U-507
O submarino que afundou o Brasil na Segunda Guerra Mundial
Marcelo Monteiro
U-507
O submarino que afundou o Brasil na Segunda Guerra Mundial
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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S774u Monteiro, Marcelo, 1972- U-507 : o submarino que afundou o Brasil na Segunda Guerra Mundial / Marcelo Luiz Monteiro dos Santos. - Salto, SP : Schoba, 2012. 344p. : 23 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-8013-121-5 1. Guerra Mundial, 1939-1945 - Brasil. 2. Guerra Mundial, 1939-1945 - Operações navais alemãs. 3. Guerra Mundial, 19391945 - Operações navais - Submarinos. 4. Naufrágios - Brasil História. I. Título. 12-0855. CDD: 940.545981 CDU: 94(100)”1939/1945” 13.02.12 24.02.12
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Dedicado às famílias de todos os brasileiros mortos durante a Segunda Guerra Mundial e às mais de 70 milhões de pessoas vitimadas pelo conflito.
Prefácio
A Segunda Guerra Mundial foi documentada como nenhuma outra na História. Foi estudada e reestudada através dos anos, registrada em ensaios e ficções, lembrada e minuciosamente revivida em memórias e depoimentos. E, mesmo assim, ainda restam detalhes não examinados, bastidores a serem explorados e fatos obscuros a serem esclarecidos, de uma guerra da qual se imaginava saber tudo. Este livro fascinante aborda episódios da Segunda Guerra Mundial, envolvendo especificamente o Brasil, que, se não foram exatamente esquecidos, nunca receberam a atenção que mereciam. Parte do seu fascínio vem da capacidade do autor de contar a história verdadeira como um bom “thriller”, concentrando-se no drama humano das vítimas e dos sobreviventes da agressão alemã, quando o Brasil ainda não se decidira a entrar no conflito. Incrivelmente, ainda há muito a ser revelado sobre uma guerra que terminou há quase 70 anos. Nossa sorte é que existem pesquisadores como o Marcelo Monteiro, disposto a lançar luz sobre as sombras que ficaram para trás, as histórias que ainda faltavam contar. Luis Fernando Verissimo
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Carta do Autor
Tragédia (re) visitada O projeto de U-507 – O submarino que afundou o Brasil na Segunda Guerra começou em uma manhã quente e ensolarada de 2008, em Valença. Em contato com o professor Edgard Otacílio da Silva Oliveira, historiador valenciano aficionado por Segunda Guerra Mundial, tomei conhecimento dos torpedeamentos dos cinco navios brasileiros na costa do Nordeste, uma importante página da história da qual eu quase nada sabia até então. Logo eu, um apreciador de filmes da Segunda Guerra desde a infância – ainda criança assisti inúmeras vezes a filmes como Fugindo do Inferno e O Desafio das Águias –, não sabia a razão pela qual o Brasil havia optado pela trincheira aliada. Nasceu, assim, o interesse por realizar uma série de reportagens sobre o assunto. Dentro de tal ideia, durante três anos e meio, realizei pesquisas bibliográficas e procurei por personagens nas cidades de Salvador, Valença, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília. Ao mesmo tempo, em entrevistas com historiadores e na leitura de mais de 30 livros e de dezenas de artigos, busquei entender o contexto político, social e econômico da época, explicando como se chegou àquela situa11
ção de antagonismo entre Brasil e Alemanha. Outros 60 filmes, vídeos e documentários complementaram o arcabouço histórico para o projeto, que cresceu e transformou-se neste livro. Com o objetivo de situar o leitor no ambiente dos anos 1940, também foram buscadas referências na propaganda, no cinema, na música e nas comunicações, mostrando um mundo completamente diferente do atual, em vários aspectos, do cultural ao social, do comportamental ao tecnológico. Em sete décadas, o Brasil e o mundo mudaram demais, e os acontecimentos aqui narrados precisam ser entendidos dentro do contexto de 1942 e não de 2012. Para alguém nascido nos últimos 20 anos, sob o advento da internet e das comunicações via satélite, é impossível imaginar que um acontecimento da dimensão dos afundamentos registrados entre 15 e 17 de agosto de 1942, que resultaram em mais de 600 mortes, possa ter virado notícia nos jornais apenas três dias depois. Nos anos 1940, o mundo girava a uma velocidade menor. Com base no livro Agressão – Documentário dos fatos que levaram o Brasil à guerra, passei madrugadas inteiras na internet em busca de pistas sobre onde poderiam estar residindo os sobreviventes de 1942, caso ainda estivessem vivos sete décadas depois dos naufrágios. Editada pela Imprensa Nacional, em 1943, a publicação é uma espécie de Bíblia sobre o assunto e traz os relatos de cinco náufragos – um de cada navio – e as listas dos passageiros salvos e mortos nos torpedeamentos de Baependy, Araraquara, Aníbal Benévolo, Itagiba e Arará. Foi em Agressão que baseei grande parte do trabalho de apuração de informações para este livro, principalmente a procura de sobreviventes de um episódio ocorrido na primeira metade do século anterior. Tal trabalho, eu sabia desde o início, poderia ser inútil. Afinal, depois de quase 70 anos, seria improvável encontrar alguém ainda vivo – e, ainda mais difícil – com lucidez e disposição suficientes para lembrar os fatos daquele distante e sangrento mês de agosto. Ao mesmo tempo, a tarefa era fascinante. A busca se iniciou por uma personagem em especial: Walderez Cavalcante, a menininha salva do naufrágio do Itagiba após permanecer 12
por horas boiando dentro de uma caixa de madeira, uma espécie de engradado, de leite condensado. Caso ainda estivesse viva (estaria com mais de 70 anos de idade) e eu a encontrasse, seria uma excelente entrevista. Em minhas pesquisas a partir dos catálogos telefônicos online, liguei para quase todas as pessoas que tinham o nome “Walderez” e o sobrenome “Cavalcante” em todas as regiões do País. Como se não bastassem os quase 70 anos decorridos, havia ainda outra dificuldade: se tivesse casado, Walderez poderia nem mais estar usando o sobrenome do pai e, sim, o do marido. Nas abordagens telefônicas, houve casos em que quem atendia ao telefone não era “a Walderez”, mas “o Walderez”. A todas essas pessoas, peço desculpas publicamente pelo incômodo. Mas foi por uma boa causa. Mais de dois anos depois, quando já havia perdido a esperança de encontrar a Walderez Cavalcante que buscava – com 74 anos de idade, deveria ter morrido, pensava eu – fiz uma tentativa desesperada jogando seu nome nas redes sociais. Para minha surpresa, lá estava dona Walderez, ostentando em seu perfil o orgulho de ser alagoana e de ter sobrevivido, de uma maneira heróica, à tragédia do Itagiba. A entrevista com ela foi publicada no Diário de S.Paulo, em 27 de março de 2011, como parte de uma reportagem de 10 páginas. Empolgado com a descoberta, intensifiquei a procura por Vera Beatriz do Canto, com quem Walderez fora fotografada dias após a tragédia, em 1942. A imagem das duas meninas, com cerca de quatro anos de idade, foi usada para ilustrar o livro Agressão. Para mim, encontrar Vera Beatriz e promover o seu reencontro com a náufraga alagoana depois de quase 70 anos seria essencial. Com sorte, menos de um mês após entrevistar Walderez, localizei dona Vera e consegui, semanas depois, realizar o emocionante reencontro das duas no Rio de Janeiro. Em suas entrevistas, Vera e Walderez somaram as suas próprias lembranças – poucas, naturalmente, em função da tenra idade – com as histórias e passagens contadas por seus pais nos anos que se seguiram aos fatos. A premonição da tragédia tida por Noêmia, mãe de Vera, 13
