1 ANEXO A - ÍNTEGRA DA ANÁLISE DO OBJETO DE PESQUISA
#08; p. 23, quadros 4 a 6; e 24. Figura - Animal Man #08, p. 23.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013. Figura - Animal Man #08, p. 24.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o personagem James Highwater, um descendente de nativos americanos, aparece pela primeira vez na obra. Ele está de pé sobre uma meseta, de braços cruzados, assistindo as águias cruzando os céus à sua frente. Veste uma calça jeans, e uma camisa branca. Ele pensa sobre o que ocorre. O fundo da cena some, e o enquadramento faz um close-up em Highwater. "Á águia passa pela face quente do sol. Eu sinto um calafrio premonitório. Por que eu estou subitamente aqui? Eu não me lembro de caminhar ou dirigir até este lugar." Enquanto o espaço físico presente no quadro seguinte aumenta, o coadjuvante começa a pensar se ele não está vivendo um terror existencial - pois ele
3 sente como se tivesse sido recentemente trazido ao mundo, com um conjunto inteiro de memórias e um propósito já definido. Mas, no quadro seguinte, o pensamento dele ainda flui para uma segunda possibilidade a partir do que sente naquele momento. "Ou poderia ser verdade, enfim... Que Einstein estaria ERRADO?" Na página seguinte, os seis quadros mostram um quadro com um computador, que possui a tela amarelada. Aparecem, ao fundo, no alto da página, uma janela, um aquecedor de parede, um cesto cheio de lixo, e um gato preto, com coleira avermelhada. O enquadramento vai se aproximando para revelar o que está escrito no monitor. Lá, está uma citação de Albert Einstein. "Eu não posso acreditar que Deus joga dados com o cosmo." Nos dois últimos quadros, após a frase ficar legível ao leitor, outra frase é digitada logo abaixo: "Ele não [faz isso]. Mas eu sim." Efeito: as alegações e pensamentos acerca do que acomete Highwater acabam por quebrar o que se conhece como suspensão de descrença - o primeiro dos elementos da époche. Essa sensação, descrita com detalhes pela primeira vez pelo poeta, crítico e ensaísta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), é a vontade de um consumidor de uma obra de ficção de aceitar como verdadeiros os acontecimentos ocorridos no universo ficcional, por mais absurdos que sejam. Assim, o leitor abdica do julgamento em relação aos fatos, em troca do entretenimento que receberá durante o curso da obra a ser fruída. O personagem, no caso, acabou por chamar a atenção ao leitor a um fato corriqueiro: um personagem novo apareceu, e começa a falar. Não conhecemos sua origem, suas motivações, ou mesmo o que ele fez para ir parar em cima de uma meseta. A partir disso, começamos a questionar o sentido da história, e podemos não acreditar nela, ou em alguns aspectos da narrativa. Afinal, para o que James Highwater contribui na história? Além das informações que o próprio coadjuvante percebe que faltam, há pelo menos uma que está sobrando: a citação a Einstein. Ela não é dita pelo personagem - mas, se não estivesse na tela de computador na página seguinte (o que permite o encadeamento das ideias sequenciadas), a narrativa iria supor que conhecemos esse conteúdo. O roteiro acaba por trazer essa passagem, presente no início deste número, para reapresentar essa ideia, e acrescentar os adendos de alguém, que
4 está em outro lugar, e a quem, neste momento da história, ainda não conhecemos, e fornece informações à narrativa. Categorias: intertextualidade, autor-personagem, ação retardada. #09; p. 8. Figura - Animal Man #09, p. 8.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: na sequência da cena anterior, Highwater volta para sua casa. Antes mesmo de entrar no prédio, uma cena mostra a construção por fora, enquanto o personagem se pergunta se aquele é mesmo o seu apartamento.
5 A cena seguinte mostra o físico abrindo a porta e entrando no local. Seus pensamentos respondem sua própria pergunta. "Tem que ser. Meu nome na porta. J. Highwater." Ele também afirma que tem a sensação de ver o local pela primeira vez, apesar reconhecer todos os objetos que ali estão. Logo após, ele dá alguns passos pela sala, referindo a alguns de seus pertences: televisão, cortinas, o carpete, o livro que está no chão. Ele recorda que vive neste local há anos. Ao abaixar-se para pegar o livro, ele lembra-se de um livro de Lewis Carrol, citando o título de Alice "Através do Espelho" - que se passa após o primeiro, "No País das Maravilhas". Highwater abre o livro, e, na página marcada, ele lê um trecho sublinhado com caneta vermelha. "... Você é apenas uma das coisas no sonho dele." Finalmente, ao desdobrar o papel usado para marcar o livro, e, mesmo que em pensamento, surpreende-se. A cena mostra o papel aberto, com os dizeres "PERGUNTE AO PIRATA PSÍQUICO". Efeito: o movimento de estranhamento do personagem em relação à sua própria caracterização e à narrativa continua - assim como a quebra da suspensão de descrença do leitor. Ou será que não? Pode ser que, através da continuidade do uso do artifício, os consumidores podem começar a entender - como será mostrado mais tarde - que essa lógica faz sentido dentro da narrativa. Claro, há risco nessa estratégia disruptiva para contar a história e manter o mistério acerca do que ocorre com o cientista, pois nem todos podem comprar essa ideia. Uma pergunta que poderia ser feita (sem, entretanto, ser respondida) é se os exercícios de metalinguagem possuem alguma relação com o vazamento de elementos para fora do quadro. Apenas nesta página, existem três ocorrências: o topo do prédio (quadro 1), o pé de Highwater (quadro 3) e o papel desdobrado (quadro 6). Há ainda um detalhe que chama a atenção: o fato de que há duas cores diferentes nos balões de pensamento. A partir da cadeia de acontecimentos, é possível compreender que esse recurso gráfico - a passagem do amarelo para o azul - se dá de forma a dividir o que acontece na cabeça de Highwater entre o que ele pensa antes e depois de adentrar ao apartamento.
6 O fato e o livro deixado no chão ser um exemplar de Alice no País das Maravilhas (narrativa metaléptica, no que uma menina entra em um universo desconhecido) também pode ser um indício do que a narrativa apresenta - uma de numerosas referências à obra de Lewis Carrol encontradas nas 26 edições de Homem Animal. O Pirata Psíquico, por sua vez, é um personagem que ainda não havia sido reapresentado aos leitores depois da Crise nas Infinitas Terras e a unificação do universo compartilhado da DC Comics - mas leitores poderiam fazer a relação entre os fatos incomuns que ocorriam ao novo personagem e os acontecimentos da saga, da qual nenhum personagem deveria lembrar-se, devido às circunstâncias do novo Universo DC. Categorias: autoconsciência, intertextualidade, historiografia, ação retardada.
#10; p. 10, quadros 1 a 3 Figura - Animal Man #10, p. 10.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o vilão Chapeleiro Louco aborda Highwater, e diz que eles são todos palavras em uma página. "Eu apenas achei que você deveria saber. Nós somos somente um script, criado às pressas para cumprir uma meta. Nós nunca poderemos aspirar a mais do que um melodrama barato." Em seguida, ele tenta fazer com que o cientista repita a frase "mim carapálida falo com língua bífida". Os funcionários do local então percebem que o interno escapou, e o imobilizam.
8 Enquanto é arrastado pelo corredor, o Chapeleiro Louco se preocupa mais em terminar seu raciocínio. "Somos apenas palavras em uma página! Algum picareta barato está escrevendo nossas vidas! Sem espaço! Sem espaço!" Efeito: a fala do interno do Asilo Arkham, localizado em Gotham City no universo compartilhado da DC, não parece fazer nenhum sentido com o resto da história, já que James não está lá para vê-lo; sua aparição é inesperada. Entretanto, o criminoso insano está falando do próprio roteiro de quadrinhos ao falar que alguém os escreve. A narrativa ataca o próprio gênero super-heróico, estabelecendo uma autocrítica - as histórias de super-heróis seriam melodramas baratos. Além disso, a citação das metas a serem cumpridas pelos criadores são submetidos também configura outra censura às práticas editoriais. Além disso, a frase que o Chapeleiro desejava que o cientista repetisse é largamente utilizada em peças ficcionais estadunidenses, principalmente no gênero western. Ela refere-se ao aspecto ambíguo que envolvia as relações entre os colonizadores do Oeste dos EUA e os nativos locais à época, no que a segunda parte poderia ser enganada a qualquer momento. A brincadeira feita pelo vilão está no fato de que, sendo Highwater um descendente dos nativos, falar a sentença seria contraditório. Categorias: intertextualidade, autoconsciência.
#10; p. 11, quadros 1 a 4. Figura - Animal Man #10, p. 11.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: em uma cela do Asilo Arkham, um homem está deitado, em posição fetal. Acima dele, uma lâmpada incandescente atrai a atenção de uma mosca, que faz rodopios pelo ar até chegar lá. Em frente ao homem, um papel, amassado até ficar parecido com uma forma esférica. O homem fala sem parar, baixinho, "mundosvãovivermundosvãomorrer", repetidamente. Alguém fala, de fora da cena, e chama-oele pelo nome: Roger Hayden, o Pirata Psíquico.
10 Hayden olha para o interlocutor dele. Suas escleróticas têm várias linhas vermelhas, seus cabelos estão desgrenhados, e sua boca, entreaberta. "Um e dois e esse e xis e três e quatro e prime e O que você quer? Foi o lobisomem quem lhe deu meu nome?" O médico, que havia chamado pelo interno, chega perto do Pirata Psíquico, acompanhado de James Highwater. Os dois parecem sombras, pois a luz incandescente bate de cima. O profissional da saúde estende a mão para o preso. "Calma, Roger. Sou só eu. É o Dr. Huntoon. Você parece inflexível, Roger. O que nós dissemos para você sobre não dormir?" O homem treme sob a camisa de força. Ele franze a testa, e olha fixamente para o médico. "Como eu posso dormir? Se eu for dormir, eles podem decidir por me remover da continuidade, e então eu nunca vou acordar." Efeito: toda essa sequência fala sobre a continuidade recente (se considerarmos a temporalidade desta HQ em particular, ou seja, 1988) do Universo DC. O termo Universo DC é utilizado para a linha do tempo do universo compartilhado - o que também significa sua continuidade. A diferença no uso das duas expressões é o falante. Os leitores e as revistas se referem ao universo compartilhado, dentro de uma sequência encadeada no espaço-tempo, de Universo DC; o termo é usado editorialmente. Já a continuidade é utilizada de forma conceitual, já que existem múltiplas continuidades (o próprio Universo DC, o Universo Marvel, o Mundo Pokémon, o Mundo das Trevas, e assim por diante). Os símbolos citados pelo Pirata Psíquico são as múltiplas Terras alternativas da continuidade anterior à Crise nas Infinitas Terras (1985); após o megaevento, o espaço-tempo foi alterado, sendo reduzido a apenas uma realidade e, portanto, uma única Terra. Seu medo de ser removido da continuidade se dá justamente pelo controle da editora DC Comics, que determinou que os personagens tivessem novas origens a partir de 1986, e não se lembrariam do ocorrido na Crise. Por fim, o escritor da maxissérie foi Marv Wolfman; a citação - confundir o autor com um lobisomem, significado possível do termo "wolfman", no original em inglês - funciona apenas na HQ original, não se aplicando à versão em português, publicada pela Abril Jovem
11 em 1990. Nela, o termo permaneceu como Wolfman, para que os leitores deliberadamente fizessem a relação com os acontecimentos anteriores. Categorias: historiografia, ação retardada, autor-personagem, metalepse, intertextualidade, autoconsciência #10, p. 13, quadros 1, 2, 3 e 6. Figura - Animal Man #10, p. 13
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Highwater pega o papel que estava no chão, já que o Pirata Psíquico declarou que era um presente para ele, que havia vindo visitá-lo no Asilo
12 Arkham. A princípio, o cientista se pergunta o que o conteúdo significa, ao começar a ler. Ao verificar a parte de trás do papel, ele vislumbra uma história em quadrinhos - ou ao menos uma parte dela. Os quatros mais delimitados seguem a leitura do nativo estadunidense. No primeiro, dois aliens amarelos discutem. "Uma vez que pusermos estas armas aprimoradas em produção em massa, qualquer planeta será nosso para pegarmos as populações se tornarão nossas escravas..." No que o outro responde:
"É
uma pena que a besta que nós mandamos aqui primeiro não tenha conseguido desenterrar o dispositivo! Teríamos economizado tempo, Trano..." A seguir, Buddy entende o propósito do monstro que batalhou anteriormente, a partir das falas dos seres amarelos, os quais observa escondido atrás de uma rocha. Ele entende que, então, seria este o momento certo para atacá-los. Com uma pistola alienígena em mãos, o protagonista encara os alienígenas, mesmo ainda sem uniforme, trajando somente calças roxas e uma camisa verde xadrez. "Diga a eles para pararem de fazer palhaçadas aqui na Terra! ...Voltem, e será sua última visita! ...Agora, lancem-se para fora daqui!" Por fim, com outro close no rosto do herói, ele agora olha para o horizonte, enquanto os aliens vão embora, e começa a pensar no que conseguiu. "Meus poderes animais... Aquela arma de raios ativada pelos aliens... Eu ainda os tenho! Talvez... Talvez eles não vão embora, e eu possa utilizá-los novamente, para lutar contra qualquer mal que possa de novo ameaçar a humanidade!" Efeito: nota-se que esse Homem Animal que o cientista vê na página de quadrinhos não é o mesmo personagem que está na narrativa em que ele habita apesar de ele ainda não saber disso. Mais tarde, ao encontrar o herói (#18, p. 5), ele nota a diferença, já que o protagonista da história que ele lê neste ponto é inclusive mais velho do que o homem que ele encontra casado e com filhos. Além disso, essa parte da origem do Homem Animal é a continuação da p. 1 desta mesma edição, após Buddy Baker ter encontrado a nave alienígena. Categorias: ação retardada, historiografia, mise en abyme #14; p. 6 e 7. Figura - Animal Man #14, p. 6.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013. Figura - Animal Man #14, p. 7.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: em outro lugar, os pensamentos de alguém são revelados, enquanto o que se vê é somente a beira de um lago, com gramíneas no solo e a chuva caindo, provocando ondulações na água. "Chuva no canal. Padrões de interferência de círculos concêntricos, como diagramas de impacto de bombas." O homem está em um parque: há uma grade de troncos ao fundo, antes de um mato com algumas árvores sem folhas. Ele veste sobretudo, e deixa as mãos nos bolsos, apesar de carregar um guarda-chuva - este fica fechado, embaixo do braço direito. "Como poderes telepáticos nos quadrinhos. Como as marcas de copos
15 e aneis nas pedras megalíticas. Como padrões em uma placa holográfica. O símbolo da teoria da ordem implicada de David Bohm. A visão de um universo vasto e interconectado, onde cada parte contém o todo." A imagem foca nos pés do pensador, e no seu reflexo na água. "Onde o universo é um espelho, refletindo a si mesmo. Tudo é tudo." Ele começa a caminhar na margem do corpo d'água. "Patos disputam os juncos. A chuva cai pelo caminho. Eu preciso de uma ideia." Ele ainda recita mentalmente alguns versos, antes de repetir, novamente: "Tudo é tudo." Ele cita o título dos versos: The Unquiet Grave, uma balada do poeta britânico Arthur Quiller-Couch (1863-1944), enquanto caminha por uma subida; em primeiro plano, um pneu e outros objetos jazem no lago. "Eu costumava adorar isso quando estava na escola. Cristo. Era fácil de satisfazer." Ele continua por seu caminho, e contempla um edifício largo e baixo, envolto por uma estrutura de vigas de metal. "Um gasômetro contra um céu inquieto, os ossos de dinossauros da Era Industrial. Metáfora horrenda. O que vai haver a seguir? Selecionar extratos do Dicionário Oxford de Citações? Passeando por Nietsche e Shelley e Shakespeare para dignificar um velho artifício velho e disfarçado?" Ao passar por uma caixa velha de madeira, ele conclui sua reflexão, concordando com a pergunta que recém fizera a si mesmo. Logo à frente, James Highwater dorme por sobre uma mesa de madeira, e também está tomando chuva, assim como o pensador. Antes de chamar pelo personagem, ele ainda se pergunta mais uma vez. "De vez em quando você se pergunta, em um universo interconectado, quem está sonhando com quem?" O personagem aborda o cientista, chacoalhando-o, pedindo para que ele acorde. Efeito: O presente ser pensante das imagens é uma representação do próprio Grant Morrison, como será confirmado mais tarde. A partir desta perspectiva, é possível perceber, em números posteriores, a utilização de algumas das ideias sobre as quais devaneia durante esse processo criativo tomarem forma dentro da narrativa. A diferença gráfica também é gritante, principalmente no momento em que Highwater aparece. A mudança na paleta de cores, com a predominância do branco e com tons mais sombrios compondo as cenas, foi a maneira encontrada para
16 diferenciar as duas realidades retratadas na trama. O mundo representado aqui é o real, onde os leitores também supostamente vivem - já que se fala da representação do autor. Anteriormente, a presença do Deus do mundo ficcional era apenas presumida: aqui, ela já se faz explícita, apesar de não ficar claro ainda que este homem seja uma representação do escritor escocês. Assim, Morrison quebra um paradigma recém estabelecido pela editora DC Comics. A Crise nas Infinitas Terras surgiu justamente pelo problema das infinitas realidades que tornavam a continuidade confusa. Portanto, em 1986, a empresa decretou que, depois da saga, somente haveria uma Terra novamente. Mas, se somente existe uma Terra, qual é o lugar onde o autor se encontra que é tão diferente do encontrado nas páginas de Homem Animal até ali? Há a possibilidade de ambos os locais situarem-se no mesmo universo? Provavelmente não, a partir da perspectiva onírica de Highwater na cena, e a partir do pensamento de que o homem retratado nestas páginas for o autor -, portanto, ele estaria no mesmo mundo em que nós, pessoas humanas, de carne e osso, nos encontramos neste exato momento, enquanto você lê este estudo. Ainda na fase escrita por esse autor, o retorno das múltiplas Terras será reforçado com a aparição de uma terceira realidade: o Limbo, onde estão todos os personagens que uma vez já existiram na continuidade, mas agora jazem mortos ou esquecidos. Categorias:
autor-personagem,
historiografia,
aninhada, intertextualidade. #14; p. 8, quadros 3 e 6. Figura - Animal Man #14, p. 8.
