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Constelares: intercambio org창nico, inorg창nico. Moda e tempo sem fraturas


Constelares: intercambio orgânico, inorgânico. Moda e tempo sem fraturas. Palavras chave: apocatástase, fotografia, moda, caveira, corpo, próteses, órteses, androgenia, desejo, prazer, necrofilia, sadismo, saúde, patologia, corpo sem órgãos, natureza, antinatural, sobrenatural, tempo de plástico. Tertium datur, não existe, portanto, apenas a metafísica da presença e, digamos, a teoria da diferença. Há um terceiro, e este terceiro é a tradição da presença ausente, segundo a qual a leitura de um texto poderia ser definida como uma reescritura na própria atualidade. Nesse processo o texto é de fato desenvolvido numa estrutura policêntrica, uma estrutura que tem tantos centros quantos leitoresescritores, e todos eles estão ausentes nela, porque estão mortos ou ainda não nasceram. O leitor atual, porém, que escreve o texto de novo, está em condições de reconstruir algumas destas leituras, de forma historicamente correta ou não, o que não deverá ser discutido. Na medida em que ele o faz, ele assenta os outros no texto, os que foram os escritores e leitores anteriores. 2


Na medida em que ele, ao escrever, ab-roga as leituras anteriores, adquire as condições para construir a sua própria. Dessa maneira, o leitor, enquanto escrevente, estabelece uma série de diferentes significados no texto, dos quais nenhum tem primazia sobre os outros, nem mesmo aqueles desenvolvidos por ele próprio. Nenhum possui a verdade, mas todos eles juntos aproximam-se daquele infinito que, com Benjamin, poderia ser chamado de prosa absoluta. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper – grifos meus). 1 A chama viva da verdade casada com a bela aparência, que nada mais representa do que a chama da vida, continua a arder, como já dissera a introdução ao ensaio sobre as Afinidades Eletivas "para além do grave fracasso do que foi e da leve cinza do vivenciado". Elas devem conter, portanto, alguma coisa que as eleva por sobre e as distingue do documento histórico. Elas devem abrigar em "seu interior", como diz Benjamin no prefácio, algo que se torna legível e decifrável apenas mais tarde, algo que pode ajudar apenas as gerações futuras em sua orientação histórica, em sua formação de experiência, em resumo, alguma coisa que depende do tempo para crescer, amadurecer, se desenvolver. 3


Tais imagens, ao que tudo indica, são de vital importância para os homens. Se elas faltarem, acabarem, transportarem ideologia, há motivo para preocupação quanto à orientação individual e coletiva. Benjamin sentia-se inquietado por esta preocupação, como Jürgen Habermas salientou no seu trabalho de 1972. (Klaus Garber. Por que os herdeiros de Walter Benjamin ficaram ricos com espólio? Filosofia da história de Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber – grifos meus. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) It may be considered one of the methodological objectives of this work [Das Passagen-Wek] to demonstrate a historical materialism which annihilated within itself the idea of progress. Just here, historical materialism has every reason to distinguish itself sharply from bourgeois habits of though. Its founding concept is not progress but actualization. (BENJAMIN, 1999, p. 460) A teoria e, mais ainda, a prática da socialdemocracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os socialdemocratas, o progresso era, em 4


primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, ideia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha. (BENJAMIN, 1985, p. 229) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes 5


dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (Benjamin, 1985, pp. 224-225) O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final. (Benjamin, 1985, p. 223) O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de 6


qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é 7


compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas. (Benjamin, 1985, p. 231 – grifos meus) Podemos agora tentar entender melhor essa expressão Darstellung der Wahrheit ou "exposição da verdade". Parto da hipótese de que ela somente se tornará inteligível se percebermos o duplo valor do genetivo "da verdade". "Exposição da verdade" significa, de um lado, que a filosofia tem por tarefa expor, mostrar, apresentar a verdade, mas significa também, do outro lado, que a verdade só pode existir enquanto se expõe, se apresenta, se mostra a si mesma. No primeiro momento, a filosofia é a força expositiva e apresentadora; no segundo, é a própria verdade que tem um movimento essencial de exposição de si mesma. Esses dois momentos são complementares e indissociáveis. Como a filosofia, se quiser mostrar, expor, apresentar a verdade, só o pode quando respeitar a incomensurabilidade desta última à linguagem — e, nesse sentido, somente consegue expor a verdade ao mostrar a insuficiência da linguagem que tenta dizê-la, como Platão já afirmava na famosa "digressão filosófica" de sua Sétima Carta —, assim também a verdade deve, essencialmente, expor8


se a si mesma; ou, dito de maneira mais polêmica, não pode exisitir em si mesma em uma autoridade soberana inefável, mas só pode se realizar em sua autoexposição, em particular em sua autoexposição nas artes e na linguagem (mas não na história universal, como em Hegel). (GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza) Se, na obra de Benjamin, houver uma disciplina que assuma virtualmente a função de cobrir um espectro integral, esta é, aos meus olhos, a filosofia da história. Mesmo a filosofia da linguagem, concebida de forma igualmente universal, converge, se eu estiver certo, para a filosofia da história, pelo menos no que se refere à categoria da Revelação, a qual, como Scholem já verificara, em contraposição à categoria da Salvação, desaparece da obra tardia, mas nem por isso precisa ser apagada do pensamento. (Klaus Garber. Por que os herdeiros de Walter Benjamin ficaram ricos com espólio? Filosofia da história de Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE)

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Causa e efeito - “Explicação”, dizemos; mas é “descrição” o que nos distingue dos estágios anteriores do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor e explicamos tão pouco quanto aqueles que nos precederam. Descobrimos múltiplas sucessões, ali onde o homem e o pesquisador ingênuo de culturas anteriores via apenas duas coisas, “causa” e “efeito”, como se diz; aperfeiçoamos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem, não vimos o que está por trás dela. Em cada caso, a série de “causas” se apresenta muito mais completa diante de nós, e podemos inferir: tal e tal coisa têm de suceder antes para que venha essa outra - mas nada compreendemos com isso. Em todo devir químico, por exemplo, a qualidade aparece como um “milagre”, agora como antes, e assim também todo deslocamento; ninguém “explicou” o empurrão. E como poderíamos explicar? Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis como pode ser possível explicação, se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada 10


mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão. Causa e efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais - na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subtaneidade que existe apenas para nós. Neste segundo de subtaneidade há um número infindável de processos que nos escapam. Um intelecto que visse causa e efeito como um continuum, e não, à nossa maneira, como arbitrário esfacelamento e divisão, que enxergasse o fluxo do acontecer, rejeitaria a noção de causa e efeito e negaria qualquer condicionalidade. (NIETZSCHE, 2005, p. 140) A infinitude da reflexão é para Schlegel e Novalis, antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude de conexões. Isto é decisivo, justamente com o seu caráter temporal inacabável e antes mesmo dele, que deve ser compreendido de outra maneira que não uma progressão vazia. Hölderlin, apesar de não ter tido contato com algumas ideias dos primeiros românticos (...), proclamou a última e incomparavelmente 11


profunda palavra, escrevendo em um lugar onde ele quis expressar uma conexão, a mais acertada e interna: “Conectar infinitamente (exatamente)”. Schlegel e Novalis tinham em mente o mesmo quando compreenderam a infinitude da reflexão como infinitude realizada do conectar: nela tudo devia se conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras, sistematicamente como nós diríamos hoje em dia, “exatamente”, como diz Hölderlin com mais simplicidade. Essa conexão pode ser compreendida mediatamente a partir de níveis infinitamente numerosos de reflexão, na medida em que gradualmente o conjunto das demais reflexões seja percorrida por todos os lados. Na mediação por reflexões não existe, no entanto, em princípio, nenhuma oposição com relação à imediatez do compreender via pensamento, pois toda reflexão é em si imediata. (BENJAMIN, 2002, p. 34-35) Como ressaltaram inúmeros pensadores, a teologia não é, em primeiro lugar, uma construção especulativa dogmática, mas, antes e acima de tudo, um discurso profundamente paradoxal: discurso ou saber (logos) "sobre" Deus (theos), consciente, já no início, de que o "objeto" visado lhe escapa, por ele se situar muito além 12


(ou aquém) de qualquer objetividade. Assim, a teologia seria o exemplo privilegiado da dinâmica profunda que habita a linguagem humana quando essa se empenha em dizer, de verdade, seu fundamento, em descrever seu objeto e, não o conseguindo, não se cansa de inventar novas figuras e novos sentidos. Por certo, nem todos os discursos humanos seguem a regra de uma impossibilidade transcendental e constitutiva de apreender o próprio objeto. Mas tal paradigma de um discurso que se definiria por sua insuficiência essencial, constituindo-se positivamente em redor dessa ausência — um paradigma oriundo da teologia —, habita no cerne da tradição filosófica e poética, especialmente contemporânea. Convém observar, aliás, que, se Deus é o primeiro e, talvez o mais radical, desses significados insondáveis e indizíveis, ele não é o único. Nem a beleza do mundo nem o sofrimento humano podem verdadeiramente ser ditos. (...) (...) A uma filosofia concebida como doutrina do conhecimento ou como o próprio conhecimento de um objeto preciso por um sujeito determinado, Benjamin opõe, na esteira da metafísica platônica e da teologia, a 13


outra vertente da busca filosófica: uma errância (errance) fértil, um exercício paciente que não visa possessão alguma mas procura desenhar, expor, de modo lúdico ou grave, e sempre incompleto, aquilo que simultaneamente, fundamenta o logos e a ele escapa. A tradição filosófica lhe dá também outro nome: verdade. (Gagnebin, Jeanne-Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE). Mas se a moda é funcionária da morte, ela constitui, por outro lado, a realização irônica do programa do jovem Marx: naturalização do homem, humanização da natureza. Ela oferece a imagem de uma natureza humanizada, como a lune peinte par elle-même, de Grandville, que em vez de se inclinar sobre nuvens, recosta-se em moderníssimos coxins de pelúcia (p.267). E é o modelo de uma humanidade naturalizada, como os vestuários fantásticos descritos por Appolinaire, em que entravam todas as substâncias do reino animal, vegetal e mineral, desde a cortiça e a porcelana até as arestas de peixe. "A moda não despreza nada, ela enobrece tudo, e faz pelas matérias o que os românticos fizeram pelas palavras" (p. 119). Da mesma forma que a moda é veículo do inorgânico, mas 14


também da reconciliação com a natureza, ela é a encarnação do tempo mítico, o do sempre igual, mas também a promessa do tempo messiânico, o da história dialética. Enquanto sacerdotisa da mercadoria, a única função da moda é apresentar o indiferenciado na forma do diferenciado, o idêntico na forma do único. "A história do vestuário está sujeita a variações surpreendentemente insignificantes, e não é outra coisa que um rodízio de nuances o comprimento da barra, a altura do penteado, a extensão das mangas, o décolleté do busto, a largura da cintura. Mesmo as revoluções mais radicais da moda constituem sempre o eterno retorno do mesmo" (p. 120). Nisso, ela se mostra como a antítese da política, como o símbolo da atualidade perversa, die schlechte Heutigkeit. "A mudança introduzida pela moda, o hoje eterno, escapa à ótica histórica, e só pode ser verdadeiramente superada pela política ou pela teologia. A política reconhece em cada configuração atual o verdadeiramente único, o irrepetível" (pp. 674-5). Ao mesmo tempo, a moda "contém também temas da redenção" (7), constituindo mesmo o modelo da história dialética: ela é um "salto de tigre em direção ao passado" (8). A história materialista faz explodir a 15


dinamite que jaz no passado, e cuja figura mais autêntica é a moda" (p. 495). Ela cancela a amnésia coletiva. "As modas são medicamentos destinados a compensar, em escala coletiva, os efeitos fatídicos do esquecimento" (p. 131). Imita, em sua estrutura, a estrutura da história descontínua, baseada na ruptura. A moda consiste em extremos. Como por natureza ela busca extremos, não lhe resta outra alternativa, ao abandonar uma forma, senão procurar o seu contrário" (p. 119). O espetáculo da moda, que consiste em apresentar o mais novo na forma do mais antigo, do mais habitual, "é o espetáculo genuinamente dialético" (p. 122). A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja, escondido no passado (9). Sim, os costureiros "obtêm sua inspiração da atualidade mais viva. Mas como nenhum presente se emancipa totalmente do passado, este também lhe oferece estímulos O chapéu inclinado na testa, que devemos à exposição de Manet, prova que surgiu entre nós uma nova disponibilidade de confrontar-nos com o século XIX" (p. 122). Nessa imitação do passado, ela tem o poder de mostrar-nos o novo, antes que ele se concretize. "Ela mantém um contato constante e preciso com as coisas vindouras, graças ao fato 16


incomparável que as mulheres têm pelo que se está preparando no futuro. Cada estação traz em suas últimas criações sinais secretos das coisas que virão. Quem souber lê-las, conhecerá de antemão as novas leis, as novas guerras e as novas revoluções" (p. 112). (ROUANET, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) (...) Se a filosofia quiser conservar a lei da sua forma, não como propedêutica mediadora do conhecimento, mas como representação da verdade, então aquilo que importa deve ser a prática de sua forma, e não sua antecipação num sistema. Tal prática impôs-se em todas as épocas para as quais foi evidente a essência não delimitável do verdadeiro, sob uma forma propedêutica que pode ser designada pelo termo escolástico do “tratado”, porque ele reenvia, ainda que apenas de forma latente, para os objetos da teologia, sem os quais não é possível pensar a verdade. Os tratados serão doutrinários no tom que assumem, mas sua índole profunda exclui aquele rigor didático que permite à doutrina afirmar-se por autoridade própria. E também eles renunciam aos meios coercitivos da 17


demonstração matemática. Na sua forma canônica, eles aceitam um único elemento doutrinal - de intenção, aliás, mais educativa que doutrinária -, a citação da auctoritas. A representação é a quintaessência de seu método. Método é caminho não direto. A representação como caminho não direto: esse é o caráter metodológico do tratado. A sua primeira característica é a renúncia ao percurso ininterrupto da intenção. O pensamento volta continuamente ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é modo de ser específico da contemplação. De fato, seguindo, na observação de um único objeto, os seus vários níveis de sentido, ele recebe daí, quer o impulso para um arranque constantemente renovado, quer a justificação para intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico não perde sua majestade pelo fato de ser caprichosamente fragmentado. Ambos se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é sua relação com a concepção de fundo, e desse valor 18


depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt). Tanto o mosaico como o tratado, na fase áurea de seu florescimento no Ocidente pertencem à Idade Média; aquilo que permite sua comparação é, assim, da ordem do genuíno parentesco. (BENJAMIN, 2004, p. 14) O trapeiro que recolhe os dejetos exatamente por serem desejos, que apanha do chão a natureza em sua mais deplorável existência, que não falta à coisa em sua deformidade, que é solidário e invisível, que perambula solitário e imerso na noite, enquanto os perpetradores da violência se recolhem ao país dos adormecidos, ouve a natureza (humanizada e violentada), como quem escuta o primeiro pássaro do tempo. No século XIX havia uma verdadeira indústria artesanal do lixo. Milhares de homens ganhavam a vida recolhendo lixo nas ruas. É a esses trapeiros que é dedicado um poema de Baudelaire, "Le Vin des Chiffoniers". Num trabalho 19


em prosa, Baudelaire descreve a atividade do trapeiro. "Eis um homem encarregado de apanhar os detritos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desdenhou, tudo o que ela quebrou ele cataloga e coleciona. Ele compulsa os arquivos do passado, os cafarnauns dos dejetos. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; recolhe, como um ávaro recolhe um tesouro, as imundícies que, reelaboradas pela divindidade industrial, se tornarão de novo objetos de utilidade ou prazer" (p. 441). Um discípulo de Fourier, Toussenel, exalta a importância social do trapeiro. "Há na humanidade uma quantidade de cacos de garrafas, de pregos desaparelhados e resíduos de velas, que estariam completamente perdidos para a sociedade se mãos cuidadosas e inteligentes não se encarregassem de juntar todos esses fragmentos sem valor. Esse ofício importante entra nas atribuições do avarento. Aqui o caráter e a missão do avarento se elevam visivelmente o unha-de-fome se transforma em trapeiro" (p. 778). Essa descrição do trapeiro o aproxima de outra figura que fascina o flâneur o colecionador. Não é por acaso que Baudelaire condensou numa só essas duas figuras, quando escreveu que o trapeiro "cataloga e coleciona". 20


