolo fálico que é uma vassoura, são elementos da maior masculinidade possível, calcada entretanto no ato feminil de serem as mulheres que plantam, cozinham, colhem e vivem. São os seres de beleza andrógina. O oroboro talvez. Hermafroditas. A mulher é sempre e em tudo, por todas as coisas do Universo, o ser realmente superior. São a luz, são a magia. São simplesmente A.

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Quintessência. Primeiro se pergunta algo para se preencher de resposta o que ficou cavado, ou existirá de antemão a matéria  concreto-abstrata  a pedir implorando que se lhe cavem nichos para seu próprio descanso eterno e imutável? Quando baixar à campa, esta resposta será, então, afinal, o que pensou ser necessário: a essência resposta-pergunta indecomponível. Penso que uma pergunta vem depois de uma resposta, porque esta, ao ser, apenas exigiu rapidez para a existência daquela, que no entanto às vezes nem rápida consegue ser. A resposta simplesmente é, e como o ser precisa existir (isto quer dizer: a essência, o conteúdo carece de forma final, pois tem finalidade), logo a resposta (o é) precisa de uma pergunta (o existe), senão fica sem casa e um homem sem casa não é, porque não existe e tampouco tem. E, portanto, preciso ter para ser mas ser para ter. Coisas ligadinhas, ligadinhas... chega até a cocegar-me... Mas há tanta coisa ainda sem seus nichos, pobres coisas! Coisas órfãs de filho, de tudo! E quanta coisa havia a explodir in extremis dentro de meu pobre coração forte e sutil, como o raciocínio mais fino e ulcerante e espraiando-se que vicejava nas entrelinhas das certezas que eu nutrira cuidadosamente como filhas no mais alto  e para mim até então mais nobre  ponto de minha essência somática: o cérebro ou a mente. Foi então quando Marcel Proust avisou, no seu francês impecável e tortuoso, que a inteligência (meu Deus, e quanto eu a desprezara!) que a inteligência, por não ser o instrumento mais sutil, nem mais avassalador, tampouco mais poderoso e adequado para a captação da Verdade  ele a chamou de “o verdadeiro”), deveria ser, portanto, o primeiro instrumento utilizado para aquela captação  indo de encontro fatalmente à minha prédica até agora  em vez de utilizar-se do intuitivismo desregrado, logo de chofre, para a obtenção daquele fim. Adoto por inteiro o que disse meu sucedâneo. Adoto mas com a ressalva de ver nele meu antípoda (não-dialético), por exemplo, que Brahms vê em Schumann, Mozart em Haydn, Debussy em Ravel, Bartók em Bach, Afrodite em Hera, Zeus em Crono (e quiçá Este em Urano). É portanto  e como se vê  uma relação que ultrapassa a de bipartições opositivas, indo além, outrossim, da simples relação causa-efeito ou, também (e seria este o ponto de verossimilhança maior, pelo que a muitos outros já enganou...), da existência da mera complementaridade que se estabeleça em nexo entre dois (não se nega contudo a dicotomia)  e apenas dois  elementos de semelhante jaez, a despeito de análises qualitativas quanto à envergadura ativada por cada um dos tais de quem se coseu intrincada malha. Pessoas que dizem o mesmo por cortes epistemológicos diferentes, e necessários. Que fundem portanto duas respostas e dessa fusão recortam nichos enviesados e avessos, perguntando. É como fundir Amor com Ódio e perguntar: O que é Paixão? Não é a soma exata dos dois, porque da soma exata do Amor com o Ódio só nasce mesmo Amor e Ódio, mas é filho das entranhas ambas, como um filho o é tão ao mesmo tempo o pai quanto a mãe, e também ao mesmo tempo nem um nem outro, porque é ele. O que dilapida o “mesmo tempo” da coisa. Que nem sequer sucessiva soube ser tampouco. Pouquinho. Não como o Euzebius & Florestan schumanniano, mas como, numa mesma metade da laranja, o azedo e a água, o líquido e o caroço, a casca e o movimento, o bagaço e o aroma, a cor e o peso: o ser e o ter, o parar e o continuar, morrer e surgir. Dada a ressalva, coadunarei, enfim, e muito provavelmente sozinho em minha escuridão aterradora e sórdida, com Marcel Proust. Aceitarei por idônea a sua teoria da “fé

