A questão das cidades

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Curso Cultura e PolĂ­tica

Aula 4 Documento de referĂŞncia


Sumário Introdução .................................................................................................3 Antecedentes da Lei das Terras de 1850 ............................................................. 4 A Lei de Terras de 1850 ........................................................................................ 9 O decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854 ........................................................16 A gênese da cidade no Brasil moderno ................................................... 16 A dinâmica econômica: abolição da escravidão ...............................................16 Escravidão e imigração: as cidades e a gênese da desigualdade moderna.....20 Cortiço: prenúncio da habitação subnormal como solução ...........................27 A produção da cidade no Brasil contemporâneo .................................... 35 O processo de industrialização e a produção da cidade ..................................37 O crescimento radial ............................................................................................38 A verticalização .....................................................................................................40 O policentrismo ....................................................................................................41 O padrão de urbanização ....................................................................................41 A lógica especulativa ............................................................................... 42 O processo de urbanização como produtor da habitação subnormal ..........45


O que emerge dessas questões? ..........................................................................48 Estatuto das Cidades ............................................................................... 54 Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios .....................................57 Imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo ...........................60 Desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública ......................61 Direito de superfície.............................................................................................61 Direito de preempção ..........................................................................................63 Outorga onerosa do direito de construir ..........................................................64 Transferência do direito de construir ................................................................65 Operações urbanas consorciadas .......................................................................66 Estudo de impacto de vizinhança ......................................................................67 Usucapião especial de imóvel urbano ................................................................68


Introdução As cidades enquanto aglomeração populacional têm uma história antiquíssima, que perpassa um enorme conjunto de civilizações, as quais, a seu modo, foram mais ou menos urbanas. Do ponto de vista teórico e analítico, contudo, esta antiguidade da cidade deve ser pensada criticamente, porque, a rigor, o modo de produção da vida material – para não falar ainda da cultura – variou significativamente ao longo do tempo, conferindo às cidades papéis e atributos significativamente distintos. Sob o ponto de vista arqueológico, histórico, urbanístico é possível referir-se às cidades como algo perfeitamente identificável e contínuo ao longo do tempo, mas, considerando-se o conjunto da vida social, aquela mesma cidade – antiquíssima em certos casos – são muitas cidades, apresentando dinâmicas distintas e, em certos momentos, completamente divergentes. Em primeiro lugar deve-se considerar que a cidade implica, de saída, relações determinadas com o mundo rural, sendo que somente nesta relação se define sua identidade específica, sua natureza primeira. Fazer uma assertiva desta ordem significa, contudo, afirmar que existe uma relação orgânica entre o urbano e o rural, que se configura em um determinado modo de produzir os elementos que asseguram a vida material o que, portanto, estabelece as condições da dinâmica socioeconômica tanto do campo, quanto da cidade. Se mudam, portanto, as condições gerais, o panorama em que se desenrola a existência humana, altera-se significativa e substancialmente o significado das palavras cidade e campo, urbano e rural. Quando se pensa a história do Brasil e, por consequência, o modo como as cidades se desenvolveram no país, não se pode deixar de lado a importância fundamental, estruturante, que o escravismo colonial teve para o país. Não se pode por de lado esse elemento, sob pena de não se compreender aquilo que 3


consiste no desenvolvimento particular, específico das cidades brasileiras que são, em que pese sua inserção no desenvolvimento geral do mundo capitalista, algo de muito próprio e particular. Sem que se mantenha presente esta gênese essencial, tanto do ponto de vista cultural, quanto histórico, não se pode compreender a dinâmica própria às nossas cidades, as relações entre as áreas centrais e a periferia, a naturalização da violência, a privação das camadas populares relativamente aos serviços públicos básicos, as várias ideologias sobre a habitação popular, os fundamentos em que se baseia a segurança pública, mas igualmente a atenção à saúde e a educação. Como se materializou essa situação, quais são as mediações que nos trazem do escravismo colonial à cidade contemporânea? É preciso dar conta destas questões, para que se possa falar das cidades brasileiras com algum nível de propriedade. Antecedentes da Lei das Terras de 1850 O século XIX inicia-se sob a égide de mudanças significativas na economia capitalista e, em particular, em uma completa revolução dos termos em que se processa a produção, que deixa a escala da manufatura e do artesanato, para assumir dimensões propriamente fabris, ou seja, com uma escala de produção ampliada. Supera-se, então, o terreno do mercantilismo e do comércio mundial fundamentado sobre o antigo sistema colonial, para se iniciar uma fase nova, em que o diferencial de poderio econômico entre as várias nações hegemônicas passará a estar baseado na maturidade de sua indústria, segundo os critérios propriamente capitalistas, além de uma estratégia expansiva na conquista territorial, com caráter francamente imperialista, já a esta altura. As economias líderes desse processo, Inglaterra e França especialmente, buscam matérias-primas para sua indústria em expansão, além de mercado consumidor para seus produtos industrializados. O rearranjo que se processava no 4


coração do sistema capitalista em expansão não tardou a impactar todas as demais nações e possessões europeias, que passaram a ser submetidas às condições que mais se adequavam aos desenvolvimentos em curso. É exemplo privilegiado desse movimento as pressões inglesas para que se efetivasse o fim do monopólio (metropolitano) do comércio. No âmbito desse movimento, e como desdobramento coerente com seu espírito geral, emerge a questão da propriedade da terra, que impactou o Brasil mas, conjuntamente com ele, uma série de outras nações. A questão que emergida estava associada ao fato de que, do ponto de vista econômico, a terra não tinha valor nas sociedades coloniais, não sendo objeto de compra ou venda. Recorde-se que no ordenamento jurídico colonial a terra era concedida pela Coroa – as sesmarias – , ou simplesmente ocupada. Os municípios, a seu turno, tinham o Rócio - terras em que se implantavam as casas e pequenas áreas de produção, sem custo. A forma com que se dava a apropriação da terra foi sendo objeto de uma progressiva desorganização, que se produziu em função da própria dinâmica econômica. Exemplo desse mecanismo é o ciclo de mineração que, tendo induzido a certo nível de diferenciação entre produção agrícola e atividade extrativa, aumentou a demanda por alimentos e outros bens, implicando no aumento de demanda por terras. Quando reflui sua importância histórico-econômica ocorre uma espécie de “renascimento” da atividade agrícola, que aumentou novamente a demanda por terra, que se distribuiu em conformidade com os ordenamentos jurídicos existentes. O debate em torno do tema da propriedade da terra, a rigor, veio evoluindo ao longo de toda a primeira metade do século XIX. A origem da reestruturação do código de terras estava imbricada com a própria organização do Estado nacional, uma vez que se ocupava da questão da divisão do território em seus elementos provinciais, além de tentar dar conta de uma situação de grande confusão relativamente aos títulos de propriedade. 5


Note-se que em um primeiro momento houve grande dificuldade em alterar os regramentos relativos ao Sistema Sesmarial, tendo sido alteradas fundamentalmente as disposições do ordenamento que eram objeto de consenso. Primeiramente se estabeleceu o pagamento dos foros que, de todo modo restou inócuo, uma vez que a Coroa não possuia a estrutura burocrática para lhe dar conseqüência efetiva. A segunda modificação foi a extinção do morgadio, que definia que os bens passassem indivisos para o filho mais velho da família, algo que era igualmente inócuo, uma vez que no Brasil, dada a imensa disponibilidade de terras, nunca houve propriamente uma restrição à sua apropriação com base neste ordenamento. O fato é que, com a suspensão das concessões ao amparo do Sistema Sesmarial (resolução de 17 de julho de 1822), a única forma de aquisição da terra era a posse. Ainda que o posseiro praticamente coexista com o período colonial, no período compreendido de 1822 até 1850 a posse se tornou a única forma de aquisição de domínio sobre as terras, razão pela qual ficou conhecido por “fase áurea do posseiro”. As concessões de terras em sesmaria foram suspensas às vésperas da Independência até a convocação da Assembleia Geral Constituinte, em decorrência da multiplicação de abusos e escândalos, que configuravam situação de verdadeira calamidade. Entre a expedição dessa resolução e a aprovação da lei no. 601, em 1850, ficou-se sem uma legislação referente às terras públicas. Durante este longo interregno, marcado por uma grande ampliação da área territorial economicamente explorada, a posse, ou ocupação, constituiu, na prática, o principal modo de aquisição do domínio privado sobre aquelas terras. Esse fato parece ser um dos elementos situados na raiz da morosidade com que se buscou uma legislação alternativa, baixada 6


apenas quando, à questão fundiária, sobreveio a questão do trabalho. A falta de um ordenamento jurídico parece ter, todavia, acarretado grave proliferação de prélios fundiários. Alcides Furtado lembra a declaração do presidente do conselho do gabinete de 8 de março de 1848 ao Senado, de acordo com a qual, em São Paulo, dois terços dos delitos tinham como causa as turbações em torno da propriedade da terra. (Sesmarias e apossamento de terras No Brasil Colônia. Nelson Nozoe . Universidade de São Paulo. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade. Departamento de Economia)

Sucede a José Bonifácio nas tentativas de regrar a questão da terra o padre Diogo Feijó, que almejava democratizar o acesso à terra, além de tratar do direito de propriedade, tendo em mente especialmente o problema da concentração fundiária. Feijó preconizava a legitimação das posses de sesmeiros, mediante certas condições, ou seja,   

Ser superior a dez anos, Não haver contradição com a apresentação de título valioso (comprimento da medição e demarcação a área a ter sido cultivada); Obrigatoriedade de aproveitamento das terras, sob pena de se vendê-las caso não estivessem cultivadas em um intervalo de cinco anos.

O projeto de Feijó previa ainda o parcelamento das terras com fundamento na unidade familiar, contemplando como critério seus componentes, incluindo os escravos. Beneficiavam-se, portanto, todos cidadãos emancipados. É necessário observar que tanto o projeto de José Bonifácio quanto o de Feijó tinham por meta estimular a imigração, sendo preocupação de ambos conter os abusos de sesmeiros e dos grandes posseiros, que incorporavam a seus domínios extensas glebas de terras, que permaneciam não cultivadas. 7


Conduzido à regência em 1835 Feijó não pode dar consequência a suas ideias, uma vez que ocorreram várias crises e conturbações sociais, de que são exemplos a revolta dos Cabanos (Pará), dos Balaios (Maranhão) e agitações da Praieira (Pernambuco). Esses movimentos não obstaram por completo, contudo, as movimentações regulamentares em torno da questão da terra, de tal maneira que algumas medidas foram colocadas em prática: 

Em 1838, a Câmara indicou uma comissão encarregada de fazer um levantamento das terras devolutas;

Em julho de 1842, o Governo Imperial solicitou à Seção dos Negócios do Conselho de Estado que formulasse modificações e critérios para a obtenção de terras no Brasil, tendo por alvo regularizar as concessões de sesmaria e a política de colonização.

Os autores do projeto de lei – Bernardo Pereira de Vasconcelos e José Cesário de Miranda Ribeiro – fundiram as duas questões. Nota-se também existir a preocupação de promover a imigração de trabalhadores pobres, em razão da insuficiência de trabalho escravo, além de se proibir novas concessões de terras, reconhecendo-se todas as posses tomadas depois da resolução de 1822. Apresentado em 1843 para a apreciação dos deputados do império, com algumas modificações, o projeto apresentava o seguinte: Regularização da propriedade territorial:  

Revalidar as sesmarias caídas em comisso (ou seja, que não cumpriram as condições de doação); Legitimar as posses de período superior a um ano e um dia e que não ultrapassem meia légua quadrada no terreno de cultura e duas léguas nos campos de criação; Registrar e demarcar as posses num prazo de seis meses. Após esse 8


prazo, aplicar multa e, caso após seis anos, não tivessem sido demarcadas nem registradas, seriam incorporadas ao Estado. Atribuições do Estado:  Imposto territorial anual, cultivados ou não;  Taxa de revalidação das sesmarias e legitimação das posses;  Promoção, pelo governo imperial, da venda de terras devolutas, em porções nunca inferiores a um ¼ de légua quadrada e reserva de terras para a colonização indígena e construção naval;  Proibição de novas concessões de sesmaria, somente terras na faixa de 30 léguas das fronteiras;  Proibição de novas posses.  Colonização Estrangeira:  Os recursos, assim como os impostos arrecadados nas vendas de terras, serviriam para financiar a vinda de “colonos livres”. O projeto aprovado na Câmara restou letra morta, ou seja, enquanto o Gabinete esteve nas mãos dos liberais. Somente quanto os Conservadores retomam o poder se retoma as discussões, que viriam a dar origem à Lei 601, de 1850. A Lei de Terras de 1850 A Lei de Terras de 1850 é a culminação, uma vez que se materializou em um ordenamento jurídico, do debate sobre a propriedade fundiária que a antecedeu e, não por acaso, coincide com o da Lei Eusébio de Queirós, que determinava a proibição do tráfico de escravos em território brasileiro. Quanto a este aspecto é essencial observar que os impactos da segunda lei não foram imediatos, uma vez que entre 1840 e 1850 ainda chegam ao país cerca 500.000 escravos. Caminha no mesmo sentido o fato de que as culturas de cana-de-açúcar, 9


