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SEGUNDOS 3ª edição

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Copyright © 2013 by Márcio Brasil Direitos desta edição reservados ao autor. (Contatos: mbrasil7@hotmail.com)

BRASIL, Márcio. 10 segundos. Santiago: Editora da Casa do Poeta, 2013. 134p. Revisão Ortográfica Fernanda Fank Arte da Capa Sidnei Garcia Diagramação Tainã Steinmetz CDD - B869 BRASIL, Márcio 10 Segundos/ Márcio Brasil; -- Santiago: Casa do Poeta, 2013.134 p., 3ª edição. ISBN: 978-85-64886-09-4 Bibliografia 1.Literatura Brasileira. 2.Contos 3.Crônicas 4. Entretenimento I. Título.

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SUMÁRIO Sobre amores Sobre sexo Insólitos Sobre Vida e Morte Surreais

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Desde que me "conheço por gente", a caneta e os cadernos foram companhias muito presentes. Objetos que me permitiam acessar outras dimensões, viajar para outros lugares, conhecer outras pessoas e aprender com elas. Se, para o leitor, embarcar numa leitura é viajar, o mesmo sentido tem também para quem escreve. Não existe escrita sem leitura e, portanto, qualquer um que queira tornar-se um aventureiro das letras, precisa saber como essa arte é desenvolvida por outros que trilharam esse rumo. Este livro reúne alguns contos minimalistas publicados em minha coluna no jornal Expresso Ilustrado, procurando driblar as limitações de caracteres. Já outros, mais alongados são frutos da produção diretamente para um blog que mantenho. Gosto de escrever contos, gênero literário que permite que o leitor estabeleça uma rápida conexão, adentre na história e possa concluí-la rapidamente. Acredito que o autor seja o menos qualificado ou totalmente suspeito para fazer uma apreciação de sua escrita, correndo o risco de querer tendencionar o leitor a simpatizar com os temas propostos. Portanto, deixo o leitor livre de uma classificação desse tipo. Só peço que leia e faça o seu juízo de valor sobre os textos aqui publicados. Já terá valido a pena ter lançado este trabalho se após ler cada conto, o prezado leitor fizer a sua consideração crítica ou reflexiva. Nem que seja por apenas uns 10 segundos... Márcio Brasil 6


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Sobre amores...

O amor, ela dizia, era como um perfume caro que se comprava para disfarçar o odor do corpo humano ou a menta da pasta de dente. Podia até impregnar sua pele ou refrescar sua boca, mas isso não fazia parte de sua natureza. Era uma ilusão breve.

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Grandes esperanças Era uma noite chuvosa, dessas em que os raios nos causam um arrepio e os trovões chegam a assustar. Lá fora, o vento criava açoites com a forte chuva, que despencava fartamente. A queda da energia elétrica mergulhara a cidade na escuridão. Dentro de casa ele andava com uma vela grudada na tampa de um vidro de Nescafé, igual sua mãe tantas vezes fez quando ele era criança. Porém, ao contrário dela, ele não tinha medo da tempestade. Achava bonito de ver a natureza mostrando a sua força. Para ele, era uma noite bonita. Uma noite em que a natureza mostrava uma de suas faces e ele a respeitava por isso. A respeitava pelos sábados ensolarados, pelos domingos calorosos e também por esta sexta-feira chuvosa. Não havia nada para fazer. Acostumado com a comodidade da energia elétrica, ele não podia ligar seu computador ou mesmo assistir a um DVD. "Como é que nossos antepassados viviam? Como eles faziam com seus e-mails?", pensa ele. Logo, apanha um livro na prateleira e vai para o quarto. Recosta-se em seu travesseiro e abre as páginas de Grandes Esperanças, de Charles Dickens. Ele já havia lido esse livro em repetidas ocasiões, mas vez por outra o tomava apenas para reler alguns diálogos. Nesta noite ele o fez novamente durante algum tempo, chegando a adormecer com o livro em seu peito. A vela ao lado de sua cabeceira flamejava fracamente, 10


Márcio Brasil perdendo o brilho e, aos poucos, sendo vencida pela escuridão, que tomava conta do quarto. Barulho na porta. Uma, duas batidas. Ele abre os olhos na escuridão, pensando ter ouvido algo. "Imaginei", pensa. Pam-pam-pam. Sim, havia alguém à porta. Mas quem a essa hora? Ele levanta tateando pela casa, vai acender outra vela. Pam-pam-pam na porta. - Já vou Ele avisa, enquanto acende outra vela e direciona os passos rumo à porta da frente. O relâmpago revela uma silhueta de mulher. Ao abrir a porta, um pé-de-vento sopra a vela. Na escuridão, ele não decifra o rosto, mas ouve a voz. - Posso ficar aqui essa noite? Ela diz, entrando. Ele, totalmente tomado pela surpresa se mantém estático, ainda com a mão ao trinco da porta. - Eu posso? Ela repete a pergunta. - Oh, sim, claro... Ele responde apalermado, com o coração tomado por uma súbita aceleração. - Desculpa aparecer assim... Ela tenta justificar-se. - Aconteceu alguma coisa? Ele pergunta, procurando esconder a alegria dela estar ali, não importando o que tivesse acontecido. - Prefiro não dizer... 11


10 Segundos Ele controla a curiosidade, afinal, pouco importava. A presença dela mesmo que fosse por breves instantes enchia a casa (e a vida dele) de luz. Mesmo que a casa (e a vida dele) estivessem mergulhados na escuridão. - Que livro é esse em suas mãos? Ela percebe. Ele não se deu conta que ainda o segurava. - É aquele do Dickens... Ele revela. - Ah, esse. Tem final infeliz...para ele. Ela folheia as páginas iluminadas fracamente pela vela. - Bobagem folhear um livro no escuro, né? Ela diz, enquanto ele a alcança uma toalha. - Tu está molhada. Posso ver alguma roupa para ti. Mas são as minhas, ou seja, vão ficar grandes em ti. Ela sorri, não havia problema. - Desde que tu me faça um café... Ele separa a roupa e leva para ela. Depois, vai até a cozinha preparar o café. Tinha mil perguntas para fazer a ela. Algumas, ele teme a resposta. Para outras, ele tinha grandes esperanças. Mas faz de conta agir normalmente, como se todos os dias chegasse alguém à sua porta pedindo-lhe pouso e café. Ela pensou em dizer que não queria atrapalhar, mas sabia que ele iria responder com um sorriso e dizer que ela não o atrapalhava de forma alguma. Talvez até aproveitasse para dizer que ele a amava. Melhor não perguntar o que estava implícito. Mesmo no escuro, ela percebia o brilho no olhar dele. E sabia que seu 12


Márcio Brasil coração se enchia de luz. Ela sabia o que significava para ele e se via invadida por mil lembranças felizes e outras nem tanto. Ele preparava o café com a máxima concentração, como se aquela xícara de café fosse a coisa mais importante do mundo. Queria agradá-la. - Cuidado, está quente. Bobo. Ele se achava um bobo em dizer coisas óbvias. Mas era ela que o desnorteava, o tirava fora de seu eixo, o transformava num menino inseguro e medroso. Vulnerável, ele tenta não encarar os olhos dela e refugia-se folheando novamente as páginas do livro. Ela bebe o café enquanto passeia o olhar pela casa fracamente iluminada pela vela. Às costas dele, em cima de uma armário, ela percebe um porta-retrato com uma foto deles dois, juntos. Ele se constrange. Fraco, bobo, patético, nostálgico, tolo. - Esqueci de tirar daí, desculpe. Digo, pensei em tirar, eu devia ter tirado só que... Ela o surpreende, calando suas palavras com um beijo. Um beijo com sabor de Nescafé. Ele a abraça. Primeiro com ternura, depois com fervor. E deixa Grandes Esperanças cair no chão... No dia seguinte, após ter acordado tarde, ele recolhe o livro no chão da sala. A luz da manhã invadia a casa toda. Havia respingos de vela aqui e ali, mas nenhum outro vestígio. Toalha e roupas estavam no lugar. "Foi imaginação?", ele questiona, colocando a própria sanidade em dúvida. Tomado por um misto de dor, tristeza e raiva ele joga longe o porta-retrato. "Estou ficando senil", é o seu diagnóstico. 13


10 Segundos Senta no sofá para chorar. Apesar do sol ultrapassar os vidros da janela e repousar em seu rosto, ele achava-se na mais completa escuridão. "Chega de autopiedade", ele pensa, levantando-se para refazer-se com um gole de café. Foi quando percebeu em cima da mesa aquela xícara pela metade. E uma marca de batom.

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Admirador secreto "Eu amo vc". Assim, bem simples, foi o torpedo misterioso que fez o telefone dela bipar, sem número identificado. Ela sorriu. Ou era brincadeira ou, de fato, tinha um admirador secreto. Quem seria? Nada como um pequeno mistério para tornar mais saboroso o Dia das Mulheres. E que mulher não gosta de desvendar um mistério? "Eu sempre amei vc". Outro torpedo. Nossa. Alguém que sempre a amou. Agora, sim, intrigou-se. Alguém, que ela não sabia quem era, a amava. E ela? Amava alguém? Sua vida era dedicada ao trabalho, aos estudos e aos pais. "Eu sempre amarei vc. Não importa o mundo". outra mensagem. Pronto, agora ela não iria descansar até achar uma pista de seu Don Juan anônimo e dar outro sentido à sua vida. E, quem sabe, ter alguém para amar. Podia ser o colega de trabalho, o vizinho, alguém com quem cruzou o olhar na rua. Ou o antigo namorado..., hmm, será que seu beijo ainda tinha aquele sabor de quero-mais? Não, óbvio demais. Ela até que tentou esquecer do assunto. Claro que o fato de começar a usar roupas mais sexy, falar mais suave e caminhar elegantemente foram detalhes. E, sim, cuidar todo e qualquer movimento ou olhares dos seres masculinos ao seu redor . 15


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"Vc é linda". Ooutra mensagem. "Nossa, ele notou". Danou-se. Agora, era ela quem estava apaixonada. Quem mandou mexer com o coração de uma mulher que estava quieta? Em breve, ele iria se revelar, marcar um encontro, mandarlhe flores ou...outra mensagem. O celular bipou. "Oi, desculpe transtorno. Ignore mensagens anteriores. Número errado". Agora, mais do que nunca ela queria saber quem era o mensageiro. Só para matá-lo.

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I'll Stand By You Ela pôs para rodar um antigo CD, de uma trilha selecionada só com músicas que marcaram a sua vida. Nostálgica, revirava antigos diários à procura do endereço de uma amiga com a qual há muito perdera o contato. Ela soprava os cadernos empoeirados e se deixava levar numa viagem rumo ao próprio passado e ria-se das bobagens que escreverq, dos versos mal-feitos que compôs, dos desabafos, dos sonhos, das esperanças, dos desejos secretos, do relato do primeiro beijo. Aquelas páginas cheias de orelhas faziam parte do livro de sua vida e, bem ou mal escritas, contavam a história de uma jovem inocente. Ora, ela ria de si mesma lendo antigos pensamentos, ora enternecia-se... Inesperadamente, viu cair de meio das páginas uma flor amarelada e extremamente frágil ao toque mais brusco. No CD, Pretenders toca I'll Stand By You. Delicadamente, ela recolhe a flor achatada e seca, sendo invadida por um turbilhão de imagens. Do primeiro homem que realmente amou. Boba, sorria. Boba, chorava. Nem lembrava mais o porquê de não estarem mais juntos. Junto daquela flor lhe vinham à mente gestos, palavras, promessas, abraços, beijos, olhares. Seu coração apertou com as lembranças e as cobranças de uma vida não vivida, de um caminho não percorrido. Hora de

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10 Segundos abandonar o passado. Encontrado o telefone daquela amiga, ligou para compartilhar antigas emoções. A voz masculina que disse "alô" fez seu coração acelerar. (que clichê, pensou. Era ele). Desligou. Não conseguia falar. Tudo tão rápido. No CD, Pretenders ainda tocava I'll Stand By You...

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Em pedaços Saudade. Era o que ela sentia quando olhava para ele. Saudade da pessoa que ele um dia foi. Não era mais. A magia, o encanto havia se quebrado. Se a paixão é narcisista e só nos faz enxergar as familiaridades (eu gosto disso, você também...), esse misto de raiva e decepção só fazia apontar defeitos que antes, não fazia questão de enxergar. Sentia que cada dia morria um pouco. Sim, é verdade que morremos mesmo a cada dia, nos aproximando do minuto fatal. Porém, percebia que seus sentimentos desmoronavam a cada dia. Nesses momentos, em que o pranto lhe escorria pela face, seu coração apertava, pesava. E ela sentia saudade. Tinha saudade não mais do amor tresloucado e dos gestos grandiloquentes dos primeiros atos de romance. Tampouco tinha saudade do primeiro presente de Dia dos Namorados. Tudo era apenas promessa, ilusão, um conto de fadas, como toda relação inicia, fazendo com que acreditasse que eram predestinados a viverem lado-alado. Nesse tempo, era como se a terra fosse preparada e somente mais tarde, o amor brotasse como uma flor. E era disso que ela sentia saudades. Saudade da forma como o seu corpo se encaixava no dele (e como ele a recebia) nas 19


10 Segundos noites chuvosas (ela tinha medo dos trovões). Saudade do olhar de cumplicidade e do sorriso desabrido. Saudade do cheiro e dos lábios carinhosos, não esses de hoje, frios e indiferentes. Ele, hoje um estranho, dormia ao lado dela. E ela tinha saudades de alguém que estava perto, mas que há muito havia partido. Em pedaços.

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Aluga-se um coração Entre os classificados do jornal de domingo lá estava um insólito anúncio, que não oferecia carro, apartamento ou computador. "Aluga-se um coração", era a singular mensagem acompanhada do número do telefone para tratar do negócio. De quem seria esse coração? A pessoa que anunciou estaria com problemas cardíacos e, ao invés de esperar na interminável fila dos transplantes buscou um meio insólito de conquistar o almejado órgão? Não. Talvez não fosse alguém buscando, mas sim, oferecendo o seu coração. Poderia ser por falta de uso ou, quem sabe, tivesse trocado o seu convencional por um modelo sintético e mais avançado, o qual não incluía os inconvenientes defeitos de se apaixonar e deixar a insensatez gerada pela flecha do cupido dominar a razão e a emoção, fazendo com que seu portador se lançasse em aventuras tresloucadas do tipo que se vê em filmes açucarados. "Aluga-se um coração". Lá estava o anúncio. Preto no branco. Frio. Insólito e inédito. Instigante e desafiador. Seria um coração alado, avoado, desesperado, descompassado, abobado, desapaixonado, sonhador, aventureiro, atrasado, sincero, inocente, sacana, quebrado, magoado pronto para ser atravessado pela lança do desamor? Ou apenas pura carne, músculo, veias e sangue? Esse coração estaria em bom estado, sem vestígios de antigas paixões, marcas indeléveis de desilusões e 21


10 Segundos desencontros, ou simplesmente fosse um coração que não soubesse amar. Não! Não existe coração que não saiba amar, mas sim, aquele que não queira amar. Já aí, se entenderia a razão do classificado. Um coração que não ama não tem razão de continuar batendo. Alugue-se.

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Nove meses Ela estava com o envelope nas mãos, sem coragem de abrir. Sentada na praça, mordia nervosamente o canudinho mergulhado na lata de Fanta e olhava para os lados. Estava esperando por ele. Alguns minutos atrasados depois ele chegou, também nervoso, dando explicações para o atraso. Não importava. Ela o aguardou para que, juntos, abrissem o envelope mais importante de suas vidas, o que iria mudar a forma como eles enxergavam as coisas até esse dia, nessa praça. Abriram. - Estou grávida- ela disse. Logo, veio um friozinho na barriga e ela ficou tonta. Nervoso, ele a ajudou a sentar. - E agora?- ela perguntou, na insegurança de seus 16 anos. - Não sei, eu sou muito novo- respondeu ele. - E eu, o que sou?- ela se desesperou. Ele jogou o envelope no colo dela. - Preciso pensar. E foi embora (e não voltou mais..). E, assim, ela ficou sozinha, com medo de tudo, sem ter coragem para nada. Sentia-se frágil e insegura como jamais tinha se sentido. Com o passar das semanas, foram surgindo dificuldades e foram aparecendo ainda mais responsabilidades. A pessoa que esperava que ficasse ao seu lado não estava, porém, muitos outros a amparavam. Ao contrário do que pensava, muitos se importavam com 23


10 Segundos ela e a amavam. O medo que tinha de contar para os pais, mostrou-se exagerado. Eles estavam, sim, ao seu lado. Mesmo assim, ela tinha medo e acordava chorando, em sua aflição de mulher. E assim foi, durante nove meses. Foi numa manhã de primavera que, finalmente, ela nasceu. Delicadamente os médicos colocaram aquela frágil criaturinha em seus braços. E a menina-mãe mal se se aguentava em sua ânsia de abraçá-la bem apertado, junto ao seu corpo e beijá-la, em meio às lágrimas. Durante nove meses, tinham sido uma só. Hoje ela era mãe e a menina em seus braços era "Thaís". Os pequenos olhinhos encaravam a mãe, que viu-se inundada de uma coragem que jamais havia sentido antes. - Tudo vai dar certo. Agora eu sei.- dizia com lágrimas de alegria rolando por seu rosto...