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experimental” (sic), através de cuja desenvoltura  e afirmando-se, oriundo desta, que a inteligência abdica de sua pretensa força em prol dos veículos mais eficazes de captação da Verdade (a intuição) , desenvoltura que me pareceu em princípio acanhada, mas crescente a olhos vistos, através da qual, por fim, a morte da Verdade está, com razão (veja bem: com razão, com razão), no assassinato cônscio da inteligência, assassina, esta própria, da Verdade. O fato está na razão, portanto. A razão será, se me desculpam a sanidade extrema, como o aroma é para o caroço da laranja: não se relacionam segundo padrões epistêmicos óbvios, notórios, gritantes; e no entanto quem imaginaria uma laranja (ser) sem um dos dois elementos relacionados (ter)? Passa que pode existir, passa sim: uma laranja é sempre uma laranja; como um elefante o será posto que sem tromba; um cachorro que nunca tenha latido; mas o corte maior que abarca os elementos  as hipóstases (estar)  menores (mas que bobagem: hipóstases e elementos são de natureza eternamente menor, mesmo!) é, pois, o redondo. Este não não deixa de ser. E eis que comprovo estarmos, Marcel Proust e eu, dizendo a mesma coisa: não se dá razão ao princípio das coisas, senão que a elas se chegará com os veículos  acanhados, incipientes e sem rumo  que permitiriam a gradação ao auge do conhecimento humano, ou a cegueira iluminada pelo membro binário (e agora sim dialético) inteligência-intuição, cegueira esta (cegueira suprema, cegueira para iniciados, cegueira ímpar) que chamei (ou chamamos nós, talvez) de Fé  a quintessência do moralismo divino. E, a propósito, nem sempre é ao princípio da coisa que se chega, às vezes, quando já se é, partir-se-á de um ponto assim avançado como evoluído: in medias res.

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Rio pantanoso*. *Também sobre como superar nublados. Outro pequeno apólogo impróprio. Homenagem rude aos “Sonhos de uma noite de Walburga”, de Goethe.

Mas que amanheceu chato amanheceu!... Chato! Gritou o grilo. Dirigindo-se, digo, ao sapo companheiro. Como assim? Chato!? Pergunta. Chato é chato, vem do verbo achatar, não conhece? o verbo, oi. Não conhecia  resposta de um batráquio em forma de sapo. E assim começou nossa aventura. É que na verdade amanhecera sem o sol, habitual, aquele que vem nas manhãs  sabe como é?  catar dos serezinhos hediondos e benquistos da mamãe natureza. Por que então existiriam dias se os havia sem o sol que nos alumiava imperioso às vezes sim? Porque (ora) também tinha de existir a noite, seus matizes, sua sombra, seu mistério supremo: ser cara-metade daquele dia de sol sendo portanto escurissíssima. Assim como o menor vocábulo da minha (e deles) é pequenininho. Tão. É. Que fora hoje. Na floresta a modorra. A vandriice de um hoje tão pouco hoje que chegava a parecer amanhã, tão chato na floresta. Riacho, córrego (mas zinho), rios de água tão clara quanto eram transparentes (e preguiçosas) as ilhotas: houve pânico incrivelmente sem nada além de... ...Tédio? Tédio. Que dia é hoje mesmo? O grilo. Sei lá... sapo  como ontem. Não, como não? sim, digo... O quê?! Diz tu. Tu. Á. Ficando nessa o dia todo. Era nublado um dia belo. Lá pelas veredas da noite, quando o mesmo dia anterior e imponente vislumbra o sonho da própria derrocada, o sapo se entorna inteiro para o grilo e pergunta: O dia nublou por conta própria. Não entende o grilo. Poderia ter sido diferente? Continuaria. Ou teve alguém que deu àquele azul luz  que nós conhecemos com o nome de céu  a vestimenta cinza-escarlate? Foi. Que tristeza! Conhecer que acima deste cinza nunca deixa de existir o mesmo sol amante? Conhecer que até algo tão poderoso tem seu dia de recolhimento... Recolher-se é grandeza. Mas é causa de grandeza?

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Conseqßência. De grandeza? Da mesma causa... Passando para o outro dia.