Também o colecionador se interessa por objetos descontextualizados, juntando-os segundo uma ordem que só para ele vale. Também ele reúne objetos que perderam todo valor de troca e todo valor de uso. A tarefa do colecionador é a transfiguração das coisas. Seu trabalho é um trabalho de Sísifo, retirar das coisas, pela posse, seu caráter de mercadoria. Mas em vez de devolver-lhes o valor do uso, o colecionador lhes atribui um valor idiossincrásico, determinado por seu interesse de "conhecedor". Ele é o trapeiro dos objetos mortos, retira-os do seu hábitat, e os faz renascer num novo universo relacional. Com isso, ele estabelece uma nova relação com a história. "O colecionador sonha não somente um mundo distante ou passado como um mundo melhor em que as coisas estão libertas da obrigação de serem úteis" (p. 53). Cada peça de sua coleção se transforma numa enciclopédia, mônada em que se resume toda uma história a história do objeto e das circunstâncias em que ele foi encontrado, e nesse sentido é "uma forma de rememoração prática, a mais convincente das manifestações do próximo" (p. 271). (ROUANET, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material

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em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) Já há muito tem se admitido uma certa influência da faculdade mimética sobre a linguagem. Mas essa opinião carece de fundamentos sólidos, e não se cogitou nuca seriamente de investigar a significação, e muito menos a história, da faculdade mimética. Sobretudo, tais reflexões ficaram estreitamente vinculadas à esfera mais superficial da semelhança, a sensível. De qualquer modo, os investigadores reconhecem, na onomatopeia, o papel do comportamento imitativo na gênese da linguagem. Mas, se a linguagem, como é óbvio para as pessoas mais perspicazes, não é um sistema convencional de signos, é imperioso recorrer, no esforço de aproximarse da sua essência, a certas ideias contidas nas teorias onomatopeicas, em sua forma mais crua e mais primitiva. A questão é: podem essas instituições ser adaptadas a uma concepção mais estruturada e mais lúcida? Em outras palavras: podemos dar um sentido à frase de Leonhard, contida no seu ensaio revelador, A palavra: “cada palavra e a língua inteira são onomatopeicas”? A 22


chave, que pela primeira vez, torna essa tese transparente, está oculta no conceito da semelhança extrassensível. Se ordenarmos várias palavras das diferentes línguas, com a mesma significação, em torno desse significado, como seu centro, pode-se verificar como todas essas palavras, que não têm entre si a menor semelhança, são semelhantes ao significado situado no centro. Tal concepção é naturalmente próxima das teorias místicas, ou teológicas, sem com isso abandonar o âmbito da filologia empírica. Mas, como se sabe, as teorias místicas da linguagem não se contentam em submeter a palavra oral a seu campo reflexivo e preocupam-se igualmente com a palavra escrita. É digno de nota que esta pode esclarecer a essência das semelhanças extrassensíveis, talvez melhor ainda que certas configurações sonoras da linguagem, através da relação entre a imagem escrita de palavras ou letras com o significado, ou com a pessoa nomeadora. Assim, a palavra beth tem o nome de uma casa. É, portanto, a semelhança extrassensível que estabelece a ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário, irredutível. 23


A mais importante dessas ligações é talvez a última, entre a palavra escrita e falada. Pois a semelhança que nela prevalece é comparativamente a menos sensível de todas. E também a que foi alcançada mais tarde. A tentativa de captar sua verdadeira essência, não pode ser realizada sem reconstituir a história de sua gênese, por mais impenetrável que seja a obscuridade que cerca esse tema. A moderna grafologia ensinou-nos a identificar na escrita manual imagens, ou antes, quebra-cabeças, que o inconsciente do seu autor nela deposita. É de supor que a faculdade mimética, assim manifestada na faculdade de quem escreve, foi extremamente importante para o ato de escrever nos tempos recuados em que a escrita se originou. A escrita transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências extrassensíveis. Essa dimensão - mágica, se se quiser – da linguagem e da escrita não se desenvolve isoladamente da outra dimensão, a semiótica. Todos os elementos miméticos da linguagem constituem uma intenção fundada, isto é, eles só podem vir à luz sobre um fundamento que lhes é estranho, e esse fundamento não é outro que a dimensão semiótica e comunicativa da linguagem. O 24


texto literal da escrita é o único e exclusivo fundamento sobre o qual pode formar-se o quebracabeça. O contexto significativo contido nos sons da frase é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do relâmpago. Mas, como essa semelhança extrassensível está presente em todo ato da leitura, abre-se nessa camada profunda o acesso ao extraordinário duplo sentido da palavra leitura, em sua significação profana e mágica. O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas estrelas. No primeiro exemplo, o ato de ler não se desdobra em seus dois componentes. O mesmo não ocorre no segundo caso, que torna manifestos os dois extratos da leitura: o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê ao mesmo tempo, nessa posição, o futuro ou o destino. Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existirem elos mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se supor que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou gradativamente, no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita, nelas reproduzindo um arquivo completo de semelhanças 25


extrassensíveis. Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um médium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no médium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças no correr da história. Porém o ritmo, a velocidade na leitura e na escrita, inseparáveis desse processo, seriam como o esforço, ou o dom, de fazer o espírito participar daquele segmento temporal no qual as semelhanças irrompem do fluxo das coisas, transitoriamente, para desaparecerem em seguida. Assim, mesmo a leitura profana, para ser compreensível, partilha com a leitura mágica a característica de ter que submeter-se a um tempo necessário, ou antes, a um momento crítico que o leitor por nenhum preço pode esquecer se não quiser sair de mãos vazias. (BENJAMIN, 1985, pp. 110-113)

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(...) O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores (...). (BENJAMIN, 1985, p. 132) (...) Vemos aqui onde conduz a concepção do “intelectual” como um tipo definido por suas opiniões, convicções e disposições, e não por suas posição no processo produtivo. Como diz Döblin, ele deve encontrar seu lugar ao lado do proletariado. Que lugar é esse? O lugar de um protetor, de um mecenas ideológico. Um lugar impossível. E assim voltamos à tese inicial: o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado ou escolhido, em função de sua própria posição no processo produtivo. Brecht criou o conceito de “refuncionalização” para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de 27


produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho produtor, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista. (...) O que se propõe são inovações técnicas, e não uma renovação espiritual como proclamam os fascistas. (BENJAMIN, 1985, p. 127 – grifos meus) (...) Com a assimilação indiscriminada dos fatos também cresce a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento didático nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, prescrever e descrever. Como especialista – se não numa área do saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções -, ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a palavra. A capacidade de descrever esse mundo 28


passa a fazer parte das qualificações exigidas para a execução do trabalho. O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso transforma-se em direito de todos. Em suma, é a literalização das condições de vida que resolve as antinomias, de outra forma insuperáveis, e é no cenário em que se dá a humilhação mais extrema da palavra – o jornal – que se prepara sua redenção. (BENJAMIN, 1985, pp. 124-125 – grifos meus. Esse exceto corresponde à citação de um “autor de esquerda”, ao qual Benjamin recorre para ilustrar seu argumento) O jogo transforma o tempo num narcótico. Mas como as fantasmagorias do espaço, as do tempo também têm o seu momento verdadeiro. Por um lado, o jogador está sujeito ao tempo do eterno retorno. Como o operário na linha de montagem, ele está condenado, depois de cada lance, a começar de novo, sem qualquer perspectiva de construir uma sequencia ordenada, visando um objetivo final. Agregação descontínua de gestos sempre iguais, o tempo do jogador é o do eternamente idêntico. Não se pode dizer, sequer, que o jogador seja movido pelo desejo 29


do ganho. Na verdade, ele não deseja nada. Pois o jogador, protótipo do homem privado de experiência, e portanto cortado da tradição, não tem passado, e o desejo nasce na infância mais remota, só podendo realizar-se por completo na perspectiva de um futuro infinitamente disponível. É desse passado e desse futuro que está privado o jogador, cuja temporalidade é a do inferno: o ritmo do sempre igual (10). Mas por outro lado o jogador tem outro tipo de relação com o tempo. Ele é obrigado a reagir instantaneamente, num momento específico, sob um efeito de choque, que impede o trabalho de reflexão. "A embriaguez do jogo está em que ele impõe ao jogador uma presença de espírito tal que ele seja forçado a reagir a constelações sempre independentes umas das outras, de forma nova e original O jogador reage ao acaso como o joelho ao martelo do médico" (p. 634). Ele se liberta, assim, do sempre igual: cada instante é único, e pode trazer-lhe a fortuna esperada. Seu comportamento é o do homemmassa e o do espectador de cinema, comportamento reflexo mas rico de virtualidades políticas: "o jogo oferece a vantagem de libertar os homens da espera" (p. 178). Enfim, a práxis do jogador é eminentemente dialética: ela retira as coisas do seu contexto, pelo 30


choque. "A aposta é um meio de dar às coisas um caráter de choque, extraindo-as do contexto da experiência" (p. 640). Mas a aposta é mais o jogo dos dominadores que dos dominados. "Para a burguesia em especial, os acontecimentos políticos assumem a forma de acontecimentos na mesa de jogo. Para o proletário, não é tanto assim. Ele está mais disposto a reconhecer as constantes da história" (p. 640). (Sergio Paulo Rouanet. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens") Em Benjamin podemos ler que "a modernidade tem que estar sob o signo do suicídio". (...) A produção da mente ou do espírito, a produção cultural, poder-se ia dizer, tem como meta a efetividade e, com isso, a durabilidade. Mas efetividade e durabilidade são impossibilitadas pelo princípio da modernidade. Pois o que acaba de ser criado é imediatamente algo envelhecido e é vítima do desprezo e do esquecimento. Por outro lado, porém, na Idade Moderna o sujeito se define justamente a partir de sua força produtiva. O que é um ser humano? Um ser humano é, segundo a resposta da antropologia moderna, influenciada pela 31


estética do gênio, um ser que, a partir de si próprio, pode produzir algo. Esta condição fundamental da autoconsciência humana na Idade Moderna é revogada pelas características da modernidade. Por isso, a sua autoextinção deve ser entendida enquanto signo, como alegoria da compreensão da própria impossibilidade. Todos sabemos que Benjamin acompanhou esta noção, na prática, até seu último extremo. Benjamin elabora ainda mais o modelo do poeta visto como herói. Ele apresenta o poeta como apache, quer dizer, como rufião. "Apache" é uma palavra que estava na moda nos anos 20 e que denominava o rufião. Um outro papel em que se vê o poeta, nos poemas de Baudelaire, é o de catador de trapos. Contudo, o poeta é sempre descrito como marginal, como alguém que se ocupa das coisas somente e apenas quando elas caíram fora do seu contexto funcional. Isto se toma especialmente claro no símile do poeta e do catador de trapos. Como tal, ele é alguém que está à margem da sociedade burguesa, alguém que se ocupa com as coisas que estão à margem das concatenações funcionais da sociedade burguesa.

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A ligação mais profunda entre o herói da Antiguidade e o poeta consiste em que a luta de ambos está fadada, desde seu início, ao fracasso. Ambos estão predestinados à perdição. Na modernidade, porém, esta perdição carece da dignidade metafísica que distinguia o herói da Antiguidade. A sua perdição é tão certa quanto absurda. Nisso o poeta, como herói da modernidade, é o modelo e a encarnação daquilo que será também o destino das massas humanas nas grandes cidades, ou seja, uma morte sem sentido. (Bernd Witte. Por que o moderno envelhece tão rápido? Concepção da modernidade em Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) Aquilo que na tradição ontológica tem o nome de sujeito transcendental e garante a capacidade comunicativa da linguagem é, para Benjamin, a própria linguagem, mas não em abstrato ou em geral, mas na medida em que está ausente-presente a experiência de todos os homens e de todas as comunidades linguísticas. (...). Pois a ilimitada comunidade de comunicação dos seres finitos é, segundo a concepção de Benjamin, a comunidade dos mortos, a comunidade de todos aqueles que falaram e escreveram antes, aos 33


quais finalmente o próprio Autor se junta, na medida em que ele está ausente-presente como cadáver em seu próprio texto. Nesse sentido, Benjamin chama a leitura de ad plures ire, a expressão latina para "morrer", a saber, a viagem para a comunidade maior, que é a dos mortos. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper) (...) O tédio é o pássaro do sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de se extinguir no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, 34


depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (BENJAMIN, 1985, pp. 204-205) (...) O próprio Leskov considera essa arte artesanal – a narrativa – como um ofício manual. “A literatura”, diz ele em uma carta, “não é para mim uma arte, mas um trabalho manual.” Não admira que ele tenha sido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial. (...) (BENJAMIN, 1985, pp. 205-206) (...) Cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contata com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação A disposição de seu quarto, em frente da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. Esta é a garantia da ordem. (...) A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do 35


guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão seqüestrada e olhada. (FOUCAULT, 2002, p. 166) A escrita sai do livro, emigra do livro e imigra para as formas da moda, para as formas da arquitetura e, sobretudo, naturalmente, para as formas da propaganda. E por isso, estes fenômenos, moda, arquitetura e propaganda, são tão infinitamente importantes para Benjamin, justamente por poderem ser decifrados como escrita. E também por isso a moderna metrópole se apresenta a Walter Benjamin como um fluxo cristalizado de dados. Max Bense cunhou certa vez uma expressão muito marcante para este novo mundo, chamando-o de "mundo dos cartazes". As letras da propaganda diferenciam-se das letras do livro simplesmente pelo fato de não mais poderem ser distanciadas de forma contemplativa, mas de serem penetrantes, no sentido literal da palavra. Penetram no leitor quase que fisicamente. Poder-se-ia dizer até que elas incomodam o leitor. E no fundo, a propaganda, exatamente como a moda e a arquitetura, é uma 36


escrita que nem mesmo precisa ser lida, porque ataca fisicamente o ser humano. E o ataca naquilo que o homem faz no seu dia-a-dia, nos seus hábitos mais corriqueiros, como morar, trabalhar enfim, em todas as atividades mais evidentes. Este é um dos pontos que poderíamos resumir com a frase da emancipação da escrita do livro. Norbert W. Bolz Onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria? Teoria da mídia em Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) “You are passing through a great city that has grown old in civilization – one of those cities which harbor the most important archives of universal life – and your eyes are drawn upward, sursum, ad sidera; for in the public squares, at the corners of crossways, stand motionless figures, larger than those who pass at their feet, repeating to you solemn legends of Glory, War, Science, and Martyrdom, in a mute language. Some are pointing to the sky, whither they ceaselessly aspired; others indicate the earth from which they sprang. They blandish, or contemplate, what was the passion of their life and what becomes its emblem: a tool, a sword, a book, a torch, vitai lampada! Be you the most heedless 37


of men, the most unhappy or the vilest, a beggar or a banker, the stone phantom takes possession of you for a few minutes and commands you, it the name of the past, to think things which are not of the earth. / Such is the divine hole of sculpture”. Ch. B. Oeuvres, ed. Le Dantec, vol. 2, pp. 274-275 (“Salon of 1859). Baudelaire speaks here of sculpture as though it were present only in the big city. It is a sculpture that stands in the way of the passerby. This depiction contains something in the highest degree prophetic, tough sculpture plays only the smallest part in that which would fulfill the prophecy. Sculpture is found <?> only in the big city? (BENJAMIN, 1999, p. 289-290) Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira a imagem se move, mas na segunda não. Esta convida o espectador à contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme, isso não é mais possível. Mas o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem como quadro nem como algo real. A associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer 38


outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com que se defronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente. (BENJAMIN, 1985, p. 192) (...) segundo Freud, o consciente como tal não registraria absolutamente nenhum traço mnemônico. Teria, isto sim, outra função importante, a de agir como proteção contra estímulos. “Para o organismo vivo, proteger-se contra os estímulos é uma função quase mais importante que recebê-los; o organismo está dotado de reserva de energias próprias e, acima de tudo, deve estar empenhado em preservar as formas específicas de conversão de energia nele operantes contra a influência uniformizante e, por conseguinte, destrutiva das imensas energias ativas no exterior”. A ameaça destas energias se faz sentir através de choques. Quanto mais corrente se tornar o registros desses choques no consciente, tanto menos se deverá 39


esperar deles um efeito traumático. A teoria psicanalítica procura “entender...” a natureza do choque traumático “a partir do rompimento da proteção contra o estímulo”. Segundo essa teoria, o sobressalto tem “seu significado” na “falta de predisposição para a angústia”. (BENJAMIN, 1985, p. 109) (...) Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite de seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens venturosas entre ruínas arremessadas à distância. O espaço se amplia com o grande plano, o movimento se torna mais vagaroso com a câmara lenta. É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que se dirige ao olhar. A diferença está principalmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substituído por outro em que sua ação é inconsciente. Se podemos perceber o caminhar de uma pessoa, por exemplo, ainda que em grandes traços, nada sabemos, em compensação, sobre a atitude precisa na fração de segundo em que ela dá 40


um passo. O gesto de pegar um isqueiro ou uma colher nos é aproximadamente familiar, mas nada sabemos sobre o que se passa verdadeiramente entre a mão e o metal, e muito menos sobre as alterações provocadas nesse gesto pelos vários estados de espírito. Aqui intervém a câmera com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e emersões, suas interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações, suas ampliações e miniaturizações. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional. De resto existe entre os dois inconscientes as relações mais estreitas. (...) O cinema introduziu uma brecha na verdade de Heráclito segundo o qual o mundo dos homens acordados é comum, dos que dorme é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey Mouse, que hoje percorre o mundo inteiro. (...) (BENJAMIN, 1985, pp. 189-190) Mas o que nem Wirtz nem Baudelaire compreendera, no seu tempo, são as injunções implícitas na autenticidade da fotografia. Nem sempre será possível contorná-las com uma reportagem, cujos clichês 41


somente produzem o efeito de provocar no expectador associações linguísticas. A câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas , cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa. Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime? Não deve o fotógrafo, sucessor de augures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado? Já se disse que “o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar”. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia? Tais são as questões pelas quais a distância de noventa anos, que separa os homens de hoje do daguerreótipo, se descarrega de suas tensões históricas. É à luz dessas centelhas que as primeiras fotografias, tão belas e inabordáveis, se destacam da escuridão que envolve os dias em que

