coleta e broto

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desvios gráficos editora



coleta e broto projeto artístico de Marcia Sousa curadoria e texto de Silvana Macêdo fotografia de Alecxandro Nascimento

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coleta e broto Fundação Cultural Badesc 19 de fevereiro a 16 de março de 2019 Florianópolis, Santa Catarina, Brasil

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a delicadeza como resistência*

Sementes voadoras, teriam elas alguma substância? Em algumas delas, suas asas são tão delgadas e transparentes que quase não existem. E ainda assim vivem, resistentes em sua delicadeza, frente às intempéries e a todo tipo de agressões advindas do fora. Seus voos são silenciosos, solitários e breves: poéticas da quietude e da suavidade. Não alardeiam suas quedas, não há choque, holofotes, cabem no exato espaço entre dois tempos ínfimos. Ao longo da realização desse conjunto de trabalhos, perguntei-me: como posso intervir no mundo de forma ética, silenciosa e delicada? Como imprimir leveza ao olhar, ao gesto artístico e às relações criadas ao longo dos processos envolvidos nessas reflexões? Encontrei respostas ao deixar-me reencantar pelo mundo orgânico e vegetal que rodeia a tudo e a todos. Ao observar o voo de uma semente alada, ao procurar pensar como as gavinhas de uma parreira, ao observar casas ermas que brotam e se tornam precários solos para jardins espontâneos... A delicadeza, portanto, emerge no trabalho e na vida como uma decisão poética e política, como uma atitude de resistência a um momento árido e turbulento, a um entorno atravessado pelo movimento e ruído constantes, pelo tempo acelerado e escasso e pela desatenção ao instante vivido. Denilson Lopes, em “A delicadeza: estética, experiência e paisagens” (2007, p. 18) escreve: “a delicadeza não é, portanto, só um tema, uma forma, mas uma opção ética e política, traduzida em recolhimento e desejo de discrição em meio à saturação de

*Texto adaptado de minha tese de doutoramento intitulada “Reter o breve: de casas que brotam, desenhos que proliferam e coletas que tocam o tempo”, apresentada em 2016 ao Programa de Pósgraduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 7


informações.” É também uma decisão por tempos mais lentos, por possibilidades de contemplação, por aberturas ao minúsculo, ao sutil, ao frágil e ao efêmero. Tomar partido da delicadeza. Talvez esse seja um modo de existir no mundo de forma mais silenciosa, criando lugares quietos, caminhando com passos leves, respeitosamente, movendo-me ao mesmo tempo próxima ao chão e ao céu. Talvez essa seja a forma de permanecer no espectro quase inexistente do infinitesimal: tempos e dimensões levemente maiores que zero. Uma planta que brota solitária e espontaneamente comparada a hectares de campos monocultivados: o diminuto frente ao excesso. Uma sutil resistência ao monumental, ao espetacular, ao hiper iluminado e ao estrondoso. “Nada de retumbante, visceral, apenas detalhes, pequenos gestos, notas frágeis que evocam um mundo etéreo, tão tranquilo quanto fugaz (...)”, como escreve Lopes (2007, p. 173). Um desejo por subtrair o peso das coisas, como se refere o escritor Ítalo Calvino em sua conferência acerca da leveza em “Seis propostas para o próximo milênio” (1990). Ainda, uma decisão pela atenção ao momento vivido, por estar presente. Um estarno-mundo como raiz, gavinha, folha: deixar-se entranhar pelas coisas que têm pouca materialidade e muito viço. Marcia Sousa Referências CALVINO, Italo. “Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas”. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. LOPES, Denilson. “A delicadeza: estética, experiência e paisagens”. Brasília: Editora da Universidade de Brasília : Finatec, 2007. SOUSA, Márcia Regina Pereira. “Reter o breve: de casas que brotam, desenhos que proliferam e coletas que tocam o tempo”. 2016. 340 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2016. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/158049>. 8