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Namoro virtual Era madrugada e eles ainda continuavam conversando pelo Skype. Às vezes, dialogavam até o amanhecer. Nem importava que fossem trabalhar com sono ou olheiras. Importava que eram namorados e estavam curtindo o melhor período da paixão: o da descoberta de afinidades. - Não acredito que você é fã do Bee-Gees. Eu também!! - O que? Você também gosta de comer poleta com leite? Não tá me debochando? Rssrs - Ah, não. Você também assiste Caverna do Dragão? Pronto. Tinham descoberto que eram "almas gêmeas" e estavam, assim, apaixonados. A cada conversa, descobriam mais coisas em comum, veja só. Já namoravam há quase seis meses, sem sequer terem se visto uma única vez. Enviam-se e-mails, scrapps e tinham galerias de fotos um do outro em seus computadores. Até páginas em comum nas redes sociais. O romance ia tão bem que decidiram se encontrar pela primeira vez. Então, ele viajou 500 km para encontrar sua namorada virtual. Se encontraram. Era esquisito conversar, assim, sem ser por uma web cam. - “Ele não é tão alto como parecia”- pensou ela.

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10 Segundos - “Ela não é tão magra como aparentava” observou ele. Mas, enfim, logo estavam conversando sobre os mesmos assuntos que os uniu naqueles longos papos durante meses. Ele era romântico. Ela era idealista. Pouco tempo depois, veio a proposta de casamento. E eles casaram. E durante algum tempo, foram felizes. Realmente tinham muitas coisas em comum e Eles já sabiam disso. O que ainda não sabiam era que existiam inúmeras outras coisas em que eles discordavam. De início, uma discordiazinha aqui e outra ali. Um dos lados cedia e tudo ia bem. Até cada um começar a defender o seu front com unhas e dentes. Foi aí que a paixão começou a desandar. Um foi deixando de gostar do outro, mesmo que ambos ainda gostassem de comer polenta com leite e ouvir BeeGees. Sei lá, faltava alguma coisa naquela relação que não estava mais dando certo (uma tela de computador?). Eles até que tentaram. Ele mantinha o seu computador na sala. O dela ficava no quarto. De vez em quando, teclavam por alguns minutos antes de ficarem off um para o outro. Mas teclar não era mais a mesma coisa. Talvez faltasse a distância, talvez faltasse o que hoje sobrava: eles se conheciam demais. O que aconteceu depois foi inevitável para o fim do casamento. Ela o flagrou com outra. No Skype.

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Laços de ternura Ambos nasceram em 1950, em meses diferentes. 14 anos se passaram e, em 1964, estudavam no mesmo colégio. Seus olhos testemunharam as transformações da época. Em 1965, ele notou o seu jeito de caminhar. Ela parecia deslizar pelo pátio da escola. Em 1966, sentaram lado-a-lado no ônibus. Em 1967, eram colegas de aula. Para eles, 1969, não foi lembrada pela chegada do homem à lua, foi o ano de seu primeiro beijo. Em 1973, ele a pediu em casamento. Em 1974, ela disse o sim. Em 1976, ele a traiu. Em 1977, ela pediu divórcio. Em 1981, reataram. Em 1983, assistiram juntos Laços de Ternura. Ele jurou amá-la para sempre. Em 1984, ela fugiu com outro. Em 1985, ela escreveu uma carta, pedindo perdão e dizendo que o amava. O carteiro entregou o envelope a uma vizinha, que extraviou a carta, que ele nunca leu. Eles sempre se amaram. Em 2013, ele é guiado pelos corredores do supermercado por sua netinha, de 03 anos, espevitada. A pequena esbarra numa senhora e derruba sua cesta. Ele ajuda a recolher as verduras e olha em seus olhos. Os mesmos que, em 1969, o encantaram. Ele não repara nas marcas de um rosto de 62 anos. Diante dele, novamente a garota de 19 anos, para quem jurou amor eterno. Passaram-se tantos anos e, engraçado, parece que foi ontem. Ela pensa no que dizer. "Você leu a carta? Não

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significou nada?". Não, ela resolve calar. Ele força o joelho para levantar. Osteoporose. -Vamos embora, vô- insiste a pequena. Eles encaram-se uma última vez. - Crianças.-Ele desculpa-se.Dá de ombros. Suspiram. Ela sorri e encosta seus dedos nos dele, quando ele a alcança o maço de couves que caíra no chão...

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Guerra particular A discussão se estendia, a ponto de terem perdido a noção de tempo. Podiam ter se passado minutos que eram como horas ou, de fato, se passado longas horas de muitos ataques e ofensas. O estopim da briga? Nem lembravam mais, na ânsia da raiva. No momento em que cada um defendia o seu front, novas munições eram utilizadas e lançadas em território inimigo e cada ataque resultava num contra-ataque e, assim, a batalha se renovava a cada minuto. Cada qual, tentava gritar mais alto ou ter a última palavra como desfecho do embate, mas isso era praticamente impossível. Naquele momento, se odiavam mais do que tudo e abrir a guarda ou mostrar a bandeira branca era inaceitável para qualquer lado. Faziam uso de suas metralhadoras acusatórias mas, ao mesmo tempo, fingiam não se ferir com as palavras. - Maldito dia em que te conheci. Você é a pior pessoa do mundo- ele disse. Foi nesse momento em que ela foi atingida. Ela até que tentou encontrar alguma granada verbal para jogar no inimigo, mas não encontrou. Engasgou e as lágrimas lhe vieram aos olhos. Era hora de bater em retirada. -Eu te odeio”, ela respondeu, enquanto se lançava para atravessar a rua e ir embora. Ele virou as costas e se foi para o outro lado, vitorioso. Cega de raiva, ela não enxergou o carro, que a atropelou. O grito dela lhe atingiu 29


10 Segundos mais do que qualquer coisa. Ele se virou e viu o seu corpo de 1,60 ser arremessado a uma altura considerável e atingir o solo. Seu coração pesou uma tonelada. Instantes depois, a multidão se aglomerava em torno dela, que fechava os seus olhos. Ambulância. Hospital. Correria. Oxigênio. Médicos. Transfusão. Dois dias depois, ao abrir os olhos o viu. Com a mesma roupa, a barba crescida, com olheiras profundas. Ela suspirou. Ele estava atento a sua respiração. Ambos se olharam e ele se entregou às lágrimas. -Eu te amo, ele disse. - Eu sei”, ela sorriu...

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Lógica e sentimento Eram dois jovens namorados descobrindo os mistérios do amor. Foi Lógica que cedeu às investidas apaixonadas de Sentimento e resolveu dar uma chance ao rapaz. No príncipio, ela se encantava com as sem-razões dele em querer conquistá-la. Ele mandava flores, bombons, dava toques no celular e escrevia poemas. Às vezes, também a convidava para ir ao cinema. Ele gostava de filmes românticos e ela preferia Woody Allen. Mas os dois também foram descobrindo muitas afinidades (e nenhum defeito) e até já planejavam casar e ter uma filha, que se chamaria Felicidade. Fazia dois anos que estavam juntos, mas Sentimento julgava que Lógica não retribuía à altura todo o carinho que ele lhe devotava. - Mas não peço que me faça ou diga nada. Por que fazer algo por ti que não seja expontâneo pra mim? Foi a resposta de Lógica. Sentimento encheu os olhos. Queria que ela também mostrasse seu amor. - Não posso mostrar o quanto te amo. Não sei se o que sinto é tanto quanto devo ou quanto tu mereces, pois não compreendo o que seja o amor. Sentimento não acreditava no que ouvia. Como a Lógica podia ser tão fria? No Dia dos Namorados, ele ficou em casa controlando os impulsos que tinha de declarar seu amor por ela aos quatro cantos. Agora, ela é que teria que provar que também o amava. Só que ela não o fez. E ele ficou lá, chorando e ouvindo músicas românticas, com o coração partido. (Será que ela tinha 31


10 Segundos outro?). Ela sentia falta dele e de seu romantismo exacerbado, mas aceitou sua decisão de se afastar. Resignada, pensava que talvez Sentimento fosse mais feliz assim, livre. E os dois não se falaram mais e o namoro, quase noivado, terminou. Na saída de uma sessão de cinema, o senhor Tempo (ele era paciente) e a dona Experiência (ela era compreensiva) lamentaram a ausência daquele bonito casal que saia abraçado e comendo pipoca. - É uma pena. Eram tão lindos juntos. Mas não souberam combinar, a Lógica com o Sentimento.

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Sobre amores e cores Num dia de chuva e vento, ele voltava para casa. Seu guarda-chuva não era dos melhores e, na verdade, já tinha algumas barbatanas tortas que ele insistia que voltassem ao lugar e esquecessem de obedecer as ordens do vento. Cruzou por centenas de outros guarda-chuvas de cores mil, até que se chocou com uma sombrinha corde-rosa (como é a a cor do céu dos apaixonados...). Ela derrubou as pastas de escritório que carregava. Ele entortou o guarda-chuva e arrebentou as barbatanas em definitivo. Ajudou a recolher os papéis dela no chão e recuperou outros que tentavam ganhar o céu, num balé aéreo. Ele se molhava, mas sentia o perfume que ela usava. Eternity. - Eu te dou uma carona debaixo do meu guardachuva. Ela ofereceu. Ele, queria pedi-la em casamento... *** O garoto chorava e não queria largar da mão de sua mãe, que o levava ao primeiro dia de aula da sua vida. -Vá conhecer seus coleguinhas Mas ele não queria. Aquele era um mundo estranho, cheio de estranhos. A mãe enxugava as suas lágrimas e quase se deixava convencer pelos seus apelos de levá-lo de volta para casa.

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10 Segundos Foi quando uma amiga chegou, trazendo sua filhinha, um pequeno anjo vestido de um azul cor-de-céu. Se recompondo diante do olhar da menina, o garoto secou as lágrimas e retribuiu o sorriso doce, corajoso e inspirador diante dele. A menina lhe estendeu a pequena e delicada mão. - Vamos entrar juntos. Ele tocou nos seus dedos, sem desviar de seus olhos brilhantes e do sorriso cheio de vida. E, confiantes um no outro, caminharam de mãos dadas até a sala de aula, ante o olhar orgulhoso de suas mães. Foi nesse dia em que ele conheceu o seu primeiro amor, mesmo sem saber o porquê de seu coração bater mais forte perto dela... *** Tudo tinha que ter lógica para ela. Era matemática e acreditava em resultados exatos e precisos. Tudo preto no branco. Se gostasse de poesia, teria estudado Letras. Mas não acreditava nisso. Desprezava poesia e odiaria receber flores (ela dizia). Para ela, o coração era simplesmente um órgão muscular cuja função era bombear o sangue vermelho para o organismo. Algo lógico e nada a ver com a descrição alienada de adolescentes apaixonadas e tolas, contagiadas pela síndrome de Cinderela (sempre à espera de um príncipe a lhe tomar nos braços). O amor, para ela, era uma farsa inventada para disfarçar nossos instintos primários de 34


Márcio Brasil seleção natural e acasalamento (lógico que o ser humano é um animal, ainda que racional). Algo exato. O amor, ela dizia, era como um perfume caro que se comprava para disfarçar o odor do corpo humano ou a menta da pasta de dente. Podia até impregnar sua pele ou refrescar sua boca, mas isso não fazia parte de sua natureza. Era uma ilusão breve. Ela podia viver sem perfume, assim como podia viver sem amor. (E se o príncipe se desencantasse sentindo o bafo e o chulé da Cinderela ao calçar-lhe os sapatinhos de cristal?) Era fácil desconstruir mitos. Deus? Uma lenda criativa, tão inventiva quanto o Papai Noel ou o Coelhinho da Páscoa. Para ela, a explicação divina para todas as coisas foi o tempo perdido para achar a verdade sobre todas essas coisas. "Tudo nasce, cresce e morre. Acontece com uma planta, acontece com um sapo, acontece com uma bactéria e não há nada de romântico ou misterioso nisso. É pura lógica, matemática e cronologia". Tudo tinha que ter lógica. Mas o que ela não conseguia entender era por que, entre seis bilhões de pessoas no planeta, foi se apaixonar justamente por aquela pessoa? O que tinha ela de tão especial, a ponto de destruir toda a visão de mundo que ela possuia e revirar seus conceitos pelo avesso? "Meu Deus, me permita viver esse amor", ela pediu, após mais uma noite insone e sem lógica... *** 35


10 Segundos Ele tinha aceitado o conselho dos amigos e resolveu participar do tal grupo de terceira idade. Vivia sozinho, mas ao contrário do que os velhos amigos pensavam, ser sozinho não era de todo o mal. Ele fazia os seus horários, dormia até a hora que queria, comia de vianda, fazia suas caminhadas, deixava a roupa espalhada e pedaços do jornal que lia por toda a casa. E ninguém reclamava de outros hábitos peculiares. Depois de ter sido casado por 40 anos, ele reaprendia a viver uma vida de solteiro. E não era tão mal assim. Só ainda não havia se acostumado com aquele espaço vazio no sofá, ao seu lado na hora do chimarrão ou da novela (as horas cor-de-cinza e de saudade). Ela não estava mais aqui e ele, bem, ele era um velho. Naquele dia, no grupo de terceira idade, ele dançou. Até que a cãibra lhe fez perder o compasso. - Já passei por isso também- ela disse, sentando ao seu lado. - Pela cãimbra?- ele perguntou, bem humorado. Não. Por achar que minha vida tinha terminado com morte de meu marido- respondeu aquela senhora, que não pintava o cabelo, nem maquiava as marcas da passagem do tempo. - E como superou? - Percebendo que o mundo foi criado em nome do amor. E também que o tempo que temos é muito curto e que os medos que alimentamos são ilusórios. Como o de dizer que me apaixonei por ti. Ele sorriu, como uma criança no primeiro dia de aula... 36


Márcio Brasil *** Dois estranhos cruzam seus caminhos numa rua qualquer, numa pequena cidade qualquer, em frente a uma praça verde e arborizada qualquer. "Pode ser ela", ele se indaga. Ela, ele não sabe o que pensa, incapaz de ler pensamentos ou, simplesmente, de decifrar ou perceber as sutilezas femininas. Seus passos são apressados e carregados de compromissos profissionais. Ficam paralelos por uma fração de segundos, mas - sabe aquelas cenas de filme em que tudo fica em câmera lenta? Foi o que aconteceu aqui- ela passou ao lado dele, que invadiu-se de mil pensamentos, de mil frases para dizer, de uma vontade indescritível de desvendar aquele ser encantador que cruzava ao seu lado (e que inexplicavelmente não era notado pelos outros ao redor, como que acostumados a conviver com uma força da natureza absurdamente bela e enigmática, como a Lua). Em segundos, estavam distantes um do outro para, sei lá quando, cruzarem seus caminhos novamente. Restou a ele gravar as cenas em sua memória, retroceder seus passos e apertar o slow-motion para decorar aqueles poucos segundos em que a mulher mais apaixonante do mundo cruzou seu caminho numa rua qualquer, numa pequena cidade qualquer, em frente a uma praça verdejante qualquer... *** 37


10 Segundos Ela passou a noite escrevendo poesia. Estava triste, profundamente. Tudo por causa de um amor. Num de seus versos descreveu que "o amor é a maior força do universo. Mas os que se vêem tomados por essa força se tornam intensamente fracos". Ela sabia o que descrevia e transformava a tristeza em poesia. Ela lembrava dele, do seu amor (que a deixou intensamente fraca). Já havia partido (em pedaços?) e estava longe. A distância não era apenas física, mas cronológica. Os dias, meses e anos passavam impiedosos e ela acreditava no seu retorno. "Talvez não como fomos, duas pessoas que se conheciam em corpo e alma. Mas como se fosse a primeira vez, quando você sorriu para mim e acreditamos que seria para sempre", ela escrevia em seus versos. Em seguida, boba, rasgava as páginas. Especialmente ao ouvir Por Enquanto, em que Renato Russo diz na canção que "o prá sempre, sempre acaba". Renato sempre soube das coisas. Ela abriu as janelas e deixou o vento entrar, fechou os olhos e sentiu a brisa brincar com seus cabelos. Ela era bela, intensamente bela, pelos sentimentos que nutria. E resolveu que não iria mais se fechar para o mundo. "Por que um romance do passado parece tão mais confortável de abraçar, com seus erros e acertos, do que estar aberta ao futuro, estranho e distante diante de nossos olhos?", se perguntou. Ela decidiu que não seria mais fraca e que o amor lhe daria forças. 38


Márcio Brasil Amando a si própria, sem esperar pelo amanhã ou fazer planos de romances embalados por trilhas sonoras da novela das oito. "O verdadeiro amor surgirá sem cobranças, sem exigir mudanças, compreendendo minhas falhas humanas, e será intensamente lindo, aos meus olhos. O verdadeiro amor será sublime, será fiel. E será simples, como meus versos e complexo como o meu coração. Como é a beleza de uma rosa e a textura de suas pétalas", escreveu a poetisa (sem escrever...) com a ponta dos dedos no azul do céu, onde as nuvens se uniam tomando a forma de um coração, à espera de um pôr-do-sol encantador...

