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Constelares: os aut么matos e a cidade dos sonhos


Constelares: os autômatos e a cidade dos sonhos Palavras chave: corpo, corpúsculo, máquina, maquinismo, autômato, automatismo, Orfeu, poder, potência, futuro pretérito, presente arcaico, catacumbas, sinais de trânsito, cinema, grafismos, Mabuse, grafismos, Lang, grafismos, Reich, arame, links, linhas, armadilhas, artimanhas, propaganda, desejo, fraturas. (...) Todos os processos das nossas sociedades caminham no sentido da desconstrução e dissociação da ambivalência do desejo. Depois de totalizada no gozo e na função simbólica, ela anula-se, mas segundo uma lógica idêntica em dois sentidos: toda a positividade do desejo se degrada na cadeia das necessidades e das satisfações, resolvendo-se em conformidade com a finalidade dirigida – toda a negatividade do desejo vai imporse na somatização incontrolável ou no “acting out” da violência. Desta maneira se esclarece a unidade profunda de todo o processo: nenhuma outra hipótese pode explicar a multiplicidade de fenômenos discordantes (abundância, violência, 2


euforia, depressão) que em conjunto caracterizam a “sociedade de consumo”; é verdade que se percebem como necessariamente interconexos, mas a sua lógica permanece inexplicável na perspectiva da antropologia clássica. (...) Já vimos que a teoria do corpo é essencial para a teoria do consumo – uma vez que o corpo constitui o resumo de todos estes processos ambivalentes: investido ao mesmo tempo narcisisticamente como objeto de solicitude erotizada, e investido “somaticamente” como objeto de preocupação e de agressividade” (BAUDRILLARD, 1975, p. 316-317) Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos.(BENJAMIN, 1996, p. 253) Maturidade do homem: significa reencontrar a seriedade que se tinha nas brincadeiras de infância (NIETZSCHE, 2005-b, p. 91).

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(...) La tendencia progresiva de la tasa general de ganancia a la baja sólo es, por tanto, una expresión, peculiar al modo capitalista de producción, al desarrollo progresivo de la fuerza productiva social del trabajo. Con esto no queremos decir que la tasa de ganancia, transitoriamente, no pueda descender también por otras causas, pero com ello queda demostrado, a partir de la esencia del modo capitalista de producción y como una necesidad obvia, que en el progreso del mismo la tasa media general del plusvalor debe expresarse en una tasa general decreciente de ganancia. Puesto que la masa del trabajo vivo empleado siempre disminuye en relación con la masa del trabajo objetivado que aquél pone en movimiento, con los medios de producción productivamente consumidos, entonces también la parte de ese trabajo vivo que está impaga y que se objetiva en plusvalor debe hallarse en una proporción siempre decreciente con respecto al volumen de valor del capital global empleado. Esta proporción entre la masa de plusvalor y el valor del capital global empleado constituye, empero, la tasa de ganancia, que por consiguiente debe disminuir constantemente. 4


(Marx, El Capital, Tomo III, Edição Eletrônica, p. 153) Durante um tempo considerável, a normalidade do mundo normal é a mais eficaz proteção contra a denúncia dos crimes em massa dos regimes totalitários. “Os homens normais não sabem que tudo é possível” e, diante do monstruoso, recusam-se a crer em seus próprios olhos e ouvidos, tal como os homens da massa não confiaram nos seus quando se depararam com uma realidade normal onde já não havia lugar para eles. O motivo pelo qual os regimes totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e fictício é que o mundo exterior nãototalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura, tanto quanto as massas diante do mundo normal. A repugnância do bom senso diante da fé no monstruoso é constantemente fortalecida pelo próprio governante totalitário, que não permite que nenhuma estatística digna de fé, nenhum fato ou algarismo passível de controle venha a ser publicado, de sorte que só existem informes subjetivos, incontroláveis e inafiançáveis acerca 5


dos países dos mortos-vivos. (ARENDT, 1990, p. 487) Ao Leitor A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez Habitam nosso espírito e o corpo viciam, E adoráveis remorsos sempre nos saciam, Como o mendigo exibe a sua sordidez. Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça; Impomos alto preço à infâmia confessada, E alegres retornamos à lodosa estrada, Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça. Na almofada do mal é Satã Trimegisto Quem docemente nosso espírito consola, E o metal puro da vontade então se evola Por obra deste sábio que age sem ser visto. É o Diabo que nos move e até nos manuseia! Em tudo o que repugna uma jóia encontramos; Dia após dia, para o Inferno caminhamos, Sem medo algum, dentro da treva que nauseia. Assim como um voraz devasso beija e suga O seio murcho que lhe oferta uma vadia, Furtamos ao acaso uma carícia esguia Para espremê-la qual laranja que se enruga. Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos, 6


Em nosso crânio um povo de demônios cresce, E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce, Rio invisível, com lamentos indistintos. Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada Não bordaram ainda com desenhos finos A trama vã de nossos míseros destinos, É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada. Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais, Aos símios, escorpiões, abutres e panteras, Aos monstros ululantes e às viscosas feras, No lodaçal de nossos vícios imortais, Um há mais feios, mais iníquo, mais imundo! Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito, Da Terra, por prazer, faria um só detrito E num bocejo imenso engoliria o mundo; É o Tédio! - O olhar esquivo à mínima emoção, Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado. Tu conheces, leitor, o monstro delicado - Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão! (BAUDELAIRE. Charles. As Flores do Mal.) Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia de catástrofe. Que “tudo continue assim”, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado. O pensamento de Strindberg, o 7


inferno não é nada a nos acontecer, mas sim esta vida aqui. A salvação se apega à pequena fissura na catástrofe contínua. (BENJAMIN, 2000, p. 174) A própria teoria filosófica não pode determinar se deve predominar no futuro a tendência barbarizante ou a visão humanística. Contudo, ao fazer justiça àquelas imagens e ideias que em determinadas épocas dominaram a realidade exercendo o papel de absolutos – por exemplo a ideia de indivíduo tal como predominou na época burguesa – e que foram abandonadas no curso da História, a filosofia pode funcionar como um corretivo da História, por assim dizer. Assim os estágios ideológicos do passado não seriam identificados simplesmente à estupidez e à fraude – tal como o veredito estabelecido contra o pensamento medieval pelo Iluminismo Francês. As explicações sociológica e psicológica das crenças antigas seriam distintas da condenação e supressão filosóficas das mesmas. Despojadas do poder que tinham em sua situação na época, serviriam para lançar alguma luz no rumo atual da humanidade. Assumindo esta função, a filosofia 8


seria a memória e a consciência da espécie humana, e deste modo ajudaria a evitar que a marcha da humanidade se assemelhasse à circulação sem sentido da hora de recreio de um manicômio. (HORKHEIMER, 2002, p. 186 – grifos meus) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento do perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição com os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança 9


se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1994, p. 224-5) (...) encontrei o instinto de arrogância, próprio dos teólogos, por toda parte onde, hoje em dia, alguém se sente “idealista” – por toda parte onde alguém, em virtude de sua mais elevada origem, se arroga o direito de olhar parar a realidade com superioridade e distância... O idealista, tal como o sacerdote, tem na mão todos os grandes conceitos (...) vê tais coisas abaixo de si como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais paira o “espírito” no puro ser-para-si (...) (NIETZSCHE, 1997, p. 21) Aqueles que, há tempo e com palavras sempre novas, querem sempre o mesmo: que não haja progresso, dispõem aí de pretexto mais perigoso. Ele se nutre do sofisma segundo o qual, já que até hoje não teria havido progresso, tampouco deveria havê-lo. Apresentam o triste retorno do mesmo, como mensagem do ser que deve ser captada e respeitada, enquanto, na realidade, o próprio ser a quem se atribui a mensagem é um criptograma do mito, liberar-se do qual equivaleria a uma parcela de liberdade. Na tradução do desespero histórico 10


em norma a ser seguida, ressoa mais uma vez o abjeto arranjo da doutrina teológica do pecado original, segundo o qual a corrupção da natureza humana legitimaria a dominação, e o mal radical, o mal. Esta mentalidade tem atualmente uma palavra-chave [Stichwort] para prescrever de forma obscurantista a idéia de progresso: a crença no progresso. O ‘habitus’ daqueles que tacham de positivista o conceito de progresso é, quase sempre, ele mesmo positivista. Eles apresentam o curso do mundo que, constantemente, tem revogado o progresso – no qual ao mesmo tempo, sempre consistiu – como instância para argüir que o mundo não tolera o progresso e que, quem não renuncia a ele, age mal. (…) (ADORNO-b, 1995, p. 51) (...) Anteriormente dizíamos: “Bom, nós temos inimigos. É a ordem natural das coisas. Porque um povo não teria inimigos?” Mas foi completamente diferente. Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto iria de alguma forma se ajeitar, como sempre pode ocorrer na política. Mas dessa vez não. Isso jamais poderia ter acontecido. E não 11


estou me referindo ao número de vítimas, mas à fabricação sistemática de cadáveres etc. – não preciso me estender mais sobre o assunto. Auschwitz não poderia ter acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar. Deixando isso de lado, devo dizer que a vida era por vezes um pouco difícil; nós éramos pobres, estávamos encurralados; tínhamos de fugir e viver de expedientes etc. Assim era. Mas éramos jovens e cheguei mesmo a encontrar naquilo um certo prazer, não posso dizer de outra maneira. Mas Auschwtiz era uma coisa completamente diferente. Como todo o resto, podia-se pessoalmente dar um jeito. (ARENDT, 2002, p. 135) Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, sublinhado pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor 12


operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliála. Os conceitos se reduziram a uma síntese das características que vários espécimes têm em comum. Pela denotação da semelhança, os conceitos eliminaram o incômodo de enumerar qualidades e servem melhor assim para organizar o material do conhecimento. São pensados como simples abreviações dos itens a que se referem. Qualquer uso dos conceitos que transcenda a sumarização técnica e auxiliar dos dados factuais foi eliminado como último vestígio da superstição. Os conceitos foram “aerodinamizados”, racionalizados, tornaram-se instrumentos da economia de mão-de-obra. É como se o próprio pensamento tivesse se reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma tivesse se tornado uma parte e uma parcela da produção. Toymbee descreveu algumas das consequências desse processo no ato de escrever História. Ele fala da “tendência para o oleiro tornar-se escravo do seu barro... No mundo da ação, sabemos como é desastroso tratar animais ou seres humanos como se eles fossem pedras e paus. Porque deveríamos supor que esse 13


