Constelares: topologia, atopia, utopia e heterotopia
Constelares: topologia, atopia, utopia e heterotopia Palavras-chave: globalismo, localismo, capitalismo, mercado, mercadoria, dinheiro, cidade infernal, Lang, Fellini, Welles, revolução. Assim que libertou a acumulação dos obstáculos impostos pela ordem feudal, a burguesia viu-se forçada a submetê-la à restrição do controle popular exercido por meio do sufrágio universal. A combinação da propriedade privada dos meios de produção com o sufrágio universal constitui um compromisso, e este implica que a lógica da acumulação não é exclusivamente a lógica dos agentes privados. Na atual ofensiva da Direita não está contida apenas a questão da tributação dos gastos governamentais ou mesmo da distribuição de renda. Os planos para abrandar a tributação do lucro, abolir controles do meio ambiente, eliminar programas de bem-estar, retirar do governo o controle sobre a segurança de produtos e as condições de trabalho e enfraquecer os sindicatos operários constituem mais do que uma 1
reorientação da política econômica. Trata-se de um projeto para uma nova sociedade, uma revolução burguesa. (PREZEWORSKI, 2ª reimpressão, p. 258) O antissemitismo representa, portanto, uma válvula de escape para as classes possuidoras que o estimulam e substituem assim o ódio perigoso contra um regime pelo ódio benigno contra particulares. E, acima de tudo, esse dualismo ingênuo é eminentemente tranquilizador para o próprio antissemita: se se trata de eliminar o Mal, é porque o Bem já está dado. Não há absolutamente necessidade de procurá-lo na angústia, de inventá-lo, de discuti-lo pacientemente depois de encontrado, de comprová-lo pela ação, de verificá-lo em suas consequências e finalmente de afiançar as responsabilidades pela escolha moral efetuada. Não é por acaso que as grandes cóleras antissemitas dissimulam um otimismo: o antissemita decidiu sobre o Mal, a fim de não ter que decidir sobre o Bem. Quanto mais absorto no combate ao Mal, menos estou tentado a por em causa o Bem. Não se fala dele, está subentendido 2
nos discursos do anti-semita e permanece subentendido no seu pensamento. Quando houver cumprido sua missão de destruidor sagrado,.o Paraíso Perdido se reconstituirá por si mesmo. Entrementes, tantas tarefas absorvem o antisemita que não lhe resta tempo para refletir a respeito; está sempre na vanguarda, combate e cada uma de suas indignações constitui um pretexto que o desvia da busca do Bem em meio à angústia. (SARTRE, 1978, p. 25/26) As instituições e agentes políticos estatais assemelham-se cada vez mais a “zumbis” que executam os gestos da política, mas não conseguem determinar qualquer benefício público substantivo que promova bem-estar social (Beck, 1992, 1997). As estratégias políticas contemporâneas envolvem a facilitação da adaptação aos mercados mundiais e aos fluxos econômicos transnacionais. A adaptação à economia internacional – sobretudo aos mercados financeiros globais – vem se tornando um ponto de orientação fixo na política econômica e social. Os “sinais de decisão” desses mercados e de seus agentes e forças principais tornam-se uma norma, 3
se não a norma, do processo decisório racional. Essa postura está ligada, além disso, à busca de medidas distintivas pelo lado da oferta – acima de tudo, ao uso da educação e da formação de instrumentos de política econômica. Cada cidadão deve ser dotado de um capital cultural e educacional que permita enfrentar os desafios da competição (local, nacional, regional e global) intensificada, bem como da maior mobilidade do capital industrial e financeiro. Os Estados já não têm a capacidade e os instrumentos políticos de que precisam para contestar os imperativos da mudança econômica global; em vez disso, têm que ajudar os cidadãos a irem onde quiserem, através do fornecimento de recursos sociais, culturais e educacionais. Os termos de referência da política pública são ditados por mercados globais e pela iniciativa empresarial. A busca do bem público torna-se sinônimo de prover a adaptação a esse objetivo privado. Por conseguinte, os papéis do Estado como protetor e representante da comunidade territorial, como coletor e (re)alocador de recursos entre seus membros e como promotor de um bem comum independente 4
e deliberadamente testado estão em declínio. (HELD; MACGREW, 2001, pp. 85) Os fatos brutos da atual desigualdade de riqueza no regime anglo americano são de fato atordoantes. O economista Simon Head calculou que para os 80 por cento de menor renda da população trabalhadora americana a média dos salários semanais (ajustados pela inflação) caiu 18 por cento de 1973 a 1995, enquanto o salário da elite empresarial subiu 19 por cento, e 66 por cento depois da magia da contabilidade fiscal. Outro economista, Paul Krugman, afirma que o 1 por cento de maior renda dos assalariados americanos mais que duplicou sua renda real na década de 1979-89, em comparação com uma taxa inferior de riqueza acumulada nas décadas anteriores. Na Grã-Bretanha, The Economist calculou recentemente que os 20 por cento de maior renda da população trabalhadora ganham sete vezes mais que os 20 por cento de menor renda, quando há vinte anos a proporção era de apenas quatro vezes. Um secretário do trabalho assim argumentou: “estamos a caminho de nos tornar uma sociedade de duas camadas, composta 5
de uns poucos vencedores e um grande grupo deixado para trás, opinião secundada pelo presidente do Federal Reserve Bank [Banco Central Americano], que declarou há pouco que a renda desigual pode tornar-se “uma grande ameaça à nossa sociedade”. (SENNETT, 2003, p. 62/63) Há uma certa verdade na afirmação segundo a qual a política nos países avançados é cada vez mais uma política ‘fria’ (Mulgan, 1994). Não se trata mais de uma questão de guerra e paz ou de conflito de classe. Não se trata mais de uma questão de mobilização de massa, para esforços nacionais comuns de vida ou de morte. Para os defensores da globalização, a política de nível nacional é mesmo menos proeminente porque não pode alterar muito os resultados econômicos e sociais, a menos que sejam adotadas estratégia intervencionistas absurdas, que enfraquecem a competitividade nacional. Por isso, considera-se que a política nacional tornase, como a política municipal, uma questão de oferecer serviços triviais. Assim, a energia se esvai da política convencional, dos partidos estabelecidos, e pessoas de alto nível deixam de 6
ser atraídas para a carreira política. A política flui em direção à política da moralidade – em questões como o aborto, direitos homossexuais, direitos dos animais e o meio ambiente. A política ativista ou ‘quente’ pode ser exercida em sua antiga acepção, sem medo de que está vá desviar a atenção de questões ‘nacionais’ vitais – pois essas são agora, triviais. (HIRST; TRHOMPSON, 1998, p.273-274) O discurso que ouvimos todos os dias, para nos fazer crer que deve haver menos Estado, vale-se dessa mencionada porosidade, mas sua base essencial é o fato de que os condutores da globalização necessitam de um Estado flexível a seus interesses. As privatizações são mostra de que o capital se tornou doravante, guloso ao extremo, exigindo sempre mais, querendo que o território se adapte às suas necessidades de fluidez, investindo pesadamente para alterar a geografia das regiões escolhidas. De tal forma, o Estado acaba por ter menos recursos para tudo o que é social, sobretudo no caso das privatizações caricatas, como no modelo brasileiro, que financia as empresas estrangeiras candidatas à compra do capital social nacional. Não é que o Estado se 7
ausente ou se torne menor. Ele apenas se omite quanto ao interesse das populações e se torna mais forte, mais ágil, mais presente, ao serviço da economia dominante. (SANTOS, 2000 – grifos meus) Robert Reiche (1992, p.3) fala na importância decrescente das economias e sociedades nacionais sob o impacto das “forças centrífugas da economia global, que rompem os laços que unem os cidadãos”. Peter Drucker (1993, p.141-56) identifica uma deterioração sistemática do poder dos Estados nacionais sob o impacto conjunto de três forças: o “transnacionalismo” dos tratados multilaterais e das organizações surpa-estatais, o “regionalismo” de blocos econômicos como a União Europeia e o Acordo Americano de Livre Comércio (NAFTA), e o “tribalismo” da ênfase crescente na diversidade e na identidade.(...) (ARRIGHI, 1996, p. 74) Em alguns autores ainda parece existir a ideia de que o Estado nacional seria, do ponto de vista propriamente organizacional, um ente inadequado para lidar com as questões apresentadas pelas sociedades contemporâneas. Deste modo, seria ao 8