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Sonho* *Homenagem rude ao “Ulisses”, de James Joyce.  Nunca mais!  Gritou; e, depois, desceu as escadas com o nariz empinado de quem tivesse acabado de, uma vez se defrontando com rinocerontes e abadas, vencer-lhes a fúria, malgrado chifres, ventas, sanha... dela própria. Sem olhar para trás, chegou ao salão pequeno onde desemboca o derradeiro dos degraus da escadaria. Tudo às pressas. Tudo seco. Apenas tudo.  Imensa! Minha fúria é tamanha!... Com a moral desabotoada e derretendo:  ... que... Nunca mais!  Houvesse um coro, algo se responderia.  Adeus. Tonalidade azul é o que dissolve o amargor do estômago. Um inimigo figadal e em sonho, isto a Princesa acabara de encontrar  próximo como se lhe fora um pai  no Rei, seu pai, próximo como se lhe fosse um sonho. Razões para insanidade, os sonhos as têm em profusão. A saber: não houve motivos para o denodo e a sobranceria com que desceu as escadas e, ventando, cruzou  e saiu rua afora  o pequenino salão que separa a escadaria da porta; rua para a porta; salão; escadaria para os quartos; salão para nada. É onde está, aonde foi, donde sairá agora. Adeus! Ficou tudo azul. Silenciaram-se pássaros, se já os tivesse havido antes. Azul.  Um livro inteiro por dia!  A considerar o que afiança a vastidão bibliográfica aleijadamente presa ao Mago (vide “Poluição de anjo”), concluir-se-ia ter sido precisamente este o ritmo que lhe fora imprimido desde há muitos anos, ininterruptos; presuma-se, até, Deus, tê-los perdido na morosidade da linha do horizonte da velhice, os anos como os livros, todos como cada um; a incluir idade, cansaço  aquilo que provém não raro do grito “Socorro!” que damos, descrentes, embora, de tê-lo a contento , núpcias, dilapidações. Índice remissivo. Luís de Molina, Occam, Paracelso, Pelágio, São Tomás, Thritennius e os mais variados (até se soube alguma coisa sobre as bodas de Lutero? heresia...), em atendendo a que a quantidade influi no comportamento de homem letrado  ser letrado..., avesso à literofobia, de um pouco, tudo se lhe passou em proveito pelas íris enfermiças, pela pendência por assim dizer à insurreição, à oblação, à pré-anestesia visual, auditiva, onanista. Hereditariedade? Legado desta? Saber de um homem é, ao contrário do que pensas, Princesa dócil, mão cheia de pó a demarcar, deslindar, meticulosamente, fronteiras; tijolos opondo-nos resistência cabal, qual anteparos compostos por nós próprios. Ironia azul. Antífrase anil. Atenuemos, litotemos, eufemizemos... assim são os sonhos! É isso? Se não será, já foi; com fazerem ecos de confusão em nossa mente, esta sorte de ninharias intelectuais e muito arcaicamente artísticas e filosóficas. Vê? “Artísticas e filosóficas!” Que despautério fazê-las, essas palavras, coabitarem num sintagma único, quase fixo (embora fantasiado de seqüência  não vês que é mentira? Mendax... etc.). Que aleivosia tê-las como consangüíneas sintagmáticas. Ai! Às mil maravilhas; ao inferno com o perjúrio, com o “falso” testemunho em prol do academicismo um tanto mágico (pois é do 145


Mago  e num sonho  de quem falo): a filosofia, se é que não o foi sempre, anda uma arte menor. E, em missiva direta, ao lembrar-me de um célebre professor, discorro: quase não me foi maior o pecado,  quase, por um triz, não faço o sintagma-oxímoro “filosofia-arte”. Entende?... professor?! estais onde? Vedes o que, por sorte... (“Eu diria por um punhado de instintos superiores que de ti naturalmente evaporam, meu aluno!”)... eu... não fiz... Obrigado! De qualquer forma agradeço. Alusivamente à patológica arte de confeccionar dicionários (sendo que “patológica”, em se tratando de arte, é dos elogios o maior, entenda-se), arquitetá-los internamente  eu digo no âmbito mesmo do estofo, do recheio, da linhagem genética, enfim ... ou melhor, de confeccionar, com o mesmo cabedal, em lugar de dicionários reles, Tesouros (cemitérios de palavras  por isso santos  que se pretendem exaustivos na exploração e no destrinçar de um dado léxico), quanto à arte, mimética, de fazê-los (Lexicografia), é de estranhar-se que não hajam pululado de buracos podres e profiláticos alguns estudiosos da  vai uma metáfora  “Onomasiologia Filosófica”. Ai, quanta besteira, quanto ensaiozinho não se teria podido evitar em se implantando, a golpes de martelo que o seja, tal ofício medieval e bruto na tibieza da filosofia. E, sendo mole e volátil como é... como está (isto é o mínimo!), quão facilmente não se moldaria aquela préarte gasoso-líquida às fôrmas que se lhe impusessem. Sou a favor das marteladas ostensivas e lúcidas; mas sem perder a loucura. Se em Lexicografia podemos dar abrigo a um interesse primitivo em se levantarem palavras irmãs de sangue semântico (Onomasiologia? justamente partir do significado, talvez do referente, partir do mundo de Cassirer  o dos objetos, enfim  em busca ávida de uma saraivada de significantes, de símbolos que estejam em concerto com aquele significado estipulado algures), por que o não termos feito à exaustão, nos moldes dos grandes mas parcos Tesouros, quanto à desorientada filosofia? Partiríamos, explico, dos temas pescados, e, disso (ou a isso?), retiraríamos subterfúgios que nos pudessem remeter a uma constelação espúria, apenas com micropontos de referência  “referência!” não prescindamos do “referente” , de outros temas que, embora mascarados, são sinônimos daquele primeiro que nos foi o ponto de partida... e de chegada. “Há quem o faça!” alegarás, leitor. Mas com tão misérrima eficácia, alego eu, com tão pouca destreza, que, hoje, ainda, discute-se a “diferença” semântica entre temas que, onomasiologicamente analisados, não iriam além dos tijolos demarcadores do sinônimo substantivo, do idêntico, a bem saber. Ou é mentira? Riamos! prova da ausência de um verdadeiro afã dicionarístico na comarca, nas orlas da filosofia... perdida no meio do oceano, às escuras, sem farol... desde Nietzsche, o Mestre a quem aludi há pouco e respeitoso. Falar do que falo significa dar por falta da aplicação daquele método, fora do qual não se conceberia (nem no estado mais infrutífero do homem  o da lucidez) a análise de certas idiotices e genialidades correndo em parelha; fora da condescendência e justificação de uma Onomasiologia, não se cogitariam muitos pensamentos como, mesmo isoladamente, estremes de redundância, de perissologia, de pleonasmos... tautológicos e devastadoramente inóspitos. Assim é a mentira filosófica. Pretendendo-se teleológica, ó libertina santa, não passarás de redundante e cíclica no sentido de um hic et nunc exausto.  Pusilânime!  Em seu sonho, a Princesa gritava ao léu, enquanto, já na rua, sorvia os eflúvios pútridos de uma longínqua plantação de berinjela azul. Pediu, como seu antepassado Dom Insano II, fé. Pediu fé... que reverbera.