tratamento fosse menos equivocado no mundo das ideias”? (HORKHEIMER, 2002, p. 29-30) The description of the labor process in its relations to nature will necessarily bear the imprint of its social structure as well. If the human being were not authentically exploited, we would be spared the inauthentic talk of an exploitation of nature. This talk reinforces the semblance of “value”, which accrues to raw materials only by virtue of an order of production founded on the exploitation of human labor. Were this exploitation come to a halt, work, in turn, could no longer be characterized as the exploitation of nature by man. It would henceforth be conducted in the model of children’s play, which in Fourier forms the basis of the “impassioned work” of Harmonians. To have instituted play as the canon of a labor no longer rooted in exploitation is one of the great merits of Fourie. Such work inspirited by play aims not at the propagation of values but at the amelioration of nature. For it, too, the Fourierist utopia furnishes a model, of a sort to be found realized in the games of children. It is the image of an earth on which every place has become an inn. The double 14


meaning of the word <Wirtschaft> blossoms here: all places are worked by human hands, made useful and beautiful thereby; all, however, stand, like a roadside inn, open to all. An earth that was cultivated according to such an image would cease to be part of “a world where action is never the sister of dream”. On that earth, the act would be kin to dream. (BENJAMIN, 1999, p. 360-361) Modernity has its antiquity, like a nightmare that has come to it in its sleep. (BENJAMIN, 1999, p. 372) Sem embargo, origem e fim permanecem obscuros. Quando a História nos atinge, não nos permite repouso. Gostaríamos de encontrar fora da História, uma posição a partir da qual nos fosse possível viver nela. (JASPERS, 1985, p. 33). (...) A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas. Nem a dialética (como lógica da contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação) não 15


poderiam dar conta do que é a inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A “dialética” é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a “semiologia” é uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo. (FOUCAULT, 1979, p. 5) Pois a multidão é de fato um capricho da natureza, se se pode transpor essa expressão para as relações sociais. Uma rua, um incêndio, um acidente de trânsito, reúnem pessoas, como tais, livres de determinações de classe. Apresentam-se como aglomerações concretas, mas socialmente permanecem abstratas, ou seja, isoladas em seus interesses privados. Seu modelo são os fregueses que, cada qual em seu interesse privado, se reúnem na feira em torno da “coisa comum”. Muitas vezes esses aglomerados possuem apenas existência estatística. Ocultam aquilo que perfaz sua real monstruosidade, ou seja, a massificação dos indivíduos por meio do acaso de seus interesses privados. Porém essas aglomerações saltam aos olhos – e disso cuidam os Estados 16


totalitários fazendo permanente e obrigatória em todos os projetos a massificação de seus clientes -, então vem à luz seu caráter ambíguo, sobretudo para os implicados. Estes racionalizam o acaso da economia mercantil – acaso que os junta – com o “destino” no qual a “raça” se encontra a si mesma. Com isso, dão curso livre simultaneamente ao instinto gregário e ao comportamento automático. (BENJAMIN, 2000, p. 58) (...) Quando o significado do romantismo ficou problemático revelou-se toda a incerteza do homem moderno – sua fuga do presente, seu desejo constante de estar em algum lugar diferente daquele onde tem de estar, seu incessante anseio de terras estranhas e distantes, porque teme a proximidade e a responsabilidade pelo presente. A análise do romantismo levou ao diagnóstico da doença do século inteiro, ao reconhecimento da neurose, cujas vítimas são incapazes de fazer uma descrição de si mesmas e prefeririam sempre estar na pele de outras pessoas, que não se veem, por outras palavras, como realmente são mas como gostariam de ser. Nessa autossugestão e falsificação da vida, nesse 17


“bovarismo”, como sua filosofia foi chamada, Flaubert capta a essência do moderno subjetivismo que distorce tudo aquilo com que entra em contato. A sensação de que dispomos apenas de uma versão deformada da realidade e de que estamos aprisionados nas formas subjetivas de nosso pensamento recebeu pela primeira vez sua plena expressão em Madame Bovary. Um a estrada reta e quase ininterrupta leva daí até o ilusionismo de Proust. A transformação da realidade pela consciência humana, já sublinhada por Kant, adquiriu durante o século XX o caráter de uma ilusão alternadamente mais ou menos consciente e inconsciente, e gerou tentativas para a explicar e desmascarar, como é o caso do materialismo histórico e a psicanálise. Com sua interpretação do romantismo, Flaubert é um dos grandes reveladores e desmascaradores do século e, portanto, um dos fundadores da moderna forma reflexiva da vida. (HAUSER, 1998, p. 809) (...) Ao contrário, o que o espetáculo produz é uma versão hiper-subjetiva da vida social, na qual as relações de poder e dominação são todas atravessadas pelo afeto, pelas identificações, por 18


preferências pessoais e simpatias. E quanto mais o indivíduo, convocado a responder como consumidor e espectador, perde o norte de suas projeções singulares, mais a indústria lhe devolve uma subjetividade reificada, produzida em série, espetacularizada. Esta subjetividade industrializada ele consome avidamente, de modo a preencher o vazio da vida interior da qual ele abriu mão por força da “paixão de segurança”, que é a paixão de pertencer à massa, identificar-se com ela nos termos propostos pelo espetáculo. Por aí se explica o interesse do público que assiste aos reality shows dos anos 2000 na tentativa de flagrar alguma expressão espontânea da subjetividade alheia sem se dar conta de que os participantes desse tipo de espetáculo são tão “formatados” pela televisão, tão “desacostumados da subjetividade”, quanto o telespectador. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 52-53) (…) Houve períodos em que um homem acreditava, com rígida confiança e até com devoção, estar predeterminado para justamente um negócio, um ganha-pão, e absolutamente não queria reconhecer ali o acaso, o papel, o elemento arbitrário (…) Mas também há períodos, os 19


genuinamente democráticos, em que esta crença é abandonada e passa a primeiro plano uma atrevida crença e perspectiva oposta, a crença dos atenienses, que na época de Péricles se fez notar pela primeira vez, a crença dos americanos de hoje, que tende cada vez mais a tornar-se europeia: na qual o indivíduo está convencido de poder mais ou menos tudo, de estar mais ou menos à altura de qualquer papel, na qual cada um experimenta consigo, improvisa, de novo experimentam experimenta com prazer, na qual toda natureza cessa e se torna arte. Os gregos, após assumirem esta crença no papel – uma crença de artistas, se quiserem -, sofreram pouco a pouco, é notório, uma singular transformação que não deve ser imitada em todo aspecto: eles se tornaram realmente atores; e como tais, conquistaram, o mundo inteiro, e afinal a própria “conquistadora” do mundo (pois é o Graeculus histrio [ator grego] que vence Roma, e não, como costumam dizer os inocentes, a cultura grega…) Mas o que receio, o que agora já é palpável, caso se quisesse palpar, é que nós, homens modernos, já nos achamos no mesmo caminho; e sempre que o homem começa a descobrir em que medida ele 20


desempenha um papel e em que medida pode ser ator, ele torna-se ator. Com isso emerge uma nova fauna e flora humana, que em tempos mais firmes e limitados não pode crescer – ou fica “embaixo”, debaixo da proibição e da suspeita de desonra -, surge com isso as épocas mais interessantes e mais loucas da história, em que os “atores”, toda espécie de atores, são os verdadeiros senhores. (NIETZSCHE, 2001, p. 252O homem na multidão (Edgar Allan Poe) "Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul." La Bruyère De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão 21


densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada. Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples respirar era-me um prazer, e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas. 22


Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior. De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica. Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se 23


rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão. Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei. Seu trajes pertenciam aquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade -, homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, que dirigiam negócios de sua 24


própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção. A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles parecia-me exato facsímile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bon ton. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas - e isso, acredito, define-os perfeitamente. A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as 25


mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável. Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato. Os jogadores - e não foram poucos os que pude discernir - eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez 26


escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identifica-los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares. Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes 27


de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, 28


cambaleando inarticulados, de rosto contundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, mesmo agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies - tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos. Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos 29


mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano. Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos. Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs 30


fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as ideias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita naquele peito!" Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas 31


pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção. Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse. Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o 32


zunzum decuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas 33


proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levounos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco. Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco relativamente deserto. Caminhou 34


apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores. Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito. 35


Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Ele saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caia pesadamente e havia poucas pessoas a vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o 36


peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações. Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e 37


arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool. O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, 38


muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe 39


fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. "Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que 'es lässt sich nich lesn' ". (…) uma outra espécie de homens é sempre a mais prejudicada e enfim tornada impossível, acima de tudo os grandes “construtores”; a energia de construir é paralisada; a coragem de fazer planos para o futuro distante é desestimulada; começam a faltar os gênios organizadores: - quem ainda ousa empreender obras para as quais é preciso contar com milênios? Está se extinguindo justamente a crença básica pela qual alguém pode calcular, prometer, antecipar o futuro em planos e sacrificálo a seus planos, a crença de que o homem só tem valor e sentido quando é uma pedra num grande edifício: para isso ele tem, antes de tudo, que ser 40


firme, ser “pedra”… E, sobretudo, não ser – ator! Em poucas palavras – ah, sobre isso haverá silêncio por muito tempo! – o que doravante não pode mais ser construído, é – uma sociedade no velho sentido da palavra; para construir tal edifício falta tudo, a começar pelo material. Nós todos já não somos material para uma sociedade: eis uma verdade cuja hora chegou! Para mim não faz diferença que o tipo de homem mais míope, talvez mais honesto, certamente mais ruidoso que hoje existe, nossos caros socialistas, pense, espere, sonhe, principalmente grite e escreva mais ou menos o contrário; pois seu lema para o futuro, “Sociedade livre”, já pode ser lido em todos os muros e mesas. Sociedade livre? Sim! Sim! Mas sabem os senhores com que ela é feita? Com ferro de madeira! Com o famoso ferro de madeira! E nem sequer de madeira (NIETZSCHE, 2001, p. 253) O ambiente objetivo do homem adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria. Ao mesmo tempo, a propaganda se propõe a ofuscar o caráter mercantil das coisas. À enganadora transfiguração do mundo das mercadorias se contrapõe sua desfiguração no alegórico. A 41


mercadoria procura olhar-se a si mesma na face, ver a si própria no rosto. Celebra sua humanização na puta. (BENJAMIM, 2000, p. 163) O burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida privada se divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a comunidade malhumorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente sozinho, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como social contact, como o contato social de pessoas que não se tocam intimamente. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 145-6) O isolamento desses filisteus na vida privada, sua sincera devoção a questões de família e carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado de sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos 42