durante um sonho é um exemplo – dias antes do embarque no Itagiba, Noêmia acordara assustada, com a imagem de um barco de número 13, ocupado por centenas de pessoas vestindo preto. A entrevista com Vera, parte de uma reportagem de seis páginas sobre o reencontro das duas náufragas, foi publicada no Diário de S.Paulo, em 8 de maio de 2011. Em outro golpe de sorte, um fator que passou a se mostrar frequente na execução deste livro, descobri, durante a semana no Rio de Janeiro para o reencontro de Vera e Walderez, que vivia na cidade um outro sobrevivente, também do Itagiba, o tenente Dálvaro José de Oliveira, então presidente da Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira. Em 1942, Dálvaro era soldado do 7º Grupo de Artilharia de Dorso. Após o torpedeamento do navio, o carioca de Madureira jurou, junto com os colegas que sobreviveram, vingar aquela agressão inominável. Em 1944, ele embarcou para a Itália e ajudou os aliados a exterminarem o nazifascismo. Aos 90 anos de idade, o ex-militar tem uma lucidez impressionante. Nas várias entrevistas realizadas presencialmente e por telefone, Dálvaro contou, com riqueza de detalhes (frases, horários, clima, nomes de pessoas) tudo o que se passou desde a saída do Itagiba do Rio de Janeiro, em 13 de agosto, até o naufrágio e a chegada dos sobreviventes a Valença e, dias depois, a Salvador. Sobre os náufragos localizados e entrevistados para este livro, todos do Itagiba, é preciso explicar que, justamente por ter sido torpedeado durante o dia, o navio foi o que teve maior número de sobreviventes. Graças ao dia claro, as vítimas puderam ser socorridas pelo iate Aragipe, que conseguiu recolher mais de 150 pessoas. Outra dezena de náufragos alcançou a costa em barcos salva-vidas (baleeiras). Junto com o maior número de pessoas que escaparam com vida, há outra razão para ser mais fácil encontrar sobreviventes do Itagiba do que das outras embarcações. Baependy, Aníbal Benévolo e Araraquara foram torpedeados de surpresa durante a noite e a madrugada de 15 para 16 de agosto. Em tais condições, praticamente não havia chance de crianças – como Walderez e Vera Beatriz – sobreviverem. Tantas dé14
cadas depois, seria muito difícil encontrar ainda vivos e lúcidos sobreviventes que, em 1942, já fossem adultos. É possível que, com o advento deste livro, possam aparecer outras vítimas dos torpedeamentos. Torço, aliás, para que isso aconteça. Mas não se pode exigir que alguém com mais de 90 anos de idade, no caso dos náufragos que já eram adultos em 1942, tenha memória e energia suficientes para falar de um fato extremamente traumático, ocorrido há sete décadas. Neste particular, com tanta disposição e lucidez, acredito verdadeiramente que o tenente Dálvaro possa ser uma exceção. Ao saber da existência de Vera e Walderez, ele próprio emocionou-se e afirmou ser um dos remanescentes da tragédia. “Além de nós três, e eu nem sabia da existência delas, acho que tem apenas mais um náufrago ainda vivo.” Assim como os náufragos, outros personagens foram fundamentais para compor a narrativa deste livro. Em Valença, no sul baiano, na companhia do professor Edgard Otacílio da Silva Oliveira, foram entrevistados o médico Mustafá Rosemberg de Souza e os pescadores Valdemar do Rosário e Esmeraldo da Rosa. O primeiro, adolescente à época dos torpedeamentos, se entusiasmou com a profissão após ajudar a cuidar das vítimas dos torpedeamentos de Itagiba e Arará. Os últimos, também jovens em 1942, revelaram como o episódio afetou drasticamente a vida dos moradores da pacata localidade litorânea de Guaibim. Da mesma forma que os náufragos e os moradores de Valença remanescentes de 1942, outras entrevistas acrescentaram – e muito – para o livro. Edson Tito do Canto, sobrinho do capitão José Tito do Canto e confidente do ex-militar sobre os assuntos ligados à Segunda Guerra, trouxe à tona informações interessantes, como a espada perdida pelo militar no naufrágio do Itagiba. Herdada do pai, a arma era uma relíquia para o capitão, mas acabou no fundo do mar com o navio. Somam-se aos relatos de todos os personagens ainda vivos, as histórias narradas pelos náufragos nos dias seguintes aos afundamentos. Na segunda quinzena de agosto de 1942, as páginas de diversos jornais de todo o País trouxeram relatos extremamente ricos do episódio, feitos por quem sofreu na carne aquela agressão, ainda sob o frescor e o calor 15
da tragédia. Dos jornais, surgem preciosos depoimentos, como – só para citar alguns – o do médico Hélio Velloso, que, por ironia do destino, folheava o livro Náufragos no momento do ataque do U-507, e o de Vilma Castelo Branco, a única mulher entre os 28 sobreviventes do Baependy que chegaram à costa em uma baleeira. Tais narrativas só foram possíveis de serem colhidas em uma extensa e demorada pesquisa em acervos de jornais da época. Para este trabalho, foram visitados locais como a Biblioteca Pública do Estado da Bahia, em Salvador, o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em Porto Alegre, a Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira, em Brasília, a Biblioteca do Exército e a Fundação Casa de Rui Barbosa, ambas no Rio de Janeiro. Em complemento, também foram pesquisados alguns títulos disponíveis na internet. Em conjunto com as dezenas de depoimentos de náufragos, uma série de documentos oficiais ajudou a explicar como os fatos se sucederam naquele distante agosto de 1942. Mais do que as próprias notas oficiais expedidas pelos governos de Brasil e Alemanha e publicadas nos jornais, no entanto, uma peça teve valor fundamental – e definitivo – para o detalhamento dos episódios, o diário de bordo do U-507, com a assinatura do comandante Harro Schacht. Outro valioso documento do qual foram extraídas informações essenciais foi a carta enviada pelo comandante do Itagiba, José Ricardo Nunes, ao capitão José do Tito Canto, líder de um pelotão do Exército que viajava no Itagiba em direção a Olinda. Datado de 1944, o documento conta em detalhes o que se passou com Nunes e Tito do Canto durante o afundamento do navio na costa baiana. O comandante, quando o navio sucumbiu, tinha um apito em uma mão e um revólver na outra – chegou a disparar para o alto para chamar a atenção dos tripulantes e passageiros –, tentando organizar o trabalho de salvamento.