mesmo tempo pequeno e grande demais, havendo demandas, portanto, no sentido de que a autoridade do ente público seja redirecionada para cima e para baixo – para o global e local -, de modo a desempenhar adequadamente seus papéis. (ARRIGHI, 1996, p. 74-75) A globalização é acima de tudo um fenômeno financeiro, mas com projeções significativas nos sistemas de produção. Hoje, as grandes empresas projetam sua localização em escala planetária. Isto é visível no setor automobilístico. (...). (FURTADO, 2001) O milagre económico asiático do pós-guerra demonstra que o capitalismo é uma via potencial para o desenvolvimento económico acessível a qualquer país. Nenhum país subdesenvolvido do Terceiro Mundo está em desvantagem apenar por ter iniciado o processo de crescimento mais tarde do que a Europa, nem as potências industriais estabelecidas conseguem bloquear o desenvolvimento de um recém-chegado que siga as regras do liberalismo econômico (FUKUYAMA, 1992, p.115 – grifos meus) 9
Já que o paranoico só percebe o mundo exterior na medida em que corresponde a seus fins cegos, é capaz de repetir sempre e somente seu próprio eu alienado à mania abstrata (...) A disciplina do sempre igual torna-se o substituto da onipotência. É como se a serpente que disse aos primeiros homens para se tornarem iguais a Deus tivesse mantido sua promessa no paranoico (...) Parece não ter necessidade de nenhum ser vivo e no entanto exige que todos o sirvam. (ADORNO; HORKEIMER, 1985, p. 177, Apud Matos, 2006, p. 41) Segundo a pesquisa da Newsweek, tanto para assegurar trabalho aos indivíduos como para assegurar competitividade internacional a um país, é preciso enriquecer-se de skill. Visto que há uma tendência a mudar de carreira pelo menos seis vezes numa vida, não é preciso mais preparar os jovens para uma carreira específica, mas sim para uma vida ativa em sua plenitude, tornando-os pesquisadores, cientistas, artistas, atletas, jornalistas: “e você aprender alguma coisa e continuar a fazê-lo daqui a cinco anos, a única 10
coisa da qual você pode ter certeza é que você estará fazendo algo errado”. (MASI, 1999, p.72) Resulta daí a marginalização impiedosa e passiva do número imenso, e constantemente ampliado, de “solicitantes de emprego”, que, ironia, pelo próprio fato de terem se tornado tais, atingiram a norma contemporânea; norma que não é admitida como tal nem pelos excluídos do trabalho, a tal ponto que estes são os primeiros a se considerar incompatíveis com uma sociedade da qual eles são os produtos mais naturais. São levados a se considerar indignos dela, e sobretudo responsáveis por sua própria situação, que julgam degradante (já que degradada) e até censurável. Elas se acusam daquilo de que são vítimas. Julgam-se com o olhar daqueles que os julgam, olhar esse que adotam, que os vê culpados, e o que os faz, em seguida, perguntar que incapacidade, que aptidão para o fracasso, que má vontade, que erros puderam leva-os a essa situação. A desaprovação geral os espreita, apesar do absurdo dessas acusações. Eles se criticam – como são criticados – por viver uma vida de miséria ou pela ameaça de que isso ocorra. Uma vida freqüentemente 11
“assistida” (abaixo, por sinal, de um limite tolerável). (FORRESTER, 1997, p.11-12) Se a ferocidade social sempre existiu, ela tinha limites imperiosos, porque o trabalho oriundo das vidas humanas era indispensável para aqueles que detinham o poder. Ele não o é mais; pelo contrário, tornou-se incômodo. E aqueles limites esboroamse. Será que se entende o que isso significa? Jamais o conjunto de seres humanos foi tão ameaçado na sua sobrevivência. Qualquer que tenha sido a história da barbárie ao longo dos séculos, até agora o conjunto dos seres humanos sempre se beneficiou de uma garantia: ele era tão essencial ao funcionamento do planeta como à produção, à exploração dos instrumentos de lucro, do qual representava uma parcela. Elementos que o preservavam. Pela primeira vez, a massa humana não é mais necessária materialmente, e menos ainda economicamente, para o pequeno número que detém os poderes e para os quais as vidas humanas que evoluem fora de seu círculo íntimo só têm interesse, ou mesmo existência – isso se 12
percebe cada dia mais -, de um ponto de vista utilitário. A relação de forças, até aqui sempre latente, se anula por completo. Desaparecem as barreiras de proteção. As vidas não são mais de utilidade pública. Ora, é precisamente em razão de sua utilidade em relação a uma economia agora autônoma que elas são avaliadas. Vê-se bem onde reside o perigo, ainda virtual mas absoluto. Ao longo da história, a condição humana foi muitas vezes mais maltratada que nos dias de hoje, mas o era por sociedades que, para sobreviver, precisavam dos vivos. E dos vivos subalternos em grande número. Já não é esse o caso. É por isso que hoje é grave – em plena democracia, numa época em que se tem a experiência do horror e, como nunca, os meios de ser socialmente lúcido -; sim, é tão grave observar a rejeição inexorável daqueles que não são mais necessários, não aos outros homens, mas a uma economia de mercado para a qual não são mais fonte potencial de lucro. E sabemos que não voltarão a sê-lo. (Forrester, 1997, pp.136-137) 13
Um dos motivos para essa superficialidade degradante é a desorganização do tempo. A seta do tempo partiu-se; não tem trajetória numa economia política continuamente replanejada, que detesta a rotina, e de curto prazo. As pessoas sentem falta de relações humanas constantes e objetivos duráveis. Todas as pessoas que descrevi até agora tentaram descobrir a profundidade do tempo abaixo da superfície, quando nada registrando inquietação e angústias com o presente. A ética do trabalho é a arena em que mais se contesta hoje a profundidade da experiência. A ética do trabalho, como a entendemos comumente, afirma o uso autodisciplinado de nosso tempo e o valor da satisfação adiada. Essa disciplina de tempo moldou a vida de Enrico, como os trabalhadores na indústria automobilística de Willow Run e dos padeiros gregos de Boston 1. Eles deram duro e esperaram; foi essa a sua experiência de profundidade. Essa ética de trabalho depende em parte de instituições suficientemente estáveis para a pessoa praticar o adiamento. A satisfação adiada perde seu valor, porém, num regime cujas 14
instituições mudam rapidamente; torna-se absurdo trabalhar arduamente por muito tempo e para um patrão que só pensa em vender o negócio e subir. (SENNETT, 2003, p 117-118) À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade. É, literalmente, falsa consciência, porque é consciência de uma ruptura que não houve. Ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da modernidade. Fantasiando uma pós-modernidade fictícia, o homem está querendo despedir-se de uma modernidade doente, marcada pelas esperanças traídas, pelas utopias que se realizaram sob a forma de pesadelos, pelos neofundamentalismos mais obscenos, pela razão transformada em poder, pela domesticação das consciências no mundo industrializado e pela tirania política e pela pobreza absoluta nos ¾ restantes do gênero humano. (ROUANET, 1992, p. 269) (…) Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como 15
pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e de história de vida em uma sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, emprego em emprego. Se seu fosse explicar mais amplamente o dilema de Rico2, diria que o capitalismo de curto prazo corrói o caráter dele, sobretudo as qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros, dão a cada um deles um senso de identidade sustentável. (SENNETT, 2003, p. 27) (…) Na fábrica da Subaru-Isuzu, onde os administradores usavam a metáfora dos esportes chamando-se de treinadores, Laurie Graham constatou que era difícil, senão fatal, um trabalhador falar diretamente de problemas a um chefe-treinador em outros termos que não o da cooperação de equipe; a conversa direta envolvendo reivindicações de maior salário ou menos pressão para aumentar a produtividade era vista como falta de cooperatividade do empregado. O bom jogador de equipe não se queixa. As ficções do trabalho em equipe pela 16
