Eugênia Brandão a primeira repórter do Brasil - Por Lara Almeida

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Lara Monique Oliveira Almeida

Eugênia Brandão A primeira repórter do Brasil

Faculdades Integradas Teresa D’Ávila Lorena-Sp Novembro, 2007


Autora: Orientador: Co-orientadora: Capa: Fotos: Desenhos: Diagramação: Revisão:

Lara Almeida Prof o. Ms. Marco Bonito Prof a. Ms. Neide Oliveira Lara Almeida Vera Verreschi, Gabriel Bigó e Leandro Rocha Wiamon Nascimento Lara Almeida Neide Oliveira Almeida, Lara Eugênia Brandão: a primeira repórter do Brasil/Lara Almeida. - São José dos Campos: Edição do autor, 2007 144 p.; 21x 23 cm

1.História do Jornalismo - Brasil - Primeira repórter. 2. Comunicação Social - Jornalismo.

©Todos os direitos reservados para Lara Almeida larajornalista@globo.com


Lara Monique Oliveira Almeida

Eugênia Brandão A primeira repórter do Brasil Projeto experimental de caráter profissional, requisito para obtenção do grau de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, sob orientação do Professor Ms. Marco Bonito e co-orientação da Professora Ms. Neide Oliveira.

Faculdades Integradas Teresa d’Ávila - Fatea Lorena-Sp Novembro, 2007



Aos meus pais Lindalva e MaurĂ­lio



Agradecimentos: A Deus

Que faz dos nossos dias um constante aprendizado e nos dá forças nos momentos difíceis.

À minha mãe

Meu verdadeiro anjo que faz tudo para tornar meus sonhos possíveis.

Ao meu pai

Sem ele não cumpriria esta etapa importante da minha vida.

À Família de Eugênia Brandão.

Valéria, Sandra, Álvaro Samuel, João Paulo, Lea e Valdina muito obrigada pela imensa contribuição com meu trabalho.



Aos meus orientadores

Marco e Neide muito obrigada pelo empenho, paciência e indicação de rumos.

Ao professor Robson Bastos da Silva que se dispôs a prefaciar o livro.

Aos meus professores Eliane, Bianca, Cris, Luiz Antônio, Eriberto, Ednelson e Reinaldo.

Aos meus amigos

Leandro, Gabriel, Ana Paula, Deise, Ronilce, Vera, Mag, Lauro (do estúdio) e aos meus colegas de classe.

Muito Obrigada a todos!



“Essa geração de autênticos tinha nela um tótem...O que se escondia por detrás de sua franja agressiva de cabelos negros, do seu vestir especial, do seu sorriso desafiador, agora o sabemos... O que se deve a ela, será calculado um dia”. Oswald de Andrade



Sumário 15: 17: 19: 45: 75: 125: 141: 143:

Prefácio Prólogo Primeira parte: o crime e o auge da carreira Segunda parte: a repórter menina Terceira parte: as três faces de Eugênia Bastidores Epílogo Referências Bibliográficas



Prefácio É pioneiro o trabalho da jovem jornalista Lara Almeida, ao enriquecer a história da imprensa brasileira, iluminando-a com o registro da trajetória de uma das mais importantes mulheres jornalistas do país, Eugênia Brandão. A jovem Eugênia, que depois ostentaria o sobrenome Álvaro Moreyra, nos idos de 1914, ocupou pela primeira vez as páginas do vespertino carioca A Rua, fazendo um jornalismo corajoso e intuitivo e quebrando tabus da imprensa brasileira. Fez, posteriormente, carreira no jornalismo, transitando pelas artes e pela literatura, recebendo efetivamente o título de “primeira repórter brasileira”. Esse relato importantíssimo ainda não havia sido objeto de uma investigação séria e profunda, com exceção do empenho oral de seus descendentes – Sandro Luciano, João Paulo, Álvaro Samuel, Rosa Marina, a neta Sandra, entre outros, como a bisneta homônima – e do breve libelo feito por Álvaro Cotrim em 1979. Agora, porém, tal registro será eternizado pela competência e habilidade da autora guaratinguetaense, quartanista do curso de Jornalismo das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila. A jornalista Lara – sim, ainda que esteja no caminho de sua formação, desempenhou com bravura os passos da profissão e já merece o título – demonstra um forte envolvimento, responsabilidade e compromisso com a história de Eugênia Brandão, aspecto essencial na bagagem de todo profissional da imprensa. Colecionando depoimentos emocionantes de familiares e amigos, a autora fixou a palavra dita, transformando-a em documento. Cada momento aqui relatado e jornalisticamente apurado expressa um pouco da vida de Eugênia e seu legado, revelando também a tradição e a memória do jornalismo brasileiro. O registro da trajetória da jornalista brasileira acabou por produzir um importante documento de interação entre o passado, o presente e o futuro. O livro-reportagem revive, reconstitui e recria como forma de trazer à tona a história oral e humana, ao expor sensações e sentimentos, ao reproduzir diálogos e abstrações, fazendo com que o narrador execute o precioso trabalho de restituir aos fatos passados a atenção que merecem, conferindo-lhes significados que levam à interpretação da importância do papel feminino no jornalismo. Assim, a jornalista Lara faz reviver a jornalista Eugênia para inúmeros e inúmeras jornalistas e leigos, de forma que conheçam e compreendam as multifacetadas vivências que a profissão permite. Foi uma escolha feliz, íntegra e honesta que só enriquece a interpretação social da imprensa no Brasil. Que esta seja a primeira de muitas iniciativas valiosas da autora.

Prof. Dr. Robson Bastos da Silva Jornalista, pesquisador e professor de História da Imprensa em cursos de Jornalismo, Membro da Intercom e Presidente da Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação



Prólogo Escrever sobre a vida da primeira repórter brasileira foi um atrevimento de alguém que nunca tinha sido atrevida. Escolhi fazer um livro reportagem sobre Eugênia Brandão quando tinha em mãos apenas um artigo de revista sobre ela, assinado pelo caricaturista Alvarus (Álvaro Cotrim). No artigo já se falava da restrição de material sobre Eugênia, descobri que não havia nenhum livro que a biografava e, durante a pesquisa, não encontrei nenhum estudo acadêmico, enfim, nada além de pequenos trechos em livros e jornais antigos. Mesmo assim decidi me comprometer de realizar este trabalho como requisito para a conclusão do curso de Comunicação Social/Jornalismo nas Faculdades Integradas Teresa D’Ávila, ainda sem saber se reuniria material suficiente para contar esta história. Para este intuito foi essencial o apoio da família de Eugênia que me ofereceu cartas, fotografias, diversos recortes e o mais importante: boa vontade para gravar comigo diversas fitas de depoimento. As páginas seguintes reúnem tudo o que consegui em um ano e meio de pesquisa e entrevistas. Reconheço que foi pouco tempo diante da proposta de retratar a complexidade que foi o ser humano Eugênia Brandão. O livro é apenas um começo de um projeto que pretendo levar para a vida toda. Se mais gente vier comigo pesquisar a primeira repórter, será minha maior satisfação. Para deixar a biografia de Eugênia Brandão mais envolvente optei por uma linguagem mais literária, próxima de um romance. Porém, não deixo de observar por nenhum instante o critério da veracidade. As informações a os diálogos das personagens foram retirados de documentos do arquivo familiar, de jornais da época que encontrei na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e de trechos de livros. Os diálogos e os acontecimentos do capítulo 1, por exemplo, foram reproduzidos a partir da reconstituição do crime da Rua Januzzi, publicada no dia 22 de Abril de 1914 no jornal A Rua. Também são do jornal A Rua os diálogos do Capítulo 2, estas aventuras de Eugênia Brandão no Asylo Bom Pastor foram contadas segundo a narrativa que ela mesmo fez em suas reportagens. Já no Capítulo 4, os diálogos entre o secretário Ferreira dos Santos e o repórter Carvalho Netto foram transcritos da obra “Norte oito quatro”, livro que conta a história do jornal A Noite escrito por Carvalho Netto, que traz, inclusive, um capítulo sobre o jornal concorrente A Rua e a ousada repórter Eugênia Brandão. Outra observação é que os trechos de documentos e de matérias reproduzidas no livro são fiéis à grafia corrente da época, por isso os termos “affirmação” com dois “ff”, “armonia” sem h e “creanças” ao invés de crianças. Optei por não adequá-los às normas ortográficas atuais para não tirar a originalidade dos textos. O livro é dividido em três partes, ao todo são doze capítulos. A técnica utilizada é mista, a história começa por aquilo que é mais importante, de acordo com o que chamamos no Jornalismo de pirâmide invertida, e depois segue em ordem cronológica. Mas, o livro não acaba no 12º capitulo, há em seguida a seção “Bastidores”, que, como em um DVD, traz vários extras: entre eles a narrativa das viagens que realizei, os diálogos das entrevistas com os filhos de Eugênia e com a repórter da TV Globo Sandra Moreyra, e o relato do processo de elaboração do livro com os momentos bons, os engraçados e também os difíceis. Por fim, cabe esclarecer que as caricaturas não estão no livro por acaso. Os motivos são três: primeiro porque eu tenho um carinho todo especial pela linguagem dos traços, apesar de não saber desenhar quase nada além do “homem de palitinhos”. Porém, não conseguiria imaginar um produto com o qual me identificasse sem este “tempero” de bom humor e crítica que só as caricaturas podem oferecer. Apresento-lhe, então, o artista que ilustrou este livro reportagem: Wiamon Batista do Nascimento. Também não posso esquecer da imensa ajuda do meu orientador, o prof. Mestre Marco Bonito. Nós três criamos uma surpresa para você, prezado leitor. Basta deslizar os dedos pelas páginas com o livro fechado que você verá. Mas não deixe de se divertir com o texto. Boa leitura!