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10 Segundos

Um sorriso no céu Aos 22 anos, Clarissa era a moça mais bonita do bairro, da universidade e, dizem,até da cidade. Era boa filha, boa profissional e também dedicada nos estudos. Trabalhava de dia, estudava à noite e seguia uma rotina quase normal à das outras garotas. Porém, não costumava ir à baladas, barzinhos e, dificilmente, estava em rodas de amigos. Não bebia, nem fumava, não discutia religião e nem fazia questão de entender futebol ou falar retóricas. Pretendentes para ela não faltavam, pois todos gostariam de namorar uma garota como Clarissa: apaixonante, atraente, inteligente, deslumbrante, inacreditável. No entanto, ela não tinha olhos para ninguém. Se isolava em seu mundo de quatro paredes e se perdia em meio a livros (como Clarissa, de Érico Veríssimo). Entre sorrisos e lágrimas, cantava Antologia, de Shakira ou perdia horas na internet, vendo a vida acontecer nas redes sociais. Clarissa estava só. Tinha na parede de seu quarto o quadro O Nascimento da Vênus, de Boticelli e se sentia como a própria deusa desnuda em cima da concha, mas como se estivesse fechada dentro dela, alheia ao mundo (ou protegida dele?). Ingênua, rabiscava sentimentos em seu diário. Clarissa teve poucos namorados, os quais nada representaram. Nenhum foi capaz de compreendê-la, nem de tocar o seu nobre e meigo coração de alguma forma. Tampouco foram capazes de enxergar a tristeza de seu 40


Márcio Brasil semblante. Os homens que conhecera tinham o péssimo hábito de serem idiotas e agirem como idiotas (também, esperar o quê de idiotas?). Os dias passavam e o coração de Clarissa apertava e ela sentia saudades de algo, cada vez que olhava as estrelas, incapaz de explicar o que era. Clarissa acreditava em destino, em almas gêmeas e em amor verdadeiro. Para ela, o mundo era permeado de magia e sentia isso na beleza de tudo. Adorava a lua minguante que, para ela, parecia o sorriso do gato de Alice solto no ar. Se reconhecia minúscula, ao olhar para as estrelas e sentia que, em algum lugar, alguém também olhava, com a mesma aflição para o infinito. Era como uma conexão telepática. Sabia que, em algum lugar do planeta, perto ou longe, estava a pessoa que completaria a outra metade de sua alma dividida.

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10 Segundos

As time goes by Ele comprou ingresso para assistir a estreia de um filme que estava atraindo a atenção das pessoas daquela época. O filme era longo, mas o emocionou muito. Principalmente depois, na saída, quando avistou pela primeira vez um rosto que jamais esqueceu. Imaginou-se como o próprio Rhett Butler, encantado por Scarlett, a heroína que prometeu que jamais iria sentir fome novamente. Não sabia quem era a moça, só sabia que ela gostava de cinema, ou não teria comparecido àquela concorrida sessão. Na ânsia de reencontrá-la tornou-se assíduo frequentador das matinês. Certa feita, triste com o destino de Heathcliff e Cathy Linton, avistou, rápido, o rosto que tanto aguardava. Mas a moça acabara de entrar num carro de aluguel, deixando para trás o apaixonado que ignorava existir. "Gostaria que o vento uivasse em meus ouvidos o nome dela, pelo menos", suspirou. Anos se passaram e ele nunca mais a viu, apesar de ter feito do cinema a sua religião. Até que um dia, ao final de uma sessão, uma moça chorava a silenciosa despedida de olhares de Rick Blane e Ilsa Laszlo. - Eles não ficaram juntos no final, não é justocomentou ela. As luzes se acenderam e ele percebeu que era ela, a moça que habitava os seus sonhos. Sentiu seu coração se 42


Márcio Brasil confortar ao vê-la ali, ao seu lado, conversando com ele, justamente num momento em que pensava que nunca mais a veria. - Foi melhor assim- disse ele - Por que- ela indagou - Porque Ilsa estava dividida entre o amor de Victor Laszlo por ela e o amor dela pelo canalha do Bogart? - Quem é Bogart? - Humphey Bogart. O ator que interpretou Rick, o dono do bar. - Não gosto de pensar assim. Para mim, filmes contam histórias de pessoas, em algum lugar do mundo, que vivem esses sentimentos de alguma maneira. Não acho que essa história seja apenas de atores que decoraram um texto. Ele sorriu e resolveu instigar a imaginação dela - Então como acha que seguirá a vida dessas pessoas depois do que acabamos de testemunhar? Ela pensou um pouco e respondeu. - Tenho certeza que Ilsa vai voltar para Casablanca e vai ser feliz ao lado de Rick, a quem ama de verdade. E ela dançará muito ao som das canções do Sam, especialmente As Time Goes By. E ambos sempre terão Paris para recordar... Na saída do cinema, ele comprou pipoca e ofereceu o seu casaco para protegê-la do frio invernal. E esse não foi o fim, mas o início de uma bela história.

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Romance de inverno - Lembra daquela noite superfria de inverno em que tu tirou o teu casaco e me envolveu para que eu não me resfriasse e a gente continuasse no banco da praça, dando nome para as estrelas?, perguntou a esposa, após 10 anos de casamento, para o seu marido. Ele, que fazia o cálculo das despesas do mês, respondeu que não lembrava. - Como não?, surpreendeu-se ela - Não acredito. Foi quando tu se declarou apaixonado... Disse, tentando preencher a falha na memória dele. - Olha, eu não lembro mesmo, mas se tu está dizendo.. Foi a resposta. Atônita, ela nada disse. Ele só analisava as despesas a serem cortadas. Ela resolveu tentar mais uma vez. - Mas lembra o que aconteceu depois? - Depois do quê? Ele se impacientou com a impertinência da esposa, que atrapalhava a sua Matemática. - Depois da declaração, ora. Não está ouvindo? - Estou. Esse é o problema. Não vê que estou ocupado? Vai assistir a tua novela. Resignada, ela foi saindo da sala, mas parou na porta e tornou a olhar para o marido. "Ele não pode ter esquecido", pensava. "Só nós dois estávamos lá. Se ele esqueceu, apenas eu mantenho a lembrança. Ninguém mais no mundo sabe disso. Se eu também vier a esquecer, algo 44


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lindo e único vai se apagar para sempre, como se nunca tivesse acontecido”. Ela lamentou que o tempo tenha sido impiedoso e que, além de trazer marcas, tenha apagado tantos momentos felizes. Não de sua mente, mas da pessoa que considerava o amor de sua vida. Ela olhava para ele: com um óculos de descanso, entre calculadora e papéis, a fronte tensa de preocupação e lembrou daquele garotão inconsequente por quem havia se apaixonado. Se ele estivesse aqui, certamente deixaria qualquer cálculo para depois e faria amor com ela em cima das contas do mês. No entanto, aquele garoto agora parecia sepultado, enforcado por uma gravata ou atropelado pela prestação do carro novo. Tinham hoje uma vida de luxo, diferente das inúmeras dificuldades dos primeiros anos. No entanto, o mais importante havia ficado para trás: a vida, a cumplicidade, a paixão desenfreada. Ela não queria perder suas lembranças, nenhum dos momentos que viveu. Passou a relembrar de vários momentos felizes da vida a dois. Decidiu que iria escrever em seu diário, cada um deles, em detalhes para que os bons momentos se perpetuassem. Registrou principalmente os pequenos bons momentos, os diminutos, imperceptíveis, os fáceis de esquecer. Queria esmiuçar e compreender um universo de sentimentos existentes em microssegundos do dia-a-dia. Escreveu até cansar. Depois, foi até o marido que havia adormecido em cima das contas. - Naquele noite, nós nos beijamos pela primeira vez... 45


10 Segundos Ela sussurou em seu ouvido, esperando que o subconsciente dele resgatasse a mem贸ria perdida e o fizesse lembrar de um tempo em que contar estrelas numa noite de inverno era a melhor coisa do mundo.

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Ângela Vestida de branco, ela entra no salão. Passos lentos e calculados. O sorriso era o mais bonito que o mundo já vira surgir em seu rosto. O coração acelerado, invadido por uma alegria que jamais sentira em toda a sua vida, até então. Um coração que não cabia em si com tanta alegria e que, ainda bem, encontrara outro coração para dividir tanta emoção. No semblante do outro, a compreensão e a confiança no olhar. Ao seu lado, a pessoa que a completava, sua outra metade. O seu elo encontrado. Duas almas tornando-se uma só, unidas fisicamente pelo contato das mãos entrelaçadas. Espiritualmente, voavam como dois anjos. A delicadeza de seus passos fazia crer que ela pisava em pedaços de nuvens, flutuando no ar. E ela iluminava a noite com seu sorriso. O mais bonito que o mundo já viram surgir em seu rosto. Em volta, rostos de todas as matizes. Sorrisos de todas as nuances e aplausos de todos os tons. Em tela, a simbologia do amor verdadeiro, da busca coroada de êxito. "Sim", ela disse. "Sim", ele também respondeu. E a aliança então os uniu. Todos aplaudem. Os românticos choram. Os sonhadores idealizam. E os realistas? Desdenham, talvez. E, à sua maneira também choram e idealizam. Amor, quem sabe? Daqueles que não se realizam... *** 47


10 Segundos Durante a cerimônia de casamento de sua amiga, Ângela encara-se no espelho do toalete. Finge retocar a maquiagem. No reflexo, encara a tristeza de seu olhar e tenta compreender-se como ser humano. Tenta compreender suas ações, suas emoções complexas, suas atitudes desconexas. Ela foge de quem quer estar perto. Ela nega o amor que sente, quando o que mais queria era abraçá-lo com toda a sua estúpida alma, cheia de defeitos e anseios. Ela reluta, quando só queria baixar a guarda. Ela sorri, querendo chorar. No salão, o amor. No rosto, a dor. Angela respira fundo e aprisiona todos os beijos, abraços e sonhos mais uma vez e estanca todas as lágrimas. Antes de entrar em cena, retoca a maquiagem. A noite é de festa...

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Sobre sexo...

Clarissa suspira fundo, percebendo que ainda lhe restam alguns segundos de autocontrole, que ainda pode interromper o percurso atrevido das mãos e da língua quente de seu amante, antes que ele alcance a sua calcinha, os seus pelos pubianos e aí, entregue-se mais uma vez no chão, no colchão, em cima da mesa ou debaixo do chuveiro...

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Várias variantes O marido chega em casa de madrugada. A mulher está na sala, acordada. Veja ocorre neste cenário em um acontecimento extraordinário em oito dimensões paralelas e compare as possibilidades que são várias e variantes: 1ª dimensão O marido entra furtivo. A mulher, toda magoada, o fuzila com uma pergunta. - Posso saber onde o senhor estava? - Pois sim, benzinho. Lembra que eu tinha dito que iria jogar futebol? - Claro. E vocês ficaram sete horas seguidas jogando? - Mas é claro que não, sua booooba. Depois do jogo, fomos tomar umas cervejas na casa do Alfredo. - Engraçado. Ele ligou há horas perguntando de ti. - Alfredo, ora, Alfredo. Que cabeça a minha. Confudi. Eu quis dizer na casa do Peeeeeedro. - ...Que ligou logo depois que tu saiu, avisando que teria de viajar às pressas e não participaria do jogo. - Mas tu pensa que só tem um Pedro nessa cidade? - E esse cheiro de perfume vagabundo?? E essa mancha de batom?? E essa mordida no teu pescoço?? - Eu tenho uma explicação... - Tu tem outra????

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Márcio Brasil A mulher chora. O gato mia. O cachorro late. O bebê acorda. O homem deita e dorme. Amanhã ele explica... 2ª dimensão O marido entra. A mulher está à sua espera na sala de jantar. A mesa estava posta e ela estava à sua espera. - Eu cozinhei te esperando. E tu chega a essa hora... - Ôoo. Parece que tu adivinhou que eu tava com fome... Pratos, travessas e talheres são arremessados em direção ao marido. 3ª dimensão O marido tenta entrar. A chave não colabora. Sua esposa se aproveitou da breve de horas para ligar pro chaveiro e trocar a fechadura. Todas as roupas dele estão em de sacos de lixo desses que são vendidos nos mercados. Pelo menos ela tinha separado um saco só para cuecas e meias. Ela era uma mulher prática. O marido pega o celular e liga para a casa do amigo (de onde tinha acabado de chegar) - Dae, Pedrão. Ainda tem bebida aí...? E a muglerada? 4ª dimensão Antes de abrir a porta, ele ouve uma música. Não define o que é. Abre a porta devagarinho. E ouve a música. Era Elis Regina. Atrás da Porta. 53


10 Segundos

Quando olhaste bem nos olhos meus E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei Eu te estranhei, me debrucei sobre o teu corpo e duvidei E me arrastei, e te arranhei E me agarrei nos teus cabelos No teu peito, teu pijama Nos teus pés, ao pé da cama Sem carinho, sem coberta No tapete atrás da porta Reclamei baixinho Dei prá maldizer o nosso lar Pra sujar teu nome, te humilhar E me vingar a qualquer preço Te adorando pelo avesso Pra mostrar que ainda sou tua Até provar que ainda sou tua. Ele sente um arrepio ao ouvir essa música. Pensa em dar meia volta, mas a esposa percebe que ele chegou. Pergunta onde ele estava até essas horas. Ele desconversa. - Essa música foi escrita pelo Chico Buarque, né? - É, acho... - Vamos ouvir o resto juntinhos. Tava com saudades suas... E depois da Elis, trocaram por um disco do Roberto. E ouviram Cavalgada até o amanhecer. 54


Márcio Brasil 5ª dimensão O marido chega. Silêncio na casa. Sua mulher não estava. Ele encontra um bilhete onde estava escrito "direitos iguais". 6ª dimensão O marido chega. A mulher estava dormindo. Ele deita de mansinho para não acordá-la. Passa as mãos de leve por suas costas. Toda manhosa ela diz que já estava exausta de tanto sexo. - Como assim, sexo? 7ª dimensão Ele entra. Está escuro. Em seguida, ele vê um clarão. E volta a ficar escuro. O sangue dele escorre pelo tapete da sala. 8ª dimensão Ele entra. A mulher está na sala e pergunta. - Onde tu tava? - Putz, na casa do Pedro. Tava difícil de sair de lá. Maior agito, teve strip pôker... - Hmmm, strip pôker, é? - Aham, aham... - E tu ficou com alguém? - Bah, bota merda. Acabei ficando, sim. - A mina era massa? - Uma louca muito boa. - E aí, comeu? 55


10 Segundos - Até comi, mas não gozei. A guria era cheia das frescuras. - Então, vamos pro quarto. Tava aqui te esperando. - Faz um strip pra mim?