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Uma folha cai no mais profundo silêncio. Sementes voam ao vento. A vida brota na fresta da parede em ruína. E proliferam desenhos, fotografias, gravuras e instalações. Marcia Sousa dedica seu tempo ao ínfimo. Seu olhar se demora justamente naquilo que escapa aos corações desatentos. Dá as costas ao espetáculo massificado da sociedade de consumo. Por onde anda, Marcia Sousa se inclina para alcançar as desimportâncias do mundo orgânico das quais nos fala Manoel de Barros, abarca em seu gesto a instância do ‘inframince’ Duchampiano, e se encanta com o ‘infraordinário’ que Georges Perec também exalta em sua escrita poética. Esse movimento da artista é, sim, um ato de resistência, apontando para outra relação com a vida, com o tempo e com o ambiente que a cerca e nutre. O pensamento vegetal de Marcia Sousa cresce como as gavinhas tateantes de uma parreira, se apoiando na literatura, botânica e filosofia, para desenvolver um trabalho artístico processual, reflexivo e delicado. A exposição coleta e broto interliga dois eixos distintos por uma relação de ordem temporal: o tempo das plantas que brotam, crescem, frutificam, dão sementes, que por sua vez brotarão e iniciarão novos ciclos. No núcleo coletar as plantas e sementes coletadas são apresentadas dissociadas do seu contexto original: fotografadas em fundo branco ou posicionadas dentro de caixas de acrílico. Essa configuração nos remete, inicialmente, ao olhar científico e à ordem taxionômica dada pela Botânica. Entretanto, em um segundo momento percebemos a constante presença do gesto da artista nas fotografias de coleta, enfatizando o tato, o contato afetivo da mão que resgata o elemento vegetal e o traz para o âmbito do

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devaneio poético. Há uma suspensão do tempo, as frágeis formas tornam-se matéria de sonhos, revelando seu alumbramento com a força de vida contida nas sementes. Cuidadosamente guardadas, as sementes adquirem uma qualidade enigmática, se tornam relíquias valiosas a serem preservadas. Carregam em si o mistério da árvore porvir. No núcleo brotar encontramos a força e a resiliência da vida vegetal que rompe a dureza do concreto, cobre casas em ruínas formando verdejantes mantos sobre a silhueta urbana. As imagens criadas pela artista nos confrontam com a realidade de que a cultura humana inevitavelmente encontra sua origem e finitude nos ciclos naturais da vida orgânica. Casas que brotam são ao mesmo tempo saturadas de melancólica decadência e de potência de nova vida. Mais importante que a ideia de finitude e de ruína, como revela Marcia, é “a persistência da vida, que germina e verdeja, que fabrica a si mesma incessantemente, que cresce e prolifera e cobre o abandono com um mar de folhas”. Ao adentrar a exposição coleta e broto nos vemos imersos em uma dimensão cíclica do tempo. Tempo que às vezes pode nos parecer lento em nossa agitação humana cotidiana, mas que não é nem lento nem rápido, simplesmente o tempo certo de cada semente germinar, de cada chuva cair, de cada vento soprar. Esse tempo de vida vegetal é central para a estruturação do trabalho poético apresentado nesta exposição. Marcia cria sementeiras, cultiva os brotos e faz crescer um trabalho contundente, sensível, muito necessário nos tempos áridos que atravessamos no Brasil e no mundo. Silvana Macêdo curadora

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Fundação Cultural Badesc

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reunião de vidas, 2015-2016 gravura (fotopolímero sobre papel de algodão), 13,5x20,5 e 18,5x28cm (mancha gráfica)




Instruções para coletar folhas de goiabeira em seu próprio jardim, 2014-2016 publicação (impressão offset sobre papel Pólen Bold, 31,5x46cm; tiragem de 750 exemplares)




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manto vegetal, 2015-2019 vídeo em cores, 3’30”; vídeo em preto e branco, 4’05” [trabalho realizado em colaboração com Alecxandro Nascimento]



coleção-arquivo de casas que brotam, 2014-2016 fotografia (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 4 imagens 29x43,5cm 33



lugar que brota (série a casa como solo), 2014-2015 fotografia em preto e branco (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 7 imagens 18x27cm


coleção-arquivo de casas que brotam, 2014-2016 fotografia (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 4 imagens 29x43,5cm


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entre-casas (série a casa como solo), 2014-2015 fotografia em cores (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 5 imagens 9x13,5cm; cartões-postais (impressão digital sobre papel mate), 9x13,5cm