na história, tinha os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento – crença, honra, dignidade. Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar suas vidas privadas. Em poucos anos de poder e coordenação sistemática, os nazistas podiam anunciar com razão: “A única pessoa que ainda é um indivíduo na Alemanha é alguém que esteja dormindo”. (ARENDT, 1990, p. 388) Assim o anti-semita escolheu o criminoso, e criminoso branco: ainda aqui foge às responsabilidades; censurou os instintos de homicida, mas descobriu o meio de saciá-los sem confessá-los. Sabe que é perverso, mas como pratica o Mal pelo Bem, como todo um povo espera dele a libertação, considera-se um perverso sagrado. Graças a uma inversão de todos os valores, de que encontramos paralelo em certas religiões e, por exemplo, na Índia onde existe uma prostituição sagrada, à cólera, ao ódio, à pilhagem, ao homicídio e a todas as formas de violência 43


inerem, a estima, o respeito e o entusiasmo, e no próprio momento em que a maldade o inebria, sente em si a leveza e a paz que a consciência tranquila e a satisfação do dever cumprido proporcionam. (SARTRE, 1978, p. 29) Por conseguinte a clonagem é o último estágio da simulação do corpo, aquela em que, reduzido a sua fórmula abstrata e genérica, o indivíduo está destinado à multiplicação em série. Walter Benjamin disse que o que se perdeu da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica foi sua “aura”, essa qualidade singular do aqui e do agora, a sua forma estética; ela passa de um destino de sedução para de reprodução e, nesse novo destino, assume a forma política. Perdeu-se o original, e só a nostalgia pode reconstituí-lo como “autêntico”. A forma extrema desse processo é a dos meios de comunicação de massa contemporâneos; neles o original nunca teve lugar, e as coisas são de imediato concebidas em função de reprodução ilimitada. É exatamente o que acontece ao ser humano com relação à clonagem. É o que acontece ao corpo quando concebido apenas como estoque de 44


informações e mensagens, como substância informática. Nada se opõe então a sua reprodutibilidade serial, nos mesmos termos utilizados por Benjamin para os objetos industriais e as imagens. Há uma precessão do modelo genético sobre todos os corpos possíveis. É a irrupção da tecnologia que comanda essa desordem, de uma tecnologia que Benjamin já descrevia como médium total – gigantesca prótese comandando a geração de objetos e de imagens idênticas, que nada poderia diferenciar entre si – mas ainda sem conceber o aprofundamento contemporâneo dessa tecnologia, que torna possível a geração de seres idênticos sem que se possa voltar ao ser original. As próteses da era industrial ainda são externas, exotécnicas; as que conhecemos ramificam-se e se interiorizam-se: esotécnicas. Estamos na era das tecnologias brandas, software genérico e mental. As próteses da era industrial, as máquinas, ainda voltavam ao corpo para modificarem-lhe a imagem, elas mesmas eram metabolizadas no imaginário, e esse metabolismo fazia parte da imagem do corpo. Mas, quando se 45


atingem um ponto sem volta na simulação, quando as próteses infiltram-se no coração anônimo e micromolecular do corpo, quando se impõe ao próprio corpo como matriz, queimando todos os circuitos simbólicos ulteriores, sendo qualquer corpo possível nada mais que sua imutável repetição, então é o fim do corpo e de sua história, o indivíduo não é mais que uma metástase cancerosa de sua fórmula de base. (BAUDRILLARD, 1991, P. 195-196) At a certain point of time, the motif of the doll acquires a sociocritical significance. For example: “You have no idea how repulsive these automatons and dolls can became, and how one breathes at last on encountering a full-blooded being in this society. Paul Lindau, Der Abend (Berlin, 1986), p. 17 Apud (BENJAMIN, 1999, p. 695) A partir de 1936 (...) Benjamin vai reintegrar cada vez mais o momento romântico em sua crítica marxista sui generis das formas capitalistas de alienação. Por exemplo, em seus escritos dos anos 1936-1938 sobre Baudelaire, ele retoma a idéia tipicamente romântica, sugerida em um ensaio de 1930 sobre E. T. A. Hoffmann, da oposição entre a 46


vida e o autômato. Os gestos repetitivos, vazios de sentido e mecânicos dos trabalhadores diante da máquina - aqui Benjamin se refere diretamente a algumas passagens de O capital de Marx - são semelhantes os gestos autômatos dos passantes na multidão descritos pro Poe e Hoffmann. Tanto uns quanto outros, vítimas da civilização urbana e industrial, não conhecem mais a experiência autêntica (Erfahrung), baseada na memória e na tradição cultural e histórica, mas somente a vivência imediata (Erlebnis) e, particularmente, o Chokerlebnis [a experiência do choque] que neles provoca um comportamento reativo de autômatos “que liquidaram completamente sua memória”. (LÖWY, 2005, p. 27-28) Precisamos, observa Benjamin, (...) de uma teoria da história a partir da qual o fascismo possa ser desvendado (gesichtet) (...). Somente uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno como o fascismo, profundamente enraizado no “progresso” industrial e técnico moderno que, em última análise, não era possível senão no século XX. A compreensão de que o fascismo pode triunfar nos 47


países mais “civilizados” e de que o “progresso” não o fará desaparecer automaticamente permitirá, pensa Benjamin, melhorar nossa posição na luta antifascista. Um luta cujo objetivo final é o de produzir “o verdadeiro estado de exceção”, ou seja, a abolição da dominação, a sociedade sem classes. (LÖWY, 2005, p. 85) O antissemitismo enquanto movimento popular foi sempre aquilo que os seus instigadores gostavam de censurar: o nivelamento por baixo. Os que não têm nenhum poder de comando devem passar tão mal como o povo. Do funcionário alemão aos negros do Harlen, os ávidos prosélitos sempre souberam, no fundo, que no final não teriam nada senão o prazer de que os outros tampouco teriam mais do que eles. A arianização da propriedade judaica (que, aliás, na maioria dos casos beneficiou as classes superiores) não trouxe para as massas do terceiro Reich, vantagens muito maiores do que, para os cossacos, o miserável espólio que estes arrastavam dos guetos saqueados. O fato de que a demonstração de sua inutilidade econômica antes aumenta do que modera a força de atração da panaceia racista (volkisch) indica sua verdadeira 48


natureza: ele não auxilia os homens, mas sua ânsia de destruição. O verdadeiro ganho com que conta o “camarada de etnia” (Volksgenosse) é a ratificação coletiva de sua fúria. Quanto menores são as vantagens, mais obstinadamente e contra seu próprio discernimento ele se aferra ao movimento. O antissemitismo mostrou-se imune ao argumento da falta de rentabilidade. Para o povo, ele é um luxo. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 159) (...) Para Benjamin, em Das Passagen-Werk, a quintessência do inferno é a eterna repetição do mesmo, cujo paradigma mais terrível não se encontra na teologia cristã, mas na mitologia grega: Sísifo e Tântalo, condenados à eterna volta da mesma punição. Nesse contexto, Benjamin cita uma passagem de Engels, que compara a interminável tortura do operário, forçado a repetir sempre o mesmo movimento mecânico, com a condenação de Sísifo ao inferno. Mas não se trata apenas do operário: toda sociedade moderna, dominada pela mercadoria, é submetida à repetição, ao “sempre igual” (Immergleichen) disfarçado em novidade e moda: no reino 49


mercantil, “a humanidade parece condenada às penas do inferno”. (LÖWY, 2005, P. 90) Todos podem ser como a sociedade todopoderosa, todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade. Na fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os como pessoas de confiança. É assim que se elimina o trágico. Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Ela glorificava a “a valentia e a liberdade do sentimento em face a um inimigo poderoso, de uma adversidade sublime, de um problema terrificante”. Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico. Mas o milagre da integração, o permanente ato de graça da autoridade em acolher o desamparado, forçado a engolir sua renitência, tudo isso significa o fascismo. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 144) O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. (...) A partir do 50


momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio, perderam todas a suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele só se determina como coisa, como elemento estatístico, como success or failure. Seu padrão é a autoconservação, a assemelhação bem ou malsucedida à objetividade de sua função e aos modelos colocados para ela. (…) A figura demoniacamente distorcida, que as coisas e os homens assumiram sob a luz do conhecimento isento de preconceitos, remete de volta à dominação, ao princípio que já operava a especificação do mana nos espíritos e divindades e fascinava o olhar dos feiticeiros e curandeiros. A fatalidade com que os tempos pré-históricos sancionavam a morte ininteligível passa a caracterizar a realidade integralmente ininteligível. O pânico meridiano com que os homens de repente se deram conta da natureza como 51


totalidade encontrou sua correspondência no pânico que hoje está pronto para irromper a qualquer instante: os homens aguardam que este mundo sem saída seja incendiado por uma totalidade que eles próprios constituem e sobre a qual nada podem. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 40-1) É sobretudo nos diferentes textos dos anos 19361940 que Benjamin desenvolverá sua visão de história, dissociando-se, de forma cada vez mais radical, das “ilusões do progresso” hegemônicas no âmbito do pensamento de esquerda alemão e europeu. Um longo ensaio publicado, em 1937, na Zeitshcrift Für Sozialforschung, a revista da escola de Frankfurt (já exilada nos Estados Unidos), foi consagrado à obra do historiador e colecionador Eduard Fuchs. Nesse ensaio - que contém passagens inteiras que prefiguram, às vezes literalmente, as teses de 1940 - ele ataca o marxismo socialdemocrata, mistura de positivismo, evolucionismo darwiniano e culto ao progresso: “Ele só soube discernir, no desenvolvimento da técnica, o progresso das ciências naturais e não o retrocesso da sociedade [...]. As energias que a 52


técnica desenvolve além desse patamar são destrutivas. Elas alimentam principalmente a técnica da guerra e de sua preparação jornalística.” Entre os exemplos mais claros desse positivismo limitado, ele cita o socialista italiano Enrico Ferri, que queria reduzir “não somente os princípios, mas também a tática da socialdemocracia às leis da natureza” e que imputava as tendências anarquistas encontrado no movimento operário à “falta de conhecimento de geologia e de biologia”. (LÖWY, 2005, p. 29-30) Mais que o arame farpado, é a irrealidade dos detentos que ele confina, que provoca uma crueldade tão incrível que termina levando à aceitação do extermínio como solução perfeitamente normal. Tudo o que se faz nos campos tem o seu paralelo no mundo das fantasias malignas e perversas. O que é difícil entender, porém, é que esses crimes ocorriam num mundo fantasma materializado num sistema em que, afinal, existiam todos os dados sensoriais da realidade, faltando-lhe apenas aquela estrutura de consequências e responsabilidades sem a qual a realidade não passa de um conjunto de dados 53


incompreensíveis. Como resultado, passa a existir um lugar onde os homens podem ser torturados e massacrados sem que nem os atormentadores nem os atormentados, e muito menos o observador de fora, saibam que o que está acontecendo é algo mais do que um jogo cruel ou um sonho absurdo. (ARENDT, 1990, p. 496) A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de “participação oportunista” era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas conseqüência disto. A frieza de mônoda social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 1995, p. 134) 54