Primeira Parte

O crime e o auge da carreira



Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Capítulo 1 O crime da Rua Januzzi nº131

Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1914, 10 horas da noite. Na Rua Januzzi, a maior parte das famílias já estão recolhidas, o que deixa a iluminação da rua prejudicada. Fere o silêncio o ranger de um portãozinho de ferro. O tenente Paulo Nascimento Silva chega em casa, está de farda, passa pela sala e sobe para o quarto da mulher. No coldre um revólver calibre 38, que traz sempre carregado. O casal continua a discussão que havia começado no dia anterior: — Eu exijo que ela saia desta casa hoje, diz alterada dona Edina do Nascimento Silva, a mulher de Paulo. — Não vai sair, porque quem manda aqui sou eu. A pessoa que Edina queria expulsar da casa era sua própria irmã, Albertina do Nascimento Silva. O motivo: Albertina era amante de Paulo. Depois de tanto tempo ela havia descoberto o caso de infidelidade que ocorria em sua própria casa: o sobrado nº13 da Rua Januzzi. Albertina era solteira, a mais nova entre as irmãs, tinha o mesmo sobrenome do cunhado porque os três eram primos de 1ºgrau. Viera morar com o casal para ajudar a cuidar das duas filhas pequenas de Edina. No quarto, a discussão prossegue por quase uma hora, causando alarde entre as criadas que ficam sem saber o que fazer, ouvem gritos e o estalo de uma bofetada. As luzes da cozinha e da sala

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se acendem, portas e janelas se abrem, elas ficam andando de um lado para outro. Nem Albertina, nem a mãe de Paulo, nem as crianças saem dos quartos, todos da casa nº13 estão acordados mas, ninguém se atreve a ir ao quarto do casal. Lá fora a vizinha Adélia Augusta de Oliveira acompanha a discussão pela fresta da sua janela. — Cala a boca! Eu te mato! — Bandido, você se deita com ela? — Cala a boca! — ... miserável Depois de alguns minutos as vozes se calam, a briga parecia apaziguada, recuperado o silêncio, a vizinha resolve voltar a dormir, o relógio marca 11 horas da noite em ponto, consegue cochilar. De repente um tiro, o estrondo acorda Adélia e faz estremecer o assoalho de seu quarto. Ela levanta e vai de imediato para a janela, as luzes da casa nº13 voltam a ficar acesas. — Ai minha cabeça! Ai...minha garganta... filhas...Ai...Meu...Deus! — Cala a boca! — Miser... Adélia não ouve o xingamento que vem da casa vizinha até o fim, parecia que algo sufocava a voz da Senhora Edina. Uma das empregadas da casa, Aurélia, decide invadir o quarto, que não estava trancado. Abre e vê Edina com as mãos na cabeça, sujas de sangue. — Pelo amor de Deus, senhora, fique deitada. — Ela se feriu com minha arma...diz Paulo, desnorteado, com as mãos trêmulas. — ...águ...a, Edina pede com voz sufocada — Eu vou buscar senhora, fique calma. — Chame o médico...rápido! Depois de algum tempo Edina é levada ao hospital, não resiste aos ferimentos e morre deixando duas filhas pequenas. Dias depois a casa da Rua Januzzi nº13 é lugar de vigília para os jornalistas. Os repórteres tomam a liberdade de se auto-intitular investigadores e não querem perder nenhum passo da apuração do caso, mas, a família decide-se pelo silêncio, a única informação é que a senhora Edina havia cometido suicídio atirando na cabeça com a arma do marido, o tenente do exército Paulo Nascimento. Temerosos de que as criadas ou mesmo algum vizinho pudesse revelar as frases do diálogo da última discussão entre Paulo e Edina, o que poderia trazer à tona a traição do marido com a cunhada, a família decide internar Albertina no Asylo Bom Pastor, apesar do protesto da jovem. Paulo encontra refúgio no próprio quartel. Os amantes continuam se correspondendo por cartas, nas quais Albertina reclama do regime de clausura do convento. Um dia, porém, Paulo se cansa das reclamações.

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Fevereiro de 1914 O tenente Paulo chega a um ponto que não suporta mais a insistência da amante, em todas as cartas ela implorava para se ver livre do convento. O tenente decide, então, tirá-la de lá. Não tinha, porém, autoridade para passar por cima da vontade da família, Albertina tinha mais dois irmãos, Alcina e Eugênio Nascimento, que além de filho mais velho era advogado, era quem cuidava de todos os assuntos referentes às irmãs e a casa. Mas, agindo com uma manobra surpresa, Paulo consegue uma ordem assinada por Aires do Couto, o delegado do distrito, que o autoriza a tirar Albertina do Asylo Bom Pastor. Os amantes fogem juntos e se casam. A imprensa, que praticamente já havia esquecido do “Caso Januzzi”, ferve com a descoberta de que o tenente Paulo e Albertina tinham se casado. O crime volta a ocupar a capa dos jornais mas agora com novas hipóteses, não acreditavam mais em suicídio, Paulo passa a ser considerado suspeito. Uma atmosfera de debate popular é criada no Rio de Janeiro, o “Caso Januzzi” é tema de conversa nas rodinhas dos cafés, nas fofocas de portão e nos salões de visita. Os jornais lucram e as autoridades se sentem pressionadas para retomar as investigações. No início de fevereiro ocorre a exumação do cadáver de Edina para exames periciais. A medida dá mais força aos debates, a população se divide entre os escandalizados, que acham um despropósito perturbar o descanso sagrado da morta; e curiosos, que querem constatar o desfecho do caso e apoiam a exumação. A audiência da população em torno da tragédia é tão grande que a Revista Careta publica um ensaio fotográfico com a exumação do cadáver, sanando a curiosidade dos que não puderam acompanhar. Paulo contrata um advogado, o Dr. Luiz Franco, para defendê-lo das acusações. O maior argumento em sua defesa é um bilhete, encontrado na casa no dia 24 de janeiro, que foi supostamente escrito por Edina. Está escrito no bilhete: Paulo Me mato porque não Quero sofrer mais 2 Pequenina

“Pequenina” era o apelido pelo qual Edina era conhecida. A imprensa levanta a possibilidade do bilhete não ter sido escrito pelo punho de Edina, mas sim forjado para legitimar o suicídio. Aberto o inquérito, o juiz manda o bilhete e mais dois papéis escritos por Edina para a perícia gráfica. O material é analisado pelo jurista Elysio de Carvalho e pelo professor de perícia gráfica da Escola de Polícia, Octavio Michelet de Oliveira.

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a primeira repórter do Brasil Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Ensaio fotográfico da Revista Careta sobre o “Caso da Rua Januzzi”

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Um dos papéis contém uma lista de compras escrita por Edina e o outro é uma carta para uma amiga íntima dela, assinada com o apelido “Pequenina”. Diz a carta: Peni, Está terminando a minha desgraça, felizmente convenci a Paulo que nós não podíamos viver separados. Agora já fizemos as pazes, estamos na melhor armonia (sic). Espero-te se poder vim aqui que é para conversarmos e mesmo para você ver a minha saia e quando vier não esqueça os vestidos das creanças (sic) que ficaram ahi e o avental da Maria. Aceite muitos beijos das creanças (sic) e você também beijas as suas por mim. Saudades de sua irmã e amiga

2 Pequenina

Os peritos nada conseguem concluir com a comparação dos três documentos, a não ser que há grande dissemelhança na grafia. Consideram o primeiro bilhete pequeno demais para afirmar com segurança que não foi escrito pelo mesmo punho da carta e da lista de compras. O laudo da perícia gráfica traz o seguinte parecer: “A qualquer que fosse mostrado o bilhete em questão, sem duvida provocaria a affirmação categórica de que não era do mesmo punho que escrevera as outras duas peças apresentadas para confronto - uma carta escripta a tinta e uma lista de mantimentos a lápis, pois, de facto, grande é sua dissemelhança, nós, porém, agindo com a prudência que a experiência de casos semelhantes nos aconselha, nada ousaremos affirmar de positivo, e apenas nos contentaremos de, analysando os seus differentes caracteres e symbolos minuciosamente, mostrar termos de confronto e o bilhete a lápis apresentado, sendo por isto forte a suspeita de não ser a declaração contida neste ultimo traçada pelo mesmo punho que executou os outros dois documentos (...) o bilhete apresentado para exame é demasiado pequeno para ser feito um estudo seguro, e nos contentaremos em dizer que julgamos possível não ter sido confeccionado pela autora indicada.” Octavio Michelet de Oliveira De acordo com as condições do parecer Elysio de Carvalho. 2 Distrito Federal, 11 de fevereiro de 1914

(Obs: o texto foi reproduzido respeitando-se a grafia da época)

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a primeira repórter do Brasil Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Ensaio fotográfico da Revista Careta sobre o “Caso da Rua Januzzi”

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Sem um laudo conclusivo dos peritos, a população continuou acompanhando o caso pelos jornais, aguardando ansiosa pelo início do julgamento.

Abril de 1914 11 de abril, a primeira audiência _ “Ai minha cabeça! Ai minha garganta, Ai minhas filhas, Ai meu Deus”, foi isso que ela disse. E, nisso, ele gritou “Cala a boca!”, então ela disse “Miser...”, ela ia dizer miserável mais a voz morreu-lhe na garganta, como se tivesse sido sufocada, estrangulada por outra pessoa... Neste momento, alguém interrompe o depoimento de dona Adélia Augusta de Oliveira, a principal testemunha do “Caso Januzzi” que afirmara ter ouvido todo o diálogo do casal no dia da morte de Edina. Quem interrompe é o advogado de defesa de Paulo, o Dr. Luiz Franco. — Protesto! Como a testemunha pode saber que dona Edina ia dizer a palavra “miserável”? — Porque antes já ela o havia pronunciado, responde Adélia. — A testemunha está sendo influenciada, há muitos intrusos aqui. — O senhor por acaso está falando de mim?, levanta exaltado o Dr. Eugênio Nascimento Silva, também advogado, irmão da falecida Edina e de Albertina. Os dois advogados começam então um bate-boca, trocando ofensas. Guardas correm para separá-los e impedir qualquer agressão física. O juiz, Dr. Duque Estrada, censura os dois pelo incidente provocado. Acalmados os ânimos, o advogado Luiz Franco diz: — Contesto o depoimento da testemunha por ser flagrantemente falso como ainda por conter inverdades que serão desmentidas nos depoimentos de outras testemunhas e provas que apresentarei oportunamente. — Tudo o que disse sustento, por ser a expressão da verdade, reforça Adélia. As partes envolvidas assinam, então, o depoimento da testemunha Adélia. Mas, por ser tarde da noite, o Juiz decide suspender a audiência até o dia 13 de abril, intima testemunhas e advogados a comparecerem às 11 horas da manhã do dia citado.