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James Blunt e Flores Mortas Clarissa se arrepiava quando era beijada no pescoço. E por causa disso se tornava um alvo fácil nas mãos de Fernando. Após uma pequena discussão, eles se beijavam ferozmente. Ele a beijava ao mesmo tempo em que agarrava com firmeza o seu cabelo e até dava-lhe uns puxões. Já ela, mordia o lábio inferior dele, segurando-o entre os dentes até que ele produzisse um "ai", que a excitava. Era nesse momento que ele revidava e descia até o pescoço dela, deslizava a língua por sua nuca, umedecendo-a com saliva, e sussurrando qualquer coisa nos seus ouvidos. Num instante, suas mãos já estavam debaixa da blusa dela, percorrendo suas costas com a ponta dos dedos (os pelos dela ficavam eriçados), ziguezagueando por sua pele como que disfarçando a próxima parada: os seus seios. Ele aperta o seu corpo contra o dela, puxando sua cintura fina com força fazendo-a sentir sua excitação. Neste momento, Clarissa suspira fundo, percebendo que ainda lhe restam alguns segundos de autocontrole, que ainda pode interromper o percurso atrevido das mãos e da língua quente de seu amante, antes que ele alcance a sua calcinha, os seus pelos pubianos e aí, entregue-se mais uma vez no chão, no colchão, em cima da mesa ou debaixo do chuveiro. - Não! Espera! Ela diz, arrependendo-se de ter dito. Mas se mantém firme na decisão. 57


10 Segundos - Eu não quero mais. Não desse jeito. Fernando se irrita. Ela queria continuar com a discussão que já durava horas. Eram amantes. Ele era comprometido. Clarissa era jovem e ele era um homem mais velho. Mas ela não queria mais tê-lo pela metade, não queria mais continuar sendo a outra" Não queria mais ser um nome masculino disfarçado na agenda do celular dele para que a vaca não descobrisse sobre os dois. - Nós dois, Fernando. Somos um clichê. Iguais a outros tantos. Iguais aos de novelinhas bestas. Tu vai seguir me enrolando e eu vou seguir acreditando que vai largar dela e ficar comigo. Vou seguir na esperança de que tu me prove que gosta de mim, como tanto diz. Mesmo sabendo que é ela que dorme abraçada contigo. É ela quem tem o melhor de ti. Para mim, ficam essas migalhas de carinho, de tesão, de aventura proibida, de tua "ninfeta". Fogosa. Gostosa. Desencanada. Mas tu escolheu ficar com ela, porque tem medo de tomar uma decisão, aí, vai pelo caminho mais fácil. E isso dói, sabia? Dói pensar nisso. Dá ódio! Quer nadar até mim, mas pensa que pode se arrepender depois e não encontrar o seu porto seguro. Típico clichê. Foda-se, cara. Cai na real. Diga logo a verdade. - Não diz isso, amorzinho. Tu sabe que eu te amo... - Eu sei que tu ama é tirar a minha calcinha. Quer me colocar de quatro ou quer que eu te faça sexo oral. Eu sei que tu ama é estar no meio das minhas pernas. Eu sei que tu ama é de gozar em mim e gemer. E suar. E revirar 58


Márcio Brasil os olhos de tesão. É patético. Ambos somos patéticos. Eu, por estar me prestando a esse papel e tu...não se enxerga? O que somos? O que existe entre nós? - Porra! Diz Fernando, irritado, enquanto ajeita o cinto da calça. - Porra, sim. É nisso que se resume a nossa relação. Tu vem. E a genta transa. E espalha o teu esperma no meu corpo. E vai suado para o chuveiro, e então se livra do meu cheiro e corre para dormir com a tua mulher. Talvez, antes de dormir vocês rezem uma ave-maria jcomo o vovô e a vovó já faziam. Porra é o que fica de ti para mim. Ou então esses presentinhos que me traz. CDs do James Blunt? Por favor, né! Flores? Até hoje não aprendeu que eu não gosto de flores mortas. Quer que eu me contente com isso? Ridículo. Pensa que sou uma tola que vou seguir acreditando em tua conversa idiota de "oh, eu te amo e vou largá-la para viver contigo que é quem me faz feliz?". Eu vou te esquecer. Eu vou amar alguém que me ame e trepe comigo até a madrugada, mas que esteja ao meu lado quando eu acordar... Fernando tenta abraçá-la, na intenção de calar sua boca com um beijo. Clarissa fica ainda mais furiosa. - Eu disse não. E eu digo nunca. Quero que vá embora e me esqueça. E esqueça que um dia me conheceu. E nunca mais volte aqui porque eu não quero mais saber de ti. E te odeio porque tu fez eu te amar. E vou te odiar para sempre porque... - Tu me ama? - .... 59


10 Segundos - Ei, calma. Deixa eu te abraçar. Só um abraço e vou embora. Prometo. - Eu não quero mais isso... - Tá bem, eu sei. Vou pegar minhas coisas. - Espera. Me abraça. - Estou aqui. Shiiii. - Eu só queria que as coisas fossem diferentes... - Eu também... - Sinto tanto a tua falta... - Eu só penso em ti... - Mesmo? - É, sim. - ... - Vou pegar minhas coisas... - Não! Deixa aí. Fica mais uma hora. - Só se me der um beijo... - Vamos pro quarto?

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Márcio Brasil

Encontro (Im) perfeito Ele não gostava de usar gravatas. Não se sentia confortável com aquele negócio apertando o seu pescoço. Só as tolerava quando tinha algum compromisso formal, como um casamento ou festa de formatura. Por isso, foi um tanto peculiar a sua decisão de usar gravatas nessa noite. Era apenas um jantar, mas ele estava usando gravatas. E não só: também um par de meias finas e um terno impecávelmente alinhado. Por um momento, questionava se não havia colocado perfume demais,pois ainda estava sentindo aquele cheiro adocicado passadas uma hora depois de ter colocado, a ponto de lhe dar uma certa dor de cabeça. Talvez tivesse mesmo exagerado. Mas, de que outra forma iria se apresentar perante aquele monumento que estava sentada diante dele? O nome do anjo? Gabriella. Até o nome era de um anjo. A mulher mais colossal que ele já havia conhecido. E que, incrívelmente, havia aceitado sair junto com ele. Talvez fosse uma forma dela fazer caridade, ele pensou. Bobagem. Ele estava arrasando. E o que é mais incrível: ela ria das mesmas piadas manjadas que ele contou a vida inteira para os amigos, que sequer esboçavam alguma reação. Eram uns ignorantes, mesmo. Ela o compreendia. E ria, com seu sorriso formado por dentes perfeitos. E a boca mais desejosa que já viu 61


10 Segundos diante dele, ornamentada por um batom brilhoso. Como é que elas chamam aquele negócio mesmo? Glóss. Bonito de ver. Ruim de beijar. Tudo bem, ele a perdoava por isso. E também por aquele vestido preto (matador), com alcinhas atrás de sua nuca, as quais prendiam aquele decote provocante. Ele se controlava para não olhar. Descontando a hora em que ela se virou para o lado e pediu Foie Gras para o garçom. Aproveitou para mirar-se naquele decote. Mentalmente, o comparou a uma pequena comporta de uma imensa barragem, insuficiente para conter uma enxurrada. Era como se a qualquer momento aqueles seios fartos fossem saltar para fora. Seios. S-e-i-o-s. Seeeeeiosssss... Sem dúvida que eram os mais belos seios que ele já tinha visto. Imaginava se todo o investimento que faria naquele restaurante caro lhe dariam a oportunidade de pôr a mãos naqueles peitos. - O que deseja, senhor? – perguntou o garçom, trazendo-o de volta a realidade. - Peitos... - Perdão? - Aham. Quero peito...de peru. E vinho. O garçom trouxe o pedido de ambos. Pouparemos o leitor de uma detalhada narrativa a respeito destes momentos. E também sobre o valor despendido pelo jantar. A pergunta aqui é: eles transaram? Vamos pular direto para o apartamento dela. (aliás, foi decisão dela ir 62


Márcio Brasil para lá, após a famosa pergunta: no seu AP ou no meu. Foram para o dela). A noite estava apenas começando. Eles continuaram bebendo vinho. E dançavam ao som de Michael Bolton. Estava tudo perfeito: a lareira, o vinho, a dança, a música. Tudo muito civilizado e romântico. Até que ela o largou no meio When I Fall In Love. Deu uns três passos para trás, encarando-o de forma insinuante. Secou a taça de vinho e a jogou na lareira. Em seguida, levou aos mãos para trás da nuca e começou a desatar aquele lacinho. A comporta se abriu e veio aquela enxurrada que ele tanto aguardava. A partir daí, a civilidade foi por água abaixo e ele libertou o seu homem das cavernas interior. Ou Conan, o Bárbaro. Ou Krull, o conquistador. A noite foi perfeita. Já era de manhã quando ele acordou. Olhou para aquela deusa nua ao lado dele. Que bom. Não havia sido um sonho. E poderia contar para todos os seus amigos sobre a noitada. Eles o invejariam. Bocejou e lembrou do sonho que tivera: via-se nadando nu numa barragem. Ninguém estava olhando e ele sentira a vontade de fazer xixi dentro da água. Que sonho mais esquisito. Bem, era hora de levantar e ele inclinou-se com cuidado para retirar o seu braço debaixo da cabeça dela, sem acordá-la. Foi nesse momento que percebeu a tragédia: a cama estava molhada. Voltou a deitar abruptamente. Não era possível. Isso não pode ter acontecido, não com ele, não naquele momento. O vinho, claro, tivera um efeito devastador durante as horas de sono. Lembrou da sua mãe e daquela vez em que ela colocou o seu colchão para secar ao sol 63


10 Segundos bem na frente de casa, o que fez seus amiguinhos sacarem o que tinha acontecido e lhe importunado durante meses: - Mijão, mijão! Não. Ele só podia estar dormindo. O seu “amiguinho” que tanto orgulho tivera lhe dado na noite anterior, não poderia lhe causar essa decepção depois de tantos anos. O que ele iria contar para os amigos? Sobre a noite em que ficou com Gabriella e.... Não!! Eles jamais poderiam saber disso. Gabriella se mexeu na cama. Ele parou de respirar por um instante. E agora? Quando ela acordar? Se ele conseguisse trocar a roupa de cama... Tentou novamente mover o braço, debaixo da cabeça dela, mas parou no meio do caminho. Ela poderia acordar e descobrir o ocorrido. O que ele iria dizer? Quem sabe, se usasse um secador de cabelo, um ferro de passar, algo assim. Mas, para usá-lo teria de dar uma pancada na cabeça dela, se certificar de que não iria acordar com o barulho. Diacho. O que fazer numa hora dessas? Quem sabe o melhor fosse usar da sinceridade, conversar com Gabriella, contar o que aconteceu e pedir milhões de desculpas. Foi algo involuntário. Mas é claro que isso poderia pôr fim a uma bela história de amor. O pior acabou acontecendo: Gabriella acordou. - Ei, tu já está acordado... - Pois é... - É impressão minha ou a cama está molhada? 64


Márcio Brasil Ele parou de respirar pela segunda vez, ficou vermelho-roxo-azul. Antes que pudesse dar alguma explicação, ela o interrompeu. - Olha, não quero que tu pense mal de mim... - Me desculpe, Gabriella, eu sei o que tu vai dizer. Realmente, foi uma coisa involuntária e... - Eu estou com incontinência urinária. - Hein? - É isso aí. E nós bebemos muito vinho, né? - Quer dizer que tu fez xixi na cama? Um tanto corada, ela admitiu. Mas a naturalidade com que ela fez isso o acalmou. Depois tomaram café juntos e conversaram um pouco mais. Antes de ir embora, ela lhe deu o seu telefone. - Tu me liga? - Claro. E ele foi embora, mas nunca ligou. Pudera. Aquela mijona...

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Bolo frito com sexo e chimarrão Os dois amigos chimarreavam ao final de uma tarde. Um costume de muitos anos. Conversavam sobre todos os assuntos. Falavam desde a crise econômica mundial até a performance de cada clube participante dos campeonatos esportivos. Quando dava aquele vazio na conversa, de uns poucos segundos, o compadre olhava para o céu e reclamava da falta de chuva, dando início a um longo debate sobre a falta de incidência e os prejuízos na lavoura e etc. A esposa do dono da casa estava por ali, prendada, sempre perguntando se precisavam de qualquer coisa. - Um bolinho frito com canela? - Brigado, comadre. O compadre adorava os bolinhos fritos que ela preparava. Já tinha provado com canela, com açúcar mascavo, com temperos exóticos. Enfim, cada vez era um sabor diferente. Após deliciar-se com mais um pedaço de bolo, era inevitável o compadre elogiar a dedicação da comadre. Dizia que o amigo era de sorte por ter casado com ela, muito prendada, uma grande companheira. E além de tudo muito bonita e prendada. - Tu acha ela bonita, então, compadre? E o compadre ficou vermelho com a pergunta do amigo. Tinha dito no sentido de elogiar, não era de seu feitio cobiçar a mulher alheia. Apenas quis dizer da sorte que o amigo tinha de ter uma companheira como ela.

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Márcio Brasil - Não fique corado, compadre. Te faço essa pergunta porque...bem, eu tenho uma coisa para lhe pedir. E confio em ti. - Pois pode confiar. - Como tu sabe, instalei aí no rancho uma internet. A gente fica proseando com os camaradas, pesquisa as coisas. Fica sabendo da cotação do milho, da soja, do quilo do boi vivo. E também conhece outras pessoas através dos messenger, chates, orkute, feicebuque, uébecam e essas coisas. - Sei, sei. Meu filho passa pendurado nessas coisas. - Pois bem. A gente acabou conhecendo uns casais aí que ensinam umas receita para o casamento não ficar na rotina, tu sabe como é... - Sei, sei... - E aí, funciona mais ou menos assim. Eu empresto a minha prenda pro outro vivente e ele me empresta a dele. É uma modernidade. O sujeito cobre a tua patroa, mas tu não vira corno, porque tu também tá cobrindo a dele. Fica elas por elas. - Me dá um mate ligeiro que eu engasguei com essa prosa... - Não fique corado, compadre. Tu parece que é do tempo de socar milho no pilão. Tem que aprender com os jovens. Se é bom para eles, é bom para nós. - Tá bem, tá bem. Mas onde é que o compadre precisa de mim? - Bom, eu ainda não experimentei essas troca e não sei como vou me comportar. Então, eu precisava que tu cobrisse a minha mulher, enquanto eu fico avaliando... 67


10 Segundos - C-como é que é? - Tu não acha ela bonita? - A-Acho, mas não pensei em... - Deixa de bobagem, então. Taí a oportunidade. - Mas tu é meu amigo. Não posso trair a nossa amizade. - Mas se sou eu que estou deixando, tchê. Pode botar as mão. - Preciso pensar sobre isso... - Mas será o pé da coruja? Não tem que pensar nada. É só fazer. Mulher, pode vir. E o marido chama a esposa, que surge de banho tomado, fazendo o compadre perceber que a coisa já estava mais ou menos arranjada. "Pode te pelar", ordena o marido, puxando a toalha que envolvia o belo corpo da patroa, que se achega próxima do compadre, já nervoso e excitado. O marido avisa que vai botar uma música, como costuma ver nos filmes. Sem muita opção, ele acaba colocando um CD do Evonir Machado. "Eu sou fodido quando eu chego na zona, eu sou fodido quando eu chego na zona, faço amor com as empregadas, mas primeiro vou na dona", diz uma das músicas. E a patroa se roçando no compadre. E o compadre se roçando na patroa. E o marido retorcendo a toalha nas mãos, olhando aquela função toda. As roupas do compadre no chão. A comadre e o compadre por cima do sofá. E o marido avaliando e gostando daquilo tudo. 68


Márcio Brasil Lá pelas tantas, ele resolve tomar as rédeas da situação e ora ordena para o compadre, ora para a esposa para fazerem assim ou assado. E foi assim durante algumas horas. Depois de concluídos os trabalhos, a esposa se levanta para tomar banho. O compadre, já mais solto e assanhado, faz menção de querer acompanhá-la, mas o marido sentencia. - Deixa que ela vá sozinha. Foi a dica para ele se vestir e tomar o rumo de casa, mais ou menos como um cusco magro. Passou-se alguns dias e o compadre não tinha cara de ir na casa do amigo. Não sabia como seria recebido. Mas acabou cruzando com ele no mercado. - Mas tchê. Tu não me apareceu mais. Se ofendeu com alguma coisa? - Não, capaz. Só não tive tempo.... - Ora, deixa de bobeira. Vai lá tomar um chimarrão. A mulher tem umas receitas novas de bolinho frito. E ele foi. Só que, diferente de outras vezes, ele se arrumou para ir. Tomou banho, fez a barba, passou perfume. E se foi para a casa do amigo, que, logo, estranhou aquela produção. - Mas e esse perfume fedorento? Mas vai te esfregar com um bombril. Deixou até a bomba do mate perfumada, tchê... Antes que o compadre se envergonhasse da observação, a comadre o salva. - Eu gostei. - Agradecido. E esse seu bolinho tá cada vez mais gostoso. 69


10 Segundos - Obrigada. Mas o compadre notou que não estou usando nada por baixo? O compadre deu uma olhadinha para o amigo, que após sorver um mate fez um arram, limpando a garganta e consentindo o que viesse por acontecer. E assim, mais uma vez o compadre se atracou com a comadre e foi aquela safadeza. Agora, ele já conhecia os caminhos do prazer e sabia mais ou menos agradá-la melhor. Já era como uma dança, onde um acompanha o ritmo do outro. O compadre só perdeu o compasso quando viu o amigo com uma câmera nas mãos. - Para que isso? - Te aquieta que eu tô filmando para analisar melhor depois e discutir os detalhes com a mulher. Apesar de aborrecido com a câmera, o amigo continuou a função toda. A comadre teve até o desaforo de espalhar alguns bolinhos fritos pelo corpo e convidá-lo a comer, o que ele fez com dupla satisfação. E o marido filmava tudo com muita atenção e, de vez em quando, também pegava um bolinho frito. Depois de algum tempo, terminada a lida, eles se foram todos tomar mate. Com o detalhe que o marido era o único que estava de roupa. - Essa água está pelando de quente- ele reclamou, com o olhar fixo no vídeo da câmara, conferindo a gravação. - Não ficou muito bom. Vamos ter que refazer outro dia... 70


Márcio Brasil Pronto. Assim, o amigo já deixava engatilhado uma terceira vez que arrendaria a sua esposa para o compadre. E depois da terceira, ainda teve a quarta, a quinta e a sexta vez. Depois disso, um belo dia, o compadre recebeu um telefonema. Era a esposa. Estava apaixonada por ele. Direta, ela disse que queria sair para trepar, sem ser às vistas do marido. Do outro lado do telefone, ela ouvia o silêncio do compadre, até que este resolveu. - Olha, vamos parar por aqui. Safadeza até vá lá. Mas traição, não. Ora, se eu vou botar chifre no meu amigo? E dali em diante, ele não atendeu mais telefone e nem respondeu os e-mails do amigo. Era melhor assim, antes que a coisa ficasse mais séria. De vez em quando, aos finais de tarde, ele chegava a sentir falta do amigo e daquelas prosas que iam desde a crise econômica mundial até a performance de cada clube participante dos campeonatos esportivos. E, claro, aquele chimarrão amigo com a água muitas vezes pelando de quente. Ele só não gostava muito de lembrar dos bolinhos fritos com canela. Foram eles que terminaram com uma amizade tão bonita...