própria superficialidade de seu conteúdo e seu foco no momento imediato, sua fuga à resistência e ao confronto, são assim úteis no exercício da dominação. Compromissos, lealdade e confiança partilhados exigiriam mais tempo – e por isso mesmo não seriam tão manipuláveis. O administrador que declara que somos todos vítimas da época e lugar é talvez a figura mais astuta a aparecer nas páginas destes livro. Ele dominou a arte de exercer o poder sem ser responsabilizado; transcendeu essa responsabilidade para si mesmo, repondo os males do trabalho nos ombros dos irmãos “vítimas” que por acaso trabalham para ele. (SENNETT, 2003, p. 137-138) Para chegar às medidas retrógradas do workfare3, todas as estratégias do novo regime precisaram desempenhar o seu papel. Uma delas, longe de ser inócua, consiste em criar um amálgama entre a noção de dignidade e a do emprego, a vincular o desaparecimento de um à perda do outro, como se o emprego não fosse tão inapto a conferir dignidade quanto sua ausência em roubá-la. É como se a dignidade de uma pessoa dependesse 17
do fato de ela manter ou não emprego. É como se, logo após agradecerem a ele, o demitido, até então honrado, se metarfoseasse em personagem “indigno”, cuja reputação só poderia ser estabelecida por um cargo novo, qualquer que fosse ele. A simples idéia é absurda e se torna extremamente grave nessa época em que chantagens exercidas sobre o emprego, sobre o desemprego ou sua ameaça se propagam e banalizam. (FORRESTER, 2001 p. 69) Os excluídos constituem, à sua maneira, uma imensa “zona cinzenta”: eles delineiam, com efeito, um mundo no qual o Estado controla cada vez menos. A Nova Idade Média é também o ressurgimento da anomia, da marginalidade e do invisível: este é o caso de cem mil jovens que deixam o sistema escolar sem diploma e desaparecem na sociedade, como outrora as pessoas se perdiam em territórios desconhecidos. Os pensadores das sociedades modernas jamais teriam imaginado tanto o surgimento dessas “zonas de não-direito” – conforme expressão de Édouard Balladur em seu discurso sobre política geral -, como o desenvolvimento exponencial de 18
microssociedades autônomas. (...) Na origem dessas zonas cinzentas, evidentemente, o desemprego prolongado, com a cadeia de infortúnios que leva à exclusão. (MINC, 1994, p. 68) Conhecemos os termos da escolha econômica que todos nós, membros da imensa classe média, egoisticamente fizemos: preservar nosso nível de vida às expensas de alguns milhões de excluídos. Empurrando o farisaísmo até seus limites, certamente esperávamos que esta sub-sociedade permanecesse “sábia” e que não escapasse aos olhares vigilantes da sociedade institucional. Diante do desastre, inútil procurar por um bode expiatório: somos responsáveis e, portanto, culpados! Erra, atualmente, pelos confins da sociedade, um novo lumpemproletariado que, com seus procedimentos cegos e canhestros, nem o Estado, nem o Estado-previdência conseguem amparar. Esta população se esquiva ao olhar, é pouco conhecida e escapa aos moldes sociais criados incessantemente no último século. (...) Somos introduzidos sub-repticiamente, pois, numa sociedade com três recortes: ao lado da 19
imensa classe média e dos excluídos “clássicos”, surgiu um terceiro grupo, este completamente marginal. A paisagem urbana é sua expressão, com espaços de “não-direito” onde a marginalidade reina no coração dos subúrbios pobres e miseráveis. Os excluídos esperam – frequentemente em vão – do Estado legalista a garantia de um mínimo de ordem social e, através dele, menos uma esperança de completa promoção, de agora em diante, do que um pouquinho de proteção. Os marginais não lhe pedem nada, nem o combatem, e sim o evitam.” (MINC, 1994, p. 69) A Nova Idade Média, como a antiga, corresponde a um mundo descentrado, móvel, onde nada está definitivamente assentado. E a analogia não para aí: ela se nutre de um fenômeno mais perturbador ainda, talvez, desde o enfraquecimento dos Estados Unidos, no caso, a ressurreição das “zonas cinzentas”, isto é, o ressurgimento, em escala planetária, mas também no âmago de nossas sociedades, de países, regiões ou espaços perfeitamente delimitados, que assistem ao desaparecimento das estruturas tradicionais de 20
ordem. Depois de Hegel, todos acreditávamos que o Estado é o ponto natural de convergência das sociedades. Errado! Acontece que os Estados recuam, malgrado sua vontade, conforme a maré, deixando expostas realidades bastante estranhas (MINC, 1994, p. 53) (...) Assim os Estados têm sido levados crescentemente a dividir seu poder e autoridade com ouros atores, num cenário que Susan Strange chama de neomedievalismo, lembrando a descentralização de poder e autoridade que caracterizava o período medieval. “The concept of the ‘new medievalism’ has been around for some years now, there is a developing consensus that state is coming to share authority in economy and society with other entities. These include, in my interpretation, not only transnational companies (TNCs), including banks, accounting and laws firms, and international institutions like the International Monetary Fund (IMF), but also non-governmental organizations and transnational professional association of doctors, economists, and scientists. Within the state the authority of central government is, perforce, increasingly shared with 21
local and regional authorities (Strange, 1995, p. 56 APUD SENE, 2003, p. 108) A Idade Média não conhecera essa relação singular entre autoridade e território. As autoridades políticas e outras formas de governabilidade funcionalmente específicas (comunidades religiosas e guildas, por exemplo) existiram de formas complexas e sobrepostas fazendo reivindicações paralelas e frequentemente competitivas para a a mesma área (Girke, 1900). Há quem diga que o período da dominação do Estado-nação como uma agência de governabilidade acabou, agora, e que estamos entrando em um período em que a governabilidade e o território serão separados: diferentes agências controlarão aspectos da governabilidade, e algumas importantes atividades não serão controladas. Isto é questionável, mas a demanda dos Estados-nação de exclusividade na governabilidade é historicamente específica e, de modo algum, predestinada. (HIRST ; TRHOMPSON, 1998, p. 265) Pode não haver dúvidas de que a era em que a política poderia ser concebida, quase 22
exclusivamente, em termos de processos dentro de Estados-nação e de suas interações externas caracterizados como bola de bilhar passou. A política está se tornando mais policêntrica, sendo os Estados meramente um nível, em um sistema complexo de agências de governabilidade sobrepostas e frequentemente competentes. É provável que a complexidade dessas autoridades superpostas, tanto territoriais quanto funcionais, logo se assemelhem àquelas da Idade Média. Mas essa complexidade e multiplicidade de níveis e de tipos de governabilidade implica um mundo bem diferente daquele da retórica da “globalização”, e de um em que haja um lugar distinto, significativo e contínuo para o Estado-nação. (Hirst; Trhompson, 1998, p.283-4) De repente tudo se inverte: espaços imensos voltam ao estado de natureza; a ilegalidade se reinstala no cerne das democracias mais avançadas; as máfias não parecem mais um arcaísmo em via de extinção e sim uma forma social em plena expansão; uma parte das cidades escapa à autoridade do Estado e mergulha numa inquietante extraterritorialidade; milhões de 23
cidadãos, no coração das sociedades mais ricas e sofisticadas, cambaleiam na sombra e na exclusão... Novos bandos armados, novos saqueadores, novas terra incógnita: aí estão todos os ingredientes da Nova Idade Média. Bandos armados? Da Somália à Turcomênia, mas também de Los Angeles a Vaulx-en-Velin. Saqueadores? Dos senhores da droga, ora instalados no coração do sistema financeiro internacional, aos nomenklaturistas russos que se estabelecem por conta própria com uma parte do patrimônio público como dote. Terra incógnita? Regiões que mergulham na anarquia, com uma imbricação cada vez mais difícil de distinguir entre a sociedade oficial e a clandestina, entre os negócios limpos e os sujos, entre dinheiro legal e ilegal. (MINC, 1994, p. 55) (...) O Estado tenta inutilmente se mostrar esmiuçador e onipresente; ele está em recuo. Em todas as suas funções, sociais ou repressivas, ele perde terreno, incapaz de enquadrar uma realidade que volta às normas de funcionamento mais primárias. As normas jurídicas parecem estar em pleno avanço: elas só ajudam o funcionamento 24
