Edição da Autora 2023
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Márcia Madeira Barrozo
Poesia Antiga a
Pandemia… Noites de insônia e o prazer de reescrever muitos rascunhos.
Cores, imagens, pincéis e papéis também por companhia.
E acima de tudo, o incentivo, ainda que à distância, dos bons amigos.
Especial gratidão à professora Fabiana Hilário e a todos os que participam do democrático grupo de leitura e escrita coordenado por ela, em difusão cultural dirigida às pessoas com mais de sessenta anos, pela PRCEU – USP.
Graças a essas trocas e incentivos preciosos é que algo a mais àquilo que permaneceria fragmento – disperso em meio a cadernos, caixas e gavetas – pode ser modelado.
Também, o meu agradecimento – sem tamanho! – à incansável Fernanda que, junto a Hahnemann, cuidou de mim.
Novembro, 2021.
Dois cantos ao Amigo
I
No amigo, algo de mim resistirá Algo que em meio ao cansaço Poderei reencontrar. Recordar.
O amigo me fará acordar algo meu
Fundo. Verdadeiro.
E assim fiel
Mesmo em meio ao desencanto Poderei criar um outro recomeço.
II
O amigo procurou Mas não sabe a palavra. Posso adentrar seu silêncio
E encontrá-lo junto a uma raiz já morta.
Nenhuma utilidade perpassa
O movimento do amigo
Ou o meu.
No encontro, o brinde.
Dos olhos.
Livres assim,
O amigo com quem partilho novos começos Agora sorri
E a si também reinventa.
♦ ♦ ♦
O menino sírio
Na praia, o menino poderia brincar
No vai e vem das ondas.
Mas, no corpo pequeno
A inocência já é sono frio de areia.
Nos olhos que o menino leva
A rua, a bola, a casa.
Nas mãos, algas verdes
Não mais pão.
Na pele anóxica
Ainda o afago da mãe perdida.
A noite dos homens engole o menino
Não o mar…
E na história que não finda
Seus irmãos inda irão roçar fuzis
Rasgar os pés nos descaminhos todos
Cercados todos de aços reluzentes ao sol.
E como não podem ir pra Marte Insistem
Persistem
Teimando alcançar
A terra jamais prometida.
♦ ♦ ♦
Prece
Ao Menino que a Noite do Tempo esvanece.
Cosmos.
Benthos.
Abismos de céu e mar.
Escorre mais fundo toda Água.
Sobe mais alto todo o Vento.
1977
"Há perigo na esquina" Belchior
Querido amigo
Desdigo andar perdido.
Antigo amigo
Comigo mostrar-se aflito?
Contido amigo
Consigo dizer – Perigo!
Amigo ungido
Maldigo o horror vivido.
♦ ♦ ♦
♦ ♦ ♦
Quatro elementos
Como um peixe Engole o ribeirinho, Bebo silêncios.
Como o verme sem olhos Perfura a terra, Mergulho escuros.
Mas, luto Pra que na asa rasgada Permaneçam amanhecer e vento.
Um novelo delicado
Que o fio da lógica não tece.
Ao mundo vasto
Um poema é messe.
Um poema que a si faça
E em fluidez de rio
Envolva àqueles que não se sabem poetas.
♦ ♦ ♦
♦ ♦ ♦
Lençóis Brancos
I
Exercitei-me ao bisturi da lógica
E desgarrei traduzir a poesia
Dos lençóis brancos
Torcidos ao tanque
Severamente por minha avó.
E, no depois, Estirados ao beijo dos ventos. II
O anelo de como se nos dá o Tempo Devolve-me o momento
Em que prensavas entre ferro e mesa Lençóis brancos.
Ainda sei virem de lá, perfumes de sol.
Ainda sei os sinos da Ave Maria
Ainda te sei, mãe, afoita por equilibrar
A rima ordenada dos panos
Das pernas e braços vazios
Dos lenços já limpos. E secos.
♦ ♦ ♦
Brinquedo
Te percebo
Íntimo
E intimo
Dizer-te:
Perto! Reconserto
Em mais ser
Sonoro
E elaboro
Um reverso
Discreto.
Mas, último, Ultimo
O adverso...
E arrisco
Um outro verso
Emerso.
Inda arisco
Inquieto
Transverso.
♦ ♦ ♦
Sem receita
Poesia não tem receita!
Mas pode ter estrela
E delicadezas assassinas do cansaço.
E àquilo que no olho explode Como não dá pra todo dia tomar um porre Procura abrigo em ‘is’ de apoio tímido.