algodão e tabaco da região norte do país encontravam-se em decadência, o que liberou mão de obra escrava para o centro-sul do país, onde a economia cafeeira mostrava-se extremamente robusta, dando causa, portanto, a um tráfico interprovincial. Ainda assim, o fim do tráfico permitiu a existência de investimentos em outras atividades econômicas, já em certa medida urbanas - bancos, ferrovias, etc. -, inserindo a sociedade brasileira no contexto geral da expansão capitalista. O fim do tráfico e a expectativa de que o próprio escravismo colonial estivesse por se esgotar colocavam um problema de certo modo novo, que consistia essencialmente das condições objetivas, materiais, que davam fundamento à apropriação da terra e, de modo correlato, a seu uso como condição para a hegemonia das classes dominantes da época. O elemento essencial a considerar é que, enquanto se manteve como regime hegemônico de produção, o escravismo colonial tinha como fator essencial de distinção social a propriedade de escravos, a partir da qual, e de forma mediada pela exploração da mão de obra escrava, se dava então a exploração e apropriação da terra. Em uma situação de abundância de terras a explorar era a propriedade de escravos que conferia o diferencial às classes dominantes, possibilitando-lhe, então, explorar extensas porções de terra, para assim participar do regime monocultor de exportação – porta de acesso essencial à economia monetária e, em consequência, da acumulação de capital. Diante da possibilidade da abolição da escravidão colocava-se então a questão de que, sem uma limitação decisiva à posse e propriedade da terra, a grande propriedade fundiária tendia a definhar, pela ausência ou dificuldade se em obter mão de obra que pudesse suportar a atividade agrícola, especialmente aquela destinada à exportação, que exigia mão de obra concentrada e abundante. Era imprescindível, portanto, que, à medida que o escravo deixasse de ser uma mercadoria, que a terra assumisse esse papel o mais brevemente possível, de 10


modo a que se pudesse manter o status quo, que implicava o alijamento de toda população dos benefícios do modelo agrário-exportador, que caracterizou o Brasil pela quase totalidade de sua história. Outro aspecto decorrente da Lei das Terras, embora menos significativo que sua função de promover a implantação do trabalho assalariado, é que antes da sua aprovação, o "capital" dos grandes latifundiários era medido pelo número de escravos que cada um detinha, fosse no campo ou nas cidades1. A abundância de terras, a dificuldade para ocupá-las e a condição colocada para sua concessão de que elas se tornassem produtivas, tornavam a posse de escravos mais importante do que a da terra em si. Em suma, a riqueza dos poderosos era medida pelos seus escravos, que serviam – o que não era o caso da terra, antes de 1850 – até como objeto de hipoteca para a obtenção de empréstimos. Como lembra Maricato (1997), não foi por acaso que a Lei das Terras foi promulgada no mesmo ano – na verdade, em um intervalo de poucas semanas – do que a proibição definitiva do tráfico. Está claro que, em meio a um processo políticoeconômico em que se restringia o sistema de escravidão, a Lei das Terras serviu para transferir o indicativo de poder e riqueza das elites de então: sua hegemonia não era mais medida pelo número de escravos, mas pela terra que possuía, agora convertida em mercadoria,

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O papel dos escravos não era desempenhado somente no campo. Nas cidades, eles eram indispensáveis à vida urbana, encarregando-se de todos os serviços mais pesados. Segundo MARICATO, Op. Cit. (pg. 17) os escravos na cidade eliminavam os dejetos, carregando barris cheios de fezes até a praia, por exemplo, abasteciam as casas com água e lenha, recolhiam o lixo, transportavam objetos e pessoas, e realizavam, na condição de "escravos de ganho", atividades de comércio e uma série de pequenos serviços para seus proprietários, que incluíam desde a venda de quitutes até a prostituição. 11


e o trabalho assalariado podia então se expandir no Brasil, respondendo às pressões inglesas. (FERREIRA, João Sette Whitaker. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.)

A Lei de Terras de 1850, não sendo mera consolidação do debate que a antecedeu, ataca dois problemas que faziam parte de dele, ou seja, a questão da regularização fundiária e da imigração. Um primeiro ponto a ser observado é que a partir de sua promulgação a terra só poderia ser adquirida por meio da compra (exceção feita às terras localizadas a dez léguas do limite do território2). Seria permitida a venda em hasta pública de todas as terras devolutas, que se definiam como todo estoque de terras que não se encontrava sob a guarda do poder público em todas as suas esferas – nacional, provincial ou municipal -, assim como aquelas que não eram de propriedade de particulares, fossem elas produto do Sistema Sesmarial ou decorrente de posse. Note-se, contudo, que ao longo de todo o período colonial “terra devoluta” era aquela em que se observava o não cumprimento, pelo concessionário, das condições impostas para sua utilização - condições estas que estavam na própria lógica do instituto jurídico do Sistema Sesmarial desde o seus primórdios. Deste modo, o inadimplemento do concessionário em suas obrigações, essen-

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Art. 1. Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra. Excetuam-

se as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros em uma zona de 10 léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamente. 12


cialmente no caso da colônia, aquela de cultivar a terra, dava margem à devolução da terra à autoridade concedente, ou seja, a coroa. A Lei de Terras se propõe, a seu modo, a regularizar a questão da posse, estabelecendo para tanto alguns critérios:    

Regularização de todas as terras cultivadas, ou com princípio de cultura e que constituíssem a morada habitual do posseiro; Demarcação e medição das terras, em prazo a ser fixado; No caso de haver posses no interior de Sesmarias seriam considerados aqueles que realizaram as benfeitorias; Os roçados, queimadas de matos ou campos, arranchamentos e atos semelhantes não se constituíam em quesito para que se pudesse reclamar a propriedade sobre a terra.

O não cumprimento das duas primeiras condições impedia a efetivação da posse, ou seja, observava-se o domínio, sem que se reconhecesse a propriedade (titularidade) da terra. No que se refere aos imigrantes, era facultada a venda da terra, admitindo-se ainda a naturalização. Ocorre, contudo, que os preços praticados nas hastas públicas virtualmente impediam o acesso dos imigrantes à propriedade da terra. Deve-se notar que anteriormente à vigência da Lei de Terras os lotes eram concedidos sem ônus aos colonos, que, à sua vez, se instalavam por conta própria, ou com o apoio do governo ou companhias de colonização. A partir de sua vigência, contudo, firmou-se a prática de concessão das terras às companhias de colonização que, então, as revendiam a imigrantes, com o devido lucro. A Lei assegura ao Estado, por fim, a reserva de terras para a colonização indígena, para a fundação de povoamentos, para aberturas de estradas, para a fundação de estabelecimentos públicos e para a construção naval. 13


O ordenamento fundiário engendrado pela Lei de Terras, assim como todas as ações que se desenrolam em torno do período de sua concepção e promulgação final, foram absolutamente essenciais para a configuração não apenas da estrutura fundiária do país, mas para a totalidade de sua conformação sóciopolítica. As disputas havidas nesse período materializaram um projeto de nação, que não se orientou pelos princípios liberais ou burgueses clássicos, mas por um modelo conservador, fundado essencialmente na grande propriedade territorial e nas prerrogativas que tinham, a partir dela, os grandes latifundiários. Para Maricato (1997), foi entre 1822 e 1850, nas décadas anteriores à aprovação da Lei das Terras, que se consolidou de fato o latifúndio brasileiro, através da ampla e indiscriminada ocupação das terras, e a expulsão dos pequenos posseiros pelos grandes proprietários rurais. Tal processo se deu muito em função da indefinição do Estado em impor regras, decorrente das disputas entre os próprios detentores do poder. Segundo a autora, "a demorada tramitação do projeto de lei que iria definir regras para a comercialização e propriedade da terra se devia ao medo dos latifundiários em não ver 'suas' terras confirmadas". O resultado dessa disputa foi o fim do projeto liberal de financiamento de uma colonização branca de pequenas propriedades, baseada nos colonos europeus, por meio da venda das terras do Estado. No lugar, promoveu-se uma demarcação da propriedade fundiária nas mãos dos grandes latifundiários, que nesse processo conseguiram inclusive apropriar-se de muitas terras do Estado. E os imigrantes, em vez de colonos de pequenas plantações, serviram de fato como mão de obra nos grandes latifúndios, substituindo a mão de obra escrava. Pois o processo político de aprovação da Lei das Terras tem muito a ver com o fim do tráfico de escravos. (FERREIRA, João Sette Whitaker. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. 14


Publicado em Anais do Simpósio “Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005.)

(...) Sabe-se que, em especial no período inicial da República, várias correntes se opuseram quanto às formas de ocupação do território e de construção da cidadania republicana, o que refletia também nas políticas de ocupação do território. Mas mesmo anteriormente, antes até da independência, Dom Pedro e José Bonifácio já procuraram incentivar a vinda de colonos europeus para o sul do país, com a intenção de formar uma classe média rural de pequenos proprietários agricultores, enquanto que a migração para São Paulo era destinada ao fornecimento de mão de obra para a grande lavoura (ver FAUSTO, Boris. “História do Brasil”, São Paulo: Edusp, 1994). Dentre as diferentes correntes que se enfrentaram entre 1880 e 1930, Ribeiro e Cardoso apontam para as correntes de pensamento “racista”, que buscava o “branqueamento como tarefa civilizatória”, através das políticas migratórias, ou ainda a “ruralista”, capitaneada por Alberto Torres, que defendia “uma intervenção do Estado que recompusesse a estrutura fundiária, com ênfase nas pequenas propriedades” (QUEIROZ RIBEIRO, Luiz César, e CARDOSO, Adauto Luiz. “Planejamento Urbano no Brasil: paradigmas e experiências”, in Espaços & Debates: Revista de Estudos Urbanos e Regionais, nº 37, São Paulo: Neru, 1994). Mesmo que anterior à República, ou justamente como resultado das disputas na sua preparação, a Lei de Terras de alguma forma consolidou os interesses dos grandes latifundiários no processo de apropriação da terra no país. A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Publicado em Anais do Simpósio 15


“Interfaces das representações urbanas em tempos de globalização”, UNESP Bauru e SESC Bauru, 21 a 26 de agosto de 2005 – Excerto contido na nota 3)

O decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854 Após quatro anos de promulgada, a Lei de Terras foi regulamentada pelo decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, que determinava que todos os possuidores deveriam registrar suas terras, junto à Paróquia que as jurisdicionava: “os vigários paroquiais eram responsáveis de receber as declarações com duas cópias, possuindo, o nome da terra possuída; designação da freguesia em que está situada; o nome particular da situação, se o tiver; sua extensão se for conhecida e seus limites”. Criou-se ainda a Repartição Geral das Terras Públicas – órgão responsável por dirigir a medição, dividir e descrever as terras devolutas e prover sua conservação -, que se subordinava ao Ministério da Agricultura do Império (o regulamento obrigava a criação de órgãos semelhantes a nível provincial). Institui-se no nível provincial a figura do juiz comissário de medição e a Repartição Especial das Terras Públicas, que era nomeado pelo presidente da província, sem direito à recusado cargo, sob pena de ser multado.

A gênese da cidade no Brasil moderno A dinâmica econômica: abolição da escravidão A estrutura econômica do Brasil não se alterou no essencial com a emancipação política, remanescendo no panorama socioeconômico tanto o escravismo, como a inserção subalterna na economia mundial, baseada essencialmente na 16


monocultura exportadora. No que se refere às culturas dominantes, o século XIX assiste a um avanço expressivo do café, que suplanta os demais gêneros de exportação. Difundindo-se no sudeste, a cafeicultura determinou com sua dinâmica o modo de desenvolvimento do conjunto da economia brasileira, no período compreendido entre a metade do século XIX e o fim da República Velha, sendo seu ponto de inflexão mais preciso o da crise de superprodução capitalista, havida em 1929, que teve como momento simbólico determinante o crash da Bola se Valores de Nova York. A abolição do tráfico em 1850, por outro lado, liberou capitais que passaram a ser aplicados no mercado interno e, em medida razoável, em atividades de compleição urbana. Diga-se de passagem, a conjunção de tais fatores - tarifa Alves Branco, abolição do tráfico e ascensão do café – propiciou uma verdadeira onda de empreendimentos nitidamente urbanos, que, segundo Nelson Werneck Sodré, permitiu constituir “62 empresas industriais, 14 bancos, 3 caixas econômicas, 20 companhias de navegação a vapor, 23 de seguros, 4 de colonização, 8 de mineração, 3 de transportes urbanos, 2 de gás, 8 estradas de ferro”. A partir do ano de 1870 observa-se, contudo, o início de uma crise, que se mostrará definitiva, no interior da estrutura socioeconômica do Império. O problema nuclear seguia sendo o escravismo que, apesar da abolição do tráfico negreiro em 1850, continuava em funcionamento no país. Essa situação desafiava os interesses das nações capitalistas hegemônicas e, em especial, a Inglaterra, que desde o início do século XIX pressionava o Brasil no sentido de eliminar a escravidão – o que também era afim de seus interesses, no sentido de universalizar as formas mercantis de produção. Havia, ainda, a questão do mo17


vimento abolicionista e de uma opinião pública, no âmbito mundial, que progressivamente se opunha à prática da escravidão. Face a esse cenário de pressões internas e externas as classes hegemônicas do Império optaram por manter o silêncio, de modo a proteger seus interesses. A questão da escravidão não tinha, portanto, uma expressão pública, parlamentar, proporcional à sua importância capital, fato que decorria, de certa forma, do temor que se pudesse perder o controle da situação, uma vez que a questão fosse pautada. Ainda assim, os debates que haviam se iniciado, para serem interrompidos pela Guerra do Paraguai (1864-70), foram retomados tão logo o conflito terminou. O cenário que se configurava à época – 1870 – era da seguinte natureza: 1. 62% dos escravos do Brasil estavam concentrados em São Paulo, Minas, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, ou seja, aproximadamente 955 mil, dos 1,54 milhões de escravos se concentravam nessas províncias; 2. No Norte – Nordeste do país, de outro lado, devido à perda de dinâmica da economia regional os números da escravidão haviam recuado. A rigor essa região abasteceu a economia cafeeira de mão de obra escrava, dando causa a um intenso tráfico interprovincial de braços escravos para a lavoura; A Guerra Civil Americana (1861-65), à sua vez, já havia indicado que as possibilidades de sobrevida do escravismo eram decrescentes, fato que se confirmava à medida em que progrediam as relações de trabalho estabelecidas pela Revolução Industrial, que, aos poucos, estava se universalizando por toda a Europa, e já havia conquistado inúmeras regiões do mundo, destruindo muito do que se poderia considerar como elementos das culturas tradicionais eu autóctones. Restavam, portanto, como países escravistas ao final do século XIX, além do Brasil, fundamentalmente Cuba e Costa Rica. 18


É nesse contexto que começa a vir à tona a legislação abolicionista. Alei do Ventre Livre, de efeito claramente protelatório, foi aprovada em 1871, por 65 votos a favor e 45 contra, sendo que no primeiro grupo estavam os parlamentares do Norte-Nordeste, ao passo que os representantes de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro votaram contra, acompanhados pelos deputados do Espírito Santo e do Rio Grande do Sul.