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10 Segundos

Insólitos

Ele levantou-se da cama e caminhou até a cozinha, evitando de pisar em cacos de vidro. Há duas horas, os dois tiveram uma terrível discussão, mais uma. Ele abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água mineral e a bebeu num gole só, matando a sede e tirando o gosto do sexo dela que ainda sentia em sua boca...

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Mรกrcio Brasil

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10 Segundos

O catador Um catador de papel de uma grande cidade passa na frente de um luxuoso hotel. Ele estaciona sua gaiota perto do meio-fio e se põe a recolher algumas caixas de papelão, olhando de soslaio para os engravatados, madames e poodles que entram no prédio. Na porta, um funcionário embequecado usando luvas brancas e chapéu abre a porta para quem chega e quem sai, sempre com um largo sorriso. Sol quente, calor demais, suor, horas de trabalho e cansaço. O catador coloca os papelões dentro da gaiota e se retira devagar, ainda tem muitas quadras para carrocear antes de ir para casa. Alguém diz: - Senhor? O catador não dá bola. Tinham dito "senhor". É claro que não seria com ele. Ninguém lhe tratava por "senhor". Ele ouve passos. Alguém toca o seu braço. Era um funcionário do hotel que cuidava da garagem. - Deixe que eu estaciono o seu veículo. E, sem cerimônia ou demonstrar desdém, assume a condução daquela gaiota suja e enferrujada, tal como se dirigisse uma Mercedez, conduzindo-a até o estacionamento. O catador fica sem entender, até que o porteiro do hotel o chama. - Senhor, por gentileza... Sem entender nada de nada, ele vai até o porteiro. O que teria feito de errado? Será que havia alguma coisa valiosa entre aquelas caixas de papelão que recolhera? Será que iriam chamar a polícia ou coisa assim? Talvez fosse 74


Márcio Brasil melhor fugir, talvez fosse melhor dialogar. E ele foi até o porteiro de luvas brancas com intenção de pedir desculpas pelo que tivesse feito de errado. Ainda que sequer soubesse o que tenha feito. Tirou o boné desbotado e limpou o suor antes de encarar o porteiro que, robóticamente, lhe escancarou um sorriso. Em seguida, abriu a porta do hotel para o catador. - Entre, por favor e sinta-se plenamente à vontade. "Plenamente", o porteiro disse. E não apenas lhe sorriu com a boca escancarada, mas também com os olhos. O catador foi entrando naquele saguão de mármore tão enorme que produzia eco do barulho que seus chinelos Havaiana (pé dum, pé doutro) faziam em seus calcanhares. Há anos, passava todos os dias na frente do enorme prédio e até evitava olhar para dentro, sentindo-se insolente. Não hoje. Ele tinha sido convidado a entrar, sabe-se lá por qual motivo. E foi entrando, esperando que o enxotassem a qualquer momento. Mas, curioso como uma criança, ele foi se encantando com tudo aquilo que estava diante dele. Coisas que ele já tinha visto ou ouvido falar pelas novelas da Globo. Um funcionário do hotel se achega, atencioso, perguntando de sua bagagem. - Eu...não tenho nada, não, moço. - Então, deixe que eu carrego o seu chapéu! E com todo o respeito e reverência, o rapaz se põe a carregar o boné do catador, conduzindo-o até a porta do elevador. - Entre! Quer que eu o leve até a sua suíte ou o senhor gostaria de conhecer o nosso restaurante? 75


10 Segundos - Eu...não sei. Posso dar uma olhadinha no restaurante? Já que ele tinha oferecido, por que não? Quando chegasse em casa, o catador poderia contar para a esposa e seus cinco filhos a respeito desse dia. E também para os primos. E os vizinhos. E um dia, até para os netos. Chegaram no restaurante, onde homens e mulheres bem vestidos e perfumados saboreavam pratos requintadíssimos. Ao enxergá-lo, o gerente do restaurante não fez cerimônia. Estendeu a mão para cumprimentá-lo alegremente e, em seguida, puxou a cadeira para que sentasse. - O senhor nos daria o privilégio de desfrutar das especialidades de nosso restaurante? Faço questão. E vou mandar que lhe tragam o melhor vinho que temos. Sintase plenamente à vontade! Sua estadia é por nossa conta! E ali estava o catador, admirado com as maravilhas desse novo universo. Os bacanas, como costumava chamar os engravatados, eram realmente bacanas. Gente educada, os bacanas. Tratavam-lhe bem e sequer se importavam com seus chinelos Havaiana, sua camiseta velha e sua calça surrada. Não julgavam pela aparência. Depois de deliciar-se com as comidas e os vinhos, o catador foi levado para a suíte. Entrar naquele quarto foi como se entrasse num disco voador. Bastava apertar um botão que o ar ficava quente ou frio. Bastava apertar um botão para que uma tela de cinema se iluminasse. Bastava apertar um botão que a banheira lhe massageava o corpo escalavrado. E o vaso sanitário, então? Era mais limpo que 76


Márcio Brasil os copos de massa de tomate que usava para beber cerveja. Da janela do quarto, ele enxergava um outro universo, uma outra cidade, que não era a mesma cidade de todos os dias. Ele via prédios que nunca tinha visto, praças que não pareciam estar ali, um trânsito tão perfeito. E ele, que nunca tinha voltado o seu olhar para cima estava vendo a vida acontecer, lá embaixo. E bem ao longe enxergava a pontinha do bairro onde morava, lá no morro. Toca o interfone. Era o pessoal da recepção, preocupado com o seu bem-estar. "Se desejar alguma coisa", ofereceram. - Quero jogar canastra! Em dois minutos, vieram três funcionários. Um trazia o baralho. Outros dois vieram para formar as duplas. E durante algumas horas, o catador jogou canastra e tomou cerveja com seus (agora) amigos do luxuoso hotel de onde catava papelão. Pareciam velhos conhecidos. E talvez fossem mesmo. Ele até se sentiu culpado por não reconhecê-los da rotina diária de cruzar por ali em frente, sequer arriscar um oi ou uma olhada de consideração. Talvez eles lembrassem dele e, hoje, casualmente no dia do seu aniversário o estivessem presenteando com um pouco de gentileza. - Acho que preciso ir. Perdi a minha rota hoje, mas valeu a pena. Os funcionários do hotel ficaram preocupados com sua decisão de ir embora - Mas por que? O senhor não gostou de nosso hotel? - Que avaliação o senhor fez de nosso serviço? - Alguma coisa não está de seu agrado? 77


10 Segundos Ele não entendia o porquê de tanta preocupação. Queriam saber da sua opinião. Mas, para ele, que não entendia muito dessas coisas de gente bacana, estava tudo bem. Se despediu dos novos amigos. E até deu o seu boné de presente para um dos rapazes. Na recepção apertou a luva branca do porteiro, que desejou que ele voltasse em breve. E lhe escancarou um sorriso colgate. O outro funcionário vinha conduzindo a gaiota de papelão. E, feliz da vida, o catador voltou a cumprir o seu ofício. Chegou em casa atrasado e todos riram de sua história, de seu delírio. - Vocês vão ver. O pessoal é meu amigo! E foi tanto que riram-se dele, e foi tanto que ele se revoltou com as provocações, que fez questão de levar a mulher e os filhos para o acompanhar no dia seguinte. Ele nem levou a gaiota para não atrapalhar. Como o hotel tinha muitos quartos, seus amigos achariam um cantinho para seus parentes passarem um dia de bacanas, como ele tinha passado. Ao chegar na recepção do hotel com a mulher e a filharada, o homem do sorriso colgate olhou-os como se fossem cárie. - Peço que se retirem daqui antes que chame a polícia! - Mas sou eu, lembra? O pessoal aí é meu amigo! Outro dia a gente até jogou canastra... - Não vou pedir de novo para que saiam! O homem fechou a cara e não se mostrou disposto a dar explicações. O filho mais novo do catador puxou-lhe pela camisa. 78


Márcio Brasil - Vem pai. Vambora! Alguns metros dali uma pilha de papelão. Pena não ter trazido a gaiota, mas não podia perder todo aquele material. E cada filho juntou algumas caixas para levar para casa. No meio do lixo, o seu boné desbotado, com o qual tinha presenteado um funcionário do hotel. - Eles devem ter ficado magoados porque eu quis ir embora... Resignou-se. E foi embora com sua família. Um pouco cuidava as caixas de papelão nas lixeiras. Outro pouco olhava para o alto dos prédios...

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10 Segundos

Meu amigo, meu inimigo O seu Armando chegou em casa reinento. Antes de abrir a porta da frente, deu uma ralhada no cachorro que veio lhe receber todo faceiro, mas com as patas sujas, carimbando sua calça fina. - Já prá lá, jaguara! Sua esposa lhe aguardava no quarto lendo um livro e só de ouvir o jeito com que ele jogou as chaves em cima da mesa, ela já deduziu o que tinha acontecido. - Perdi no pôquer. Mas eu juro que aquele filho de um carcamano do Francesco tava roubando. Eu não perco daquele jeito, de jeito nenhum. Mas nem era tanto com o dinheiro que Armando se importava. Ele não suportava era a forma debochada com que o outro se vangloriava de tê-lo tirado do jogo, após rapelar todas as suas fichas e o seu dinheiro. - E blefando com um par de três. Quá, quá,quá!! – Lembrava claramente da cara debochada do amigo. Ou, melhor, do falso amigo. Aquele desgraçado. Armando não conseguia dormir lembrando daquele riso insuportável. Nunca tinha percebido o quanto Francesco podia ser irritante. Mas precisava dormir. No outro dia, levantou cedo procurando esquecer do malfadado pôquer. Durante o café, sua esposa lia a metade do jornal que tinha as sociais e as fofocas dos artistas, enquanto seu Armando lia a parte da política e dos esportes. 80


Márcio Brasil - Olha aqui. Saíram as fotos do casamento da filha do Francesco. Eles pagaram duas páginas. E em cores. E mostrou para o marido que se enxergou numa das fotos. Tinha saído vesgo e feio. E no jornal de sábado. Ele já se irritou cedo nesta manhã. Antes de sair de casa, deu uma ralhada com o cachorro que se aproximou para fazer festa e já levou um coice do dono. - Já prá lá, jaguara! E, assim, seu Armando chegou ao trabalho. Ele era dono de uma loja de roupas chiques, que ficava ao lado da padaria de seu Francesco. Geralmente, quando cruzava em frente à loja do amigo, costumava cumprimentá-lo com um aceno. Às vezes, até conversavam por um instante sobre o que tinham lido no jornal naquela manhã, durante o café. Mas não hoje. Seu Armando nem olhou para o lado, pois não queria enxergar a cara deslavada daquele indecente descendente de italianos que vieram clandestina-mente nos navios, iguais aos ratos. Ao entrar em sua loja, pegou os últimos instantes de um diálogo entre uma cliente com a sua funcionária. - Olha, eu realmente achei bonito esse vestido, mas não vou levá-lo. Parece cheirar a fritura. Seu Armando entrou na conversa. - Oh, não minha senhora. Sou o dono da loja e peço-lhe desculpas, mas é que existe uma padaria bem ao lado e o cheiro de frituras certamente é deles, não daqui. Mas a mulher não quis saber, agradeceu e foi embora. Seu Armando ficou chateado com o ocorrido. 81


10 Segundos Ainda mais depois de sua funcionária dizer que não era a primeira vez que aquilo acontecia. - Toda manhã o cheiro de fritura invade a loja e temos esse problema. Isso quando não são as baratas. Esta peça está cheia delas. Seu Armando havia tomado uma decisão. Não ia mais deixar que o carcamano estragasse seus negócios e arruinasse com o seu humor. Assim, ele chamou seu advogado e perguntou o que poderia fazer nesse caso. Ele queria, a todo custo, que o carcamano viesse lhe pedir desculpas. - Olha, seu Armando. Lhe aconselho o seguinte: vamos entrar logo com uma Ação de Indenização por Perdas e Danos. Afinal, o senhor está sendo prejudicado em seus negócios... Enquanto esperava pela resposta de seu cliente, o advogado dava baforadas com a fumaça de seu charuto, instigando o cliente a não demonstrar fraqueza, pois além de ser prejudicado financeiramente, estava sendo humilhado pelo ex-amigo e parceiro de pôquer, que lhe rapelou na última partida. - E blefando com um par de três. Quá, quá,quá!! A imagem debochada do carcamano estava fresca em sua mente. Armando autorizou o advogado a ir adiante com o processo. - É claro que, para isso, vou precisar que o senhor adiante um dinheiro... Armando foi até o cofre, pegou o talão de cheques e passou ao advogado a quantia solicitada. Dias depois, 82


Márcio Brasil Armando via entrar porta adentro em sua loja o seu algoz, espumando de raiva, com o processo em mãos. - O que significa isso?? - Desculpe, mas só falarei através de meu advogado... -respondeu, displicentemente, arqueando as sobrancelhas. - Ah, é assim?? Então, me aguarde!! Passaram alguns dias, Armando estava terminando de tomar o seu café, recebeu uma ligação de sua funcionária avisando que havia uma ordem de despejo para ser cumprida. O locatário do ponto comercial era o carcamano. Armando saiu rápido de casa, irritadíssimo, esquivando-se das patas do cachorro. - Já prá lá, jaguara! Chegou em sua loja, pegou a ordem de despejo e entrou espumando de raiva na padaria de Francesco. - O que significa isso, seu carcamano? Alguma vez eu atrasei o pagamento da peça que tu me aluga? - Nunca atrasou o pagamento, mas também nunca assinou contrato. Era no fio do bigode. E estou precisando aumentar o espaço aqui da padaria. Afinal, não quero que o cheiro dos pastéis prejudique ninguém... - É assim? - Por favor, agora estou ocupado. Qualquer coisa, fale com meu advogado...- respondeu Francesco, que até aceitaria um pedido de desculpas, mas tinha sido aconselhado por seu advogado a não afrouxar. Armando chegou na loja, pegou o telefone e chamou o advogado imediatamente. Em seguida, pediu 83


10 Segundos para a sua mulher trazer de casa o jornal em que sua foto tinha sido publicada no casamento da filha de Francesco. - Quero que o processe pelo uso de minha imagem sem autorização. Saí ridicularizado. Minha honra foi maculada. E isso aqui foi página paga. E, assim, mais um processo e mais um cheque na mão do advogado de Armando. Francesco, por sua vez, colheu depoimentos com seus colegas de pôquer e reuniu provas de que Armando lhe chamava de "carcamano" pelas costas e emitia várias outras declarações discriminatórias à sua pessoa. E, assim, chamou seu advogado e entrou com um processo de Dano Moral contra o seu vizinho e ex-amigo. Armando não sabia mais o que fazer, pois estava perdendo dinheiro com os processos, mas precisava restaurar a honra da família. Após meses de brigas e discussões e mau-humor, sua esposa anunciou que queria se separar. - Tu anda obsessivo, ausente e não te amo mais. Meu advogado vai te procurar para acertar sobre a pensão e a minha parte na casa... E, assim, era mais um processo e mais trabalho para o advogado de Armando. Nesse meio tempo, como a loja estava fechada à espera de outro local, ele também foi processado na Justiça do Trabalho por sua funcionária que exigia o pagamento de horas extras. Por sua vez, Francesco que tinha ampliado a sua padaria também estava enfrentando problemas. Estava sendo processado por vários clientes que alegavam que o 84


Márcio Brasil local estava infestado de baratas. E, assim, foi obrigado a pagar as indenizações e uma multa da Vigilância Sanitária. Para piorar a situação, ele andou perdendo muito dinheiro no pôquer e estava sendo processado por calote. E, assim, um e outro estavam prejudicados financeiramente. Em contrapartida, seus advogados tinham ganhado muito dinheiro à custa de suas desavenças. Passados alguns meses, Armando não era mais dono de uma boutique. Ele tinha agora um brechó de roupas usadas, onde ele próprio atendia. Já Francesco administrava um trailer de cachorro-quente. Certo dia, ambos estavam no supermercado. Armando comprava ração para o cachorro, (que fazia festa e lhe sujava as calças quando o via chegando em casa) e Francesco comprava pães e salsichas para seu trailer. Era um encontro inusitado e embaraçoso que deixava um ar de não-sei-se-cumprimento-não-sei-se ignoro. Até que Francesco fez qualquer comentário. - O preço do pão tá uma vergonha... - E a ração de cachorro, então? Silêncio. Cada um estica o pescoço para o carrinho um do outro. - E como vai a vida? - Bem, bem, bem... - Olha, eu tenho que te pedir desculpas... - Que é isso? Eu é que peço teu perdão... E ambos apertam as mãos e retomam a amizade ali mesmo, entre as prateleiras do mercado. E o pedido de desculpas de um e outro, que parecia tão difícil há meses 85


10 Segundos atrás, saiu espontâneo e sincero nesse momento, agora que estavam pobres. - Tá convidado para ir jantar lá em casa, Armando.... - Só se eu puder levar meu jaguara, Francesco...