Microscópio pra vazios pequenos Unindo eco e silêncios.
Falido lirismo?
Luta. Luto. Anacoluto.
Só brinquedo.
Com ou sem enjambements
Ela tem cheiros de macela.
Ou gosto de canela
E maçãs.
♦ ♦ ♦
Água. Hera
I
Na casa de mim
Recriei paredes brancas
Noutras, deixei crescer a hera.
No quarto amarelo
Sempre flor, fita, linho.
No quarto sem janela
A grande arca de quimera.
II
Veio
Em chuva triste
E insiste cinza o tom dos dias.
Recolhe
A si em meio a hera, musgo
Limo; desvãos da pedra.
Escorre
Em fio não visto...
Escuro avesso da terra.
Mas eis que em novo anseio
Atinge, enfim, o rio
Por outro
Veio.
♦ ♦ ♦
Azulão
Azulão que canta e avoa
Batendo as asas no céu...
Rebate aqui no meu peito No coração rapidinho
Uma tristeza sem jeito Num curimbó tão sozinho.
Batendo luz na janela
Batendo a chuva na rua
Batendo o vento na vela E essa tristeza que sua Como se ao sol estivesse Abatida, a alma nua.
♦ ♦ ♦
Três poemas insones
I Noite
Em que divago insone...
E me faço concha de abalone.
E sou mar!
E sou a concha lenta
Atravessando seus estratos.
Algas.
Limo.
Lodo.
O silêncio, então, escuro
E no espaço fundo
De vagar
O sono.
II
Navego-me azul
E salto onda e céus.
À deriva, por onde iria?
Se o dentro ao imenso enlaça
A estrela-guia,
Naufraga-me, então, Estrela!
Naufraga-me em sono fundo
Enamorado só de calmaria
III
Pendor
Pêndulo?
Relógio de Vento
Lento, lento
O sono?
Tento
Tempo, tempo
A dor?
Contemplo
Templo, templo
O sino?
Alento.
Pendor Pêndulo
Re-ló-gio…de…Ven…to…
♦ ♦ ♦
Sou ilhas de ir
E esquecer.
Trilhas por abrir
E arrefecer.
Mapa em mosaicos de areia...
E, no quase eterno que o granjeia, Quartzo hialino
Que a água fria acaricia e beija.
♦ ♦ ♦
Poemeto imitando Marc Chagall
Argonauta do sonho, Num cavalo azul Alcancei céus.
Centauros. Naus. Clorofíceas, hipocampos...
O Aberto espera.
E se em manto, cauda e laço Rendilhei conchas e algas iridescentes Foi porque todas elas faltavam às estrelas.
♦ ♦ ♦
♦ ♦ ♦
num canto escuro um poema
♦ ♦ ♦
1994 – Cinco de Maio Morre o Poeta. E a poesia das coisas Fica à espera de outros olhos.
pequeno
Chora
“Uma gaveta vazia é inimaginável”
Sempre haverá uma gaveta de fitas, retalhos.
Guardiã do brinco perdido.
Das cartas não escritas.
Beijos e silêncios.
E risos e abraços que seriam.
Uma gaveta para as coisas afeitas às mãos bem pequenas.
À promessa inocente e primeira.
Solidão desenhada a pena e nanquim.
Gaveta das pétalas pisadas.
E folhas consteladas no chão.
Ninho de minúcias
Inúteis! – diriam.
As minúcias lentas da infância
E dos amores nunca findos.
E onde qualquer aparente vazio Jamais será o Nada.
Gaston Bachelard
♦ ♦ ♦
Poesia Antiga
Num papel qualquer Desenho símbolos.
Eco Ritmo...
Que poderão depois chegar A sinapses distantes.
Talvez –
Quem o sabe! –
Se por difuso ou preciso sentido Não se façam Brinde e vinho?
Ou ainda
Como na origem Em mesa posta Bom alimento.
♦ ♦ ♦
Cecília
Cecília a olhar
Cecília a olhar os homens.
Em vários cantos do mundo, Cecília.
Cecília a perscrutar o passado.
Numa arqueologia do sonho
Do medo, das sombras.
Cecília só entre os homens.
Os homens nus na devassa funda e terna
Dos olhos verdes de Cecília.
♦ ♦ ♦
Lente
Não sei dizer consolos. E a ninguém sei dizer Deus.
Ainda que ao risco de mostrar-me rasa Incrédula
Ousaria evocar brilhos da chuva Ventos no capim.