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Vera Verreschi

Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Cobertura do Jornal A Rua sobre o caso, edição do dia 11 de abril de 1914

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Maio de 1914 Até o dia 13 de maio nada havia sido concluído a respeito do “Caso Januzzi nº13”, o andamento do processo na Justiça era lento, contribuía para isso o fato do acusado Paulo do Nascimento Silva ser tenente do exército, o processo só poderia ser julgado em tribunal militar. Os donos dos jornais da época, inconformados com a lentidão do caso, já não tinham o que publicar para satisfazer a curiosidade de seus leitores, as edições já não vendiam tanto, aos poucos foram mudando de assunto. Mas, Ferreira dos Santos, o engenhoso secretário do periódico A Rua tem uma grande idéia.

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1 A narração do “Caso da Rua Januzzi nº 13”, inclusive os diálogos, foi feita de acordo com a reconstituição do crime, que foi publicada no jornal A Rua na edição do dia 11 de abril de 1914. Para consultá-la, procurar no acervo da Fundação Biblioteca Nacional pelo periódico A Rua, BIN 236403, localização na estante 4-487,01,01, volume 2, período 03/1914 a 06/1914. 2

O bilhete, a carta e o laudo foram reproduzidos da obra CARVALHO, Elysio de. O Laudo da Perícia Graphica do Caso da Rua Januzzi n. 13. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, Boletim policial, XXIX, 21p, 1914. Obs: o texto foi reproduzido respeitando-se a grafia da época.

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Capítulo 2 Eugênia Brandão entra em cena

A idéia do secretário do jornal A Rua era plantar um repórter no Asylo Bom Pastor, o mesmo que Albertina tinha sido internada. O trabalho era de jornalismo investigativo, com direito a disfarce, o repórter tinha por missão apurar entre as outras asiladas se Albertina havia confiado a elas alguma confissão a respeito do “Caso Januzzi”. A escolhida para a missão foi uma garota que apareceu pedindo emprego no jornal como repórter: Eugênia Brandão. No dia 13 de maio, a repórter, de apenas 16 anos, foi aceita no Asylo, o disfarce de moça desiludida com a vida, inventado por Ferreira dos Santos, tinha dado certo. Eugênia deu um nome falso: Domitilia. Porém, assim que entrou teve que se desfazer de seus objetos pessoais e materiais de trabalho. Até então desconhecia as regras do Asylo que proibiam que as internas entrassem com quaisquer pertences, até a roupa do corpo era substituída por um uniforme listrado. Em uma caixa Eugênia teve que depositar tudo que trazia consigo: uma máquina fotográfica, 24 chapas, um caderno, um lápis, um porta-pó-de-arroz, uma escova de dentes, um vidro de dentifrício (pasta de dente), uma pele e a roupa do corpo. Ficou um pouco preocupada, pois, de certa forma seus objetos denunciavam sua verdadeira identidade, ou, ao menos, criavam um ar de desconfiança em torno dela. Eugênia, ou melhor, “Domitilia”, não poderia perder tempo, tinha que puxar conversa com as internas para tentar tirar delas alguma informação sobre a ex-asilada Albertina. Sabia, porém,

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que não podia dar a estes diálogos um tom de interrogatório, tudo tinha que surgir naturalmente para o bem de seu disfarce. A primeira interna que se mostrou disposta a continuar o diálogo depois do “oi” seco foi uma menina de tranças castanhas, de rosto miúdo e redondo. As outras se dispersavam logo depois do breve cumprimento, em resposta a investida de Eugênia com seu “bom dia” carregado de intenções... A menina lhe contou histórias sobre algumas asiladas, entre elas a que apelidaram de “gato bravo” por ser meio maluca e andar sozinha pela chácara do convento, pulando e rasgando o vestido; outra era a asilada Esther, que tinha sido abandonada pelo amante e vivia a gritar o nome dele toda noite atrapalhando o sono das outras. Terminaram a conversa e nada ainda sobre Albertina. Porém, já era um bom começo, a menina de tranças era alguém que falava bastante, do tipo que não sabia guardar segredos, exatamente o que Eugênia precisava. Nas próximas oportunidades tentaria mais investidas perante a menina de tranças. Mas, o próximo passo agora era quebrar o gelo com outras asiladas. Era hora do almoço, pela manhã “Domitilia” havia ajudado as outras internas a arrumar o quarto, mostrando porém pouca intimidade com a vassoura, também tinha participado da missa e do café-da-manhã em conjunto. Agora todas retornariam ao refeitório, era sua chance de puxar conversas. Mas como, com tantas orações de agradecimentos pela comida e depois silêncio absoluto para a refeição? O máximo que Eugênia conseguiu foi dividir sua tangerina com as que estavam próximas, arrancando sorrisos tímidos de agradecimento. A disposição das mesas do refeitório não favorecia conversas paralelas, havia duas mesas compridas de madeira, com bancos verticais em tábua única, dos dois lados. Tudo parecia pensado para facilitar a disciplina, as orações em conjunto e a vigilância das madres. Terminado o almoço, chegou o momento em que a repórter pediu a Deus: a hora do recreio. Foi para o jardim e conseguiu ouvir fragmentos de conversa a respeito de uma asilada que tinha fugido com o namorado. Seria Albertina? Eugênia não agüenta a expectativa e vai perguntar, não consegue dar às perguntas um tom natural, vai direto ao ponto, o que deixa as meninas desconfiadas. Insiste com várias perguntas para diferentes asiladas, não consegue evitar o tom de interrogatório, toca no nome de Albertina. Alarme falso, viria a saber com a asilada Celestina que a menina que diziam ter fugido com o namorado era Isabel, a fuga havia acontecido um dia antes da entrada de Eugênia ou melhor, de “Domitilia” no asilo. Tinha arriscado sua identidade para nada. Desconfiadas, as asiladas se reuniram e foram denunciar “Domitilia” para a madre superiora, contanto sobre a insistência de suas perguntas. A permanência de Eugênia no Asylo Bom Pastor estava ameaçada. Mas, ela ainda não sabia. O recreio estava quase no fim, “Domitilia” andava pela chácara com Celestina, que lhe mostrara a gruta de Nossa Senhora de Lourdes, dali o namorado havia chamado Isabel para que fugissem. Não foi a bonita formação das pedras da gruta pintadas pelo verde do musgo que chamou a atenção da repórter, mas sim uma flor. Sentiu-se tentada a apanhá-la e, assim que pôs as mãos no meio do mato, encontrou, por acaso, um papel. Era uma carta, mas, como Celestina aproximava-se dela, preferiu esconder, antes mesmo de ver o remetente. Mais tarde, sem a companhia de Celestina, leu a carta, que aliás era só um bilhete, que não estava assinado. “Espero-te, meu amor, não faltes. Quero ver-te de novo, quero sentir o perfume das tuas palavras, quero ouvir os teus conselhos. Não faltes, sim...” 1 Por acaso deparou-se com a branquinha de tranças, a proseadora. Decidiu mostrar-lhe o bilhete. — Sabes que encontrei na gruta de Lourdes uma carta de namoro?, Eugênia quis cativá-la pela curiosidade.1

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— Coitada..., disse a branquinha. — Coitada, por quê? — Ela ama São Sebastião e escreveu-lhe cartas e manda-lhe flores...todas nós sabemos disso. — E quem é ela? — Ela?! Olha, não te digo nada...as irmãs proibiram e se contar a gente cai em pecado mortal. E a menina saiu correndo como se a repórter fosse um ser tentador que a incentivava a pecar. Só então Eugênia percebeu que sua permanência ali poderia estar perto do fim. Ligando os pertences da mocinha - a câmera fotográfica com 24 chapas, o caderno e o lápis - com as queixas de bisbilhotice das outras internas, as madres descobriram seu disfarce.

Eugênia Brandão é expulsa do Asylo A impressão de Eugênia estava correta, na manhã seguinte teve que deixar o Asylo Bom Pastor. E o que era pior: sem descobrir nada a respeito do “Caso Januzzi”. Porém, nem tudo estava perdido, ela teve a idéia de publicar no jornal uma série de reportagens sobre suas experiências no Asylo - a noite mal dormida por causa dos gritos da asilada Esther, os trabalhos domésticos, as orações, as refeições em grupo e o principal: as histórias tristes de algumas asiladas que lá estavam internadas pela família, algumas contra a vontade. Enfim, tinha muita coisa para contar. Mas havia um problema, tornar públicas estas experiências seria revelar um dos mistérios mas bem guardados perante a sociedade mundana: a vida das enclausuradas. Ferreira dos Santos, o audacioso secretário do jornal A Rua, decidiu apostar na polêmica, mandou rodar na máquina as reportagens, estampadas na primeira página.

E quanto ao “Caso Januzzi”? Como acontece na atualidade, a imprensa da época foi perdendo o interesse pelo “Caso Januzzi” por causa da demora do julgamento. Depois do alarde inicial, simplesmente parou de publicar matérias sobre isso. Portanto, não restou documentos detalhados a respeito da condenação do réu. O dado que foi encontrado, não em jornais mas na obra de Magalhães Junior2, é que o tenente Paulo Nascimento Silva foi preso, mas não há menção a respeito do tempo que cumpriu. Quanto a Albertina, a cúmplice, não se sabe se foi condenada.

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Gabriel Bigó

Arquivo da família

No retrato de Eugênia destaque para os olhos contornados de lápis preto formando olheiras marcantes

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Os diálogos e o bilhete foram reproduzidos a partir da narrativa da série de reportagens de Eugênia Brandão sobre o Asylo Bom Pastor, que foram publicadas no jornal A Rua entre os dias 15 e 20 de maio de 1914. Para consultar, procurar no acervo da Fundação Biblioteca Nacional pelo periódico A Rua, BIN 236403, localização na estante 4-487,01,01, volume 2, período 03/1914 a 06/1914.

2

Reproduzido de MAGALHÃES JUNIOR, Raimundo. O Fabuloso Patrocínio Filho. 2ª ed. São Paulo: LISA, 1972.

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Capítulo 3 A mineirinha de “óio damnado” no auge da carreira

Minha comadre Thereza, O mundo ta p’r’ acabá, Acontece cada coisa Que a gente fica no á, Pois até já tem muié Trabaiando nos jorná (...) É uma moça bonita Que o cabello traz cortado. Uza chapéo como os home, Tem cada um óio damnado Que quando firma na gente Deixa a gente escangaiado. (...)