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Capa do diรกrio de bordo da terceira patrulha do U-507.
Revisão histórica Todo o emaranhado de informações levantadas para esta publicação foi cuidadosamente costurado, de forma a encaixar cronologicamente os relatos de todos os sobreviventes, bem como os documentos oficiais e os dados do diário de bordo do submarino nazista. E, embora esta obra não tenha a pretensão de reescrever a história – trata-se de um livro-reportagem e não de um livro de história –, a profundidade do trabalho de apuração permite afirmar que, em sete décadas, muitas informações equivocadas relativas aos torpedeamentos de agosto de 1942 foram perpetuadas como verdades incontestáveis, nunca questionadas ao longo de todo este período. Em todos os relatos posteriores sobre o episódio, começando pelo próprio livro Agressão, de 1943, menciona-se que, à exceção dos navios Itagiba e Arará, atacados na manhã do dia 17 de agosto, todos os outros três navios teriam sido afundados com dois torpedos. Entretanto, o diário de bordo do U-507 deixa claro que apenas no caso do Baependy foram disparados dois torpedos. Isso porque, escaldado com as recentes falhas nos tubos de lançamento dos torpedos – minutos antes de mandar o Baependy a pique, dois tiros haviam sido desperdiçados –, o capitão de corveta Harro Schacht decidiu mandar logo dois projéteis para assegurar-se de que o navio iria afundar. Assim, o comandante poderia sair rapidamente em direção à outra embarcação que acabara de avistar, o Araraquara, que viria a ser a sua próxima vítima. No caso do Araraquara, no qual os poucos sobreviventes afirmavam ter ouvido o estrondo de um segundo torpedo, a explicação é simples: com o peso do mar sobre a popa, o navio partiu-se em dois, causando um rugido ensurdecedor, semelhante ao de uma explosão. Para os já assustados náufragos, na ânsia de tentarem salvar a própria vida, aquele estouro pareceu mesmo o de um segundo torpedo. E, até que as anotações de Schacht viessem à tona detalhando a quebra do navio em dois pedaços, a versão dos dois torpedos seria disseminada durante décadas. 18
Já no caso do Aníbal Benévolo, o efeito causado pelo primeiro disparo foi tão rápido – segundo os registros de Schacht, a embarcação afundou em apenas 45 segundos após o torpedeamento – que um segundo tiro sequer seria necessário. Conforme o comandante, o navio estava navegando visivelmente pesado, aparentando estar abaixo do seu calado normal, o que pode ter ajudado a fazer com que desaparecesse nas águas tão imediatamente. Da mesma forma que no Araraquara, a versão de que dois torpedos teriam atingido o Aníbal Benévolo partira dos poucos sobreviventes, mas, no diário do U-507, consta apenas um disparo. É claro que se pode contestar a veracidade das informações registradas por Harro Schacht, já que o fato de não ter registrado os dois torpedos poderia ser uma estratégia política para que a ação fosse vista como menos brutal e mais aceitável do ponto de vista bélico, uma vez que as vítimas eram navios mistos – além de carga, transportavam também centenas de passageiros. Fosse mesmo verdadeira a versão de que foram disparados dois torpedos em todos os navios, Schacht teria, com isso, certamente reduzido as chances de sobrevivência dos passageiros e tripulantes, embora o segundo torpedo fosse desnecessário para o afundamento dos navios. Em outras palavras, o comandante teria agido com extrema desumanidade. Completando a aura diabólica construída ao redor de Schacht em 70 anos, espalhou-se pelo Brasil a notícia de que os náufragos dos navios atacados durante a noite e madrugada de 15 para 16 teriam sido metralhados nas baleeiras ou enquanto se debatiam na água. Embora nenhum dos sobreviventes, seja no livro Agressão ou mesmo nos depoimentos prestados aos jornais, tenha mencionado tal fato, a informação que chegou ao Rio sobre o suposto metralhamento – dada por “um passageiro de um avião de carreira”, cujo nome sequer é mencionado – espalhou-se pelo País e, ao longo dos anos, sedimentou-se como verdade. Para tentar entender o que se passava na cabeça do comandante nazista, pode-se voltar no tempo, até alguns meses antes dos ataques na costa brasileira. Em maio, durante sua patrulha pela costa dos Estados 19
Unidos, Schacht chegou a disparar dois torpedos contra um mesmo cargueiro, o navio-tanque Munger T.Ball, assim como não hesitou em usar as metralhadoras de convés contra os náufragos que se debatiam na água, como no caso do ataque ao petroleiro americano Federal. Tudo isso foi claramente narrado, sem meias palavras, em seu diário de bordo, o que indica que, para Schacht, não havia um empecilho moral para que lançasse dois torpedos ou mesmo ordenasse o metralhamento dos náufragos. As decisões eram meramente técnicas. Uma vez que havia uma ordem de ataque contra os navios inimigos – e as premissas para tais ataques também ficam evidentes em seu diário –, não havia qualquer limite para suas ações. Era ele, Schacht, quem estava no comando do U-507 e, assim, cabia a ele definir como seriam feitas as abordagens. Especificamente sobre a questão dos supostos disparos de metralhadora contra náufragos, um episódio em particular parece eliminar qualquer dúvida sobre as reais motivações de Schacht. No momento em que o iate Aragipe seguia para o litoral, levando cerca de 150 náufragos do navio Itagiba, o comandante admite que até pensou em utilizar as metralhadoras e as armas de deck contra a inofensiva embarcação, carregada de homens, mulheres e crianças recém-resgatados – uma clara violação aos princípios humanitários mais elementares até mesmo em tempos de guerra. Entretanto, prossegue Schacht, tal medida não foi adotada somente porque, acreditava ele, havia o risco de um ataque aéreo por parte da aviação brasileira. Para usar as armas de deck, seria necessário que o U-507 subisse à superfície, ficando exposto a eventuais disparos de aviões. Logo, conclui-se que a decisão de não usar as metralhadoras não foi tomada por escrúpulos humanitários ou por razões políticas, mas puramente por uma impossibilidade técnica. Por isso, não se pode duvidar da veracidade das anotações do comandante no que tange ao uso de dois torpedos ou de metralhadoras. Se pudesse ou quisesse usá-las, ele o teria feito (e registrado) sem constrangimentos. Schacht era um técnico, que apenas cumpria ordens, um homem 20