da sociedade oficial. Os procedimentos sociais parecem cada vez mais completos: eles vêem, a cada dia, novas populações lhes escaparem. A repressão pretende perseguir as formas de delinqüência mais sofisticadas; ela precisa coabitar com uma ilegalidade em firme desenvolvimento. (MINC, 1994, p. 55-56) A vitória do mercado avança pari passu com a ascensão das zonas cinzentas. (...) Com que se parece um mercado sem Estado e sem normas de direito? Com a selva. Que organização nasce da selva? A Máfia. Novamente, a própria noção é um tanto ambígua. Qual será efetivamente a linha divisória entre economia oficial e a outra, quando não existem nem leis, nem regras, nem hábitos de comportamento, nem moral dos negócios? (...) (MINC, 1994, p.57-58) (...) No mundo católico, o despertar dos movimentos integristas; no universo protestante, o ímpeto de subigrejas carismáticas; entre os judeus religiosos, a ascensão dos Loubavitch e outros rabinos teocráticos; na órbita islâmica, o recuo do dos moderados em benefício dos partidários de um Islã puro e rígido, proselitista e agressivo. Sem 25
contar, fora mesmo das religiões reveladas, o irresistível progresso de seitas, grupos de crentes cada um mais iluminado do que os outros, gurus frequentemente tão cúpidos quanto missionários, um discurso bíblico que nada tem a ver com a Bíblia, rituais meio religiosos, meio pagãos que exploram exclusivamente a força do medo, comunidades cujos membros parecem todos hipnotizados. E ainda mais longe no plano irracional, a explosão da astrologia, da cartomancia e todos esses pseudo-saberes que encontraram o melhor dos patrimônios possíveis, a obsessão pelo futuro. (MINC, 1994, p. 82) Não é pouco repetir: aceitar pessoas humanas serem tratadas como se fossem supérfluas, a ponto de elas próprias acreditarem nisto, é deixar as premissas do pior se instalar. Não é ridículo afirmar que todos os totalitarismos têm, como base, tal denegação do respeito. É ele que abre a via aos fascismos; é por aí que eles se infiltram. Em todos os tempos e lugares, vimos ditaduras potenciais que nunca se revelaram ou nunca conquistaram o poder, mesmo que quase tenham conseguido. Um dos fatores que permitiu, a um 26
número ínfimo dentre elas, que se estruturassem e surgissem, sustentadas financeiramente, que tomassem o poder e lá permanecessem (nunca por muito tempo), foi um certo clima de indiferença maquinal, de aquiescência tácita e a impressão, partilhada por muitos, de não estarem implicados (…). (FORRESTER, 2001, p.182) O fast-food é uma das expressões (existem outras) do movimento de aceleração da vida. Nesse sentido, quando MacDonald´s “migra” para outros países, não devemos compreendê-lo como um “traço cultural” que se impõe à revelia de valores autóctones. Ele exprime a face interna da modernidade-mundo. Na verdade, o conteúdo da fórmula fast-food – hambúrguer, salada, pizza, taco, sanduíche – é arbitrário. MacDonald´s e Brioche Dorée possuem o mesmo sentido social. Pouco importa se esta última se volte para a venda de croissants e de tortas. A tradição que se evoca tem apenas um valor simbólico. O mundo artesanal dos padeiros e dos doceiros é atropelado pela cozinha industrial. A padronização é uma condição da alimentação rápida. Como os hambúrgueres de Macdonald´s, ou de Quick 27
(companhia francesa), as guloseimas “tradicionais” são preparações industrializadas. Por isso podem ser encontradas fora de seus horizontes de origem. Quick, Free Time, Brioche Dorée e La Croissanterie são empresas francesas, cujo interesse é disputar o mercado mundial. Seus serviços são transnacionais. (ORTIZ, 1994, p. 86) A informação veiculada por cada alimento se associa assim às situações nas quais ele é consumido. Ora, quem diz substância se refere, mesmo que indiretamente, à idéia de “ser”, às características próprias de um objeto. A circunstância é decorrente da funcionalidade das coisas, não de suas “identidades”. Ela é móvel, adaptando-se à diversidade das atividades humanas. No mundo funcional da modernidademundo, os alimentos perderam a fixidez dos territórios e dos costumes. Eles se adéquam às circunstâncias que os envolvem. Neste contexto, a veracidade dos mapas alimentares se esvai, pois seus “traços essenciais” (diriam talvez os antropólogos culturalistas) são informações ajustadas à polissemia dos contextos. Não há mais centralidade, a mobilidade das fronteiras dilui a 28
oposição entre o autóctone e o estrangeiro. (ORTIZ, 1994, pp. 86-87) (...) a americanização do mundo (...) A concepção genuinamente americana não passa de uma afirmação rústica do pensamento, e tem origem na idealização de seu povo e sua história. “América”, terra prometida, seria a síntese das esperanças humanas. O nascimento de uma nação abriria assim o caminho para uma idade de ouro, pois o destino manifesto da América do Norte não se confinaria a seus cidadãos, eles teriam ainda o dever de difundir entre os homens valores democráticos e liberais. O mito justifica o presente, o progresso e a supremacia de um país. [Sendo que] O contraponto a esta perspectiva escatológica se configura na tese do imperialismo. Passa-se do apanágio dos valores dos “Pais Fundadores” a sua crítica. Economia, política e cultura são vistos agora como exercício do poder. Poder imperial, ao arbitrar a paz mundial, em função do interesse exclusivo do Estado e da sociedade americana; poder econômico, materializando-se nos trustes e nas multinacionais. (ORTIZ, 1994, pp. 87-89) 29
(...) Apesar de serem diametralmente opostas, a ideologia americanista e a crítica do imperialismo compartilham as mesmas premissas metodológicas expressas nos conceitos de difusão e aculturação (...). (ORTIZ, , 1994, p. 90) (…) Neste século, os maiores inimigos da democracia atacaram a democracia “formal” em nome da democracia “substantiva”. Foi essa a justificativa utilizada por Lenine e pelo partido bolchevista para dissolver a Assembléia Constituinte russa e proclamar a ditadura do partido que tinha como objetivo alcançar a democracia substantiva “em nome do povo”. Por outro lado, a democracia formal oferece verdadeiras garantias institucionais contra a ditadura, tendo muito mais possibilidades de acabar por produzir uma democracia “substantiva”. (FUKUYAMA, 1992, p.63) Uma consequência necessária disso – contraditória apenas na aparência – é que essa igualdade formal perante a lei conflita e é de fato incompatível com qualquer atividade do governo que vise a uma igualdade material ou substantiva intencional entre os diferentes indivíduos, e que qualquer 30
política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva leva à destruição do Estado de Direito. Para proporcionar resultados iguais para pessoas diferentes, é necessário tratá-las de maneira diferente. Dar a diferentes pessoas as mesmas oportunidades objetivas não equivale a proporcionar-lhes a mesma oportunidade subjetiva. É inegável que o Estado de Direito produz desigualdade econômica – tudo que se pode afirmar em seu favor é que essa desigualdade não é criada intencionalmente com o objetivo de atingir este ou aquele indivíduo de modo particular. É muito significativo e característico o fato de socialistas (e nazistas) terem sempre protestado contra a justiça “meramente” formal, opondo-se a um Direito que não tencionasse determinar níveis de renda dos diferentes indivíduos, e terem sempre exigido a “socialização do Direito”, atacado a independência dos juízes e ao mesmo tempo prestado apoio a todos os movimentos, tal como a Freirechtsschule, que solapam o Estado de Direito. (HAYEK, 1994, p. 91) O totalitarismo é um conceito que foi desenvolvido no Ocidente, após a segunda guerra mundial, para 31
descrever a União soviética e a Alemanha nazi, tiranias de um tipo muito diferente dos autoritarismos tradicionais do século XIX. Com a audácia das suas agendas sociais e políticas, Hitler e Estaline redefiniram o significado de um estado forte. Os despotismos tradicionais, como a Espanha de Franco ou as várias ditaduras da América Latina, nunca tentaram esmagar, mas tãosó controlar as “sociedades civis”- isto é, a esfera de interesses privados da sociedade. O partido falangista de Franco ou o movimento peronista da Argentina fracassaram no desenvolvimento de ideologias sistemática e quedaram-se apenas por esforços inconsequentes visando a alteração de comportamentos e valores populares.” (FUKUYAMA, 1992, p.45) Foi a submissão às forças impessoais do mercado que possibilitou o progresso de uma civilização que, sem isso, não teria se desenvolvido. É, portanto, submetendo-nos que ajudamos dia a dia a construir algo cuja magnitude supera nossa compreensão. Não importa que no passado se tenham submetido em virtude de crenças que alguns hoje consideram supersticiosas: o espírito 32