As intuições de Benjamin sobre a tecnocracia fascista foram confirmadas pela pesquisa histórica recente. Ver, por exemplo, os trabalhos de: J. Herf, Reactionary Modernism; Technology, Culture and Politics in Weimar and the Third Rich (Cambridge, Polity Press, University Press, 1986); Z. Bauman, Modernity of Holocaust (Cambridge, Polity Press, University Press, 1989); e E. Traverso, L’histoire déchirée: essai sur Awschwitz et les intelectuelles (Paris, Cerf, 1997). J. Herf caracteriza como “modernismo reacionário” a ideologia do III Reich e analisa nesse quadro os escritos dos ideólogos fascistas conhecidos e os documentos de associações de engenheiros pró-nazistas. Quanto ao sociólogo Zygmunt Baumann, analisa o genocídio dos judeus e dos ciganos como um produto típico da cultura racional burocrática e como um dos resultados possíveis do processo civilizatório enquanto racionalização e centralização da violência e enquanto produção social da indiferença moral. “Como qualquer outra ação conduzida de maneira moderna - racional, planejada, cientificamente informada, gerenciada de maneira eficaz e coordenada - o Holocausto deixou para trás ... todos os seus pretensos 55


equivalentes pré-modernos, revelando-os como primitivos, dissipadores e ineficazes comparativamente”. Enfim, segundo Enzo Traverso, nos campos de extermínio nazistas encontramos uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, o presídio descrito por Foucault, a fábrica capitalista de que falava Marx, a “organização científica do trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Weber. (LÖWY, 2005, p. 103-104) A guerra hi-tech, a guerra eletrônica, veloz, clean, precisa e fulminante, deveria acontecer imediatamente na televisão. Nenhuma distância no espaço nenhum intervalo no tempo deveriam se interpor entre o telespectador confortavelmente instalado em casa e o campo de batalha em Bagdá, Dahram, Jerusalém, Tel-Aviv… E aqui, o fluxo de imagens da CNN, que vão se atropelando e se substituindo no vídeo, engata diretamente na descarga de ansiedade que faz de todos nós voyeurs do destino dos outros e dos nossos próprios destinos (GARCIA DOS SANTOS, 1996, p. 160). 56


(...) A linguagem publicitária se apossou de tal maneira da campanha política que, independentemente do que um político propuser para seu governo, o debate político já funciona segundo a lógica de realização de desejos. O eleitor não vota mais no candidato que expõe algumas idéias razoáveis, que coloca problemas que talvez possam ser resolvidos; o eleitor vai votar no candidato cuja campanha se orientar no sentido de fazê-lo gozar diante da imagem dele. No momento mesmo em que mesmo a imagem de um candidato se associa a imagens capazes de dar prazer ao eleitor-telespectador, por mais fantasiosas que sejam aquelas imagens, por mais que o candidato minta, ele conquista o eleitor ao fazê-lo gozar diante das imagens de campanha, como se aquilo já fosse um desejo realizado, de modo que o eleitor vai votar na esperança de prolongar aquele gozo. Talvez assim se explique também por que, seja qual for o candidato eleito, um mês depois da posse estarão todos decepcionados com ele. Acabada a campanha, acaba o gozo imaginário. Mesmo que uma administração pública se faça acompanhar continuamente de propaganda, a comparação entre aquilo que o governante é capaz 57


de fazer e o que ele promete sempre será frustrante para a massa que elegeu, inconscientemente, um objeto de gozo e não um sujeito da ação política. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 105-106) O antissemitismo burguês tem um fundamento especificamente econômico: o disfarce da dominação na produção. Se, em épocas antigas, os dominadores eram imediatamente repressivos, de tal sorte que não somente abandonavam todo o trabalho às classes inferiores, mas declaravam o trabalho como a ignomínia que sempre foi a dominação, no mercantilismo, o monarca absoluto sofre uma metamorfose e transforma-se nos mais poderosos donos de manufaturas. A produção passa a ser aceitável na corte. Os senhores transformados em burgueses acabaram por despir o casaco colorido e passaram a envergar um traje civil. O trabalho não envergonha, diziam, para se apoderar mais racionalmente do trabalho de outrem. Eles próprios se incluíam entre os produtores, ao passo que continuavam a ser os mesmos rapinadores de sempre. (...) Os trabalhadores tinham de fornecer o máximo 58


possível. Como o verdadeiro Shylock, ele insistia em sua promissória. Com base na posse de máquinas e do material, ele forçava os outros a produzir. Ele se denominava “produtor”, mas como qualquer um sabia no íntimo a verdade. O trabalho produtivo do capitalista – não importa se ele justificava seu lucro como salário do empresário, como no liberalismo, ou como vencimento de diretor, como hoje em dia – era a ideologia que encobria a essência do contrato de trabalho e a natureza rapinante do sistema econômico em geral. Por isso as pessoas gritam: “pega ladrão”! e apontam para o judeu. Ele é, de fato, o bode expiatório, mas não somente para manobras e maquinações particulares, mas no sentido amplo em que a injustiça econômica da classe inteira é descarregada nele. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 162) Verificamos que o antissemitismo constitui um esforço apaixonado para realizar uma união nacional contra a divisão das sociedades em classe. Tenta eliminar a fragmentação da comunidade em grupos hostis entre si, levando as paixões comuns a 59


uma temperatura tal que funda as barreiras. E como, entretanto, as divisões subsistem, posto que as causas econômicas e sociais permanecem inatas, visa agrupá-las todas numa só: as distinções entre ricos e pobres, entre classes trabalhadoras e classes possuidoras, entre poderes legais e poderes ocultos, entre citadinos e rurículas etc., ele as resume numa só diferença, a do judeu e a do nãojudeu. Isto significa que o antissemitismo é uma representação mística e burguesa da luta de classes e que não poderia existir numa sociedade sem classes. Manifesta a separação dos homens e seu isolamento no seio da comunidade, o conflito de interesses, o fracionamento das paixões: não poderia existir, exceto nas coletividades onde uma solidariedade une pluralidades fortemente estruturadas; é um fenômeno do pluralismo social. Numa sociedade cujos membros são todos solidários, porque todos se acham empenhados na mesma empresa, não haverá lugar para o antissemitismo. Enfim, manifesta certa ligação mística e participacionista do homem com seu “bem” que resulta do regime atual de propriedade. (SARTRE, 1978, p. 85) 60


[o] fascismo também é totalitário na medida em que se esforça por colocar diretamente a serviço da dominação a própria rebelião da natureza contra essa dominação. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 172). Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. Para o paranóico usual, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua doença. No fascismo, esse comportamento é adotado pela política, o objeto da doença é determinado realisticamente, o sistema alucinatório torna-se a norma racional no mundo, e o desvio a neurose. O mecanismo que a ordem totalitária põe a seu serviço é tão antigo quanto a civilização. Os mesmos impulsos sexuais que a raça humana reprimiu souberam se conservar e se impor num sistema diabólico, tanto dentro dos indivíduos, quanto dos povos, na metamorfose imaginária do meio ambiente. Um indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima o perseguidor que o forçava a uma desesperada e legítima defesa, e os mais poderosos impérios sempre consideraram o vizinho mais fraco 61


como uma ameaça insuportável, antes de cair sobre eles. A racionalização era uma finta e, ao mesmo tempo, algo de compulsivo. Quem é escolhido para inimigo é percebido como inimigo. O distúrbio está na incapacidade de o sujeito discernir no material projetado entre o que provém dele e o que é alheio. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 174-5 – grifos meus) (...) A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada despertará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma de consciência histórica -, se apropriar, novamente, de todas as coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que pode chamar a sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda a prática são duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as 62


revoluções jamais passam de tomadas consciência. (FOUCAULT, 2004, p. 14)

de

Esse texto (*) mostra o aspecto do marxismo que mais interessa a Benjamin e que vai permitir que ele esclareça, por uma nova ótica, sua visão do processo histórico: a luta de classes. Mas o materialismo histórico não vai substituir suas intuições “antiprogressistas”, de inspiração romântica e messiânica: vai se articular com elas, assumindo assim uma qualidade crítica que o distingue radicalmente do marxismo “oficial” dominante na época. Por sua posição crítica em relação à ideologia do progresso, Benjamin ocupa de fato uma posição singular no pensamento marxista e na esquerda européia entre as duas guerras. Essa articulação aparece pela primeira vez no livro Rua de mão única, escrito entre 1923 e 1926, no qual se encontra, com o título “Alarme de incêndio”, essa premonição histórica das ameaças do progresso: se a derrubada da burguesia pelo proletariado “não for realizada antes de um momento quase calculável da evolução técnica e científica (indicado pela inflação e pela guerra 63


química), tudo está perdido. É preciso cortar o estopim que queima antes que a faísca atinja a dinamite”. Ao contrário do marxismo evolucionista vulgar que pode se referir evidentemente a alguns escritos dos próprios Marx e Engels - Benjamin não concebe a revolução como o resultado “natural” ou “inevitável” do progresso econômico e técnico (ou da “contradição entre as forças e relações de produção”), mas como interrupção da evolução histórica que conduz à catástrofe. É por perceber esse perigo catastrófico que ele evoca (no artigo sobre o Surrealismo em 1929) o pessimismo - um pessimismo revolucionário que não tem nada a ver com a resignação fatalista e, menos ainda, com o kultur-pessimismus alemão, conservador, reacionário e pré-fascista de Carl Schmitt, Oswald Spengler ou Moeller van der Bruck; o pessimismo está aqui a serviço da emancipação das classes oprimidas. Sua preocupação não é com o “declínio” das elites ou da nação, mas sim com as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo faz pesar sobre a humanidade (LÖWY, 200, p. 22-23) 64