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Márcio Brasil

10 segundos Em silêncio, ele olhava para a sua bela esposa deitada e quase dormindo ao seu lado na cama. Há 30 minutos, os dois estavam com seus corpos colados e cobertos de suor. Ele deslizou a mão por suas costas macias e nuas, causando leves arrepios nela, que costumava gostar dessa sensação. Há 32 minutos eles gozaram juntos, depois de muito sexo. Em silêncio, ela sentia os dedos do esposo deslizarem por seu corpo, num carinho frio. Há 50 minutos ele tirava a roupa dela e chupava os seus seios com voracidade. Naquele instante, nenhum dos dois queria falar mais nada e ficavam ouvindo o próprio silêncio e adivinhando cada suspiro um do outro como se fosse o prenúncio para algo que seria dito. Nenhum dos dois quis dizer mais nada. Ele levantou-se da cama e caminhou até a cozinha, evitando de pisar em cacos de vidro. Há duas horas, os dois tiveram uma terrível discussão, mais uma. Ele abriu a geladeira e pegou uma garrafa de água mineral e a bebeu num gole só, matando a sede e tirando o gosto do sexo dela que ainda sentia em sua boca. Há duas horas e quinze minutos ela arremessou uma travessa com lasanha no chão. Depois de beber, ele foi até a torneira e encheu novamente a garrafa, colocando-a de volta na geladeira. Sabia que ela implicava quando ele as deixava pela metade ou quando o flagrava bebendo no bico. Há três horas, ele pediu o divórcio mais uma vez. No quarto, ela tentava 87


10 Segundos dormir buscando esquecer as palavras duras que ele mais uma vez proferiu, com sua fúria. Há cinco horas ela cozinhava para ele, esperando-o. Com os olhos fechados, ela ouviu o barulho na cozinha. Por algum milagre, ele devia estar enchendo a garrafa de água. Há sete horas ela ligou para sua melhor amiga para chorar as mágoas, acreditando que ele estava se encontrando com a amante. No banheiro, ele fechou o zíper de sua calça e puxou a descarga. Olhou-se no espelho, desgostoso com sua própria imagem. Há seis horas, ele prometeu para alguém que iria se separar. Ele caminha até o quarto onde repousa o seu filho e lhe beija a face. Há dois anos, ele o levava para o colégio pela primeira vez. Ela ouviu o barulho na porta do quarto do menino, o pai dele havia entrado lá. Há oito anos eles foram juntos no ginecologista. No quarto, o menino dormia com seu MP3 nos ouvidos. Ele não queria ouvir a briga dos pais. Há oito anos, ele fazia fotos enquanto ela o amentava no peito. Ele fechou a porta do quarto e atravessou a casa sem fazer barulho. Pegou sua chave, abriu a porta dos fundos e caminhou em direção a garagem. Há 10 anos ele conheceu sua esposa. Ela era linda e compreensiva. No quarto, ela ouviu o barulho da chave na porta dos fundos. Será que ele estava saindo furtivamente para encontrar aquela vadia de novo? Há nove anos, os dois ficaram noivos. Ela se vestiu rapidamente para seguí-lo, pois não aguentava que isso 88


Márcio Brasil continuasse acontecendo, não era isso o que queria para a sua vida. Na garagem, ele pensou várias coisas ao mesmo tempo, parecia que sua vida tinha se passado diante de seus olhos, todas as horas de sua existência com a velocidade de um piscar. Há oito anos, ele jurou que iria ficar com ela até que a morte os separasse e beijou seus lábios coloridos de batom. Vestida, ela atravessou a casa, correu até a porta dos fundos e saiu para fora. Ela ouviu um som retumbante na garagem, alguma coisa tinha acontecido. Ela abriu a porta e o enxergou com a cabeça mergulhada numa poça de sangue e uma arma na mão. Há 10 segundos ele se matou...

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10 Segundos

Pobres e ricos Era inverno. O termômetro marcava zero grau, mas ele dormia confortável em seu quarto climatizado e envolto em edredons. Dirigiu-se ao chuveiro, onde uma ducha quente lhe deu bom dia. Era inverno. O frio castigava o seu corpo já tão escalavrado. Outro dia, um sem-teto, como ele, havia morrido por hipotermia. Dormia no fundo de uma construção, envolto em trapos velhos e fedidos. Usou o shampoo que havia encomendado. Custou R$ 50, mas valia a pena. Deixava os seus cabelos mais sedosos. Arriscou lavar-se um pouco na pia do banheiro da praça. Ele já não aguentava o seu próprio cheiro. Seu café da manhã: fazia questão de uma mesa farta, afinal, o seu dia era longo. Pão, queijo, presunto, leite, patê, bolo e, às vezes, ovos mexidos. Jogou fora um saco de bolachas. A ignorante da empregada comprara o sabor que ele detestava. Seu café da manhã: um saco de bolachas que encontrara numa cesta de lixo ornamentada. O saco estava pela metade, mas ele comeu apenas três bolachas, afinal, o dia era longo e, sabia, a fome voltaria. No caminho para o trabalho, parou para cumprimentar e conversar com amigos. Era uma pessoa popular, agradável, sabia contar piadas, dava boas gorjetas, era fino, elegante e agradável. Todos gostavam de sua presença. 90


Márcio Brasil

Perambulou durante horas pelas ruas. Enxotou um cachorro que revirava uma cesta de lixo, mas dividiu com o cusco magro a pouca comida que encontrou numa marmitex amassada. Grato, o cachorro balançou o rabo. Naquele dia (e em outros dias), ninguém dirigiu o olhar para ele, que não existia. A não ser como um obstáculo a ser desviado. No fim da noite, ambos dormiram. Cada um sonhou com uma vida que não era a sua. Ao acordarem, no dia seguinte, a dúvida: ele era um homem pobre que sonhava ser rico, ou era um homem rico que sonhava que era pobre? Ou seria um homem rico por fora e pobre por dentro ou pobre por dentro e rico por fora? Ou...

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10 Segundos

Natureza humana E até aquele dia, eles viveram felizes. Um homem e uma mulher, numa ilha deserta, em algum lugar do oceano pacífico. Viviam em meio a adversidade da vida urbana. Um dia se encontraram, se apaixonaram e resolveram deixar tudo para trás e viver o seu grande amor. Se casaram e foram morar naquela ilha. Com as próprias mãos construiram uma cabana para se abrigar das intempéries. Lá, em meio a uma terra inóspita tinham tudo o que precisavam para viver, longe de tudo e mais próximos emocionalmente do que nunca. Lá, só tinham um ao outro. Quando ele estava doente, ela o cuidava e vice versa. À noite, conversavam durante horas em volta do fogo, olhando para para um céu maravilhosamente cheio de estrelas, algo impossível de ser visto em uma área urbana. Plantavam, colhiam e viviam uma vida simples. Tinham planos de serem felizes para sempre. E foram. Até aquele dia... Numa tarde qualquer, viram surgir um homem das águas. Descobriram que ele era sobrevivente de um naufrágio. Trataram de suas feridas e o ajudaram. Quando se curou, passou a ajudar na pequena lavoura, se integrando aquela micro-comunidade. Agora, o casal tinha um amigo com quem contar. E, assim, seguiam felizes. Agora, a mulher tinha sido dispensada de algumas atividades, como a pesca. Durante horas, os homens 92


Márcio Brasil sumiam, voltavam rindo e com muitos peixes. Se tornaram grandes amigos. Mas algo havia mudado. Ela já não recebia mais a mesma atenção. E olhar as estrelas não tinha o mesmo encanto. O marido dava mais atenção ao novo amigo do que a esposa e isso causava tristeza para a mulher. Ao mesmo tempo, o intruso, como ela se referia intimamente, não só lhe dava atenção, como a cortejava. E o que é pior, ela começava a gostar. "Algo vai acontecer", em seu íntimo, ela previa o pior. À noite, tinha sonhos e imaginava-se nos braços dele, o intruso. Acordava sentindo-se culpada, pensando no marido. Numa noite, seu esposo não estava ao seu lado. Claro, só podia estar tagarelando com o intruso. E procurou-os. Não muito distante, encontrou-os. Os dois, beijando-se. À luz das estrelas.

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10 Segundos

Sobre Vida e Morte

- Espere. Façamos um acordo. Hoje, nesse instante, te peço que não cumpras a tua função. Não a leve e deixe que eu sopre novamente a sua face para que não se desampare a este pequeno que recém cruzou o véu. Morte encara Vida. - E?. Vida chega próximo da irmã. - E te darei aquele beijo...que eu mesma sinto desejo.

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Mรกrcio Brasil

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Chimarrão com o pai O pai ainda morava no velho rancho. Foi lá que ele construiu a sua vida e criou o único filho. Hoje, o velho morava só. A companheira de tantos anos tinha passado para o outro lado. Ele acreditava que ela o estaria esperando quando chegasse a sua vez de partir. Ele mateava ao final de uma tarde, quando seu cachorro, o Magrão, começou a latir. Viu o seu filho chegando, abrindo a portão e indo até ele, pronto para abraçá-lo. - Olá, meu pai. Vim tomar um chimarrão contigo... O velho se emocionou em ver o filho e o abraçou. Fazia anos que o guri tinha casado e ido embora. O velho encheu a cuia e alcançou para o filho. Ele parecia diferente, com um olhar mais maduro. - Pai, quero te dizer que tudo o que aprendi contigo foi valioso. Que devo ao senhor tudo o que sou... O velho balançou a cabeça. - Deixa disso, guri. Tu é muito mais sabido que eu, um ignorante. Fez tua vida e ganhou o mundo... O filho sorriu. - É, eu tinha essa idéia tola de querer ganhar o mundo, de querer vencer, acumular riquezas, de ter uma vida melhor. Eu achei que sabia muita coisa, que iria mudar muita coisa, que iria ganhar muitas coisas. Mas, pai, te digo: não há riqueza maior do que o amor que o senhor e a mãe me deram. Não há, para mim, outro lar nesse mundo, senão aqui, onde nasci. O engraçado é que eu tive que sair daqui e percorrer o mundo para descobrir que 96


Márcio Brasil tudo o que eu mais precisava para ser feliz sempre esteve aqui, exatamente do lugar que eu deixei para trás. O telefone toca dentro da casa. O velho se levanta. - Filho, vai enchendo o mate que já volto... Abruptamente, o rapaz segura a sua mão. O cachorro olha a cena atento. - Antes do senhor ir, quero que saiba que eu te amo, pai. E que ela mandou dizer que continua o amando para sempre, como prometeu... O guri estava esquisito, mesmo. O velho foi atender ao telefone. Era a sua nora, chorando, gritando, arfando, descontrolada. - ENCONTRARAM O CORPO DELE ESMAGADO NAS FERRAGENS. MORREU HÁ UMA HORA ATRÁS... O velho derrubou o telefone e correu para a varanda. A cuia do mate estava cheia, à sua espera. E o cachorro latia sem parar na direção do portão...

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Instinto de mãe Parecia que toda a vizinhança tinha vindo assistir aquele trágico espetáculo. O fogo consumia a residência de madeira enquanto os bombeiros tentavam extinguir as chamas. Na calçada, vários objetos foram salvos. Mas essa não é a história de uma família que teve a casa incendiada e, sim, de um pedido de ajuda que não foi ouvido, nem pelas pessoas que socorriam objetos, nem pelos curiosos hipnotizados pelas chamas. Luka tinha cansado de correr e latir para os humanos e arriscou-se pelos corredores em chamas na busca por suas crias. Eles estavam abrigados embaixo da pia, assustados. Lambeu-os, balançou o rabo e empurrouos para fora com o focinho, na intenção de que eles a seguissem. Mas os pequenos se recusavam e se aninhavam junto do corpo da mãe. Luka uivou mais uma vez, na esperança de ser ouvida. Mas, quem iria se importar com eles? Detrás de um armário surge uma figura negra que a cachorra conhecia bem, era a gata Safira (que muitas vezes perseguiu pelo pátio). Safira ousa se aproximar de Luka e seus filhotes, mas sem tirar os olhos da rival. E, assim, abriu a boca e agarrou pelo pescoço um dos filhotes, arrastando-o para fora da casa. Em seguida, voltou a vencer as chamas e a fumaça para buscar o outro filhote. A essa altura Luka respirava 98


Márcio Brasil com dificuldade, asfixiada, incapaz de se levantar. O olhar das duas cruzou uma vez mais. "Cuide deles por mim", Luka parecia dizer, se entregando ao cansaço. Uma viga despenca e por pouco não atinge a gata, separando-a de Luka. Safira corre para fora, com o cachorrinho na boca. Um dos bombeiros vê a cena e se compadece do esforço da gatinha. Logo, imagina que podem haver mais filhotes a serem resgatados. Ele enfrenta o fogo e encontra Luka, resignada com seu destino. Ele a toma nos braços e a leva para fora. O homem do fogo coloca a cachorra ao lado dos filhotes, que se aninham junto da mãe. E o bombeiro logo sai para tratar dos humanos. Safira vai se achegando de Luka, que respira o ar puro e mantém o olhar (de gratidão?) fixo na gata. E Safira lambe as suas feridas...

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Vida & Morte Eram irmãs e tinham funções semelhantes e a mesma importância para o equilíbrio do universo. De vez em quando, até cruzavam caminhos, mas nunca cruzavam olhares. Cada qual fazia o seu trabalho, silenciosamente, sem se importar com a outra. Ouviam lamentações a respeito de uma e de outra, e admiravam-se mutuamente, sem nunca terem trocado uma única palavra. Certo dia, porém, um golpe do destino, fez com que algo mudasse. Uma humana estava com dificuldades no parto e havia risco tanto para ela, quanto para a criança em seu ventre. Seu esposo, ébrio, aguardava desesperado no saguão do Hospital. Ajoelhado no chão ele rezava pelas vidas de sua amada e de seu herdeiro. Eis que uma bela mulher de vestes alvas, aproxima-se, compadecida de sua dor e tocalhe a face. - Acalma-te, criança. Conheço-te deste o teu primeiro choro. Sois incapaz de compreender o tênue véu da existência. Não te desesperes- ela o consola. Ele rechaça, gritando. - Não sabe do que está falando. É a minha mulher e o meu filho que podem morrer! - Nada acontecerá com teu rebento. Eu sou Vida e acompanho o teu filho... Num piscar de olhos, a mulher desaparece de sua visão, como se nunca tivesse estado ali. Alucinação?Na sala de parto, ela contempla o desespero de uma mãe, com lágrimas, suor e sangue no rosto, dando suas últimas 100


Márcio Brasil forças para que o filho nascesse. Ao seu lado, uma jovem de trajes escuros e olhos negros. Alguém que ela conhecia muito bem: sua irmã, Morte. Foi a primeira vez que elas cruzaram seus olhares infinitos. Foi nesse instante que as duas se apaixonaram... Os médicos faziam de tudo para salvar a vida da mãe e de seu filho durante o parto, desconhe-cendo serem anfitriões das Irmãs Eternas, invisíveis aos seus olhos. Os aparelhos indicavam que aos poucos a mãe ia se despedindo da vida. A Morte, ao seu lado, encarava Vida à sua frente. Uma, indicava a luz para a criança que nascia. A outra, aguardava a mãe para acompanhar-lhe até a porta de saída. - Raramente nos cruzamos, não é mesmo?, disse Morte. Vida sorri. O menino está nascendo. - Nascido do sangue ele vem ao mundo. Seu pai o aguarda, acreditando amá-lo desde já. No entanto, desconhece seu destino, tampouco sabe de onde veio este Ser. Só o amor de uma mãe é algo infinito. Ela se esvai para que a criança alcance minhas mãos. Te peço que não a tomes ainda- diz Vida. - Teus olhos são lindos. E tristes- diz Morte. - Atendo teu pedido em troca de um beijo-oferece Morte. Mesmo ansiando por isso, Vida repreende. - Como podes negociar um capricho em troca de algo que não te pertence?. Morte chega bem junto de Vida e a encara de perto.

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10 Segundos - Acaso os deuses não podem manifestar seus caprichos? Só quero sentir teus lábios e a mulher poderá dar a luz- barganha. Vida a encara. - No momento em que a vi, tomei-me de um sentimento comum aos humanos. Poderia acariciar o teu rosto e entregar-me aos teus braços. Amo-te. Mas nego-te. Pois meu amor pelos pequenos é maior. Morte meneia a cabeça. - Eis a tua criança. O médico retira a criança, que recebe o sopro de Vida e chora. A mãe sorri e derrama a sua última lágrima. Morte lhe toca a fronte e lhe suga o sopro, que Vida concedera para aquela fêmea há um par de décadas atrás. - Alguém nasce, alguém morre. Triste sina- ela ironiza. - Notaste como somos parecidas? Tu as retira de um lugar e as conduz até aqui. Eu as retiro daqui e as levo para outro plano. A diferença é que eles te celebram. A mim, eles temem. Terrível simetria- diz Morte enquanto ampara a jovem mãe, que não compreende o diálogo que testemunha, e chora ao tentar abraçar o filho com seus braços intangíveis, que não conseguem tocar o pequeno corpo que repousa nos braços do médico. - Ela morreu- diz uma enfermeira, observando os sinais vitais. - Fazer o quê?- dá de ombros Morte. - Espere. Façamos um acordo. Hoje, nesse instante, te peço que não cumpras a tua função. Não a leve e deixe 102


Márcio Brasil que eu sopre novamente a sua face para que não se desampare a este pequeno que recém cruzou o véu. Morte encara Vida. - E?. Vida chega próximo da irmã. - E te darei aquele beijo...que eu mesma sinto desejo. Morte acaricia os cabelos de Vida. - Veja só. Caprichos de uma deusa. Mas tu bem sabe que preciso levar alguém que esteja contigo. Vida consente. - Mas não a estes, eu te peço. Morte concorda. - Dê-me teus lábios. E as duas se beijam. Enquanto isso, os médicos comemoram a retomada dos sinais vitais da jovem mãe. - Ambas somos infinitamente belas juntas, diz Morte para Vida antes de se despedir. No corredor, alguém vai até o pai dar a notícia de que mãe e filho estava bem. Mas um ataque cardíaco fulminante o encontrara antes...