de humildade religiosa ou um exagerado respeito pelos toscos ensinamentos dos primeiros economistas. O ponto crucial dessa questão é que é muito mais difícil compreender racionalmente a necessidade de submeter-se a forças cuja atuação não podemos compreender em detalhes, do que fazê-lo animados pela humilde veneração inspirada pela religião, ou mesmo pelo respeito às doutrinas econômicas. Se quiséssemos apenas preservar nossa atual e complexa civilização sem que ninguém fosse obrigado a fazer coisas que não compreende, seria necessário que todos possuíssem uma inteligência infinitamente maior que a que hoje possuem. (HAYEK, 1994, p.186/187 – grifos meus) Pelo fato de vivermos numa sociedade em grande parte livre, temos a tendência de esquecer como é limitado o período de tempo e a parte do globo em que tenha existido algo parecido com liberdade política: o estado típico da humanidade é a tirania, a servidão e a miséria. O século XIX e o início do XX no mundo ocidental aparecem como exceções notáveis da linha geral de desenvolvimento histórico. A liberdade política neste caso sempre 33
acompanhou o mercado livre e o desenvolvimento de instituições capitalistas. O mesmo aconteceu com a liberdade política na idade de ouro da Grécia e nos primeiros tempos da era romana. (FRIEDMAN, 1977, p.19) Para construir um mundo melhor, devemos ter a coragem de começar de novo – mesmo que isso signifique, como dizem os franceses, reculer pour mieux sauter. Não são os que crêem em tendências inevitáveis que mostram essa coragem; nem aqueles que pregam uma “Nova Ordem” (que não é mais do que a projeção das tendências dos últimos quarenta anos), sem nada melhor a oferecer que imitar Hitler. Aqueles que clamam mais alto pela Nova Ordem, são, na realidade, os que se acham mais completamente dominados pelas ideias que provocaram esta guerra e quase todos os males de que sofremos. Os jovens têm razão em depositar pouca confiança nos princípios pelos quais se norteia grande parte da geração mais velha Mas enganam-se ou são enganados quando acreditam que tais princípios ainda são princípios liberais do século XIX. Estes, a geração jovem mal os conhece. Conquanto não possamos 34
desejar nem efetuar a volta à realidade do século XIX, temos a oportunidade de realizar seus ideais – e esses ideais não eram desprezíveis. Não temos direito de nos considerarmos superiores a nossos avós neste ponto; e nunca deveríamos esquecer que fomos nós, os homens do século XX, e não eles, que provocamos esta desordem. Se eles ainda não haviam aprendido de todo o que era necessário para construir o mundo que desejavam, a experiência por nós adquirida desde então deveria ter-nos preparado melhor para a tarefa. Se fracassamos na primeira tentativa de criar o mundo de homens livres, devemos tentar novamente. O princípio orientador – o de que uma política de liberdade para o indivíduo é a única política que de fato conduz ao progresso – permanece tão verdadeiro hoje como o foi no século XIX. (HAYEK, 1994, p. 214) Além da crise do autoritarismo político, tem vindo a acorrer no plano econômico uma revolução mais discreta, mas não menos significativa. O fenômeno do crescimento econômico na Ásia oriental desde o fim da segunda guerra mundial constituiu, simultaneamente, manifestação e causa desta 35
revolução. Esta história de sucesso não se limitou aos modernizadores iniciais, como o Japão, mas abrangerá eventualmente todos os países asiáticos dispostos a adoptarem os princípios de mercado e a integrarem-se, sem reservas, no sistema global da economia capitalista. O seu desenvolvimento indica que países pobres, sem outros recursos além das suas próprias populações laboriosas, podem aproveitar a abertura do sistema económico internacional e criar quantidades inimagináveis de nova riqueza, eliminando rapidamente o fosso que os separa dos poderes capitalistas mais bem estabelecidos na Europa e na América do Norte. (FUKUYAMA, 1992, p.60-61 – grifos meus) Entre os globalistas de orientação neoliberal, a globalização econômica contemporânea é vista como encarnando a criação de um único mercado global, que, mediante a operação do livre comércio, a mobilidade do capital e a competição global, é o arauto da modernização e do desenvolvimento (Ohmae, 1990, 1995; Perlmutter, 1991). Apontando para o milagre econômico do leste asiático e para a experiência latino-americana 36
de início a meados da década de 1990 (e, aliás, para a pronta recuperação de muitas dessas economias depois do tumulto econômico de 199798), os neoliberais enfatizam que a solução para as desigualdades globais deverá ser encontrada na adoção de uma política de abertura ao capital global e à competição global e na busca de uma integração mais estreita na economia mundial. Embora haja um reconhecimento de que a globalização econômica tanto gera perdedores quanto ganhadores, os neoliberais frisam a difusão crescente da riqueza e da prosperidade em toda a economia mundial – o efeito em cascata. A pobreza global, segundo os padrões históricos, caiu muito mais nos últimos cinquenta anos do que nos quinhentos anteriores, e o bem-estar das populações de quase todas as regiões melhorou significativamente nas últimas décadas (UNDP, 1997) Em vez da antiga fratura entre o norte e o sul, afirma-se que uma nova divisão internacional do trabalho vem substituindo o tradicional modelo centro-periferia das relações econômicas globais. Como resultado, o “Terceiro Mundo” vai ficando cada vez mais diferenciado, à medida que os Estados, tirando proveito dos mercados globais 37
abertos, industrializando-se; a Coréia do Sul, por exemplo, é hoje membro da OCDE, o clube das nações “ricas”, enquanto outros países em processo de industrialização aspiram participar dela (...). (HELD; MACGREW, 2001, pp. 70/71) No início do século 20, alguns críticos diziam que o facismo era o “capitalismo sem luvas”, querendo dizer que esse sistema era o capitalismo puro, sem organização em direitos democráticos. Mas sabemos que o fascismo é algo infinitamente mais complexo. O neoliberalismo, sim, é o “capitalismo sem luvas”. Ele representa uma época em que as forças empresariais são maiores, mais agressivas e se defrontam com uma oposição menos organizado do que nunca. Nesse ambiente político elas tratam de normatizar o seu poder político em todas as frentes possíveis, razão pela qual fica cada vez mais difícil contestá-las, tornando complicado – no limite da impossibilidade – a simples existência de forças extra-mercado, não comerciais e democráticas. (MACCHESNEY, Robert W., in O lucro ou as Pessoas, Neoliberalismo e Ordem Global , CHOMSKY, Noam, Bertrand Brasil, pp.9 – Introdução). 38
Desde o amanhecer da teoria política, na Grécia clássica, existe a certeza de que a democracia não convive com situações extremas: tanto a generalização da pobreza como sua necessária contrapartida, o fortalecimento da plutocracia, são incompatíveis com seu efetivo funcionamento. Quando os pobres se transformam em indigentes e os ricos em magnatas, sucumbem a liberdade e a democracia, e a própria condição de cidadão – verdadeiro fundamento sobre o qual se apóia a democracia – se deteriora irreparavelmente. A liberdade não pode sobreviver onde o cidadão indigente está disposto a vendê-la por um “prato de lentilhas”, e um outro disponha da riqueza suficiente para comprá-la a seu bel prazer. Nessas condições a democracia se converte em um ritmo farsesco e se esvazia de todo conteúdo. Nessas condições a passagem do tempo pode convertê-la no “ovo da serpente”, onde se incube a restauração plebiscitária da ditadura. (BORÓN, Atilio in Pós-Neoliberalismo – As Políticas Sociais e o Estado Democrático, 1988, pp.71) A democracia é admissível desde que o controle dos negócios esteja fora do alcance das decisões 39
populares e das mudanças, isto é, desde que não seja democracia. (O lucro ou as Pessoas, Neoliberalismo e Ordem Global , Chimsky, Noam, Bertrand Brasil, pp.9 – Introdução) Uma democracia “minimalista” não tem condições de fazer frente aos grandes desafios e aos graves problemas sociais gerados pelo funcionamento do capitalismo latino-americano. A democracia se converteria em uma pura forma, e a vida social regressaria a uma situação “quase hobbesiana”, em que a desigual privatização da violência e o desesperado “salve-se quem puder”, ao qual se veriam empurrados os indefesos cidadãos agredidos pelo capitalismo selvagem, dariam lugar a todo tipo de comportamentos aberrantes. Esse panorama já é visível, com desigual intensidade, em várias novas democracias de nosso continente. O aumento da violência e da criminalidade, a decomposição social e anomia, a crise e a fragmentação dos partidos políticos, a prepotência burocrática do Executivo, a capitulação do Congresso, a passividade da Justiça, a corrupção do aparato estatal e da sociedade civil, a ineficácia do Estado, o isolamento da classe política, a 40