metalepse,
reviravolta
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Highwater acorda de seu sonho, e tenta lembrar-se do que viu e ouviu sentado na cama do quarto de um hotel. Ele está com uma mão no queixo e olha para o chão. Entretanto, ele lembra-se de apenas algumas partes: a ordem implicada, nove círculos do inferno, um labirinto de massa cinzenta... E então, ele se lembra de uma frase: "Palavras são feias quando viajam em bando." O físico vai até a janela, e abre as persianas. "Hah! De onde veio isso? Eu devia anotar. É isso que eu ganho por comer chili às três e meia da manhã."
18 Entretanto, seus pensamentos mudam de assunto ao começar a prestar atenção na paisagem. "Agora... Onde diabos eu estou?" Efeito: o conteúdo do sonho de Highwater, a julgar pelas últimas páginas e pelas lembranças dele, é diferente daquilo que apareceu anteriormente. Os nove círculos do inferno não aparecem ali, muito menos o referido labirinto. Por estas relações, pode-se concluir que, já que o cientista estava dormindo ao ser encontrado por Morrison, ele poderia estar tendo "um sonho dentro de outro sonho", como consignava Edgar Allan Poe. No final da página, novamente é evocada a sensação de que o personagem conhece tanto de sua própria história quanto os leitores: ele está estabelecido na narrativa, mas só vivencia realmente os pontos nos quais aparecem nas páginas de Homem Animal. Categorias: ação retardada. #14; p. 19, quadro 5. Figura - Animal Man #14, p. 19.
19
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Buddy não consegue nem explicar à sua esposa, Ellen, o que aconteceu durante sua viagem forçada ao continente africano. Diz que percebeu que algo estava sendo dito para ele. "Eu ainda não sei o que aconteceu na África. Alguém estava dizendo algo para mim que eu não conseguia compreender. Eu estava à eira de algo tão... Eu não sei... Tão incrível..." Efeito: Parece que, dadas as circunstâncias do deslocamento e dos acontecimentos na África, o Homem Animal sentiu que estava dentro de algo que não poderia ser real (já que incrível = não crível). Poder-se-ia inferir, a partir da frase
20 "Algo estava sendo dito para mim", que o protagonista percebeu alguém mais na narrativa, apesar de não saber formular quem seria. Entretanto, se for pensar que tudo isto é a obra do próprio Morrison, esta constatação foi tão somente permitida, e não um feito real do personagem. Faz parte, portanto, do desenvolvimento assistido do personagem e de seu universo particular, que também está incluindo dimensões para fora de seu mundo, bem como da própria mídia que inadvertidamente habita. Categorias: autoconsciência, autor-presonagem. #17; p. 8, quadros 3 e 4. Figura - Animal Man #17, p. 8.
21 Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Highwater, ao finalmente aparecer no quadro, depois de seus pensamentos começarem a povoar este número, diz que, subitamente, sabe a razão pela qual há sofrimento no mundo. "E eu sei que de repente é outono... Eu sei que meu nome é James Highwater e de onde este carro veio e porque eu preciso encontrar o Homem Animal e e" Subitamente, o nativo estadunidense grita e arregala os olhos: suas mãos viraram apenas um punhado de riscos e formas, pintados em um branco muito claro. Efeito: os braços do físico, na verdade, estão apenas com sua estrutura desenhada, não tendo saído da parte do esboço. Os membros não estão coloridos, nem mesmo foram arte-finalizados - ou, ao menos, esse é o efeito provocado. Esta anomalia acontece quando o personagem hesita sobre o seu conhecimento sobre sua participação na narrativa. É como se faltasse alguma coisa para que Highwater fosse um personagem digno de estar ali; e ele já sabe do que se trata - mas o leitor, não. Categorias: ação retardada. #18; p. 1, quadro 6, e p. 2. Figura - Animal Man #18, p. 1.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013. Figura - Animal Man #18, p. 2.
23
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: as duas páginas têm o fundo negro. Na primeira, Roger e Tricia McMillian estão confortando Buddy, que aparentemente está sentado no chão da cozinha da própria casa; há sinais de sangue no local, Tricia está chorando, e a cena em primeira pessoa vai ficando mais nebulosa até o aparecimento dos pensamentos do protagonista, no quinto quadro da p.1. "Eu não posso me esquecer." No final dessa página, aparece somente um espaço em branco no meio do sexto "quadro": um retângulo, de pé, com três sulcos em cima e outros três embaixo.
24 "Há algo importante que eu não posso esquecer. Seria aquilo uma porta nas trevas? Seria um cursor em um VDT? Sim. Dedos batem levemente em um teclado." Na página seguinte, além do quadro amarelo com os créditos e o expediente da revista para além do único quadro, uma mensagem em branco: "BRINCANDO NOS CAMPOS DO SENHOR". Os pensamentos do protagonista ainda estão ali, também. "Dedos batem e palavras aparecem. Uma mensagem na escuridão sem fim. Ellen?" Efeito: o personagem ainda não sabe disso, mas está vendo o trabalho do autor sendo feito. Dessa forma, é revelada, ao menos em parte, a estrutura do trabalho que está sendo feito para a produção da HQ ao protagonista, ao mostrar alguém escrevendo, em uma tela de computador, o próprio título desta edição. Esta é uma ocorrência de metalepse retórica ascendente, pois o personagem, em um momento de choque, consegue ver o trabalho do autor sendo feito, em seu computador, no mundo externo, se, no entanto, ter a oportunidade de interagir com ele, dadas as circunstâncias e o seu estado mental presumido. Categorias: autor-personagem, autoconsciência, metalepse.
#18; p. 11, quadro 4. Figura - Animal Man #18, p. 11.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o Homem Animal e James Highwater estão no topo da meseta uma formação rochosa comum nas regiões mais áridas dos Estados Unidos. Eles encontraram alguns peiotes (sementes alucinógenas indígenas) no local indicado no mapa. Aparentemente, não há mais nada naquele lugar. Os dois estão sentados ali, mas Buddy acredita que isso não é tudo. "Há algo grande acontecendo aqui, ok? Algo está por trás de tudo isto, e doze botões de peiote não surgiram aqui por acaso. Nós precisaremos fazer isso." No caso, ele refere-se à ingestão das plantas.
26 Efeito: a percepção de que existe um propósito para que tudo aconteça - o que equivale a considerar a existência de uma trama, para a qual todos os elementos colaboram - é similar ao conceito de metajogo, utilizado em RPGs de mesa (COOK, 2003, p. 11-12). Os personagens se dão conta de que a história só segue em frente se utilizarem dos recursos que dispõem, sejam eles de ordem humana, material, emocional, entre outros. Esse é um estado de autoconsciência, já que os participantes entendem que não há como a situação ser entrópica; ela dá certo ou não, avança ou retrocede, mas não fica estagnada em nenhum momento. Não há monotonia em uma narrativa. Categorias: autoconsciência.
#19; p. 11. Figura - Animal Man #19, p. 11.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Buddy Baker olha em direção ao interlocutor, Boquiaberto, de olhos arregalados, com as sobrancelhas erguidas, e a pupila estreita, numa posição de olhada por cima dos ombros. Entretanto, ele não está, como em outros momentos da obra, olhando para outra pessoa. Ele declara que está vendo o leitor - você. "EU POSSO VER VOCÊ!" Efeito: aqui está o momento em o Homem Animal exerce a metalepse retórica ascendente de forma mais direta e consciente. O quadro, que ocupa toda a página, tem apenas o personagem, seu balão de fala e sua sombra. Ele está olhando para fora da página, para o mundo real, e percebendo o leitor.
28 Ali, ele então entende as palavras de seu antigo "eu" (p. 9-10), que disse que eles apenas eram vistos por muitos. A surpresa do herói é compreensível, já que ele começa a entender que sempre foi observado por outros, e que deste conhecimento decorrem tantos outros pensamentos sobre sua própria existência, o livre-arbítrio, etc. - como será mostrado mais adiante. Categorias: metalepse. #19; p. 12, quadros 1 a 4. Figura - Animal Man #19, p. 12.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
29 Técnica: Buddy está a um passo de cair da meseta. "Eu posso te ver. Eu posso ver." Highwater vai ao seu encontro para impedi-lo, chamando-o pelo nome de super-herói. Ele não parece ouvir o físico. "Você não pode vê-los?" O coadjuvante ainda procura adverti-lo do perigo, em vão: ele aponta para o céu insistentemente. "Eles estavam lá! Eles estão nos assistindo! Onde quer que formos! Tudo que fazemos! Eles estão nos assistindo!" Highwater o agarra pelo ombro, e o traz mais para perto, tirando-o da beirada da pedra onde estão. "Não há nada! Pelo amor de Deus, Homem Animal! Buddy!" O protagonista ainda olha para o céu, boquiaberto, e fala baixinho: "Eu os vi." Efeito: esta sequência mostra que, no final das contas, as percepções após a ingestão do peiote foram diferentes para os dois homens, e apenas o Homem Animal conseguiu quebrar a quarta parede, exercendo a metalepse. O protagonista último ainda se encontra com o olhar deslocado para fora do universo ficcional, e, por isso, não deve ter percebido o perigo que corria dentro da narrativa. O coadjuvante não compreende o que ocorreu, e acha que nada passou de parte da alucinação do companheiro de viagem. Categorias: metalepse, mise en abyme. #19; p. 13 e 14. Figura - Animal Man #19, p. 13.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013. Figura - Animal Man #19, p. 14.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: após a alucinação de Highwater e Buddy aparentemente acabar, os dois continuam sentados no topo da meseta, enquanto a noite cai. Sombras se projetam por cima dos dois personagens, e o céu fica estrelado. "E o navio fica à deriva através da escuridão sem fim", diz uma caixa de diálogo azul. "Você acredita em Deus?", pergunta o protagonista. Os dois, que estavam meio que de costas um para o outro, começam a olhar para a mesma direção no horizonte. "Depende do que você quer dizer com 'Deus'...", responde o cientista. O Homem Animal tentou ser mais específico, olhando para o
32 colega de viagem. "O Universo surgiu por acaso ou foi criado? É isso que eu quero dizer. Será que alguém nos criou? Eles ainda estão nos criando agora?" O herói olha para algum ponto incerto, com os olhos baixos. "Eu olhei para outro mundo, e ele era pior que este. Era como se eu tivesse vislumbrado o Céu e... E não era o Paraíso. Parecia mais o Inferno." Em uma cena ampla, é possível ver que existe agora água até a altura do topo da meseta - como se os dois personagens estivessem, na verdade, em uma ilhota. Buddy continua a falar. "E se Deus, ou seja lá quem for, nos criou para sermos melhores que ele próprio? E se a realidade de Deus... O Céu, como queira... E se for tão ruim que ele teve de imaginar a nós para ajudá-lo a fazer com que sua vida fosse suportável?" O protagonista permanece em seu monólogo, e começa a se levantar, conforme o enquadramento mostra apenas os personagens e a porção de água à frente deles. "E se nós formos somente personagens, e não pessoas? Eu os vi. Eles estão nos assistindo. 'Entretenimento', ele disse..." Highwater não parece se importar muito. "Água. Alta. Água." No final da página, o protagonista está de pé, olhando para o físico, que se mantém inerte, sentado no chão. "Eu não quero..." Apesar disso, o Homem Animal continua a falar. "Não, ouça! Ouça... Alguns meses atrás, ou talvez tenha sido há um ano ou mais, minha mulher foi atacada e quase estuprada no bosque." Na página seguinte, Highwater dá as costas, e parece apenas um vulto na noite estrelada. O herói continua seu argumento: "Havia quatro caras. O que aconteceu a eles? Eles quase a estupraram. Um deles matou o outro. Por que não houve julgamento? Por que eu não consegui entender o que os aliens estavam tentando me dizer na África? Por que Ellen não consegue lembrar-se do que ocorreu quando eu desapareci naquela hora? Por que a minha vida é tão... Tão desconectada? Num minuto eu estou em casa, e no outro eu estou nas Ilhas Faroe ou em Paris, e eu penso que eu lembro como eu cheguei, mas eu realmente não sei." Depois de gesticular e virar-se de costas para o cientista, o super-herói olha para o céu, com as mãos nos bolsos da calça. "O que é essa suposta segunda Crise que está vindo? Quem deixou esses botões de peiote para que encontrássemos? E de onde você veio?"