Havia na Revista Careta, no ano de 1914, uma seção chamada “Carta de um matuto” espaço para críticas ferozes à sociedade carioca por trás do teor humorístico. Nelas, o autor Mario Brant

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Vera Verreschi

Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Reportagem de Eugênia publicada no Jornal A Rua no dia 19 de maio de 1914 em 2º Clichê

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Assinatura de Eugênia no pé da matéria


Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

assumia o personagem caipira Tibúrcio da Anunciação e escrevia cartas para sua “comadre Thereza” que estava no sertão, contando o que acontecia de espantoso na cidade grande. Na edição de 20 de junho de 1914 o assunto da carta foi Eugênia Brandão, a repórter do jornal A Rua que contou os mistérios do Asylo Bom Pastor. Outra revista muito popular na época, Fon-Fon, também trouxe na edição de 23 de maio de 1914 uma matéria sobre as reportagens de Eugênia. Reproduziram no semanário as fotografias que saíram em A Rua, em que Eugênia aparecia vestida com um uniforme listrado semelhante ao que ofereceram a ela no Asylo. A primeira repórter brasileira aparece com uma vassoura na mão. Estes dois semanários ilustram bem a divisão de opiniões que aconteceu na época, havia jornais que consideravam um absurdo uma mulher e, ainda mais, solteira, assinar reportagens e fazer investigações nas ruas. Na vertente oposta, havia outros que aplaudiam a colega e reafirmavam o êxito da cobertura de A Rua. As reportagens de Eugênia sobre o Asylo Bom Pastor saíram no jornal A Rua nas edições de 15 a 20 de maio de 1914, fizeram tão ou mais sucesso que as notas sobre a tragédia da Rua Januzzi e acabaram por consagrar o nome de Eugênia na imprensa. Nas rodas jornalísticas ela ficou conhecida como a ousada repórter que revelou o cotidiano das enclausuradas. Com títulos que despertavam a curiosidade – “Como se amanhece no Asylo Bom Pastor”; “A loucura de uma noiva”; “A fuga as asylada Isabel”; “A carta misteriosa”; “Flagrantes apanhados ao apagar das luzes”; “Algumas histórias tristes”; “O gato bravo que foge”; “As impressões de uma repórter curiosa”; “48 horas no Asylo Bom Pastor”; “Uma noite no Asylo Bom Pastor”; “Ida para o convento”; “Da capela ao dormitório” e o “Retrato de volta”... - as reportagens de Eugênia Brandão conquistaram grande número de leitores e geraram repercussão em outros periódicos, que fizeram matérias sobre a pessoa da primeira repórter brasileira. Houve os que elogiaram e também os que criticaram, dizendo que era incabível permitir que uma mulher exercesse o tão perigoso cargo de repórter investigativo. A polêmica tinha razão de ser, Eugênia não era apenas um nome, representava o avanço do “sexo frágil” em uma profissão que era até então exclusivamente masculina, considerada território para homens destemidos e espertos, na gíria da época para “homens matutos”. O conteúdo das reportagens gerou um segundo debate: para alguns era desrespeito à religião católica tornar públicos os mistérios do convento, para outros era exercício sublime de Jornalismo, exemplo para outros repórteres se espelharem. Toda esta polêmica, enfim, resultou no auge da carreira da primeira repórter do Brasil. Por todo canto do Rio de Janeiro onde havia jornalistas se falava da mineirinha de “oio damnado”, que pela ousadia conquistara seu lugar no Jornalismo. “Oio damnado” sim!, quem nunca tinha visto queria ver os olhos de Eugênia, que suscitavam comentários até em reportagens. “Um dia os rapazes dos jornais viram na roda a graça da roda de uma saia de mulher. Quem era ella? Era uma mulher estonteante e moça, moça na mais bela florescência

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Eugênia Brandão:

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Vera Verreschi

Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Reportagem de Eugênia publicada no Jornal A Rua no dia 19 de maio de 1914

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Assinatura de Eugênia no pé da matéria


Eugênia Brandão:

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da juventude, alegre, viva, viçosa e clara em todo o esplendor de uns 18 annos felizes. Tinha um par de olhos que eram dois carvões accesos; uma olheiras tão ardentes como se fossem uma irradiação dos olhos. Que vinha fazer? Trabalhar na imprensa. Era novo, excepcionalmente novo no Rio. E que poderia fazer uma mulher nesta vida febricitante do jornal moderno, na “cavação” vertiginosa das noticias, na ansiedade do “furo”, na dobadoira da reportagem cada vez mais nervosa e áspera? Mas é que ella era uma mulher differente das outras. Tinha uma linda e rara alma de bohemia, a desenvoltura de um rapaz, a capacidade de trabalho de qualquer homem”. (Uma alegria que se enclausura: da vida intensa da reportagem para o mysticismo da Cella - Por que ella partiu? Última Hora, 1979. Obs: o texto foi reproduzido respeitando-se a grafia da época.)

A repercussão em torno da figura de Eugênia havia começado antes ainda das reportagens que a consagraram. Esta matéria do jornal Última Hora foi publicada quando souberam que a repórter Eugeninha, que já freqüentava as rodinhas de jornalismo, tinha se internado no Asylo Bom Pastor. O texto tinha um tom de indignação, os colegas não aceitavam que a menina abandonasse tão inesperadamente o Jornalismo para se dedicar a uma vida mística e tão alheia ao mundo. Desta vez eles estavam enganados, Eugênia se internara no convento justamente pelo Jornalismo. Porém, na segunda vez que Eugeninha se despediu era a mais pura verdade, logo depois do auge na carreira, ela se afastaria do Jornalismo por um tempo...por causa de uma paixão. Mas, antes de saber o nome do Dom Juan que roubou seu coração, conheça o início da história. É uma história de riqueza, depois pobreza; dificuldade e ousadias, depois boemia e ação; amor, família, arte e política, depois morte e esquecimento. Eugênia viveu na era dos poetas, na era do modernismo e do comunismo. Esteve à frente das agitações e foi famosa, primeiro na profissão e depois na militância, em 1935 foi presa junto com Olga Benário, a mulher de Prestes. Mas, hoje está esquecida, quase ninguém sabe o nome da primeira repórter brasileira. Se fosse viva hoje, Eugênia teria 109 anos, mas, morreu em 1948 e sua história não foi sendo transmitida para as próximas gerações. Da infância de Eugênia resta apenas um retrato...

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Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Em 1914 Eugênia é personagem da sátira “Cartas de um matuto” da Revista Careta.

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Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Na revista Fon-Fon, repercussão das reportagens de Eugênia

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Segunda Parte

A rep贸rter menina



Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Capítulo 4 O retrato

Apenas uma fotografia é o que resta da infância de Eugênia Brandão. Não há mais memória, não há mais papéis, o tempo levou quase tudo consigo. É uma vida que começa a se apagar. Quantos anos ela teria neste retrato? Quatro ou cinco, ninguém sabe ao certo. Está vestida como uma pequena princesa e, de fato, deveria ser, mas, se a fragilidade e a delicadeza são características que definem uma princesa, ela seria diferente das outras. Seria como Antígona1, a filha do rei Édipo, que preferiu ser presa e condenada à morte a desistir daquilo que acreditava. Neste caso, é um retrato um tanto controverso. A intenção de quem tirou esta foto talvez tenha sido demonstrar candura, laço de fita no cabelo, uma flor branca na mão esquerda, uma fina corrente de ouro para adornar-lhe o pescoço. Mas a expressão de Eugênia faz contradição com o quadro, demonstra firmeza. Ela segura firme na flor com suas mãozinhas alvas, tem uma postura ereta, decidida a enfrentar os desafios que a vida lhe reserva, tem firmeza no olhar. E nos lábios o batom que ela usaria por toda a vida, verdadeiro símbolo de sua personalidade, que junto aos olhos sempre delineados com lápis preto, marcaria os ambientes masculinos que freqüentaria. Eugênia Brandão nasceu em 6 de março de 1898, na cidade de Juiz de Fora, em Minas Gerais. É provável que esta fotografia tenha sido tirada em uma propriedade de seu avô materno, o Barão de Pitangui. Ele se chamava Honório Augusto José Ferreira Armond2, poderoso patrão, foi

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Eugênia Brandão:

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o segundo filho do casal Possidónia Heliodora da Silva e Marcelino José Ferreira Armond, que herdou do pai o baronato de Pitangui tornando-se o segundo Barão. Suas terras ficavam entre Juiz de Fora e Barbacena. Eugeninha não o conheceu, ele faleceu quinze anos antes de poder segurar a neta nos braços. Os dois irmãos de Honório foram ainda mais famosos que ele, a irmã mais nova, Camila, casou-se com o barão de Juiz de Fora e o mais velho, Camilo Maria Ferreira Armond, tornou-se Conde dos Prados, era médico, astrônomo e presidente da Câmara dos Deputados. Honório casou-se com Maria José Ferreira da Lage, irmã de Mariano Procópio Ferreira Lage. Político e engenheiro, Procópio é personagem ilustre na história do Brasil, foi o construtor da primeira estrada pavimentada do país, que ligou Petrópolis a Juiz de Fora. A fidalguia da família Armond vem desde os antepassados franceses, mas, eles tiveram que abandonar a fortuna quando a rainha católica Catarina de Médicis fez cerco aos protestantes. Os Armond pertenciam à parcela huguenote (protestante) e decidiram se refugiar em Amsterdã, nos Países Baixos. A partida foi em pleno luar da “Noite de São Bartolomeu”, noite sangrenta de 24 de agosto de 1572, quando cerca de três mil protestantes foram mortos ao som dos sinos das catedrais de Paris. Esta noite marcaria para sempre a história da França como um episódio de intolerância religiosa e absolutismo dos monarcas, ficou conhecida como “a mais horrível entre as ações diabólicas de todos os séculos”. Sobreviventes huguenotes tiveram que buscar asilo em outros países da Europa e do Mundo. De Amsterdã os Armond vieram para a Ilha da Madeira, em Portugal, e dali para o Brasil, ganharam da Coroa Portuguesa uma sesmaria, a porção de terra entre Juiz de Fora e Barbacena onde o primeiro barão nasceu e criou seus filhos. Eugênia não herdou o sobrenome Armond que era da mãe e sim Brandão, do pai. Os Brandão são de origem portuguesa, mas desde que chegaram ao Brasil misturaram a raça com índios e negros, também exerceram importantes cargos no Brasil Império, alguns foram juristas, outros doutores, houve também a nata da família com títulos de nobreza. O passado de nobreza e fortuna não acompanharia, porém, a vida do casal Armindo Gomes Brandão e Maria Antonieta Armond Brandão, pais de Eugênia. Cedo os velhos se vão e levam com eles os tempos de glória. A princesinha do retrato viveria no luxo apenas nos primeiros anos de sua infância, logo teria que se acostumar com uma outra situação financeira, de aperto. A situação piora ainda mais quando falece Armindo, Maria Antonieta se vê sem rumo. No dia da despedida é provável que Antonieta e Eugênia levassem flores brancas nas mãos, as flores brancas da candura. Mas, como aquela do retrato, também teria um outro significado: a esperança, a coragem. Foi assim que Maria Antonieta decidiu deixar Juiz de Fora e foi tentar a sorte no Rio de Janeiro. Na cidade Maravilhosa as duas princesas chegam como plebéias. Antonieta consegue trabalho em uma agência dos Correios na Rua da Lapa. O dinheiro não era muito mas dava para sustentar a filha, que se não tinha agora uma vida de princesa, aprenderia, de bom grado, como ser uma guerreira da cidade grande. O ofício de postalista era bastante admirado no Rio de Janeiro do início do século XX. Ainda estava fresco na memória de toda a gente o nome de Paulo Bregaro, o carteiro que entregou a Dom Pedro I a mensagem da Imperatriz Leopoldina e de José Bonifácio. Esta passagem não foi citada no Hino Nacional, mas foi depois de ler estas correspondências, que anunciavam as novas exigências de Portugal com relação ao Brasil, que o infante decidiu gritar “Independência ou Morte” às margens do Ipiranga. Bregaro é considerado o primeiro carteiro e é patrono dos carteiros no Brasil. As mineirinhas se depararam com um Rio de Janeiro que se comunicava, por 30 ou 60 réis dava para enviar uma carta de amor. Cidade dos eternos namorados, que Carmem Miranda cantou em sua Primavera no Rio: “é cidade exacista de um beijo em cada redor”3. E para os arredores os cariocas iam de bonde, lado a lado iam homens e mulheres, pobres e remediados; iam para a praia, iam trabalhar, iam para a igreja e até para o carnaval.