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viveram nossos avós. (BENJAMIN, 1985, p. 107 – grifos meus) It’s not that what is past casts its light on what is present, or what is present its lights on what is past; rather, image is that wherein what has been comes together in a flash with the now to form a constellation. In other words, image is dialectics at a standstill. For while the relation of the present to the past is purely temporal, continuous one, the relation of what-has-been to the now is dialectical: it is not progression but image, suddenly emergent. – Only dialectical images are genuine images (that is, not archaic); and the place where one encounters then is language. (BENJAMIN, 1999, p. 462 – grifos meus) (...) a metáfora absoluta de Benjamin para o seu conceito de história é a da relação entre o sonho e o despertar. Benjamin concebe a si próprio como intérprete político dos sonhos da história. Eu até diria que o que ele tenta é repetir a tarefa da psicanálise como lógica do conhecimento histórico. Benjamin tenta, portanto, repetir no registro do conhecimento histórico aquilo que Freud fez com a psicanálise, dentro dos limites da psicologia individual. A partir disto, seria 43


possível deduzir uma definição daquilo que Benjamin entende por modernidade. Benjamin tem a ideia de que o que passou tem menos concretude no passado do que na concretude de que é objeto através de nossa atualização. Quando presentificamos algo passado numa rápida imagem, como Benjamin também gosta de dizer, esta rápida imagem ganha uma concretude mais intensa do passado do que o passado teve na facticidade da história. Estou tentando explicar esta questão porque ela é, por um lado, difícil de entender e, pelo outro, extremamente importante para a teoria de Benjamin. Ele elabora o conceito de que o passado adquire um grau de concretude maior do que o que originalmente apresentava mediante a atualização, mediante uma atualização bem-sucedida. Eu diria que só há um caminho possível para entender este conceito, a saber, o da comparação com a psicanálise. (Norbert W. Bolz. É preciso teologia para pensar o fim da história?Filosofia da história em Walter Benjamin.Tradução de George Bernard Sperper – grifos meus. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE)

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O despertar nessa civitas dei terá a estrutura da apocatástase, aquela restauração final de todos os seres, inclusive o demônio e os condenados, sonhada por Orígenes. "Apocatástase, decisão: justamente os elementos do cedo demais e do demasiado tarde, do primeiro começo e do derradeiro declínio, reunir tudo de novo na ação revolucionária e no pensamento revolucionário" (p. 852). O primeiro amor das grisettes, o passeio em St. Cloud numa tarde de domingo, o assombro com o primeiro vidro, sim, mesmo o kitsch, mesmo o ornamento de ferro fundido, mesmo o impulso destrutivo de Haussman, a fantasia de uma cidade toda de passagens, em que o homem esteja ao abrigo das vicissitudes da história, o terror infantil com os subterrâneos, o fascínio sentido por Alice nos País dos Espelhos, a embriaguez dos museus de cera, sim, mesmo o fetichismo, com sua promessa de transcendência do imediato, os vencidos de todas as revoluções, mortos que agora podem ser resgatados pelos vivos, os êxtases da moda, do jogo, da coleção, todos os elementos da cidade, tudo o que nela um dia existiu e tudo o que nunca foi tudo isso será salvo 45


nessa explosão messiânica com que o Angelus Novus dinamita o continuum da história. Cada momento vivido transforma-se numa citação na ordem do dia e esse dia é justamente o do Juízo Final" (19). Nesse momento, os homens habitarão a cidade dos homens, verdadeiramente uma cidade de sonho, mas em que o sonho deixaria de ser mito e "a ação seria irmã do sonho" (p. 456). (Sergio Paulo Rouanet. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO DO INSTITUO GOETHE)

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Nervosidade É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a estória. É impossível dizer como a ideia me penetrou primeiro no cérebro. Uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos se parecia com o de um abutre. . . um olho de cor azulpálido, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre assim, e assim, pouco a pouco, bem lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre. 47


Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, ter-me visto. Deveria ter visto como procedi cautamente! Com que prudência...com que previsão. . . com que dissimulação lancei mãos à obra! (POE, O Coração Denunciador) *** Recolhimento Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta. Reclamavas a Tarde; eis que ela vem descendo: Sobre a cidade um véu de sombras se projeta, A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo. Enquanto dos mortais a multidão abjeta, Sob o flagelo do Prazer, algoz horrendo, Remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta, Dá-me, ó Dor, tua mão; vem por aqui, correndo. Deles. Vem ver curvarem-se os Anos passados Nas varandas do céu, em trajes antiquados; Surgir das águas a Saudade sorridente; 48


O Sol que numa arcada agoniza e se aninha, E, qual longo sudĂĄrio a arrastar-se no Oriente, Ouve, querida, a doce Noite que caminha. (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal) *** “You are passing through a great city that has grown old in civilization - one of those cities which harbor the most important archives of universal life - and your eyes are drawn upward, sursum, ad sidera; for in the public squares, at the corners of the crossways, stand motionless figures, larger than those who pass at their feet, repeating you the solemn legends of Glory, War, Science, and Martyrdom, in a mute language. Some are pointing to the sky, whither they ceaselessly aspired; other indicate the earth from which they sprang. They blandish, or they contemplate, what was the passion of their life and what bas become its emblem: a tool, a sword, a book, a torch, vitai lapada! Be you the most heedless of men, the most unhappy or the vilest, a beggar or a banker, the stone phantom takes possession of you for a few minutes and commands you, in name of the past, to think of things which are 49


not of the earth./Such is the divine role of sculpture.” Ch. B., Ouvres, (…) Baudelaire speaks here of sculpture as though it were present only in the big city. It is a sculpture that stands in the way of the passerby. This depiction contains something in the highest degree prophetic, though sculpture plays only the smallest part in which would be the prophecy. Sculpture is found <?> only in the city. (BENJAMIN, 1999, p. 289290) Os românticos queriam tornar absoluta a regularidade da obra de arte. Mas é apenas com a dissolução da obra que o momento do causal pode ser dissolvido, ou antes, transformado numa regularidade. Daí os românticos consequentemente terem tido de levar a cabo uma polêmica radical contra a doutrina goethiana acerca do valor canônico das obras gregas. Eles não podiam reconhecer modelos, obras autônomas fechadas em si, configurações cunhadas de modo definitivo e subtraídas à progressão eterna. Novalis foi quem se revoltou contra Goethe do modo mais atrevido e espirituoso: “Natureza e intelecção da natureza surgem ao mesmo tempo, assim como a Antiguidade e o conhecimento da Antiguidade; pois erra-se muito quando se acredita que existe a 50


Antiguidade. Apenas agora a Antiguidade começa a surgir [...]. Com a literatura clássica se passa como com a Antiguidade; ela não é propriamente dada a nós - ela não é existente -, mas, antes, ela deve ser produzida apenas agora por nós. Através do estudo assíduo e espirituoso dos antigos surge apenas agora uma literatura clássica para nós - a qual os antigos mesmos não possuíam. (BENJAMIN, 2002, P. 117-118) The belief in progress – in a perfectibility understood as an infinite ethical task – and the representation of eternal return are complementary. They are the indissoluble antinomies in the face of which dialectical conception of historical time must be developed. In this conception, the idea of eternal return appears precisely as that “shallow rationalism” which the belief in progress is accused of being, while faith in progress seems no less to belong to the mythic mode of thought than does the idea of eternal return. (BENJAMIN, 1999, P. 119) Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondose ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a 51


renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequenoburgueses com fantasias carnavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível 52


confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie. Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. 53


Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras. (BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza – Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119. – versão eletrônica) Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e 54


transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, 55


Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos. Os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de 56


Luís XVIII era a sua cabeça política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo modo, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real, uma vez realizada a transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc. A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua 57


solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez”. (Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte) Fica bem claro, em consequência, que a natureza que fala à câmara é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente. Se é banal analisar, pelo menos globalmente, a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e suas reduções. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a 58


experiência do inconsciente instintivo”. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, grifos meus) Procedendo ao levantamento das realidades através de seus primeiros planos que também sublinham os detalhes ocultos nos acessórios familiares, perscrutando as ambiências banais sob a direção engenhosa da objetiva, se o cinema, de um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre nossa vida, consegue, de outro, abrir imenso campo de ação do qual não suspeitávamos. Os bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos mobiliados, as estações e usinas pareciam aprisionarnos sem esperança de libertação. Então veio o cinema e, graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu esse universo concentracionário, se bem que agora abandonados no meio dos seus restos projetados ao longe, passemos a empreender viagens aventurosas. 59


Graças ao primeiro plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que assume novas dimensões. Tal como o engrandecimento das coisas — cujo objetivo não é apenas tomar mais claro aquilo que sem ele seria confuso, mas de desvendar novas estruturas da matéria — o raíenti não confere simplesmente relevo às formas do movimento já conhecidas por nós, mas, sim, descobre nelas outras formas, totalmente desconhecidas, "que não representam de modo algum o retardamento de movimentos rápidos e geram, mais do que isso, o efeito de movimentos escorregadios, aéreos e supraterrestres".(BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, grifos meus) O filme só atua em segundo grau, uma vez que se procede à montagem das sequencias. Em outras palavras: o aparelho, no estúdio, penetrou tão profundamente na própria realidade que, a fim de 60


conferir-lhe a sua pureza, a fim de despojá-la deste corpo estranho no qual se constitui — dentro dela — o mesmo aparelho, deve-se recorrer a um conjunto de processos peculiares: variação de ângulos de tomadas, montagem, agrupando várias sequencias de imagens do mesmo tipo. A realidade despojada do que lhe acrescenta o aparelho tomou-se aqui a mais artificial de todas e, no país da técnica, a apreensão imediata da realidade como tal é, em decorrência, uma flor azul. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, grifos meus) O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia. Um exame da psicologia da performance mostrou-nos que o aparelho pode desempenhar um papel de teste. Um olhar sobre a psicanálise nos fornecerá um outro exemplo. De fato, 61


o cinema enriqueceu a nossa atenção através de métodos que vêm esclarecer a análise freudiana. Há cinqüenta anos, não se prestava quase atenção a um lapso ocorrido no desenrolar de uma conversa. A capacidade desse lapso de, num só lance, abrir perspectivas profundas sobre uma conversa que parecia decorrer do modo mais normal, era encarada, talvez, como uma simples anomalia. Porém, depois de Psychopathologie des Allagslebens (Psicopatologia da Vida Cotidiana), as coisas mudaram muito. Ao mesmo tempo que as isolava, o método de Freud facultava a análise de realidades, até então, inadvertidamente perdidas no vasto fluxo das coisas percebidas. Alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido visual como no auditivo, o cinema acarretou, em consequência, um aprofundamento da percepção. E é em decorrência disso que as suas realizações podem ser analisadas de forma bem mais exata e com número bem maior de perspectivas do que aquelas oferecidas pelo teatro ou a pintura. Com relação à pintura, a superioridade do cinema se justifica naquilo que lhe permite melhor analisar o conteúdo dos filmes e pelo fato de fornecer ele, assim, um levantamento da realidade 62


incomparavelmente mais preciso. Com relação ao teatro, porque é capaz de isolar número bem maior de elementos constituintes. Esse fato e é daí que provém a sua importância capital — tende a favorecer a mútua compenetração da arte e da ciência. Na realidade, quando se considera uma estrutura perfeitamente ajustada ao âmago de determinada situação (como o músculo no corpo), não se pode estipular se a coesão refere-se principalmente ao seu valor artístico, ou à exploração científica passível de ser concretizada. Graças ao cinema — e aí está uma das suas funções revolucionárias pode-se reconhecer, doravante, a identidade entre o aspecto artístico da fotografia e o seu uso científico, até então amiúde divergentes. ".(BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) Fiat ars, pereat mundus, esta é a palavra de ordem do fascismo, que, como reconhecia Marinetti, espera da 63


guerra a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Aí está, evidentemente, a realização perfeita da arte pela arte. Na época de Homero, a humanidade oferecia-se, em espetáculo, aos deuses do Olimpo: agora, ela fez de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornou-se suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetização da política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95.) Decorridos vinte e sete anos, nós, futuristas, erguemonos contra a ideia de que a guerra seria antiestética. . . Daí porque... afirmamos isto: a guerra é bela porque, graças às máscaras contra gás, ao microfone terrifico, aos lança-chamas e aos pequenos carros de assalto, ela funda a soberania do homem sobre a máquina 64


subjugada. A guerra é bela porque ela concretiza, pela primeira vez, o sonho de um homem de corpo metálico. A guerra é bela porque ela enriquece um prado com flores de orquídeas flamejantes, que são as metralhadoras. A guerra é bela porque ela congrega, a fim de fazer disso uma sinfonia, as fuzilarias, os canhoneiros, o cessar de fogo, os perfumes e os odores de decomposição. A guerra é bela porque ela cria novas arquiteturas, como aquelas dos grandes carros, das esquadrilhas aéreas de forma geométrica, das espirais de fumo subindo das cidades incendiadas e ainda muitas outras... Escritores e artistas futuristas... lembrai-vos desses princípios fundamentais de uma estética de guerra, a fim de que seja esclarecido... o vosso combate por uma nova poesia e uma nova escultura!" Esse manifesto tem a vantagem de dizer claro o que quer. O próprio modo pelo qual o problema é colocado dá ao dialético o direito de acolhê-lo. Eis como se pode representar a estética da guerra, hoje em dia: já que a utilização normal das forças produtivas está paralisada pelo regime da propriedade, o desenvolvimento dos meios técnicos, do ritmo das fontes de energia, voltamse para um uso contra a natureza. Verifica-se através 65


da guerra que, devido às destruições por ela empreendidas, a sociedade não estava suficientemente madura para fazer, da técnica, o seu órgão; que a técnica, por seu turno, não estava suficientemente evoluída a fim de dominar as forças sociais elementares. A guerra imperialista, com as suas características de atrocidade, tem, como fator determinante, a decalagem entre a existência de meios poderosos de produção e a insuficiência do seu uso para fins produtivos (em outras palavras, a miséria e a falta de mercadorias). A guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama, sob a forma de "material humano", aquilo que a sociedade lhe tirou como matéria natural. Em vez de canalizar os rios, ela conduz a onda humana ao leito de suas fossas; em vez de usar seus aviões para semear a terra, ela espalha suas bombas incendiárias sobre as cidades e, mediante a guerra dos gases, encontrou um novo meio de acabar com a aura. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente 66


tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95.) *** Fragmento "Fundação e manifesto do futurismo", 1908, publicado em 1909. "Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra: 1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade. 2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia. 3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro. 67


4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. 5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita. 6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais. 7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obraprima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem. 8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Vivemos já o 68


absoluto, pois onipresente.