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 A fé  foi respondida pelo antepassado morto há quatrocentos anos  é apenas um sintoma da força interior. Não se busca fé porque não se buscam sintomas; porque não existem sintomas sem causas; e fé não é causa; nem conseqüência: é sintoma, repito. Nada mais azedo que olores de berinjela, senão os das azuis.  Se existir uma conseqüência que provenha da fé (entenda-se: uma conseqüência oriunda da mesma causa que tem, na fé, as pegadas do urso na neve...), tal conseqüência é o perdão, indulgência, mais tolerância, menos agressividade, mais observância, menos sensibilidade, mais libertação, menos desejo  um homem que perdoa... mais.  Pedalou a roda de fiar.  E, por ser sintoma, não se mexe na fé; não se “cura” fé; não se “aumenta” fé: que médico, ruim que seja, abafaria uma infecção ministrando antipiréticos  paliativos  que reduzissem a febre? Ou pior, qual médico, tolo, precisaria aumentar, acirrar uma febre para certificar-se de que naquele paciente há, de fato, uma infecção? Ao menor vestígio da força-infecção, é preciso dispêndio maior com a fé-bre que daí promana fluidicamente? Há de se demandar maior preocupação com um sintoma quando este, sintoma que é, já desempenhou seu papel de indicar a existência de uma causa donde saíram ele e uma conseqüência? (porque ele não é conseqüência) e uma enxurrada de fontes remansosas? Outra dessas fontes é a esperança, esta é conseqüência da Fonte-Primitiva, cujo sintoma é a fé; ela sim  esperança  é conseqüência da Fonte. E não é com essa conseqüência que nos devemos abastecer? Ah, vá se catar.  Perdôo-te por seres um sonho. Ia por uma estrada com os passos doídos de quem calçasse  existisse à época  sapatos de couro justos... injustos. O couro, não que isto não houvesse desde então (desde sempre), ocorre que, não obstante a já existência da matéria-prima em si, a manufatura (que é aquilo a que se faz alusão direta)  o sapato  não tinha ainda atingido os requintes de tortura que se nos impõem, hoje, por tais formas de masoquismo estéril e presunçoso  a matéria-prima ou a manufatura?!  que, pior, vêm aos pares. Como é um sonho, fundem-se conteúdo a continente; sapato a couro; lembro-me até do teu “Brocas”, Camilo Castelo Amarelo... digo... Neste sonho há um tênue vapor a ligar o hoje a quatrocentos anos atrás; cheiram-se tais vapores pelos homens atentos ou conhecedores da gramática (ou ambos)... Em sendo um sonho que era, a ambiência pendia de quando em vez a sutilezas impensáveis em outros pastos que não os oníricos: a luz, bailando, esvanece do amarelo ao azul, caminha das primárias às sombreadas, sem deixar de decalcar no sonhador, contudo, a impressão livre  e impressão livre é sempre forte , a de que se munem os sonhos face a nós, sonhadores (de quem se alimentam). A estrada tende ao azul, como na iniqüidade da sombra rosa que, impondo sua existência, teima, contudo, em desaparecer, fustigando e ferindo a visão; deixando-a órfã. Passa em frente ao orfanato. Terminando o sonho acordaria feliz. Ou acordaria feliz terminando o sonho? Ou acordaria feliz o sonho terminando. Temos causas e conseqüências... assim é o problema da fé... Porque os parágrafos estão demasiado curtos, tem-se a impressão, errada (ao menos em português), de ter-se formado naturalmente um acróstico! Aliás, os concretistas hão de estar detestando a configuração, a disposição trôpega deste sonho (é que, na verdade, os concretistas detestam mesmo é o sonho, qualquer um, esteja apresentado este como 147