Apesar da resistência, o fato é que ao longo de toda a década de 1880 a luta pela abolição se intensificou, sendo apoiada por entidades como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, Associação Central Emancipacionista, Confederação Abolicionista (1883) - que unificou o movimento no plano nacional. Não se pode deixar de lado, contudo, o papel protagonista dos próprios escravos, que repetindo as formas clássicas e históricas de resistência ao cativeiro, passaram tanto a fugir em grande escala, como a se rebelarem. Essas manifestações, ainda que limitadas em abrangência, colocaram na pauta do dia a possibilidade de uma revolta de larga escala, fato que atemorizava não apenas os cafeicultores, mas o próprio conservadorismo em que se fundamentava o Império.

Deste modo, os escravistas foram levados a novas concessões, de ordem protelatória, como é o caso da lei Saraiva-Cotegipe ou lei dos Sexagenários (1885). Não foi o suficiente, contudo, para arrefecer os ânimos abolicionistas e, particularmente, os movimentos de fuga em grande escala. Os escravistas, diga-se de passagem, chegam a convocar o exército para impedir a debandada da mão de obra cativa, havendo a recusa clássica, que afirmava que "o exército não é capitão-do-mato", sendo indigna a missão, relativamente aos propósitos da corporação. A 13 de maio de 1888 efetiva-se, então, a abolição da escravidão. 19


Escravidão e imigração: as cidades e a gênese da desigualdade moderna A imigração antecede em muito a abolição da escravidão, firmando-se, desde os inícios do século XIX, como uma alternativa à utilização da mão de obra cativa. É bem verdade que as primeiras experiências, tão antigas quanto a passagem da família real pelo Brasil, estavam vinculadas às necessidades de povoamento da colônia, antes de se imaginar que o imigrante pudesse efetivamente substituir o escravo. Com o objetivo de promover pouco a pouco a substituição do braço escravo na lavoura e povoar algumas áreas da Colônia, recorreu-se, em meados do século XIX, à colonização estrangeira. O objetivo dessa política era, sobretudo, demográfico, reconhecia-se a necessidade de povoar o país, para isso recorrendo à colonização. O ponto de partida foi o decreto de 25 de novembro de 1808, de autoria de D. João VI. Visando atrair europeus, esse decreto permitia aos estrangeiros o acesso à propriedade da terra. Em 1818 é fundado, por imigrantes suíços, o primeiro núcleo em Nova Friburgo, no Estado do Rio de Janeiro. Logo em seguida, teremos novos núcleos no Espírito Santo, em São Paulo, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Essa tentativa da Administração imperial nem sempre chegava a ser bem sucedida. Em 1827, o Ministério do Império encaminhou para São Paulo alguns imigrantes. Depois de muita discussão sobre a região em que deveriam ser estabelecidos, acabou-se por enviá-los para as regiões de Itapecerica, Embu e Santo Amaro, zonas de difícil acesso, solos pobres e longe do mercado consumidor. Depois de enfrentar muitas dificuldades, os imigrantes abandonaram a maioria 20


dos lotes. (PETRI, Kátia Cristina. Terras e Imigração em São Paulo: Política Fundiária e Trabalho Rural).

Como se tornava evidente, contudo, que o escravismo estava com seus dias contados, as experiências em torno da imigração foram evoluindo, tendo em conta particularmente as necessidades da economia cafeeira. Deste modo, logo se evoluiu para o sistema de parecerias, cuja mecânica pode ser descrita como segue: Os colonos eram contratados na Europa e trazidos para as fazendas de café. Tinham sua viagem paga, assim como o transporte até as fazendas. Essas despesas, entretanto, entravam como adiantamento feito ao colono pelo proprietário, assim como, igualmente, lhe era adiantado o necessário à sua manutenção, até que ele pudesse se sustentar. A cada família deveria ser atribuída uma porção de cafeeiros, na proporção da sua capacidade de cultivar, colher e beneficiar. Aos colonos também era facultado o plantio, em certos locais pré-determinados pelo fazendeiro, dos mantimentos necessários ao seu sustento. Vendido o café, o fazendeiro era obrigado a entregar ao colono metade do lucro líquido. Sobre as despesas feitas pelo fazendeiro em adiantamento aos colonos, eram cobrados 6% de juros, a contar da data do adiantamento e aplicandose na sua amortização, pelo menos, metade dos seus lucros anuais. O colono, além de ser obrigado a cultivar e manter o café, não podia abandonar a fazenda sem ter previamente comunicado por escrito a sua intenção de retirar-se, e só o poderia fazer após saldar todos os seus compromissos. Essa medida também encontrou entraves. Os proprietários queixavam-se dos colonos, diziam que eram preguiçosos e que sua produtividade era baixa, acusavam os colonos 21


de recusarem-se a receber cafezais novos e ainda improdutivos ou velhos e já em declínio de produção. O descontentamento por parte dos colonos era o sistema de contas, feito para deduzir sua parcela de lucro sobre a produção de café obtida. Rezavam os contratos que, vendido o café, caberia ao colono a metade do seu lucro líquido; porém, na maior parte das vezes, os colonos sentiam-se roubados. Com o intuito de reduzir esse tipo de queixa, acabou-se por estabelecer o pagamento ao colono de um preço fixo por alqueire cultivado ou para outras fórmulas, em geral baseadas num sistema de salários. Esse último sistema parece ter-se revelado mais adequado, naquela época, do que o sistema de parceria. (PETRI, Kátia Cristina. Terras e Imigração em São Paulo: Política Fundiária e Trabalho Rural).

Note-se, contudo, que a imigração, conforme ela se realizou em São Paulo, seguindo os interesses da economia cafeeira, era a realização de um projeto profundamente conservador, que, a rigor, representava uma extensão dos fundamentos socioeconômico da economia agrário-exportadora, ainda que, agora, na ausência da mão de obra escrava. Diferentemente da concepção “liberal”, que vez por outra irrompeu no Brasil, muitas vezes associadas, é bem verdade, a uma mentalidade racista, que preconizava a colonização e ocupação do país por pequenos proprietários rurais – brancos –, o que se pretendia aqui era obter mão de obra farta, barata e dócil para a cultura do café. A imigração, portanto, a não ser em algumas áreas localizadas do território nacional, especialmente no sul do país, não alterou significativamente a estrutura fundiária e, portanto, o modo como se produzia e distribuía a riqueza. A propriedade da terra permaneceu altamente concentrada e, em decorrência, não se constituiu um mercado consumidor interno de grande envergadura, não se democratizou a 22


vida social, não se rompeu com a mentalidade conservadora, aristocrática e, no limite, escravocrata que imperava no Brasil. De 1889 ao início do século seguinte, chegaram quase 750.000 estrangeiros a São Paulo, dos quais 80% eram subsidiados pelo Governo. De 1886 a 1934, entraram quase 2.250.000 imigrantes, comparados a uma população-base de 1.250.000 habitantes em São Paulo, em 1886. Cerca de 58% dos imigrantes naquele período foram subsidiados pelo Estado. A imigração para São Paulo representou sozinha, 56% dos 4.100.000 imigrantes que entraram no Brasil de 1886 a 1934. Há muito que a imigração para São Paulo tem sido identificada com os italianos. Embora seja certo que constituíam o maior grupo de uma única nacionalidade, os italianos representaram 46% de todos os imigrantes no período de 1887 a 1930. Durante a transição para o trabalho livre e o subsequente surto cafeeiro, os italianos na verdade predominaram, representando 73% de todas as chegadas de 1887 a 1900. Durante o período de 1887 a 1900, a Espanha forneceu 11% dos imigrantes de São Paulo, Portugal 10% e outros países, 6%. De 1901 a 1930, a distribuição de nacionalidades foi mais diversificada. A proporção de italianos caiu para 26%, a de espanhóis subiu para 22%, a de portugueses subiu para 23% e as outras nacionalidades alcançaram 28%. Desta última categoria, o mais importante grupo de uma única nacionalidade foi o de japoneses, que começaram chegando em pequeno número, em 1908, e se transformaram numa corrente contínua após 1917. No período entre 1911 e 1930, mais de 96.000 japoneses foram para São Paulo. O Japão, dessa forma, seguiu a Itália, a Espanha e Portugal como a mais importante fonte de força de trabalho para as fazendas de café.[*7] 23


De qualquer maneira, durante a Primeira República, continuam a existir as duas correntes de imigração para o Brasil: uma promovendo o povoamento de áreas escassamente povoadas por meio de estabelecimento de pequenas propriedades – herança imperial – e outra fornecendo braços para a grande lavoura do café. Neste contexto, a colonização em São Paulo diferencia-se das outras regiões do Brasil. Primeiro, ela privilegia os trabalhadores rurais e não incentiva a propriedade da terra para os imigrantes; segundo, não se construíram colônias etnicamente homogêneas como ocorreu, por exemplo, no Sul do país; terceiro, pequenas propriedades surgem na periferia dos grandes latifúndios de café muito depois de iniciado o processo migratório; e por último, os subsídios estaduais para atrair imigrantes resultaram no maior contingente de imigrantes para o Estado paulista. (PETRI, Kátia Cristina. Terras e Imigração em São Paulo: Política Fundiária e Trabalho Rural).

Deve-se considerar, contudo, que as experimentações envolvendo a imigração não se interrompem com o sistema de parcerias, evoluindo, até mesmo em função das necessidades da economia cafeeira, para a mecânica dos Plano do Viveiro, que se baseava fundamentalmente na ideia de que era preciso manter braços disponíveis para a grande plantation, conferindo mais “autonomia” para os trabalhadores e livrando os fazendeiros do custo de manter mão de obra no período da entressafra.

Esta alternativa para o sistema de colonato foi conhecida em São Paulo como o Plano do Viveiro, seguindo a mesma lógica adotada com os pés de café, ou seja, o viveiro fornecia mudas para substituir os cafeeiros que a doença ou a velhice tornavam improdutivos ou pés 24


para serem plantados nos novos cafezais. O viveiro referia-se a uma fonte local de mão de obra, a que os fazendeiros de café podiam recorrer quando necessário. O propósito dos fazendeiros e das autoridades governamentais era o suprimento de mão de obra estável e com baixos custos e, ao mesmo tempo, atendiam às necessidades dos imigrantes europeus, que poderiam fixar-se como lavradores independentes. Para incentivar as pequenas propriedades em terras particulares, o Estado atuou diretamente em projetos que substituíssem ou até mesmo complementassem o sistema de colonato para o de viveiros de trabalhadores. O principal projeto foi o programa de núcleos coloniais, estabelecendo-se colônias de pequenos sítios sob a tutela direta do governo. Com os núcleos das décadas de 1880 e 1890, estabeleceu-se um padrão que o Estado seguiu no século XX. O governo adquiria terras marginais, muitas vezes de solo fraco, não apropriado para o café. Essas terras pertenciam a fazendeiros endividados. A Secretaria de Agricultura inspecionava a área e delimitava os lotes, que variavam entre dez e quarenta hectares, metragem considerada suficiente para sustentar as famílias de imigrantes. O Estado, então, nomeava um administrador, que ficava responsável pela ajuda aos recém-chegados e pelo registro dos pagamentos dos lotes feitos pelos colonos, além de orientar nos trabalhos comuns, como a manutenção de estradas e a fiscalização do cumprimento de numerosas regras. Os imigrantes poderiam pagar esses lotes de acordo com vários planos, sendo o prazo de cinco a dez anos o mais utilizado. Na passagem do século XIX, a solução de viveiros já se tornara parte da política oficial de imigração e trabalho em São Paulo. Cândido 25


Rodrigues, Secretário de Agricultura, informou que, em 1899, a Comissão de Obras Públicas do Senado de São Paulo recomendou que fossem estabelecidos mais núcleos coloniais, “de modo a constituí-los em viveiros de trabalhadores para a grande lavoura” e serviriam para fixar o imigrante ao solo, à disposição da lavoura do café e ainda aliviariam o fazendeiro das obrigações de construir a sua custa casas para os colonos e de formar ou cercar pastos para as criações dos mesmos. Também em 1901, o governador do Estado, Rodrigues Alves, disse que era “preciso fixar o imigrante ao solo, mas é preciso fazê-lo de modo que ele fique ao alcance da grande lavoura, quando precisar do seu braço, e de maneira que os núcleos a serem fundados, pela sua situação, sejam viveiros de trabalhadores”. Essa parceria possibilitou a formação de vários núcleos. (PETRI, Kátia Cristina. Terras e Imigração em São Paulo: Política Fundiária e Trabalho Rural).