criamos

a

eterna

velocidade

9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo da mulher. 10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. 11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizante dos aeroplanos, 69


cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta. É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários. Há muito tempo a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis. Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes! Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no dos dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponta uma coroa de flores diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus nossas tristezas, 70


nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer? E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetála para longe, em violentos arremessos de criação e de ação. Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados? Em verdade eu vos digo que a frequentação cotidiana dos museus, das bibliotecas e das academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados por seu os prisioneiros, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o 71


futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens e fortes futuristas! Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas! Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio mais jovens e válidos que nós jogarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - Pois é isso que queremos! Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas. Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo 72


aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o voo das nossas imagens. Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais implacável quanto seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós. A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos A arte, de fato, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça. Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais 73


sequer de ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas! Vós nos opondes objeções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!... Cabeça erguida!... Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas." (Teorias da Arte Moderna, H.B.Chipp, Martins Fontes, 1993) Fonte: http://www.historiadaarte.com.br/futurismo.html A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo um conjunto de atitudes novas com relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade. O crescimento maciço do número de participantes transformou o seu modo de participação. O observador não deve se iludir 74


com o fato de tal participação surgir, a princípio, sob forma depreciada. Muitos, no entanto, são aqueles que, não havendo ainda ultrapassado esse aspecto superficial das coisas, denunciaram-na vigorosamente. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) Nossas belas-artes foram instituídas, assim como os seus tipos e práticas foram fixados, num tempo bem diferente do nosso, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante face àquele que possuímos. Mas o admirável incremento de nossos meios, a flexibilidade e precisão que alcançam, as ideias e os hábitos que introduzem, asseguram-nos modificações próximas e muito profundas na velha indústria do belo. Existe, em todas as artes, uma parte física que não pode mais ser elidida das iniciativas do conhecimento e das potencialidades modernas. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo, ainda são, 75


decorridos vinte anos, o que eles sempre foram. É preciso estar ciente de que, se essas tão imensas inovações transformam toda a técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a própria invenção, devem, possivelmente, ir até ao ponto de modificar a própria noção de arte, de modo admirável. (VALÉRY, Paul. Pièces sur l'Art, Paris, 1934. "Conquête de l'Ubiquité", pp. 103,104., apud BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução) “Pensa na escuridão e no grande frio que reinam nesse vale, onde soam lamentos.” Brecht, Ópera dos três vinténs. Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour 76


ressusciter Carthage”. A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua 77


tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, Walter. Teses sobre o Conceito da História. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232) A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodução. É preciso levar na maior conta esse conjunto de relações. Elas colocam em evidência um fato verdadeiramente decisivo e o qual vemos aqui aparecer pela primeira vez na história do mundo: a emancipação da obra de arte com relação à existência parasitária que lhe era imposta pelo seu papel ritualístico. Reproduzem-se cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzidas. Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de práxis: a política. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do 78


original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) (...) O discurso estético aparece como um esforço para transcender a realidade social, por isso ele é imanentemente revolucionário, e se contrapõe, independente de seu conteúdo, às relações concretas de dominação. Marcuse (...) dirá que "a verdade da arte reside no seu poder de quebrar o monopólio da realidade estabelecida que define o que é real... como ideologia ela se opõe à sociedade dada". A separação da arte do processo material lhe confere um papel privilegiado de significar a possibilidade da transformação social. Para os frankfurtianos tem pouco sentido falar em arte popular, uma vez que o povo é parte integrante do sistema de dominação. A arte é uma alienação positiva que permite se escapar do processo de ideologização total da sociedade, e reedita na sua prática, a contradição entre realidade e ilusão. Evidentemente a estética não abole a divisão social do trabalho, ou cria uma sociedade mais justa, ela age como a teoria crítica, negativamente. Ao negar a 79


sociedade real ela abre espaço para a utopia; neste sentido toda arte seria revolucionária. Ao contrário, uma sociedade "sem ideologia" significa que a "aparência" se tornou real, que as diferenças só se manifestam no nível da superfície e encobrem um processo de uniformização que é global. Mas, se no mundo moderno não mais existe contradição entre realidade e ilusão, a tradicional referência a alienação como fuga do real tem que ser invertida. Na verdade é esta "fuga" que permite a existência do discurso estético, a arte deve negar a sociedade para preservar a potencialidade das diferenças. Num mundo "sem ideologia" o indivíduo "foge para a realidade" e se distancia do universo ilusório, o único capaz de lhe mostrar o estado de sua sujeição total. (Ortiz, Renato. A Escola de Frankfurt e a questão da cultura) 1. Fala o cético Metade de sua vida se passou, O ponteiro do relógio avança, sua alma treme! Há muito ele vagueia, Procura e não encontra – e hesita agora? Metade de sua vida se passou: 80


E não foi mais que erro e dor até o momento! O que busca você ainda? Por quê? Justamente a isso eu busco – a razão por quê! (NIETZSCHE, 2001, p. 47) 2. Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos. (BENJAMIN, 1996, p. 253) 3. História escondida [História Oculta]. – Todo grande homem exerce uma força retroativa: toda a história é posta novamente na balança por causa dele, e milhares de segredos do passado abandonam seus esconderijos – rumo ao sol dele. Não há como antever o que ainda se tornará história. Talvez o passado esteja ainda essencialmente por descobrir! Tantas forças retroativas são ainda necessárias. (NIETZSCHE, 2001, p. 81)

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É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção de aura, porém, para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de um objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas montanhas, desse galho (...). (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual 82


ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como “a fonte de toda riqueza e de toda civilização”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser “o escravo de outros homens, que se tornaram... proprietários”. Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: “O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador”. Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão 83


aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, “está ali, grátis”. (BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Ensaio obtido em Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio

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de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Sítio: Anti Valor – grifos meus) Pode-se afirmar que existe um conceito de iluminismo particular aos frankfurtianos, e que ele não coincide com a análise da história da época. Nele podemos distinguir alguns níveis de significação: a) trata-se de um saber cuja essência é a técnica; b) promove a dimensão de calculabilidade e da utilidade; c) erradica do mundo a dimensão do gratuito (arte); d) é uma nova forma de dominação. Quando Adorno e Horkheimer (1975a, p. 101) afirmam que o Iluminismo "se relaciona com as coisas assim como o ditador se relaciona com os homens", que ele "os conhece na medida em que os pode manipular", de uma certa forma eles condensam seu pensamento a respeito da sociedade moderna. O conhecimento manipulatório pressupõe uma técnica e uma previsibilidade que possa controlar de antemão o comportamento social. Para ele o mundo pode ser pensado como uma série de variáveis que integram um sistema único. A possibilidade de controle se vincula à capacidade que o sistema possui de eliminar as diferenças, reduzindo-as ao mesmo denominador 85


comum, o que garantiria a previsibilidade das manifestações sociais. A crítica da racionalidade desvenda desta forma uma crítica do processo de uniformização. Por isso a lógica formal de Leibniz é considerada a "grande escola da uniformização", ela ofereceria aos iluministas o esquema da calculabilidade do mundo. O tema da padronização, que é fundamental na definição da indústria cultural, se encontra ancorado na própria visão que os frankfurtianos têm da história. A racionalidade do pensamento burguês impõe uma forma de apreensão do social que o orienta para um novo tipo de dominação. Mas o Iluminismo não se identifica unicamente a uma forma de pensar, ele corresponde ao movimento real da sociedade, que ao longo de sua história elimina as diferenças, anulando as possibilidades de realização do indivíduo. Pode-se perceber como a problemática da uniformização se constitui ao se considerar, por exemplo, o papel da magia. Se nos lembrarmos da definição dada por Mauss (Mauss & Hubert, 1968), temos que a magia se associa a uma atividade ligada fundamentalmente à diferença. Ela se distingue da religião porque representa a parte e não o todo; neste 86


sentido o pensamento mágico é individualizado, e enquanto diferença, pode ser contraposto ao Iluminismo que se quer universal. Levando-se em consideração que é durante os séculos XVII e XVIII que ocorre o recuo do pensamento mágico em relação à racionalidade científica, pode-se compreender a posição dos autores. O que é visto pelos historiadores como derrota do pensamento obscurantista, é interpretado por Adorno e Horkheimer como o fim das diferenças, o advento de uma sociedade uniformizada na qual a individualidade, a parte, torna-se impossível de se expressar. Desencantamento e desenfeitiçamento do mundo representam a mesma face do movimento de secularização (4). A sociedade moderna se apresenta pois como total e totalitária, ela "amarra todas as relações e todos os instintos". Não é por acaso que as referências a Durkheim aparecem em vários momentos, e que o capítulo o "Iluminismo como mistificação das massas" abre com uma refutação de suas teses sociológicas. Com efeito, Durkheim pensava que o crescimento da divisão do trabalho levaria a um processo de diferenciação social que só poderia ser integrado ao todo social no seio de um novo tipo de solidariedade. A passagem da solidariedade mecânica 87


para a solidariedade orgânica corresponderia ao desenvolvimento da sociedade que se tornaria mais complexa e diferenciada. Para a escola de sociologia francesa, a noção de indivíduo dificilmente poderia existir nas sociedades primitivas onde o processo de diferenciação social era incipiente e cada ator social se adequaria à coerção da consciência coletiva da tribo. A emergência do indivíduo seria, portanto, o fruto da história e somente se expressaria nas sociedades complexas. Adorno e Horkheimer (1975a, p. 110) contra-argumentam dizendo que as diferenças nas sociedades modernas são mera aparência e o que Durkheim considerava como solidariedade social testemunharia na verdade "a unidade impenetrável entre sociedade e dominação". Marcuse chega a inverter a tese durkheimiana, fala em solidariedade mecânica da sociedade industrial, para acrescentar que ela é fruto de uma manipulação organizada. A sociedade industrial avançada, herdeira do Iluminismo, aparece portanto como um sistema integrado no qual o indivíduo se encontra inexoravelmente aprisionado nas malhas da dominação. (ORTIZ, Renato. A Escola de Frankfurt e a questão da cultura)

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(…) O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está a nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse passado não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso. (BENJAMIN, 1996, p.223) A ironia de Charles Baudelaire, que se abre ao trabalho da memória, revela-se a partir da destruição de seu próprio objeto de trabalho e da reestruturação de seu aspecto formal. A ironia perpassa todo o trabalho do crítico-poeta, ela representa a consciência do inacabamento, a aspiração à totalidade e o fracasso dessa busca. Nesse universo, o esboço é a figura da passagem, consciência da impossibilidade de apreender qualquer figuração, pois sempre há um atraso em relação à representação da experiência: para o autor de Salon de 1859, a forma é o que está vindo a 89


ser. Nesse contexto, "a memória, em Baudelaire, não opera de forma linear, justaposta e cumulativa. Ela possui uma força crítica que rompe toda continuidade mecânica. [...] Não é uma transcrição do passado no presente, mas uma descontextualização do passado no seio do presente". (NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Charles Baudelaire e a arte da memória) (...) No entanto, a esse nível bastante superficial, é permitido arriscar a seguinte comparação: é o pensamento mágico que governa o consumo, é uma mentalidade sensível ao miraculoso que rege a vida quotidiana, é a mentalidade primitiva, no sentido de que foi definida como baseada na crença na onipotência dos pensamentos: no caso presente, tratase na crença da onipotência dos sinais de felicidade. (BAUDRILLARD, 1975, p. 26) Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. 90


Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público. (Tristan Tzara) Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma 91


geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondose ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequenoburgueses com fantasias canavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande 92


pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. (BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119. Sítio: Anti Valor – grifos meus) All the physical and intellectual senses have been replaced by the simple alienation of all these senses, the sense of having (…) (MARX apud Benjamin, 1999, 209) I can, in practice, relate myself humanly to an object only if the object relates itself humanly to man. (MARX apud Benjamin, 1999, 209) The positive countertype of the collector - which also, insofar as it entails the liberation of things from 93


drudgery of being useful, represents the consummation of the collector - can be deduced from these words of Marx: “Private property has made us so stupid and inert that an object is ours only when we have it, when it exists as capital for us, or when … we use it”. (MARX apud Benjamin, 1999, 209) What is decisive in collection is that the object is detached from its all original functions in order to enter into the closest conceivable relation to things of the same kind. This relation is the diametric opposite of any utility, and falls into the peculiar category of completeness. What is completeness? It is a grand attempt to overcome the wholly irrational character of the object’s mere presence at hand through its integration into a new, expressly devised historical system: the collection. And for the true collector, every single thing in this system becomes an encyclopedia of all knowledge of the epoch, the landscape, the industry, and the owner from which it comes. It is the deepest enchantment of the collector to enclose the particular item within a magic circle, where, as a last shudder runs through it (the shudder of being acquired), it turns to stone. Every thing, remembered, everything though, everything conscious becomes 94


socle, frame, pedestal, seal of this possession. It must not be assumed that the collector, in particular, would find anything strange in the topos hyperouranios - that place beyond the heaven which for Plato, shelters the unchangeable archetypes of things. He loses himself, assuredly. But he has the strength to pull himself up again by nothing more than straw; and from out the sea of fog that envelops his senses rises the newly acquired piece, like an island. - Collecting is a form of practical memory, and all of the profane manifestations of “nearness” is the most binding. Thus, in a certain sense, the smallest act of political reflection makes for an epoch in the antiques business. We construct here an alarm clock that rouses the kitsch of the previous century to “assembly”. (BENJAMIN, 1999, p. 204-205) The collector actualizes latent archaic representations of property. These representations may in fact be connected with taboo, as the following remark indicates: “It … is … certain that taboo is the primitive form of property. At first emotively and “sincerely”, then as a routine of legal process, declaring something taboo would have constituted a title. To appropriate to oneself an object is to render it sacred and redoubtable to others; it is to make it ‘participate’ in oneself”. N. 95


Guterman and H. Lefebvre, La Conscience mystifiĂŠe. (Paris, 1936), p. 228. (BENJAMIN, 1999, p. 209-210) Perhaps the most deeply hidden motive of the person who collects can be described this way: he takes up a struggle against dispersion. Right from the start, the great collector is struck by the confusion, by the scatter, in which things of the world are found. It is the same spectacle that so preoccupied the men of Baroque; in particular, the world image of allegorist cannot be explained apart from the passionate, distraught concern with this spectacle. The allegorist is, as it were, the polar opposite of the collector. He has given up the attempt to elucidate things through research into their property and relations. He dislodges things from their context and, from the outset, relies on his profundity to illuminate their meaning. The collector, by contrast, brings together what belongs together; by keeping in mind their affinities and their succession in time, he can eventually furnish information about his objects. Nevertheless - and this more important than all differences that may exist between them - in every collector hides an allegorist, and in every allegorist a collector. As far as the collector is concerned, his collection is never complete; for let 96


him discover just a single piece missing, and everything he’s collected remains a patchwork, which is what things are for allegory from the beginning. O the other hand, the allegorist - for whom objects represent only key words in a secret dictionary, which will make known their meanings to the initiated - precisely the allegorist can never have enough of things. With him, one thing is so little capable of taking the place of another that no possible reflections suffices to foresee what meaning his profundity might lay claim for each one of them. (BENJAMIN, 1999, p. 211) The true method of making things present is to represent them in our space (not represent ourselves in their space). (The collector does just this, and so does the anecdote). Thus represented, the things allow no mediating construction from out “large context”. The same method applies, in essence, to the consideration of great things from the past - the cathedral of Chartes, the temple of Pestum - when, that is, a favorable prospect presents itself: the method of receiving the things into our space. We don’t displace our being into theirs; they step into our life. (BENJAMIN, 1999, p. 206)

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“Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência.” Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocrata. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados., (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. - nota 13) 98