estiver). Apesar de que são os únicos gênios que conhecem que o Abstrato sempre se formulará sólido. E que antes de haver abstrato deve mesmo ter havido é o sólido. E que só mesmo um sólido diáfano se presta à representação de um abstrato concreto. Depois da estrada, posto estar agora num como que descampado, a visão, a iminência, a espera de uma surpresa degradante é ameaça a rondar-lhe o espírito, qual as andorinhas que, estas sim, ali sobrevoavam e pela Princesa eram vistas. O vale é verde e, talvez desconhecedor da incongruência que isto representa, severamente estéril. Água, se houver... água, onde houver, deve ter-se esquecido de, generosa, vir à tona; mas os lençóis fartos onde vivem e dormem, a água como a Princesa, têm certamente seu lado de caridade: não transparecem, o sonho como a água, mas, lá do lençol de onde (e graças ao qual) vêm ao mundo, de lá mesmo hão de revelar campinas verdes, estéreis, aguadas e secas. Pede-se veementemente perdão: isto é um sonho: vive-se em febre. Na seqüência, uma dolce fase entre sono e vigília (há de ter batido uma janela), vêem-se peixes voando em redemoinho alaranjado. Daí à loucura suprema, um pulo. Que foi, francamente, dado: uma imensa baleia, redonda porém negra, ao som de Bellini, sobrevoa pla-ci-da-men-te... o-c-é-u-a-z-u-l..., com a madorna de quem, nos pés, não tivesse nada, acarretando, fe-li-ci-da-de... , as benesses, prejuízos de uma tal campina verde sendo sentida na descalcidão do pé? Ai...Ai... Um par de barbatanas  esperando perdoarem-me os biólogos se baleias o não possuírem , aquelas “asinhas”, enfim, que fazem do mamiferão em pauta um, ao meu ver (é óbvio; sou eu quem escreve), animal simpaticíssimo, aquilo girava como hélice de avião (avezão), dando o sustentar inconcusso e risonho que configurava a aludida “loucura suprema” que brinda com seu cerne o tópico frasal deste imenso (qual baleia), lerdo (idem) e engraçado (ibidem) parágrafo. Este e o que lhe antecede, sim, de certa forma. Conquanto se tornasse interessantíssimo o sonho, a baleia pulverizou-se, assim serôdia como prematuramente. Bum! (...) Ai! Zurrou, blaterou um camelo Uma criatura corcovada e ruminante, como nós... Lindo cogumelo de berinjela azul (o cogumelo e a berinjela). (Acróstico à vista! Uff! Puff! Relede-o.)

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Terra.

Lá vamos nós uma vez mais para capítulo inútil e com muito mais perguntas que... Não, não desta vez. Não. Desta vez, caros, ocorre que se trata de um punhado de respostas muito mais prolíficas do que as perguntas que, porventura, tê-las-iam feito. Na verdade (que grande ironia) é um daqueles episódios da vida  em quem sempre se esbarra com o problema dos conceitos  onde as respostas pulam, jorram, vicejam aos brados, em muito maior profusão do que teriam vindo, é verdade, acaso tivesse havido perguntas por detrás delas. Assim as respostas nascem por autogênese, quem sabe abiogênese, por ausência mesmo de uma vida  a pergunta  primitiva ou sementeira que a tivesse posto em virtualidades onde quer que seja. É vida em vida, tão excessivamente vida (sobressacralizada) que chegaria a prescindir de vida para ser a mesma vida que é e será. Seria algo como o estatuto perfeito da fé, de que já falei: a grande abre mão de si mesma para continuar sendo. Quando descubro por exemplo o que é Deus sem nunca ter perguntado o que é Deus, será que se trata de uma resposta ou teria sido apenas o que é Deus? Sim. O que é Sim? Por que um Sim tão maiúsculo pode responder a duas perguntas paradoxais a um só tempo? Porque sempre se é paradoxal a um só tempo. E porque o fato de ter havido pergunta não legitima a essência da Verdade enquanto Resposta, é apenas e tão-somente tudo aquilo que nasceu para ser e que, pois, sempre foi, sempre fora. Dentro também. Mas todas as respostas saltaram, como eu disse, exceto no que tangeria a uma delas, me refiro a uma das perguntas virtuais existentes: por quê. Essa, caros, acreditem, essa nunca se responde por completo, nunca é total, nunca é perfeita, nunca nada; porque vai deixar abertas sempre novas grandes imprecisões advindas de novos porquês e por quês, respostas, perguntas, etc. Assim por diante. Sendo Nada, repararam que é a Pura Essência do que Deus de mais Profundo nos deu a conhecer? Ele Próprio sem precisar de sua crença, amado. Eu que diga, sinceramente, nesta missiva, que a única verdadeira resposta na polissêmica vida, a única real existência de vida real, vivida, é a resposta do como, do como sou, como faço, como estou, como tenho... como quero. Mas também aonde. Porque além ou aquém desta verdade dolorosa, a verdade do aonde e a do como, que não são duas porque na verdade uma só, nada existe verdadeiramente profundo ou raso o bastante a sustentar-se ereto. E desmorona sempre. Vento levaria. Feito castelos de papel e areia, agregados em sofrimento de vida exausta, perguntandonos por quê... por quê? Porque a única essência verdadeira da vida é a forma bela e arrefecida através da qual se desdobra do  e talvez com certeza ao  grande e inquestionável Por-quê. E como isto se faz? mas será que é mesmo preciso perguntar? Mas será que não é esta a resposta que a todo o momento grassa e grita e glosa como ar, como água, como gelo e fogo, e finalmente como terra em nosso exterior. Isto de COMO não é pergunta, até agora não notaram? é a Resposta Exterior. De Terra.  A Terra. Da Terra.