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De um suicida Ele acompanhava notícias sobre suicídios, mas não se prendia a aspectos emocionais. O que questionava era por que tal ou qual método havia sido escolhido em vez deste ou daquele. Para ele, esse papo de que a existência é sagrada era furado. Desacreditava de qualquer existência não-material. - Deus? Tolice, ilusão, alucinação coletiva. A pessoa morre e se apaga. Vira pó. Se acaba- dizia. Mas ele não era tão frio quanto aparentava. Certa feita, se apaixonou. Se não fosse ateu, diria que os olhos da amada eram divinos. Se acreditasse em anjos, afirmaria que ela era um. Se acreditasse em Deus, diria que ela era sua alma-gêmea. À ela dedicou a vida. E, quando a perdeu, à ela dedicou sua morte. Não suportava a dor física no peito por perdê-la. A vida tornou-se um fardo e não importava o amor da família ou dos amigos. Não existiam mais sonhos ou primavera. Morreria por aquele amor. Iria apagar a sua existência. Viraria pó. Se acabaria. Assim, matou-se. A dura realidade: tão logo a força vital abandonou seu corpo, foi arrastado para outro plano. Descobriu que, sim, existia vida pós-morte. E tão verdadeira quanto aquela que tinha abandonado. Abriu os olhos e viu-se fincado junto a um solo mortificado e podre, cheio de cadávares lamentosos. Ele, na forma de uma árvore humanóide, inerte. Fazendo-lhe 104


Márcio Brasil companhia, hárpias terríveis que arrancavam pedaços de sua carne para se alimentar. Olhou para os seus braços, transformados em galhos e viu pendurado, balançando como roupa no vento, o seu corpo vazio. Sentia dores inimagináveis, com sua carne sendo rasgada, constantemente. Por vezes, frio intenso. Por vezes, calor insuportável. Gritou, chorou e compreendeu que aquela era a sua pena eterna por ter negado a própria vida, por ter sido estúpido, egoísta e cometido suicídio.

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Último beijo Perdido no emaranhado de sua mente, ele perambula pelas ruas centrais da cidade. Tinha mil e um compromissos a cumprir: dívidas para pagar, dinheiro para receber, a escola dos filhos, prazo de trabalhos estourando. Mas, para ele, nada disso importava. Só o que importava era aquelas malditas folhas de ofício que faziam sua maleta pesar uma tonelada: os papéis do divórcio. - Você é ausente demais. Só pensa no seu trabalho. Deixou de me amar? Não sente mais desejo por mim? Tem outra? Ele ouviu isso e muito mais mil vezes. Invariavelmente essas frases se faziam acompanhar de algum objeto sendo arremessado em sua direção e se espatifando na parede ou no chão. Cada vez que isso acontecia, ele suspirava, dava de ombros e ia ler a seção de cultura do jornal. Sua vontade era de sair correndo pela rua gritando até lhe acabar o fôlego ou até estourarem as suas cordas vocais. Não podia fazer isso. Precisava da energia para trabalhar e para continuar respirando e existindo. Um dia, após retornar de uma viagem de trabalho (e ele fazia essas viagens pois precisava das diárias para equilibrar o orçamento familiar), encontrou o inevitável recado de adeus, com instruções de como separar os seus e os meus, será melhor assim, você não verá mais as crianças enquanto não nos acertamos na frente do juíz, sem recentimentos, mas o amor acabou e não quero te odiar. 106


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"Por favor, assine os papéis do divórcio e mande para o meu advogado", era o post scriptum. Ele assinou e colocou o papel dentro da pasta. Ficou a noite em claro, olhando para uma foto que remetia a um tempo feliz. Amanheceu e já era hora de ir para o trabalho. Ele perambulava pelas ruas centrais da cidade, perdido no emaranhado de sua mente. Foi quando cruzou o seu olhar com o de uma moça linda, cabelos escuros e pele alva, alta, olhos de um negro intenso, tão intenso quanto o das roupas que vestia. Ela parou diante dele. - Fernando... Ele já tinha ouvido dizerem o seu nome milhões de vezes, mas não proferido por uma voz tão intensa, doce, melancólica, suave, forte. Ouvir seu nome, era como ouvir uma canção. - Eu sou a Inevitável. Nos encontramos novamente e, como da outra vez, você não conseguiu sublimar a raiva contida em seu coração. Seu destino seguiu o mesmo curso de outrora... - Não estou com raiva, estou com vontade de chorar. - Você tem raiva, sim. Está com o coração prestes a explodir. E eu vim para aliviar a tua dor. - Por favor, eu preciso de alívio. - Então, me beije. Ele fitou os olhos de um negro intenso daquela linda mulher de pele alva e vestes escuras, em seguida observou aqueles lábios carnudos que ele desejava beijar. E beijou. 107


10 Segundos Foi o seu último beijo, antes de seu coração bater pela última vez e seu corpo tombar inerte na calçada...

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O caminho Ele tentava parar. Sabia que as pessoas o julgavam e condenavam, atribuindo a ele inúmeros defeitos. Alguns, ele reconhecia, outros, vinham de graça, dizia. Mas, se questionava. "Será que sou assim?". A resposta, ele não sabia. Como também não sabia dizer os motivos pelos quais entrou por esse caminho. "Experimenta aí", foi o que um amigo lhe disse. E ele experimentou durante anos. E, adivinhe, acabou gostando. Achava que tinha mil motivos para isso. Era sua forma de se rebelar, de ir contra o sistema. Mas, preferia não apontar suas razões. Tinha medo de que seus argumentos fossem considerados ridículos ou mesquinhos. Mas ele tentava parar. Já tinha perdido amigos. Já tinha perdido oportunidades. E, sabia, estava perdendo a dignidade. "Você faz seu próprio inferno", ele pensava nisso. E tentava parar. Queria, sim, ser alguém na vida. Queria, sim, ter importância para alguém. Queria, sim, mostrar que também chorava. Que também sentia. Que também era humano. A verdade é que o mal o havia alcançado e ele não sabia como fugir disso. Para dentro do poço, nenhuma mão se estendia em sua direção. Em suas remotas lembranças de infância, pensa no avô, que o tomava no colo e dizia: "será um grande homem". E ele tinha vergonha de ter traído o exemplo e a memória do avô. Não era um grande homem. Era um grande viciado. Mas 109


10 Segundos ele tentava parar. Apesar de viver nas trevas, ele buscava alguma luz, mas só achava apoio entre os seus iguais, entre aqueles com quem dividia ilusões. "Experimenta aí". E ele experimentava. Num momento de êxtase (ecstasy?), viu-se caminhando em direção a uma luz muito intensa. Emocionado, ele abriu os braços e chorou: tinha encontrado o seu caminho. De dentro do trem, o maquinista avistou aquele jovem, com os braços abertos, percorrendo os trilhos rumo a locomotiva. E ele tentava parar...

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Nem bem deu tempo de se desesperar e, trash, viu o seu braço esquerdo ser arrancado do corpo misteriosamente. O sangue jorrava e ele gritava. Em seguida, seu braço direito foi decepado. O mesmo veio a acontecer com a perna direita, arrancada por alguma força invisível.

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Canção de Ninar I Era uma grande casa de madeira, de dois andares, com enormes janelas. Através delas via-se a silhueta das árvores lá fora à luz da lua cheia. Quando o vento soprava, os galhos balançavam dando um aspecto ainda mais fantasmagórico para as árvores, que pareciam sombras tenebrosas a rondar aquele casarão. Vez por outra, uma coruja assentava-se sob os grossos troncos e emitia aqueles seus cantos pavorosos. Ur-uhhhhhhhh. Ur-uhhhhhhhhhhhhhhh! Era quase meia-noite. Por essa hora, a lua já estava alta fazendo com que a claridade dela alcançasse o berço daquela menina, de cinco anos. Ela estava sozinha em casa. Até essa hora da noite, nem sinal de seus pais. E ela não conseguia dormir de jeito nenhum. Mesmo porque, ela havia dormido quase que a tarde inteira, enquanto seus pais ainda estavam em casa. No entanto, por volta das 20h, ela acordou. E ninguém mais estava em casa. A não ser a criança. Sozinha. E o que é pior: no escuro. Durante horas ela ensaiou levantar para acender o interruptor e, pelo menos, sentir-se um pouco mais segura. Mas ela tinha medo. E se, ao levantar, surgisse uma mão debaixo da cama que lhe pegasse pelo pé e a arrastasse para algum lugar pavoroso? Ou ainda, que a pouco centímetros de tocar no interruptor algo puxasse a sua mão e, dando gritos horrendos, lhe engolisse numa só bocada ou um pedaço por vez? Ou ainda, que nada disso acontecesse, 114


Márcio Brasil mas que ao clicar no interruptor de luz descobrisse que nenhuma lâmpada se acenderia. Que a luz tivesse faltado. Ou pior: tivesse sido desligada. Nesse caso, por quem? Com que intuito? Ela não sabia. Era uma criança de cinco anos, sozinha em casa. Numa casa que, aliás, tinha um daqueles relógios-gongo. À meia-noite ouviu o penoso som das badaladas. Blein. Blein. Blein. Blein. Blein. Blein. Bleeeeeeeeeeeeinnnnnnnnnnnnn. A partir daí, tudo piorou. As silhuetas das árvores tornavam-se mais assustadoras. Os galhos batiam nas janelas e arranhavam o vidro. A pouca claridade que refletia da lua, tornava-se ofuscada pela sombra de algumas nuvens. A coruja cantava pavorosamente (e dava a impressão de que era cada vez mais perto). E ainda parecia ouvir ruídos por toda a casa de madeira. E ela se estalava toda. Se já fosse crescida, a menina pensaria que tais estalos eram normais, já que a madeira recebia a luz solar durante o dia e à noite voltava a se contrair. Daí, os estalos. Mas como uma criança de cinco anos iria pensar nisso? É óbvio que, para ela, aqueles barulhos se tratavam de pisadas pelo assoalho e cada vez mais perto do quarto. Será que a porta estava trancada? O negócio era continuar rezando para o anjo da guarda, enquanto se enfiava para debaixo das cobertas, prendendo cada uma das pontas do cobertor com o corpo. Ali, ela estava protegida. Poucos segundos depois, agora ela tinha certeza, ouvia passos. Era claríssimo. Eram passos pelo corredor. 115


10 Segundos De repente, a porta do seu quarto se abriu, fazendo um barulho de gelar a espinha. NNNNnheeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeec E escancarou-se. E vieram os passos. Era passos que se arrastavam. Eram passos que se arrastavam e ao mesmo tempo arranhavam. A criança parou de respirar para ouvir melhor. Mas o que ouviu em seguida foi uma canção: - NaaAAAnnNa, nenééÉÉém. QueeEEe a CuuUUuuUuca vem PegAr. PapAi fOi prá rOOOoooÇa. MaaAAAmãeeEEEe já vai chegaAAAaaaRRrrrRRRrr...... A criança, enfim, respirou aliviada. Era verdade. Agora lembrava. Realmente, o papai tinha saído cedo para ir para a roça. Só voltaria no dia seguinte. E a mamãe, bem, ela já estava para chegar. Coisa boa. Mas..., péra lá. Se o papai foi pra roça e a mamãe não estava.... ... então, quem é que tinha cantado aquela música? - AHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!!!!!

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Canção de Ninar II O bebê detestava a maioria dos adultos. Se tivesse uma boa mira e pleno domínio de sua coordenação motora (ele estava trabalhando nisso) acertaria a mamadeira ou uma fralda cheia na testa daqueles bobos que vinham lhe atormentar em volta do berço. - Ai, nenê. Bilú, bilú, bilúúúúúúúú. Blu, blu, blu! (Que linguagem era essa? Coisa de retardado) - Ui, que guzu, guzu, guzuzu. Que coisa mais guzuzinha! (Ei, meu. Tinha que filmar essas caras epiléticas e pôr no YouTube) - Cadê o nenê?? Cadê o nenê??? Cadê o nenêêêêÊ??? (Valia a pena responder?) Putz, que gente idiota. O pior é que o bebê sabia que seu destino era se tornar um deles. Olha só onde ele foi se enfiar. Já tinha certeza que nenhum daqueles tontos seria capaz de sanar as suas dúvidas. Qual era o sentido da vida? O que aconteceu à Atlântida? Quem construiu as pirâmides? Existe vida lá fora? Bem, a essa altura já sabia que teria de descobrir sozinho. A não ser que perguntasse coisas mais simples, como a razão do Tata (assim ele se apresentava) ter aqueles pêlos bobos debaixo do nariz. Ou porque o colinho da Mã era tão gostoso. Sem falar naquele líquido saboroso que ela lhe oferecia tão aconchegadamente. Mas, tava aí outra dúvida. Por que é que o Tata não tinha tetos? Vai saber... 117


10 Segundos O problema é que toda a vez que o bebê tirava um tempo para refletir, nos intervalos entre uma soneca e outra, vinha algum daqueles retardados lhe importunar. - Ai, o nenê, o nenêêê. O nenezinhoooo. Que cooOOoisa mais tchutchuquinha-zinhazinhaa. (Dai-me paciência) Não tinha jeito. O negócio era usar daquela arma que ele tanto sabia manejar com eficiência: o choro. Ele já sabia que bastava abrir o berreiro para espantar os chatos. Claro, alguns ainda tentavam remediar a situação. - Pronto, pronto, pronto! Mas ele só se acalmava na presença do Tata ou da Mã. Isso era inegociável. Fora, claro, alguma daquelas titias bonitas e de sorriso acalentador. Um dia o Tata cantou uma história que deixou o bebê intrigado. - Boi, boi, boi. Boi da cara preta. Pega essa criança que tem medo de careta. Taí uma coisa que ele nunca tinha ouvido falar. Que boi era esse? Aliás, o que era um boi? E quem disse que o bebê tinha medo de careta. Ele simplesmente as desprezava. Certo dia, o bebê foi com o Tata e a Mã para a fazenda dos vovôs, que eram como outros Tatas e Mãs. Só que de cabelos brancos e carinhas engraçadas. Não tinham dentes, igual a ele. Só sei que eles jogavam cartas, despreocupados do pequeno, que dormia em seu bercinho, colocado à sombra de uma árvore. O bebê acordou sentindo alguma presença 118


Márcio Brasil em volta do berço. Só podia ser um daqueles chatos. Mas,quando abriu os olhos enxergou ele: O boi da cara preta. Ele o encarava com seus grandes olhos e enormes chifres. Ele lhe encarava, mas não emitia nenhuma daquelas frases de retardado. Só fazia alguns barulhos ameçadores com o nariz, enquanto raspava a pata no chão. O bebê teve vontade de abrir o berreiro, mas ficou receoso. Foi a essa altura que os adultos se deram conta: a porteira da mangueira estava escancarada e o boi de cara preta estava ao lado do pequeno. O bebê só lembra que ouviu o grito apavorado da Mã... ... E o berro do boi.

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O deus das formigas Um fato totalmente irrelevante na vida daquele grande homem. Tão irrelevante que ele sequer lembra. No entanto, numa tarde da infância, aos nove de idade, ele brincava de Deus. Com uma lâmpada cheia d'água, ele queimava as formigas na calçada. A lâmpada recebia os raios do sol que, focalizados através do vidro, se tornavam mortais para os bichinhos. - Eu sou Deus, sintam a minha ira- ele dizia. De vez em quando, o Deus das formigas cansava da lente e interagia: delicadamente recolhia alguma formiguinha e fazia suas experiências. Primeiro, retirava uma por uma das patas e, por fim, as anteninhas. Assim, se punha a observar o sofrimento das formigas. Quando cansava de brincar de Deus, ele ia tomar nescau e comer bolachas. O tempo passa. Hoje, aquele homem não mais desmembra formigas. Mas brincar de Deus foi um hábito que ele não conseguiu abandonar. Hoje, ele interage com as pessoas. Rouba. Engana. Mata. Trai. Atropela. Queima. Destrói. Corrompe. Desrespeita. Deseduca. Trafica. E ele seguia sendo feliz em sua infelicidade. Até que num belo dia, lá estava ele caminhando pela calçada. O sol forte sob sua cabeça o fazia suar. Suava demasiadamente, a ponto de sentir uma leve dor de cabeça. "Que cheiro de queimado",ele se queixou. Em seguida, estupefato, 120


Márcio Brasil percebeu que seus cabelos estavam em chamas. Nem bem deu tempo de se desesperar e, trash, viu o seu braço esquerdo ser arrancado do corpo misteriosamente. O sangue jorrava e ele gritava. Em seguida, teve seu braço direito decepado. O mesmo veio a acontecer com a perna direita, arrancada por alguma força invisível. E seu tronco estava ali, mergulhado numa poça de sangue. Em seu desespero, olhou para cima e enxergou uma formiga gigantesca, que vinha lhe arrancar a perna esquerda. E arrancou tudo. Só faltaram as anteninhas.