33 Olhando de relance, James se aproxima novamente do protagonista, e abre sua carteira, explicando. "Eu? Eu sou James Highwater. Eu tenho 43 anos. Eu sou Doutor em Física. Está tudo aqui. Cartões de crédito. Passaporte. Certidão de nascimento. Tudo isto é tão estranho para você quanto é para mim. Você está familiarizado com a teoria da Ordem Implicada, de David Bohm?" Efeito: caindo em si, o personagem começa a utilizar o conhecimento de que é um personagem para tentar entender como o seu universo funciona realmente. Se ele foi criado para o entretenimento de milhares de pessoas, em um mundo pior que o dele, e ele nem mesmo for uma pessoa, o que é real, para ele? O criador assemelha-se, no paralelo criado pelo herói, ao papel de um deus. E ele está certo, até certo ponto: todos os poderes de Javé (nome da divindade judaico-cristã da Bíblia, comumente apenas chamado de Deus), como a onipresença, onipotência e onisciência estão nas mãos do roteirista e do desenhista, para que todos os detalhes, todas as transformações e todos os pensamentos possam estar disponíveis ao público consumidor, se desejado por qualquer uma das partes. Em muitos aspectos, nossa realidade também é pior do que a do Universo DC. Temos mais guerras, cidades demoram muito mais para serem reconstruídas após alguma catástrofe (apesar de eventos assim serem menos frequentes), e as pessoas, tendo superpoderes ou não, agem mais próximo do ideal, mesmo com o advento da Era de Ferro e da inserção de tons de cinza nos conflitos apresentados. É, portanto, uma versão romantizada, além de ter seres com poderes apenas imaginados por humanos comuns. Além disso, é importante o vazio para o qual o Homem Animal aponta ao falar da falta de um julgamento para os caçadores que quase estupraram sua esposa. Essa falta de resolução dos conflitos ocorre porque eles simplesmente não importam para a narrativa que se quer contar - a história transcorre com ou sem a resolução destes. Por fim, o fato de que a teoria da ordem implicada é suscitada por Highwater tem a ver com o sonho que teve. Se quem estava ali era mesmo Grant Morrison - ou uma representação dele - então aquele episódio não era nada mais que o exercício de criatividade do roteirista sendo feito naquele instante, dentro da HQ (ou criando esse efeito). A partir daí, pode-se aduzir que esta é mais uma forma de escancarar a estrutura que compõe a produção da obra, apesar de, neste momento, não estarmos
34 falando de metalepse, pois não há ligação nem com um mundo externo ao quadrinho, exatamente, mas ainda assim, continua sendo uma metalepse retórica, pela citação do mundo externo. Categorias: autoconsciência, ação retardada, autor-personagem, metalepse. #19; p. 21, quadros 1 e 6. Figura - Animal Man #19, p. 21.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: no começo da página, Highwater se convence de que o que ele e Buddy passaram acabou, e não corresponde à realidade. "Realmente acabou. Deus,
35 eu estou falando em clichês! Isso prova que nós não somos personagens em uma história. Ninguém poderia escrever um diálogo tão terrível... Na segunda situação, o cientista cita uma frase de Edgar Allan Poe, ao comentar sobre o que as alucinações significaram: "Tudo que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho". Efeito: no primeiro quadro, a impressão que os personagens têm pode ter sido fabricada pelo autor, para tentar restabelecer a suspensão de descrença sobre a obra. Entretanto, esse momento não é a resolução do conflito anterior (sobre o livre-arbítrio), já que este será retomado mais tarde na trama. No final da página, a frase pode ser aplicada sobre a mídia dos quadrinhos em si: o sonho construído, utilizando a suspensão de descrença, sobre outro sonho (a realidade, que é somente construída através de impulsos sensoriais recebidos pelo cérebro, e traduzidos na percepção do ambiente). Este é um sentimento que, além de poder ser percebido sobre a realidade empírica na qual convivemos, também pode ser aplicado por sobre quaisquer mundos ficcionais que um indivíduo pense, leia, jogue, atue etc. Categorias: intertextualidade, autoconsciência.
#21; p. 11, quadro 2. Figura - Animal Man #21, p. 11.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Lennox, o homem que assassinou a família Baker, pergunta a um de seus contratantes se este não fica preocupado com o fato de que os outros dois executivos que o pagaram terem sido encontrados mortos. "Isso não lhe preocupa nem um pouco? Não lhe ocorreu que o Homem Animal pode estar trabalhando com McCulloch?" O empresário rotundo esboça um sorriso, comprime os olhos e puxa um artefato azul do bolso de seu paletó. "Eles não ousariam. Eu sou um respeitado
37 homem de negócios. Eles nunca se safariam. Afinal, o Homem Animal é um superherói. Super-heróis não matam pessoas. Essa ainda é a América." Efeito: o antagonista fala que ele e seu interlocutor ainda estão nos EUA. Este valor estadunidense por sobre os super-heróis - servindo como exemplo para as crianças, por exemplo - é algo que não a narrativa ataca. Na verdade, a Era de Ferro desta mídia em específico critica e expõe estas generalizações. O universo compartilhado não mais apresenta heróis puros ou histórias maniqueístas: os personagens têm vícios e defeitos; sentem raiva, remorso, culpa... A modernidade nas HQs, portanto, complexifica todas as personagens, bem como as temáticas envolvidas nas narrativas ficcionais. Categorias: historiografia.
#21; p. 12, quadro 3. Figura - Animal Man #21, p. 12.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o Homem Animal, Buddy Baker, e o Mestre dos Espelhos, Ian McCulloch, param em uma rua, para que o protagonista pudesse enviar uma carta pelo correio, mandando uma doação ao motivo ativista ambiental Greenpeace. McCulloch olha para Buddy com o canto dos olhos, mantendo o pescoço virado para outro lado e os braços cruzados. "Eu não sei... Os caras bons são tão ruins quanto os maus hoje em dia."
39 O herói retruca, e bate de leve na caixa de correio com o punho esquerdo. "Não importa o que façamos. Nós somos todos apenas personagens numa história ruim. Não é culpa nossa." Efeito: em momentos como esse, o Homem Animal se conforma com a sua condição de personagem, apesar das mazelas que sofre. A história é ruim para com ele, ou talvez macabra, ou triste, dependendo do ponto de vista; isto não é causado por nenhum personagem específico. Neste ponto, a abordagem da perda do aparente livre-arbítrio pelo personagem que descobre sua real condição é encarada de uma abordagem mais positiva: se ele não toma nenhuma decisão, é mais fácil acreditar e aceitar o que se passa na narrativa. Esse posicionamento, de fato, é muito similar ao do leitor - que também não tem controle sobre o produto impresso, e apenas lê a história (ou não, se achar que não vale a pena). Categorias: autoconsciência, historiografia. #21; p. 23, quadros 3 a 6. Figura - Animal Man #21, p. 23.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o Homem Animal destrói o robô que Lennox, o assassino de sua família, pilotava. Entretanto, ele ainda está vivo, ali dentro. Por um dos buracos abertos pelo herói, o vilão olha para ele, já demonstrando alguns ferimentos e sangue no rosto. "... Não é justo... Você não deveria... Lutar contra pessoas normais... Com super... Poderes... Não é justo... Pior... Você é pior do que... Eu jamais fui..." Buddy aproxima-se, procurando algo no bolso de sua jaqueta surrada, segurada à mão, e encara o ocupante da carcaça de metal. Seus pensamentos são contrários aos argumentos de Lennox. "Pare de pensar. Eu preciso ser um animal."
41 Em um close, o protagonista coloca uma luva esverdeada com garras, que estava no bolso do casaco. "Você não sabe, não é? Você nunca vai entender o que fez." O mesmo pensamento ecoa a seguir, e no último quadro da página. "Um animal. Um animal." Efeito: além da própria questão dos valores discutidos acerca da classe a qual o personagem faz parte (já trazidos à tona, a saber: o maniqueísmo, no que os heróis são pessoas honestas, sem segredos sombrios, que não matam nem falam palavrão nem nada do tipo), há aqui a demonstração sobre o peso que sua parte animal tem nessa discussão. Ele, ao executar o criminoso, não o faz em nome de valores humanos, mas substituindo-os pela raiva pura, indiscriminada. Entregando-se a um instinto animal, acaba por agir por pura vingança. É notável o fato de esta nem mesmo ser uma sequência aberta em página dupla, ou com menores movimentos a cada quadro; além disso, não há nenhuma menção direta à Maxine, Cliff ou Ellen Baker nesta página em específico. Categorias: historiografia. #22; p. 5, quadros 5 e 7. Figura - Animal Man #22, p. 5.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: no quadro 5, Rip Hunter pergunta ao Homem Animal se eles já se conheceram antes deste momento. Buddy acha que não, no que o cientista declara: "Talvez tenha sido um sonho." No último quadro da página, o Gladiador Dourado segue o protagonista por um lance de escadas se surpreende com o fato de seu antigo companheiro de equipe admitir ter mentido. "Você o quê? Você mentiu? Que tipo de super-herói é você?" Efeito: o Dr. Hunter conhecia o Homem Animal durante a Crise nas Infinitas Terras, em 1985.
43 Juntamente com outros heróis, como Delfim, Cave Carson, Congo Bill, o Homem Imortal e Adam Strange, eles formaram o grupo conhecido como Heróis Esquecidos - que reunia exatamente personagens que há muito tempo não tinham aventuras próprias na DC Comics. Em sua primeira reunião, chegaram a ajudar o Superman em uma crise mundial. Entretanto, estes episódios, bem como todo o período que a equipe existiu, foram desfeitas pelo reboot pós-Crise. Já a reação do outro uniformizado soma-se a outros momentos, nos quais os ideais da vida super-heróica são levantados. Um super-herói, nas concepções maniqueístas da Era de Prata e da Era de Bronze, não poderia mentir deliberadamente, apenas para satisfazer seus desejos pessoais - e muito menos admitir isso, mesmo quando a intenção do ato era nobre. Entretanto, Buddy Baker trata de, novamente, rechaçar estes ideais na narrativa,
mostrando
outro
enfoque,
mais
humano,
superpoderosos. Categorias: historiografia.
#22; p. 7, quadros 1 e 7. Figura - Animal Man #22, p. 7.
nos
personagens
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: No início da página, o Pirata Psíquico está sozinho, mas parece conversar com alguém. Ele ostenta profundas olheiras, cabelos despenteados e mãos chispantes. "E não pense que eu não posso ver vocês, porque eu posso. Pervertidos, sempre assistindo." Ao final, após expelir uma massa multicolorida de sua cabeça, o criminoso pega um impresso de dentro dela: uma HQ do Flash, cuja capa mostra outro homem além dele, mais velho, correndo, do outro lado de uma parede, bem como um homem protegendo-se mais à frente. "Eu AMO quadrinhos!"
45 Efeito: O Pirata Psíquico está, em tese, falando com os leitores no primeiro quadro. Ele reitera o exercício metaficcional da metalepse, no que considera os interlocutores um coletivo de perversos; voyeurs, talvez. O criminoso inclusive utiliza o mesmo verbo que o Homem Animal proferiu ao observar o mundo externo assistir. Ele pode muito bem ter razão, já que as vendas da revista foram incomuns para um personagem que não figura no primeiro escalão de super-heróis da DC Comics - isso poderia ser atribuído, possivelmente, ao componente dramático inserido na trama, bem como nas temáticas abordadas. A revista do Flash que aparece no último quadro é a primeira narrativa da DC que mostra o Multiverso de fato - com o herói da Terra-1 interagindo com sua contraparte da Terra-2, onde então as contrapartes da Era de Ouro (como este Flash, antigamente chamado de Joel Ciclone). Categorias: metalepse, intertextualidade, historiografia. #22; p. 24. Figura - Animal Man #22, p. 24.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: duas tramas seguem em paralelo nesta página. Nos quadros 1, 3, 5 e 7: Highwater está de volta a seu apartamento. Alguém o chama, lá de dentro. O cientista está de frente a uma das janelas, e apenas seu vulto pode ser visto de fora; porém, em uma cena interna, vemos que ele está de calça jeans e camisa branca. "Dr. Highwater, a história está quase acabando. A hora que foi prevista já chegou." O físico apóia no marco da janela com o braço esquerdo, e repousa o punho sobre a testa e os olhos. Entretanto, dois vultos continuam a chamá-lo, ao fundo do aposento. "Vire-se, Dr. Highwater. Este é o fim." Ainda com
47 os olhos cobertos, ele pergunta quem são seus interlocutores. No último quadro, os aliens amarelos mostram-se, e respondem à pergunta... Com mais perguntas. "Quem somos nós?" "Você não sabe?" Nos quadros 2, 4, 6 e 8: primeiro surge a fachada do Silo Arkham; lá de dentro, alguém fala insistentemente. "Eles estão todos vindo, do jeito que eu disse. Todos eles estão vindo de volta." O autor da afirmação é o Pirata Psíquico, que está em seu quarto, agachado, escondendo o rosto. Nas paredes, há vários pôsteres; no chão, pilhas de material impresso não identificado - supostamente HQs, pelo ocorrido antes, com o aparecimento súbito de um exemplar de uma história do Flash. "Eu não posso mais segurá-los... Não é culpa minha... Não é culpa minha..." Então, vemos o rosto dele, do qual sai uma rajada multicolorida; seus olhos também estão vermelhos, sua boca, aberta, e não é possível ver o cabelo. "Eles estão vindo!" No final da página, o mesmo feixe aparece tomando as costas da casa de saúde mental. "ELES ESTÃO VINDO!" Efeito: o fim da história, tão citado pelos alienígenas, poderia significar o final da passagem de Grant Morrison pelo título ou mesmo o final da participação de James Highwater na saga. Estas coisas são previstas pelo roteirista, como também os seres fazem questão de deixar implícito. Já o Pirata Psíquico procura conter o que há por vir, mas expele a enxurrada de cores, extravasando o espaço dos quadros. Este exagero, portanto, é palpável não somente dentro da narrativa, mas para além dela. Por fim, é notável como o ritmo de leitura desta página é realizado de maneira diferente da habitual. Por existirem duas tramas, uma em cada coluna, é até mais compreensível que a sequência a se seguir é de cima para baixo, e depois da esquerda para a direita, ao contrário do movimento comumente empregado (da esquerda para a direita, e depois de cima para baixo). Categorias: autoconsciência, ação retardada. #23; p. 1, quadro 3. Figura - Animal Man #23, p. 1.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: antes de vestir sua máscara, o Pirata Psíquico sorri, e olha para algum lugar, com os olhos apertados e as sobrancelhas em V, franzindo o cenho. "Quanto a vocês... Eu ainda os vejo. Não pensem que vocês vão se safar apenas assistindo por muito mais tempo. Coisas estão acontecendo." Efeito: em mais um exercício de metalepse, desta vez a narrativa é mais incisiva. Grosso modo, o vilão ameaça cada um dos leitores da revista - incluindo o próprio observador presente. Apesar disso, não fica muito claro como ele poderia afetar as pessoas para fora do mundo ficcional.