(*) História e Consciência de Classes, de Luckács. Assim, o transtorno da razão vai muito além das óbvias deformações que caracterizam a época atual. A razão só pode compreender a sua racionalidade pela reflexão sobre a enfermidade do mundo como algo produzido e reproduzido pelo homem; com essa autocrítica, a razão permanecerá ao mesmo tempo fiel a si mesma, pela preservação e aplicação, sem motivações ulteriores, do princípio de verdade que devemos apenas à razão. A subjugação da natureza se converterá em subjugação do homem, e vice-versa, na medida que este não compreenda a sua própria razão e os processos básicos pelos quais criou e manteve o antagonismo que está a ponto de destruí-lo. A razão só pode ser maior do que a natureza através da compreensão concreta da sua “naturalidade”, que consiste em sua tendência para a dominação, tendência que, paradoxalmente, a aliena da natureza. E assim, também, sendo um instrumento da conciliação, será mais do que um instrumento. As mudanças de direção, os avanços e retrocesso desse esforço, 65


refletem o desenvolvimento da definição de filosofia. (HORKHEIMER, 2002, p.176-7) (...) A própria capacidade de encontrar refúgios e subterfúgios, de sobreviver à própria ruína, com que o trágico é superado, é uma capacidade própria da nova geração. Eles são aptos para qualquer trabalho porque o processo de trabalho não os liga a nenhum em particular. Isso lembra o caráter tristemente amoldável do soldado que retorna de uma guerra que não lhe dizia respeito, ou do trabalhador que vive de biscates e acaba entrando em ligas e organizações paramilitares. A liquidação do trágico confirma a eliminação do indivíduo (...). (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 144) A consequência política dessa evolução é evidente: o retorno do famoso “problema das classes perigosas” do século XIX, com a possibilidade de revoltas coletivas desestabilizadoras (o melhor resultado possível a meu ver) ou a generalização da delinqüência individual. Neste último caso, reencontra-se o princípio de regulação do liberalismo: o medo da delinquência solidariza os dois primeiros terços da sociedade, até mesmo 66


parte do último terço, contra a “ameaça”. A luta contra a “insegurança” torna-se um argumento político tão mais eficaz quanto se pode isolar como “estranhos” os promotores da desordem, ou até o que se chama “pré-delinquentes”, gente de cor, jovens de conjuntos habitacionais em via de deterioração, etc. Pode-se até abrir um setor de atividade próspera (a empresas de segurança) para empregar uma parte dos pobres a fim que defendam os ricos contra outros pobres. (LIPIETZ, 1991, p.62) Enquanto os países avançados buscam policiar o movimento dos pobres do mundo e excluí-los, a instabilidade das noções de cidadania e de comunidade política tornar-se-á cada vez mais evidente. Os Estados avançados não serão capazes de usar efetivamente, como princípio de exclusão, a demanda de homogeneidade cultural, pois eles são étnica e culturalmente pluralistas. A exclusão será um mero fato, sem qualquer outra lógica ou legitimidade a não ser a de que os Estados temem as conseqüências da migração em grande escala. Um mundo de riqueza e pobreza, com diferenças aterrorizantes e enormes entre os padrões de vida 67


das nações mais ricas e das mais pobres, não é provável que seja um mundo seguro. Os trabalhadores industriais dos países avançados temem o trabalho barato dos trabalhadores bemeducados e qualificados da camada superior dos países em desenvolvimento como Taiwan ou Malásia. Os pobres do Terceiro Mundo se vêem como abandonados pelo mundo rico, que negocia cada vez mais consigo e com uns poucos novos países industrializados favorecidos. Ambos os grupos são colocados dentro dos limites dos Estados, forçados a encarar sues países como comunidades de destino e a buscar soluções dentro dos limites de sua residência forçada. (HIRST; TRHOMPSON, 1998, p.282) (...) Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida. Para obter a faculdade de viver, para ter os meios para isso, eles precisariam responder às 68


necessidades das redes que regem o planeta, as redes dos mercados. Ora, eles não respondem – ou antes, são os mercados que não respondem mais à sua presença e não precisam deles. Ou precisam muito pouco e cada vez menos. Sua vida, portanto, não é mais “legítima”, mas tolerada. Importuno, o lugar deles neste mundo lhes é consentido por pura indulgência, por sentimentalismo, por reflexos antigos, por referência ao que por muito tempo foi considerado sagrado (teoricamente, pelo menos). Pelo medo do escândalo. Pelas vantagens que os mercados ainda podem tirar disso. Pelos jogos políticos, pelas jogadas eleitorais baseadas na impostura de ver em curso uma “crise” provisória que cada campo pretende ser capaz de estancar. E depois, determinado bloqueio atávico das consciências impede de aceitar de imediato uma implosão. É difícil admitir; impensável declarar que a presença de uma multidão de humanos se torna precária, não pelo fato inelutável da morte, mas pelo fato de que, enquanto vivos, sua presença não corresponde mais à lógica dominante, uma vez que já não dá lucro, mas, ao contrário, revela-se 69


dispendiosa, demasiado dispendiosa. Ninguém ousará declarar, numa democracia, que a vida não é um direito, que uma multidão de vivos está em número excedente. Mas num regime totalitário, será que não se ousaria? Já não se ousou? E, embora deplorando, será que já não admitimos o princípio, quando a uma distância igual àquela de nossos locais de férias a fome dizima populações? (FORRESTER, 1997, p. 27-8) A concentração das atividades econômicas internacionais no fim do século XX aparece, também, quando se considera a distribuição da parte que cabe aos países mais atrasados. Como nota Rogolski, a “globalização” opera uma verdadeira fratura entre uma dezena de países em desenvolvimento, que são admitidos nos mercados internacionais de capitais e todos os demais. Nos anos 90, tem sido muito elevado o grau de concentração dos investimentos diretos realizados nos países em desenvolvimento. Apenas dez países responderam por nada menos que 77,3% do total de investimentos recebidos por 147 países em desenvolvimento em 1995. Os cinco principais países – China, México, Malásia, Cingapura e Brasil, 70


nessa ordem – receberam 60,6% do total. Só a China respondeu por 37,6%. Na outra ponta, os 48 países menos desenvolvidos receberam, em 1995, apenas US$ 1,1 bilhão sob a forma de investimento direto estrangeiro, 1,1% do total recebido pelo conjunto dos países em desenvolvimento. Note-se, finalmente, que excluída a China, a participação dos países em desenvolvimento no total mundial de ingressos de investimento direto cresceu de forma modesta na primeira metade dos anos 90, em comparação com o registrado em 1984-89 (...). Diante desses dados, há quem prefira referir-se a “globalização excludente” ou “globalização concentradora”, oxímoros verbais que só contribuem para aumentar a confusão reinante na caracterização do quadro internacional. Não é evidente que a expressão “globalização” perde o sentido quando não se refere a um processo includente? Mas se “globalização includente” é um pleonasmo, “globalização excludente” só pode ser uma contradição em termos. (BATISTA JR., 1998, p. 154) A indignação com as crueldades cometidas tornase tanto menor quanto menos semelhantes aos 71


leitores normais são as vítimas, quanto mais morenas, “mais sujas”, mais próximas do dago elas são. Isso depõe tanto da atrocidade, quanto do espectador. Talvez o esquematismo social da percepção no caso dos antissemitas seja de tal feitio que eles não vejam de todo os judeus como seres humanos. A asserção tão frequente de que selvagens, negros, japoneses parecem animais, por exemplo macacos, já contém a chave para o pogrom. A possibilidade deste último é decidida no instante em que o olhar de um animal mortalmente ferido encontra o homem. A obstinação com que desvia de si tal olhar – “é apenas um animal” – repete-se sem cessar nas crueldades cometidas contra seres humanos, nas quais os autores precisam confirmar sempre de novo para si mesmos aquele “apenas um animal”, porque mesmo diante de um animal nunca puderam acreditar nisso por completo. Na sociedade repressiva, o próprio conceito de homem é uma paródia de imagem e semelhança. Faz parte do mecanismo de “projeção pática”, que os detentores do poder só percebam como humano o que é sua imagem refletida, ao invés de refletirem o humano como o que é diferente. O 72


assassinato é, assim, a tentativa sempre repetida de, através de uma loucura maior, distorcer a loucura dessa percepção falsa, transformando-a em razão: o que não foi visto como ser humano, e, no entanto, é um ser humano, torna-se uma coisa, para que não possa mais refutar por nenhum impulso o olhar maníaco. (ADORNO, 1993, p. 91grifos meus) Pesquisas feitas ano após ano pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), divulgadas por meio de relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, fornecem-nos dados assustadores. Chega à casa dos 1,5 bilhão, por exemplo, o número de pessoas que estão economicamente piores do que há dez anos, ao passo que cerca de trezentos multimilionários possuem renda superior à acumulada por 2,3 bilhões de habitantes da Terra. Cerca de 17 milhões de pessoas morrem a cada ano de doenças como malária, diarreia ou tuberculose. Por volta de 800 milhões não comem o suficiente e aproximadamente 500 milhões sofrem de subnutrição crônica. Quase um terço da população mundial (1,3 bilhão de pessoas) vive na pobreza. 73


Dos US$ 23 trilhões que constituem a soma dos Produtos Nacionais Brutos (PNBs) no mundo, cerca de 78% estão com as nações industrializadas, um seleto grupo de quinze ou vinte países. As nações em desenvolvimento, onde vivem 80% da população mundial, ficam com apenas US$ 5 trilhões do bolo. (NOGUEIRA, 2001, p. 71) Hoje em dia o nazismo sobrevive menos por alguns ainda acreditarem em suas doutrinas – e é discutível inclusive a própria amplitude em que tal crença ocorreu no passado – mas principalmente em determinadas conformações formais do pensamento. Entre essas enumeram-se a disposição para adaptar-se à ordem vigente, uma divisão com valorização distinta entre massa e lideranças, deficiência de relações diretas e espontâneas com pessoas, coisas e ideias e convencionalismo impositivo, crença a qualquer preço no que existe. Conforme seu conteúdo, síndromes e estruturas de pensamento como essas são apolíticas, mas sua sobrevivência tem implicações políticas. Este talvez seja o aspecto mais sério do que estou procurando transmitir. (ADORNO, 1995, p. 62-63) 74