impunidade para os grandes criminosos e a “mão dura” para os pequenos delinquentes e, last but not least, o ressentimento e a frustração das massas constituem a síndrome dessa perigosa decadência institucional de uma democracia reduzida a uma fria gramática do poder, expurgada de seus conteúdos éticos. (BORÓN, Atilio in PósNeoliberalismo – As Políticas Sociais e o Estado Democrático , Paz e Terra, 1988, pp. 110) (...) para que a democracia seja efetiva é necessário que as pessoas se sintam ligadas aos seus concidadãos e que essa ligação se manifeste por meio de um conjunto organizado de instituições extramercado. Uma cultura política vibrante precisa de grupos comunitários, bibliotecas, escolas públicas, associações de moradores, cooperativas, locais para reuniões públicas, associações voluntárias e sindicatos que propiciem formas de comunicação, encontro e interação entre os concidadãos. A democracia neoliberal, com sua ideia de mercado uber alles, nunca tem em mira esse setor. Em vez de cidadãos, ela produz consumidores. Em vez de comunidades, produz shopping centers. O que 41
sobra é uma sociedade atomizada, de pessoas sem compromisso, desmoralizadas e socialmente impotentes. Em suma, o neoliberalismo é o inimigo primeiro e imediato da verdadeira democracia participativa, não apenas no Estados Unidos, mas em todo o planeta, e assim continuará em um futuro previsível.” (MACCHESNEY, Robert W., in O lucro ou as Pessoas, Neoliberalismo e Ordem Global , Chomsky, Noam, Bertrand Brasil, pp.11/12 – Introdução) Mas a globalização das sociedades modifica também o conceito de modernidade. Ser moderno é pertencer a uma cultura atual. Não no sentido de uma “cultura afirmativa”, como queria Marcuse, ela é o seu contrário. Para Marcuse, a sociedade burguesa do século XVIII não se identificava somente com a dominação de classe; ela trazia no seu bojo uma contradição que se expressava através de valores universais, o belo, a felicidade, a liberdade. O imaginário burguês carregava uma esperança em relação à própria ordem capitalista que o havia engendrado. A “cultura afirmativa”, enquanto negatividade, desvendava a 42
possibilidade de um futuro em que valores como “liberdade, igualdade e fraternidade” poderiam se realizar. Dizer que a modernidade se transformou numa afirmação significa entender que um determinado tipo de cultura (a que se pretende moderna) deixa de ser um elemento de negatividade, de mudança. Ela não mais se caracterizaria como uma “tradição de ruptura”, como pensava Octávio Paz, mas sim como um invólucro através do qual se afirma uma ordem social. (ORTIZ, 1994, p.214) Os pós-modernistas/pós-estruturalistas (...) Descartam Kant e Hegel, juntamente com Marx, todos os quais dependem de metanarrativas de um tipo ou de outro, pouca consideração sendo dada às diferenças fundamentais entre esses sistemas de pensamento. Todos os Estados são simplesmente Estados e, portanto, opressivos, poderia argumentar um anarquista (Abaixo os bolchevistas!); todas as guerras devem ser condenadas, afirma o pacifista (Não tomamos partido no caso do Vietnã!); todas as metanarrativas são suspeitas e comprometidas, não havendo categorias superiores de autoridade 43
explanatória, proclama o pós-estruturalista (Fora todas essas pragas interpretativas). (PALMER, Bryan D. in “Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo”, 1999, p. 75-76) (...) E não apenas para os pós-modernistas, mas também para numerosos teóricos sociais do pósguerra, a estrada que começou com o universalismo Iluminista terminou nos campos de concentração nazistas.” (MALIK, Kenan in “Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo”, 1999, p. 123) Argumentar que o humanismo e o racionalismo (ou a “modernidade”) são as causas do holocausto implica pôr a lógica de cabeça para baixo. O discurso sobre raça foi produto não do universalismo e humanismo Iluminista, mas de sua degradação. O racismo científico não constituiu aplicação da ciência e da razão à questão das diferenças entre homens, mas do uso do discurso da ciência para dar legitimidade a argumentos irracionais e anticientíficos. A “Solução Final” estava implícita nas políticas raciais seguidas pelo nazismo. Recorrer ao extermínio de massa foi necessário pra que se acreditasse que os alvos 44
dessa política eram menos do que humanos. Mas dizer que foi um plano racionalmente concebido equivale a elevar os preconceitos do Terceiro Reich ao status de conhecimento científico – em ouras palavras, aceitar como verdadeiras as próprias alegações do discurso racial. (MALIK, Kenan in “Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo”, 1999, p.138) Esta afirmação é, em praticamente todos os sentidos, antitética às teorias pós-modernistas correntes, que negam a existência de estruturas e conexões estruturais, bem como a própria possibilidade de “análise causal”. Estruturas e causas foram substituídas por fragmentos e contingências. Não há um sistema social (como, por exemplo, o sistema capitalista), com unidade sistêmica e “leis dinâmicas” próprias: há apenas muitos e diferentes tipos de poder, opressão, identidade e “discurso”. Temos que rejeitar não só as antigas “histórias grandiosas”, tal como os conceitos de progresso do Iluminismo, mas também a noção de progresso histórico e causalidade inteligíveis – e com elas, evidentemente, qualquer idéia de “escrever a 45
história”. Não há processos estruturados acessíveis ao conhecimento humano (ou, temos que supor, à ação humana). Pela primeira vez, temos o que parece ser uma contradição em termos, uma teoria de mudança de época baseada em uma negação da história. (WOOD, Ellen Meiksins in “Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo”, 1999, p. 15-16) O que a modernidade permitiu, segundo Weber, foi um ganho de autonomia nas três principais esferas axiológicas: a ciência, mas também a moral e a arte. Ver a ciência como “paladina” da modernização seria tão unilateral quanto privilegiar a arte (o fascismo foi a estetização da política) ou a moral (a new right é a moralização da sociedade). Elevar a ciência a paradigma seria uma deformação semelhante: ela implicaria, no limite, conceber a sociedade segundo um modelo orwelliano de um mundo totalmente regido pela racionalidade instrumental. Não podemos abolir a ciência sem barbárie. Mas a monocracia da ciência é igualmente bárbara. Ela é parte de uma razão mais vasta. Não podemos aceitar o putshc da parte contra o todo. O desafio de nosso tempo é 46
recompor os disjecta membra que Kant recolheu em suas três críticas (a ciência, a moral e a arte, respectivamente), tentando restaurar a unidade da razão desmembrada, sem que com isso as fronteiras entre essas três esferas se apaguem numa indiferenciação pré-moderna. Em suma, sem razão não há emancipação, e sem emancipação não há razão. (...) Mas razão não é sinônimo de razão técnico-científica. Um logos mutilado não oferece nenhuma garantia de emancipação. Não há pior irracionalismo que o conduzido em nome de uma razão científica que usurpa as prerrogativas da razão integral.(...) (ROUANET, 1992, p. 209-210) Mas se, como insistem os pós-modernistas, não podemos aspirar a nenhuma representação unificada do mundo, nem retratá-lo como uma totalidade cheia de conexões e diferenciações, em vez de fragmentos em perpétua mudança, como poderíamos aspirar a agir coerentemente diante do mundo? A resposta pós-moderna simples é de que, como a representação e a ação coerentes são repressivas ou ilusórias (e, portanto, fadadas a ser autodissolventes e autoderrotantes), sequer 47
deveríamos tentar nos engajar em algum projeto global. Harvey, David, Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. Edições Loyola, São Paulo, 12ª edição, março 2003, pp. 55) Não se pode esquecer, ainda, que o pósmodernismo nega a continuidade histórica e a noção de progresso, ainda que venha a apropriarse desse passado, para reconstruir o presente (HARVEY, 2003, 58). O multiculturalismo também preenche um enorme vazio intelectual. Privados de um idioma radical, destituídos de uma esperança utópica, os liberais e esquerdistas recuam em nome do progresso para celebrar a diversidade. Com poucas idéias sobre a maneira como deveria ser moldado o futuro, abraçam todas as idéias. O pluralismo transformase na tábua de salvação, no alfa e no ômega do pensamento político. Vestido de multiculturalismo, tornou-se o ópio dos intelectuais desiludidos, a ideologia de uma era sem ideologia. (JACOBY, 2001, p. 53-54)