Uma Gravura Fantástica Este espectro invulgar tem apenas por traje, A ornar-lhe a fronte nua qual grotesco ultraje, Um medonho diadema herdado ao carnaval. Sem espora ou chicote, ele instiga o animal, Como ele a um tempo apocalíptico e esquelético, A espumar pelas ventas como um epiléptico. Cavalgam ambos rumo às cúpulas do espaço, Calcando o azul do céu com temerário passo. O cavaleiro brande um sabre que resplende Sobre as turbas sem nome que o corcel ofende, E a sós percorre, como um rei que o lar visite, O imenso e frio cemitério sem limite, Onde repousa, à luz de um sol pálido e terno, Quanto povo existiu, desde o antigo ao moderno. (As Flores do Mal. Charles Boudelaire) 16. O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a 99


tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história. (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987) Atravessa-se em sobressalto, o que os ocultistas chamam de paisagens perigosas. Meus passos suscitam monstros que espreitam; eles não estão ainda muito mal-intencionados a meu respeito, e não estou perdido, pois os temo. Eis “os elefantes com cabeça de mulher e os leões voadores” que Soupault e eu ainda há pouco tremíamos de medo de encontrar, eis o “peixe solúvel” que ainda me assusta um pouco. PEIXE SOLÚVEL, não serei eu o peixe solúvel, nasci sob o signo de Peixes e o homem é solúvel em seu pensamento! A fauna e a flora do surrealismo são inconfessáveis. (BRETON André, Manifesto do Surrealismo, 1924) O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define 100


exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história. O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização 101


messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas. (Sobre o conceito da história. Ensaio obtido em Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.) Quando, no drama trágico, a história migra para o cenário da ação, ela fá-lo sob a forma de escrita. A palavra “história” está gravada no rosto da natureza com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural, que o drama trágico 102


coloca em cena, está realmente presente na forma da ruína. Com ela, a história transferiu-se de forma sensível para o palco. Assim configurada, a história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio. Com isso, a alegoria coloca-se declaradamente para além da beleza. As alegorias são, no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas. (BENJAMIN, 2004, p. 192-193) “A Origem é o Alvo.” Karl Kraus, Palavras em verso A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo 103


salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx. A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu: “Qui le croirait! on dit qu’irrités contre l’heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, 104


Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour.” On “the exploitation of nature” (...): such exploitation was not always regarded as the basis of human labor. To Nietzsche, it quite rightly seemed worthy of remark that Descartes was the first philosophical physicist who “compared the discoveries of scientists to a military campaign waged against nature”. (…) (BENJAMIN, 1999, 369) (...) Não existe, a rigor, uma ciência “sem pressupostos”, o pensamento de uma tal ciência é impensável, paralógico: deve haver antes uma filosofia, uma “fé”, para que a ciência dela extraia uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência. (Quem entende o contrário, quem, por exemplo, se dispõe a colocar a filosofia “sobre base estritamente científica”, precisa antes colocar não só a filosofia, mas também a verdade de cabeça para baixo: a pior ofensa ao decoro que se poderia cometer com duas damas tão respeitáveis!) (NIETZSCHE, 1988, p. 172) (ver § 344, Gaia Ciência) Causa e efeito - “Explicação”, dizemos; mas é “descrição” o que nos distingue dos estágios anteriores do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos 105


melhor - e explicamos tão pouco quanto aqueles que nos precederam. Descobrimos múltiplas sucessões, ali onde o homem e o pesquisador ingênuo de culturas anteriores via apenas duas coisas, “causa” e “efeito”, como se diz; aperfeiçoamos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem, não vimos o que está por trás dela. Em cada caso, a série de “causas” se apresenta muito mais completa diante de nós, e podemos inferir: tal e tal coisa têm de suceder antes para que venha essa outra - mas nada compreendemos com isso. Em todo devir químico, por exemplo, a qualidade aparece como um “milagre”, agora como antes, e assim também todo deslocamento; ninguém “explicou” o empurrão. E como poderíamos explicar? Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis - como pode ser possível explicação, se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão. Causa e efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais - na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; 106


assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subtaneidade que existe apenas para nós. Neste segundo de subtaneidade há um número infindável de processos que nos escapam. Um intelecto que visse causa e efeito como um continuum, e não, à nossa maneira, como arbitrário esfacelamento e divisão, que enxergasse o fluxo do acontecer - rejeitaria a noção de causa e efeito e negaria qualquer condicionalidade. (NIETZSCHE, 2005, p. 140) Procurando as raízes, os fundamentos metodológicos de tal incompreensão catastrófica, que contribuiu para a derrota do movimento operário alemão em 1913, Benjamin ataca a ideologia do progresso em todos os seus componentes: o evolucionismo darwinista, o determinismo de tipo científico-natural, o otimismo cego — dogma da vitória "inevitável" do partido — e a convicção de "nadar no sentido da corrente" (o desenvolvimento técnico). Em uma palavra, a crença confortável em um progresso automático, contínuo, infinito, fundado na acumulação quantitativa, no desenvolvimento das forças produtivas e no 107


crescimento da dominação sobre a natureza. Ele crê descobrir por detrás de tais manifestações múltiplas um fio condutor que submete a uma crítica radical: a concepção homogênea, vazia e mecânica (como um movimento de relojoaria) do tempo histórico. (LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin) (...) O acontecimento não preenche a natureza formal do tempo em que está inserido. Pois não podemos pensar que o tempo é tão somente a medida com a qual se calcula a duração de uma transformação mecânica. Este tempo é uma forma relativamente vazia, e não faz sentido querer pensar as formas do seu preenchimento. Mas o tempo da história é diferente do tempo da mecânica. O tempo da história determina muito mais do que a possibilidade de transformações espaciais de uma certa grandeza e regularidade concretamente, do andamento dos ponteiros do relógio - durante as transformações espaciais simultâneas de uma estrutura complexa. E, sem determinar ainda que coisa para além disso o tempo histórico afinal determina - sem querer, portanto, definir sua diferença em relação ao tempo mecânico -, podemos desde já afirmar que a força determinante da forma histórica do tempo não pode ser totalmente 108


apreendida por nenhum conhecimento empírico, nem absorvida completamente por ele. Um tal acontecimento, que seria perfeito no sentido da história, é antes um elemento empiricamente indeterminável, ou seja, uma idéia. A esta idéia do tempo preenchido chama-se na Bíblia - e esta é a sua idéia historicamente dominante - o tempo messiânico. Em qualquer caso, a idéia de tempo histórico preenchido não é ao mesmo tempo a idéia de um tempo individual. É esta determinação, que, naturalmente, transforma totalmente o sentido desse preenchimento, que distingue o tempo trágico do messiânico. O tempo trágico está para este último como o tempo individualmente preenchido está para o tempo em que esse preenchimento é da ordem do divino. (BENJAMIN, 2004, p. 265-266) To thinking belongs the movement as well as the arrest of thoughts. Where thinking comes to a standstill in a constellation saturated with tensions – there the dialectical image appears. It is the caesura in the movement of thoughts. Its position is naturally an arbitrary one. It is to be found, in a word, where the tension dialectical opposites is greatest. Hence, the object constructed in the materialist presentation of 109


history is itself the dialectical image. The latter is identical with the historic object; it justifies its violent expulsion of the continuum of historical process. (BENJAMIN, 1999, p. 475) “Eternal return” is the fundamental form of the urgeschichtlichen, mythic consciousness. (Mythic because it does not reflect) (BENJAMIN, 1999, p. 119) The belief in progress - in an infinite perfectibility understood as an infinite ethical task - and the representation of eternal return are complementary. They are the indissoluble antinomies in the face of which the dialectical conception of historical time must be developed. In this conception, the idea of eternal return appears precisely as that “shallow rationalism” which belief in progress is accused of being, while faith in progress seems no less to belong to the mythic mode of though than does the idea of eternal return. (BENJAMIN, 1999, p. 119) O espelho oval (Edgar Alan Poe)

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Com profundo e reverente temor, tornei a pôr o candelabro em sua primitiva posição. Afastada assim de minha vista a causa de minha aguda agitação, busquei avidamente o volume que descrevia as pinturas e sua história. Procurando a página que se referia ao retrato oval, li as imprecisas e fantásticas palavras que se seguem: Era uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria. E maldita foi a hora em que ela viu, amou e desposou o pintor. Ele era apaixonado, estudioso, austero e já tinha na Arte a sua desposada. Ela, uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria, toda luz e sorrisos, travessa como uma jovem corça; amando com carinho todas as coisas; odiando somente a Arte, que era sua rival; temendo apenas a paleta, os pincéis e os outros sinistros instrumentos que a privavam da contemplação do seu amado. Era pois terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de pintar o próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e obediente, e sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva tela. Mas ele, o pintor, se regozijava com sua obra, 111


que continuava de hora em hora, de dia em dia, e era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor (que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava, dia e noite, por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste e fraca. E, na verdade, alguns que viram o retrato falavam em voz baixa de sua semelhança como de uma extraordinária maravilha, prova não só da mestria como de seu intenso amor por aquela a quem pintava de modo tão exímio. Mas afinal, ao chegar o trabalho quase a seu termo, ninguém mais foi admitido no torreão, porque o pintor se tornara rude no ardor de seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o semblante de sua esposa. E não percebia que as tintas que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando já se haviam passado várias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a 112


boca e um colorido nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um instante o pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e, pálido, horrorizado, exclamou em voz alta: "Isto é na verdade a própria vida. Voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada... Estava morta! No horizonte infinito - Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte - mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e que agora se bates nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se fosse acometido de saudade da terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não existe mais “terra”! (NIETZSCHE, 2005, p. 147)

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A força da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim também é a força de um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve. Quem voa vê apenas como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio e como, daquela mesma região que, para o que voa, é apenas planície desenrolada, ela faz sair, a seu comando, cada uma de suas voltas, distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz sair soldados de uma fila. Assim comanda unicamente o texto copiado a alma daquele que está ocupado com ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novas perspectivas de seu interior, tais como as abre o texto, essa estrada através da floresta virgem interior que sempre volta a adensar-se: porque o leitor obedece ao movimento do seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o copiador o faz ser comandado. A arte chinesa de copiar livros foi, portanto, a incomparável garantia de cultura literária, e a cópia, uma chave para os enigmas da China. (BENJAMIN, 1995, p. 16)

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(...) Se a filosofia quiser conservar a lei da sua forma, não como propedêutica mediadora do conhecimento, mas como representação da verdade, então aquilo que importa deve ser a prática de sua forma, e não sua antecipação num sistema. Tal prática impôs-se em todas as épocas para as quais foi evidente a essência não delimitável do verdadeiro, sob uma forma propedêutica que pode ser designada pelo termo escolástico do “tratado”, porque ele reenvia, ainda que apenas de forma latente, para os objetos da teologia, sem os quais não é possível pensar a verdade. Os tratados serão doutrinários no tom que assumem, mas sua índole profunda exclui aquele rigor didático que permite à doutrina afirmar-se por autoridade própria. E também eles renunciam aos meios coercitivos da demonstração matemática. Na sua forma canônica, eles aceitam um único elemento doutrinal - de intenção, aliás, mais educativa que doutrinária -, a citação da auctoritas. A representação é a quintaessência de seu método. Método é caminho não direto. A representação como caminho não direto: esse é o caráter metodológico do tratado. A sua primeira característica é a renúncia ao percurso ininterrupto da intenção. O pensamento volta continuamente ao 115


princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é modo de ser específico da contemplação. De fato, seguindo, na observação de um único objeto, os seus vários níveis de sentido, ele recebe daí, quer o impulso para um arranque constantemente renovado, quer a justificação para intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico não perde sua majestade pelo fato de ser caprichosamente fragmentado. Ambos se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt). Tanto o mosaico como o tratado, na fase áurea de seu florescimento no 116


Ocidente pertencem à Idade Média; aquilo que permite sua comparação é, assim, da ordem do genuíno parentesco. (BENJAMIN, 2004, p. 14) Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias. (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222232. Sítio Antivalor) 117


“Comparados com a história da vida orgânica na Terra”, diz um biólogo contemporâneo, “os míseros 50 000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora.” O “agora”, que como modelo do messiânico abrevia num resumo incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana. (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Ensaio obtido em Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Sítio Antivalor) freedom to which modern architects in Paris likewise adhere - “a fantastic and thoroughly Ghotic element”. Fritz Stahl, Paris (Berlin 1929), pp. 79-80. apud (BENJAMIN, 1999, p. 148)

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Guardemo-nos! - Guardemo-nos de pensar que o mundo é um ser vivo. Para onde ele iria expandir-se? Sabemos aproximadamente o que é orgânico; e o que há de indizivelmente derivado, tardio, raro, acidental, que percebemos somente na crosta da terra, deveríamos reinterpretá-lo como algo essencial, universal, eterno, como fazem os que chamam o universo de organismo? Isso me repugna. Guardemonos de crer também que o universo é uma máquina; certamente não foi construída com um objetivo, e usando a palavra “máquina” lhe conferimos demasiada honra. Guardemo-nos de pressupor absolutamente e em toda parte uma coisa tão bem realizada como os movimentos cíclicos dos nossos astros vizinhos; um olhar sobre a Via Láctea já nos leva a perguntar se lá não existem movimentos bem mais rudimentares e contraditórios, assim como astros de trajetória sempre retilínea e outras coisas semelhantes. A ordem astral em que vivemos é uma exceção; essa ordem e a considerável duração por ela determinada tornam possível a exceção entre as exceções: a formação do elemento orgânico. O caráter geral do mundo, no entanto, é o caos por toda eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, 119


divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos. Julgados a partir de nossa razão, os lances infelizes são a regra geral, as exceções não são o objetivo secreto e todo aparelho repete sempre a sua toada, que não pode ser chamada de melodia - e afinal, mesmo a expressão “lance infeliz” já é uma antropomorfização que implica uma censura. (...) (NIETZSCHE, 2005, p. 136 – grifos meus) O sistema benjaminiano das siglas inscreve-se na tradição da arte cartográfica e do gênero dos mapas de cidades. Ao mesmo tempo mimética e não-mimética, simples e complexa, essa forma de organização corresponde à necessidade de uma visão de conjunto e de uma orientação numa obra difícil, fragmentária e labiríntica. É uma iniciação ao espaço simultâneo e polifônico da metrópole moderna. Os diferentes planos que se sobrepõem neste mapa de Paris representam o tecido urbano em seus diversos níveis: redes subterrâneas e ctônicas (metrô, catacumbas), o traçado das ruas e praças na superfície, com seus cruzamentos, sinais, anúncios luminosos, e, acima, contra fundo escuro, a escrita do universo. Se reuníssemos todas as 120


30 siglas numa única página, não linearmente, mas segundo sua sintaxe espacial, obteríamos "a partir desses pontos luminosos, uma figura como uma constelação". (BOLLE, Willi. As siglas em cores no Trabalho das passagens, de W. Benjamin. Texto obtido no sítio Antivalor) (...) A relação entre símbolo e alegoria pode ser fixada com a precisão de uma fórmula remetendo-a para a decisiva categoria do tempo (...). Enquanto no símbolo, com a transfiguração da decadência, o rosto transfigurado da natureza se revela fugazmente na redenção, na alegoria o observador tem diante de si a fácies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo, de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto - melhor, de uma caveira. E, se é verdade que a esta falta toda a liberdade “simbólica” da expressão, toda a harmonia clássica, tudo que é humano - apesar disso, nessa figura extrema da dependência da natureza exprime-se de forma significativa, e sob a forma do enigma, não apenas a natureza da existência humana em geral, mas também da historicidade biográfica do indivíduo. Está aqui o 121


cerne da contemplação do tipo alegórico, da exposição barroca e mundana da história como via crucis do mundo: significativa, ela é-o apenas nas estações de sua decadência. Quanto maior a significação, maior a sujeição à morte, porque é a morte que cava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. (BENJAMIN, 2004, p. 180) (...) “Origem” não designa o processo de vir a ser de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e de desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro lado como algo incompleto e inacabado. Em todo fenômeno originário tem lugar a determinação da figura através da qual uma ideia permanentemente se confronta com o mundo histórico, até atingir a completude na totalidade da sua história. A origem, portanto, não se destaca dos dados factuais, mas tem a ver com sua pré e pós história. Na dialética inerente à origem encontra a observação filosófica o registro de 122


suas linhas-mestras. Nessa dialética, e em tudo que é essencial, a unicidade e a repetição surgem condicionando-se mutuamente. A categoria da origem não é, assim, como quer Cohen, puramente lógica, mas histórica. (BENJAMIN, 2004, p. 32) O movimento de ir e vir por entre essas temporalidades constrói um texto aberto que demanda a construção de uma completude e, ao mesmo tempo, aponta para sua impossibilidade; essa dinâmica traz à tona os diversos presentes da obra por meio do presente do historiador/crítico/artista, através de uma leitura que opera por anacronismos, uma vez que concebe a experiência do tempo como um espaço repleto de "agoras". Nesse sentido, o que é inexorável é a mudança acarretada pelo devir do presente. (NASCIMENTO, Roberta Andrade do, Charles Baudelaire e a arte da memória) *** A teoria da história de Benjamin é uma teoria da memória. "Benjamin reafirmou a força do trabalho da memória: que a um só tempo destrói os nexos (na medida em que trabalha a partir de um conceito forte de presente) e (re)inscreve o passado no presente". 123