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Eugênia Brandão:

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Carnaval, festa sem igual. Esta rima é pobre mas não eram as dos poetas. “Rio serras de veludo, sorrio pro meu rio que sorri de tudo”4, diriam mais tarde Boscoli e Roberto Menescal. Só de falar na cidade maravilhosa Tom Jobim morreria de saudade5, o Rio era mesmo feito pra ele, também era feito para Vinícius de Moraes, era “a cidade do seu amor maior, vibrante de calor e de entontecente cor”6. Não é à toa que inspirou tantos sambas. Rio de Janeiro, cidade sem igual. Sem igual foi a paisagem que Antonieta e Eugênia viram quando ali chegaram. Ainda não havia o Cristo Redentor, mas o Corcovado brilhava com todo esplendor. A baía de Guanabara parecia pintura, feita pelas mãos do mais hábil pintor. Os homens embelezaram ainda mais a paisagem com suas criações de concreto. Entre elas, os colossais arcos da Lapa que lembram a arquitetura romana. Os arcos compunham o caminho que Antonieta fazia todos os dias em direção a agência dos correios. Difícil não parar para admirá-los, ainda hoje estão lá, dando uma sensação de mergulho ao passado aos que visitam o local. Ao todo são 42 arcos de volta completa, de 270 metros de extensão e 17,6 de altura, foram construídos em 1723 para o objetivo de levar as águas do Rio Carioca até o Chafariz do Largo da Carioca, abastecendo esta outra parte da cidade. Já não tinham esta função quando as mineirinhas pra lá se mudaram, serviam de viaduto para os bondes do bairro de Santa Teresa, que ligavam o Centro à Rua Almirante Alexandrino, no Largo do Curvelo em Santa Teresa. Vez ou outra até o motorneiro7 parava no alto do viaduto, só para olhar o movimento lá debaixo. A Lapa era o berço dos boêmios, palco de encontro de intelectuais, artistas, políticos e demais amantes da vida noturna, ali conviviam diversas crenças, diversos ritmos musicais, sem haver qualquer conflito. Foi neste ambiente que Eugênia Brandão viveu sua adolescência, boêmia também se fez. Autodidata, ainda menina aprendeu francês. Lendo dicionários, livros e o jornal matinal, tornou-se letrada, tornou-se intelectual. Eugênia conseguiu seu primeiro emprego quando tinha quinze anos, era vendeuse (vendedora) da Magazin Parc Royal8, uma conceituada loja de artigos femininos e masculinos que ficava no Largo São Francisco, no Centro do Rio de Janeiro. Meses depois, deixou o emprego para ser atendente em uma livraria, a Freitas Bastos9, que ficava no Largo da Carioca. Ganhava menos, porém, achava que melhor lugar não haveria para ela que desejava ampliar sua cultura. Com os livros, aprendeu a admirar o teatro, a poesia e a prosa, conheceu autores nacionais e internacionais e adquiriu um espírito crítico. Leu muito e depois começou a escrever, os que a conheciam diziam que escrevia com graça e desenvoltura, que este era seu dom. Ela foi conferir. Aos dezesseis anos se apresenta na redação de um jornal Carioca, o jornal Última Hora, que foi o ancestral do periódico fundado mais tarde por Samuel Wainer. Eugeninha deixa claro na conversa que não queria apenas escrever (como já faziam algumas mulheres cronistas e poetisas), queria o ofício do homem matuto, queria ser repórter. Um absurdo para a época, mas no absurdo o secretário do Última Hora decidiu apostar e ela se fez repórter. Criaram até um neologismo na redação, reportisa, que alguns colegas acharam horrendo.

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Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Gabriel Bigó

Fotografias do arquivo da família

Gabriel Bigó

Foto de Eugênia na infância em Juiz de Fora

Eugênia na década de 20: pintores e fotográfos gostavam de retratá-la de perfil

Barão de Pitangui, o avô materno de Eugênia

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Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Reportisa, para a alegria dos que reprovaram, não pegou, mas, a amizade com os colegas em pouco tempo ela conquistou. A segunda empreitada de Eugênia não foi tão fácil assim, ela foi tentar um emprego como repórter no irreverente e recém-lançado jornal A Rua. Ferreira dos Santos, o secretário, era um homem de semblante sério. A primeira impressão de Eugeninha foi que ele estava de mau humor. Mais tarde confirmaria com os colegas que o homem não ria nunca e falava apenas o indispensável, mas, era uma boa criatura, companheiro nas horas difíceis, era também muito inteligente, profundo conhecedor do Jornalismo e bem relacionado com os homens de poder. Não costumava, porém, facilitar a vida dos repórteres, do fato falava apenas o essencial, às vezes nem isso, o repórter que se virasse para descobrir sozinho. Ao chegar na redação Eugênia teve que esperar um pouco para ser atendida. Logo percebeu o ambiente que era tomado por homens, alguns andando e falando alto, outros sentados tentando se concentrar (se é que isso era possível com todo aquele barulho). A fumaça dos cigarros encobria parcialmente o local com uma névoa quente e mal-cheirosa, que fazia tossir os não-fumantes. Quase não dava para ouvir o som da máquina de escrever, minimizado pelo constante falatório. Ela precisava de um bom motivo para tirar o secretário daquela agitada (e tensa) rotina produtiva. Julgava que tinha motivo suficiente, queria fazer parte do grupo. Finalmente chegou à mesa de Ferreira dos Santos e o encarou com coragem. Sem embaraço, mostrou a ele que entendia de jornal e apresentou bom texto, mostrou sobretudo vontade de fazer. Loquaz, talvez tenha deixado o secretário surpreso, curioso para saber qual a capacidade daquela rapariga. Tinha um arzinho petulante, seguro de si, que transmitia confiança. Onde ela iria chegar com toda aquela irreverência? Esta resposta Ferreira dos Santos não tinha, nem mesmo Eugênia. Mas neste dia ela voltou pra casa sabendo que deu um grande passo em direção ao seu futuro. Aos dezesseis anos conquistara seu segundo emprego no Jornalismo. Começava a ser independente, já podia de considerar adulta. Anos mais tarde se lembraria deste momento, em detalhes. A princesa Antígona vencera o primeiro desafio de sua vida, era repórter do irreverente jornal A Rua. Mas, por que o jornal A Rua era tão irreverente?

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Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Fonte: Revista Cultura (1985)

Arquivo da família

Gabriel Bigó

Família grande: Visita dos pais de Álvaro aos netos

Retrato de Eugênia, obra de Di Cavalcanti Material reunido pela família: pasta de recortes e fotografias de Eugênia

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1

Antígona é uma tragédia escrita pelo dramaturgo grego Sófocles em 442 a.C. O crime de Antígona foi enterrar com as próprias mãos o irmão Polinice, considerado inimigo do reino de Tebas, cujo rei decretara pena de morte para quem lhe prestasse homenagens fúnebres.

2

Informações sobre a árvore genealógica da família Armond foram retiradas do site http://www.geneall.net que reproduz o conteúdo de ZUQUETE, Afonso E. Martins (Dir.). NPB: Nobreza de Portugal e Brasil. 2ª ed. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1989.

3

O verso é da música Primavera no Rio, marchinha de João de Barro, gravada por Carmem Miranda em 1935.

4

5

6

7

Faço referência à música Rio samba dos compositores Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, criado em 1963.

Faço referência à composição Samba do avião, do maestro Antônio Carlos Jobim, gravado em 1962.

Faço referência ao poema A cidade em progresso, de Vinícius de Moraes.

Motorneiro é como era chamado o condutor de bondes.

8

A Magazin Parc Royal, uma propriedade do comendador português Ramalho Ortigão, era considerada na época o grande baluarte da elegância brasileira. Em 1943 o prédio da Magazin pegou fogo e desabou, tomando quase 12 horas de trabalho dos bombeiros da cidade, acabou por ser demolido e desapropriado para o alargamento da travessa São Francisco de Paula.

9

A livraria Freitas Bastos ficava no mesmo prédio da sede antiga do Jornal o Globo, no Largo da Carioca. Além de livraria, era editora. Hoje, no local, está o prédio da Caixa Econômica Federal. A Editora Freitas Bastos ainda existe, fica na Rua Beneditinos n. 16, sl 902, no Centro do Rio de Janeiro.

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Capítulo 5 A Rua, o Jornal... A Ouvidor, a Rua...