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Eterna Guerra Frente a frente o bem e o mal, representados tal qual o I-Ching. Éramos combatentes, dispostos a morrer por nosso reino, se fosse preciso. Acreditávamos no caráter de nosso rei e nos ideais de igualdade e justiça que nos haviam sido inspirados. À nossa frente, o inimigo. Observávamos seus passos ruidosos como quem observa a própria imagem num espelho. Porém, uma imagem distorcida. A sombra negra do outro era contrária a tudo que julgávamos correto. Eram inimigos da justiça, da honra e da igualdade. Nosso inimigo era sorrateiro e desprovido de virtudes. Sua existência era uma afronta à soberania de nosso rei e à angelical figura de nossa rainha. Valia à pena morrer por nosso glorioso rei. Valia a pena morrer por nossa divina rainha. Assim, avançamos com cautela. De forma estratégica, partimos para cima do inimigo. Porém, nossas defesas vacilaram. O mal não possui limites e sua sombra não pode ser subestimada. Com seus cavalos negros, avançaram ceifando alguns dos nossos, conquistando precioso espaço para que os seus sacerdotes malevólos lançassem mão de suas artimanhas, invadindo nosso reino com sua lábia tenebrosa. Assim, outros de nós, ao ouvirem tais palavras enfeitiçadas (e plenas de mentiras), e que diziam coisas 122


Márcio Brasil agradáveis e nocivas, também foram dizimados, derrotados por suas fraquezas. À esta altura, lutávamos poucos de nós. Somente um cavaleiro ainda resistia bravamente. Nosso reino estava em chamas, nossas torres abaladas, assim como a própria fé dos nossos religiosos, diante do fim. Assim, nós, os remanescentes, pudemos perceber que o reino de cá, não era diferente do reino de lá. Que a sujeira também se escondia sob a tinta branca de nossas casas e que os ideais de justiça e igualdade proferidos por nosso rei era apenas uma ilusão, com a qual ele regava nossos sonhos e que garantia a realidade de privilégios. À esta altura, o covarde já se escondera, buscando preservar sua coroa. Não valia a pena lutar por ele. Era indigno morrer por um rei humano ou crer nas mentiras dos bispos, de vestes alvas e corações trevosos. Mas ainda havia a rainha. Exposta, abandonada por seu companheiro infiel, beberrão e luxurioso. Como era frágil o nosso reino que, em chamas, mostrava toda a sujeira que nunca havia sido vista. Nossa rainha chorava, mas corajosa, lançava-se à morte. Não valia a pena lutar por nosso rei, nem pelo frágil reino corrupto que ele erguera. Mas valia a pena lutar pela rainha e, principalmente, pela fé que pulsava em meu coração e que me fazia acreditar num Deus, diferente daquele descrito pelos religiosos de minha terra. Assim, de forma audaciosa e, até atrevida, coube a mim aproveitar123


10 Segundos me de um momento de gl贸ria do inimigo para chegar pr贸ximo do imperador negro e cravar-lhe minha espada. Xeque-Mate.

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Criacionando a criação Deus estava entretido com seu passatempo preferido: jogava dados com o universo, ante o olhar do professor Einstein. E eram vários dados, sendo que cada um continha uma galáxia inteira. Cada dado jogado transformava enormemente os rumos das civilizações. Deus gargalhava com as possibilidades, mas sabia o que fazia. Einstein torcia o nariz para a brincadeira do velho, uma criança boba. - Fique tranqüilo, não esqueça que tudo é relativo, Albertão Nisso, surge Eigual Emecedois, o gêmeo de Einsten, porém, mais jovem que ele, que retornava de uma breve viagem no tempo. Einstein estranhou, pois sabia, nunca teve irmão gêmeo. "Agora tem", disse Deus, num risinho contido, ante a cara estupefata do físico. Seu duplo havia viajado pela História e até trouxe uma recordação do passeio. Era um macaquinho bodoso, chamado Charles Darwin, muito do esperto que havia formulado umas teorias aí. Ele dizia que depois do homem, na escala involucionária, estava o macaco. Alguém o achou audacioso e inverteu sua teoria. Einstein deu uma espiada no velho, que dormia com os dados na mão. Estava cansado e roncava profundamente. "Ele parece maluco, mas o mundo está em boas mãos", pensou. Enquanto isso, seu gêmeo se 125


10 Segundos enveredou pelos "buracos de minhoca" para visitar outros mundos. Prometeu que, na volta, traria algum agrado. O dia estava tedioso e Einstein resolveu ir ao relojoeiro. Nesse meio tempo (que não existe), a Terra virava uma confusão só: guerras irracionais, transgenias diversas, mutações, desequilibrio do clima, oceanos degradados, florestas destruídas, miséria, imoralidades, crimes. Um caos. Ainda assim, a maioria dos homens considerava aquilo normal, pois aceitava e até gostava dos novos tempos, sem questionar. Eigual havia esquecido de levar Darwin, que agora brincava de dados com o universo. E, Deus observava a tudo com um olho só.

"Há duas coisas infinitas: o universo e a tolice dos homens." (Albert Einstein)

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Márcio Brasil

O filho do Super-Homem - Mãe, pede para o Super-Homem vir me ver? Foi esse o pedido que o pequeno Michel de 08 anos fez à sua mãe, Clarissa, com sua voz fraquinha e cansada. Numa situação normal, ela poderia explicar que o herói só existia nos filmes e nos desenhos que ele assistia e nas revistas em quadrinhos que lia. O garoto adorava o herói e tinha bonecos, lancheiras, tênis e até uma capa vermelha que amarrava no pescoço para correr em volta da casa com os braços abertos, fingindo voar. Mas isso quando ele era um menino saudável. Hoje, a sua rotina era praticamente casahospital-casa-hospital. Há meses, o pequeno enfrentava uma luta pela vida. Apesar de ter um coração nobre e corajoso no sentido metafórico, no real, ele sofria com o câncer, que definhava o seu pequeno corpo. Michel já tinha enfrentado várias batalhas pela vida e, não raras vezes, esteve perto de morrer. Mas ele insistiu e se manteve. Há menos de uma semana, uma grave crise respiratória o trouxe de volta ao hospital, mas ele vinha se recuperando. Como dizer para uma criança nessas condições que o seu ídolo não existia? - Mamãe vai ligar para o Super-Homem. Ele vai vir te visitar, sim. ela disse, segurando as lágrimas. - Promete, mamãe? Ela prometia. 127


10 Segundos Assim que o menino adormeceu, Clarissa se dirigiu ao corredor do hospital. Escorou-se próximo a uma janela e acendeu um cigarro, fixando o seu olhar na vida lá embaixo, aquele movimento todo de carros e de pessoas. Visto dali de cima, do quarto andar, tudo parecia feio, desorganizado e barulhento. Um interminável movimento de vai e vem, um formigueiro humano. Seu pensamento vôou nessa comparação entre homens e formigas. Talvez, em virtude do cansaço. Em seguida, voltando a si, sacou o celular da bolsa e ligou para o pai do Michel, o seu ex-marido. Hoje, ela era uma mulher casada e as aflições de criar o filho eram divididas com o seu atual marido. Porém, para o que tinha em mente, só poderia contar com ele, o pai do menino, seu antigo amor. Apesar dele se revezar com ela no hospital e cumprir suas obrigações paternas, ela não mais morria de amores por ele (como outrora). Na verdade, se cumprimentavam só com olhares e trocavam instruções peculiares de pais separados que dividem a atenção do filho. - Preciso que tu faça isso pelo Michel, por favor... Finalizou ela, ao telefone, desligando o aparelho e deixando ele proferir para ninguém a palavra "beijos". Mais tarde, vencida pelo cansaço, Clarissa adormecia na poltrona ao lado da cama de Michel. Suavemente, era despertada pelo roçar de dedos em sua face. Era o seu marido.

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Márcio Brasil - Estava te olhando dormir. Tu tem que ir para casa. Chame o pai do Michel para vir aqui um pouco. Precisa de uma cama para descansar... Ela olhou no relógio, já estava na hora dele aparecer mesmo, mas pontualidade nunca tinha sido o seu forte. Pelo menos com o filho, poderia ter mais consideração. - Eu estou bem, meu querido. Quero ficar aqui mais essa noite. Não vou me sentir bem em casa. - Aquele cara é um irresponsável mesmo. "Psst", ela o repreendeu. - Não fale isso na frente do Michel. Mas o menino assistia a um desenho animado na televisão e pouca atenção dava aos dois. E o soro dependurado no suporte pingava o veneno químico em suas veias abertas nos bracinhos inchados. - Bem, então terei que passar a noite contigo... Resolveu ele, sentando numa cadeira. Clarissa pegou a bolsa e foi até a janela do quarto para acender um cigarro. Abriu a bolsa, pegou o isqueiro e, quando foi acender o cigarro, surpreendeu-se ao voltar o seu olhar para o formigueiro humano, logo abaixo. Num instante, ela colocou tudo de volta e ordenou para o marido. - Vamos sair daqui do quarto. Michel, querido, nós vamos aqui fora tomar uma água e já voltamos... Ela disse, arrastando o seu companheiro porta afora, deixando-o sem entender nada. Michel ficou sozinho no quarto assistindo ao seu desenho na TV. Alguns minutos depois deles terem fechado a porta, uma figura colorida 129


10 Segundos aparece na janela. Michel reconhece o traje vermelho e azul, a capa e o "S" no peito e grita. - Super-Homem!!. Ele entra pela janela, saindo detrás das cortinas esvoaçantes. - Olá, Michel. Eu vim te visitar, como tu queria. À medida que o herói vai se aproximando do garoto, ele reconhece aquela figura imponente, um tanto supreso. - Ah, é tu papai. - Sim, meu anjo. Sou eu. - Como o senhor chegou aqui? É alto... - Eu vim voando, Michel... - Voando, pai? O garoto ficou confuso, mas devia ser verdade. Eles estavam no quarto andar do hospital. Ele acreditou no pai, que continuou a história. - Chegou a hora de eu te contar um segredo, que fica sendo só nosso... eu sou o Super-Homem. Michel, envolto com máscara de oxigênio, olha atentamente para aquele homem próximo dele, tocando em sua fantasia com a ponta dos dedos, deslizando a mão sobre a capa vermelha e se questionando sobre algo que nunca tinha se dado conta. Seria possível? - Verdade, pai? O senhor é mesmo o SuperHomem? - Sim, meu querido. Eu nunca tinha te contado, nem mesmo para a sua mãe, porque... preciso manter em segredo. Mas eu sei que tu é corajoso... e eu confio em ti. 130


Márcio Brasil Sei que guardará esse segredo e não vai contar para ninguém. - Não vou não, se o senhor me diz para não fazer isso... - Meu filho, eu quero dizer que nós te amamos e que tu é forte. Vai dar tudo certo. Vai te recuperar, sair desse hospital em breve. E nós poderemos nos divertir muito ainda... - O senhor me leva para voar? - Sim, eu te levo para voar... mas não hoje. Eu quero que tu descanse e continue sendo forte, sendo... de aço. A sua mãe precisa disso, eu preciso disso, que tu continue sendo corajoso, forte, porque tudo vai terminar bem. Tu vais ver... - Eu acredito no senhor...pai, digo, Super-Homem. - Esse é o nosso segredo... O gigante beija a fronte do menino com muita delicadeza. Ele sorri. O pai olha para a janela da porta, vê sua ex-esposa acompanhando a cena com lágrimas nos olhos. Por um instante, o olhar dos dois se entrelaça e à distância parecem dizer mais do que muito já disseram quando estiveram próximos. - Eu tenho que ir, meu querido. - Eu sei, pai. O senhor precisa salvar as pessoas. - Sim, é isso mesmo. Ele se vira em direção a janela e olha para baixo. O pessoal do Corpo de Bombeiros o aguardava com uma grua de salvamento à altura do parapeito, como havia combinado com o capitão, que era seu amigo e estava lhe quebrando o maior galho de sua vida. 131


10 Segundos - Por isso o senhor foi embora, não é mesmo? O pai vira-se com a pergunta do filho. - O senhor não pôde ficar com a minha mãe para protegê-la... e não revelar a sua identidade...para poder continuar salvando as pessoas. Mas eu sei que o senhor a ama... ela é a sua Lois Lane, né? Por um instante, ele reflete sobre as palavras do garoto. Olha para as suas vestes, sentindo-se um tanto ridículo por estar naquela situação, com aquela fantasia ultrapassada de Carnaval. Como ele aceitou fazer isso? Em seguida, olha novamente para a porta, tentando vê-la, mas ela não estava mais lá. Volta o seu olhar para o filho. - Esse é mais um segredo que nós dois vamos ter que dividir... Ele se despede de Michel com o olhar, fecha a cortina e entra cuidadosamente na grua. Ele sempre teve medo de altura, mas teve de encarar esse medo por causa de Michel. Enquanto os bombeiros o descem lentamente, ele vai lembrando do telefonema que recebeu da ex-esposa. - Ele quer conhecer o Super-Homem. E tu vai ser o Super-Homem dele... Ela praticamente ordenou. Sempre foi boa em dar ordens. - Olha, eu faria qualquer coisa por ele, mas... Ele tentou argumentar. Mas ela sentenciou. - Então, faça! Ele disse "beijos", mas ficou no ar. Ela já tinha desligado. Foi a partir daí que ele começou a correr atrás de uma fantasia. Ela nunca imaginaria toda a peregrinação 132


Márcio Brasil que ele fez até chegar à janela do quarto andar onde Michel estava. Em todo o trajeto elevado, na volta para o chão seguro, uma inevitável música não saía de sua cabeça: Superman Theme, de John Willians. *** Michel abraça a sua mãe com carinho. - Eu te amo, mamãe. É a melhor mãe do mundo... Pelo resto da noite ele se manteve feliz, disposto, com um brilho diferente no olhar, o qual esteve um tanto apagado. Perguntou dos coleguinhas da escola, falou sobre as coisas que gostaria de fazer quando saísse do hospital e deu boas risadas, apesar da voz rouquinha e fraca. Clarissa olhava para ele, frágil e lembrava de suas primeiras palavras, de seus primeiros sorrisos, de seus primeiros passos. Algumas noites de agonia ela o abraçou tão fortemente, como que desejando que ele voltasse para o seu ventre e, protegido de todo o resto, pudesse nascer de novo, saudável. Mas, naquela noite, Clarissa se sentiu em paz e com a esperança renovada. Naquela noite, ela dormiu confortável na desconfortável poltrona ao lado de Michel, que também descansava do tormento das quimioterapias. *** No meio da noite, Michel acorda sentindo uma leve brise no rosto. Levanta um pouco a cabeça e olha em 133


10 Segundos direção a janela que estava aberta, fazendo com que as cortinas dançassem à mercê do vento. Do lado de fora, uma figura que ele conhecia bem. Era o Super-Homem, ou melhor, o seu pai. Michel livra-se da máscara de oxigênio, retira o soro das veias e levanta com suavidade, evitando acordar sua mãe, que dormia ao seu lado. Ele vai até a janela e vê o seu pai sorrindo e flutuando no ar. - Oi, Michel. Ainda quer dar aquele passeio? - Para onde o senhor vai me levar? - Vou te levar para o céu, meu anjo. Vou te levar para voar... O pai estende a mão, convidando. Michel aceita, mas antes corre até a sua mãe e lhe dá um beijo no rosto, carinhosamente. - Eu estou pronto, pai. Os dois se dão as mãos e em seguida começam a se afastar da janela flutuando. Michel se vê invadido por uma sensação indescrítivel, que jamais experimentara, sentia-se leve como uma pluma, tendo a brisa a lhe acariciar o rosto. Lá embaixo, via a cidade em movimento, a praça onde brincava com a turma, o seu colégio, a rua de sua casa, a piscina do vizinho, tudo pequenininho. Nesse momento, ele estava voando de mãos dadas com o maior herói do mundo, que era o seu pai. Viu-se invadido por uma sensação de amor infinito, de bondade suprema e teve vontade de agradecer por isso.

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Márcio Brasil Dali de cima, o mundo era muito mais bonito, organizado e tranquilo. Dali de cima, o mundo parecia estar em paz. - Tu está pronto para voar mais alto? - Para onde? - Já te falei, meu querido...para o céu. Michel vira-se para tentar enxergar o prédio do hospital, mas ele aparecia minúsculo, bem ao longe de onde estavam. Pensou na sua mãe, no sofrimento que ela vinha passando e no que iria passar. Mesmo sem conseguir enxergar (não tinha visão de raio-x), ele sabia que nesse momento, os médicos já estavam tentando trazê-lo de volta, em vão. Sabia também que sua mãe não se conformava e teve vontade de chorar. Mas estranhamente viu-se invadido por uma sensação de tranquilidade. - Tudo é amor, meu filho... - Pode me levar para o céu, sim, pai. E os dois foram subindo cada vez mais, distanciando-se deste plano físico, superando a superfície, deixando para trás a estratosfera, a mesosfera,a atmosfera. Para o alto e avante.

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