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Uva: ovo p茅rola escultura do mar na terra que pode ser comida.

Eu pensei que, ao amar, Eu pudesse dizer o que reclamo. E agora, que eu amo, Por que eu s贸 posso escutar?

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Vida: infindos, paralelos encontrados poemas.

Leão e pavão

O pássaro, invenção do homem que simplesmente não existia, como nunca houve existir o sonho que gatos passam vinte horas por dia sorrindo, acontecendo, impondo um dia fez verdade rebelar-se contra si mesma, compromisso a ser além do limite que teve, herança de Deus, e arcou, na conseqüência eterna, de ter inventado a mentira... Enquanto o grito de um pavão perfurava as sedas, matas em que o Leão  imperioso com seu manto de açafrão  tranqüilamente, incomparável caminhava... muitos bichos não dormiam com viver por receio de morrerem um pouco; dormir não é morrer a mais que caminhar não sendo louco... E a verdade, contínua em sua marcha rumo à cisão que se causou agora, vendo que se desencaixa de si mesma, deixa a mentira viver. E se aquietou... O pavão enfim soergue os rabos, se arrosta lindo  afinal é pavão  com Sua Majestade, o Imperador Leão. Sorriem-se mútuos, nababos, Leãomente, a verdade é uma  somente são!

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MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA

Eu descrevo a filosofia como a respiração hispânica de um jovem a descreveria; ele acabando de subir muitos degraus, se movem porque ainda muitos tantos outros acabando em assimetria. Aristóteles (acho) bem o dizia: “Todos querem ser felizes, poucos acham que alegria há de saciar o mal dos aprendizes para que o mestre se levante, fale e ria”. Como o intervalo entre um pé e outro pé que de um degrau para outro pode em seu tropeçar solto. Mas não tropeça: respira. Recomeça como sendo sua a mira no movimento dos braços das pernas dos pés do músculo cardiocerebral. A filosofia e o milagre a caminhar no dia-a-dia. Que sobem ao comando malabarista, quando não corre: que bobagem correr seria, correr, se os degraus jamais sairão de seus parados patamares do claro vão chamado grão de árvores frutíferas milenares. Vão os que ali pisam e os que adormecem ali não. Planos? A filosofia não é portanto o jovem: é a sua respiração e o encanto de seus pés,

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o acalanto de quem vê: realizo. Preciso como um ponto de precisão. Adão não teria visto em Eva a perdição? Muito menos a escada é a filosofia Porque a escada é parada e a filosofia Também. Se enrola, é para desenrolar melhor. A vida é conseguir quem. Então como seria escada uma filosofia, se para ser filosofia é preciso que se pare? O fluxo em refluxo E o refluxo em fluxo. A respiração nunca pára, Os pés nunca param, O jovem nunca pára, São ciclos de vida. E portanto a própria escada nunca pára, Deixando de ser uma filosofia vaga Para ser uma respiração viva: Deus é Deus; amor é amor. A filosofia se move com a escada; que é, como se sabe, o que é a filosofia. Muito mais que observar: a filosofia é sentido. Como os pés, respira. Como a escada pára quando chega volta. E se disserem de outra forma contrária a si mesma em vão se realiza o mal da filosofia se estorva em tautologia de brisa e é possível uma poesia precisa? 153