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Começo com o que parece ser o fato mais espantoso do pós-modernismo: sua total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formava a metade do conceito baudelairiano de modernidade. Mas o pósmodernismo responde a isso de uma maneira bem particular; ele não tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos “eternos e imutáveis” que poderiam estar contidos nele. O pós-modernismo nada, e até se espoja, nas fragmentárias e caóticas correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse. Foucault (1983, xiii) nos instrui, por exemplo, a “desenvolver a ação, o pensamento e os desejos através da proliferação, das justaposição e da disjunção” e a “preferir o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas. A acreditar que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade”. Portanto, na medida em que não tenta legitimar-se pela referência ao passado, o pós-modernismo tipicamente remonta à ala de pensamento, Nietzsche em particular, que enfatiza o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ele com o pensamento racional. Isso, contudo, 49
não implica que o pós-modernismo não passe de uma versão do modernismo; verdadeiras revoluções de sensibilidade podem ocorrer quando ideias latentes e dominadas de um período se tornam explícitas e dominantes em outro. Não obstante, a continuidade da condição de fragmentação, efemeridade, descontinuidade e mudança caótica no pensamento pós-moderno é importante (…). (HARVEY, 2003, p. 49) Rigorosamente falando, não existindo nada além da perspectiva, do ponto de vista singular; não havendo a possibilidade do universal, todas as falas, todos os discursos, colocam-se uns ao lodo do outro, sem poder aspirar qualquer possibilidade de hegemonia ou determinação. O mundo não pode mais ser representado como totalidade em movimento, organicamente relacionando suas partes; ao contrário, converteu-se em uma espécie de Babel, de muitas línguas, muitas tribos, muitos discursos, todos igualmente legítimos. O pósmodernismo, neste sentido preciso, é rigorosamente a antinomia do iluminismo.4 A efemeridade, a transitoriedade que caracterizam a produção pós-moderna permite a Jameson inferir a 50
possibilidade de que o movimento seja a própria lógica cultural do capitalismo avançado, gerando uma referência recíproca entre arte e produção de necessidades, presentes na obstinação capitalista de criar mercados (HARVEY, 2003, p.65). Uma ética do consumo não deriva apenas de necessidades econômicas. É preciso que ela se ajuste às relações determinadas pela sociedade envolvente e, simultaneamente, seja compartilhada pelos seus membros. Com o advento da sociedade urbano-industrial, a noção de pessoa já não mais se encontra centrada na tradição. Os laços de solidariedade se rompem. O anonimato das grandes cidades e do capitalismo corporativo pulveriza as relações sociais existentes, deixando os indivíduos “soltos” na malha social. A sociedade deve portanto inventar novas instâncias para integração das pessoas. No mundo em que o mercado torna-se uma das principais forças reguladoras, a tradição torna-se insuficiente para orientar a conduta. Uma dessas instâncias é a publicidade, pois cumpre o papel de elaborar o desejo, conferindo-lhe uma certa estabilidade social (...) (ORTIZ, 2000, p. 120) 51
O pós-modernismo é imprecisamente identificado com uma época histórica: a sociedade pósindustrial, pós-fordista ou mesmo pós-capitalista. Relações de produção “contemporâneas” (se ainda as podemos chamar assim) são variadamente descritas como fragmentadas (e isto se aplica tanto ao tecido social quanto ao modo de produção), difusas ou desorganizadas (no sentido de que relações sistêmicas de poder estão presentes em toda e em nenhuma parte; são gerais, mas sem uma fonte identificável) e, em última análise, independentes de determinantes históricos e econômicos. O consumo passou à frente da produção, tornando a luta de classes (ou mesmo a ideia de que a sociedade está antagonisticamente dividida entre trabalhadores e capitalistas) um conceito obsoleto. As pessoas não se identificam mais com ou como uma classe, mas sim através de identidades particulares (como por exemplo, mulher, lésbica, gay, negro, latino), identidades estas que não são apenas, ou de modo algum, economicamente definidas. A opressão, em suma, não possui um fundamento material sistêmico. (SATBILE, Carol A. in “Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo”, 1999, p.146) 52
(...) Segundo essa ideologia, todos podem louvar as sólidas fronteiras entre o self e o outro, denunciar o que entendem como o “universalismo” do Iluminismo, racionalismo, e assim por diante, enquanto participam também, sem restrições, da globalização dos padrões de consumo e da união de identidades como representando um número igual de provas nesse sentido. Ao mesmo tempo e não raro, vindo das mesmas pessoas, presenciamos também a propagação da idéia de hibridez infinita, das migrações, da escolha de identidades alternativas ou múltiplas, como se novos selves pudessem ser moldados instantaneamente de qualquer argila que possamos pôr as mãos, e como se culturas não possuíssem densidade e identidade históricas reais e pudessem ser simplesmente inventadas, sui generis, a paritr da circulação e maleabilidade globais de elementos recolhidos em todo o mundo. (AHAMD, Aijaz in “Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo”, 1999, p. 113) Evidentemente a burguesia não tinha agora outro jeito senão eleger Bonaparte. Quando os puritanos, no Concilio de Constança, queixavam-se 53
da vida dissoluta a que se entregavam os papas e se afligiam sobre a necessidade de uma reforma moral, o cardeal Pierre d'Ailly bradou-lhes com veemência 'Quando só o próprio demônio pode ainda salvar a Igreja Católica, vos apelais para os anjos'. De maneira semelhante, depois do golpe de Estado, a burguesia francesa gritava: Só o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro pode salvar a sociedade burguesa! Só o roubo pode salvar a propriedade; o perjúrio, a religião; a bastardia, a família; a desordem, a ordem! (O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Karl Marx. Publicado como Arquivo Eletrônico. Grifos Meus) Há alguns anos, por causa das transgressões morais, um padre era conduzido numa carreta pelas ruas de Nápoles. Lançando imprecações, pessoas o seguiam. Em certa esquina, faz o sinalda-cruz, e todos os que estão atrás da carreta caem de joelhos. É dessa maneira incondicional que o catolicismo se empenha por se restabelecer nesta cidade, qualquer que seja a circunstância. Se um dia desaparecesse da face da terra, seu último reduto não seria Roma, mas Nápoles. 54
Não pode esse povo viver de acordo com sua imensa barbárie, crescida do coração da própria cidade grande, em lugar algum com mais segurança do que no seio da Igreja. Precisa do catolicismo, pois com ele se erige uma legenda, a data de calendário de um mártir, que ainda legaliza seus excessos. Aqui nasceu Santo Afonso di Liguori que tornou flexível a praxe da Igreja, perito em seguir o ofício dos malandros e prostitutas, a fim de controlá-lo no confessionário, cujo compêndio redigiu em três tomos, com penalidades eclesiásticas mais severas ou mais brandas. Apenas a Igreja, e não a polícia, pode se equiparar à autonomia da criminalidade, a Camorra. (BENJAMIN, 1995, p. 146) Karl Marx - Excertos (Publicado como Arquivo Eletrônico) Nessas excursões, que o grande Moniteur oficial e os pequenos Moniteurs privados de Bonaparte tinham naturalmente que celebrar como triunfais, o presidente era constantemente acompanhado por elementos filiados à Sociedade de 10 de Dezembro. Essa sociedade originou-se em 1849. A pretexto de fundar uma sociedade beneficente o 55
lúmpen-proletariado de Paris fora organizado em facções secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia geral de um general bonapartista. Lado a lado com roués decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos, lazzarani, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus(19), donos de bordéis, carregadores, líterati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos - em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam la bohêmne; com esses elementos afins Bonaparte formou o núcleo da Sociedade de 10 de Dezembro. "Sociedade beneficente" no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar às expensas da nação laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lúmpen-proletariado, que só aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nessa escória, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as 56