Para ele, a história está colocada em termos de origem, e a origem em termos de novidade. Isso porque a origem se constitui como uma dinâmica presente em cada objeto histórico; seu movimento é duplamente articulado: de um lado, é restauração, reconstituição (do que foi destruído); de outro, algo aberto, inacabado; ela é objeto dialético, representa um salto para fora da sucessão cronológica, quebrando, pois, a linha do tempo, obrigando, a cada vez, a reorganizar a memória. (NASCIMENTO, Roberta Andrade do, Charles Baudelaire e a arte da memória) *** Tomando como ponto de partida as investigações freudianas e, sobretudo, o tema do recalcamento, Benjamin quer estabelecer claramente a distinção entre o que é da ordem da memória (a memória inconsciente) e a estrutura que se encontra na base do procedimento alegórico e que, em parte, a explica: a rememoração [Eingedenken]. Essa distinção adquire uma importância de relevo, uma vez que é à sua luz que nos é permitido compreender o modo como se constitui a alegoria, quer em Baudelaire ou em Proust. Rememorar a experiência vivida deve ser entendida, 124


assim, como o gesto aniquilador, que leva a cabo essa desintegração necessária da unidade imediata da organicidade das coisas, fazendo estilhaçar a sua falsa aparência (o Schein), mas esse gesto encerra em si uma pretensão redentora, o estabelecimento de uma (re)criação ou (re)construção que obrigue as coisas a significar. (NASCIMENTO, Roberta Andrade do, Charles Baudelaire e a arte da memória) Um rápido comentário pode ajudar a entender melhor como Benjamin vai opor esse conceito de "exposição" ao de "conhecimento" na filosofia. A forma filosófica do tratado que ele elege como paradigmática (Adorno dirá a forma do ensaio) da exposição filosófica tem um método, sim. Mas esse método consiste, num belo oxímoro, na renúncia ao caminho seguro e bem traçado (a palavra alemã Umweg como que desvia a palavra grega methodos/com caminho, Weg). Dupla renúncia: ao ideal do caminho reto e direto em proveito dos desvios, da errância; e renúncia também ao "curso ininterrupto da intenção", isto é, renúncia à obediência aos mandamentos da vontade subjetiva do autor. Em proveito de quê? De um recomeçar e de um retomar fôlego incessantes em redor da Sache selbst, da coisa mesma (to on ontôs), centro ordenador e 125


simultaneamente inacessível do pensar e do dizer. A enunciação filosófica ordena-se em redor desse centro, presença indizível que provoca e impulsiona a linguagem, justamente porque sempre lhe escapa. Essa figura de ausência atuante lembra, naturalmente, os meandros da teologia negativa; mas ela também pode ser pensada, de maneira profana, como o centro indizível de fundamentação da própria linguagem, uma espécie de imanência radical que se furta à expressão. (GAGNEBIN, Jeanne-Marie Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza) (...) Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais - quem nos limpará desse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior - e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então. (...) (NIETZSCHE, 1995, p. 148) 126


(...) O método, que para o conhecimento é um caminho para chegar ao objeto de apropriação - ainda que pela sua produção na consciência -, é para a verdade representação de si mesma, e por isso é algo que é dado juntamente com ela, como forma. Essa forma não é inerente a uma conexão estrutural na consciência, como faz a metodologia do conhecimento, mas a um ser. Uma das intenções mais profundas da filosofia nos seus começos - a doutrina platônica das idéias - será sempre do postulado segundo o qual o objeto do conhecimento não coincide com a verdade. O conhecimento é questionável, a verdade não. O conhecimento dirige-se ao particular, mas não, de forma imediata, à sua unidade. A unidade do conhecimento, a existir, seria uma conexão estrutural apenas mediatizada, nomeadamente por via de conhecimentos isolados e, de certo modo, da sua compensação recíproca, enquanto que na essência da verdade a unidade é uma determinação absolutamente imediata e direta. (...). (BENJAMIN, 2004, p. 15-16) (...) O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional, formado por ideias. O 127


procedimento que lhe será adequado não será, assim, de ordem intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento nela. A verdade é a morte da intenção. (BENJAMIN, 2004, p. 22) O que jaz em ruínas, o fragmento altamente significativo, a ruína: é esta a mais nobre matéria da criação barroca. O que é comum às obras desse período é acumular incessantemente fragmentos, sem um objetivo preciso, e, na expectativa de um milagre, tomar os estereótipos por uma potenciação de criatividade. Os literatos do Barroco devem ter entendido assim, como um milagre, a obra de arte. E se esta lhes acenava, por outro lado, como resultado calculável de uma acumulação, as duas perspectivas são tão conciliáveis como, na consciência de uma alquimista, a “obra” prodigiosa com as sutis receitas da teoria. A experimentação dos poetas barrocos é comparável às práticas dos adeptos. O que a Antiguidade lhes legou são os elementos com os quais, um a um, amassam a nova totalidade. Melhor: a constroem. Pois a visão acabada desse “novo” era a ruína. O que essa técnica, que em termos de pormenor se orientava ostensivamente pelas coisas concretas, pelas flores de retórica, pelas regras, procurava era o 128


domínio exuberante dos elementos antigos numa construção que, sem conseguir articulá-los num todo, fosse ainda assim, mesmo na destruição, superior à harmonia das antigas. (BENJAMIN, 2004, p. 193-194) O alegorista extrai um elemento da totalidade do contexto vital, isolando-o, privando-o de sua função. A alegoria é, portanto, essencialmente fragmento [...] O alegorista junta os fragmentos isolados de realidade e assim cria o significado. Este significado é construído, não deriva do contexto original dos fragmentos. (Benjamin, citado em Burguer, Theory of the avantguarde, apud Buck-Morss, 2002, p. 271) Não se deveria falar de acontecimentos que nos atingem na forma de um eco, cuja ressonância parece ter sido emitida em um momento qualquer na escuridão da vida passada? Além disso, acontece que o choque com que um instante penetra em nossa consciência como algo já vivido, nos atinge, o mais das vezes, na forma de um som [...]. Estranho que ainda não se tenha buscado o sósia deste êxtase; o choque com que uma palavra nos deixa perplexos tal qual uma luva esquecida em nosso quarto. Do mesmo modo que esse achado nos faz conjecturar sobre a desconhecida 129


que lá esteve, existem palavras ou silêncios que nos fazem pensar na estranha invisível, ou seja, no futuro que se esqueceu junto a nós. (BENJAMIN, Walter. "Infância Berlinense". Obras Escolhidas, v. 3) Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriarse de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento do perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1994, p. 224-5)

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Considero falso pretender que “o espírito discerniu as relações” das duas realidades em presença. Para começar, nada é discernido conscientemente. É da aproximação, por assim dizer, fortuita dos dois termos que fulgiu uma luz especial, a luz da imagem, à qual somos infinitamente sensíveis. O valor da imagem depende da beleza da centelha obtida; é, por conseguinte, função da diferença de potencial entre os dois condutores. Se esta diferença mal existe, como na comparação, a centelha não se produz. Ora, não está, a meu ver em poder do homem combinar a aproximação de duas realidades tão distantes. O princípio da associação de ideias, tal como o concebemos, opõe-se a isso. Ou então seria preciso voltar a uma arte elíptica, condenada por Reverdy, como também por mim. É forçoso, portanto, admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos um do outro pelo espírito em vista da centelha a produzir, que eles são os produtos simultâneos da atividade que denomino surrealista, limitando-se a razão a constatar e a apreciar o fenômeno luminoso. E assim como a centelha aumenta quando produzida através de gazes rarefeitos, a atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica, que fiz questão de colocar 131


ao alcance de todos, presta-se especialmente à produção das mais belas imagens. Pode-se dizer até que as imagens aparecem nesta corrida vertiginosa como os guiões únicos do espírito. Aos poucos o espírito se convence da suprema realidade das imagens. Limitando-se no começo a lhes prestar sugestão, logo ele percebe que lisonjeiam sua razão, aumentam, outrossim, seu conhecimento. Ele toma conhecimento dos espaços ilimitados onde se manifestam seus desejos, onde se reduzem sem cessar o pró e o contra, onde sua obscuridade não o atraiçoa. Ele vai, conduzido por estas imagens que o seduzem, que apenas lhe dão tempo para soprar os dedos queimados. É a mais bela das noites, a noite dos fulgores; perto dela, o dia é a noite. (BRETON, André. Manifesto do Surrealismo) (...) A intenção de Benjamin era desistir de toda interpretação manifesta e deixar o sentido aflorar tão somente pelo choque da montagem do material. A filosofia deveria não só subsumir o realismo, mas ela mesma deveria tornar-se surrealista. Ele assumiu literalmente uma frase da Einbahnstrasse, segundo a qual as citações em seus trabalhos seriam como assaltantes de estrada, que atacam e roubam as 132


convicções do leitor. Para coroar o seu antisubjetivismo, a sua principal obra deveria consistir somente em citações. Só raramente se encontram anotadas interpretações que não tenham ingressado no “Baudelaire” e nas “Teses sobre a filosofia da história”, e não há cânone que ensine como poderia ser realizado algo como uma filosofia despida de argumento, nem mesmo como as citações poderiam ser ordenadas e de um modo até certo ponto significativo. A filosofia fragmentária permaneceu fragmento, vítima talvez de um método sobre o qual não está sequer decidido se é incluível ou não no meio constituído do pensamento. (ADORNO, 1994, p. 198) Criadora de descontinuidades, a citação introduz na leitura a questão do duplo: o "estranho", o "surpreendente", o "perturbador". Aprendemos com Freud que o sentimento do que é "perturbante" alia-se ao "perpétuo retorno do sempre igual", a uma repetição. Uma das ocasiões de temor pânico constituise na duplicação de si por obra de um sósia: o duplo põe aos pedaços a identidade de algo, usurpando-lhe os caracteres e o destino. O familiar e o estranho não são estados sucessivos, mas simultâneos (...) 133


A construção da vida, no momento, está muito mais no poder de fatos que de convicções. E aliás de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções. Nestas circunstâncias, a verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias – isso, pelo contrário, é expressão usual de sua infertilidade. A atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativas que o pretensioso gesto universal do livro, em folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes. Só esta linguagem de prontidão mostra-se à altura do momento. As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que é o óleo para as máquinas; mingúem se posta diante de uma turbina e a irriga com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que é preciso conhecer. (BENJAMIN, 1987, p. 11) Flash Á une passante La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur 134


[majestueuse, Une femme prisa, d'une main fastueuse Soulevant, balancant le feston et l'ourlet; Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan, La doceur qui fascine et le plaisir qui tue. Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté Dont le regard m'a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l'éternité? Ailleurs, bien loin d'ici! Trop tard! Jamais [peut-être! Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais! (...) Até então, a burguesia esforçara-se por adotar o idioma artístico das classes superiores; agora, porém, que se torna tão próspera e influente que pode permitir-se uma literatura própria, tenta impor sua individualidade, em oposição a essas classes superiores, e falar sua própria linguagem, a qual, ainda que por mero antagonismo ao intelectualismo da aristocracia, se converte em uma linguagem do sentimentalismo. A revolta das emoções contra a frieza 135


do intelecto é uma parte tão essencial da ideologia das classes ambiciosas e progressistas em sua luta contra o espírito de conservadorismo e convenção quanto a rebelião do “gênio” contra as restrições impostas por regras e formas. A ascensão da moderna burguesia está ligada, como a dos ministeriales da Idade Média, ao movimento romântico; em ambos os casos, a redistribuição do poder social leva à dissolução dos vínculos formais e produz a súbita exaltação da sensibilidade. (HAUSER, 1998. p, 550) (...) “Outrora, os heróis representavam um modelo: a celebridade é uma tautologia... O único título de glória das celebridades é a própria celebridade, o fato de serem conhecidas... Ora, semelhante celebridade reduz-se à versão de nós próprios enaltecida pela publicidade. Ao imitá-la, procurando vestir-nos como ela, falar sua linguagem, apresentar a sua aparência, nada mais fazemos que imitar a nós mesmos... Ao copiarmos tautologias, também nós nos tornamos tautologias; candidatos a ser o que somos... procuramos modelos e contemplamos o nosso reflexo”. E quanto à televisão: “Tentamos conformar a vida do lar com a imagem das famílias felizes que a televisão nos apresenta; ora, tais famílias limitam-se a 136


ser a síntese divertida de todas as nossas.” (BAUDRILLARD, 1975, p. 335) Tudo indica que o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklãrung, que Horkheimer e eu publicamo sem 1947, em Amsterdã. Em nossos esboços tratava-se do problema da cultura de massa. Abandonamos essa última expressão para substituí-la por “indústria cultural”. A fim de excluir de antemão a interpretação que agrada aos advogados da coisa; estes pretendem, com efeito, que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma contemporânea de arte popular. Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue radicalmente. Ao juntar elementos de há muito coerentes, ela atribui-lhes uma nova qualidade. Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo. Os diversos ramos assemelham-se por sua estrutura, ou pelo menos ajustam-se uns aos outros. Eles somamse quase sem lacuna para constituir um sistema. Isso, graças tanto aos meios atuais da técnica, quanto à concentração econômica e administrativa. A indústria 137


cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo para ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total. Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais ela se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito desta indústria, mas seu objeto. O termo mass media, que se introduziu para designar a indústria cultural, desvia, desde logo, a ênfase para aquilo que lhe é inofensivo. Não se trata nem de massas em primeiro lugar, nem das técnicas de comunicação como tais, mas do espírito que lhes é insuflado, a saber, a voz do seu senhor. A indústria cultural abusa da consideração com relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, 138


que ela toma como dada a priori e imutável. É excluído tudo pelo que essa atitude poderia ser transformada. As massas não são a medida mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar. (ADORNO, 1994, p. 92-93 – grifos meus) (...) A tautologia – Sim, eu sei, a palavra não é bonita. Mas a coisa é muito feia também. A tautologia é um procedimento verbal que consiste me definir o mesmo pelo mesmo (“o teatro é o teatro”). Podemos considerá-la como um desses comportamentos mágicos de que fala Sartre no seu Esboço de uma teoria das emoções: a tautologia é um refúgio, como o medo, a cólera, ou a tristeza, para que não encontra explicação; a carência acidental da linguagem identifica-se magicamente com aquilo que se decidiu ser uma resistência natural do objeto. Existe, na tautologia, um duplo assassinato: mata-se o racional porque ele nos resiste, mata-se a linguagem porque ela nos trai. A tautologia é um desmaiar propício, uma afasia salutar, uma morte, ou, se se prefere, uma comédia, a “representação” indignada dos direitos do real contra a linguagem. Mágica, ela só pode evidentemente, proteger-se por trás do argumento de 139


autoridade: tal como os pais que, não sabendo mais o que dizer, respondem à criança que insiste em pedir explicações: “é assim porque é assim”, ou melhor ainda, “porque é e ponto final”: um ato de magia vergonhosa, que confere ao movimento verbal um ponto de partida racional, mas imediatamente o abandona, e pensa já estar desobrigado para com a causalidade por ter proferido a palavra que a introduz. A tautologia testemunha uma profunda desconfiança em relação à linguagem, que se rejeita porque não se possui. Ora, toda a recusa da linguagem é uma morte. A tautologia fundamenta um mundo morto, um mundo imóvel. (BARTHES, 1989, p. 172-173) (...) A inovação histórica é que Girardin fixa a assinatura em 40 francos por ano, ou seja, metade da taxa usual, e planeja cobrir o prejuízo com a renda proveniente de anúncios e publicidade. No mesmo ano, Dutacq funda Lê Siècle com o mesmo programa, e o resto dos jornais parisienses seguem-lhe o exemplo. O número de assinantes cresce e atinge os 200.000 em 1846, comparados aos 70.000 de dez anos antes. Os novos empreendimentos obrigam os editores a competir entre si na melhora do conteúdo de seus jornais. Têm de oferecer aos leitores um cardápio tão 140


saboroso e variado quanto possível, a fim de aumentar os atrativos de seus jornais, sobretudo com um olho na renda proveniente dos anúncios. Daí em diante, cada leitor encontrará em seu jornal artigos de acordo com seu gosto e interesses; o jornal vai converter-se na biblioteca e enciclopédia particular do homem comum. (HAUSER, 1998, p. 740) (...) É quando a criança se identifica com a imagem do seu corpo que começa a se constituir o eu; a imagem do corpo proporciona uma precária unidade a este sujeito ainda fragmentado e produz a ilusão de uma identidade, também precária, a partir da identificação da criança, sujeito de uma experiência sem unidade, com esta forma unificada, “perfeita”, do corpo no espelho – tomando aqui o espelho como uma metáfora do olhar do Outro, em particular a mãe. É a partir daí que se ancoram todas as seguintes formações imaginárias do sujeito. O imaginário é que dá consistência à experiência, e é o domínio do corpo. Mas esta imagem do corpo no espelho não sou “eu”. A identificação com a imagem é uma forma de alienação, em que a consistência da experiência subjetiva se ancora na imagem do que se é para o olhar do outro. 141