49 A tentativa aqui é a de tornar o consumidor mais do que o ente que assiste, que observa os movimentos dos personagens. Assim a função desses seria mais do que apenas a mola propulsora de reflexões e reações internas dos participantes da narrativa, mas também parte dos conflitos que se materializam através das lutas físicas entre os pólos da história (heróis e vilões, ou outras denominações nãomaniqueístas), como é comum em HQs do gênero super-heroico. Categorias: metalepse. #23, p. 6. Figura - Animal Man #23, p. 6.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
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Técnica: a intensa iluminação dentro do Asilo Arkham faz com que as janelas do casarão exibam uma forte luz, que extrapola até mesmo o recinto. Em frente ao local, estão James Highwater e os aliens amarelos. O cientista tem uma sombra em seu rosto, e olha para o lugar de onde vieram, pensativo. "Olha, porque vocês me trouxeram aqui? Eu realmente não quero estar aqui. Eu não quero mesmo estar aqui..." Os seres mantêm uma expressão serena. Um deles afirma: "Você não tem escolha na matéria, Dr. Highwater. E nem nós." O físico então olha de esguelha para eles e pergunta o que isso significa. Os alienígenas respondem a ele alternadamente. "Nós apenas podemos representar nossos papeis designados para a história." Highwater ainda não compreende onde o termo "história" se encaixa. "Você sabe o que queremos dizer. Suas recentes experiências no deserto com o Homem Animal lhe ensinaram algo sobre a natureza física disso, a continuidade. Você esteve trabalhando em uma nova teoria do espaço-tempo, baseado nas ideias ganhas durante essas experiências." Efeito: James ainda não entende o fato de que ele, como personagem, opera na continuidade do universo compartilhado da DC; como tal, ele precisa desempenhar papeis sempre que assim for requisitado pelos roteiristas e desenhado pelos quadrinistas. Ele consegue estar, ao mesmo tempo que ciente disso, sem uma reação apropriada diante da constatação. Categorias: autoconsciência. #23, p. 21, quadros 2, 4 e 5. Figura - Animal Man #23, p. 21.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o Pirata Psíquico, agora translúcido, incita os personagens esquecidos a rebelar-se contra o mundo para além dos quadrinhos. No segundo quadro, ele ergue o punho direito no ar. "... Nós podemos ter vingança. Vocês podem vingar-se das pessoas que os mataram. As pessoas que os dizimaram. Eles estão lá fora, assistindo. Eu sei, eu os vi." Mais tarde, o vilão aponta para fora do quadro, e fecha o punho esquerdo. "Ali! Vocês veem eles? Olhando para baixo. Aproveitando nossa dor." No final da página, o antagonista encosta na linha do quadro, e continua olhando para fora dele. "Esta jaula na qual estamos. Eles nos mantêm aqui e nos
52 fazem executar truques para seu entretenimento barato. Vocês nunca viram isso antes? Olhem!" Efeito: mais do que acompanhar os leitores ou entender que pessoas criaram a HQ, o vilão enxerga a estrutura das páginas de quadrinhos. Além quebrar a quarta parede, ele atenta para a existência dos próprios quadros, que controlam o fluxo do tempo das cenas da obra, como Scott McCloud explica, ao denominar essa área (sarjeta). Até esse momento, entretanto, não é possível, para os outros personagens, entenderem o que o Pirata Psíquico quer dizer com tudo isso. Eles não possuem a percepção que esse personagem possui sobre o mundo externo. Em seu desespero, o Pirata Psíquico resolve apontar diretamente para a estrutura física que suporta a narrativa na qual se encontram (já percebida pelos leitores há muito tempo, mas para a qual também se dá pouca atenção durante a fruição da obra), a fim de que eles possam começar a enxergar essa mesma brecha entre essa realidade e seu caráter interior em relação à Terra dos "criadores". Categorias: metalepse, ação retardada, historiografia. #23, p. 22. Figura - Animal Man #23, p. 22.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: atento ao que o vilão diz, Ultraman consegue enxergar as paredes do quadro, encostando-se a ela. "Meu Deus. Aqui tem uma parede." Seu companheiro Anel Energético (Lanterna Verde da Terra-3) observa, e põe a mão na frente da boca. Na sequência, o Superman alternativo resolve empurrar essa parede com o ombro esquerdo. "Tem uma parede." Seu amigo tenta adverti-lo. "Ultraman, pelo amor de Deus! Ultraman, eu estou com medo! Nós estamos indo longe demais! Isso é errado! Isso não deveria acontecer!"
54 Depois disso, para forçar a estrutura do quadro ainda mais, Ultraman apóia-se nas duas laterais, com as costas e os pés. Anel Energético põe os punhos sobre as têmporas, arregala os olhos, e faz uma carranca. "Ultraman! Não faça isso! Nós não deveríamos saber!" Abaixo, a estrutura do quadro rasga-se, e Ultraman fica com a boca pequena, olhando, com os cantos dos olhos, para o espaço no qual ingressa devido ao esforço feito. Anel Energético tenta alcançá-lo. "NÃO!" Efeito: o espaço entre os quadros, denominado sarjeta, é onde a passagem de tempo ocorre nos quadrinhos. Entrar neste espaço, como Ultraman está fazendo nesta página, significa, no mínimo, realizar uma viagem na quarta dimensão. O aviso de Anel Energético ocorre no sentido de alertar para uma quebra da estrutura interna da narrativa: os fatos e personagens deveriam ficar dentro da história, e não estar fora dela, como o Superman da Terra-3 tenta fazer. Esse personagem, neste caso, fica num lugar que está para além da passagem do tempo. Processo semelhante ocorreu com o protagonista desta HQ, em meio à viagem de peiote do Homem Animal e de Highwater. Categorias: metalepse, autoconsciência. #24, p. 1. Figura - Animal Man #24, p. 1.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: as 6 cenas possuem caixas de texto, que descrevem as ações e aparências que ali aparecem. Quadro 1: "Plano de ambientação do Asilo Arkham sob um céu tortuoso e atormentador. Folhas firam loucamente em um vento louco. As janelas do Asilo Arkham estão acesas com luzes febris." Quadro 2: "Close-up apertado nas teclas de um processador de palavras. As letras no teclado estão esperando para combinarem-se, se tornarem palavras, ideias... Uma história."
56 Quadro 3: "Interior do Arkham. Plano de corpo inteiro do agora fantasmagórico Pirata Psíquico, de pé na porta que dá para a sala de jantar. O Pirata Psíquico, é claro, é o único personagem no Universo DC que se lembra do multiverso que existia antes dos eventos da CRISE NAS INFINITAS TERRAS." Quadro 4: "Essas memórias agora estão escapando da cabeça do Pirata Psíquico e tomando formas de carne e osso. Com efeito, a Crise está se revertendo. Infinitas Terras alternativas estão formando uma hemorragia na existência, a partir da mente do Pirata Psíquico." Enquanto isso, alguém usa o teclado - apenas as mãos dessa pessoa aparecem. Quadro 5: "A cena move-se para um close-up de cabeça e ombros do Pirata Psíquico. Sem surpresa, ele parece um pouco confuso e indisposto." Em reação a isso, o vilão declara: "Eu sei que você está aí. Tentando fazer com que seja difícil para eu pensar. Eu me sinto estranho. Eu me sinto tão estranho." Quadro 6: as mãos continuam trabalhando no texto. Uma xícara de café também aparece, e o escritor repete a fala do Pirata Psíquico. "Eu me sinto estranho. Eu me sinto tão estranho. A história começa:" Efeito: da mesma forma como ocorreu, em uma cena na casa dos Baker, em San Diego (#18, p. 3), estas intervenções vêm do próprio roteirista da HQ, Grant Morrison. Desta vez, elas se estendem um pouco mais, e mostram reações internas do personagem. Além disso, o próprio Pirata Psíquico, no quadro 5, declara que sabe que alguém está ali, agindo diretamente. Ele poderia estar se referindo ao próprio criador, que se faz presente a partir da explicitação de suas descrições, fornecidas ao desenhista, para que esse pudesse desenhar as cenas de acordo com o desejado para que a narrativa possa ser contada de maneira eficiente. Categorias:
autor-personagem,
autoconsciência,
historiografia. #24, p. 2. Figura - Animal Man #24, p. 2.
ação
retardada,
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: todos os personagens observam o espaço aberto nos quadros pelo Ultraman. Buddy reconhece esta experiência como sendo semelhante ao que ocorreu na meseta estadunidense e no encontro anterior com os aliens, na África. O Pirata Psíquico incita todos a atravessarem a barreira, e um dos alienígenas fala que o que se revela ali é uma passagem entre aquele mundo e o "mundo mais alto". Efeito: a quarta parede está ali, para todos os personagens verem. Nosso mundo está, portanto, para logo além da sarjeta, além da mídia da revista em quadrinhos, ao menos na concepção do autor. Categorias: historiografia, metalepse, autoconsciência.
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#24, p. 3, quadros 1 a 4. Figura - Animal Man #24, p. 3.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: fora dos quadrinhos, há faces borradas, observando, junto do espaço branco, vazio. Highwater esclarece que estes seres estão simplesmente lendo a história, e eles são, em sua grande maioria, personagens menores na narrativa. A discussão continua na multidão de personagens não mais esquecidos, que se questionam acerca de seu livre arbítrio em relação a essas existências externas, por exemplo.
59 Efeito: a experiência da metalepse produziu um efeito de estranhamento na maior parte dos presentes à cena. Muitos não acreditam serem personagens; alguns se questionam sobre seu papel no universo ficcional; e absolutamente ninguém se mostra indiferente. Categorias: autoconsciência, metalepse.
#24, p. 5, quadros 1, 5 e 6. Figura - Animal Man #24, p. 5.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
60 Técnica: No primeiro quadro, o Homem Animal, um alien amarelo e James Highwater observam a chegada de Overman, um Superman de uma terra paralela esquecida. HA pergunta o que isso seria ("O que diabos é aquilo?"), com a resta franzida por trás dos óculos do uniforme. O físico, ao fundo, está indignado, pergunta-se sobre o fato ("O que está acontecendo?"), e indaga o alien, pedindo se algo pode ser feito ("Você pode fazer algo?"). O extraterrestre, em seu semblante observador, mas distante, afasta a possibilidade de ele próprio agir: "Isso interferiria na história." No quadro 5, Ultraman se coloca à frente do grupo, e diz que não pode deixar que o artefato exploda - o que, alegadamente, pode destruir a Terra. O personagem não se importa mais com sua condição de coadjuvante. "Meu Deus. Eu não me importo com o que sou. Não me importo se sou apenas um personagem menor numa história ruim... Eu não vou deixar que isso aconteça." Na sequência, o Superman da Terra-3 se lança ao combate, voando, enquanto reforça seu compromisso anterior e reafirma seu valor enquanto personagem. A câmera está à sua frente, como se fosse o interlocutor em primeira pessoa. "Está me ouvindo? Eu ainda tenho dignidade! Eu não vou deixar isso acontecer de novo!" Efeito: Os aliens dificilmente agem a favor de algum personagem; eles apenas protegem a continuidade e o universo DC como entidades macro do sistema narrativo das histórias em quadrinhos. Nesse caso, é da natureza deles que deixem a história prosseguir, já que eles apenas têm a missão de observar. Anteriormente, ao agirem diretamente com o Homem Animal, o problema era justamente a instabilidade da continuidade, que ocorria devido à situação transitória que a origem e história do personagem passavam. Com a passividade dos seres amarelos, a narrativa conflituosa do Ultraman pode aparecer, em seu confronto com Overman. Ele começa a ignorar o fato de ser um personagem menor justamente pela ameaça que se interpõe à sua frente: a destruição da Terra. A Terra-3 foi destruída no início da Crise nas Infinitas Terras. O processo ocorreu pela força do Anti-Monitor, e se manifestou como uma parede de luz, engolindo e destruindo tudo em seu caminho dentro de cada universo que foi vítima da ação do vilão. O líder do Sindicato do Crime da Amérika (pois, naquele universo,
61 os heróis eram todos vilões, e o único a lutar por justiça era Lex Luthor) nada pode fazer. Por isso, Ultraman sentiu-se na obrigação de, naquele momento, salvar a Terra, enfrentando Overman. Categorias: historiografia, autoconsciência.
#24, p. 6, quadros 4 e 5. Figura - Animal Man #24, p. 6.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
62 Técnica: Em meio à batalha entre os dois superseres vindos de universos esquecidos diferentes, o Pirata Psíquico, no quadro 4, pede para que ambos parem ("NÃO! PAREM! PAREM!"). Ele faz a acusação, com os braços para fora do quadro e apontando para fora da página, de que os leitores desejam a luta entre Ultraman e Overman. O vilão vocifera que o verdadeiro inimigo está fora dali. "Vocês estão se esquecendo do inimigo real! Ali fora! Não lutem! É isso que eles querem! Eles querem ver pessoas machucando umas às outras! Por que vocês acham que o mundo é do jeito que é?" No quadro seguinte, o Pirata Psíquico ainda completa, de fora do quadro: "É isso que eles sempre querem!" Enquanto isso, Ultraman, que tem partes do uniforme em chamas por causa dos disparos da visão de calor de seu oponente, tenta se levantar, enquanto olha para fora do quadro, intrigado. "Ohhhhhh Oh Deus" Efeito: A maneira como a figura do Pirata se porta em relação ao quadro continua evidenciando o movimento que ele fez na edição anterior, ao sair da página pela brecha na realidade criada pelo Superman da Terra-3. Não se entende exatamente em que lugar ele está: o vilão psíquico estaria ainda no Universo DC, ou já em direção ao mundo real - e, por isso, já entende toda a lógica por trás do entretenimento que os embates entre superseres em geral causam. Os próprios personagens, ao se depararem com a situação tão incomum quanto a de descobrirem que são lidos pelo público consumidor de quadrinhos, ainda assim buscam reagir com certa normalidade a ameaças internas ao universo compartilhado, empregando ações heroicas e partindo para confrontos físicos diretos. Esse comportamento é simplesmente sua natureza; essa, portanto, é o objeto questionado pelas ações do Pirata Psíquico neste arco de histórias. O criminoso em questão é afetado, em páginas anteriores, de forma caricata e irreal, despejando, através de sua mente, muitas histórias em quadrinhos dentro do universo ficcional. Será, talvez, que a interação com o universo externo à mídia piora ou causa insanidades nos personagens? O
personagem
alegadamente
de
psicótico,
desenhos e
exercita
animados
Pica-Pau,
esporadicamente
a
por
exemplo,
relação
com
é os
telespectadores e com o mundo externo. Em um episódio, o personagem Zé Jacaré, após conseguir atirar no pássaro em pleno ar, percebe que ele tem um colar com uma inscrição curiosa: "Em caso de acidente, notificar Walter Lantz; Hollywood,
63 Califórnia." Lantz é o animador que criou o doido penoso, que teve episódios produzidos, na série original, de 1940 até 1972. (Figura) Figura - Pica-Pau - Migração.
Fonte: <http:www.youtube.comwatch?v=8Yv8He_LQgo>. Acesso em: 30 set. 2012.
Categorias: metalepse, historiografia.
#24, p. 14. Figura - Animal Man #24, p. 14.