frio, a quem não importava o eventual sofrimento de suas vítimas. Mas, ao bem da verdade, no caso dos navios brasileiros, o que parece é que, embora o número de vítimas tenha sido imenso (mais de 600 mortos), se Schacht tivesse realmente mandado metralhar as baleeiras de Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo, como se chegou a noticiar, as perdas humanas teriam sido ainda maiores. E ainda mais significativas se o iate Aragipe, abarrotado de náufragos, fosse alvejado. Outra informação perpetuada por anos que se torna questionável com a análise do diário de bordo do U-507 é o suposto saqueio da barcaça Godiva. Embora tenha sido noticiado sem maiores detalhes por alguns veículos da época e, posteriormente, registrado por muitos historiadores, o fato não é mencionado por Harro Schacht. Novamente, é preciso buscar auxílio em uma situação análoga para tentar explicar o silêncio do comandante. No dia 19, quando o submarino interceptou e saqueou a barcaça Jacira, as informações foram relatadas detalhadamente no diário. Schacht descreve hora, local e forma de abordagem (com granadas e rajadas de metralhadora para o alto). Logo, não há razões para se acreditar que o capitão de corveta tenha decidido ocultar um suposto saqueio da Godiva, porque, uma vez que o ataque à Jacira foi registrado, novamente, não se nota nele um empecilho moral para esse tipo de ação. Mais lógico, parece, incluir o ataque à Godiva no pacote que reúne uma enxurrada de inverdades apócrifas publicadas nos dias seguintes aos torpedeamentos e que, por falta de uma investigação mais apurada, entraram para a história como verdades absolutas. Além da frieza, clareza e objetividade com que narra o seu cotidiano no U-507, outra razão para que se acredite em Schacht é a inclusão em seu diário de um fato nunca noticiado no Brasil, talvez, exatamente, porque só haja registros oficiais do lado agressor. No dia 17 de agosto, horas depois dos ataques ao Itagiba e ao Arará, outra embarcação de grande porte, possivelmente brasileira, foi torpedeada na costa baiana, mas não afundou por uma possível falha no dispositivo de detonação. Ao que parece, nem mesmo os tripulantes de tal navio, “um vapor, pintado de cinza claro”, parecem ter percebido o ataque do submarino nazista. 21
Embora riquíssimo em informações, especialmente no que se refere às tripulações dos cinco navios atacados entre os dias 15 e 17 de agosto, o livro Agressão, peça institucional do governo brasileiro, ajudou a espalhar algumas das inverdades transmitidas por 70 anos. “De receber dois torpedos, um em cima do outro, escaparam os navios que navegavam ao sul da Bahia”, diz a publicação, após afirmar que Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo teriam sido atingidos por dois projéteis. Outro factóide estampado nas páginas da publicação oficial afirmava que, entre as vítimas dos torpedeamentos, havia “romeiros que se destinavam ao Congresso Eucarístico de São Paulo”, um evento que seria realizado em setembro. A partir de uma análise muito rasteira, é possível concluir com certeza que seria impossível haver romeiros em direção ao evento. Dos cinco navios atingidos, quatro viajavam do Sudeste para o Norte e Nordeste. Ou seja, iam no sentido contrário ao que seria natural se viajassem para São Paulo. A única embarcação que se dirigia para o Sudeste, o Arará, um navio carregado de sucata, tinha Santos como destino final, mas levava apenas os seus 35 marinheiros. Tratando-se de um país com uma população extremamente religiosa, especialmente entre as camadas mais baixas, é possível que tal boato não tenha sido um erro de apuração jornalística, mas sim uma versão elaborada, propositadamente, com o sentido de aumentar ainda mais a revolta popular e a consequente mobilização do País para a guerra. De toda forma, é uma versão que, passadas tantas décadas, permanece intocada e que, ainda que tardiamente, precisa ser corrigida. Por fim, uma outra questão que muito incomodou os brasileiros em 1942 também parece encontrar respostas no diário de bordo do U-507. Devido a um problema no abastecimento de água no porto de Salvador, Baependy, Araraquara e Aníbal Benévolo tiveram suas partidas atrasadas, saindo do porto em um intervalo de poucas horas, facilitando o trabalho do U-507, que acabou por afundar os três em apenas sete horas. Na época, a “coincidência” foi questionada. Autoridades e comandantes dos navios chegaram a afirmar que o problema teria sido cau22
sado por uma sabotagem, levada a efeito como forma justamente de fazer com que os três navios fossem afundados praticamente juntos. O comando da Marinha alemã, acreditavam os brasileiros, saberia dos horários de partida e dos cursos das três embarcações. O exame do diário de bordo do U-507, porém, mostra que Schacht recebeu, sim, uma ordem clara do comando da Marinha alemã para vigiar a saída do porto de Salvador. Entretanto, a ordem só foi registrada às 7h15min do dia 16, três horas depois do ataque ao Aníbal Benévolo, o último dos três navios afundados naquela noite. Ou seja, se tal informação sobre as embarcações brasileiras partiu realmente do Brasil, chegou depois de os ataques terem sido consumados. Mais do que contribuir para esclarecer eventuais discrepâncias históricas, no entanto, o objetivo deste livro é contar os detalhes de um drama gigantesco, muito pouco (ou quase nada) conhecido dos brasileiros, parte relevante de nossa história recente. Os torpedeamentos de agosto de 1942, que dizimaram famílias inteiras, marcaram para sempre as vidas de centenas de sobreviventes e jogaram o Brasil no maior conflito bélico da história, não podem ser esquecidos. A partir de suas dolorosas lembranças, devemos fazer o possível para que fatos como esse nunca mais se repitam. Boa leitura! Marcelo Monteiro
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Sumário
Introdução: Um duro golpe na indecisão.......................................... 25 I. A misteriosa premonição............................................................... 35 II. Um pirata à espreita..................................................................... 51 III. Baependy e Araraquara: uma noite de terror............................... 75 IV. Aníbal Benévolo: covardia na madrugada.................................. 119 V. Itagiba e Arará: manhã sangrenta na Bahia................................. 135 VI. Comoção e revolta nacionais.................................................... 183 VII. Jacira: a sexta vítima do corsário nazista.................................. 225 VIII. Cadáveres putrefatos no litoral............................................... 239 IX. A esperada declaração de beligerância....................................... 261 X. A mobilização para a guerra....................................................... 283 Glossário de termos náuticos.......................................................... 321 Referências..................................................................................... 325