É aproximadamente dentro deste contexto que a grande crise mundial de 1929 irá encontrar a estrutura fundiária em que se baseava a cafeicultura, que era, à época, o núcleo dinâmico da economia do país. Já floresciam atividades propriamente urbanas, como os serviços em geral e o próprio comércio, que mobilizava as cidades envolvidas com a produção cafeeira, além de cidades portuárias como Santos, ou ainda aquelas que se encontravam ao longo as ferrovias. A dinâmica da cultura cafeeira não foi suficiente, contudo, para romper com os padrões socioeconômicos do escravismo, preservando-se ao contrário, no interior de uma sociedade formalmente livre, os mesmos ranços que estavam no cerne da velha sociedade. Mantiveram-se, no essencial, valores não republicanos, aristocráticos, que foram incorporados tanto à vida das cidades, quanto à forma mesmo de sua organização, que naquilo que era fundamental, mante26


ve-se praticamente estamental, segregando de maneira quase total as camadas populares e os poderosos. Uma outra medida adotada pela Assembleia Provincial, em 1881, foi a organização de uma comissão para planejar uma hospedaria que recebesse imigrantes. Naquele mesmo ano, o Governo da Província adquiriu um prédio no bairro do Bom Retiro, na capital, que tinha capacidade para apenas quinhentas pessoas e localização inconveniente. Em 21 de março de 1885, a Assembleia Provincial autorizou a construção de uma nova hospedaria e uma comissão especial escolheu um ponto de junção das estradas de ferro que penetravam na cidade de São Paulo, vindas do Rio de Janeiro e de Santos, rotas pelas quais entravam na Província todos os imigrantes. Em 1888, a nova Hospedaria de Imigrantes tinha capacidade para quatro mil pessoas e tornou-se o ponto focal do programa de imigração de São Paulo. Entre as centenas de milhares de imigrantes trazidos depois de 1886, alguns protestaram abertamente contra as condições de superlotação e a falta de higiene reinante nos navios, no porto de Santos ou na hospedaria de São Paulo. Outros acusaram a prática de fraude e maus-tratos nas fazendas. (PETRI, Kátia Cristina. Terras e Imigração em São Paulo: Política Fundiária e Trabalho Rural).

Cortiço: prenúncio da habitação subnormal como solução A questão da moradia em São Paulo aparece já nos idos de 1870, momento em que a cidade passa por um período de grande crescimento, devido à dinâmica econômica que lhe é propiciada pela expansão vigorosa da cafeicultura. À medida que a produção se interiorizou, a cidade passa a funcionar como um 27


grande centro de atividades terciárias, fartamente abastecido e provido em seu papel pelo advento das estradas de ferro. Não se pode esquecer, ainda, que a cidade recepcionou a população de imigrantes que se destinava à cultura do café no interior, dando-se, ainda, um índice de retenção dessa população no território urbano, que já se diferenciava economicamente àquela altura – estimase que 30% dos imigrantes ficavam nas cidades, e em São Paulo particularmente. É importante salientar que, por assumir o papel de centro comercial e financeiro da cafeicultura, São Paulo atraiu para si a classe dominante, os grandes proprietários de terra, que se envolviam diretamente com a comercialização de sua produção, assim como com atividades financeiras propriamente ditas. A rigor a atividade bancária, especialmente envolvendo operações de comércio exterior, era inerente à comercialização do café, majoritariamente destinada ao mercado internacional. A classe senhorial se via atraída, ainda, pelas promessas de uma cidade moderna, que, se aproximando da capital do país, reproduzia padrões europeus, com suas promessas de civilidade e cultura. Com essa efervescência nasce também a especulação com a terra urbana, um subproduto do capital acumulado na atividade da cafeicultura, que foi aplicado no loteamento de chácaras, incorporações e assim por diante. O fundamento da especulação com o solo urbano pode ser encontrado na expansão intensa da população da cidade, que, em 1872, era de 26,040 habitantes, passando a 47.697 em 1886, para atingir a cifra de 238.820 em 1900. É fundamental reter que a especulação em questão tem dois sentidos distintos, ou seja, refere-se ao empreendimento de grande valor, que nobilitava regiões da cidade a serem ocupadas pela elite da cafeicultura, assim como versava sobre a moradia destinada às camadas populares, que, à sua vez, se desdobra na habitação destinada àqueles que estavam integrados à atividade produtiva regular, remunerada, assim como aos que vivem nas franjas do sistema produti28


vo, em atividades econômicas marginais. Para estes dois últimos segmentos estão destinadas as habitações de aluguel, ainda que difiram de maneira muito significativa seus padrões. Aliás, sobre esse último aspecto, é importante ressaltar que o setor privado nesse período sempre agiu com grande liberdade na configuração e construção do espaço urbano, definindo-o do a ótica de seus próprios interesses. E isso não parece ser tão revelador assim. Afinal, o capital privado ligado às atividades urbanas e o poder público constituído eram faces da mesma moeda: ambos representados pela elite da aristocracia cafeeira paulista. Se Antônio Prado, o maior cafeicultor do Estado, banqueiro e industrial vem a ser o primeiro prefeito da Cidade no período de 1899 a 1910, outros elementos dessa mesma classe social o sucederiam nesse cargo até o final dos anos 20: Raymundo Duprat, Washington Luís, Moraes Pinto e outros. Da mesma forma na área de incorporação e loteamento teremos o Barão de ltapetininga, o Conde de Prates e mais tarde os empresários Horácio Belfort Sabino e Cincinato Braga que em 1911, se associam a banqueiros londrinos e realizam a maior incorporação imobiliária da história da cidade: a compra de uma área equivalente a 37% da área urbanizada de então e a criação da Cia. City de Empreendimentos. (O cortiço ao longo da história da cidade: origens do fenômeno e a sua predominância como alternativa de habitação popular até a década de 1930)

O surgimento do cortiço como solução habitacional tem a ver com a própria dinâmica da expansão urbana, assim como da economia em geral. O fato é que nos princípios do século XX não estavam dadas, ainda, as condições para um espraiamento da cidade na direção da periferia, fato que decorria fundamentalmente da inexistência de meios de transportes adequados. De outra parte, a 29


solução das vilas operárias só se oferecia a uma pequena parcela da população, ocupada pelas empresas ligadas à atividade industrial nascente, não sendo uma solução massiva o suficiente para resolver o problema, nem mesmo minimamente que fosse. Restava, portanto, à grande maioria das camadas populares, sem acesso aos terrenos baratos da periferia, ou às vilas operárias, a ocupação das áreas próximas do centro da cidade, em suas “manchas”, ou seja, porções do espaço urbano que não encontravam uma destinação mais nobre do ponto de vista econômico. A moradia de aluguel surge, portanto, como uma espécie de solução para a habitação popular que interessa também, do ponto de vista econômico, aos capitalistas das mais variadas extrações. De maneira direta ao especulador, que constrói e ocupa áreas próximas do centro da cidade para valorizar o capital que emprega na atividade imobiliária. Mediatamente interessa aos empregadores em geral, uma vez que essa solução barateia o custo de reprodução da força de trabalho, ainda que na proporção direta de sua concentração em áreas degradadas e em moradias de péssimo padrão, mas próximas do local de trabalho e relativamente baratas no que se refere aos aluguéis. O cortiço, ou seja, a moradia coletiva de aluguel emerge como elemento de máxima lógica, em um modo de produção do urbano fundado na exploração intensa e brutal da força de trabalho, que apenas há poucos anos havia se desvinculado da mácula da escravidão. O cortiço passa a ser então uma atividade de grande rentabilidade para o especulador uma vez que, para a maior parte da população, toma-se a única opção possível de moradia, simbolizando o aviltamento e a humilhação imposto pelo sistema sócio-econômico de então. 30


Segundo KOWARICK, "o capitalismo que se instaura baseia seu processo de excedentes na pauperização dos trabalhadores, e ao mesmo tempo, precisa manter a unidade familiar a fim de explorá-la e garantir a sua continuidade. O cortiço – subdivisão de moradias em maior número possível de cubículos – aparece como a forma mais viável para o capital de reproduzir a classe trabalhadora a baixos custos". (5). Além disso, "com a industrialização, a terra urbana transforma-se numa mercadoria que gera enormes lucros e a construção ou aluguel de casas são realizados com semelhantes expectativas de ganho pelos proprietários de imóveis." (O cortiço ao longo da história da cidade: origens do fenômeno e a sua predominância como alternativa de habitação popular até a década de 1930)

A rota de expansão do cortiço passa pelos bairros centrais como a Sé, Santa Efigênia, Bexiga, Consolação, indo então para bairros operários como Brás e Mooca e, já no início do século XX, chegando a bairros de elite, como Campos Elíseos e região da Paulista (mais especificamente na Alameda Santos). O cortiço tem por características alguns elementos invariantes, dos quais se deve destacar:  

Habitação coletiva, com intensa ocupação, podendo haver uma ou mais edificações em um mesmo lote; As unidades de locação normalmente são cômodos, alugados, sublocados ou cedidos, não amparados em contrato de locação, fato que desqualifica o pacto perante a Lei do Inquilinato; Utilização comum de equipamentos como sanitários, banheiros, cozinha, tanques, além de instalações elétricas. Tanto quanto existe uma superocupação do espaço, dá-se um uso absolutamente intenso de todos esses equipamentos; Um único cômodo perfaz várias e distintas funções, como dormitório, 31


  

cozinha, sala, etc.; Iluminação e ventilação dos cômodos são precárias, dado o emaranhado de ocupações; Ausência de privacidade, dado existir uma efetiva coabitação; Ausência ou precariedade na manutenção e zeladoria das edificações, dando margem a infiltrações, entupimentos, curtos-circuitos e assim por diante; Situação de sanidade precária, observando-se deficiência ou ausência de coleta de lixo, esgoto, os quais, como regra, ficam expostos no ambiente.

No que tange à sua tipologia, o “Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito de Santa Ephigenia" de 1893, já lhe definia as possibilidades: 

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  

O cortiço de quintal, no centro da quadra, unido à rua por um corredor. Era comum que à frente do lote houvesse um prédio comercial; Aposentos de dormir, situados nos fundos de estabelecimentos comerciais; Cortiços improvisados, construídos nos fundos de depósitos de materiais de construção, oficinas, cocheiras e estábulos. Como regra os locais de moradia eram improvisados, com tábuas e cobertura de zinco; Cortiço-casinha, ocupando imóvel independente, de frete para a rua; O hotel-cortiço, espécie de restaurante onde a população operária se aglomera à noite para dormir; Casa-de-cômodos, prédios assobradados que foram subdivididos para permitir ocupação coletiva.

A condição da habitação popular, particularmente no que se refere aos cortiços, era de qualidade muito deficiente, o que deu margem a movimentos de concepção sanitarista, cuja meta consistia justamente em eliminar as condições que, segundo suas concepções, levavam à proliferação de doenças e epidemias. 32


Note-se que a epidemia de febre amarela de 1893, está na base de uma ação “saneadora” do poder público, cujos objetivos são as áreas onde se concentrava a população proletária da capital paulista. A prática sanitária nesse período baseando-se em conhecimentos científicos tradicionais de origem europeia (corrente infectologista e teoria dos miasmas), preconizava que os locais com grande aglomeração humana, com pouca circulação de ar, com águas estagnadas e sem esgotamento e limpeza adequados se tornavam ideais para a propagação de epidemias como cólera, peste, febre amarela, difteria, febre tifoide e tuberculose. Essas doenças seriam transmitidas pelo ar e não pelo contato físico. Os bairros operários, por abrigarem habitações com essas características de insalubridade tornavam-se portanto alvo dessa políticas saneadoras na cidade. "Soluções desta ordem estão presentes em inúmeras publicações durante s primeiras décadas de 1900. Do ponto de vista dos grupos dominantes, o discurso visa, em última análise, sanar a cidade das epidemias que frequentemente assolavam a cidade, trazendo grandes temores às camadas mais abastadas que se viam também na iminência de serem contaminadas. Dar saúde à cidade, significa portanto, desinfetá-la, ou seja, erradicar os cortiços de onde os focos contagiosos poderiam se alastrar". (O cortiço ao longo da história da cidade: origens do fenômeno e a sua predominância como alternativa de habitação popular até a década de 1930)

A ação do poder público não se restringe, contudo, a ações de ordem sanitária. Procura-se estimular a moradia popular de “melhor qualidade” através do incentivo à construção de vilas operárias. Exemplo dos regramentos da época nesse sentido é a Lei nº 315, de 14/08 de 1897, que prevê para tais edificações 33


isenção de imposto predial, transmissão de propriedade, taxas de água e esgoto e mesmo impostos de âmbito estadual. A estratégia não se mostrou exitosa, no entanto. As vilas operárias foram mais utilizadas no interior, onde a escassez de mão de obra era maior e, portanto, se fazia necessário ter o operário nas proximidades do local de trabalho – até mesmo porque havia dificuldades no âmbito do transporte. As dificuldades de encontrar uma solução considerada adequada pelo poder público da época, relativamente à habitação popular, e em especial aquela envolvendo a população encortiçada, existente no centro da cidade, estão relacionadas aos movimentos em prol da Reforma Urbana. Tratava-se, essencialmente, do remodelamento urbanístico e embelezamento das regiões centrais, para o que se fazia necessário, obviamente, deslocar a população que morava em edificações consideradas inadequadas aos vários projetos. As Reformas Urbanas foram as medidas mais eficiente neste sentido. Iniciados no começo do século, na gestão de Antônio Prado, visavam embelezar o centro através do alargamento de ruas, criação e remodelação de praças e construção de edifícios públicos suntuosos. Na década de 10, essa obras adquirem um caráter mais amplo, interferindo com maior profundidade na estrutura urbana existente: é o momento em que são alargadas as ruas do triângulo central, com grandes desapropriações de áreas encortiçadas e quando também são saneados e ajardinados os vales do Anhangabaú e Tamanduateí. Dentro desse mesmo espírito, é realizado em 1918, pela Prefeitura, a primeira Concorrência de Projetos para Casas Proletárias Econômicas como mais uma tentativa de incentivar medidas de incentivar o mercado para se direcionar às soluções de habitação popular permitidas por lei, desta vez propondo alternativas econômicas que 34


pudessem ser competitivas, em termos de rentabilidade com os cortiços. (O cortiço ao longo da história da cidade: origens do fenômeno e a sua predominância como alternativa de habitação popular até a década de 1930)