Vinte e quatro de março de 1914, quatro da tarde. O Jornaleiro ambulante desce do bonde e grita: — Extra! Extra! Venham conhecer o jornal A Rua! E então pára em uma esquina, em frente a um café da Rua do Ouvidor. Um pequeno grupo se forma em volta dele. Um senhor com chapéu de abas grandes e casaco diz: — O que esse jornal tem de bom?

Certamente o que A Rua tinha de melhor era a crítica ao governo de Hermes da Fonseca, repetia a fórmula de sucesso de outros jornais da época – A Noite, A Notícia, Correio da Manhã, Diário de Notícias – todos estes contrários ao presidente. Os artigos iam desde as ações políticas executadas até a exploração do âmbito pessoal, na mera maledicência. O maior pecado de Hermes tinha sido disputar (e vencer) a presidência com Rui Barbosa, homem considerado o maior dos brasileiros vivos na época, por isso, Hermes foi acusado de fraude nas eleições e não tinha o apoio popular. Apelidado de Dudu, era tido como azarado, o homem da urucubaca. Certa vez fizeram pra ele uma homenagem nada agradável:

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“Ai Filomena Se eu fosse como tu Tirava a urucubaca Da cabeça do Dudu... Na careca do Dudu Subiu uma macaca Por isso, coitadinho Êle tem urucubaca...” A “urucubaca” do Dudu garantiu popularidade imediata para o recém-lançado jornal A Rua. Pontualmente às quatro da tarde o diário já estava disponível nas ruas e era bem recebido. Fazia parte da chefia Victorino de Oliveira, admirado pela classe como um grande fazedor de jornal, que vinha com a experiência que adquiriu no jornal A Noite para idealizar A Rua, contando com a colaboração alguns amigos seus. Aos poucos a redação de A Rua se formou com ao menos meia dúzia de figurinhas carimbadas do Jornalismo na época: Viriato Corrêa, Amílcar Cardoni, Astrogildo Perreira, Alberico Couto, Ferreira dos Santos, Mário Alves, Oséas Motta e Raul Borja Reis, só para citar alguns. A escolha do nome para o vespertino não foi difícil, antes dele apareceram outros periódicos com nome semelhante que foram símbolos de prestígio em suas épocas. Um deles é o jornal Rua do Ouvidor, fundado em 1897 por Serpa Junior, que tinha como rótulo a elegância. E foi com requinte que este jornal anunciou o primeiro concurso de beleza realizado no Rio de Janeiro, em 1900, do qual saiu vitoriosa Violeta de Lima Castro, jovem que não era apenas formosa, tinha ampla cultura e inteligência sobretudo para as artes, tornouse logo em seguida cantora clássica. O outro A Rua foi o periódico dos poetas, era dirigido por Pardal Mallet e tinha como redatores principais Olavo Bilac e Raul Pompéia. A aurora deste primeiro A Rua foi em 1889, duraria, porém, poucos pores-do-sol. Este A Rua de 1914 durou mais: treze anos que foram intensos e incrivelmente duradouros para os que lá trabalharam. O jornal tem muitas histórias de furos jornalísticos, investigações policiais e aventuras de risco. Conheça algumas:

A loucura de um repórter O nome do repórter era Alberico Couto. Era, de fato, um homem “matuto”, que tinha gosto por matérias arrojadas, se a história era boa não hesitava em enfrentar o perigo. Um dia, porém, as coisas ficaram feias para ele, invadiu uma praça de Guerra em Santos para roubar peças de canhões do exército. Seu intuito era provar que um inimigo, facilmente, poderia fazer o mesmo. Só que Alberico foi pego “com a mão na massa” pelos soldados quando praticava seu roubo de mentira. De imediato, o repórter foi acusado de ser o suposto inimigo. Desta vez, quase que Alberico não sobrevive para fazer sua reportagem, foi necessária a intervenção dos donos do jornal A Rua. Porém, até tudo ser esclarecido, ele passou por momentos de grande pânico. A lição não mudou muito o comportamento do repórter, ele continuou por muito tempo ainda correndo atrás de matérias arrojadas, porém, tomando mais cuidado com os militares. Mas esta não foi a primeira nem a única empreitada do jornal A Rua que envolveu os militares, houve outra que aconteceu com o jornalista Carvalho Netto.

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Furo de reportagem Carvalho Netto tinha sido recentemente incorporado à redação do Jornal A Rua. Conseguiu uma vaga por intervenção do repórter Henrique Dias Cruz, um amigo que havia sugerido o nome dele aos colegas. Ele já trabalhava no jornal matutino Gazeta de Notícias, mas, como o horário não coincidia decidiu aceitar a vaga e engordar um pouco o salário. Tinha também outra vantagem: adiantava o trabalho do dia seguinte para a Gazeta com a cobertura para A Rua. Este era um comportamento muito comum na época entre os repórteres, o engraçado era quando trabalhavam em folhas de linhas editoriais opostas. Neste caso, se de manhã falavam mal de um governante de direita, à tarde fariam a defesa do próprio. Tudo era perdoável no tempo dos pseudônimos. Aconteceu em um dia de pautas “mornas” na redação de A Rua. A única matéria que poderia render alguma audiência em princípio não era para Carvalho Netto cobrir, era para um foca muito dedicado, aprendiz do secretário Ferreira dos Santos. Aliás, foi em um dia que Ferreira estava, de verdade, com cara de poucos amigos, talvez porque lhe doessem muito os calos ou a artrite. Logo cedo chamou o inteligente foca, que tinha apenas 18 anos, e deu-lhe a tarefa de fôlego: apurar no Ministério da Guerra um levante ocorrido na guarnição militar de Campo Grande, no Mato Grosso, que os oficiais queriam manter em sigilo. E lá foi o repórter com grande entusiasmo, a dificuldade da incumbência era sinônimo do reconhecimento de sua competência. A alegria do jovenzinho não duraria muito, no Ministério ele não conseguiu arrancar nada de ninguém, foram categóricos em dizer que não houvera levante algum. Com a expressão de fracasso estampada no rosto ele voltou para a redação, deu de cara com a última pessoa que queria encontrar naquele momento: Ferreira dos Santos, que já foi logo perguntando surpreso pelo rapaz ter voltado tão rápido: — E então?1 — Nada feito. Afirmaram-me que não houve levante algum..., respondeu o rapaz, intimidado pelos olhos severos de Ferreira dos Santos. — Houve sim..., disse Ferreira, mas sem o tom de azedume que lhe era costumeiro, em segundos passara da severidade ao desapontamento. O secretário olhou em volta e viu que permanecia na redação o recém-contratado Carvalho Netto e ordenou sem cerimônia: — Netto, vá apurar este caso. O repórter, que já era mais experiente, tentou argumentar, mas já sabia que seria inútil tentar

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tirar aquela resolução da cabeça do secretário: — Mas, Ferreira... o rapaz tem relações na Guerra...se nada conseguiu apurar é porque nada houve. Eu não conheço lá ninguém. Estou até em pior situação. Não se pode fazer milagre... Como já imaginava, o protesto não deu resultado, a única resposta do secretário foi um resmungo incompreensível. Às nove horas da manhã Carvalho Netto saiu da redação, meia hora depois subiu pelo elevador que dava acesso ao gabinete do Ministro, empurrou a porta de uma das ante-salas e teve uma surpresa. O oficial que lá estava, até então de cabeça baixa concentrado na leitura de telegramas, ergueu-se, tratava-se do Capitão Bustamante de Sá, seu vizinho no bairro da Piedade, com quem já tinha estabelecido relações. — Que faz por estas bandas, Netto? O repórter lhe explicou o motivo sem tentativas de encobertar suas pretensões. Bustamante foi atencioso e se mostrou disposto a colaborar com o vizinho, com quem já tinha conversado algumas vezes na roda de amigos. — Olha aí os telegramas, incentivou Bustamante. Os telegramas confirmavam que ocorrera o levante, porém, sem grandes prejuízos para a guarnição pois em pouco tempo havia sido dominado. Bustamante autorizou o amigo a publicar as informações mas, pediu que ele não fizesse referência à fonte para não comprometê-lo. Carvalho Netto voltou à redação de táxi. Antes de dar um retorno a Ferreira dos Santos foi à mesa do angustiado foca e lhe contou como conseguiu a informação. — Nada fiz eu de extraordinário para obter a notícia, foi como te contei, mero acaso, questão de sorte por conhecer o oficial. E assim Netto exortou o coleguinha a não se sentir fracassado. Poderia bem se engrandecer, dizer que era bom e por isso conseguira o que o outro não conseguiu. Mas, optou por dizer a verdade e não frustrar o jovem companheiro que começava agora sua carreira. A Rua deu mais um furo naquele dia e Ferreira dos Santos ficou satisfeito, até o mau-humor acabou. Mas nos dias que se seguiram a cara de mau-humor voltara, mais amarrada do que nunca. Outro grande momento de A Rua foi, sem dúvida, a internação de Eugênia Brandão no Asylo Bom Pastor, as reportagens sobre as mocinhas que lá estavam fizeram o maior sucesso. Eugênia sustentou a partir daí uma posição editorial nobre no periódico, a folha de rosto, na qual assinava com irreverência suas reportagens. Mas, o sucesso da repórter um dia foi colocado em xeque por Emílio Alvim, repórter de um concorrente de A Rua: o jornal Correio da Noite.

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A Noite e Correio da Noite, dois adversários de peso A Noite e A Rua, eles eram vizinhos, ambos ficavam na Rua do Ouvidor que na época era uma das ruas mais importantes do Centro do Rio de Janeiro. Enquanto A Rua saia às quatro da tarde, A Noite aparecia às sete, quando as ruas já estavam iluminadas pelas luzes dos postes e da lua. Para dois concorrentes até que eram bem tolerantes, ofereciam um ao outro três horas de trégua e, além disso, tinham o mesmo posicionamento político, anti-Hermes da Fonseca. Norte, oito quatro, este era o número do telefone de A Noite que aqueles que moravam nas redondezas sabiam de cor. O jornal A Noite tinha sido fundado recentemente, por iniciativa de treze jornalistas, que vinham principalmente dos jornais A Notícia e Gazeta de Notícias, todos eles tinham muito talento, porém, pouco capital, foi necessário juntar o dinheiro dos treze e mais o de amigos para tornar possível o primeiro número de A Noite. Superadas as dificuldades iniciais, em pouco tempo o jornal conquistou auto-suficiência graças à ótima receptividade do público. Assim como A Rua, era anti-hermista (contrário ao presidente Hermes da Fonseca) e trazia reportagens de sensação, era mesmo um concorrente à altura. A Rua e os demais jornais da época tinham muito a invejar de A Noite, isso porque os leitores não esperavam o pregão dos jornaleiros, iam buscar o exemplar do jornal na redação, ávidos de curiosidade. Apesar da rivalidade, A Noite e A Rua tinham em comum um adversário hermista: o Correio da Noite, que era gerenciado por José do Patrocínio Filho.