64
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Não há quadros na página. Seguindo a convenção de leitura (esquerda para direita, de cima para baixo), é possível perceber que o Homem Animal termina de arrastar Overman, apesar de seus protestos, para o limiar entre os quadrinhos e o mundo do leitor. O vilão fica tão desnorteado com a situação que se pergunta, para além da natureza daquele local, sobre a sua própria natureza. E a resposta, que deveria vir do herói, sai diretamente do que parece ser sua sombra, logo ao lado. "Eu retirei meus próprios olhos, e ainda vejo. Eu vejo, nós não somos reais. Nós somos as criações de mentes doentias. Sim, eu vi. E há algo pior."
65 No terceiro "quadro", a suposta projeção do protagonista relata que nem mesmo os criadores deles são reais. Enquanto isso, o corpo do interlocutor permanece
alheio
à
ação,
de
braços
cruzados.
No
final
da
página,
inexplicavelmente, Overman começa a cair - o enquadramento não explica o porquê disso -, no que o Homem Animal tenta alcançar sua mão. Efeito: A falta de quadros se dá exatamente pela natureza do espaço em que os personagens se encontram. Teoricamente, herói e vilão estão na sarjeta (espaço entre os quadros), onde ocorrem as passagens de tempo na mídia. Apesar da falta deste importante componente da linguagem nas HQs, a mensagem se mantém a partir da referida estrutura de leitura da página de quadrinhos. McCloud (1995) aponta para a historicidade desta ordem. Em antigas civilizações pré-colombianas, os mitos e histórias eram retratados, de maneira pictográfica, já em um esquema de significação de cima para baixo; porém, a leitura era feita em ziguezague. Em escritos egípcios, ainda mais antigos que esses, a sistemática era parecida, invertendo o eixo vertical (de baixo para cima), mantendose a alternância horizontal. O Homem Animal também entende que, sendo eles personagens, eles não são reais, no sentido de que eles não possuem um corpo físico para além de suas representações nas páginas. Ele vai além, ao afirmar que os criadores também não existem; esta pode ser uma leitura feita através da citação a Edgar Allan Poe, feita na página 21, na edição nº 19 ("Tudo que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho"). Aqui, novamente pode ser percebida uma referência à própria natureza de nossa realidade, pois é somente real aquilo que vemos, presencialmente ou através do suporte no qual as imagens forem processadas. Por fim, a "queda" de Overman de volta para os quadros não tem uma explicação, apesar de a maneira como o movimento ter sido retratado tê-la, no ramo do possível. O superser está de costas para a visão do leitor, provavelmente porque está ultrapassando novamente a barreira entre este mundo da sarjeta e o universo compartilhado ao qual ele pertence (ou pertencia, já que ele é um personagem esquecido). Categorias: autoconsciência, metalepse, autor-personagem
#24, p. 15.
66 Figura - Animal Man #24, p. 15.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Overman caiu de volta para dentro dos quadros na HQ. O protagonista observa, enquanto o interlocutor não compreende o que está acontecendo, ou por que ele, que conseguiu derrotar e matar a todos em seu próprio mundo, não consegue escapar dali; o vilão continua esmurrando a superfície do plano, o que se mostra inútil. O Homem Animal procura mostrar ao superser que ele não fez nada devido ao seu poder, mas, sim, porque os criadores assim permitiram, construindo a cadeia de fatos que levou ao destino da Terra de Overman. O vilão renega isso, pois não é
67 como o herói; segundo o próprio, ele mesmo é real, realístico; essa prisão dos quadros na HQ, que vai diminuindo e espremendo-o, não poderia existir, na visão dele. Na sequência, o medo do vilão se transforma em raiva: ele olha furioso para o Homem Animal, enquanto se esforça para caber no diminuto enquadramento no qual ele está enclausurado. Ele argumenta, ao exigir sua liberdade: "Não é minha culpa se eu fui criado para ser..." A frase para, pois a prisão do superser vira somente uma linha. O herói, que estava cansado enquanto segurava costelas quebradas e ouvia a ladainha de Overman, respira aliviado. As dores físicas do protagonista começam a sumir no momento em que a narrativa o recoloca dentro da ação, no último quadro da página. Entretanto, seu estado psíquico ainda não retornou à saúde plena após mais uma experiência insólita fora de sua zona de conforto. Ele sente, enquanto um dos aposentos do Asilo Arkham se constrói ao redor dele, que os personagens não são donos de seus destinos, já que não controlam nada. Sons e cheiros também se reconstroem, e os pensamentos do Homem Animal, em quadros amarelos, falam de um cenário familiar. "Uma cela. Água pingando. Uma sombra sussurrando para si mesma num canto." Efeito: O fato de o diálogo permanecer praticamente em um monólogo de Overman liga-se, aqui, com o pensamento do herói de que nada está sob o controle dos atores da narrativa. O destino do vilão é traçado sem nenhuma interferência do Homem Animal: ele apenas deu algumas respostas, enquanto segurava suas costelas, e sua sombra o confundia, até que ele caísse no quadro-prisão. Da mesma forma, apesar de sua decisão de ir para a sarjeta tenha sido intencional, a volta do protagonista para dentro dos enquadramentos de cena não seguiu essa lógica. A diferença, nesse caso, é que os dois personagens trataram a condição de não possuírem o potencial de interferir de maneiras distintas. Overman ficou raivoso, e negou a existência da mão dos criadores na narrativa, enquanto o Homem Animal procura meios de reequilibrar as forças por outros meios que não a força bruta. Categorias: autor-personagem, metalepse, autoconsciência.
#24, p. 19, quadros 2 e 3. Figura - Animal Man #24, p. 19.
68
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: os aliens amarelos, em sua contínua expressão sem grandes destaques, afirmam que, agora, a continuidade está livre de todas as inconsistências. Este seria, segundo eles, um dia de purificação... Mas ambos percebem que a borboleta rosa que flutua pela cena pertence à Terra-14. Enquanto isso, o Homem Animal afirma que, estranhamente, ele acha que deveria haver 5 pessoas ali, e não 4 - como se alguém estivesse faltando. O inseto extradimensional também passa por ele, de forma displicente. Efeito: Apenas os fãs mais fervorosos perceberiam que determinado item obscuro de um universo alternativo pertence a esse mundo. A alteração de
69 continuidade, ao menos naquele momento, também seria apenas um detalhe - se não tivesse Highwater desaparecido misteriosamente, e os outros 4 personagens não se lembrarem quem ele era exatamente, mesmo tendo estado com ele há alguns momentos. Categorias: autoconsciência, historiografia, intertextualidade.
#24, p. 22 e 23. Figura - Animal Man #24, p. 22.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013. Figura - Animal Man #24, p. 23.
70
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: De volta à casa do Homem Animal, ele questiona os aliens amarelos sobre o seu papel nas próprias histórias em quadrinhos. Um deles responde com o argumento da obtenção de conhecimento: para preparar os heróis para o dia da purificação (que consistia nos eventos imediatamente anteriores dentro da narrativa), os extraterrestres conectaram o protagonista, Vixen e Fera B'wana a um mesmo modelo. O outro pergunta sobre a mudança de uniforme do herói novamente com indumentária azul e laranja -, no que sofre a réplica do Homem Animal. "É, bem, eu não vou vestir peles de animais de novo. Nunca."
71 O protagonista tenta manter a discussão no foco, e continua a conversa com o enquadramento de tilt down. Após revisar sua condição atual, na qual, resume, teve sua família morta e passou por eventos que fazem sua cabeça girar, o personagem pergunta a eles sobre a sua própria natureza. "O que somos? E se somos personagens em uma história, então quem escreve as histórias? Quem nos faz sofrer dessa forma? Quem escreve o mundo?" Um dos interlocutores responde com uma citação de A Tempestade, de William Shakespeare: "Como vos preveni, todos os atores eram espíritos; dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável." Enquanto isso começam a sumir no ar, apesar dos apelos em contrário do Homem Animal. Enfim, após um close no rosto do herói, uma voz misteriosa entra em cena, chamando por Buddy. Ela não parece sair de lugar algum nos quadros; diz que, agora, é hora de ir embora, e de colocar de lado todas as coisas mundanas. Seria, portanto, segundo esse ator fantasmagórico, o momento da última aventura do protagonista. No que essas falas surgem, o herói simplesmente se dirige até a porta principal da casa, agindo sem esboçar qualquer reação de questionamento em relação a isso. Efeito: A dúvida reiterada do personagem não se finda a partir de uma explicação que tem raízes na própria narrativa; elas não servem mais a ele, já que ele entende que ele é resultado de um processo criativo, feito por alguém que vive num universo para fora das HQs. A resposta final dos aliens amarelos é justamente um recado para o herói: os seres ali presentes são manipuláveis tanto quanto o próprio Buddy, e, no fim das contas, qualquer negativa ou constatação do fato pode ser cerceada e até mesmo esquecida por todos, a partir de determinadas ordens dos criadores. Esta assertiva é provada pelo próprio HA no final da página 23. O ato de escutar a voz e obedecê-la cegamente pode significar, naquele momento, uma manipulação deliberada para que se atinja o que precisa ser feito para que a história prossiga. Este mesmo artifício é operado pelo Homem Animal, que simplesmente abre a porta necessária para o andamento da ação, a partir do comando imposto pela voz misteriosa. Categorias: autor-personagem, autoconsciência, intertextualidade.
72 #25, p. 10. Figura - Animal Man #25, p. 10.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Um coelho vestindo capa surge, entre duas colunas de pedra, fazendo uma pose que sugere que ele irá voar; enquanto isso, a conversa entre Homem Animal e o Bobo-da-Corte continua. Voltando ao tópico dos personagens, o protagonista novamente questiona: "Quem nos criou? Há alguém nos criando agora?" O bufão exita; ele não tem certeza, e diz que não é um expert sobre o assunto.
73 No exato lugar onde antes estava o coelho, surge um cachorro marrom que veste uma espécie de máscara preta, que late e se coloca em posição de ataque. O protagonista insiste com o coadjuvante. "Alguém está nos criando! Eu sei disso!" O Bobo-da-Corte alerta que não pode concluir apressadamente, no que é pressionado pelo herói. "Alguém matou minha mulher e minhas crianças e me colocou nisso tudo! Num terceiro momento, ninguém está entre as colunas de pedra, e os outros personagens se aproximam do primeiro plano. O Homem Animal continua insatisfeito. "Não, mas olhe! Esta é a minha família! Se nós somos só personagens numa história, então quem está escrevendo a história? Quem matou a minha família?" O Bobo-da-Corte percebe a raiva contida no discurso, e pede para que ele não o culpe. "Não olhe pra mim! Talvez você deva procurar a Cidade da Formação." O cachorro é atirado de volta ao meio das pilastras, mas para no ar, antes de chegar ao chão. O herói observa o animal, e o bufão o chama, atentando-o à prioridade do momento. No último quadro, os outros membros do Quinteto Inferior estão ainda nos primeiros degraus de uma longa escadaria, enquanto o Homem Animal e o Bobo-daCorte seguem à frente. As duas colunas jônicas formam um portal, em estilo grego, e com os seguintes dizeres, em um latim garrafal: "Facilis descensus Averno" (em português: "A descida para o inferno é fácil"). Nas colunas, além do desenho de algumas suásticas, ainda podem ser lidos pelo menos três escritos - "lemme outta here" (deixe-me sair daqui); "get a life" (tenha uma vida); e uma citação ao nome da revista de Irmão Poder (Brother Power, the Geek). Efeito: o protagonista está convencido de que o responsável pela morte de sua esposa e filhos não era o assassino contratado, e sim o roteirista da HQ - já que ele arquitetou todas as ações da revista. Ele só quer um nome, um lugar onde procurar este sujeito, e obter suas respostas. O coelho e o cão que aparecem nesta página são, respectivamente, Ace, o Bat-Cão e Hoppy, o Coelho Marvel. O Irmão Poder é também citado. Essas evocações de personagens esquecidos auxiliam a ambientação, ao mesmo tempo em que trabalham com o conceito de ser "escrito para fora" do limbo e a paradoxal relação com esta revista em específico. Um sem-número desse mesmo tipo de relações ainda aparecerá nessa mesma edição.
74 A citação em latim no portal grego serve de referência para situar de qual distância o protagonista se encontra em relação ao Universo DC, bem como uma previsão do que ainda pode estar por vir. Se descer ao "inferno" é fácil, pensa-se que a situação deve piorar para o Homem Animal. Categorias: historiografia, autor-personagem, mise en abyme.
#25, p. 11, quadro 5. Figura - Animal Man #25, p. 11.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
75 Técnica: o Bobo-da-Corte tece seus comentários acerca das possibilidades dos personagens presentes na Cidade da Formação. Ele parece sentir pena de alguns personagens; ele sabe que, apesar de que muitos podem (e vão) serem escritos novamente, outros nunca irão sair do limbo. No último quadro, ele chega a ser sarcástico: "Convenhamos, quem se importa com os agentes da Patrulha Espacial Canina neste dia e época?" Os três animais citados aparecem na imagem, sendo que dois estão brigando, e o terceiro, vomitando em um canto. Uma caixa aparece na sequência. Ela exprime, como sequência à fala do bufão, um texto que se encaixa na situação, mas que não é nem fala, nem pensamento: apenas explica de quem é a voz. "Disse o Bobo-da-Corte." Efeito: a questão de delimitar que há entes que voltarão ao universo compartilhado regular um dia é a aceitação do fato de que, uma vez que o Multiverso foi encolhido no reboot, as possibilidades narrativas com os personagens restantes não são necessariamente infinitas. Certos autores podem querer ver histórias com o seu super-herói favorito novamente, ou mesmo enxergar possibilidades entre os números de outro protagonista, e trazer esses seres de volta. A história também faz questão de mostrar como os personagens esquecidos estão, com a licença da repetição de palavras, verdadeiramente esquecidos. O limbo é um local decadente, com uma arquitetura caótica, e poucas cores, exceto nos próprios seres abandonados pela reformulação editorial ou mesmo antes disso, vítimas do próprio ostracismo, da falta de aparições regulares, da não aceitação pelo público, etc. Assim como ocorreu outras vezes (#18, p. 3; #24, p. 1), aqui aparece uma parte do roteiro que, originalmente, não precisaria ser publicado. O uso de fonte com serifa, mais uma vez, dá a impressão de que ele vem de outro lugar presumivelmente o roteiro, já que este tipo de anotação sugeriria a referência a ser feita pelo desenhista. No caso, não ao desenho do personagem, mas para indicar um direcionamento do balão que realize essa sugestão na mente do leitor, sem que este fique confuso quanto ao dono dos dizeres. Não menos importante: este tipo de intervenção do texto anterior pode ser também uma lembrança de que você, que lê a caixa, entenda que o escritor nunca deixa de operar sobre a história, mesmo quando ela parece o colocar num papel antagônico em relação aos personagens. Todos os outros personagens que aparecem nesta página estão, no momento da publicação desta HQ, fora da cronologia da DC Comics.