Apesar dos esforços que envidou o poder público não conseguiu resolver o problema da habitação popular insalubre. De outra parte, o crescimento vertiginoso da cidade, sempre aliado à lógica da especulação imobiliária, já gestava uma alternativa à moradia central e encortiçada. A população começa a se deslocar para a periferia urbana, movimento de certo modo apoiado pelo poder público, que já ao longo da década de 1920 acenava com a isenção de alvarás para as construções suburbanas. No final desta década a população de São Paulo atinge a marca de 1 milhão de habitantes, havendo uma significativa periferização da habitação popular, fato que leva agora, para todos os quadrantes da cidade o problema que estava fundamentalmente identificado com o centro. A cidade cresceu observando a mesma violência que reservara anteriormente a suas camadas populares. Não por acaso, Anhaia Mello, ao abrir o 1° Congresso de Habitação de São Paulo constatava que a cidade clandestina, irregular, construída nos entornos daquela considerada legal a superava em tamanho e proporções. A produção da cidade no Brasil contemporâneo A cidade brasileira é originalmente um produto direto do processo de colonização, razão pela qual se fixou antes de tudo na faixa litorânea, a partir da qual se efetivavam as relações de exploração das riquezas que garantiriam, em grande medida, a opulência da Metrópole. Sua localização obedecia, complementarmente, a uma lógica de defesa da possessão colonial, contra todos os seus 35


demais pretendentes, assim como a um modelo de exploração que se aproximava da pilhagem 3. A interiorização ocorre, portanto, como suplantação desta primeira etapa de organização do processo de colonização, requerendo, em consequência, o desenvolvimento de atividades agrícolas propriamente ditas, ou de exploração do território, especialmente aquelas que se prestavam ao mercado internacional4. O desenvolvimento da agricultura de exportação e de larga escala não pode ser pensado, no entanto, como um processo autônomo, relativamente ao escravismo colonial5. A história do latifúndio colonial e do sistema econômico que a ele se associa só pode ser corretamente compreendida, em sua historicidade pretérita e consequências presentes, se for aceito que sua dinâmica é aquela da exploração da mão de obra escrava, fato, que à sua vez, engendra toda uma conformação social, de que nasce uma cultura que lhe é própria. Nesta experiência de exploração econômica, que foi simultaneamente uma obra de devastação e genocídio - de negros e índicos -, a civilização afirmou-se como correlata da barbárie6.

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A esse respeito vale a pena assistir Aguirre, a cólera dos deuses (Werner Herzog, 1972) Note-se que o sistema colonial se organizou, originalmente, segundo os preceitos mercantilistas, que compreendiam que a riqueza de cada nação dependia diretamente do comércio internacional, consubstanciando-se no acúmulo de reservas, sob a forma de metais preciosos. Nessa concepção a possessão colonial tinha uma enorme importância, pois o dinamismo econômico dependia diretamente de mercadorias que pudessem ser realizadas no mercado internacional. A este propósito considerar especialmente a obra de Jacob Gorender, O escravismo colonial, Editora Ática, 1992.. A conquista ibérica, esse primeiro capítulo da história colonial européia, “transformou o mundo recém-conquistado em uma câmara de torturas”, escreve Benjamin. As ações da “soldadesca hispânica” criaram uma nova configuração espiritual (...) “que não podemos representar sem horror”. (LÖVY, 2005, p. 10) 36


Note-se que estas populações, tanto quanto as demais levas de trabalhadores imigrantes, mas especialmente os migrantes nordestinos - permanecem estrangeiros com relação, senão à cidade, seguramente para com a cidadania. O processo de desenvolvimento capitalista, que se sucedeu ao escravismo, viria a fazer deles, tanto quanto aos afrodescendentes, cidadãos de segunda classe, aos quais correspondem espaços públicos e privados de mesma ordem. O processo de industrialização e a produção da cidade7 Com a crise do sistema de produção escravista e do universo econômico que a ele corresponde, inicia-se um processo de diferenciação da atividade econômica interna, que conduz ao adensamento das cidades - movimento relativamente tímido até a década de 1930. A partir dessa década ocorre, contudo, um impulso decisivo no processo de industrialização brasileiro, que decorre essencialmente da crise da economia cafeeira, cujo efetivo ponto de inflexão pode de ser encontrado a partir da crise geral da economia capitalista, consubstanciada no crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929. Por razões que não cabe desenvolver no presente estudo, o Estado de São Paulo toma a dianteira do processo de industrialização brasileiro, configurando, em consequência, grande parte do dinamismo original do moderno processo de urbanização do país. A partir, portanto, da década de 1930 inicia-se um processo mais vigoroso de urbanização, que visto a partir do prisma da cidade de São Paulo, e seus indicadores populacionais, apresenta-se do seguinte modo:

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Considerando os limites do presente trabalho, não é possível relatar a história do desenvolvimento das cidades brasileiras em geral. Optou-se, portanto, por tomar os casos das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro como exemplos, mesmo que eles não sejam necessariamente paradigmáticos. A vantagem desta escolha reside no fato de que ela revela, mais do que qualquer outra opção, a relação entre a cidade brasileira e a modernidade, com todos os seus recortes, possibilidades e desafios. 37


Em 1930 a cidade registra 890 mil habitantes, cifra que atinge aproximadamente 1,6 milhão em 1945;  De 1920 a 1930 o crescimento populacional foi de 56%, ao passo que no período 1930 a 1940 de 47%;  Este crescimento populacional já é explicado essencialmente pelo fluxo migratório interno (para o conjunto do Estado de São Paulo, entre 1935 e 1945 os migrantes montam a 401.990, ao passo que os imigrantes correspondem a apenas 3.027);  Em 1940, por outro lado, São Paulo já concentrava 45,4% do valor bruto da produção industrial do Brasil 8. 

O crescimento radial Como esse incremento populacional se distribuiu pelo espaço? Observa-se desde fins da década de 1930 uma tendência à expansão radial da cidade, no sentido de sua periferia. Esse movimento era relativamente novo, e, portanto, ainda não estava consolidado como solução habitacional típica para as camadas populares, pois até então a população de baixa renda ocupava fundamentalmente os cortiços, que se concentravam nas regiões centrais da cidade - estratégia de habitação que privilegiava a proximidade entre o local de moradia e aquele do trabalho9. Os registros cartográficos da cidade daquela época começaram a mostrar, contudo, manchas dispersas de ocupação, que sobrepunham novos e velhos loteamentos, sem uma integração efetiva ao centro da cidade. Observa-se, ainda, uma tendência à conurbação dessas áreas, que excediam o

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Fonte: CAMPOS, Cândido Malta; GAMA, Lucia Helena; SACCHETTA, Vladimir (org.), São Paulo, Metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004 9 Para menção rápida sobre os cortiços: http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=63&from_in fo_index=6&sid=4 (último acesso em 20/07/2011) http://www.ensaioaberto.com/joao_rosa_cabeca_de_porco.htm 38


território estrito da cidade - constituindo-se, portanto, nos rudimentos da área metropolitana de São Paulo. Quais foram os fatores aceleradores desta expansão radial? Em primeiro lugar a reorganização dos transportes urbanos, que deixaram de se estruturar por meio dos trilhos (trens e bondes) - às margens dos quais se organizaram os bairros mais antigos - para se comporem sobre a lógica do veículo automotivo, que poderia chegar às mais rarefeitas populações, com mais flexibilidade que a ferrovia e seus equivalentes. Além disso, houve na década de 1940, uma grande crise no mercado de imóveis para locação, em função da Lei do Inquilinato de 1942 - que congelou os aluguéis -, somando-se a esse fato a organização de um sistema de vendas parceladas de terrenos (1937)10. Esse trinônio levou as camadas populares a se encaminharem para a autoconstrução periférica que, apesar dos inconvenientes de sua condição excêntrica, para com os núcleos de atividade econômica, eram acessíveis por ônibus, além de terem os lotes valores de aquisição mais módicos. No que se refere ao processo de industrialização e seus efeitos sobre a organização do território urbano, além da correlação evidente entre ambos os fenômenos, há que se indicar um evento específico, que viria a ter grande impacto sobre o modo como se organizou a cidade. Trata-se da opção resoluta que fez o país pela indústria automobilística, fato que se consolida já a partir da década

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Para referência rápida sobre estes dois pontos, ver: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp399.asp http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq031/arq031_03.asp http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao01/materia03/ http://web.infomoney.com.br/templates/news/view.asp?codigo=137540&path=/suasfinancas/im oveis/direitos/

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de 1950. Esta opção teve impacto decisivo sobre a constituição de toda a malha de transporte e escoamento de mercadorias do país, para não falar da configuração de sua matriz energética, que passou a ser altamente dependente de combustíveis fósseis. No que se refere à cidade de São Paulo particularmente, no período compreendido entre 1964 e 1985, se construíram muitas das maiores de suas vias públicas: Avenida Vinte e Três de Maio, Ruben Berta, Bandeirantes, Marginais do Pinheiros e Tietê; havendo ainda ampliação (alargamento) da Avenida Paulista, Faria Lima, entre outras. Em que pese o discurso desenvolvimentista, esta definição se mostrou igualmente vinculada a concepções sócio-políticas que espelham o que se tem de mais atrasado no país, ou seja, a opção preferencial pela solução individual e privada, a indiferença para as condições da maioria e a segregação espacial entre ricos e pobres. No que se refere à cidade propriamente dita, tal definição trouxe impactos de longo prazo que viriam a comprometer sua sustentabilidade, especialmente porque houve um grande comprometimento ambiental, que repercute sobre os índices de poluição do ar, mas também implica em poluição sonora e comprometimento de mananciais - devido à ocupação desordenada e periférica, que avançou sobre as cabeceiras de rios. Existe, ainda, o problema da impermeabilização do solo urbano, que fez da enchente uma consequência comum, ainda que não totalmente natural dos verões brasileiros.

A verticalização Data da década de 1940 a origem do impulso que conduziria à verticalização da cidade, processo que tem - novamente com relação a São Paulo - vínculo com dois institutos jurídicos específicos, ou seja, o estabelecimento de normas para regulamentar a copropriedade - condomínios (1928) - e a Lei do Inquilinato (1942). A rigor, o grande impulso para edificação de edifícios só ocorreria 40


após a publicação da Lei do Inquilinato, que inibiu a atividade rentista (conforme já havia foi indicado mais acima). A verticalização passa a ser um fenômeno que altera significativamente a paisagem urbana, contudo, apenas a partir das décadas de 1960 e 1970, até mesmo porque, nas décadas antecedentes havia uma grande resistência a essa solução arquitetônica, em função do estigma do cortiço. O policentrismo Deve-se considerar, ainda, como elemento da configuração da geografia da cidade o policentrismo que viria a caracterizá-la a partir também da década de 1950, com a constituição de subcentros como Pinheiros, Lapa, Santo Amaro, Brás, fenômeno este que seria suplementado mais recentemente com os eixos da Avenida Faria Lima, Luiz Carlos Berrini, e assim por diante. Não se pode deixar de fazer alusão, por fim, à grande atenção que o poder público conferiu historicamente às vias perimetrais, em detrimento das radiais. A rigor, este comportamento, além de privilegiar a população de renda mais alta pois as vias perimetrais ligam entre si bairros economicamente privilegiados -, acaba sendo de grande interesse de incorporadores e construtores, pois propicia uma enorme valorização dos terrenos e propriedades existente nessas localidades. O padrão de urbanização São três, portanto, no essencial, as características do processo de urbanização brasileiro, conforme ele é ilustrado a partir da experiência de São Paulo - que, de certo modo, se repete nas demais áreas Metropolitanas do país. a) Verticalização que se intensifica a partir especialmente das décadas de 1960-1970, em grande parte estimulada por financiamentos para tal fim; 41


b) Expansão horizontal de baixa densidade, caracterizada por um alargamento permanente da fronteira urbana. Este processo foi apoiado pelas políticas de financiamento e produção habitacional, assim como pela oferta reativa dos serviços públicos básicos11; c) Criação contínua de novos centros, bem como de novos bairros de classe média, sendo que estes últimos foram grandemente favorecidos pela disponibilidade de financiamentos para tal fim12.

Esse padrão de urbanização é uma consequência simultânea da velocidade de crescimento da população das cidades, da falta de planejamento, e da submissão quase irrestrita a uma ótica privada de desenvolvimento urbano, que instrumentalizou para seus fins limitados as políticas públicas correspondentes. Os princípios de expansão das cidades obedecem, portanto, a uma lógica, mas ela seguramente não é a do urbanismo, uma vez que aqueles se subordinam, a rigor, diretamente aos ditames da especulação imobiliária, que produz o espaço urbano como negócio entre particulares. A lógica especulativa A partir das décadas de 1950 a 1960 o empreendimento imobiliário mudou de escala, tornou-se grande negócio, sendo legítimo dizer, portanto, que sua atividade principal converteu-se efetivamente na produção da cidade, com funda-

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A população de baixa renda, em especial, acabou por se conformar a esta tendência, tendo se vulgarizado os loteamentos e conjuntos habitacionais periféricos, que se fundamentam do ponto de vista econômico no baixo preço dos terrenos e na autoconstrução. 12 O raciocínio de base de ambas as tendências tem por fundamento a percepção de que os centros tradicionais são lugares saturados, que deveriam ser objeto de descentralização, até mesmo administrativa. 42


mento em uma lógica articulada e sistemática de especulação e exploração, que tem por elemento essencial a ação do poder público, ao oferecer e disponibilizar os equipamentos urbanos que apoiam a expansão desordenada, mas extremamente lucrativa da cidade13. Para se mensurar a escala envolvida nesse processo de produção, basta lembrar que em 1940 a população urbana do país correspondia a 26,3% do total, ao passo que em 2000 atingiu-se algo em torno de 80%, com aproximadamente 70% dos brasileiros ocupando não mais do que 10% do território nacional. Do ponto de vista absoluto, partiu-se de 18,8 milhões de habitantes, para se atingir a cifra de 138 milhões 14. Nesse modelo de expansão - designado pela literatura especializada de padrão periférico de crescimento urbano - observa-se a seguinte dinâmica: retenção especulativa de áreas periféricas da cidade, que são objeto de projetos habitacionais descontínuos, os quais, por força mesmo de tal descontinuidade no sentido radial, obrigam o poder público a estender os serviços públicos básicos, até os limites extremos das linhas de expansão da cidade - onde efetivamente reside parte significativa e mais vulnerável de sua população. Em assim procedendo, além de sancionar movimentos de valor urbanístico duvidoso, o poder público acaba por propiciar a valorização de todas as áreas intermediá-

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A esse respeito, ver: São Paulo1975: crescimento e pobreza. Publicação de 1976, organizada pelo CEBRAP. São Paulo: Loyola, 1976 http://www.centrodametropole.org.br/divercidade/numero6/Introdu__o_Livro%5B1%5D.pdf MARICATO, Ermínia. Produção capitalista da casa e da cidade no Brasil. Alfa Ômega, 1969.