Eugênia vai tirar satisfações na redação de Correio da Noite... Certa vez um repórter do Correio da Noite deixou a primeira repórter brasileira em fúria. Foi Emílio Alvim, que publicou no Correio que a reportagem de Eugênia no Asylo Bom Pastor havia gorado. Ele tinha em mãos a cópia datada do recibo que ela assinou no ato de retirada de seus pertences, quando teve que abandonar o Asylo. Segundo o recibo, Eugênia permanecera lá apenas 48 horas e não tinha nem papel, nem caneta, nem câmera fotográfica em mãos para fazer a reportagem. Emílio Alvim concluiu que ela não conseguira nada que pudesse virar reportagem. A Conclusão precipitada lhe custou caro, ele não contava que Eugênia tivesse uma memória apurada e que isso não lhe rendera uma, mas várias reportagens. Se não tinha fotografia, descreveu em detalhes o traje que as moças usavam para uma costureira, vestiu ela mesma o traje e foi fotografada com uma vassoura na mão, para demonstrar que as internas se ocupavam de afazeres domésticos. Revoltada com a atitude do colega, ela dá entrevistas em linguagem crespa para vários jornais e promete que iria tirar satisfações com ele pessoalmente e dizer-lhe uma dúzia de verdades. Eugênia chegou à redação do Correio esfumacejando. Era fumante inveterada, mas não, a

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a primeira repórter do Brasil

Vera Verreschi

Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Deteriorado pelo tempo: jornal A Rua de 1914 no arquivo da Biblioteca Nacional

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fumaça não era do cigarro, era de zanga. Como Emílio Alvim lá não estava, foi recebida por José do Patrocínio Filho. Com seu jeito cortês, Zeca (Patrocínio Filho) acabou acalmando a fera, quando Emílio voltou já estava pacificada. E então, depois de uma prosa agradável, até se permitiu ser fotografada com Emílio, como dois bons colegas. Sobre este incidente de fim pacífico José do Patrocínio Filho escreveu em uma de suas crônicas: “Devolvo portanto a Emílio Alvim a doce agressão e o sucesso obtido pela esplêndida reportagem, apresentando a senhora Eugênia Brandão as minhas homenagens de cavalheiro e a minha admiração de confrade”. Ele ressaltou que de início Eugeninha lhe dissera horrores e estes horrores ele os transferia para Emílio Alvim. Apesar de parecer uma gata brava, a primeira repórter brasileira demonstrou que não guardava rancor. Algum tempo depois outro repórter do jornal A Rua se internou na Santa Casa do Rio de Janeiro fingindo doença. Na reportagem ele fez uma crítica severa às más condições de atendimento do hospital. Para ilustrá-la, imitou o recurso utilizado por Eugênia e se deixou fotografar metido em um camisolão de doente. Bastou isso para o pessoal do Correio da Noite fazer o maior deboche das reportagens do concorrente. Instigados por Zeca, Emílio Alvim e Paulo Cabrita apareceram nas edições seguintes do Correio vestidos de mulher, freqüentando os lugares mais escabrosos que é possível imaginar e transmitindo impressões diretas aos leitores. José do Patrocínio Filho, o Zeca, fazia Jornalismo e também poesia, era popular por ser filho de uma figura curiosíssima da sociedade carioca: José do Patrocínio, o fundador do jornal Cidade do Rio, que foi considerado o maior jornalista da abolição da escravatura, também o primeiro brasileiro a passear (e a protagonizar o primeiro acidente) de automóvel no Rio de Janeiro. Vale a pena abrir um parêntese para contar esta história que marcou a imprensa da época.

O primeiro acidente de automóvel do país José do Patrocínio fazia questão de mostrar a quem quisesse ver seu peugeot preto importado da França. Protagonizou, junto com seu amigo Olavo Bilac, o primeiro acidente de automóvel do Brasil. Proeza ou não, foi assim que aconteceu: Inflado por traçar um zigue-zage de carro, assustando transeuntes pelas ruas da capital, ele decidiu convidar também o companheiro Bilac para “manejar a máquina”. Bilac, orientado pelo professor José do Patrocínio, que sabia tão pouco de volante quanto ele, acabou batendo em uma

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árvore. Saíram ilesos, a não ser por um galo que “cantou” na testa do príncipe dos poetas. O prejudicado mesmo foi o pobre peugeot, que teve danos irreparáveis na lataria. Sobre este acidente escreveu Rui Castro: “Desembarcado o carro no cais do porto, Patrocínio girou a manivela e entrou nele, de quepe e guarda-pó, sob aplausos da multidão. A custo de vários desmaios e mortes do motor, atravessou a Rua Primeiro de Março a dez quilômetros por hora e conseguiu levar a furreca até sua casa, no Engenho de Dentro. Dias depois convidou Olavo Bilac a dar uma volta. E este, peralta como ele só, também quis dirigir a geringonça. O próprio Patrocínio mal sabia fazer o carro andar em linha reta, mas achava-se com ciência para instruir Bilac. Os dois passaram por cima do outro no assento e trocaram de lugar. Patrocínio mostrou-lhe como dar a partida e Bilac, sem controle dos pés e das mãos, pisou na tábua até o fundo, com o ímpeto de quem esmaga uma lacraia. O carro soltou dois ou três puns ribombantes, disparou em zigue-zague pela até então ruela suburbana e, cem metros depois, achatou-se contra a única arvore à vista. Por milagre, nenhum dos dois se machucou. Só o carro levou a breca”. (CASTRO, Rui apud CONSIDERA, 2003).

A polícia causou uma certa dor-de-cabeça para os dois boêmios, nada que não fosse logo resolvido por meio do prestígio que possuíam. O acidente aconteceu nas redondezas da Rua do Ouvidor.

A Ouvidor, a rua A Rua do Ouvidor2 era na época o centro comercial e cultural da cidade. Ali estavam instaladas redações de diversos jornais, hermistas e anti-hermistas: O próprio jornal A Rua, que Eugênia trabalhava; o Jornal do Commercio, que foi fundado por Pierre Plancher; A Noite, de Irineu Marinho; A Nação, do Barão do Rio Branco; Diário de Notícias de Rui Barbosa; O País de Quintino Bocaiúva, A Gazeta de Notícias de Bilac e João do Rio; a Revista da Semana de Álvaro Teffé; e O Malho de Kalixto etc. É na Ouvidor que surgem os primeiros cafés do Rio de Janeiro, era parada obrigatória para os boêmios, políticos, empresários e toda sorte de intelectuais. As mademoiselles também eram freqüentadoras assíduas. Os chás, biscoitos e petiscos eram só desculpas para uma animada conversa, às vezes, temperada por algumas discussões apimentadas. O som que se ouvia na Ouvidor era de Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazaré. Ouvia-se também declamações de rascunhos de poemas que surgiam ali na hora, inspirados pelo chá ou pelo chopp. Alguns preferiam mesmo a voz aguda da ave do Café Papagaio, o mascote era a atração da casa, dizia de cor os palavrões mais escandalosos e os versinhos mais pornográficos que lhe ensinavam os boêmios. Uma vez, chegou a ser apreendido por policiais, em nome da moral e dos bons costumes. Claro que os freqüentadores fizeram campanha para libertá-lo. Eugênia Brandão ia aos cafés da Ouvidor acompanhada de seus colegas do jornal, passavam lá o final de tarde conversando sobre assuntos que merecessem ao menos um mínimo de comoção intelectual. Freqüentava também as lojas de tabaco, mas este é assunto para o capítulo 6. Intelectual que era intelectual passava na Ouvidor pelo menos um décimo de seu dia. Já os comerciantes passavam bem mais tempo. A Ouvidor era o local ideal para as senhorinhas gastarem o dinheiro de seus maridos, para os filhos gastarem o dinheiros dos pais, as vitrines das galerias falavam direto à vaidade das namoradas, para o desespero dos rapazotes que não tinham muitos vinténs nos bolsos. Sedas, chapelaria, perfumes, jóias e adereços de luxo, tudo a imitar a última moda da França. Até mesmo os franceses foram importados para o Rio e na Ouvidor abriram suas grifes caríssimas de alta costura. No Hotel Europa3, o mais elegante da rua, o idioma oficial era o francês. E quem tivesse saudade da Europa podia ali pertinho ver uma sessão no kinetoscópio4 do Kab-kab5, os filmes

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ainda eram bem simples, via-se uma mulher em diferentes posições e uma briga de galos, eram, porém, mágicos para aqueles que na platéia estavam. Enfim, a paisagem da própria Ouvidor agradava os olhos mais exigentes com imagens mágicas. Porém, aquelas cenas que os olhos de Eugênia viram, quase que diariamente na Ouvidor, nunca mais veremos, a não ser na imagem estática e sépia das fotografias. O centro do Rio se deslocou para as Avenidas Rio Branco e Brasil e a Ouvidor foi perdendo importância. A moda francesa voltou para a França e os boêmios deixaram a vida para se tornarem imortais. Tantos costumes, tantas regras de etiqueta que ficaram para trás...Mas, na época tudo isso era muito valorizado, as mocinhas, se quisessem ser bem vistas, tinham que seguir às normas sem questionar. No entanto, havia alguém que desfilava pelas ruas menosprezando os “bons” costumes, era uma menina que andava vestida de calças, gravata, camisa e paletó. Por onde ela parava acendia sua cigarrilha, balançando os cabelos curtos cortados à la garçonne. Ela escandalizou.

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Vera Verreschi

Arquivo Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Reportagem de Eugênia sobre a exploração do trabalho feminino publicada no Jornal A Rua em maio de 1914

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Os diálogos na redação de A Rua foram transcritos da obra Norte, oito quatro de Carvalho Netto. Para consultá-la, procurar por: NETTO, Carvalho. Norte, oito quatro. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1977.