Mas a vida é prumo reto. (E volta a enrolar o desafeto Como a aranha apalpa e chupa o inseto.) Morte a eles! Alimentem-nos com seus meles! A filosofia só não grita Porque é uma arte antes inscrita. A vida é uma aranha. A filosofia – pasme – seu inseto! E houve um dia na Espanha O poeta-filíosofo loquaz-quieto. Verme que se pensa no aporte, mas que, em sua morte, está inerme! Homem de verve Guerreiro da loucura Cantando na espessura O que é raso e o que não serve. Quem quer sentir a filosofia Não precisa nem saber ler. Que se tranque na abadia Do ensino ABC. Que seja analfabeto: néscio, inculto, inepto. Isso ainda melhor. Porque as letras aumentam o voluntário Do tropeço no itinerário. E eu já afastei a tristeza e a dor. Letras não são degraus, São pedras lascadas. Pés são passos maus Que são escadas. Teias são linhas finíssimas Cuja tenacidade é comparável À força da própria aranha. Quem não tem letras não tropeça. Quem quer sentir a filosofia, 154


Esqueça. Queira subir a escada. Saiba respirar. Tenha pés. Reza,.esquadra, De renuncie a um passado Imensamente construído e Cure-se dele Cuide-se dele Cubra-se dele Cumule-se dele. Abençôo. Agradeça-lhe. Adeus, o que passou! Renove eternamente sua pele dele. É só disso que se precisa. A filosofia é uma espécie de urso Cuja imensa força alisa Com músculos de acariciar intruso, Não de assovancar abuso. Músculos de amar, Não de abraçar fatal. Músculos enfim de todo o conforto, Porque a filosofia mesmo Se for boa é como âncora no porto E ser atendido e já dizer: Graças. E, absorto. Porém desavisadamente, se você vir o Don Quijote nas montanhas de Leon com seu cautivo Não lhe pergunte nada. O verdadeiro filósofo nunca Pergunta coisa Alguma A ninguém. A alguém muito Menos jamais. Ele só precisa de pés. Ele só precisa escutar o que lhe derem trivial. 155


Somente escuta as palavras do Caballero Quijote, e siga Com que se suba a escada para a luz seminal Nova e a antiga: Antes se lembre atento De que Dom Quixote é o louco do vento Uma figura a ser execrada De entre esta tierra estéril, derribada, Impossível terreno de pensamentos agudos, destos terrones por el suelo echados, onde há vastidões de lanças e de escudos, las almas santas de tres mil soldados inquietos, repousando ao fim da boa batalha, subieron vivas a mejor morada como pássaros de Francisco de Assis, como palha, siendo primero, en vano, ejercitada (como se fora levada leve ao firme vento) la fuerza de sus brazos esforzados, achando então a água, o descanso e o frumento, hasta que, al fin, de pocos y cansados, fiéis à nobreza da rude estampa da cavalaria, dieron la vida al filo de la espada, mas não viveram a menos nem um dia. Y éste es el suelo que continuo ha sido, no meio de tanta obra assim arquitetada, de mil memorias lamentables lleno em que se pode narrar um solilóquio ameno en los pasados siglos y presentes à memória dos soldados que descansam combatentes. Mas no más justas de su duro seno à Vitória nunca suficientemente enaltecida habrán al claro cielo almas subido, cercadas de anjos retornando-lhes ânimo à vida, ni aun él sostuvo cuerpos tan valientes, que já não possam agora ser distintos e tementes. Belo exemplo de filosofia: Um dueto Don Quijote ao meio-dia. Para que responder uma pergunta se responda com a filosofia junta. E no fim de toda a tal jornada Se descubra que filosofia não passa de piada. E a vida sim é o que importa que a filosofia é como Eva: perigosa, esquisita, feia, sedutora, e completamente morta!

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NIETZSCHE Os livros não falam, são acervos. Deus pune os inoportunos. Ele até prefere que vivam os soberbos Que tenham podido casar pontos unos Entre os porquês verbais e os próprios verbos. Não há em si mesmo algum opróbrio Que supere a imensidão de uma sandice. O que há, Senhor, são homens sem próprio Amor à unidade expressiva, casando isto a diz-se. Aquele que não conseguir casar-se ao porquê Visando ao ponto de uma frase Perfeitamente,  foi Deus que preferiu dizer,  Pode retirar-se ao relento, até que case. Case forma a fundo e tenha Como fruto o fenômeno expressivo. Este homem tem a senha Que peneira a ganga no crivo. Homens há vivendo à cega. Pessoas andarilhando em linha coesa. A água de Deus nunca rega O pomar estéril dessa gente indefesa. Presos pelo pescoço como aquela matula Que Dom Quixote libertou e foi Apedrejado como o boi (Sancho Pança, como a mula). Ajudar delinqüência é jogar água no mar, exceto Se você ajuda com o olho da serpente: Que nessa hora é melhor agir sibilino e reto, Que ser apedrejado por ser bom e imprudente. Enfim este poema não é de Cervantes, Para ele houve outra tonalidade (acho, exangue); Nietzsche nasceu vários séculos antes, Por isso é que sabia tanto as verdades do mangue. Deixe-os, deixe-os descansar, capachos Pisados pelos pés que Deus conhece. Deus não diferencia fêmeas de machos, Muito menos gênero de espécie. 157