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MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Editora Vozes, Petrópolis, 2001. 43


rias vazias, que passam a ser comercializadas, então, com lucros excepcionais, pois incorporam, sem contrapartida privada, as melhorias que foram propiciadas pelo investimento estatal. A lógica deste modelo é reforçada por uma característica que o Brasil repete, acompanhando uma tendência mundial, ou seja, o elevado índice de metropolização – processo em que a urbanização intensa unifica espacialmente vários municípios. Para se ter uma ideia de ordem de grandeza desse fenômeno, basta lembrar que as nove principais regiões metropolitanas do país respondem por 30% da população urbana. A Região Metropolitana de São Paulo, a maior entre elas, congrega à sua vez 39 cidades, concentrando uma população aproxi15 mada de dezenove milhões de habitantes . Note-se que os preceitos especulativos não orientam apenas a expansão dos bairros populares das cidades, mas envolvem ainda, e de maneira muito especial, as regiões consideradas nobres. Como já se aludiu mais acima, a tendência a se investir em vias perimetrais, que articulam bairros de populações de alta renda, ou suas áreas de interesse comercial, encontra-se determinada pela valorização imobiliária. O mesmo ocorre na determinação dos eixos de expansão que atendem às demandas dessas mesmas populações, como é o caso, em São Paulo, do eixo sudoeste da cidade, que alinha uma série de bairros dos estratos econômicos superiores. De todo modo, no cômputo geral, o processo de urbanização resulta submetido a uma lógica privada, que faz dos descaminhos da cidade, da proliferação de sua miséria e falta de sustentabilidade, assim como da opulência excludente, meios de enriquecimento para uns poucos. A lógica da expansão urbana não

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www.emplasa.sp.gov.br 44


estaria completa, contudo, sem uma referência necessária e particular ao seu produto mais problemático: a cidade ilegal - a habitação subnormal e a favela em especial -, que estando para além do urbanismo, são os índices mais significativos do urbano, conforme o engendra o capitalismo periférico, do qual ela é indissociável. O processo de urbanização como produtor da habitação subnormal O processo de urbanização brasileiro se encontra com a lógica sistêmica da sociedade capitalista contemporânea - globalizada - na habitação subnormal e, em especial na favela, que é ao mesmo tempo seu produto reiterado e signo de uma desigualdade que não faz senão crescer. A Região Metropolitana de São Paulo conta com aproximadamente 5 milhões de pessoas, cerca de 27% da população total, vivendo em habitações irregulares: loteamentos ilegais, favelas e cortiços. O desemprego em níveis altos contribui para que as franjas das cidades sejam locais de risco urbano. A complexidade desse processo mostra-se pelo conjunto de algumas variáveis sociais, como a violência e a construção pelo próprio morador em áreas de risco geológico e de enchentes, em áreas de mananciais e outras áreas de proteção ambiental, em terrenos instáveis, como risco de desabamento ou contaminação do solo. As periferias apresentam essas características e outras, como saneamento básico precário e dificuldades de acesso aos serviços de saúde e educação. (SILVA et alli., 2004, p. 23)

Nesse processo que produz a habitação subnormal opõem-se, ainda, a cidade legal - capitalista em sua essência, provida dos serviços públicos essenciais, regular em seus vários aspectos, e regulamentada em tudo que é essencial (espa45


ço, portanto, da minoria) - e outra cidade, fundada no cubismo improvisado dos cortiços, nas formas íngremes em tons terracota das moradias de autoconstrução; na ilegalidade explícita da favela - irregular tanto juridicamente, quanto em seu urbanismo de ruas tortas e acidentais, no traçado incerto do barraco, nos caminhos necessários, mas impressionistas de seus habitantes -; todos eles submetidos a uma relação precária com o solo urbano, com o que se afirma um vínculo quase insubsistente como o mundo que, de toda forma, é o único que é dado a estes homens e mulheres viverem. O processo de urbanização se apresenta como uma máquina de produzir favelas e agredir o meio ambiente. O número de imóveis ilegais na maior parte das grandes cidades é tão grande que, inspirados na interpretação de Arantes e Schwarz sobre Brecht, podemos repetir que “a regra se tornou exceção e a exceção regra”. A cidade legal (cuja produção é hegemônica e capitalista) caminha para ser, cada vez mais, espaço da minoria. O direito à invasão é até admitido, mas não o direito à cidade. A ausência do controle urbanístico (fiscalização das construções e do uso/ocupação do solo) ou flexibilização radical da regulação nas periferias convive com a relativa “flexibilidade”, dada pela pequena corrupção, na cidade legal. Legislação urbana detalhista e abundante, aplicação discriminatória da lei, gigantesca ilegalidade e predação ambiental constituem um círculo que se fecha em si mesmo - Ermínia Maricato.

Este território da maioria, sem regras claras, lugar do precário e do improviso, da vida edificada sobre o espaço inóspito, é lugar de degredo, um infra mundo no qual ainda assim vivem homens verdadeiros, cidadãos de carne e osso, que aparecem para o poder público, e para a indiferença privada, como espectros, uma humanidade de segunda ordem, de que se apercebem apenas pelos custos que gera, e pelo peso que representa para os afortunados. 46


Revela-se nisso a natureza terrível do sistema econômico que se constrói, dia a dia, assim como a perversidade das relações que engendra. A rigor, como o índice de pujança econômica do capitalismo tardio (pós-industrial para muitos) é a própria redundância, ou seja, o crescimento econômico que desemprega em lugar de empregar aparece como questão, e exatamente nas cidades, a população que não pode se integrar naturalmente aos processos formais de trabalho e que, para seus fins, é inútil e inaproveitável. Esses “ociosos”, tão perpétuos quanto involuntários, esses desgarrados da história, se concentram e se aglutinam espacialmente, como produto necessário do próprio processo que produz a riqueza e, nesta concentração necessária, sujeitam-se a toda sorte de riscos, que já no pequeno horror de suas manifestações acidentais e aleatórias - a enchente, o deslizamento de terra, a chacina, a ausência de saneamento e serviços públicos em geral, etc. -, prenunciam possibilidades que vão para além do imaginável, mas não da história. (...) Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontra-se assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida. Para obter a faculdade de viver, para ter os meios para isso, eles precisariam responder às necessidades das redes que regem o planeta, as redes dos mercados. Ora, eles não respondem – ou antes, são os mercados que não respondem mais à sua presença e não precisam deles. Ou precisam muito pouco e cada vez menos. Sua vida, portanto, não é mais “legítima”, mas tolerada. Importuno, o lugar deles neste mundo lhes é consentido por pura indulgência, por sentimentalismo, por reflexos antigos, por referência ao que por muito tempo foi considerado sagrado (teoricamente, pelo menos). 47


Pelo medo do escândalo. Pelas vantagens que os mercados ainda podem tirar disso. Pelos jogos políticos, pelas jogadas eleitorais baseadas na impostura de ver em curso uma “crise” provisória que cada campo pretende ser capaz de estancar. E depois, determinado bloqueio atávico das consciências impede de aceitar de imediato uma implosão. É difícil admitir; impensável declarar que a presença de uma multidão de humanos se torna precária, não pelo fato inelutável da morte, mas pelo fato de que, enquanto vivos, sua presença não corresponde mais à lógica dominante, uma vez que já não dá lucro, mas, ao contrário, revela-se dispendiosa, demasiado dispendiosa. Ninguém ousará declarar, numa democracia, que a vida não é um direito, que uma multidão de vivos está em número excedente. Mas num regime totalitário, será que não se ousaria? Já não se ousou? E, embora deplorando, será que já não admitimos o princípio, quando a uma distância igual àquela de nossos locais de férias a fome dizima populações? (FORRESTER, 1997, p. 27-8)

O que emerge dessas questões? As interferências que devem ser associadas às iniciativas de reforma urbana são inúmeras, e de distintas naturezas, chegando, deve-se admiti-lo, até mesmo àquelas que têm conformação estritamente técnica - o que exige, evidentemente, grande sensibilidade e habilidade política, para negociar soluções que distribuam, de maneira equilibrada, custos e benefícios. Essas particularidades e peculiaridades, naquilo que couber ao escopo do presente trabalho, serão devidamente detalhadas mais adiante. Contudo, sob o ponto de vista dos desenvolvimentos que foram feitos nesta seção, ou seja, da reforma urbana pensada a partir do socialismo e suas bandeiras, há uma questão que se apresenta como absolutamente fundamental. Trata-se da luta para tornar a cidade um espaço 48


efetivamente republicano, onde convivam legitimamente as diferenças, onde se consagrem e pratiquem os direitos humanos em plenitude. É preciso, portanto, a todo custo, segundo esta visão, desconstruir e evitar toda e qualquer espécie de segregacionismo, que materialize mundos fechados, onde a alteridade é desterrada, para afirmação do estranhamento geral, e da hostilidade como norma de relacionamento. As implicações dessa assertiva para a vida da cidade têm proporções imensas. Em primeiro lugar, e de maneira mais direta, quando se trata de lidar com a habitação popular e especialmente com as favelas. É preciso evitar, nessa questão, reproduzir as práticas históricas e conservadoras - quando não claramente reacionários -, que se fundamentam no imaginário dos Parques Proletários16.

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Para referência rápida ver:

Breve histórico da questão habitacional na cidade do rio de janeiro Fernanda Guimarães Correia http://www.achegas.net/numero/31/fernanda_correa_31.pdf Educação, participação, urbanização: uma contribuição à análise histórica das propostas institucionais para as favelas do Rio de Janeiro, 1941-1980 Victor Vincent Valla Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ, Rio de Janeiro. http://www.scielo.br/pdf/csp/v1n3/v1n3a02.pdf Habitação e questão social - análise do caso brasileiro Profa. Maria de Fatima Cabral Marques Gomes Escola de Serviço Social/ Universidade Federal do Rio de Janeiro http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-26.htm Habitação Social na Região Metropolitana do Rio de Janeiro Adauto Lucio Cardoso, Rosane Lopes de Araujo e Will Robson Coelho http://www.habitare.org.br/pdf/publicacoes/arquivos/colecao7/capitulo_2.pdf 49


Além de ter eficácia duvidosa, essas alternativas, que implicam na remoção da população favelada para “bairros civilizados”, desconhecem não apenas os fundamentos socioeconômicos com que nascem as favelas, mas também negam a seus habitantes o direito à cidade. Não se reconhece o direito daquela população de estar ali, muito comumente porque, de fato, a favela está instituída sobre a ocupação irregular e ilegal do solo urbano. Ora, cabe ao poder público interferir discricionariamente, valer-se de suas prerrogativas, para poder garantir o princípio de equidade. À favela - quando não envolve um problema ambiental, ou se encontra em situação de risco - deve ser concedido o legítimo direito de cidadania, para o que se deve estabelecer os recursos necessários não apenas para urbanizá-la, mas igualmente para provê-la suficientemente dos

“Aldeias do mal” Associando-as ao crime e à falta de higiene, governantes tentaram acabar com as favelas do Rio desde o momento em que elas surgiram, há mais de cem anos Romulo Costa Mattos http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=1152 Sítios: Favela tem memória. http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=70&from_info _index=11&sid=7 Revista Espaço Acadêmico. http://www.espacoacademico.com.br/035/35elima.htm Armazém de Dados – RJ. http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/arquivos/64_o%20rio%20de%20janeiro%20e%20o%20fa vela-bairro.PDF Apresentação – Power Point: http://www.google.com.br/search?q=parques+prolet%C3%A1rios&hl=pt-BR&client=firefoxa&rls=org.mozilla:pt-BR:official&pwst=1&start=20&sa=N 50


serviços públicos básicos, ou seja, educação, saúde, transporte e saneamento ambiental. Do ponto de vista estritamente socialista está envolvida aqui uma questão de enorme importância. Uma sociedade fraterna futura não pode ser edificada a partir da legitimação de lugares e posições que correspondem, “naturalmente”, a classes ou indivíduos. O lugar natural do pobre não é a periferia, o bairro operário limpinho e distante, onde a “pobreza” não é vista17, o que faculta, por outro lado, à “riqueza” andar inconsciente de si, por uma cidade que, a rigor, se edifica única e exclusivamente para ela. Esse é o imaginário de apartheid, onde os miseráveis como que brotam pela manhã, no solo da cidade, para servir resignados aos seus potentados, que, permanecem benignos, porque veem instaurado o mundo, como um ordenamento imutável - a sua ordem. A cidade que se organiza segundo estes princípios institui o gueto que, à sua vez, é um convite ao pogrom - que, seguindo nossas tradições civilizatórias, poderia tranquilamente ser evocado pelo nome de chacina. Talvez apenas no urbanismo o projeto geral de poder e as instâncias de dominação, que orientam uma sociedade determinada, adquiram sua materialidade plena. Nele se encontram cristalizados, portanto, os sentimentos mais íntimos, os desejos coletivos mais inconscientes, segundo uma forma direta e imediatamente concreta, despojada de todas as meias voltas e frases edulcoradas, das