Introdução
Um duro golpe na indecisão Sete décadas depois de o presidente Getúlio Vargas enviar a Força Expedicionária Brasileira ao front europeu, as razões que levaram o País a entrar na Segunda Guerra Mundial ainda são alvo de grandes discussões. Durante muitos anos – e principalmente no período do conflito –, o Brasil posicionou-se como uma vítima de uma série de atentados inesperados, covardes e traiçoeiros, impelida pelas circunstâncias a lutar por sua honra e a buscar a vingança nos campos de batalha. Uma análise mais distanciada da emoção que tomou conta da nação naquele agosto de 1942, quando mais de 600 brasileiros morreram nos afundamentos de cinco navios na costa nordestina, mostra que, sim, o Brasil foi vítima de atentados covardes e traiçoeiros. Entretanto, levando-se em conta a postura do governo brasileiro, tais ataques nunca poderiam ser classificados – como foram – de inesperados. Desde os primeiros anos do conflito mundial, deflagrado em 1939, o Brasil mantinha-se oficialmente como um país neutro. Mais próximo 27
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ideologicamente dos regimes totalitários alemão e italiano do que da democracia norte-americana, o ditador brasileiro era visto na política internacional como um possível parceiro do Eixo caso resolvesse tomar partido no conflito. Apelidada de “Polaca”, a Constituição outorgada por Vargas em 30 de novembro de 1937, inclusive, inspirava-se nas leis fascistas do polonês Józef Pilsudski, morto em 1935, e incluía artigos claramente copiados do regime italiano de Benito Mussolini, o que aproximava ainda mais o Brasil das ditaduras europeias, ao menos do ponto de vista ideológico. Outro fato que demonstrou a proximidade com o Eixo foi a deportação, a pedido de Berlim, da judia Olga Benário, militante comunista de origem alemã, companheira de Luís Carlos Prestes. Por outro lado, a presença de Oswaldo Aranha, ex-embaixador do País em Washington e, desde 1938, ministro do Exterior, garantia aos Estados Unidos um sólido alicerce dentro do governo brasileiro. Além disso, durante os primeiros anos do conflito, as vantagens comerciais oferecidas pelo livre comércio, o financiamento da Companhia Siderúrgica Nacional e o aparelhamento militar brasileiro com recursos americanos – apenas para citar algumas razões – aproximaram decisivamente o Brasil dos Estados Unidos. Até Walt Disney fez sua parte para promover a aliança entre os dois países. Hospedado no Copacabana Palace Hotel, no Rio, no começo dos anos 1940, o produtor e cineasta americano criou o personagem Zé Carioca, um retrato estereotipado do brasileiro, visto pelos irmãos do norte como um sujeito preguiçoso, mas, ao mesmo tempo, divertido. Em 1941, a criação do Ministério da Aeronáutica e da Força Aérea Brasileira, também com participação decisiva americana, selou de vez um possível pacto em caso de entrada dos dois países na guerra. No fim daquele mesmo ano, em dezembro, o ataque japonês a Pearl Harbor precipitou o ingresso dos Estados Unidos no conflito. Um mês depois, em janeiro de 1942, o Brasil rompeu relações diplomáticas com o Eixo. O gesto, que enfureceu Adolf Hitler, foi o marco para a escalada de agressões e intimidações que se seguiram, tornando irrever28
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sível a opção de Getúlio Vargas pelo lado norte-americano. No início de 1942, os alemães realizavam uma intensa campanha submarina no Atlântico, a chamada operação Rufar dos Tambores (Paukenschlag), visando a impedir a chegada de suprimentos à indústria bélica americana. Após o rompimento de relações diplomáticas entre os dois países, os navios brasileiros – muitos deles carregados de borracha, usada em esteiras de tanques e em correias de motores – passaram a ser vistos como alvos extremamente aprazíveis para os submarinos nazistas. Em 15 de fevereiro, o cargueiro Buarque foi o primeiro a ser atacado, próximo à costa americana. Depois disso, seguiu-se uma série de torpedeamentos a embarcações nacionais. Até julho, 15 navios brasileiros haviam sido atingidos, todos fora da costa do País, totalizando 136 mortos. Àquela altura, os diplomatas alemães já não se esforçavam para justificar supostos enganos nos ataques a embarcações brasileiras. Nas entrelinhas, a mensagem era clara: não havia engano algum – e o Brasil estava pagando o preço por sua escolha. Para que Getúlio se desse conta de que não havia como voltar atrás em sua opção pela trincheira aliada, faltava apenas um acinte à soberania nacional, um ataque deliberado a uma cidade brasileira ou a embarcações nacionais na costa do País. Entre 15 e 17 de agosto, Hitler deu a Vargas o empurrão que faltava para que este descesse do muro de sua hesitação. Após o torpedeamento de cinco navios na costa nordestina, em um intervalo de menos de 72 horas, o povo tomou as ruas e exigiu a entrada do Brasil na guerra. Por todo o território nacional, estudantes, sindicalistas, políticos e empresários manifestaram sua revolta contra os atentados. Em várias cidades, empreendimentos comerciais pertencentes a imigrantes do Eixo foram depredados. Placas com nomes italianos foram arrancadas e bandeiras nazistas, queimadas em praça pública. No Rio de Janeiro, estudantes passaram a perseguir os colegas de origem italiana, alemã e japonesa. Sem saída, Getúlio Vargas declarou estado 29
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de beligerância ao Eixo em 22 de agosto. Curiosamente, repetia-se o roteiro de 1917, quando, depois de ataques de submarinos alemães a vapores brasileiros, o País decidira entrar na Primeira Guerra Mundial. Na ocasião, forçado por uma imensa revolta popular, o presidente Venceslau Brás optou pela trincheira aliada. Vinte e cinco anos, chegava a hora de Getúlio Vargas tomar uma atitude. Com o orgulho novamente ferido por um U-Boot, o Brasil abandonou definitivamente a neutralidade e, em 31 de agosto, declarou guerra à Alemanha e à Itália.