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partilhar o voo, 2019 instalação, cerca de 970 sementes voadoras de Tipuana coletadas em Florianópolis em janeiro de 2019


desenhos no oco do desenho (anéis), 2014-2017 fotografia em cores (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 2 imagens 27x41cm; ficha de escritório datilografada

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coleta (onde o teu desenho me toca), 2014-2016 fotografia em cores (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 31x47cm


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“E levito, voo de semente”*, 2013-2016 instalação, sementes voadoras coletadas entre 2013 e 2015; fotografia em cores (impressão digital sobre papel de algodão Rag Hahnemühle), 31x47cm; livro de artista, 24x31cm (fechado) *Mia Couto em “idades cidades divindades”, 2007




“E levito, voo de semente”* (detalhe), 2013-2016 sementes voadoras, livro de artista


“E levito, voo de semente”* (detalhe), 2013-2016 flying seeds, 2015-2016 livro de artista (impressão eletrostática sobre papéis Renovaprint e Pólen, fotopolímero sobre papel oriental Wenzhou; papel de algodão Canson Edition; papeis antigos), 24x31cm (fechado)




“E levito, voo de semente”* (detalhe), 2013-2016 sementes voadoras coletadas entre 2013 e 2015 nas cidades de Barcelona, Itapema, Pelotas e Porto



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m a t e rial g r áfico As imagens orientadas para a divulgação transformaram o material gráfico elaborado pela Fundação Cultural Badesc em trabalhos artísticos volantes, que chegaram ao público por diferentes meios.

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b io s Alecxandro Nascimento é fotógrafo e artista gráfico. Graduado em Gravura na Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Marcia Sousa atualmente pesquisa as relações entre arte, meio ambiente e bem viver. Sua produção artística desenvolve-se entre o desenho, a gravura, a fotografia, edições e livros de artista, instalações e ações efêmeras. Graduada em Gravura na Escola de Música e Belas Artes do Paraná e em Comunicação Social na Universidade Federal do Paraná; realizou mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos na Universidade do Estado de Santa Catarina e doutorado em Poéticas Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora no Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas. Silvana Macêdo pesquisa o diálogo entre arte, ciência, natureza e tecnologia. Mais recentemente desenvolve pesquisas na área de gênero, feminismos e autobiografia. Professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina. Atua nas áreas de pintura, vídeo, instalação e fotografia. Doutorado em Artes Visuais na Northumbria University, Newcastle Upon Tyne (UNN, UK, 2003). 73


a g r a deciment os Expresso aqui minha absoluta gratidão a Alecxandro Nascimento pela parceria sempre generosa e pelo importante apoio no registro fotográfico, na expografia e montagem de “coleta e broto”, bem como na concepção desta publicação. Meus agradecimentos também a Silvana Macêdo pela preciosa interlocução e curadoria da exposição. A Thays Vogt agradeço a colaboração na montagem da instalação “partilhar o voo”. Registro ainda o meu reconhecimento à equipe e aos colaboradores da Fundação Cultural Badesc. Por fim, minha gratidão aos caros amigos e queridas amigas que partilharam do desenvolvimento deste projeto, e a todas e todos os visitantes da exposição, que a tornaram viva e germinante. Marcia Sousa

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Ficha catalográfica S725c Sousa, Márcia Regina Pereira de Coleta e broto / Márcia Regina Pereira de Sousa, Silvana Macêdo, Alecxandro Alves do Nascimento. – Florianópolis: Desvios Gráficos, 2021. 76 p. ; il.; color ; 20x23 cm. ISBN: 978-65-990773-1-9 1. Artes Visuais. 2. Arte Contemporânea. 3. Natureza. I. Sousa, Márcia Regina Pereira de. II. Macêdo, Silvana. III. Nascimento, Alecxandro Alves do. CDD 779 CDU 77.04(81)

Catalogação realizada pela Bibliotecária Ellen Mariana Zorzetto CRB 14/1611

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coleta e broto este volume foi composto com as fontes BetonEF e Castorgate projeto gráfico de Marcia Sousa & Alecxandro Nascimento Florianópolis, Santa Catarina, Brasil 2021

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