Mas, não sei dizer consolos. E a ninguém diria Fé.
Previsível, poderia amealhar Aquarelas de amanhecer
Zum-zuns de jardim.
No canto de alguma espera Um verso de Bandeira...
Cálido.
Porque digo Pedra.
Mas como não sei dizer Dor Não sei dizer consolos.
E como dizer Dor???
A Dor definindo o vivo.
E como Dor, todo Espaço.
E enquanto Dor, todo o Tempo.
No mundo senciente, Senhora!
Não saberei dizer consolos
Porque só posso, no escuro do silêncio, Engendrar um olho amarelo no qual flutuo
E mão a mão, dentro dele, Criar um breve abrigo.
Mas, prontamente –Não espere!
Porque não sei dizer consolos.
♦ ♦ ♦
Rede Passado mudo.
Química memória.
Raízes tantas.
Caule, ramos – aqui fora.
Qual árvore
Saber sombra
Saber luz.
Na esfera azul
Flor e limo e humo.
Hifas mais longas.
E o fruto doce.
Fecundo.
♦ ♦ ♦
Um Francisquinho
Jesus Cristinho! Um Francisquinho!
Não de Assis nem de algures
Brinca entre os carros.
Pula mula. Pirueta.
Cabra-cega
Sob a garoa, assombração.
"Jesus Cristo, me valha!"
Sinal da cruz: "Deus me livre!"
Cachecol de baba
Pé cascudo no asfalto
Soma ao vento mais rodopio.
Desvia ônibus, carro, bicicleta
Desvia olhar.
Um Francisquinho, Jesus Cristinho!
Brinca entre os carros…
Em meio a chuva
Pragueja contra o capeta.
E gira fantasma. Furacão.
Nas mãos tanto folheto
E num segundo, tudo asa no céu…
Jesus Cristinho, meu Francisquinho!
Pé cascudo e surrão.
Sobrevoado, afinal, Por infinitas pombinhas brancas.
♦ ♦ ♦
A incandescência do sonho Subia ao céu como lâmina vermelha.
E o sonho, agora, é massa ígnea do nada.
Na rosa bruta das cinzas Os vestígios do tão pouco.
Um clarão de madrugada Sobrevoa a ocupação incendiada.
Bicho algum da noite
Apresentou-se ao inventário do dia.
Rápido demais desistiu Dos fantasmas seus.
E também dos sonhos.
Desgarrado de todos os silêncios soberanos Desistiu da poesia sua.
♦ ♦ ♦
♦ ♦ ♦
No caminho
Seguindo na calçada a vi Sentada pouco à frente
Sentada num degrau de gelo Como sobre o fim do caminho.
E não ousaria erguer-se Sequer os olhos.
Ossos de chumbo
Alma vidro estilhaçado Cacos pra ninguém.
A seu lado, a mala pequena Arrastada de esquina a esquina
Marquise a marquise –Rescaldo da derrota.
A derrota reafirmada
A cada interminável segundo seguinte.
♦ ♦ ♦
Praça em curva.
O canteiro e suas árvores altas Margeado por avenidas.
Tenda.
Vassoura
Latão
Cadeira
Alinhados.
Saindo do abrigo, abre os braços.
A si distende e gira.
No seu mundo, gira.
E grita aos que passam:
Livre!
♦ ♦ ♦
De avental
Vai como carroça
Puxada pela poodle neve Que tem fru-fru vermelho nas orelhas.
Natal igual a todo dia.
Quando criança cismava se as coisas se sabiam.
Secando meus cabelos castanhos Eu me sabia ao sol.
Mas, saberiam a si os lençóis no varal A vassoura amassada e suja?
Poço. Abelhas.
As formigas pretas
E os trevos com flor?
♦ ♦ ♦
♦ ♦ ♦
Transfinitos
I
Folhas de uma árvore contaria?
A cair e a crescer, as folhas de uma árvore.
Transfinitas! Qual Cantor cogitou.
Atravessando a noite numinosa
Se incontáveis caminhos percorro
Transfinita também sou?
II
Pouco antes dos horrores últimos
Onde estancou – petrificado –
O anjo do menino morto?
III
Quis dizer Medo
Mas só lembrou daqueles olhos.
Negros como as noites sem lua Os olhos sem fim Da menina afegã.
IV
Foi com Wenders que aprendi Respirar bem perto Dos anjos estropiados. Cansados.
Despencados do céu.
♦ ♦ ♦
Oriente - Haicais
I
Shiva e sua dança
Destruindo e recriando Ordem e entropia.