O ano em que entramos na guerra Para entender o contexto dos acontecimentos relatados neste livro, é preciso situar-se em uma época completamente diferente, principalmente dos pontos de vista cultural e tecnológico. Sete décadas atrás, as fontes de informação resumiam-se ao rádio e aos jornais. A TV só chegaria ao Brasil em 1950, trazida pelo empresário Assis Chateaubriand e, ainda assim, estava longe do que se pode chamar de veículo de comunicação de massa, uma vez que, inicialmente, poucos eram os brasileiros que tinham condições de adquirir a novidade. Já a Internet não existia nem nos melhores sonhos dos mais ousados inventores da época. Se hoje é possível ouvir rádio no carro, no celular ou via satélite, nos anos 1940, o – ainda hoje – mais ágil dos meios de comunicação não tinha agilidade alguma. Maior parte dos modelos de aparelhos valvulados, que pesavam o mesmo que um fogão, raramente saía da sala de estar, onde as famílias reuniam-se para ouvir música – Tico-tico no fubá, composta em 1917 por Zequinha Abreu, era um dos sucessos da época, regravado por Carmen Miranda em 1939 – ou as últimas notícias do mundo lá fora. O transistor, que possibilitaria a criação de aparelhos menores, só
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surgiria em 1947, dois anos depois do fim da Segunda Guerra. Já o primeiro rádio de pilha e portátil só foi apresentado ao mundo em 1954. Os jornais também desempenhavam um grande papel na disseminação das informações entre a população. Entretanto, pelo fato de chegarem às casas dos leitores com pelo menos um dia de atraso em relação ao exato momento em que os fatos se sucediam – ao contrário do rádio, da TV e da Internet, que hoje conseguem ser quase instantâneos –, os diários contribuíam, como os carros de boi e as poucas estradas pavimentadas, para a letargia das notícias até sua chegada à população em todo o território nacional. Como se não bastasse, informações relacionadas a assuntos nacionais eram controladas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão do governo federal. Como todo ditador que se preze, Vargas vigiava cuidadosamente o trabalho da imprensa. Nos anos 1940, o mundo, definitivamente, era muito diferente dos dias atuais. Mesmo em cidades quentes e litorâneas como a então capital federal, Rio de Janeiro, a maioria dos homens vestia-se com alguma classe, trajando ternos bem alinhados, que muitos combinavam com elegantes chapéus. Entre as mulheres, eram comuns os chapéus e os lenços. Nas ruas, roncavam automóveis importados, montados no Brasil, como o Ford Lincoln, o Chrysler Airflow e o Chevrolet “Cabeça de Cavalo”. Na guerra, como no dia a dia, as coisas também eram muito diferentes. Se hoje os conflitos são travados com mísseis supersônicos, durante a Segunda Guerra os embates se davam com tanques, canhões, revólveres, pistolas, submetralhadoras e granadas. Nas águas, palco da carnificina dos navios Baependy, Araraquara, Aníbal Benévolo, Itagiba e Arará, o sonar – instrumento usado na detecção de obstáculos sob a água – não era tão eficiente e raras eram as embarcações que contavam com o dispositivo (geralmente só os navios de escolta). Somente a partir de 1943 é que os mecanismos de defesa seriam aperfeiçoados, ajudando a localizar e neutralizar os submarinos alemães. 31
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Além do próprio sonar, que mais tarde passaria a detectar até mesmo U-Boots (abreviação de “unterseeboot”) com motores desligados, os aliados ainda aperfeiçoariam seus sistemas de radar e desenvolveriam equipamentos capazes de localizar os submarinos a partir de suas transmissões de rádio. Contudo, até que isso acontecesse, centenas de navios – como os brasileiros – e milhares de pessoas já haviam sido sacrificados pelos ataques dos submersíveis. De dentro das embarcações inimigas, os nazistas monitoravam as transmissões de rádio dos navios aliados, especialmente nas frequências de emergência internacional. Graças à interceptação de mensagens telegráficas e de informações repassadas pelo serviço secreto alemão, os comandantes sabiam se havia barcos em seu raio de ação e, depois de localizá-los – alguns U-boots (em inglês, “U-boat”, de “undersea boat”) dispunham de radares –, apenas aguardavam o momento exato de disparar seus torpedos. Do outro lado, sem detectar a presença inimiga, as embarcações aliadas tornavam-se alvos fáceis quando localizadas. Sem perceberem a proximidade dos submarinos, eram rastreadas por horas sem desconfiar de nada, até serem impiedosamente atacadas, sem a menor chance de defesa. Ao ler este livro, imagine-se dentro desse ambiente, diferente, mas dolorosamente real, no contexto de um conflito que viria a ser o mais letal de todos os tempos, causando a morte de 70 milhões de pessoas. A seguir, confira alguns dos principais fatos de 1942, o ano em que entramos em guerra. Brasil • Inaugurada a Ponte das Bandeiras, em São Paulo. Com um vão de 60 metros sobre o rio Tietê, a estrutura custou à Prefeitura 4.500 contos de réis. • Em 5 de julho, é inaugurada a cidade de Goiânia. Política 32