Os acontecimentos de 1989 assinalam uma mudança decisiva no Zeitgeist: a história faz ziguezague. Não há como extrair daí lições simplistas, mas é evidente que o radicalismo e o ideal utópico que o sustenta deixaram de ser forças políticas ou mesmo intelectuais importantes. E tampouco aplica-se isto exclusivamente aos adeptos da esquerda. A vitalidade do liberalismo encontra-se em seu flanco esquerdo, que funciona como seu crítico e cobrador. Sempre que a esquerda renuncia a um sonho, o liberalismo perde chão, torna-se flácido e instável. (JACOBY, 2001, p.23) Os textos sobre totalitarismo pressupõem uma equivalência aproximada entre o nazismo e o comunismo, sistemas totalitários empenhados em aprisionar a vida e o pensamento numa camisa-deforça. Entretanto, na medida em que marxismo, e não fascismo, era o objeto de estudo, verificou-se uma mudança de ênfase, e talvez de lógica. O pluralismo era celebrado em polêmica com a esquerda, e a denúncia do sistema totalitário foi transformada imperceptivelmente na denúncia da 75


utopia, como se houvesse uma vinculação óbvia e necessária (...). (JACOBY, 2001, p. 66) Do ponto de vista de um futuro diferente, o discurso dominante atual traduz uma concepção categoricamente fechada da história. De acordo com esse discurso, após a queda do “socialismo realmente existente” e o triunfo do sistema atlântico/ocidental, pode-se afirmar, de uma vez por todas, o fim das utopias, o fim da possibilidade de mudança de paradigma civilizacional. Nossa época foi a primeira, desde muito tempo (o início do século XIX?) que ousou, simplesmente, proclamar o “fim da história”: o célebre ensaio de Fukuyama não fez mais do que travestir em linguagem pseudo-hegeliana a convicção, profundamente enraizada, das elites dominantes na perenidade de seu sistema econômico e social, considerado não só infinitamente superior a qualquer outro, mas o único possível, o horizonte intransponível da história, etapa final e definitiva da longa marcha da humanidade. O que não quer dizer, para o discurso hegemônico atual, que o progresso - científico, técnico, econômico, social, cultural - não continue. Ao contrário, ele passará, 76


dizem, por avanços formidáveis, mas no âmbito, fixado de uma vez por todas, da economia capitalista/industrial e do sistema dito “liberaldemocrático”. Em poucas palavras, o progresso na ordem, como havia previsto tão bem Auguste Comte. (LÖWY, 2005, p. 154-155) (...) O indivíduo resistente se oporá a qualquer tentativa pragmática de conciliar as exigências da verdade e as irracionalidades da existência. Em vez de sacrificar a verdade pela conformidade com os padrões predominantes, ele insistirá em expressar em sua vida tanta verdade quanto possa, tanto na teoria quanto na prática. Terá uma vida conflituosa; deverá estar pronto para correr o risco de uma extrema solidão. A hostilidade irracional que o inclinaria a projetar suas dificuldades interiores sobre o mundo é superada pela paixão de realizar aquilo que o pai representava para ele na sua imaginação infantil, a saber, a verdade. Esse tipo de jovem - se é que se trata de um tipo - leva a sério aquilo que lhe foi ensinado. Não desiste de confrontar persistentemente a realidade com a verdade, de revelar os antagonismos entre os ideais e as realidades. A sua própria crítica, teórica 77


e prática, é uma reafirmação negativa da fé positiva que teve quando criança. (HORKHEIMER, 2002, p 115-6) O keynesianismo forneceu os alicerces ideológicos e políticos para o compromisso da democracia capitalista, e ofereceu a perspectiva de que o Estado seria capaz de conciliar a propriedade privada dos meios de produção com a gestão democrática da economia. Nas palavras do próprio Keynes, “não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado de recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado tudo que lhe compete”. O controle democrático sobre o nível de desemprego e a distribuição de renda tornam-se os termos do compromisso que viabilizou o capitalismo democrático. (PRZEWORSKI, p. 244) (…) A crise atual das democracias burguesas está ligada a uma crise das condições que determinam a própria apresentação dos governantes. As democracias apresentam os governantes de modo direto, em carne e osso, diante dos deputados. Seu 78


público é o Parlamento. Com o progresso dos aparelhos, que permite a um número indefinido de ouvintes ouvir o discurso do orador no mesmo momento em que ele fala, e que torna possível difundir pouco depois sua imagem diante de um número indefinido de espectadores, o essencial torna-se a apresentação do homem político diante do próprio aparelho. Essa nova técnica esvazia os Parlamentos, assim como esvazia os teatros. O rádio e o cinema não modificam somente a função do ator profissional, mas, do mesmo modo, a função de quem quer que, como no caso do governante, se apresente diante do microfone ou da câmera. Levando-se em conta a diferença entre os objetivos buscados, com relação a isso o intérprete do filme e o homem de estado sofrem transformações paralelas. Elas acabam, em certas condições sociais determinadas, por aproximá-los do público. Donde uma nova seleção, uma seleção diante do aparelho – aqueles que saem vencedores são a estrela e o ditador. (BENJAMIN, 1969, p. 32) “You are passing through a great city that has grown old in civilization – one of those cities which harbor the most important archives of universal 79


life – and your eyes are drawn upward, sursum, ad sidera; for in the public squares, at the corners of crossways, stand motionless figures, larger than those who pass at their feet, repeating to you solemn legends of Glory, War, Science, and Martyrdom, in a mute language. Some are pointing to the sky, whither they ceaselessly aspired; others indicate the earth from which they sprang. They blandish, or contemplate, what was the passion of their life and what becomes its emblem: a tool, a sword, a book, a torch, vitai lampada! Be you the most heedless of men, the most unhappy or the vilest, a beggar or a banker, the stone phantom takes possession of you for a few minutes and commands you, it the name of the past, to think things which are not of the earth. / Such is the divine hole of sculpture”. Ch. B. Oeuvres, ed. Le Dantec, vol. 2, pp. 274-275 (“Salon of 1859). Baudelaire speaks here of sculpture as though it were present only in the big city. It is a sculpture that stands in the way of the passerby. This depiction contains something in the highest degree prophetic, tough sculpture plays only the smallest part in that which would fulfill the prophecy. 80


Sculpture is found <?> only in the big city? (BENJAMIN, 1999, p. 289-290) (...) No poema épico, o povo repousa, depois do dia de trabalho: escuta, sonha e colhe. O romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém. Escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao paroxismo. A distância que separa o romance da verdadeira epopeia pode ser avaliada se pensarmos na obra de Homero ou Dante. A tradição oral, patrimônio da epopeia, nada tem em comum com a substância do romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fadas, sagas, provérbios, farsas – é que ele nem vem da tradição oral nem a alimenta. Essa característica o distingue, sobretudo, da narrativa, que representa, na prosa, o espírito épico em toda a sua pureza. Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente o espírito da 81


narrativa que o espaço cada vez maior e cada vez mais impudente que a leitura de romances ocupa em nossa existência (...). (BENJAMIN, 1985, p. 5455) Certos candidatos a deputado ornam com um retrato seu prospecto eleitoral. Isto equivale a supor que a fotografia possui um poder de conversão que se deve analisar. Para começar, a efígie do candidato estabelece um elo pessoal entre ele e os seus eleitores; o candidato não propõe apenas um programa, mas também um clima físico, um conjunto de opções cotidianas expressas numa morfologia, um modo de vestir, uma pose. A fotografia tende, assim, a restabelecer o fundo paternalista das eleições, a sua natureza “representativa”, desvirtuada pelo voto proporcional e pelo reino dos partidos (a direita parece utilizá-la mais que a esquerda). Na medida em que a fotografia é elipse da linguagem e condensação de todo um “inefável” social, constitui uma arma antiintelectual, tende a escamotear a “política” (isto é, um conjunto de problemas e soluções) em proveito de uma “maneira de ser”, de um estatuto social e moral. 82


Sabe-se que esta oposição é um dos mitos maiores do poujadismo (Poujade na televisão: “Olhem para mim, sou como vocês”). A fotografia eleitoral é, pois, antes de mais nada, reconhecimento de uma profundidade, de um irracional extensivo à política. O que é exposto, através da fotografia do candidato, não são seus projetos, são suas motivações, todas as circunstâncias familiares, mentais, e até eróticas, todo um estilo de vida de que ele é, simultaneamente, o produto, o exemplo, e a isca. É óbvio que aquilo que a maior parte dos nossos candidatos propõe através de sua efígie é uma posição social, o conforto especular das normas familiares, jurídicas, religiosas, a propriedade infusa de certos bens burgueses, tais como, por exemplo, a missa de domingo, a xenofobia, o bife com batatas fritas, e o cômico das situações de infidelidade conjugal, ou seja, aquilo que se chama de uma ideologia. Naturalmente, o uso da fotografia eleitoral supõe uma cumplicidade: a foto é espelho, ela oferece o familiar, o conhecido, propõe ao eleitor a sua própria efígie, clarificada, magnificada, inponentemente elevada à condição 83


de tipo. É, aliás, esta ampliação valorativa que define exatamente a fotogenia: ela exprime o eleitor e, simultaneamente, transforma-o num herói; ele é convidado a eleger-se a si próprio, incumbindo o mandato que vai dar de uma verdadeira transferência física: delega de algum modo a sua “raça”. (BARTHES, 1989, p. 103) Nineteenth-century domestic interior. The space disguises itself – puts on, like an alluring creature, the costume of moods. The self-satisfied burgher should know something of the feeling that the next room might have witnessed the coronation of Charlemagne as well as the assassination of Henri IV, the signing of the Treaty of Verdun as well as the wedding of Otto and Theophano. In the end, things are merely mannequins, and even the great moments of world history are only costumes beneath which they exchange glances and complicity with nothingness, with the petty and the banal. Such nihilism is the innermost core of bourgeois coziness – a mood that hashish intoxication concentrates to satanic contentment, satanic knowing, satanic calm, indicating precisely to what extent the nineteenth-century interior is 84


itself a stimulus to intoxication and dream. This mood involves, furthermore, an aversion to open air (so to speak) Uranian atmosphere, which throws a new light on the extravagant interior design of the period. To live in these interiors was to have woven a dense fabric about oneself, to have secluded oneself within a spider’s web, in whose toils world events hang loosely suspended like so many insect bodies sucked dry. From this cavern, one does not like to stir. (BENJAMIN, 1999, p. 216) In his study “La mante religeuse: Recherches sur la nature et la sgnification du mythe” <The praying Mantis: Investigations into the Nature and Meaning of Myth>, Calois refers to striking automatism of reflexes in the praying mantis (there is hardly a vital function that it does not also perform decapitated). He links it, on account of its fateful significance, with the baneful automatons known to us from myths. Thus Pandora: “automaton fabricated by blacksmith god for the ruin of humankind, for that “which all shall / take to their hearts with delight, an evil to love and embrace” (Hesiod, Works and Days, line 38). We 85


encounter something similar in the Indian Kyrtya – those dolls, animated by sorcerers, which bring about death of men who embrace them. Our literature as well, in the motif of femmes fatales, possesses the concept of a woman-machine, artificial, mechanical, at variance with all living creatures, and above all murderous. No doubt psycho-analysis would not hesitate to explain this representation in its own terms by envisaging the relations between death and sexuality and, more precisely, by finding each ambiguously intimated in the other”. Roger Caillois, “La amante religeuse: Recherches sur la nature et la sgnification du mythe”, Mesures, 3, nº 2 (April 15, 1937). (BENJAMIN, 1999, p. 696) (...) A pintura já conhecia há muito rostos desse tipo. Se os quadros permaneciam no patrimônio da família, havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado. Porém depois de duas ou três gerações esse interesse desaparecia: os quadros valiam apenas como testemunho do talento artístico de seu autor. Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão 86


displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na “arte”. (BENJAMIN, 1985, p. 93) (...) Mas a litografia ainda estava em seus primórdios quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situarse no mesmo nível a palavra oral. Se o jornalismo ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia. (BENJAMIN, 1985, p. 167) (...) Mas acompanhemos um pouco mais de longe a história da fotografia. Que vemos? Ela se torna cada vez mais naturalizada, cada vez mais moderna, e o resultado é que ela não pode mais fotografar cortiços ou montes de lixo sem 87


transfigurá-los. Ela não pode dizer, de uma barragem ou de uma fábrica de cabos, outra coisa senão: o mundo é belo. Este é o título do conhecido livro de imagens de Renger-Patsch, que representa a fotografia da “Nova Objetividade” em seu apogeu. Em outras palavras, ela conseguiu transformar a própria miséria em objeto de fruição, ao captá-la segundo os modismos mais aperfeiçoados. Porque, se uma das funções econômicas da fotografia é alimentar as massas com certos conteúdos que antes estava proibida de consumir – a primavera, personalidades eminentes, países estrangeiros – através de uma elaboração baseada na moda, uma de suas funções políticas é a de renovar, de dentro, o mundo como ele é – em outras palavras, segundo a moda. (BENJAMIN, 1985, p. 129) (...) em toda a parte que uma ação produz a imagem a partir de si mesma e é essa imagem, extrai para si essa imagem e a devora, em que a própria proximidade deixa de ser vista, aí se abre esse espaço de imagens que procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multidimensionalidade, no qual não há lugar para 88


qualquer “sala confortável”, o espaço, em uma palavra, no qual o materialismo político e a criatura física partilham entre si o homem interior, a psique, o indivíduo, ou o que quer que seja que desejamos entregar-lhes, segundo uma justiça dialética, de modo que nenhum dos seus membros deixe de ser despedaçado. No entanto, e justamente em consequência dessa destruição dialética, esse espaço continuará sendo espaço de imagens, e algo mais concreto ainda: espaço de corpo. Não podemos fugir a essa evidência, a confissão se impõe: o materialismo metafísico de Vogt e Bukharin não pode ser traduzido, sem descontinuidade, no registro do materialismo antropológico, representada pela experiência dos surrealistas e antes por um Hegel; Georg Büchner, Nietzsche e Rimbaud. Fica sempre um resto. Também o coletivo é corpóreo. E a physis, que para ele se organiza na técnica, só pode ser engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens que a iluminação profana nos tornou familiar. Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se 89


transforme em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se, segundo a exigência do Manifesto Comunista. No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje. Cada um deles troca a mera gesticulação pelo quadrante de um despertador, que soa durante sessenta segundos, a cada minuto. (BENJAMIN, 1985, p. 34-35) (...) Modificá-lo [a uma aparelho produtivo – MPP] significa derrubar uma daquelas barreiras, superar uma daquelas contradições que acorrentam o trabalho produtivo da inteligência. Nesse caso, trata-se da barreira entre a escrita e a imagem. Temos que exigir dos fotógrafos a capacidade de colocar em suas imagens legendas explicativas que as liberem da moda e lhes confiram um valor de uso revolucionário. Mas só poderemos formular convincentemente essa exigência quando nós, escritores, começarmos a fotografar. Também aqui, para o autor como produtor o progresso 90


técnico é o fundamento do seu progresso político. Em outros termos: somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo da produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo de politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre essas duas forças produtivas – a material e a intelectual – precisam ser derrubadas conjuntamente. (BENJAMIN, 1985, p. 129) “In the stairways of Eiffel Tower, or better still, in the steel supports of a Pont Transbordeur, one meets with the fundamental esthetic experience of present day architecture: through the thin net of iron that hangs suspended in the air, things stream – ships, ocean, houses, masts, landscape, harbor. They lose their distinctive shape, swirl into on another as we climb downward, merge simultaneously.” Sigfried Giedion, Bauen in Frankreich (Leipzig and Berlin), p. 7. In the same way, the historian today has only to erect a slender but sturdy scaffolding – a philosophic structure – in order do draw vital aspects of the past into his net. But just as the magnificent vistas of the city 91


provided by the new constructions in iron (again, see Giedion, illustrations on pp. 61-63) for a long time were reserved exclusively for the works and the engineers, so too the philosopher who wishes here to garner fresh perspectives must be someone immune to vertigo – an independent and, if need be, solitary worker. (BENJAMIN, 1999, p. 459). Method of this project: literary montage. I needn’t say anything. Merely show. I shall purloin no valuables, appropriate no ingenious formulations. Burt rags, the refuse – these I will not inventory, but allow, in the only way possible: by making use of them. (BENJAMIN, 1999, p. 460) A central problem of historical materialism that ought to be seen in the end: Must the Marxist understanding of history necessarily be acquired at the expense of the perceptibility of history? Or: in what it is possible to conjoin a heightened graphicness <Anschaulichkeit> to realization of Marxist method? The first stage in this undertaking will be to carry out over the principle of montage into history. That is, to assemble large-scale constructions out of the smallest and most 92


precisely cut components. Indeed, to discover in the analysis of the small individual moment the crystal of the total event. And, therefore, to break with vulgar historical naturalism. To grasp the construction of history as such. In the structure of the commentary. Refuse of history. (BENJAMIN, 1999, p. 461) Segundo o Estado de São Paulo, 08/04/2007, Cultura D7, matéria assinada por Caio Blinder, “300 mil crianças são forçadas a combater em 50 conflitos no mundo, em sua maioria na África.” Na resenha sobre o livro A long way gone: Memoirs of a Boy Sodier (Sarah Crichton Book; Farrar, Straus &Giroux) cuja autoria é de Ishmael Beah pode-se entender algumas das dimensões deste problema: a) “(...) capturado por tropas governamentais e recrutado para combater e se vingar dos rebeldes. Treinado e alimentado com drogas como ‘braown brown’, uma mistura de cocaína e pólvora, Ishmael se tornou um assassino contumaz.”; b) “Ele e outros recrutas eram obrigados a assistir infindáveis vezes a filmes violentos como Rambo”; c) “(...) proibidos de ficarem sozinhos. Refletir sobre o que estavam fazendo, nem pensar.”; d) 93


“(...) após ele ter sido baleado no pé em uma batalha, seu comandante reuniu um punhado de inimigos capturados e disse ao garoto soldado que eles eram os responsáveis por seu ferimento. ‘Eu não estou seguro se um dos cativos era o atirador’, escreve Ishmael. ‘Mas qualquer um deles poderia ter atirado. Então, todos eles foram alinhados, seis deles, com suas mãos amarradas. Eu atirei nos seus pés e assisti ao sofrimento deles um dia inteiro antes de finalmente atirar na cabeça para que eles parassem de chorar’”; e) “Ishmael ganhou um concurso sobre quem cortava com mais rapidez a garganta de um prisioneiro”. Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu duvidoso valor militar, também, não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército regular. Como formações de elite, são mais nitidamente separadas do mundo externo do que qualquer outro grupo. Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total e a separação total da normalidade; as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA, 94


no estágio anterior ao poder, e os da SS, já sob o regime nazista, eram tão móveis e tão frequentemente substituídos que simplesmente não podiam habituar-se ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum. Eram organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato organizado. Esses assassinatos eram perpetrados publicamente e oficialmente confessados pela alta hierarquia nazista, de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos membros deixarem o movimento, mesmo sob o governo não-totalitário e mesmo que não fossem ameaçados, como realmente o eram, por seus antigos camaradas. A esse respeito, a função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda: enquanto estas últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança, as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será responsabilizado por todos os crimes da elite. Consegue-se isso ainda no estágio anterior do poder, quando a liderança 95


sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não deixa dúvida de que foram cometidos para o bem final do movimento. (ARENDT, 1990, p. 422) A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da política democrática e popular que os reacionários tradicionais deploravam, e que os defensores do “Estado Orgânico” tentavam contornar. O fascismo rejubilava-se na mobilização das massas, e mantinha-a simbolicamente na forma de teatro público – os comícios de Nuremberg, as massas na piazza Venezia assistindo os gestos de Mussolini lá em cima na sacada – mesmo quando chegava ao poder; como o faziam também os movimentos comunistas. (...) (HOBSBAWN, 2003, p. 121) É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, com uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que 96


precisamente sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional. (ADORNO, 1995, p. 122) (...) Penso que, além dos fatores subjetivos, existe uma razão objetiva para a barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre o trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disso, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir. (ADORNO, 1995, p. 164) Quando Adorno questiona a continuidade da contradição produtiva engendrada pelo conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e o 97


desenvolvimento das relações de produção no “capitalismo tardio” – conceito que prefere em substituição a “sociedade industrial” – está questionando a formação a partir de uma determinada forma social assumida pelo trabalho. Forma social que no capitalismo tardio se caracteriza pela conversão progressiva de ciência e tecnologia em forças produtivas. Dirimindo a contradição entre forças produtivas e relações de produção, ao estancar a queda da taxa de lucros e manter a produção e consumo em níveis elevados, a ciência-técnica dissolve a experiência formativa a partir do trabalho social nos termos vigentes. A crise do processo formativo e educacional, portanto, é uma conclusão inevitável da dinâmica atual do processo produtivo. (MAAR: in ADORNO, 1995, p. 19 - Introdução) (...) Como o antissemitismo sobrevive às grandes crises de ódio contra os judeus, a sociedade formada pelos antissemitas subsiste em estado latente durante os períodos normais e todo antissemita considera-se incluso em seu quadro. Incapaz de compreender a organização social moderna, sente a nostalgia dos períodos de crise 98


em que a comunidade primitiva reaparece de súbito e atinge a sua temperatura de fusão. Deseja que sua pessoa afunde repentinamente no grupo e seja arrastada pelo caudal coletivo. Tem em mira esta atmosfera de pogrom quanto reclama “a união de todos os franceses”. Neste sentido, o antissemitismo, na democracia, é uma forma sorrateira daquilo que se denomina a luta do cidadão contra os poderes. Interroguemos a um desses jovens turbulentos que infringem placidamente a lei e se juntam em bandos para surrar um judeu numa rua deserta: ele nos dirá que aspira a um poder forte que o exima da acabrunhadora responsabilidade de pensar por si próprio; sendo a República um poder fraco, vê-se levado à indisciplina por amor à obediência. Mas deseja realmente um poder forte? Na realidade, exige para os outros uma ordem rigorosa e, para si, uma desordem sem responsabilidade; pretende colocar-se acima das leis, evadindo-se ao mesmo tempo, da consciência de sua liberdade e de sua solidão. (...) (SARTRE, 1978, p. 18- grifos meus) A sobrevivência do fascismo e o insucesso da tão falada elaboração do passado, hoje desvirtuada 99


em sua caricatura como esquecimento vazio e frio, devem-se à persistência dos pressupostos sociais objetivos que geram o fascismo. Este não pode ser produzido meramente a partir de disposições subjetivas. A ordem econômica e, seguindo seu modelo, em grande parte também a organização econômica, continuam obrigando a maioria das pessoas a depender de situações dadas em relação às quais são impotentes, bem como a se manter numa situação de não-emancipação. Se as pessoas querem viver, nada lhes resta senão se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a ideia de democracia; conseguem sobreviver apenas na medida em que abdicam seu próprio eu. Desvendar as teias do deslumbramento implicaria em um doloroso esforço de conhecimento que é travado pela própria situação da vida, com destaque para a indústria cultural intumescida como totalidade. A necessidade de uma tal adaptação, da identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial totalitário. Este é reforçado pela insatisfação e pelo ódio, produzidos e reproduzidos pela própria imposição 100