76 Categorias: historiografia, autor-personagem, mise en abyme.
#25, p. 12, quadros 1 a 5. Figura - Animal Man #25, p. 12.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: nos dois primeiros quadros, um homem escreve algo no teclado de um computador, em uma sala não identificável. Apenas suas mãos podem ser vistas, além do periférico e do monitor. Ele responde à pergunta do Bobo-da-Corte, feita na última página, sobre os agentes da Patrulha Canina Espacial. "Eu me importo. É estúpido, eu sei, mas eu me importo." Para o falante, estes personagens
77 o lembram de sua infância, assim como ficar debaixo das cobertas, ouvindo rádio de ondas curtas. "Todas essas coisas: agora, perdidas ou quebradas." Ele pergunta a alguém - que não está na cena - se ele se lembra desse tipo de sentimento. Sem respostas, começa a questionar sua sanidade. "Talvez eu precise ir ver um médico." No quadro seguinte, de volta ao limbo, o Bobo-da-Corte é categórico ao responder a sua própria questão: ninguém se importa com os cachorros do espaço. O Homem Animal muda de assunto. "Olha, você mencionou uma cidade. E se eu levar o macaco até essa cidade? Talvez eles possam ser capazes de ajudar a nós dois..." O coadjuvante o interrompe, e discorda. Ele sabe que a Cidade da Formação é um tipo de posto avançado para a força criativa, e que isso tudo parece com uma história. O protagonista não entende o que o Bobo diz, e ele explica: "Bem, é só que... Não existem histórias no limbo. É uma das condições para existir aqui. Eu não sei. Se qualquer um pode fazê-lo, esse alguém é você. Eu não acho que você realmente está no limbo. Você apenas está de passagem..." Efeito: se o quadro branco da página anterior é uma referência ao escritor, então o início da página atual é uma representação do pensamento de Grant Morrison, roteirista desta HQ. Afinal, sua referência subjetiva - como o causador dos males da vida do protagonista - é uma constante há algumas edições. Ele parece responder que utiliza todos estes personagens antigos, que agora vivem no limbo, como uma lembrança da infância, e lamenta por eles não poderem participar do universo regular. Mostrar este espaço do esquecimento, no final das contas, serve de redenção temporária a estes agentes, mas o é principalmente para Morrison, que tenta passar essa saudade dos tempos idos ao leitor. O fato de não existirem histórias no limbo é compreensível, visto o abandono de seus visitantes. Eles compreendem sua condição, e vislumbram a ideia de ação, em relação com as narrativas das HQs de super-heróis, como antinatural. A situação especial que o Bobo-da-Corte ressalta que o Homem Animal possui é o fato de ele ter chegado àquele lugar a partir de sua própria história; aquilo faz parte de sua revista, e ele é o protagonista. Portanto, ele é capaz de algo, ao contrário dos personagens esquecidos; esses simplesmente foram parar ali, sem qualquer espécie de transição, perdendo seu lugar no Universo DC. Categorias: autor-personagem, autoconsciência, metalepse, mise en abyme.
78 #26, p. 3, quadros 4 a 6. Figura - Animal Man #26, p. 3.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: No quarto quadro, Grant Morrison explica que tudo que acontece nas histórias é escrito em seu computador. Sua mão aponta para a tela, e lá está escrito: "Close na mão de Morrison apontando para a tela." Ele explica que pode fazer o Homem Animal dizer e fazer qualquer coisa, como odiar sua esposa e filhos, ou até mesmo esquecer que já foi casado um dia. Na cena seguinte, o enquadramento fecha ainda mais no monitor, sem mais mostrar as mãos do autor. Ele continua a explicação, e começa a querer mudar de
79 assunto. "Está tudo aqui, é onde eu escrevo as mazelas do mundo. Quando eu era jovem, eu tinha uma amiga imaginária chamada Raposita..." No computador, a cena escrita agora fala em um close no protagonista, concentrando a cena em um de seus olhos, que se apertaria. No final da página, apenas parte do rosto do Homem Animal aparece, com o foco no olho apertando-se. Exatamente como estava escrito, o que não agrada ao herói. "Você não me controla. Não. Não!" Efeito: Ao apontar para a tela e descrever a ação no computador, o roteirista acaba por demonstrar como, ali, na HQ, ele não é exatamente ele mesmo - mas, sim, uma representação dele. Apesar de, dentro de uma suspensão de descrença, o leitor acreditar na ideia de que o criador está ali, com a criatura, isso ocorre, talvez e no máximo, no campo das metáforas. Essa ação ostensiva, dentro da narrativa, tem como objetivo demonstrar o resultado que o efeito de escrever o roteiro produz na história. Na sequência, ele procura aplicar esse mesmo raciocínio ao Homem Animal, descrevendo sua ação no monitor e no teclado - novamente, evocando algo do possível dentro da narrativa, pois não é isso que realmente acontece, já que, aqui, Morrison não revela a mão do desenhista na construção daquela realidade presente. Em sua fala, ele demonstra como as mudanças que ele pode provocar na vida do protagonista, e da sua ciência em relação à má fase na vida pessoal do herói que ele mesmo escreveu. Esse encontro entre criador e obra não seria tão incomum; na Marvel Comics, o roteirista e desenhista John Byrne apareceria nas capas, além de interagir esporadicamente com a Mulher-Hulk, em uma parte da série que se passou não muito tempo depois desse fato; a edição da imagem (31) foi lançada em 1992 cerca de dois anos após este final, portanto. Figura - She-Hulk #31, capa.
80
Fonte: <http:upload.wikimedia.orgwikipediaen33dCover_of_The_Sensational_She-Hulk_No._31.png>. Acesso em: 13 nov. 2012.
Categorias: autor-personagem, metalepse, intertextualidade. #26, p. 5, quadros 4 a 6. Figura - Animal Man #26, p. 5.
81
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o Homem Animal se surpreende após ter um rompante de raiva e jogar Grant Morrison contra uma janela, aparentemente matando-o, e ainda encontrá-lo vivo em seguida. Ele está boquiaberto e de olhos arregalados, enquanto o escritor caminha, com semblante inalterado. Ele reforça a mensagem anterior. "Eu fiz você fazer aquilo também. Eu posso fazer com que você faça qualquer coisa." O protagonista olha para a janela, que está novamente inteira, como se nada tivesse acontecido. O próprio Morrison utiliza-se da retórica para falar que o Homem Animal, na verdade, nunca foi realmente violento - ao contrário de personagens
82 cheios de armas e com testosterona em excesso. "Você já viu a futilidade da violência, não é?" Os olhos do Homem Animal continuam arregalados, mas ele franze a testa, faz um muxoxo e coça a cabeça. "Sim... Sim, eu odeio violência... Eu... Por que eu fiz aquilo?" Efeito: a arbitrariedade das ações impostas pelo escritor começa a preocupar o protagonista não somente pelo fato de elas ferirem o livre-arbítrio que ele julga ter, mas também porque o roteiro pode levá-lo a fazer coisas que vão totalmente contra sua natureza. Esse tipo de estranhamento pode acontecer em HQs regulares, seja porque determinado personagem mudou em seu âmago, ou então fruto de um roteiro que traz uma caracterização do personagem especialmente deslocada. Um exemplo do primeiro caso pode ser visto em Action Comics (2011-2012), escrita pelo próprio Grant Morrison: antes escoteiro e paradigma da boa conduta, Superman, em sua nova origem, é retratado como um jovem jornalista de esquerda, se colocando contra os granes empresários e corruptos tanto dentro quanto fora do uniforme. Já a outra razão pode ser atomizada pela nova série da Liga da Justiça Internacional, que tenta colocar o herói Gladiador Dourado como um líder responsável, quando, na verdade, não é. Os críticos atribuem esse posicionamento forçado, ironicamente, ao próprio criador do personagem, Dan Jurgens, que assina os roteiros. Categorias: autor-personagem, metalepse, ação retardada, autoconsciência. #26, p. 6. Figura - Animal Man #26, p. 6.
83
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: No começo da página, Morrison explica que ele fez o Homem Animal cometer as suas últimas ações violentas, mas tão somente porque "eles" achavam que um pouco de ação no começo da história manteria as pessoas interessadas. Ele faz um meio sorriso, e apresenta que ele não pode ser machucado, pois, naquele momento, ele está fingindo que aquele espaço é o mundo real, e o fez para poder entrar no Universo DC, exatamente nestas páginas de histórias em quadrinhos. O enquadramento, no segundo quadro, abre-se para mostrar com maiores detalhes a casa do roteirista, enquanto os dois personagens continuam na cena.
84 O Homem Animal põe as duas mãos na cintura, olha para seu atual criador e fala com um canto da boca. "Como assim? A página de quadrinhos?" Subitamente, ele também se lembra de que não faz muita ideia do que seja esse lugar onde fica a casa de Grant Morrison. Ele viajou através do limbo por anos a fio até chegar ali. O escritor, enquanto mexe em algumas gavetas, diz que ele nem mesmo saiu do mesmo lugar onde sempre esteve todo mês: em sua HQ. Então, o autor retira um punhado de revistas do Homem Animal, e as entrega a um protagonista, que, de boca aberta, observa a sua própria história. Efeito: Este mundo "real" que aparece neste número - e apareceu anteriormente, durante as páginas 6 e 7 da edição 14 - é um pouco mais assemelhado ao nosso: a arte é mais suja, e as sombras, feitas de hachura na face em preto e branco de Morrison, realizam esse efeito. Dessa forma, a presença do Homem Animal se torna ainda mais evidente, e causa a sensação de que aquele personagem não pertence àquele universo. Até que as HQs sejam mostradas a ele, o herói não entende muito bem algumas das lógicas explicadas por Morrison, pois tenta encaixá-las no sistema verossímil que ele ainda pensa viver, apesar de experiências como sua passagem pelo limbo. Até ali, por não poder ter prestado atenção à teoria de Highwater a dois números atrás, ele compreendeu que era um personagem de alguma história e era visualizado por muitas pessoas; mas não sabia qual era a mídia que ele habitava (se é que existia alguma - o Homem Animal, afinal, não poderia ter previsto tanto sobre esse ponto). Categorias: autor-personagem, metalepse, mise en abyme. #26, p. 7. Figura - Animal Man #26, p. 7.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o protagonista folheia o número 19, e revê a morte de sua família na última página da publicação. O boquiaberto Homem Animal pergunta ao seu roteirista porque sua família teve de morrer, e se entende o que fez a ele. Grant Morrison diz que isso é evidente, já que ele escreveu todo o processo da dor, raiva e aceitação sobre o assunto. O escritor argumenta que o drama era necessário à história, e que "é fácil obter um choque emocional barato ao matar personagens populares". O Homem Animal constata, porém, que esse fato não é justo para com ele. Morrison concorda, e apresenta a sua própria história: sua gata, Jarmara, havia
86 morrido, apesar de todos os esforços dele para tentar encontrar a causa do problema da felina, ou mesmo tratá-la. "Isso não era justo também, mas para quem eu reclamo?" Efeito: Este ponto da conversa delimita exatamente o propósito do encontro: estabelecer um espaço no qual toda a história ocorrida pode ser discutida e debatida entre o protagonista e a representação do autor. Essa relação é desigual, pelo fato de que é criada totalmente pelo escritor; entretanto, da perspectiva interna da narrativa, ela se coloca como um estabelecimento de forças, se não adversárias, ao menos opositoras em relação aos eventos ocorridos nas histórias anteriores. Cada um deles tem argumentos. Morrison alega que a decisão de matar uma família foi boa para a narrativa - o que, naturalmente, repercute no sucesso editorial da publicação. Já o Homem Animal, apesar de ter superpoderes, é um pai de família que não consegue entender como estes fatos podem ter sido manipulados tão facilmente, antes e agora. No final da página, o roteirista tem um ponto: pelo menos o protagonista tem para quem se queixar; já ele, como os indivíduos de nossa realidade, não podem ir até seus próprios deuses e pedirem diretamente que ele lhes desfaça suas mazelas. Categorias: autor-personagem, autoconsciência, intertextualidade, mise en abyme.
#26, p. 8, quadros 1 a 5. Figura - Animal Man #26, p. 8.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: a face de Grant Morrison se escurece, enquanto ele olha para a foto de sua falecida gata. O Homem Animal somente observa. O escritor aponta para o fato de que as HQs de super-heróis constituem um mundo mais simples que o real. Qualquer tipo de catástrofe ou invasão alienígena não importa, já que tudo volta ao normal logo após, e não existe problema "que não possa ser resolvido por um idiota em um traje". O segundo quadro conclui este raciocínio: o roteirista, já fora do enquadramento, diz que, dados os fatos por ele levantados, não há razão para que o
88 herói venha dizer a ele o que é justo ou o que não é. O Homem Animal, agachado, lê um exemplar de Patrulha do Destino. Ele se pergunta, então, se todo o seu mundo é feito apenas de histórias, e aborda Morrison sobre a autoria da HQ que está lendo. "Sim, mas eles não sabem." "Você escreve tudo?", pergunta o protagonista, no quarto quadro. O autor pega um casaco pendurado em um cabideiro, e ridiculariza a ideia do personagem. Ele não conseguiria dormir se precisasse moldar todas aquelas possibilidades; ele só se ocupa de algumas histórias dentro desse coletivo, enquanto outros criativos tomam conta de outros. Morrison veste o casaco. "Você vive em um mundo criado por um comitê. Outra pessoa escreve a sua vida quando você está com a Liga da Justiça. Você não percebeu?" O Homem Animal concorda pensativo; ele próprio fica com a impressão de que nunca fazia muita coisa nas situações nas quais acompanha o grupo. Efeito: Editores e escritores são os criadores e destruidores de tudo que há nos universos compartilhados moldados pelas HQs de super-heróis. É uma estrutura coesa, até certo ponto, e simplificada a partir do real - como humanos o percebem, ao menos. Até a Era de Bronze, esse tipo de ficção era essencialmente maniqueísta dentro do gênero super-heroico. A Era de Ferro dissolveu em parte a briga entre o Bem e o Mal nas HQs; apesar de ainda falarmos em mocinhos e bandidos, eles podem nem sempre estar representando estes papeis. Os personagens podem trocar de lado, mesmo que temporariamente, mas ainda operam nesse mesmo tipo de conflito, podendo alterar-se de uma perspectiva histórica (a partir da imagem estabelecida perante os leitores) ou atomizada (partindo-se da premissa da narrativa atual, que leva em consideração a representação dada à psique de cada agente, para delimitar seu posicionamento em relação àquela história). Além de um posicionamento, estes heróis e vilões são alçados a um status mitológico: ninguém além deles parece ter importância nesse mundo, e todas as mudanças para pior causadas por seus antagonistas parecem poder ser desfeitas. Não importa quantas explosões, invasões ou danos sejam causados, mas, sim, o prosseguimento da narrativa, o que implica que o cenário onde a ação acontece, na maioria das vezes, precise estar intacto.