Deus quer ao homem a unidade, obedeça. Ou, se preferir, viva cego, bêbado de vinho. Não há verdade que seja avessa à unidade primordial do caminho. Quando você aprender, vamos ao baile, Enquanto isso, você vai lendo o que presume. Nada que você lê está em braile, E, sua infelicidade: um cego tampouco aspira perfume. O que fazer em meio ao caos? Tornar-se imagem de um suicida? O único conselho é cancelar os maus, E viver a unidade, que com ela vem a vida. (Marcelo Caetano, MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA, In: O livro dos santos e das pessoas.)

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Versos Faustos.

Há noites quentes que me escondem no abrigo Em que meu Deus, Tão Poderoso, é um Amigo. Acaso angústias se estenderão infinito? Ou quem lhes deixa o preconício em perigo Ainda pisa os seus cadáveres comigo? Eu era um preso, inspirado, eu era aflito Agrilhoado, empanzinado de iguarias, Quando, aos bramidos, no meio das que mastigo, Escuto a Deus: Fartar-te-ei como querias! A força? Dei-lha. O Coração levou consigo Depois, guardando o sangue em caixa de veludo Azul Sagrado (e tanto mais  mais o estudo) A descobrir-me nos detalhes um aspecto De sutilezas formosas, o Amor Completo,  Uma caneta! A mim, um simples objeto Com que descrevo à minha vida um trajeto De Arquitetura sobre planos do Decreto Divino, impúbere, maduro... E a rapina Insistia sempre em burlar a disciplina: Fez da caneta um ser rombudo e abjeto E esvaneceu a tinta em morta  Estricnina! Toda caneta é como chuva na janela Aberta, é como o arremesso, é como a sela De um cavalo acelerando em rente, bela E verdejante esfera... exânime: é uma cela! Aurora líbera que à noite se perverte Como o pagão que ao Cristianismo se converte. Jorrando versos, a caneta faz propícia A realidade numa alma fictícia; Mas é com tinta inexprimível e sovina, Pois não tem carne, por isso não alucina! Largada a pena, mãos crispadas, faz tolice, Ao crer, parada, estar correndo na planície  Qual um corcel cortando páramos gigantes, Em harmonias doces, celsas e possantes: É que os versos se extinguem por instantes. É que o poeta amarra todos com barbantes. Eu choro sobre a tal tonalidade escura Azul Sagrada na caixa que Deus segura Com o meu sangue  rio pleno de finura  Em pergaminho a transmudar-se da loucura em letra vívida: a caneta é a censura

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Do meu caminho inequívoco e vital Com que traduzo minha doçura em espiral De mil poemas num idílio virginal. Respiro um pouco; peço a Deus o especial Alento infindo; e dá-me o brio dialetal Nascente, indo da Virtude Teologal A um só verso; que me seja original! E, após, a voz de um estrépito assustador:  Faze com o sangue da Caixinha Divinal Que Eu te dei, poeta vivo, sem ardor, Pois o teu sangue é tinta negra e visceral E não se apaga nem com fogo sensual. Inda que caias sobre a relva, ó imortal de sangue puro da caixa transcendental! Ouvi a voz, espavorido porém terno, Ajoelhado, abjurando aquele inferno Em que vivera até então (por pouco amor À caixa azul com o sangue de meu louvor Ao Deus imenso planejando a meu caminho O transmutar-se milagroso de água em vinho): Acenderei, ó Deus bondoso, a vós um círio, Pois nem ao grande e majestoso Salomão Destes a verve de vestir-se como um lírio; E a nós, poetas, destes todo o Coração Dos prados verdes, das paixões e dos poemas, Eflúvio doce das vidas com que me emblemas de sempiternas as tintas do ardente rindo... ...Ouço do alto angelicais vozes sumindo? (A espreitarem-me poemas já no prelo Escurecido?) ... Agora vozes se extinguindo?... Ouço do alto de esplendor a voz apenas De meu bom Deus, Poeta-Mor de cantilenas Angélicas, faustosas, simples, grandes cenas De uma vida a expensas de vidas serenas. Estremes sentimentos formam pois o elo A me fartar:  É do Marcelo! É do Marcelo!...

(Marcelo Caetano, In: Valsa Mefisto.)

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SIM!

(Reparamos que este livro anda para trás? Saúde!)

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