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O Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, disse uma coisa que achei muito importante quando estava assistindo ao documentário “174”: esses jovens de comunidades, sejam eles do tráfico ou não, são seres invisíveis. As pessoas não os enxergam a menos que estejam com uma AR-15 na mão ou com uma AK-47, oferecendo perigo. Fora disso, são invisíveis. Não são representados na televisão, não são representados politicamente, não são representados em nada; não se precisa deles para nada (...). (SILVA; BARBOSA, 2005, p. 148). Depoimento de MV Bill. 51


justificativas de ocasião, da moralidade lacrimosa que assola e assombra cada época histórica determinada. No centro desse mundo de coisas está o mais onírico dos seus objetos, a própria cidade de Paris. Mas somente a revolta desvenda inteiramente seu rosto surrealista (ruas desertas, em que a decisão é ditada por apitos e tiros). E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade. Nenhum quadro de De Chirico ou de Max Ernest pode comparar-se aos traços fortes de suas fortalezas internas, que precisam primeiro ser conquistadas e ocupadas, antes que possamos controlar seu destino e, em seu destino, no destino das massas, o nosso próprio destino. (...) (BENJAMIN, 1985, p. 26)

O urbanismo restitui sob a forma mineral - pedras e concreto, ferro e aço, madeirame e zinco - aquilo que permanecia latente no psiquismo (coletivo). A cidade materializada, com todos os seus horrores e desespero, com sua falta de solidariedade e indiferença, com seus projetos de colocar os miseráveis para além de suas fronteiras, não é um pesadelo que se opõe aos sonhos idílicos de cidade, mas a exata concretização de um desejo coletivo específico18 e inconsciente de cidade, ou seja, o aniquilamento de todo e qualquer traço que una a mais alta respeitabilidade moral e social, a seu fundamento material insuperável - a exploração. A violência sistêmica e constitutiva que a cidade procura a todo o custo exilar, na forma alucinada da segregação espacial entre a riqueza e a pobreza; entre beneficiários da exploração e explorados, não apenas retorna como homicídio, roubo e furto: ela se plasma no próprio urbanismo, como registro material da agressividade e da agressão. Em suas formas puramente arquiteturais, urbanísticas, a cidade não apenas representa o imaginário que a fundamenta; ela

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No sentido de classe e, aqui, referente às classes dominantes. 52


materializa metódica e sistematicamente os intentos e desejos do projeto hegemônico que a edifica. A segregação, em todos os seus matizes, ou seja, espacial, cultural, educacional, etc. é o elemento nuclear e necessário desse projeto hegemônico (e, portanto, classista). Exatamente por isso, o combate por uma cidade republicana é fundamental. O espaço da luta, portanto, é o da garantia da diversidade e da pluralidade, em cada metro quadrado da polis. Somente essa luta evita a reprodução continuada da catástrofe e do genocídio, conforme eles se configuram no assassinato sistemático de jovens, pobres e, especialmente, aqueles que são também negros. A cidade está organizada para matá-los; é preciso interromper esta matança, pois enquanto ela permanecer naturalizada, não haverá qualquer esperança de civilização. É urgente construir outra cidade, onde esses desterrados encontrem cidadania plena. Para tanto, eles devem resistir em seus territórios e exigir da cidade seu direito a lá estar como a mais absoluta dignidade, pois somente assim, somente nesta luta, se pode instituir a pedagogia que conduz a uma civilização que acolhe a todos e não perde nenhum; que celebra e se reconhece também no diferente e na diferença. Essa reflexão em torno de princípios pode, ainda, indicar elementos que deveriam estar contidos em outra cidade, aquela que se organiza para a vida de todos, e não para uma relação privada da riqueza para consigo mesma. É preciso, portanto, priorizar o transporte coletivo, em detrimento dos carros; repensar os shopping centers, para privilegiar o comércio de rua; planejar os bairros para que eles não sejam exclusivos, quer para populações específicas, quer para atividades; distribuir equanimemente os equipamentos de cultura e lazer, educação e saúde; buscar a sustentabilidade da cidade a todo custo, impondo, inclusive, limitações ao direito à fruição perdulária do espaço urbano. É preciso embelezar a cidade, o que exige a reconstrução da representação que se faz de 53


espaço público, que em lugar de ser área de ninguém, deve ser a exteriorização e materialização do vínculo comum e fraterno que erige a nação. O ideal socialista de cidade, assim compreendido, é de máxima modernidade, pois ele requer e evoca a pluralidade como antinomia da segregação, ou seja, ele deseja que todos os espaços sejam espaços de todos, dedicados, portanto, não a suprimir as diferenças, mas articulá-las em torno do direito legítimo de existência e coexistência pacífica, ainda que tensa. Celebra-se, deste modo, a vida, em lugar da catástrofe naturalizada. Estatuto das Cidades O Estatuto da Cidade está vinculado à questão do desenvolvimento urbano, fundado no cumprimento da função social da cidade. Trata-se da Lei Federal de n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, que somada a outras legislações compõe os instrumentos urbanísticos federais. Nos últimos 30 anos foram editados três instrumentos urbanísticos federais importantes: 

 

Lei Complementar 14, de 8/6/73, que cria as regiões metropolitanas e instaura os primeiros instrumentos de planejamento federal no campo urbano e territorial; Lei 6.766, de 19/12/79, recentemente alterada pela Lei 9.875, de 29/01/99, que dispõe sobre o parcelamento do solo; Lei de Loteamentos e Lei 6.803 de 2/7/80, que dispõe sobre as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição. O Estatuto vem complementar a legislação até então existente e dar à Política Urbana instrumentos eficazes de gestão.

O debate em torno do Estatuto da Cidade no Congresso Nacional (Câmara e Senado) levou 10 anos. A demora na promulgação da Lei n.º 10.257 dá a me54


dida de sua importância. Sancionada em julho de 2001, torna-se o grande instrumento regulador e definidor de diretrizes gerais da política urbana (a Lei regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal). Diferentemente da legislação tradicional, o Estatuto não apresenta fórmulas, parâmetros ou receituário de passos e instrumentos a serem seguidos, na crença de um suposto planejamento urbano racional e salvador, que garanta uma cidade perfeita e isenta de conflitos. Estabelece de forma clara e aberta formas possíveis de diálogo entre planejamento e gestão, planejamento e política. De competência do município, a política urbana proposta no Estatuto tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana mediante diretrizes gerais: Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;  Gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;  Cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;  Planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;  Oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; 55


Ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a:       

 

 

Utilização inadequada dos imóveis urbanos; Proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; Parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana; Instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como polos geradores de tráfego, sem a previsão da infraestrutura correspondente; Retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; Deterioração das áreas urbanizadas; Poluição e a degradação ambiental;

Integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência; Adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; Justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; Adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; Recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; Proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; Audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos 56


processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; Regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação sócio-econômica da população e as normas ambientais; simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.

Além das Diretrizes gerais o Estatuto trouxe novos poderes para as Administrações Municipais, através de institutos tributários, financeiros, jurídicos e políticos, no sentido de atender mais plenamente à função social da propriedade e da cidade (o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo, e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública). Destaca-se a seguir estes instrumentos que estão à disposição dos governos locais, para a implementação da Reforma Urbana. Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios Em diversas cidades brasileiras, há uma quantidade expressiva e inaceitável de terrenos ociosos no tecido urbano, estocados em geral com fins especulativos. O proprietário aguarda a valorização do lugar, a partir da intervenção, exclusiva e privilegiada, do poder público com a instalação de infraestrutura básica e implantação de equipamentos urbanos essenciais. 57


Além de interferirem negativamente no mercado de terras, estas áreas oneram o poder público municipal, pois, muitas vezes, o município se vê obrigado a atender às justas reivindicações dos moradores de áreas desprovidas de toda e qualquer infraestrutura e, nesta tarefa, dota de serviços e equipamentos também os terrenos ociosos existentes no caminho. A retenção especulativa de imóvel urbano ocorre quando o respectivo proprietário não investe em seu terreno e também não o vende, esperando que seu valor de mercado aumente ao longo do tempo, em virtude dos investimentos feitos na vizinhança pelo poder público e, também, por agentes privados. O prejuízo que a ociosidade de imóveis pode causar à população de uma cidade ganha efetiva expressão econômica no alto custo final, por habitante, de equipamentos e serviços públicos. Isso acontece porque a existência de muitos terrenos baldios no interior de bairros já consolidados, aos quais se sobrepõem loteamentos e conjuntos residenciais dispersos, conduzem a um sobre-esforço financeiro dos entes públicos, que se veem obrigados a expandir sua rede de serviços a regiões onde a infraestrutura instalada ficará ociosa, propiciando, no entanto, ganhos patrimoniais aos proprietários de terrenos estocados para fins exclusivamente especulativos19. O artigo 182 da Constituição Federal, em seu parágrafo quarto, diz que é facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no Plano Diretor, exigir nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: parcelamento, edifi-

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Do ponto de vista econômico os especuladores se apropriam sem contrapartida financeira de uma externalidade positiva, que, à sua vez, é correspondida por um ônus que se distribui para o conjunto de moradores da cidade, na forma de serviços públicos mais caros e/o mais precários. 58


cação ou utilização compulsórios; imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo; e a desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública. O principal objetivo destes três instrumentos, de aplicação sucessiva, é o combate à retenção de terrenos ociosos em setores da cidade que, cada vez mais, se valorizam ao serem dotados, pelo poder público municipal, de infra-estrutura e serviços urbanos, aumentando os custos de urbanização e expandindo, desnecessariamente, as áreas urbanas. O Estatuto da Cidade determina a criação de lei municipal específica para reger o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado. Esta lei deverá fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação, aplicando-se em área incluída no Plano Diretor. É considerado subutilizado o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no Plano Diretor ou em legislação dele decorrente. O critério da subutilização aplica-se tanto a glebas passíveis de parcelamento – possibilitando ampliar o acesso à terra urbana para fins de moradia –, quanto à ocupação de lotes com construções para diferentes usos. Com a aplicação deste primeiro instrumento procura-se otimizar os investimentos públicos realizados e penalizar o uso inadequado, fazendo com que a propriedade urbana cumpra a sua função social. Além disso, poderá ser ampliada a oferta de imóveis no mercado imobiliário e promovido o uso e a ocupação de imóveis em situação de abandono, especialmente aqueles localizados na área central das grandes cidades, que poderão abrigar, por exemplo, o uso habitacional como forma de revitalização do centro urbano. 59


A ideia central desse instituto é punir com um tributo de valor crescente, ano a ano, os proprietários de terrenos cuja ociosidade ou mau aproveitamento acarrete prejuízo à população. Aplica-se aos proprietários que não atenderam à notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. O objetivo é estimular a utilização socialmente justa e adequada desses imóveis ou sua venda. Neste caso, os novos proprietários se responsabilizarão pela adequação pretendida. Imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo O IPTU progressivo no tempo está na seqüência das sanções previstas pelo art. 182 da Constituição Federal, que se vincula ao não cumprimento do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. A aplicação do imposto predial e territorial progressivo no tempo ocorrerá, segundo o Estatuto, mediante elevação da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos, tendo como limite máximo 15% do valor venal do imóvel. As melhores perspectivas de efetividade do IPTU progressivo no tempo tende a ocorrer em municípios que possuam um adequado sistema de cobrança, por tanto, é fundamental a permanente organização e atualização do cadastro imobiliário através da modernização do sistema de arrecadação das rendas municipais. O imposto progressivo no tempo, para ser aplicado com justiça e eficácia, requer um preparo cuidadoso por parte do poder público municipal. Ao considerar sua adoção num determinado município cabe, inicialmente, avaliar se a cidade tem de fato problemas decorrentes da ocupação excessivamente dispersa, e se o governo municipal está preparado para adotar um instrumento novo e relativamente sofisticado de gestão. 60


Desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo no tempo, sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o poder público municipal poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. As áreas que chegarem a ser objeto de desapropriação, nesta seqüência de procedimentos, poderão servir para promoção de transformações na cidade, dentre elas, por exemplo, a implantação de unidades habitacionais ou a criação de espaços públicos para atividades culturais, de lazer e de preservação do meio ambiente; bem como a destinação de áreas para atividades econômicas voltadas à geração de renda e emprego para população pobre. Sua utilização somente se dará no caso de ineficácia das penalidades anteriormente citadas, quando, então, o poder público municipal poderá dar ao terreno ocioso a destinação socialmente mais adequada. Direito de superfície O direito de superfície possibilita que o proprietário de terreno urbano conceda, a outro particular, o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo de seu terreno, em termos estabelecidos em contrato – por tempo determinado ou indeterminado – e mediante escritura pública firmada em cartório de registro de imóveis. O direito de superfície surge de convenção entre particulares. O proprietário de imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado poderá atender 61