89 Há também aí a questão da imortalidade, embutida nesse aspecto mítico. Todo herói e vilão dificilmente é morto. Quando isso realmente ocorre, pode ser facilmente desfeito, desmentido ou maquiado, como se não tivesse acontecido. Essa invulnerabilidade ao tempo e às batalhas foi causada pelo paradigma deste gênero de HQ - Superman. Antes dele, poucos personagens realmente importantes da DC morreram ou sofreram sequelas decorrentes de suas ações; mesmo assim, outros seguiam seus passos, incorrendo em um legado daqueles que tinham ido embora. Em 1993, quando da morte de Clark Kent Kal-El pelo vilão Apocalipse, seu retorno foi publicado menos de um ano depois. Se o modelo de super-heroísmo não poderia morrer, ninguém mais precisava morrer de verdade dentro dos universos compartilhados, portanto. Não que esse tipo de estratégia não fosse empregado, com personagens menores: desde os anos 1970, por exemplo, o vilão/herói Magnum foi e voltou do além várias vezes. A maior parte dos leitores, talvez, não dava tanta importância ao feito devido à relevância desse ser para o Universo Marvel. Como o trabalho de criação é subjetivo, sendo que cada autor terá seus personagens mais queridos dentro das mitologias particulares de cada super-herói, a coerência interna do universo compartilhado é frequentemente violada. As confusões geradas pela sucessão de diferentes escritores em um mesmo título suscitam, em determinados momentos, a revisão dessa cronologia, com a publicação de retcons. Caso o dano ultrapasse a barreira do que conseguiria ser consertado a partir de boas histórias posteriores, e se fatos como esse forem reiterados em diferentes personagens, é detectada a necessidade de uma reformulação editorial, ou mesmo um reboot, para colocar ordem na casa. Categorias: autor-personagem, intertextualidade, metalepse, ação retardada. #26, p. 11. Figura - Animal Man #26, p. 11.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: após ver o roteirista invocar uma série de heróis desconhecidos e aleatórios do lago onde atirou uma pedra, o Homem Animal somente observa estupefato, enquanto todos eles chocam-se no ar, desfazendo-se em uma nuvem vermelha. Ele não entende o fato, e pretende alguma reação. "O que você fez com todas aquelas pessoas?" Grant Morrison olha para outro lado, para baixo, e afirma que nenhum daqueles personagens faz parte da história - apenas teriam sido inseridos ali para que a conversação entre os dois fosse mais interessante de ser desenhada.
91 Enquanto os restos dos superseres invocados caem, já negras, atrás deles, o Homem Animal continua a caminhar ao lado de Grant Morrison, e faz um largo gesto com os braços. "É um tipo de maneira casual de escrever uma história, não acha? Você nunca foi muito bom em escrever na vida, né? Eu apenas vaguei através de uma série de eventos desconexos, com pessoas me dizendo que tudo está conectado." Morrison admite que este seja um problema de suas histórias: elas parecem construir coisas que nunca chegam a acontecer nas narrativas. Mais do que isso: é um problema que atinge a toda a vida dele. "Minha vida, você quer dizer!", acusa o protagonista, apontando um dedo para a cara do escritor. Enquanto a conversa se desenvolve, aparecem uma palmeira, uma linha férrea, uma locomotiva azul e uma série de cogumelos vermelhos com pintas pretas crescem no chão. O herói pergunta qual o seu papel ali, já que, apesar de ser o protagonista, ele sente como se ficasse apenas pelas beiradas do roteiro, como um observador; os braços estão separados do corpo, altos, com as palmas das mãos para cima, e os olhos miram diretamente nos do interlocutor. Ao fundo, aparece o rosto do Gato de Cheshire, de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol, em sua adaptação ao desenho animado da Disney. O criador esclarece que isso acontece com quase todas as pessoas: todos esperam pegar os papeis principais em suas próprias vidas, mas acabam por fazer figuração. Ele afirma que a vida não tem tramas e subtramas, mas, sim, um monte de pontas soltas e fios dependurados que nunca serão solucionados. Um dinossauro passa por trás do Homem Animal, puxando um homem das cavernas a partir de correntes, enquanto ele responde ao escritor, com as sobrancelhas arqueadas por trás da máscara. "Ouça, de onde eu venho, nós esperamos histórias reais. Eu estou ficando doente dessas narrativas pseudo-existencialistas!" Efeito: o fato de que várias construções nessa página foram apenas designadas pelo roteirista para serem desenhadas, não tendo um propósito para o ato de contar a presente história, apenas servem como demonstração de poder de Morrison dentro da narrativa. Apesar de algumas HQs ficarem famosas devido à qualidade de seus desenhistas, é mérito do roteirista imaginar boas cenas para que o artista realize um trabalho competente; este é, portanto, um trabalho em conjunto, mas fundado no que pensa e imagina o escritor sobre a narrativa a ser apresentadas nas páginas de quadrinhos.
92 Essa parceria pensada é executada nesta publicação. Se a ação não é impecavelmente executada por Chris Truog e Doug Hazlewood, as expressões faciais traduzem os conflitos existenciais da narrativa, que se fazem o ponto principal nesta discussão entre criador e criatura. Figura - Ilustração comemorativa da edição de 30 anos de Os Vingadores.
Fonte: <http:2.bp.blogspot.com-1cWUYeZAp2MUiJgn1Lb0zIAAAAAAAAQP8wtnyJPsxFYs1600Avengers-Perez.jpg>. Acesso em: 28 set. 2012.
Um exemplo maior pode ser encontrado na maxi-série Crise nas Infinitas Terras, escrita por Marv Wolfman e desenhada por George Perez. O artista, ali, é levado para um tipo de cena que é sua especialidade, antes reconhecida em seu trabalho com os Jovens Titãs: páginas duplas com muitas figuras humanas. Como a Crise serviu de ponto de encontro entre todos os personagens de importância da editora logo antes do primeiro reboot, Wolfman tratou de fazer com que todos pudessem aparecer em algum ponto da narrativa, mesmo que não interferissem nas ações determinantes para o prosseguimento da história. Mais tarde, Perez seria requisitado para obras com propósitos semelhantes, como o aniversário de 30 anos dos Vingadores, na Marvel Comics e o encontro entre essa equipe e a Liga da Justiça da DC Comics, em um dos vários crossovers - histórias que reúnem personagens de universos compartilhados distintos - entre as duas editoras coirmãs nos anos 90. Figura - Capa dupla de LJA vs. Avengers, por George Pérez.
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Fonte: <http:4.bp.blogspot.com_FVXCQBs2iUUTJO2e8kza4IAAAAAAAAEnApxLx1cEuPBgs1600JLAvenger s.jpg>. Acesso em: 30 out. 2012.
Morrison, nessa página, também faz questão de diferenciar uma narrativa do ato de viver, simplesmente: muitos assuntos nunca serão resolvidos, e, algumas vezes, a narrativa do cotidiano demora a avançar. A HQ (assim como qualquer outra obra cultural que tenha como intenção contar uma história, não importando o gênero) não tem a intenção de ser similar à realidade ou à vida real, apesar de todos os esforços da Era de Ferro dos Quadrinhos no sentido de que as narrativas tenham uma base maior na realidade e sejam mais calcadas na verossimilhança. Aparecendo acima e maior que o escritor e o personagem, parece que a simbologia divina do Gato de Cheshire também é invocada em relação às cenas desta página, a partir da relação da construção do espaço e das ações dos atores afinal, tudo ali é criação de Grant Morrison, juntamente com o desenhista. Categorias: autor-personagem, autoconsciência, metalepse, ação retardada. #26, p. 12. Figura - Animal Man #26, p. 12.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: "Mesmo? Oh, bem, talvez seu novo roteirista vá fazer coisas melhores por você", declara Grant Morrison, enquanto ele continua sua caminhada, em direção a dois prédios circulares ainda em construção. O Homem Animal para, e, mais uma vez, pergunta o que ele quer dizer com isso. O escritor afirma que esta é sua última história. Ele desculpa-se pelo anticlímax, mas ele só poderá acompanhar o protagonista até ali, e nada mais. O herói, então, pergunta qual será o seu destino, com as mãos espalmadas sobre o peito.
95 Morrison reafirma o fato. "É o que eu disse. Outra pessoa escreve a sua vida. Eles podem jogar pelo que for mais seguro e escrevê-lo como um super-herói simples, que luta contra vilões inspirados em animais em cada número. Eles podem fazer o óbvio, e tentar chocar, transformando-o em um comedor de carne... Eu não sei." O Homem Animal aponta para o próprio peito, e esbraveja, lembrando ao autor que ele é vegetariano, não quer e não irá comer carne. O interlocutor rejeita a hipótese. "Não, eu sou vegetariano. Você será o que for que você seja escrito para ser. O protagonista fica de costas para o escritor, e olha-o por cima do ombro, de braços cruzados. "Se isso é verdade, então... Então... Então o que eu sou?", em mais uma de suas perguntas. Com um sorriso tímido e uma mão espalmada, Morrison responde. "Um herói genérico de quadrinhos, com cabelos loiros e bons dentes. Um de centenas. Anime-se, poderia ser muito pior." Efeito: até o advento dos universos compartilhados, cada super-herói era de suma importância dentro de seu próprio cânone; ele era a figura central da narrativa, na maioria dos momentos, e os vilões que enfrentava, bem como os coadjuvantes com os quais interagia, eram peças a completar sua história. Essa relevância é diluída dentro dos universos compartilhados, já que o mundo está em um status superior ao dos seus habitantes. Dessa forma, certamente cada super-herói é apenas um entre centenas, dada a cronologia já existente, mesmo que afetada por reformulações editoriais. Nessa lógica, portanto, as maiores expressões são as dos grupos de heróis (como os Vingadores ou a Liga da Justiça - que saem de suas histórias solo, onde frequentemente interagem com outros protagonistas, para tratarem de ameaças que, sozinhos, não poderiam enfrentar. Assim, o sentido de mundo ficcional é exaltado, em detrimento de um ideário anterior sobre o foco das ações dos super-heróis. Talvez, por isso mesmo, a Era de Ferro tratou de readequar os assuntos com os quais os grupos de superseres interagem, em relação às eras de Prata e Bronze (quando estas organizações foram constituídas): geopolítica e o trato com as autoridades já existentes acentuaram um tom político às histórias, como forma de posicionamento dos universos compartilhados em relação a esses temas no mundo real.
96 Entretanto, algumas mudanças bruscas na continuidade não podem ser explicadas logicamente; algumas vezes, nem mesmo as justificativas utilizadas dentro da narrativa convencem os leitores. A mudança de equipes criativas pode ser uma das justificativas para este tipo de alteração inexplicável, como as possibilidades citadas por Morrison nesta página. Fica evidente o poder que o roteirista exerce sobre a criação; este controle sobre as ações do personagem, apesar de não ser plenamente livre, a partir do momento em que se leva em conta o papel de editores e executivos da empresa que publica a revista, é perceptível pelo estilo que diferentes autores imprimem a um personagem ou a um mesmo tipo de narrativa ficcional. Categorias: autor-personagem, intertextualidade, historiografia, metalepse.
#26, p. 13. Figura - Animal Man #26, p. 13.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: o protagonista não aceita o fato de ser apenas mais um super-herói entre centenas. Ele senta em um banco longo de madeira, de costas para Grant Morrison, apóia os cotovelos nas coxas e o queixo nas mãos, enquanto olha para o chão. Para ele, mesmo o roteirista não pode tirar dele a capacidade de sentir ou de se preocupar com as coisas. O autor então olha para fora do quadro, e, com um gesto, usa de uma citação bíblica: "O Senhor deu, e o Senhor tirou..." (Jó 1:21). O Homem Animal lembra-se de suas causas, e tenta argumentar, mas é interrompido pelo escritor. "Você se preocupa com os animais porque eu queria lhe usar para chamar a atenção das pessoas para o que está acontecendo no mundo.
98 No meu mundo, no mundo real, eu não posso fazer nada sobre as coisas que me deixam chateado. Tudo que posso fazer é me juntar a grupos de protesto e escrever esta história em quadrinhos." Entretanto, o próprio criador aponta que este fato tornou-se um problema para a obra, pois a narrativa estava sendo fundada na questão do direito animal, o que, dada a constância do pensamento dele sobre o assunto, estava, na sua visão, tornando o título enfadonho. Após falar mais sobre a sua visão moral do assunto, Morrison justificou-se a partir de três palavras: "Querer é poder", numa citação ao clássico aforismo sob o qual muitas doutrinas políticas históricas, principalmente as de cunho totalitarista, se baseiam, mas numa perspectiva do poder do homem sobre os animais através da força. No último quadro, o super-herói pergunta a Morrison, ainda mirando o solo, sobre a sua família. "Ouça, se você pode fazer qualquer coisa... Se você pode... Vai trazer minha família de volta?" O autor desculpa-se, arqueando as sobrancelhas, porque isso não seria realístico; violência e mortes sem sentido são realísticas, e é assim que os quadrinhos naquele momento deveriam ser. Efeito: a revelação do roteirista sobre o problema de se falar demais nos problemas ambientais pode ser levada além. Pode ter sido esse tom de pregar a palavra de ordem pelos animais e pela natureza que levou a narrativa a apostar na utilização de metalinguagem. Apesar de haver incursões desse tipo de dispositivo nos primeiros números, é notável, ao curso deste estudo, como as referências à temática estudada crescem em grandes porcentagens (carentes de possível contagem). Além disso, é novamente levada em conta a possibilidade de alterar uma história no meio; utilizo novamente o mesmo exemplo audiovisual anterior, o da teledramaturgia. A mesma novela citada antes, Caminho das Índias (2009), de Gloria Perez, trocou de protagonista enquanto a narrativa desenrolava-se: o ator Márcio Garcia não foi bem recebido pelo público no papel principal, e o eixo da narrativa gradativamente começou a girar em torno do personagem Raj, vivido pelo ator Rodrigo Lombardi (este, agora, protagonista de nova obra da mesma autora, Salve Jorge). Ao dizer que não pode trazer a família do Homem Animal de volta, Morrison usa o argumento de que o fato não seria realístico - elemento necessário, segundo
99 ele, para uma boa história naquele momento. O início da Era de Ferro dos quadrinhos, apesar de apostar em personagens militarizados e com apetrechos demais, tinha a premissa de parecer um pouco mais com a realidade na qual os criadores, editores e leitores estão habituados a ver. Entretanto, a morte e retorno de personagens foi amplamente banalizada por um fato ocorrido em 1993: a Morte e o Retorno do Super-Homem. A saga tinha como objetivo mostrar que até o Homem de Aço poderia morrer, mas o personagem foi reinserido na continuidade menos de um ano depois. Se até o mais poderoso dos super-heróis podia facilmente voltar à vida, o que poderia ser dito de outros? Categorias: autor-personagem, metalepse, intertextualidade.