Já o simbólico é fundado exatamente no ponto em que essa imagem já não dá conta do ser. É o registro da falta, o registro da morte. O significante vem no lugar da coisa que falta, a palavra, seja ela qual for, sempre vem nos trazer a notícia de uma morte, de uma ausência, de uma falta e da própria falta-a-ser do sujeito, que a identificação não resolve. O conceito psicanalítico de Outro – assim mesmo, como maiúscula, para se diferenciar do outro, nosso semelhante – indica o campo simbólico, que é a própria estrutura da linguagem à qual todos estamos submetidos desde nossa entrada na cultura. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 94-95) Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os 142


portadores. Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. (...) O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. (Foucault, 2002, p. 166-167 – grifos meus) Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homemmáquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido descritas por Descartes e que os médicos, filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão, ora de utilização, ora de funcionamento e 143


de explicação; corpo útil, corpo inteligível. “O homemmáquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso de pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados, e dos longos exercícios. (FOUCAULT, 2002, p. 117-118) (...) O poder disciplinar (...) se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar. (FOUCAULT, 2002, p. 156) (...) O indivíduo é sem dúvida uma átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é 144


também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objeto e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção. (FOUCAULT, 2002, p. 161) (...) Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância; sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração da troca, se processa o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os circuitos de comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo dos sinais define os pontos de apoio do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos. Somos bem menos gregos do que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem nos palcos, mas na máquina panóptica, investidos de seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois 145


somos suas engrenagens. (FOUCAULT, 2002, p. 178-179 – grifos meus) O Panóptico de Benthan é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito de contraluz, podese perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. (...) A visibilidade é uma armadilha. (...) Cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contata com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação A disposição de seu quarto, em frente da torre central, 146


lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. Esta é a garantia da ordem. (...) A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada. (Foucault, 2002, p. 166) (...) Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode bem ser representado como um puro sistema arquitetural e ótico: é uma figura de tecnologia política que se pode e deve destacar de qualquer uso específico. (FOUCAULT, 2002, p. 170) (...) encontramos no programa do Panóptico a preocupação (...) da observação individualizante, da caracterização e da classificação, da organização 147


analítica da espécie. O Panóptico é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo. (FOUCAULT, 2002, p. 168) (...) Mais tarde, ele contou que tinha acreditado ver nos seus lábios o sinal da própria condenação. - Nos meus lábios? Perguntou K., puxou um espelho de bolso e se olhou nele. - Não consigo perceber nada de especial nos meus lábios. E o senhor? - Eu também não – disse o comerciante – Absolutamente nada. - Como essas pessoas são supersticiosas! - exclamou K. - Eu não disse? – perguntou o comerciante. - Elas se frequentam tanto assim e trocam opiniões? – perguntou K. - Até agora eu me mantive completamente à parte. - Em geral, elas não se frequentam - disse o comerciante. - Isso não seria possível, são tantas! Também há poucos interesses comuns. Quando às vezes emerge num 148


grupo a crença num interesse comum ela logo prova ser um equívoco. Nada que seja comum pode se impor contra o tribunal. Cada caso é examinado em si mesmo, é o tribunal mais cauteloso que existe. Portanto, não se pode obter nada numa ação conjunta, só um indivíduo isolado às vezes alcança alguma coisa em segredo – e só quando o alcança é que os outros ficam sabendo; ninguém sabe como aconteceu. Não há, pois, nenhuma comunidade de interesse, na verdade as pessoas se encontram aqui e ali em salas de espera, mas se discute pouco. As opiniões supersticiosas existem desde sempre, e se multiplicam literalmente por si mesmas. (KAFKA, 1997, p. 214) Negando noções de progresso linear (e mesmo não linear), os pós-modernistas descrevem a história ou como derrota (distopia), ou como caos. “Para o pósmodernistas”, notou Henry Kariel em seu tratado pósmodernista, The Desperate Politcs of Postmodernism, “é simplesmente tarde demais para opor-se ao ritmo da sociedade industrial. Eles simplesmente resolvem permanecer alertas e frios em meio a ele. Aceitando conscientemente, mas ainda assim longe de dóceis, eles escrevem a crônica, ampliam-na, aumentam-na. Julgam tão pouco quanto ela julga a si mesma. 149


Resolvidos a não atacar coisa alguma, eles se mostram apaixonadamente impassíveis. (FOSTER, John Bellamy in “Em defesa da história – Marxismo e PósModernismo, 1999, p. 198) Somente a massificação urbana permite à prostituição difundir-se por várias partes da cidade. É por isso que ela fascina, e sobretudo por ser objeto vendável. Quanto mais ela reveste a forma-mercadoria, mais excitante se torna (p. 427). Filha da metrópole capitalista, encarnação da mercadoria, ela aparece como artigo de massa. Daí a padronização da roupa e da maquilagem, tão bem simbolizada na padronização da roupa e da maquilagem das coristas, no teatro de revista (p. 437). Mercadoria e massa, a prostituta é a síntese do capitalismo e da cidade. Seu feitiço é o do fetichismo. Ao mesmo tempo, ela não é só o fetichismo, história petrificada em natureza; ela é também a promessa de uma relação mais harmônica com a natureza. De algum modo, ela representa a natureza como figura materna, ainda que degradada. Nas condições atuais, a mãe tem os traços da cortesã. Mas a mãe pode ser reencontrada sob os traços da cortesã. A prostituta é natureza corrompida vida que significa morte (p. 424). Mas é também a perspectiva 150


de uma nova natureza, matriarcal, "a imagem distorcida, mas em tamanho natural de uma disponibilidade acessível a todos e que ninguém desencoraja" (p. 457). (Rouanet, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin. "Trabalho das Passagens". Seminário do Instituto Goethe) Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele vê um sistema causal: o significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode-se exprimir esta confusão de um outro modo: todo sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema fatual, quando ele é apenas um sistema semiológico. (BARTHES, 1989, p. 152) (...) A quantificação da qualidade – (...) Reduzindo toda a qualidade a uma quantidade, o mito faz economias de inteligência: compreende o real por um preço reduzido. Já dei vários exemplos deste mecanismo, que 151


a mitologia burguesa – e, sobretudo pequeno burguesa – não hesita em aplicar aos fatos estéticos, fatos esses que, por outro lado, ela diz participarem de uma essência imaterial. O teatro burguês é um bom exemplo desta contradição: por um lado, é apresentado como uma essência irredutível a qualquer linguagem, e que se revela somente ao coração, à intuição; esta qualidade confere-lhe uma dignidade desconfiada (é proibido como crise de “lesa-essência” falar do teatro cientificamente, ou melhor, qualquer forma intelectual de colocar o teatro é desacreditada sob o nome de cientismo, de linguagem pedante); por outro lado, a arte dramática burguesa repousa numa pura quantificação de efeitos: todo um circuito de aparências computáveis estabelece uma igualdade quantitativa entre o preço do bilhete e as lágrimas do ator, o luxo do cenário; aquilo que se chama, por exemplo, o “natural” do ator é, antes de mais nada, uma quantidade bem visível de efeitos. (BARTHES, 1989, p. 173-174) Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento. Ela está em casa em um mundo em que perspectivas e prospectos vem 152


ao acaso e ainda é possível adotar um ponto de vista. As coisas nesse meio tempo caíram de maneira demasiado abrasante sobre o corpo da sociedade humana. A “imparcialidade”, o “olhar livre” são mentiras, quando não são a expressão totalmente ingênua de chã incompetência. O olhar mais essencial hoje, o olhar mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se reclame. Ele desmantela o livre espaço do jogo da contemplação e desloca as coisas para tão perigosamente perto da nossa cara quanto, da tela de cinema, um automóvel, crescendo gigantescamente, vibra em nossa direção. E assim como o cinema não apresenta móveis e fachadas em figuras acabadas de uma consideração crítica, mas unicamente sua proximidade teimosa, brusca, é sensacional, assim o reclame genuíno aproxima as coisas a manivela e tem um ritmo que corresponde ao bom filme. Com isso, então, a “objetividade” é finalmente despedida e, diante das imagens gigantescas nas paredes das casas, onde “Chlorodont” e “Sleipnir” estão ao alcance da mão para gigantes, a sentimentalidade sanada se torna americanamente livre, assim como as pessoas a que nada mais toca e comove reaprendem no cinema o choro. Para o 153


homem da rua, porem é o dinheiro que aproxima dele as coisas dessa forma, que estabelece o contato conclusivo com elas. E o resenhista pago, que no salão de arte do marchand manipula as imagens, sabe, se não algo melhor, algo mais importante sobre elas que o amigo das artes que as vê na vitrine. O calor do tema desata-se para ele e o põe em disposição sentimental – O que, afinal, torna os reclames tão superiores à crítica? Não aquilo que diz a vermelha escrita cursiva elétrica – mas a poça de luz que espalha sobre o asfalto. (BENJAMIN, 1987, p. 54-55) O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra. 154


Ela deve levar em conta, portanto, não apenas os produtores diretos da obra em sua materialidade (artista, escritor, etc.), mas também o conjunto dos agentes e das instituições que participam da produção do valor da obra através da crença no valor da arte em geral e no valor distinto de determinada obra de arte, críticos, historiadores da arte, editores, diretores de galerias, marchands, conservadores de museus, mecenas, colecionadores, membros das instâncias de consagração, academias, salões, júris, etc. (...) (BORDIEU, 1996, p. 259) Ainda se pode considerar que o romantismo ao constituir a arte num objeto de livre escolha e gostos variáveis, desassociando-a de uma função direta na vida cotidiana, a mercadoria como bem cultural acessível a um consumo que se realiza pelo status que representa (BOURDIEU, 1989). A moda fez igualmente aos seus produtos aquilo que os artistas românticos fizeram as suas obras e dinamiza o sistema econômico, onde foi gestada, de tal forma que não há capitalismo, sem a renovação sistemática dos gostos e nem grupo social dominante, sem a possibilidade de sua adoção imediata (BAUDRILLARD, 1995). 155


Para Benjamin, como para Baudelaire, o conceito de modernidade origina-se do de Moda, pois esta exprime com propriedade aquilo que caracteriza a modernidade: a eterna volatização dos fenômenos. Contudo, em Baudelaire o conceito restringe-se ao campo das experimentações artísticas, sendo que o cotidiano, com sua velocidade e efemeridade, torna-se arte. Para o boêmio do século XIX, a moda seria o esforço de superar a natureza, o “gosto pelo ideal que flutua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele acumula de grosseiro, terrestre e imundo” e, sendo assim, todas as ofertas que a Moda faz seriam “uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza” (BAUDELAIRE, 1988, 202). Para Benjamin, a questão é mais radical e, logo, considera que em tudo a necessidade do novo torna-se vital, sendo a velocidade da obsolescência a garantia de sua condição. Por isso, a Moda como dinâmica de produção do novo é mais do que o próprio novo que surge aqui e acolá, que se constitui num traje, num desenho, numa literatura ou numa tela. A Moda seria o motor deste devir sempre almejado, a impulsão em busca do novo, a justificativa para todos os ensaios 156


sobre o inusitado. Com esta dinâmica tão fremente de busca do novo, a Moda torna-se a eterna via de inspiração do surreal. Tal como Baudelaire, Benjamin tinha razões filosóficas de admirar a moda. Para esse importante pensador da modernidade, o passado é algo inacabado, que não está fechado e que, pelo trabalho da memória, recriase num processo antropofágico. Diante desta concepção o conceito de história é construtivo e não hermenêutico, pauta-se pela descontinuidade, operase pela interrupção e se constitui em imagem, as quais são efêmeras como a instabilidade de sua compreensão. Logo, a história possível de ser construída por seus eruditos sofre a mesma impulsão da Moda, ou seja, faz com que a função do historiador seja de interromper um acervo memorial a partir de uma questão premente do presente e em vista de uma proposição ao futuro. Afirmou Benjamim que “a história se decompõe em imagens, não em histórias”, dizendo que como imagem a história contempla a fragmentação de uma sociedade múltipla, cujas identidades firmadas em representações “duras”, ou seja, explicativas e 157


firmadas na tradição, foram substituídas por identificações fluidas, nas quais a plasticidade dos grupos, a velocidades das comunicações, as intersemioses infinitas agenciam as recepções e fazem de cada sujeito um sujeito histórico ao seu gosto, onde a surrealidade é tão “real” quanto qualquer outra possibilidade. (SANT’ANNA Mara Rúbia. Moda, desejo e morte: explorações conceituais. Artigo Eletrônico – formato pdf.) Havia um elemento detetivesco na curiosidade de Proust. As dez mil pessoas da classe alta eram para ele um clã de criminosos, uma quadrilha de conspiradores com a qual nenhuma outra pode comparar-se: a camorra dos consumidores. Ela exclui de seu mundo todos os que participam da produção, ou pelo menos exige que eles se dissimulem, graciosa e pudicamente, atrás de uma gesticulação semelhante à ostentada pelos pefeitos profissionais do consumo. A análise proustiana do esnobismo, muito mais importante que sua apoteose da arte, é o ponto alto de sua crítica social. Pois a atitude do esnobe não é outra coisa que a contemplação da vida, coerente, organizada e militante, do ponto de vista, quimicamente puro, do consumidor. E como qualquer recordação alusiva às 158


forças produtivas da natureza, por mais remota ou primitiva que fosse, precisava ser afastada dessa feéri satânica, o comportamento invertido, no amor, era para Proust mais útil que normal. Mas o consumidor puro é o explorador puro. Ele o é lógica e teoricamente, e assim aparece em Proust, de modo plenamente concreto, em toda a verdade da sua existência histórica contemporânea. Concreto, porque impenetrável e difícil de situar. Proust descreveu uma classe obrigada a dissimular integralmente sua base material, e que em consequência precisa imitar um feudalismo sem significação econômica, e por isso mesmo eminentemente utilizável como mascara da grande burguesia. Esse desiludido e implacável desmistificador do Eu, do amor, da moral, como o próprio Proust se via, transforma sua arte imensa num véu destinado a encobrir o mistério único e decisivo de sua classe: o econômico. Com isso, ele não se pôs a serviço dessa classe. Ele está à sua frente. O que ele vive começa a tornar-se compreensível graças a ele. Grande parte do que faz a grandeza dessa obra permanecerá oculta e inexplorada até que essa classe, na luta final, revele seus traços fisionômicos mais fortes. (BENJAMIN, 1985, p. 44-45) 159


O aburguesamento do brinquedo não se reconhece só pelas suas formas, sempre funcionais, mas também pela sua substância. Os brinquedos vulgares são feitos de matéria ingrata, produtos de uma química e não de uma natureza. Atualmente muitos são moldados em massas complicadas: a matéria plástica tem assim uma aparência simultaneamente grosseira e higiênica, ela mata o prazer, a suavidade, a humanidade do tato. Um signo espantoso é o desaparecimento progressivo da madeira, matéria no entanto ideal pela sua firmeza e brandura, pelo calor natural do seu contato; a madeira elimina, qualquer que seja a forma que sustente, o golpe de ângulos demasiado vivos, e o frio químico do metal: quando a criança a manipula, ou bate com ela onde quer que seja a madeira não vibra e não range, produz simultaneamente um som surdo e nítido; é uma substância familiar e poética, que deixa a criança permanecer numa continuidade de tato com a árvore, a mesa, o soalho. A madeira não magoa, não se estraga também; não se parte, gasta-se, pode durar muito tempo, viver com a criança, modificar diminuindo, e não inchando como esses pequenos brinquedos mecânicos que desaparecem sob a hérnia de uma mola quebrada. A madeira faz objetos essenciais, objetos de 160


sempre. Ora, já praticamente não existem objetos de madeira, esses “redis dos Vosges” (*), só possíveis, é certo, numa época de artesanato. O brinquedo é doravante químico, de substância e de cor; a própria matéria prima de que é constituído leva a uma cinestesia de utilização e não de prazer. Estes brinquedos morrem, aliás, rapidamente, e, uma vez mortos, não tem para a criança nenhuma vida póstuma. (Barthes, 1989, p. 42) (*) Redis dos Vosges: brinquedo de madeira consistindo numa série de miniaturas de animais (carneiros, vacas, etc.) que utilizam normalmente as pastagens das montanhas (Vosgues) (Nota dos tradutores).