à adaptação. Justamente porque a realidade não cumpre a promessa de autonomia, enfim, promessa de felicidade que o conceito de democracia afinal assegurara, as pessoas tornamse indiferentes à democracia, quando não passam até a odiá-la. A forma de organização política é experimentada como sendo inadequada à realidade social e econômica; assim como existe uma obrigação individual à adaptação, pretendese que haja também, obrigatoriamente, uma adaptação das formas da vida coletiva, tanto mais quando se aguarda uma tal adaptação e balizamento do Estado como megaempresa na aguerrida competição de todos. Os que permanecem impotentes não conseguem suportar uma situação melhor sequer como mera ilusão; preferem livrar-se do compromisso com uma autonomia em cujos termos suspeitam não podem viver, atirando-se no cadinho do eu coletivo. (ADORNO, 1995, p.43-4 - grifos meus) A ideia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar a dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que – como mostrou a psicologia – se 101


identifica com muita facilidade com o sadismo. O elogiado objetivo de “ser duro” de uma tal educação significa a indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito a ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é conhecido da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido. (ADORNO, 1995, p. 129) The use of stereotypes of Jewish greed and sabotage, and the metaphor of the bacteria cannot obscure the fact that something more than wealth 102


and hygiene is involved. Although the speaker uses the terms such as spirit, soul, and love of our people, the essential point he wants to impress upon his listeners is this: under no circumstances must they succumb to human impulses. The dehumanization and killing of the Jew cannot be carried out effectively unless the killer too is dehumanized, unless he extirpates in himself every claim to human existence as an individual. (Lowenthal, 1987, p.99 – grifos meus) (...) os tipos característicos do mundo de Auschwitz , constituem provavelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega ao coletivo. Por outro, são talhados para manipular as massas, coletivos, tais como Himmler, Hos, Eichmann (ADORNO, 1995, p. 127) Malaise is a consequence of the depersonalization and permanent insecurity of modern life. Yet it has never been felt among people so strongly as in the past few decades. The inchoate protest, the sense of disenchantment, and the vague complaints and forebodings that are already perceptible in late nineteenth-century art and literature have been 103


diffused into general consciousness. There they function as a kind of vulgarized romanticism, a Weltschmerz in perpetuum, a sickly sense of disturbance that is subterranean but explosive. The intermittent and unexpected acts of violence on the part of the individual and the similar acts of violence to which whole nations can be brought are indices of this underground torment. Vaguely sensing that something has gone astray in modern life but also strongly convinced that he lacks the power to right whatever is wrong (even if were possible to discover what is wrong), the individual lives in a sort of eternal adolescent uneasiness. (LOWENTHAL, 1987, p.27 – grifos meus) No que diz respeito à consciência coisificada, além disso é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades tipos de distribuição de energia psíquica - de que necessitam socialmente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, 104


afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu tecnológico”. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. (...) Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vítimas de Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. (ADORNO, 1995, p. 132-3) Por que, então, a Primeira Guerra Mundial foi travada pelas principais potências dos dois lados como um tudo ou nada, ou seja, como uma guerra 105


que só podia ser vencida por inteiro ou perdida por inteiro? O motivo era que essa guerra, ao contrário das anteriores, tipicamente travadas em torno de objetivos específicos e limitados, travava-se por metas ilimitadas. Na Era dos Impérios a política e a economia se haviam fundido. A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era não ter limites. (HOBSBAWN, 2003, p. 37) Não surpreende que na memória dos britânicos e franceses, que travaram a maior parte da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, esta tenha permanecido como a “Grande Guerra”, mais terrível e traumática na memória que a Segunda Guerra Mundial. Os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar, e se incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente estropiados e desfigurados - os “gueules cassés” *“caras quebradas”+ que se tornaram parte tão vívida da imagem posterior da guerra -, não muito mais de um terço dos soldados franceses saiu da guerra incólume. As possibilidades do primeiro milhão de soldados 106


britânicos sobreviver à guerra incólumes eram de mais ou menos 50%. Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens de menos de trinta anos (...) Mesmo as baixas aparentemente modestas dos EUA (116 mil, contra 1,6 milhão de franceses, quase 800 mil britânicos e 1,8 milhão de alemães), na verdade demonstram a natureza assassina da Frente Ocidental, única em que estes lutaram. (HOBSBAWN, 2003, p. 33-34) (...) Os conflitos totais viraram “guerras populares”, tanto porque os civis e a vida civil se tornaram alvos estratégicos certos, e às vezes principais, quanto porque em guerras democráticas, como na política democrática, os adversários são naturalmente demonizados para fazê-los devidamente odiosos ou pelo menos desprezíveis. As guerras conduzidas de ambos os lados por profissionais, ou especialistas, sobretudo os de posição social semelhante, não excluem o respeito mútuo e a aceitação de regras, ou mesmo cavalheirismo. A violência tem suas leis. (...) Mas as guerras totais estavam muito distantes do padrão bismarckiano do século XVIII. Nenhuma guerra em que se mobilizam os sentimentos nacionais de 107


massa pode ser tão limitada quanto as guerras aristocráticas. (...) (HOBSBAWN, 2003, pp. 56-57) Em suma, poupanças privadas desapareceram, criando um vácuo quase completo de capital ativo para as empresas (...). Quando a grande inflação acabou, em 1922-3, devido à decisão dos governos de parar de imprimir papel-moeda em quantidade ilimitada e mudar a moeda, as pessoas na Alemanha que dependiam de rendas fixas e poupança foram aniquiladas, embora uma minúscula fração do dinheiro tivesse sido salva na Polônia, Hungria e Áustria. Contudo, pode-se imaginar o efeito traumático da experiência nas classes médias e média baixa locais. Isso deixou a Europa Central pronta para o fascismo. (HOBSBAWN, 2003, p. 94-95) Para aqueles que, por definição, não tinham controle ou acesso aos meios de produção (a menos que pudessem voltar para uma família camponesa no interior), ou seja, homens e mulheres contratados por salários, a consequência básica da Depressão foi o desemprego em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo que qualquer um já experimentara. No pior 108


período da Depressão (1932-3), 22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa, e nada menos do que 44% da alemã não tinham emprego. (HOBSBAWN, 2003, p. 97) Após a recuperação econômica de 1924, o Partido dos Trabalhadores Nacional-Socialistas foi reduzido à rabeira de 2,5 a 3% do eleitorado, conseguindo pouco mais da metade do que o pequeno e civilizado Partido Democrático alemão, pouco mais que um quinto dos comunistas e muito menos de um décimo dos socialdemocratas nas eleições de 1928. Contudo, dois anos depois havia subido para mais de 18% do eleitorado, tornando-se o segundo partido mais forte na política alemã. Quatro anos depois, no verão de 1932, era de longe o mais forte, com mais de 37% dos votos totais, embora não mantivesse esse apoio enquanto duraram as eleições democráticas. Está claro que foi a grande depressão que transformou Hitler de um fenômeno da periferia política no senhor potencial e, finalmente real, do país. (HOBSBAWN, 2003, p. 133) 109


(...) nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1985, p. 198) (...) Assim, longe de iniciar outra rodada de revoluções sociais, como esperara a Internacional Comunista, a Depressão reduziu o movimento comunista fora da União Soviética a um estado de fraqueza sem precedentes. Isso se deveu, em certa medida, à política suicida do Comintern, que não apenas subestimou grandemente o perigo do nacional-socialismo na Alemanha, como seguiu uma linha de isolamento sectário que parece incrível em retrospecto, decidindo que seu principal inimigo era o trabalhismo de massa organizado dos partidos social-democratas e 110


trabalhistas (descritos como social-fascistas). (...) (HOBSBAWN, 2003, p. 108) No referente ao lado subjetivo, ao lado psíquico das pessoas, o nazismo insuflou desmesuradamente o narcisismo coletivo, ou, para falar simplesmente: o orgulho nacional. Os impulsos narcisistas dos indivíduos, aos quais o mundo endurecido prometida cada vez menos satisfação e que mesmo assim continuavam existindo ao mesmo tempo em que a civilização lhes oferecia tão pouco, encontraram uma satisfação substitutiva na identificação com o todo. (ADORNO, 1995, pp. 39-40) Já na Primeira Guerra Mundial os turcos – o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha – mandaram assassinar mais de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito. O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX. (ADORNO, 1995, p.120) 111


(...) While appearing as a superman, the leader must at the same time work the miracle of appearing as an average person, just as Hitler posed as a composite of King Kong and suburban barber. (…) (…) Accordingly, one the basic devices of personalized fascist propaganda is the concept of the “great little man”, a person who suggests both omnipotence and the idea that he is just one of the folks, a plain, redblooded American, untainted by material or spiritual wealth. Psychological ambivalence helps to work a social miracle. The leader image gratifies the follower’s twofold wish to submit to authority and to be authority himself. (ADORNO, p. 127) Segundo Adorno, esta configuração sadomasoquista torna-se ao mesmo tempo “condição e resultado do processo de adaptação social” dos indivíduos do tipo autoritário. A esteriotipia de seu pensamento adquire uma função precisa no interior da economia psíquica desses indivíduos: ela facilita a canalização de sua energia libidinal em harmonia perfeita com as demandas de um superego severo. A identificação 112


com o in-group, em estreita oposição aos outgroups, absorve grande parte de sua energia libidinal; os indivíduos tendem a se identificar com tudo aquilo que representa força, o poder, ao mesmo tempo que rejeitam tudo o que consideram inferior em relação ao in-group. (...) (AMARAL, 1997, p. 31) Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar os outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo “caráter manipulador” em Authoritarian Personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos empiricamente confirmados só muito tempo depois. O caráter manipulador - e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca dos líderes nazistas – se 113


distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Esse tipo encontrase, entrementes – a crer em minhas observações e generalizando algumas pesquisas sociológicas -, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. (ADORNO, 1995, p. 129)

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