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• Em 9 de agosto, Mahatma Gandhi é preso, junto com outros dirigentes do Congresso Nacional da Índia. Música • Em 7 de agosto, nasce Caetano Veloso. • Nas rádios, Ataulfo Alves faz sucesso com o samba Ai, que saudade da Amélia, parceria com Mário Lago. • Nos Estados Unidos, o trompetista Dizzy Gillespie compõe A night in Tunisia, considerado até hoje um dos maiores clássicos do jazz. • Surge White Christmas, de Bing Crosby, uma das canções de Natal mais executadas em todos os tempos, com mais de 50 milhões de cópias vendidas. Cinema • Lançados o filme Casablanca e o desenho animado Bambi, de Walt Disney. • Nos cinemas do Brasil, um dos filmes em cartaz é O grande ditador, de Charlie Chaplin, lançado em 1940. Quadrinhos • Lançado em maio de 1939, na revista Detective Comics, Batman aparece no Brasil pela primeira vez, no Globo Juvenil, com o nome de Morcego Negro. Mais tarde, ele passaria a chamar-se Homem Morcego. Esporte • Devido à guerra, a Copa do Mundo não é realizada. • Por causa da identificação com o Eixo, o Palestra Itália passa a chamar-se Sociedade Esportiva Palmeiras. O clube, aliás, conquistou o Campeonato Paulista daquele ano. • O jornalista Thomaz Mazzoni, de A Gazeta Esportiva, batiza o clássico entre Corinthians e São Paulo de “Majestoso”. O jogo, 33
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que marcou a estreia de Leônidas da Silva no Tricolor e terminou empatado em 3 x 3, em 7 de março de 1942, teve um público de 70.281 pessoas no Pacaembu. Estado AL AM BA CE DF ES MA MG PA PB PE PI PR RJ RN RS SC SE SP
Campeão CSA Nacional Galícia Ceará Flamengo Rio Branco Sampaio Corrêa Atlético Mineiro Paysandu Ástrea Sport Flamengo Coritiba Royal América Internacional Avaí Cotinguiba Palmeiras
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Economia • Em 18 de abril, é fundada, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, a primeira fábrica da Coca-Cola do Brasil.
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Capítulo I
A misteriosa premonição
Quinta-feira, 13 de agosto de 1942. Faltam 11 minutos para a saída do Itagiba. Muitos retardatários ainda sobem ao navio da Companhia Nacional de Navegação Costeira. A lavanda das colônias de banho mistura-se à maresia e ao adocicado perfume das rosas que alguns passageiros ganharam na despedida. Construída em 1915, na Inglaterra, a embarcação de mais de 2 mil toneladas prepara-se para seguir, mais uma vez, em direção ao Nordeste. Para muitos, a viagem significa o começo de uma nova vida. Dezenas de oficiais e soldados do Exército Brasileiro partem em definitivo para Pernambuco. Em breve, a cidade histórica de Olinda será a sede do 7° Grupo de Artilharia de Dorso. Na despedida, famílias inteiras acenam seus lenços para os passageiros. Vestidos em elegantes ternos, os homens – em sua maioria – também usam chapéus, que, além do trato no visual, tentam amenizar o calor de 32 graus que castiga o Rio de Janeiro. Ainda assim, transpiram sob o sol escaldante. As mulheres trajam longos vestidos, meio palmo abaixo do joelho, e sapatos com grossos saltos altos. Algumas usam len37
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ços, como uma espécie de turbante colorido. O batom da moda é o vermelho-sangue. Por estética ou simples proteção contra o sol, muitas senhoras e senhoritas apelam para vistosos chapéus, alguns com pequenas e esvoaçantes plumas. Os maiores, com flores ou delicados véus, são usados somente em ocasiões especiais como esta. Além deles, também há chapéus menores, de feltro, que, de alguma forma, inserem as moças no contexto militar. A cantoria dos soldados, aglomerados junto à balaustrada do Itagiba, invade o armazém 13 do porto da capital federal. Parte dos quase mil pares de olhos lá embaixo agora está prestes a chorar. Quem parte leva saudades de alguém, que fica chorando de dor. Por isso não quero lembrar quando partiu meu grande amor. Dezenas de jovens acenam para quem vai ficar. Querem chorar, mas sorriem, como um disfarce para a saudade que virá em breve. E cantam, a plenos pulmões, embalados pela pinga, que, secretamente, substitui a água dos cantis. Lá embaixo, ainda mais tocados pelas singelas frases tornadas célebres por Emilinha Borba, centenas de pais, amigos e namoradas querem sorrir. Muitos, porém, choram ao ver seus meninos partindo para tão longe: Ai, ai, ai, ai, está chegando a hora. O dia já vem raiando, meu bem, e eu tenho que ir embora... Incomodado com aquela canção pouco usual para uma despedida militar, o oficial Alípio Napoleão Andrade Serpa, de 24 anos, pouco mais velho que os subalternos, indaga ao grupo: – Por que vocês não cantam o Hino Nacional? – É uma música alegre, tenente – responde um dos soldados. – 38
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Queremos deixar o pessoal feliz. Para muitos daqueles garotos, porém, uma sugestão vinda de cima é sempre uma ordem. Na verdade, Alípio Serpa, subcomandante da tropa, quisera parecer sutil. A viagem está apenas começando. Não vale a pena criar uma indisposição com o grupo logo na saída. Mesmo assim, dois minutos depois, o comentário do oficial surte efeito. E os pracinhas prestam a sua homenagem à pátria, a culpada por estarem zarpando para longe de casa: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas De um povo heroico o brado retumbante, E o sol da liberdade, em raios fúlgidos, Brilhou no céu da Pátria nesse instante. Risonho até então, o soldado Dálvaro de Oliveira sente uma tristeza inesperada. Sempre gostara do número 13, pintado na fachada do armazém à sua frente. Contudo, de repente, aquela visão o deixa inquieto. Aos 22 anos, o carioca está indo para Olinda, que será a sua nova casa, a mais de 2.300 quilômetros do seu querido bairro de Madureira – e sabe-se lá por quanto tempo. No saco de viagem, umas poucas roupas, duas toalhas, uma surrada chuteira de futebol de seis travas e cano alto e uma foto da família – ele, os pais e os cinco irmãos na sua festa de 18 anos –, para matar a saudade.