classes a única classe em que pode apoiar-se incondicionalmente, é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sans phrase. Velho e astuto roué, concebe a vida histórica das nações e os grandes feitos do Estado como comédia em seu sentido mais vulgar, como uma mascarada onde as fantasias, frases e gestos servem apenas para disfarçar a mais tacanha vilania. Assim foi na sua expedição a Estrasburgo, em que um corvo suíço amestrado desempenhou o papel da águia napoleônica. Para a sua irrupção em Boulogne veste alguns lacaios londrinos em uniformes franceses; eles representam o exército. Na sua Sociedade de 10 de Dezembro reúne dez mil indivíduos desclassificados, que deverão desempenhar o papel do povo como Nick Bottom representara o papel do leão. Em um momento em que a própria burguesia representava a mais completa comédia, mas com a maior seriedade do mundo, sem infringir qualquer das condições pedantes da etiqueta dramática francesa, e estava ela própria meio iludida e meio convencida da solenidade de sua própria maneira de governar, o aventureiro que considerava a comédia como simples comédia tinha forçosamente que vencer. 57
Só depois de eliminar seu solene adversário, só quando ele próprio assume a sério o seu papel imperial, e sob a máscara napoleônica imagina ser o verdadeiro Napoleão, só aí ele se torna vítima de sua própria concepção do mundo, o bufão sério que não mais toma a história universal por uma comédia e sim a sua própria comédia pela história universal. O que os ateliers nacionais eram para os operários socialistas, o que os Gardes mobiles eram para os republicanos burgueses, a Sociedade de 10 de Dezembro, a força de luta do partido característico de Bonaparte, era para ele. Em suas viagens, os destacamentos dessa sociedade, superlotando as estradas de ferro, tinham que improvisar público, encenar entusiasmo popular, urrar vive l'Empereur, insultar e espancar republicanos; tudo, é claro, sob a proteção da polícia. Nas viagens de regresso a Paris tinham que formar a guarda avançada, impedir ou dispersar manifestações contrárias. A Sociedade de 10 de Dezembro pertencia-lhe, era obra sua, idéia inteiramente sua. Tudo mais de que se a própria é posto em suas mãos pela força das circunstâncias; tudo o mais que faz é obra das circunstâncias ou simples cópia dos feitos de outros. Mas o 58
Bonaparte que se apresenta em público, perante os cidadãos, com frases oficiais sobre a ordem, a religião, a família e a propriedade, trazendo atrás de si a sociedade secreta dos Schufterles e Spiegelberges, a sociedade da desordem, da prostituição e do roubo - esse é o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte autor original, e a história da Sociedade de 10 de Dezembro é a sua própria história. Haviam ocorrido casos, porém, de um outro representante do povo pertencente ao partido da ordem cair sob os porretes dos decembristas. Mais ainda. Yon, o Comissário de Polícia destacado para a Assembléia Nacional e encarregado de velar por sua segurança, baseando-se no testemunho de um certo Alais denunciou à Comissão Permanente que uma facção decembrista resolvera assassinar o general Changarnier e Dupin, presidente da Assembléia Nacional, tendo já designado os indivíduos que deveriam perpetrar o feito. Compreende-se o pavor do Sr. Dupin. Parecia inevitável um inquérito parlamentar sobre a Sociedade de 10 de Dezembro, ou seja, a profanação do mundo secreto de Bonaparte. Pouco antes de se reunir a Assembléia Nacional, porém, este último 59
previdentemente dissolveu a sua sociedade, mas claro que só no papel pois em um longo memorial apresentado em fins de 1851 o Chefe de Polícia, Carlier, tentava ainda em vão convencê-lo de dissolver realmente os decembristas. A Sociedade de 10 de Dezembro deveria continuar como o exército particular de Bonaparte até que ele conseguisse transformar o exército regular em uma Sociedade de 10 de Dezembro. (...) A linguagem respeitável, hipocritamente moderada, virtuosamente corriqueira da burguesia, revela seu significado mais profundo na boca do autocrata da Sociedade de 10 de Dezembro e no herói de piquenique de St. Maur e Satory. As barras de ouro deram melhor resultado. Bonaparte & Cia. não se contentaram em embolsar uma parte do excedente dos 7 milhões sobre as barras que seriam distribuídas como prêmios; fabricaram bilhetes falsos; emitiram dez, 15 e mesmo 20 bilhetes com o mesmo número 60
operação financeira bem de acordo com o espírito da Sociedade de 10 de Dezembro! Cromwell, quando dissolveu o Parlamento Amplo, entrou sozinho na sala de sessões, puxou o relógio a fim de que tudo acabasse no minuto exato que havia fixado e expulsou os membros do Parlamento um por um com insultos hilariantes e humorísticos. Napoleão, de estatura menor que seu modelo, apresentou-se pelo menos perante o Poder Legislativo no 18 Brumário e embora com voz embargada, leu para a Assembleia sua sentença de morte. O segundo Bonaparte, que, ademais, dispunha de um Poder Executivo muito diferente do de Cromwell ou do de Napoleão, buscou seu modelo não nos anais da história do mundo, mas nos anais da Sociedade de 10 de Dezembro, nos anais dos tribunais criminais. Rouba 25 milhões de francos ao Banco de França, compra o general Magna com 1 milhão, os soldados por 15 francos cada um e um pouco de aguardente, reúne-se secretamente com seus cúmplices, como um ladrão, na calada da noite, ordena que sejam assaltadas as residências dos dirigentes parlamentares mais perigosos e que Cavaignac, 61
Lamoricière, Leflô, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. sejam arrancados de seus leitos, que as principais praças de Paris e o edifício do Parlamento sejam ocupados pelas tropas e que cartazes escandalosos sejam colocados ao romper do dia nos muros de Paris proclamando a dissolução da Assembléia Nacional e do Conselho de Estado, a restauração do sufrágio universal e colocando o Departamento do Sena sob estado sítio. Da mesma maneira manda inserir pouco depois no Moniteur um documento falso afirmando que parlamentares influentes se haviam agrupado em torno dele em um Conselho de Estado. As concessões de terras em sesmaria foram suspensas às vésperas da Independência até a convocação da Assembléia Geral Constituinte, em decorrência da multiplicação de abusos e escândalos, que configuravam situação de verdadeira calamidade. Entre a expedição dessa resolução e a aprovação da lei no. 601, em 1850, ficou-se sem uma legislação referente às terras públicas. Durante este longo interregno, marcado por uma grande ampliação da área territorial 62
economicamente explorada, a posse, ou ocupação, constituiu, na prática, o principal modo de aquisição do domínio privado sobre aquelas terras. Esse fato parece ser um dos elementos situados na raiz da morosidade com que se buscou uma legislação alternativa, baixada apenas quando, à questão fundiária, sobreveio a questão do trabalho. A falta de um ordenamento jurídico parece ter, todavia, acarretado grave proliferação de prélios fundiários. Alcides Furtado lembra a declaração do presidente do conselho do gabinete de 8 de março de 1848 ao Senado, de acordo com a qual, em São Paulo, dois terços dos delitos tinham como causa as turbações em torno da propriedade da terra. (NOZOE, Nelson. Sesmarias e apossamento de terras No Brasil Colônia.. Universidade de São Paulo. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Departamento de Economia)
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Personagens do livro de Sennett.
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Personagem do libro de Sennett.
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Associado ao regime de seguro social nos Estados Unidos. Obriga-se o desempregado a aceitar qualquer ocupação que esteja disponível no momento, após certo período de tempo recebendo auxílio governamental. Caso não o faça, tem o mesmo cancelado seu seguro-desemprego. 4
Embora o termo “moderno” tenha uma história bem mais antiga, o que Habermas (1983, 9) chama de projeto da modernidade entrou em foco durante o século XVIII. Esse projeto equivalia a um extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas “para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica interna destas.” A idéia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária. O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais. O desenvolvimento de formas mais racionais de organização social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto poderiam as qualidades universais, eterna e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas. (Harvey, 2003, pp. 23)
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