#26, p. 15, quadros 2 a 5. Figura - Animal Man #26, p. 15.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: ao ver uma criatura saindo do lago, o Homem Animal fica boquiaberto, com os olhos arregalados. "O que está fazendo?", perguntando a Grant Morrison. O roteirista, que está de costas para o herói, olha por sobre o ombro esquerdo. Ele observa a cena atrás dele, mas mantém as mãos no bolso do casaco enquanto fala. Nesse momento, o protagonista titubeia contra o humanóide que emerge das águas. Ele tem pele laranja, olhos vermelhos, dentes afiados e uma barbatana no topo da cabeça, similar á de um tubarão, além de vestir um collant lilás e azul - sugestão de um leitor que havia enviado uma carta à DC Comics. "Outros
101 tiveram a brilhante ideia de colocar você contra seu opositor ideológico. Talvez pudéssemos chamá-lo de Matadouro ou algo igualmente dramático. Esse cara ama matar e torturar animais. E ele se desenvolve a base de hambúrgueres. Sacou?" Depois disso, o escritor vira-se para o Homem Animal, e outro antagonista subitamente aparece, mais à direita de Matadouro - um homem de longos cabelos loiros, barba e bigode, além de calças cargo, um colete com estampa de tigre sobre o peito nu e braçadeiras com uma textura semelhante. O herói gesticula, pede para que Morrison pare, e pergunta porque ele fez aquilo. O criador responde: "A ideia é você lutar com esse cara e resolver os argumentos morais mandando-o ao chão." Os dois vilões recém-criados pulam sobre o protagonista, que olha para eles, mas ainda tem o corpo virado na direção do roteirista; este ordena que o interlocutor não ria, pois esta também é a maneira que as pessoas utilizam no mundo real para resolver seus conflitos. E o Homem Animal constata que está sem seus poderes, e acusa o criador - de alguma forma, ele sabe que Morrison é o responsável. Efeito: o conflito que o escritor suscita é bastante comum: um embate físico seguindo um debate de ideias, pois os lutadores têm visões completamente opostas da realidade que habitam. O sorriso que a representação do roteirista exibe tem um tom meio galhofeiro, sugerindo que tanto o personagem quanto a própria pessoa de Grant Morrison estivessem fazendo aquilo para agradar os leitores e dar mais mostras de seu poderio ao protagonista, enquanto explicam alguns detalhes do funcionamento da HQ para ele. Essa manobra, apesar de não tão explicitamente, caracteriza uma metalepse realizada de forma contínua. O criador-personagem também sabe que estamos observando tudo que acontece; ele não somente se refere aos consumidores de forma abstrata, ou como um conjunto, quando fala ao herói sobre os anseios dos leitores. A fala de Grant Morrison no último quadro desta página sugere isso, pois não parece se encaixar com as reações do Homem Animal aos acontecimentos atuais: "Não ria. Essa é a maneira com a qual nós lidamos com as coisas no mundo real também." Digno de nota é o fato que o caçador é uma cópia do vilão Kraven, do Homem-Aranha, da Marvel Comics, editora co-irmã da DC. Categorias: autor-personagem, metalepse, intertextualidade. #26, p. 16. Figura - Animal Man #26, p. 16.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Grant Morrison entrelaça as duas mãos e encosta dois dedos (um de cada mão) em seu nariz. Em um close, ele ergue a sobrancelha esquerda e pondera sobre a necessidade de agradecer algumas pessoas - já que aquele é seu último número que ele escreve na revista. Nos quadros seguintes, enquanto o escritor começa a agradecer os editores e artistas que trabalharam com ele durante as últimas 26 edições, o Homem Animal batalha, com seus poderes nulificados, os dois personagens vilanescos que o cercam. Os balões do roteirista quase cobrem a própria ação.
103 No segundo quadro, o protagonista é mordido na coxa direita por Matadouro, enquanto dá um soco no outro antagonista - deste, apenas pode se ver uma perna, pois Morrison está na frente da ação, num enquadramento que somente o "capta" do peito à cabeça. Em seguida, o herói consegue erguer o meio-tubarão sobre sua cabeça. O quadro abre mais a cena, mostrando o campo à volta da ação em segundo plano, mas as pernas do roteirista são cobertas com uma de suas falas. Na sequência, Homem Animal arremessa Matadouro para fora do quadro (no que a forma do vilão subverte o formato do quadro), e exclama: "Eles estão me matando!" Em meio aos agradecimentos, o roteirista ordena que o protagonista se cale. No último quadro, o antagonista cabeludo recupera-se, e desfere um soco certeiro de direita contra o abdômen do herói; ele tem uma nova frase interrompida pelo golpe. A cena é retratada de outro ângulo, pois Grant Morrison está ao fundo desta vez. Efeito: o autor parece estar despreocupado em relação à briga do protagonista com os outros dois personagens; este poderia ser um recurso semelhante ao explicitado pelo escritor algumas páginas atrás, quando pediu que o desenhista retratasse coisas que não estabeleciam nexo com a história, apenas para que a cena ficasse mais interessante para o leitor. Dessa forma, mesmo que o Homem Animal esteja sendo gravemente ferido na cena, esta é uma ação que fica em segundo plano, concorrendo com a explanação de Morrison sobre as pessoas que merecem o seu "obrigado". Categorias: autor-personagem, metalepse, mise en abyme, autoconsciência.
#26, p. 17, quadros 2, 3 e 4. Figura - Animal Man #26, p. 17.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: no segundo quadro (acima, à direita), Grant Morrison está quase finalizando seus agradecimentos. O Homem Animal se arrasta pelo chão; seus óculos saíram do lugar, seus olhos estão quase fechados, e ele ergue a mão, enquanto sangue escorre de sua boca e surge em profusão de um buraco na perna direita. Sua voz, representada em letras miúdas, pede ajuda. No centro da página, a mão trêmula do herói é focada num close, em um quadro redondo, com bordas não muito definidas. Outro balão é atribuído a ele: "Por favor."
105 Na cena seguinte (em baixo, à esquerda) Grant Morrison aparece para dar um último aviso, enquanto uma mancha de sangue aparece no canto do quadro. O escritor fala: "Antes que eu me vá, quero impelir qualquer um que se importe com o abuso dos animais, que se junte ao Peta, um grupo envolvido em campanhas ativas e não-violentas em favor dos animais. É Pessoas Para o Tratamento Ético dos Animais, P.O. Box 42516, Washington, D.C., 20015. Ok?" Efeito: a tensão sobre o destino do herói vai sendo levantada até o terceiro quadro, quando a representação do autor surge com sua mensagem, dirigindo-se de maneira direta ao leitor. Poderíamos dizer que, como estas ações são planejadas por Grant Morrison, o conhecimento sobre a estrutura de construção da narrativa possivelmente permitiu a ele aproveitar a deixa dada pela temporalidade registrada em cada quadro, e então inserir sua fala ali, onde seria mais conveniente e atrairia mais atenção de seus leitores. Inclusive, o roteirista havia parado de falar sobre este assunto com o Homem Animal há algumas páginas, no que, em uma ordem de eventos mais orgânica, teria já soado fora de contexto. Esse tipo de coisa acontece, por exemplo, quando uma pessoa, após o término de um assunto, tenta trazê-lo à tona novamente devido a algum aspecto menor do tema em questão. O recurso em análise parece-se, por exemplo, com o controle do andamento de variadas narrativas audiovisuais. Em programas de auditório, apresentadores em geral são instruídos a realizarem suspense sobre determinados fatos, elevando o nível de tensão para, em seguida, chamarem o intervalo comercial antes de revelarem esse fator (como em Casos de Família, do SBT). Da mesma forma, em telenovelas, essa chegada ao clímax é feita entre episódios, instigando o telespectador a assistir o próximo capítulo para conhecer o desfecho do atual conflito. Finalmente, em desenhos animados japoneses (animes, como Dragon Ball Z, já exibido nas manhãs da Globo), esse controle é feito na metade de cada episódio de 23 minutos - geralmente entre o 10º e 12º minutos transcorridos -, inserindo somente um intervalo comercial, chamando a atenção do público no momento em que o marketing é inserido. Essa última estratégia, curiosamente, não é empregada na exibição dessas obras de animação no Brasil; há mais cortes, sendo o programa exibido em três blocos, como no canal de TV a cabo Cartoon Network, ou mesmo nenhum, como ocorre na Rede Globo. Categorias: autor-personagem, metalepse, intertextualidade.
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#26, p. 18. Figura - Animal Man #26, p. 18.
Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: com o Homem Animal no chão, aparentemente morto, Grant Morrison olha para trás, com os olhos semicerrados, e sentencia: "Levante-se. Não há nada de errado com você. É apenas uma história em quadrinhos." O protagonista fica de joelhos, esmurra o chão e olha para o roteirista, rangendo os dentes. Ele nega o fato trazido pelo roteirista, pois, para ele, esta é a
107 vida dele, e não "apenas uma HQ". Exclamando, ele chega a jogar pedras contra o escritor, que desvia com facilidade. O herói, então, senta-se no chão, com as pernas flexionadas, apoiando os dois braços sobre elas. Morrison fica a alguns passos, de pé. Ambos olham na direção de um bando de arbustos próximos e, por algum tempo, ficam sem dizer nada, até que Morrison quebra o silêncio. Ele diz que fez que tudo para salvar sua gata de estimação, Jarmara, quando ela esteve convalescida: levou-a ao veterinário às terças e quintas; alimentou-a com um contador, após liquefazer a comida; e, inclusive, rezou para que ela melhorasse. O roteirista continua a explicação, cruzando os braços, fechando os olhos e empinando o nariz. "E ainda assim havia uma parte de mim - a parte que observa e escreve - esfregando as mãos e dizendo, 'bem, pelo menos, se ela morrer, vou poder usá-la no Homem Animal. Isso vai adicionar um belo toque de mordacidade.'" Efeito: super-heróis podem escapar da morte e de quaisquer ferimentos com facilidade - desde que haja um bom motivo para tal. No caso, a representação do roteirista tenta mostrar como, na verdade, os personagens podem se manter incólumes frente a uma série de fatores que mataria as pessoas comuns (ou mesmo humanos com poderes especiais, se eles assim existissem no mundo real da maneira que se constituem na diegese). Por mais que as histórias de momentos das vidas desses seres estejam sendo contadas, existe um status quo a ser defendido pela narrativa, ao mesmo tempo em que ele vai sendo alterado com o ser prosseguimento. De certa forma, isso encontra paralelo nas formas como alguns estudiosos retratam o fazer jornalístico (carece de fonte), no que é retratado, contraditoriamente, que, ao mesmo tempo em que a notícia é uma busca pelos acontecimentos que estão para fora do status quo - tudo que é incomum, e, portanto, digno de ser noticiado -, ela também o reforça e transforma, de acordo com a periodicidade dos fatos incomuns de determinada natureza. Categorias: autor-personagem, metalepse, autoconsciência.
#26, p. 19 (completa) e 21 (quadros 1 a 3). Figura - Animal Man #26, p. 19.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013. Figura - Animal Man #26, p. 21.
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Fonte: <http:thepiratebay.sxtorrent8758837Animal_Man_Vol._1_by_Grant_Morrison>. Acesso em: 23 abr. 2013.
Técnica: Grant Morrison junta as mãos, mantém os olhos fechados, e encosta um dedo de cada mão na parte do nariz que fica entre os olhos, baixando a cabeça. Ele explica ao Homem Animal que todos os acontecimentos de sofrimento, dor e morte daquele mundo são apenas entretenimento para os habitantes do mundo real. "Por que o sangue e a tortura e a angústia ainda nos excitam?" O protagonista tenta compreender o conteúdo. Ele coloca a mão esquerda na testa franzida, e tem os lábios projetados na descendente. "Nós pensamos que, fazendo seu mundo mais violento, poderíamos fazê-lo ser mais 'realístico', mais
110 'adulto'. Se é isso que queremos dizer, Deus nos ajude. Talvez, de vez em quando, nós poderíamos tentar ser bondosos", aponta Morrison. Olhando para o herói, que está sentado, abraçado nas próprias pernas, o escritor lamenta a falta de tempo e espaço, declarando que não disse nada de útil. Ele diz que o Homem Animal deve voltar para casa, e esquecer que tinha o conhecido. O personagem pede para que ele fique, mas continua na mesma posição, enquanto o roteirista se transforma em uma forma em preto e branco, com algumas linhas sobre a face e a parte superior da figura. Nos últimos quadros, tudo se desfaz, e sobra apenas a imagem do Homem Animal em cena. Na página seguinte, entretanto, Buddy Baker é transportado de volta para sua casa após a conversa com Grant Morrison. Ao atender a campainha, ele fica boquiaberto ao ver quem chega. Ellen, sua esposa, está tirando os óculos, usando uma blusa e uma saia em tons de roxo e lilás, além de uma faixa no cabelo. Cliff usa uma regata preta, com as mangas rasgadas, bermudas jeans e tênis. Maxine está com um suéter com decalque de ursinho com uma gravata, calças azuis e também tênis. O cachorro da família também está ali. Ellen diz que se esqueceu das chaves. O Homem Animal somente consegue balbuciar o nome dela, questionando. Maxine chama a atenção da mãe, reclamando que seu irmão jogou seu brinquedo - um boneco do Gorilla Miller - para o cachorro. Cliff nega. O protagonista observa, paralisado, e sua esposa passa a mão na frente de seu rosto, lhe chamando a atenção. "Buddy? Oi! Alguém em casa?" O herói arregala os olhos, e esboça um meio sorriso no canto esquerdo da boca. Sua testa enruga-se. "Ellen... Eu devo ter dormido. Eu pensei que... Oh, Ellen... Eu tive o mais terrível sonho." Efeito: o roteiro, neste ponto, questiona a própria corrente da qual faz parte. A intenção de fazer quadrinhos mais adultos - que logo em seguida levaria a DC Comics a formar o selo Vertigo - pode ter sido uma recomendação editorial a todos os artistas envolvidos no reboot de 1985. A Era de Ferro dos quadrinhos, norteada por essa razão de aproximação das problemáticas do mundo real, trouxe mais armas de fogo, mais tramas sombrias, e mais morte do que antes às histórias de super-heróis. A representação do escritor pergunta-se se os humanos, ao criarem estes personagens de ficção, não deveriam ser mais bondosos: não seria o caso de não
111 se tentar passar para eles as angústias e as fores humanas, de forma a torná-las mais leves para os criadores do que para as criaturas? Esse ponto foi levantado anteriormente pelo próprio protagonista, logo após ter conseguido quebrar a quarta parede e ver o mundo por trás da obra ficcional (#19, p. 13, quadro 3): "Eu vi outro mundo, e ele era pior que este. Era como se eu vislumbrasse o Céu, e... E não era o Paraíso. Estava mais pra um Inferno." Apesar de sua representação ter negado o pedido do Homem Animal, o roteirista atendeu ao pedido dele, e trouxe sua família de volta do mundo dos mortos. A virada não tem nenhuma explicação, assim como a recente volta para casa do protagonista - o que preenche o título utilizado neste número (Deus Ex Machina) para além dos efeitos da coerência entre as últimas edições, atingindo a trama das 26 edições como um todo. Entretanto, ao contrário do que ordenara Morrison, o Homem Animal aparentemente não se esqueceu do ocorrido anteriormente - ou então, sua memória em relação aos fatos é seletiva, de acordo com a vontade do autor que o escreve e daqueles que o escreverão. Desse fato podem decorrer erros de continuidade, comuns na troca de escritores numa mesma série. Nem sempre os novos autores têm a oportunidade (ou mesmo o tempo) de reler tudo o que já foi publicado sobre o personagem cuja publicação assumem - para o Super-Homem ou o Batman, por exemplo, esse período pode abranger décadas. Essa passagem de Morrison pelo Homem Animal foi lembrada, entretanto, no #9 de sua nova série, criada após o novo reboot da DC, ocorrido em 2011. Animal Man vol.2 #9 (2012), com roteiro de Jeff Lemire e arte de Steve Pugh, mostra o protagonista se lembrando do "sonho" no qual conheceu seu criador (p.1). Isso se explica pelo que acontece em Animal Man #27, escrita por Peter Milligan e desenhada por Chaz Truog: em sua página 4, depois de acordar em uma cama de hospital, o médico explica ao Homem Animal que ele permaneceu em coma profundo por três meses. Categorias: autor-personagem metalepse, reviravolta aninhada.