às exigências de edificação compulsória estabelecida pelo poder público, firmando contrato com pessoa interessada em ter o domínio útil daquele terreno, mantendo, contudo, o terreno como sua propriedade. Os interesses de ambos são fixados mediante contrato, onde as partes estabelecem obrigações e deveres entre si. O direito de superfície dissocia o direito de propriedade do solo urbano do direito de utilizá-lo, com a finalidade de lhe dar destinação compatível com as exigências urbanísticas. Quem se responsabilizar por tal tarefa adquire o direito de uso das edificações e das benfeitorias realizadas sobre o terreno. Isto quer dizer que se transfere para quem se beneficia do direito de superfície a prerrogativa de uso daquele espaço. Findo o contrato, as benfeitorias realizadas no terreno serão revertidas para o proprietário do terreno, sem indenização. Deve-se observar que o contrato pode estabelecer se o proprietário está ou não obrigado a indenizar quem usou o direito de superfície em seu terreno. A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa e quem usufrui da superfície de um terreno responderá, integralmente, pelos encargos e tributos que na propriedade incidirem, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão, salvo disposição contrária estabelecida em contrato. Tal direito se extingue, caso haja desvio da finalidade contratada. A previsão de adoção, pelo Estatuto da Cidade, do direito de superfície visa, fundamentalmente, estimular a utilização de terrenos urbanos mantidos ociosos. Este direito permite oferecer ao proprietário de solo urbano uma vantajosa alternativa para cumprimento da exigência de edificação e utilização com62


pulsórios, sem que se cumpra a seqüência sucessória prevista, e onde os benefícios da adoção deste instrumento serão rebatidos na cidade como um todo. Direito de preempção O direito de preempção (ou de preferência) é instrumento que confere preferência ao poder público municipal, para a compra de imóvel urbano, respeitado seu valor no mercado imobiliário, e antes que o imóvel de interesse do município seja comercializado entre particulares. Para usufruir deste direito, o Município deverá possuir lei municipal, baseada no Plano Diretor, que delimite as áreas onde incidirá a preempção. A lei que fixa as áreas objeto de incidência deste direito não poderá vigorar por mais de cinco anos, porém, pode ser renovada após um ano de seu término. Ao instituir o direito de preferência, a lei municipal deve enquadrar cada área em uma ou mais finalidades relacionadas no Estatuto das Cidades. O instrumento permite, ainda, que o poder público tenha preferência na aquisição de imóveis de interesse histórico, cultural ou ambiental, para que estes recebam usos especiais e de interesse coletivo. Permite, também, a aquisição de áreas para a construção de habitações populares, atendendo a uma demanda social, bem como para a implantação de atividades destinadas ao lazer e recreação coletivos, como, por exemplo, parques, ou mesmo para a realização de obras públicas de interesse geral da cidade. O uso deste instrumento pelo poder público municipal permite, também, que o Município constitua gradativamente, se o desejar, e a partir de cuidadoso planejamento, uma reserva fundiária ou estoque de terrenos, sem a necessidade de adoção de medidas drásticas como a desapropriação, que muitas vezes acarretam problemas sociais e jurídicos. 63


É importante destacar os limites existentes para a adoção do direito de preempção. Um deles diz respeito à disponibilidade de recursos públicos para a aquisição preferencial de imóveis. Além disso, faz-se necessário que o poder público possua um sistema de planejamento que permita enquadrar as áreas em finalidades específicas e programadas. Para sua adoção, em bases sólidas, é fundamental o conhecimento e o acompanhamento da dinâmica do mercado imobiliário. Outorga onerosa do direito de construir A outorga onerosa do direito de construir consiste na possibilidade de o município estabelecer relação entre a área edificável e a área do terreno, a partir da qual a autorização para construir passaria a ser concedida de forma onerosa. Por exemplo: a relação 1 possibilita construir 1 vez a área do terreno, a relação 2, permite construir 2 vezes a área do terreno, e assim por diante. Sendo assim, o proprietário poderá construir para além da relação estabelecida, porém, pagando ao poder público este direito concedido, com valor proporcional ao custo do terreno. O Plano Diretor deverá fixar áreas nas quais o direito de construir e de alteração de uso poderá ser exercido, estabelecendo relação possível entre a área edificável e a do terreno. Poderá, também, fixar um coeficiente de aproveitamento básico, único para toda a zona urbana, ou nos casos necessários, adotar coeficiente diferenciado para áreas específicas. O Plano Diretor definirá, ainda, os limites máximos de construção a serem atingidos, considerando a infra-estrutura existente e o potencial de densidade a ser alcançado em cada área. 64


As condições a serem observadas para a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso deverão constar em lei municipal específica, onde serão estabelecidos: a fórmula de cálculo para a cobrança; os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga; e a contrapartida do beneficiário. Os recursos provenientes da adoção da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso deverão ser aplicados na construção de unidades habitacionais, regularização e reserva fundiárias, implantação de equipamentos comunitários, criação e proteção de áreas verdes ou de interesse histórico, cultural ou paisagístico. A utilização deste instrumento possibilita um maior controle das densidades urbanas; permite a geração de recursos para investimentos em áreas pobres; e promove a desaceleração da especulação imobiliária. Cabe registrar, contudo, que a sua adoção exige, do poder público, controles muito ágeis e complexos. Transferência do direito de construir Este instrumento compreende a faculdade conferida, por lei municipal, ao proprietário de imóvel, de exercer, em outro local, o direito de construir previsto nas normas urbanísticas, e que ainda não exercido. Trata-se de um instrumento que possibilita flexibilidade na aplicação da legislação urbanística e na gestão urbana, tendo inúmeras aplicações, como, por exemplo, a preservação de imóveis de interesse histórico, proteção ambiental ou operações urbanas. O direito de transferência previsto no Plano Diretor, ou em legislação urbanística dele decorrente, só poderá ser aplicado quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de: a) implantação de equipamentos urbanos e comunitários; b) preservação, quando o imóvel for considerado de interesse 65


histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; e c) servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social. No Brasil, a origem desse instrumento está vinculada à proteção do ambiente natural e do construído (patrimônio arquitetônico), objetivando o incentivo a sua preservação. Sendo parte de uma política de incentivo à preservação, tal instrumento deve ter sua adoção inserida em um planejamento cuidadoso, com objetivos e metas bem definidos, e custos avaliados em função do interesse público. Cabe lembrar que, nos procedimentos da transferência, o poder público deve considerar a possibilidade da vizinhança absorver o impacto urbanístico decorrente, bem como o possível aumento de densidade provocado pelos índices transferidos. Outra exigência se refere à concordância dos proprietários para efetiva negociação e à própria capacidade do poder público para gerenciar o processo. Operações urbanas consorciadas As operações urbanas consorciadas referem-se a um conjunto de intervenções e medidas, coordenadas pelo poder público municipal, com a finalidade de preservação, recuperação ou transformação de áreas urbanas, contando com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados. O objetivo é alcançar, em determinada área, transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental. A lei específica de aprovação do instrumento deverá conter o plano de operação urbana consorciada, definindo a área a ser atingida, com programa básico de sua ocupação; a previsão de um programa de atendimento econômico e so66


cial para a população diretamente afetada pela operação; as finalidades da operação; um estudo prévio de impacto de vizinhança; a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da utilização dos benefícios previstos na lei; e a forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhada com representação da sociedade civil. A operação urbana possibilita ao município uma maior amplitude para tratar de diversificadas questões urbanas, e permite que delas resultem recursos para o financiamento do desenvolvimento urbano, em especial quando as operações urbanas envolvem empreendimentos complexos e de grande porte. Dessa forma, o poder público poderá contar com recursos para dotar de serviços e de equipamentos as áreas urbanas desfavorecidas. Para viabilizar uma operação urbana, há a possibilidade de serem previstas a modificação de índices e de características do parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo; as alterações das normas para edificação; a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente; e a emissão, pelo município, de certificados de potencial adicional de construção, a serem alienados em leilão. Os condicionantes impostos para aplicação deste instrumento referem-se à dinâmica do mercado imobiliário, à existência de interesse dos agentes envolvidos na participação e à capacidade do poder público em estabelecer parcerias e mediar negociações, bem como firmar sua competência para gerir a aplicação da operação urbana consorciada. Estudo de impacto de vizinhança O Estatuto da Cidade estabelece que lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana, que dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento, a cargo do poder público municipal. 67


O EIV será executado de forma a contemplar a análise dos efeitos positivos e negativos do empreendimento ou atividade na qualidade de vida da população residente na área e em suas proximidades. O estudo de impacto de vizinhança incluirá, ao analisar os impactos do novo empreendimento, pelo menos: o aumento da população na vizinhança; a capacidade e existência dos equipamentos urbanos e comunitários; o uso e a ocupação do solo no entorno do empreendimento previsto; o tráfego que vai ser gerado e a demanda por transporte público; as condições de ventilação e de iluminação; bem como as conseqüências, para a paisagem, da inserção deste novo empreendimento no tecido urbano e, também suas implicações no patrimônio cultural e natural. O EIV, além de contemplar as questões acima citadas, deverá considerar a opinião da população diretamente afetada pelo empreendimento e a abrangência destes impactos, que podem vir a se estender para área além dos limites da própria cidade. Registra-se que o Estudo de Impacto de Vizinhança não substitui a elaboração e a aprovação de Estudo Prévio de Impacto Ambiental – EIA, requerido nos termos da legislação ambiental. Usucapião especial de imóvel urbano O Estatuto da Cidade trata da usucapião especial de imóvel urbano, regulamentando o artigo 183 da Constituição Federal, que estabelece a aquisição de domínio para aquele que possuir área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, com a ressalva de que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, poderá ocorrer a usucapião 68


coletiva, desde que os possuidores também não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Acerca da usucapião constitucional (art. 183), cumpre notar que o instituto não tem as mesmas características daqueles regulados pelo Código Civil. A Carta Magna introduz o instituto da usucapião pró-moradia em áreas urbanas, acrescido, pelo Estatuto da Cidade, da figura da usucapião coletiva, cuja previsão é importante para a regularização fundiária de favelas, loteamentos clandestinos e cortiços. A usucapião é instituto jurídico antigo, aplicado na área rural, e criado com fundamento na função social da propriedade, embora este princípio ainda não fizesse parte da Constituição Federal. A usucapião trata da posse efetiva do bem, transformando-a em domínio, propriedade ou em outro direito real, após o mero decurso do prazo previsto em lei. Portanto, não é de hoje que a lei brasileira reconhece direitos ao possuidor perante o proprietário que não utiliza efetivamente sua propriedade. Esse direito será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Efetivamente, a usucapião coletiva está voltada para a promoção da justiça e para a redução das desigualdades sociais. A histórica negação da propriedade para grandes contingentes populacionais residente em favelas, invasões, vilas e alagados, bem como em loteamentos clandestinos ou em cortiços pode ser corrigida por este instrumento, cuja meta é o atendimento das funções sociais da cidade e da propriedade, possibilitando a melhoria das condições habitacionais dessas populações, tanto em áreas urbanas já consolidadas, como em áreas de expansão. 69


Importante destacar que o Estatuto da Cidade serve principalmente para a obtenção de uma gestão democrática da cidade, favorecendo as Administrações Municipais que têm o compromisso de garantir uma melhor qualidade de vida urbana para a maioria dos seus cidadãos. De tudo isso, o ponto central, aquele deflagra todo o processo de implantação de uma política municipal de urbanização e de gestão democrática da cidade é o PLANO DIRETOR. Instrumento de planejamento municipal, que com a nova lei passou a ser obrigatório (ressalvado, desde que mais favoráveis, as disposições contidas nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas Municipais) para: Com mais de vinte mil habitantes;  Integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;  Onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal (imposto progressivo);  Integrantes de áreas de especial interesse turístico;  Inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. A elaboração do Plano Diretor Municipal, que deve abranger todo o território do município e não somente a zona urbana, deve garantir a ampla participação dos organismos governamentais, não governamentais, sociedade civil e forças empreendedoras, assim como a ampla publicidade através de audiências públicas, debates e acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos. 

O processo de elaboração do Plano Diretor é um processo político, democrático e público na definição de qual é a cidade que queremos, no presente e no futuro. 70


O eixo norteador deve ser a participação popular, garantida mediante a constituição de órgãos colegiados de política urbana, debates, audiências, consultas públicas, conferências; planos e projetos de lei de iniciativa popular, referendos, plebiscitos. Dentro desse esquema, a participação popular pode encontrar lugar em todas as dimensões da política urbana: a formulação de instrumentos urbanísticos, a negociação e aprovação na Câmara, a implementação, a gestão cotidiana e, se necessário, sua revisão. Finalmente, o Estatuto da cidade, com seus Plano Diretores, é o grande instrumento que a sociedade passa a ter na busca da melhoria da qualidade de nossas cidades. Ele nos assegura a oportunidade de intervir no território municipal, criando novos parâmetros para um crescimento mais justo e equilibrado de nossas cidades. Por outro lado, persiste a possibilidade de sua instrumentalização para fins excludentes e populistas. Por tanto, há a necessidade de adoção de posturas sóbrias e não incorrer no erro de acreditar que a existência de um dispositivo jurídico, por si só, vá garantir uma melhora de qualidade de vida. Pelo contrário, as forças que se opõe à democratização do acesso à terra urbana continuam presentes e atuantes e permanecem com um acesso privilegiado aos canais de decisão, significando que se trata de uma luta sem descanso por mais igualdade em nossa realidade urbana. Mas é exatamente esse o papel da política, e o Estatuto da Cidade prevê um espaço em que ela se efetive. O restante está a cargo da capacidade de organização e pressão dos diferentes atores, em especial da vontade política dos administradores municipais em democratizarem a gestão da cidade.

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Bibliografia: O socialismo e o desafio das cidades: ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos, Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editora Ltda.. 1985. Tradução: Guido Antonio de Almeida. AHMAD, Aijaz Problemas de classe e cultura in: Wood, Ellen Meiksins e Foster, John Bellamy (org.). Em defesa da história – Marxismo e Pós-Modernismo. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editores, 1999. Tradução Ruy Jugamm. ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: Dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Editora Unesp, 4ª Reimpressão, 1996. Tradução: Vera Ribeiro. ATHAYDE, Celso; MV Bill. Falcão – Meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo, SP: 7ª edição, Editora Brasiliense, 1985.Tradução: Sergio Paulo Rouanet. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense S.A., 3ª edição, 2000. Tradução José Carlos Martins Barbosa, Hemerson Alves Baptista. BENJAMIN, Walter. The Árcades Projetct. New York: Harvard University Press, 1999. Tradução: Howard Eiland; Kevin McLaughlin. CANDIDO, Malta Campos; GAMA, Lucia Helena; SACCHETTA, Vladimir (organizadores). São Paulo, metrópole em trânsito: percursos urbanos e culturais. São Paulo: Editora Senac, 2004. 73


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