Oficialmente neutro na guerra, o Brasil – e principalmente o Nordeste – é cobiçado pelas potências beligerantes como uma base de abastecimento, um possível trampolim entre a África e os Estados Unidos. Devido à proximidade com Dakar, no continente africano, Natal é visada pelos países que se utilizam da chamada “Cintura do Atlântico”. Os Estados Unidos, em especial, enxergam a região como um alicerce para sua estratégia de defesa. 39
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Por isso, em 1941, o Comando do Exército elaborou um plano de defesa da região. A ideia é manter uma estrutura apta a repelir qualquer tentativa de invasão estrangeira, fortalecendo a presença militar em cidades estratégicas como Natal, Maceió, Recife, Campina Grande e Cabedelo. A defesa da capital pernambucana, aliás, é um ponto nevrálgico. Próxima da ilha de Fernando de Noronha, rota de passagem das linhas de abastecimento para a América, a Europa e a África, Recife terá atenção redobrada, em um esquema que, além do Exército, contará com contingentes da Marinha e da Aeronáutica. Atendendo à solicitação dos generais, o presidente Getúlio Vargas ordenou o imediato fortalecimento das bases nordestinas. Exatamente por isso, a cidade histórica de Olinda – próxima a Recife – é uma das primeiras a terem seu contingente reforçado, com o estabelecimento do Grupo de Artilharia de Dorso. Além dos quase cem militares que viajam no Itagiba, outros 124 homens que farão parte da unidade já estão a caminho de Olinda, no Baependy, que partiu da capital dias antes. Mesmo neutro, o Brasil negocia com os Estados Unidos a criação de um comitê misto de defesa. A articulação dos dois governos é destaque nos jornais do dia, que informam a chegada em solo norteamericano do general Leitão de Carvalho, membro principal do grupo de oficiais do Estado Maior do Brasil, além de outros representantes do País. Carvalho e a esposa foram recebidos pelo general americano George Marshall, na residência deste, em Washington. Segundo a nota divulgada pelo Departamento da Guerra americano, as conferências de defesa serão presididas pelo general J.G. Ford. Os Estados Unidos já formaram comissões mistas de defesa continental com o Canadá e o México. O Brasil será a primeira nação sul-americana a firmar um pacto desse gênero com Washington. Pela transparência com que as notícias sobre os planos dos dois países vêm à tona, já não é mais segredo o lado para o qual o Brasil deve apontar seus poucos e modestos canhões caso entre na guerra, o que já não parece tão impossível como no começo das hostilidades, em 1939. 40
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Uma das razões para tal mudança de rumo foi a própria criação do Estado Novo, em 1937. Com o novo regime, Getúlio Vargas pretendia estabelecer uma identidade única no País, consolidando o Estado Nacional Brasileiro. Nesse sentido, criou uma forte campanha de nacionalização, que, ao mesmo tempo, procura abafar eventuais identidades regionais, como as decorrentes da imigração europeia. Os alemães e os italianos, com numerosas colônias – espalhadas principalmente pela região sul, mas com presença forte em outros pontos do território nacional –, são uma ameaça. Rumores indicam que Adolf Hitler e Benito Mussolini têm planos de implantar espécies de filiais de seus regimes no Brasil, que, após a guerra, pode ser dividido entre Alemanha e Itália. Assim, a manutenção de um forte vínculo das colônias com os seus países de origem representa um risco a mais para a segurança brasileira: o inimigo pode estar infiltrado. Vargas também tem outra razão para afastar-se dos italianos: em 1938, um levante integralista financiado por Roma tentou tirá-lo do poder. Em 11 de maio daquele ano, cerca de 80 militantes da Ação Integralista Brasileira, extinta com o advento do Estado Novo, atacaram sem sucesso o Palácio Guanabara. Depois da tentativa frustrada de golpe, cerca de 1.500 integralistas – que se cumprimentavam com o braço esticado, exatamente como os nazistas e os fascistas – acabaram presos, alguns foram fuzilados e o seu líder, o escritor, jornalista e político Plínio Salgado, foi exilado em Portugal. Em decorrência do episódio, Vargas colocou as barbas de molho em relação a Mussolini. E, por essas e outras, o presidente, aos poucos, divorciou-se dos regimes aos quais – acreditava-se – pudesse se aliar. A aproximação com Washington reflete a força do chanceler Oswaldo Aranha no seio do governo. Desde o começo da guerra, praticamente sozinho, o então ex-embaixador brasileiro nos Estados Unidos trava uma queda de braço com os líderes militares, que pregam uma aliança com os nazifascistas. O coro em favor do Eixo Berlim-Roma41
A misteriosa premonição
Tóquio, liderado pelo ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra e pelo general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, é engrossado pelo chefe de polícia do Distrito Federal do Rio de Janeiro, Filinto Müller, ardoroso fã de Heinrich Himmler, chefe da SS, unidade de elite das forças militares alemãs. Mas o chanceler, ao que parece, está vencendo a sua batalha solitária em favor dos ianques. Mesmo com tudo isso, um episódio ocorrido em 1940 quase colocou em xeque o visível afastamento de Vargas do ideário nazifascista. Em 11 de junho, um ambíguo discurso do ditador brasileiro para oficiais da Marinha pareceu, aos ouvidos do Departamento de Estado americano, uma ode à política expansionista do Eixo. Rapidamente, diplomatas brasileiros procuraram contornar a situação. Para eliminar qualquer dúvida, o governo apoiou a deliberação tomada pelos chanceleres do continente, em julho, em Havana, considerando um ato de agressão contra todos os países do hemisfério qualquer atentado de uma nação não americana à integridade de qualquer membro do pacto.
Hitler (D) e Mussolini tinham planos de ocupar parte do território brasileiro. 42