Here was the last refuge of those infant prodigies that saw the light of the Day at the time of the world exhibitions: the briefcase with interior lighting, the meter-long pocket knife, or the patented umbrella handle with built-in watch and revolver. And near the degenerate giant creatures, aborted and broken-down matter. We followed the narrow dark corridor to where 161


– between a discount bookstore, in which dusty tied-up bundles tell of all sort of failure, and a shop selling only buttons (mother-of-pearl and the kind that in Paris are called de fantasie) – there stood a sort of saloon. On the pale-colored wallpaper full of figures and busts shone a gas lamp. By its light, an old woman sat reading. They say she has been there alone for years, and collect sets of teeth “in gold, in wax, and broken”. Since that day, moreover, we know where Doctor Miracle got the wax out of he fashioned Olympia. (BENJAMIN, 1999, p. 201) [The collector] Converta-se à minha nova fé, multidão Eu lhe ofereço o que nunca ninguém teve antes Lhe ofereço inclemência e vinho Aquele que não terá pão será alimentado pela luz de meu sol Povo, em minha fé nada é proibido Há amor e há bebida E olhar para o Sol por tanto tempo quanto quiserem E essa divindade não proíbe nada Dêem ouvidos a meu chamado, irmãos, povo, multidão.

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Radovan Karadzic, líder sérvio bósnio responsável por uma terrível limpeza étnica na guerra pós-iugoslava Também a tradução é análoga à citação. Esta "opera à maneira da citação, uma vez que porta, num primeiro momento, desorganização, desestruturação do original". E assim a relação com a língua estrangeira. Benjamin cita Gide: [...] no aprendizado das línguas, o mais importante não é aquela que se aprende, mas abandonar a sua. Eis o decisivo. Só então que se a compreende verdadeiramente. Se citar é deslocar, traduzir é deslocar-se também de nossa própria língua. Citar é abandonar o contexto familiar pelo estranho, é transformar o estranho em familiar e o familiar em estrangeiro. Traduzir é um "ato mágico" de apropriação do Outro que é também um Mesmo, pois, como o sabem todos os místicos, um texto requer uma busca de sentido ao infinito. Por isso o tradutor torna-se escritor. (Olgária Chain Féres Matos. Walter Benjamin: a citação como esperança – texto digital)

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Here fashion has opened the business of dialectical exchange between woman and ware – between carnal pleasure and the corpse. The clerk, death, tall and loutish, measures the century by the yard, serves as mannequin himself to save costs, and manages singlehandedly the liquidation that in French is called revolution. For fashion was never anything other than the parody of the motley cadaver, provocation of death through the woman, and bitter colloquy with decay whispered between shrill burst of mechanical laughter. That is fashion. And that is why she changes so quickly; she titillates death and is already something different, something new, as he casts about to crush her. For a hundred of years she holds her own against him. Now, finally, she is on the point of quitting the field. But he erects on the banks of a new Lethe, which rolls its asphalt stream through arcades, the armature of whores as a battle memorial. (BENJAMIN, 1999, pp. 6263) (‌) Fashion always stands in opposition to the organic. Not the body but the corpse is the most perfect object for its art. It defends the rights of the corpse before the living being, which it couples to the inorganic world. 164


The fetishism that succumbs to the sex apple of commodity is its vital nerve. On the other hand, it is precisely fashion that triumphs over death. It brings the departed with into the present. Fashion is contemporary with every past. (BENJAMIN, 1999, p.894) The epigraph of Balzac is well suited to unfolding the temporality of hell: to showing how this time does not recognize death, and how fashion mocks death; how the acceleration to traffic and the tempo of news reporting (which conditions the quick succession of newspaper editions) aim at eliminating all discontinuities and sudden ends; and how death as caesura belongs together with all strait line of divine temporality – Where fashion is antiquity? Or did the “authority of frame” preclude them? “She was everybody´s contemporary “. (Paris, 1927), p. 129. To be comtemporaine de tout le monde – that is the keenest and most secret satisfaction that fashion can offer a woman. (BENJAMIN, 1999, p. 66)

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A partir de 1936 (...) Benjamin vai reintegrar cada vez mais o momento romântico em sua crítica marxista sui generis das formas capitalistas de alienação. Por exemplo, em seus escritos dos anos 1936-1938 sobre Baudelaire, ele retoma a idéia tipicamente romântica, sugerida em um ensaio de 1930 sobre E. T. A. Hoffmann, da oposição entre a vida e o autômato. Os gestos repetitivos, vazios de sentido e mecânicos dos trabalhadores diante da máquina - aqui Benjamin se refere diretamente a algumas passagens de O capital de Marx - são semelhantes os gestos autômatos dos passantes na multidão descritos pro Poe e Hoffmann. Tanto uns quanto outros, vítimas da civilização urbana e industrial, não conhecem mais a experiência autêntica (Erfahrung), baseada na memória e na tradição cultural e histórica, mas somente a vivência imediata (Erlebnis) e, particularmente, o Chokerlebnis [a experiência do choque] que neles provoca um comportamento reativo de autômatos “que liquidaram completamente sua memória”. (LÖWY, 2005, p. 27-28) Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então 166


ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro do Homemmáquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido descritas por Descartes e que os médicos, filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regula-mentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão, ora de utilização, ora de funcionamento e de explicação; corpo útil, corpo inteligível. “O homemmáquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso de

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pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados, e dos longos exercícios. (FOUCAULT, 2002, p. 117-118) At a certain point of time, the motif of the doll acquires a sociocritical significance. For example: “You have no idea how repulsive these automatons and dolls can became, and how one breathes at last on encountering a full-blooded being in this society. Paul Lindau, Der Abend (Berlin, 1986), p. 17 Apud (Benjamin, 1999, p. 695) In his study “La mante religeuse: Recherches sur la nature et la sgnification du mythe” <The praying Mantis: Investigations into the Nature and Meaning of Myth>, Calois refers to striking automatism of reflexes in the praying mantis (there is hardly a vital function that it does not also perform decapitated). He links it, on account of its fateful significance, with the baneful automatons known to us from myths. Thus Pandora: “automaton fabricated by blacksmith god for the ruin of humankind, for that “which all shall / take to their hearts with delight, an evil to love and embrace” (Hesiod, Works and Days, line 38). We encounter something similar in the Indian Kyrtya – those dolls, 168


animated by sorcerers, which bring about death of men who embrace them. Our literature as well, in the motif of femmes fatales, possesses the concept of a womanmachine, artificial, mechanical, at variance with all living creatures, and above all murderous. No doubt psycho-analysis would not hesitate to explain this representation in its own terms by envisaging the relations between death and sexuality and, more precisely, by finding each ambiguously intimated in the other”. Roger Caillois, “La amante religeuse: Recherches sur la nature et la sgnification du mythe”, Mesures, 3, nº 2 (April 15, 1937). (BENJAMIN, 1999, p. 696) (...) É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar a ter acesso à sua própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, o elemento oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade do seu corpo (pois ele é uma parte real e ameaçada deste corpo do qual constitui simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história). Por uma inversão que começou, provavelmente, de modo sub-reptício há 169


muito tempo – e já na época da pastoral cristã da carne – chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade naquilo que foi, durante tantos séculos, considerado como loucura; a plenitude de nosso corpo naquilo que, durante muito tempo, foi um estigma e como que a ferida neste corpo; nossa identidade, naquilo que se percebia como obscuro impulso sem nome. Daí a importância que lhe atribuímos, o temor reverente com que o revestimos, a preocupação que temos de conhecê-lo. Daí o fato de se ter tornado, na escala dos séculos, mais importante que nossa alma, mais importante do que nossa vida; e daí todos os enigmas do mundo nos parecem tão leves comparados a esse segredo, minúsculo em cada um de nós, mas cuja densidade o torna o mais grave de todos. O pacto faustiano cuja tentação o dispositivo da sexualidade inscreveu em nós é, doravante, o seguinte: trocar a vida inteira pelo próprio sexo, pela verdade e soberania do sexo. O sexo bem vale a morte. É nesse sentido, estritamente histórico, como se vê, que o sexo hoje em dia é de fato transpassado pelo instinto de morte. (FOUCAULT, 1988, p. 145-146) Elegia 170


(Augusto de Campos - Péricles Cavalcanti) Deixe que minha mão errante Adentre atrás, na frente, Em cima, em baixo, entre Minha América Minha terra a vista Reino de paz se um homem Só a conquista Minha mina preciosa Meu império, feliz De quem penetre o teu mistério Liberto-me ficando teu escravo Onde cai minha mão Me selo gravo Nudez total Todo prazer provém do corpo Como a alma em seu corpo Sem vestes, como encadernação cristosa Feita para iletrados A mulher se enfeita, Mas ela é um livro místico E somente a alguns a que tal graça Se consente é dado lê-la. Eu sou um que sabe. 171


Quem ama não se apega somente aos “defeitos da amada, não somente aos tiques e fraquezas de uma mulher; a ele, rugas no rosto e manchas hepáticas, roupas gastas e um andar torto prendem muito mais duradoura e inexoravelmente que toda beleza. Há muito tempo se notou isso. E por quê? Se é verdadeira uma teoria que diz que a sensação não se aninha na cabeça, que não sentimos uma janela, uma nuvem, uma árvore no cérebro, mas sim naquele lugar onde as vemos, assim também, no olhar para a amada, estamos fora de nós. Aqui, porém, atormentadamente tensos e arrebatados. Ofuscada, a sensação esvoaça como um bando de pássaros no esplendor da mulher. E, assim como os pássaros buscam proteção nos folhosos esconderijos da árvore, refugiam-se as sensações nas sombrias rugas, nos gestos desgraciosos e nas modestas máculas do corpo amado, onde se acocoram em segurança, no esconderijo. E nenhum passante advinha que exatamente aqui, no imperfeito, censurável, aninha-se a emoção amorosa, rápida como uma seta do adorador. (BENJAMIN, 1995, p. 18) Balzac has secured the mythic constitution of his world through precise topographic contours. Paris is breeding ground of his mythology – Paris with its two or three 172


great bankers (Nucingen, du Tillet), Paris with its great physician Horace Bianchon, with its entrepreneur César Birotteau, with its four or five great cocottes, with its usurer Gobsek, with its sundry advocates and soldiers. But above all – and we see this again and again – it is from the same streets and corners, the same little rooms and recesses, that the figures of this world step into the light. What else can this mean but that topography is the ground plan of this mythic space of tradition <Traditionsraum>, as it is of every such space, and that it can become indeed its key – just as the key of Greece for Pausanias, and just as the history and situation of the Paris arcades are to become the key for the underworld of this century, into which Paris has sunk. (BENJAMIN, 1999, p. 83) One knew places in ancient Greece where the way led down into the underworld. Our waking existence likewise is a land which, at a certain hidden points, leads down into the underworld – a land full of inconspicuous places from which dream arises. All day long, suspecting nothing, we pass by, but not sooner has sleep come than we are eagerly groping our back to lose ourselves in the dark corridors. By day, the 173


labyrinth of urban dwellings resembles consciousness; the arcades (which are galleries leading into the city´s past) issue unremarked onto the streets. At night, however, under tenebrous mass of the houses, their darkness protrudes like a threat, and the nocturnal pedestrian hurries – unless, that is, we have emboldened him to turn into the narrow lane. But another system of galleries runs underground through Paris: the Métro, where at dusk glowing red lights point the way into the underworld of names. Combat, Elusée, George V, Etienne Marcel, Solférino, Invalide, Vaugirard – they have all thrown off the humiliating fetters of street or square, and here in the lightning-scored, whistle-resounding darkness are transformed into misshapen sewer gods, catacomb fairies. This labyrinth harbors in its interior not one but a dozen blind raging bulls, into whose jaws not one Theban virgin once a year but thousands of anemic young dressmakers and drowsy clerks every morning must hurl themselves. Street names. Here, underground, nothing more of the collision, the intersection of names – that which aboveground forms the linguistic network of the city. Here each name 174


dwells alone; hell is its demesne. Amer, Picon, Dubonnet are guardians of the threshold. (BENJAMIN, 199, p. 84) #15. ESCRITA AMODAL “Na agrafia terminal de Rimbaud, que desdá, desintegra e desdiz a noite, ou na agrafia tipográfica de Mallarmé, cujo caráter enigmático deriva de pensar alto e escrever sem acessórios, vemos uma busca [um desejo de matar em si mesmo o poeta; uma tentativa de cometer o suicídio da palavra escrita]. Trata-se de uma escritura órfica, que só pode salvar seu objeto renunciando a ele, mas que mesmo assim, sempre olha para trás com relativa esperança. Escritura de terceiro termo, termo neutro ou vazio, oscilando entre singular e plural, entre passado e presente; escritura amodal ou jornalística, ‘se precisamente o jornalismo não desenvolvesse em geral formas 175


patéticas, optativas ou imperativa’. Em suma, um estilo da ausência de estilo que aponta à ausência quase completa de estilo, e revela uma negatividade em que os traços auráticos da norma foram abolidos em benefício da inércia da forma e estilo e onde o pensamento, isento de todo compromisso deliberado ou consciente, redefine a relação entre forma e norma como relação experimental de novo tipo. A escritura é uma forma de experiência, um modo de conceber a prática, um uso social da forma literária: enfim, uma construção do inteligível contemporâneo que resiste à leitura e é, portanto, autoconsciente da transgressão de seus próprios limites”. (Objecto textual. Raul Antelo. Editado pela Fundação Memorial da América Latina, 1997)

Ah! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, epiléticas, esnobes, ruas 176


aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes que ficam sem pinga de sangue... (BARRETO, Paulo (João do Rio). A alma encantadora das ruas (1908), apud Memória da Destruição: Rio – uma história que se perdeu (1889-1965), Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo da Cidade, 2002) Until Haussmann, Paris had been a city of moderate dimensions, where it was logical to let experience rule; it developed according to pressures dictated by nature, according to laws inscribed in the facts of history and in the face of the landscape. Brusquely, Haussmann accelerates and crowns the work of revolutionary and imperial centralization… An artificial and inordinate creation, emerged like Minerva from the head of Jupiter, born amid the abuse of the spirit of authority, this work had needed of the spirit of authority in order to develop according to its own logic. No sooner was it born, than it was cut off the source… Here was the paradoxical spectacle of a construction artificial in the principle, but abandoned in fact only to rules imposed by nature. 177


Duebech and d’Espezel, pp. 443-444 (BENJAMIN, 1999, p. 133) ioHaving, as they do, the appearance of walling-in a massive eternity, Haussmann´s urban works are a wholly appropriate representation of absolute governing principles of the Empire: repression of every individual formation, every organic self-development, “fundamental hatred of all individuality”. J.J. Honegger, Grundsteine einer allegemeinen Kulturgeschichtef der nuesten Zeit, vol. 5 (Leipzig, 1874), p. 326. But Luis Philippe was already known as the Roi-Maçon <Mason King> (BENJAMIN, 1999, P. 122) (...) nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o 178


frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1985, p. 198) Those who have travelled in Sicily will remember the celebrated convent where, as a result of earth’s capacity for drying and preserving bodies, the monks at a certain time of year can deck out in their ancient regalia all the grandees to whom they have accorded the hospitality of the grave: ministers, popes, cardinals, warriors and kings. Placing them in two rows within their spacious catacombs, they allow the public to pass between these rows of skeletons… Well, this Sicilian convent gives us an image of our society. Under the pompous garb that adorns our art and literature, no heart beats – there are only dead men, who gaze at you with staring eyes, lusterless and cold, where you ask the century where the inspiration is, where the arts, where the literature. <Alfred> Nettement, Les ruine morales et intellectuelles (Paris, October 1836), p. 132 (…) BENJAMIN, 1999, p.92)

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Not only architecture but all technology is, at certain stages, evidence of a collective dream. (BENJAMIN, 1999, p. 152)

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Transcrição de participação em simpósio organizado pelo Instituto Goethe São Paulo em conjunto com o Setor de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP, o Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, com apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) e da Sociedade Alemã para a Pesquisa (DFG), realizado de 25 a 28 de setembro de 1990 no Instituto Goethe em São Paulo. Nas demais citações oriundas do mesmo evento serão identificadas apenas por SIMPÓSIO INSTITUTO GOETHE.

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