II
Esta minha face
Antes que a tivesse minha? Todas. E nenhuma.
III
Bem desfaço laços
Em traço negro nanquim...
Zen aqui em mim.
IV
Volta ao oceano
A leve gota que um dia
Eu chamei por Mãe.
♦ ♦ ♦
Caetanear você precisa
E a multidão de ressentidos
Tão bem vestidos
Tomou a rua.
Eu sei que é assim
E com seus medos e recalques invertidos
Caminhando com o vento Com lenço e com documento
Crédito e passaporte no bolso Vociferaram
– Não na Língua minha!
Outras palavras de ordem.
Da ordem plana. Asséptica.
Branca e dourada estética.
Calaboca já fora dos calabouços.
Baby...
Eu sei que é assim!
E tão menos o esforço do pensar
Pra reinaugurar aquela tal ‘História’
No gozo de esviscerar verdades e memória.
Só Pátria.
Sem Mátria.
Jamais Frátria.
‘Armai-vos uns aos outros’
É o que se lê então nas camisas
– Não na minha!
Mas do pai. Da mãe. Do avô.
E da menina.
Baby, Baby!
Ohhhh, Baby...
Eu sei que é assim.
♦ ♦ ♦
Memento
Com Thiago de Mello
O tempo construiu meus olhos
Ao som do violão; da flauta. Guitarra.
Caymmi. Pixinguinha.
Beatles. Woodstock.
Banda. Tropicália.
Menina nua sob as nuvens de napalm
Gingles... Margarina.
O tempo construiu meus olhos...
E a TV querendo me dizer quem sou
Lá no fundo de minhas retinas.
Hino.
Hienas.
Herzog.
O sangue colorindo celas.
Camões hibridado à notícia.
Fora JARI - denunciado em muro.
O tempo construiu meus olhos.
E ontem e agora, mantenho o canto.
Mantenho.
Porque os homens – Cuidado!
Inda fazem muito escuro.
♦ ♦ ♦
Antítese
Velhos meus ossos Que resistem.
Velhos meus cabelos Que brilham sem melanina.
Velhos meus olhos Que bem veem.
Velhos meus esforços De inda bem querer bem.
Velhos os papéis em que escrevi Sonhos ainda novos.
Amores velhos, paixões vividas Em meu coração inda esgarçando a fibra.
Velhas as incertezas sobre o mundo Cerzidas de esperança.
A esperança
Que reinvento em gota.
E em chuva miúda refaço.
E sobre velho jardim, dia a dia, revigoro.
♦ ♦ ♦
Selene
E ser Iara. E o rio solene.
E o remanso em cor de prata.
Ser Jurema e Jasmim
E todas flores cheirosas e brancas.
Ser as águas que transbordam
Marés. Hemorragias.
Sementes a germinar. Partidas silentes.
Leite nos seios.
Hepáticas pequeninas
Musgos tão delicados Úmida alma. Úmido grão
Raiz e hifas a brotar unindo.
Seiva e sonho confluindo.
Na exuberância, ninho no espaço. No declínio, escuro chão.
Esfera. Matriz do que não se revela.
Selene! Branda Anima.
♦ ♦ ♦
"Amj'kin" – Alegrar-se
Aos Krahô
Com o milho, o crescer.
E ser – com tanto!
Belo. Ereto. Dadivoso.
Grão vermelho, amarelo.
Cor do Sol. Cor da Nuvem.
Qual céu da Noite, Milho tão pretinho.
O milho a colorir roça e ribeirinho.
Flor d'água junto à pedra.
Vento enlaçado à palmeira.
Do velho à criança
Toda semente é presente.
Presente da Mãe-Estrela.
Com a terra, ser é ser inteiro!
Saber Ser é Resistir!
Na ciranda da casa
Na beleza do roçado, Homem com Milho.
Céu de Estrela com Cerrado.
♦ ♦ ♦
Se Flor!
Azálea.
Calêndula. Camélia.
Gérbera. Ciclame.
Begônia. Gerânio.
Hortênsias e gardênias.
Íris. Amarílis.
Lavanda. Rosa.
Alamanda.
Lírio.
Hibisco.
Magnólia.
Verbena. Torênia.
Tulipa.
Agapanto!
Perfeito amor?
Beijo partido.
Perpétua...
Prímula.
Aonde for, Flor.
E se mais for
Flor que assim mais seja!
♦ ♦ ♦
a Edição dã Autorã
2023