2

Para saber mais sobre a história da Rua do Ouvidor, sugiro a leitura das obras: MACEDO, Joaquim Manuel de. Memórias da Rua do Ouvidor. Rio de Janeiro: Editora UNB, 1988; e CONSIDERA, Anabelle Loivos. Euclides na Rua do Ouvidor: o Rio e os (pré-) modernismos. In: 91ª Semana Euclidiana, 2003, São José do Rio Pardo-SP, Oficina. Disponível em http://www.casaeuclidiana.org.br/texto/ler.asp?Id=685&Secao=120. Acesso em: 20 jun.2007.

3

O hotel Europa, que ficava no centro do Rio de Janeiro, era reconhecido pelo luxo e refinamento dos funcionários, na época era o ponto de encontro dos barões do café.

4

5

O kinetoscópio é o aparelho de reprodução de imagens em movimento inventado por Thomas Edison.

A Kab-kab foi uma das primeiras salas de cinema da Rua do Ouvidor, inaugurada em 1910.

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Capítulo 6 Cabelo à la garçonne

Eugênia tinha sido aceita no jornal A Rua, mas, ainda não estava com o cargo garantido, faltava a prova de fogo, sua coragem seria testada na prática. O secretário Ferreira dos Santos foi o grande arquiteto da prova, não houve um só detalhe que escapasse de suas provisões. Era praticamente um trabalho de espionagem para a jovenzinha. “Disfarçada de mulher” ela iria se internar no Asylo Bom Pastor para fazer uma investigação jornalística. Opa, espera ai, “disfarçada de mulher”? O ano de 1914 foi o último da Belle Epoque francesa que tanto influenciou o Brasil. Na redação do jornal A Rua chega alguém. O rosto é ainda desconhecido para a maioria. Chapéu de feltro, mãos descobertas, sapato de bico fino bem lustrado, gravata um pouco solta no colarinho, calça e paletó tão largos que caberiam ali duas dela. É Eugeninha Brandão. Com passos lentos ela se aproxima e causa um misto de espanto e admiração. Enquanto isso, nas calçadas da Rua do Ouvidor as mocinhas andam acompanhadas, ou por um cavalheiro, ou pelos pais, ou, ainda, por empregados. Usam delicadas sombrinhas tampando o rosto do sol, vestem-se com espartilhos que as deixam com a silhueta em “S”, com o busto levantado e os quadris empinados para trás (estes são ditos “espartilhos saudáveis” porque, diferente dos modelos do século anterior, não apertam tanto os pulmões). O vestido é estreito nos quadris e nas pernas, a bainha alcança o chão, é feito de seda e tem muitas rendas, babados, bordados e lantejoulas. Já os homens resistem ao sol com alguma dificuldade, o traje é pesado e em tons escuros,

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revelando um ar sombrio. Fazem verdadeiro contraste com as damas que usam tons pastéis - o rosa pálido, o azul claro e o malva. O charme masculino é o rosto com bigodes, barbas e costeletas bem feitas. Elas se enfeitam com flores nos cabelos e plumas nos chapéus. A intenção é mostrar fragilidade, cheiram à lavanda porque qualquer outro perfume é considerado vulgar, os rostos são muito brancos (para mantê-los assim submetem-se a qualquer esforço, até mesmo beber vinagre e se esconder do sol e do ar fresco, pele bronzeada é considerada o supra-sumo da vulgaridade). Eugeninha teria que se vestir como estas mocinhas lá de fora para ser aceita pelas freiras do Asylo, teria que se “disfarçar de mulher”. Ela fica em silêncio enquanto Ferreira dos Santos faz suas ponderações. Diz, por fim: — Eu faço isso. No fim da tarde ela aparece no café e se junta à rodinha de amigos jornalistas. É segredo, eles ainda não sabem que ela saíra do jornal Última Hora, muito menos que iria fazer uma reportagem sigilosa para o A Rua. Faz parte da estratégia de Ferreira dos Santos ela dizer a eles que deixaria o Jornalismo. E Eugeninha faz isso com direito a demonstração de tristeza, revelando-se uma ótima atriz: — Vou fazer uma viagem, diz com olhos tristes. — Quando voltas?, questiona um dos amigos do Última Hora. — Talvez não volte mais. — Está brincando? — É certo1. No dia seguinte Eugeninha toma o táxi número 826 e desembarca no Asylo Bom Pastor. Chega falando baixo, vestida conforme orientou Ferreira dos Santos. Na conversa com a Madre Superiora se faz de tímida e o disfarce convence. Logo é levada para o almoxarifado a fim de procurarem um traje do internato que lhe servisse. Só depois de muito experimentar as freirinhas encontram um que corresponde ao manequim dela, divertem-se porque quase todos batem na canela ou ficam largos demais. Eugênia é a mais alta entre as internas. O segredo de Eugênia não continuaria oculto por muito tempo. Dias depois uma parte dele foi descoberta pelos colegas: Eugeninha estava internada no Asylo Bom Pastor. Não podiam acreditar, a notícia vem como um choque para eles, não conseguem compreender os motivos da coleguinha que sempre se revelou tão avessa ao tradicionalismo e agora estava lá, em um convento onde se ensinavam bom comportamento e religiosidade. A questão não respondida vira matéria nos jornais. No Última Hora publicam a nota “Uma alegria que se enclausura: da vida intensa da reportagem para o mysticismo da cella. Por que ella partiu”, que teve um ar de depoimento: “Quem não se lembra della? Quem não a conheceu/ Foi uma figura de excepção na vida fervilhante do Rio. Foi uma personalidade chocante na nevrose da vida jornalística (...) Mas de uns tempos para cá parece que alguma coisa lhe toldou a vida. Aquelles magníficos olhos negros já não eram os mesmos olhos felizes e rizonhos. Agora pareciam forçar a nota da alegria que já não tinham (...) Hoje a tarde corre nas rodas jornalísticas a notícia surpreendente Mlle. Eugênia Brandão (a Eugêninha como chamávamos) entrara para um convento. Corremos para a rua. Era verdade. A Eugêninha entrara para o Asylo Bom Pastor. Por que? Paixão? Desgostos íntimos? Impressão religiosa? Quem sabe lá? Quem pode saber o que ia

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naquelle coração tão original e extranho? Mas nunca ninguém suppoz que aquella alma bohemia e alegre fosse capaz de tão imprevista resolução”.

A surpresa dos rapazes tinha razão de ser, a última coisa que Eugeninha parecia é mocinha frágil e religiosa. Muito menos triste, o que ela fazia era alegrar as situações mais delicadas com uma gargalhada sadia e prolongada, não tinha frescuras, junto dela os rapazes não notavam nenhuma estranheza, mais parecia um rapaz como os outros, não só pelo traje. Tinha uma simplicidade e uma alegria sem par, os mesmos hábitos deles e a mesma maneira de ver as coisas. Mas as características femininas dela também faziam saltar os olhos deles. E que olhos ela tinha, negros como “carvões acesos”, que hipnotizavam, que apaixonavam1. Por outro lado, tudo em Eugeninha era o ímpeto. Era um temperamento cheio de surpresas, as reações surgiam imprevistas e de pronto. Estava ocupada na redação e de repente lhe dava vontade de ir respirar ar fresco na praça, ia..., não havia ninguém que conseguisse tirar esta resolução da sua cabeça. Olhando por este ângulo é bem possível que de uma hora pra outra decidisse mesmo mudar de vida, por mais absurda que fosse a idéia do convento. Mas daí a ser meiga e frágil como as outras mocinhas que andavam de sombrinhas havia uma enorme distância. Eugênia nunca foi contida, se por algum motivo se sentisse prejudicada, “soltava os cachorros” em quem quer que fosse. Não se importava com o que os outros iam dizer e nem com regras de etiqueta. Portava-se com naturalidade e falava o que vinha na cabeça, sem qualquer filtro, tinha um jeitinho de ser diferente das outras, dos pés aos cabelos. Enquanto a maioria das mademoiselles tinha cabelos longos e desfilavam com eles presos com elegantes penteados, ela se orgulhava do seu cabelo curto, cortado à la garçonne. O cabelo à la garçonne era símbolo de rebeldia, aquelas que deixavam a nuca nua nesta década não eram bem vistas pela sociedade, os conservadores arrumavam milhões de desculpas para desaconselhar as mulheres da casa à moda dos cabelos curtos, que começava a surgir em Paris. Os médicos diziam que cortar os cabelos na altura da nuca provocava erupções na pele, uma alergia que apelidaram de garçonniti. Alguns afirmavam, inclusive, que o corte era um estímulo para o aparecimento de pêlos no corpo feminino, tanto nas pernas e braços como no rosto. Os alertas eram mesmo para apavorar. Até o início da década de 20 os valores das famílias conservadoras representavam uma instituição fortíssima, tais valores não aceitavam que a mulher trabalhasse fora, porque o papel dela era ser a guardiã do lar e da família. Mulher de valor era aquela carinhosa e fiel ao marido, que sabia cozinhar, cozer e bordar, que cuidava para que a casa fosse bem apresentável, os filhos asseados e bem educados. Assim como no século anterior, o padrão de civilidade vinha das regras de etiqueta francesa e eram nestes princípios que as crianças eram educadas. A mesa tinha que estar pronta para quando o marido retornasse e o salão impecável para

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receber eventuais visitas. O salão das residências era o verdadeiro símbolo de status social, não importava que no resto da casa as cadeiras estivessem desconjuntadas, a mobília carunchada e os lençóis velhos, o salão tinha que brilhar como jóia, afinal, era a parte da casa mais observada pelas visitas. Era ali que aconteciam os saraus, oportunidade para as anfitriãs mostrarem o que aprenderam em suas exaustivas aulas de piano e para os filhos e convidados recitarem poemas. Não se permitia que o desenvolvimento intelectual da mulher fosse muito além das “caudas dos pianos”. Dizia-se que os livros não eram para elas, porque atrapalhavam as idéias. Algumas conseguiam ler romances e periódicos dirigidos às mulheres, mas, geralmente estavam estampados nestes textos os mesmos ideais conservadores. Bastava o fato de Eugeninha trabalhar em um ofício considerado atividade de homens para que não fosse bem vista por esta sociedade. O cabelo à la garçonne e o vestuário masculinizado só faziam reforçar os olhares penalizadores. Mas, com este estilo peculiar ela se adiantava aos costumes que seriam comuns na década posterior, quando acabariam as resistências à nova moda. Os anos 20 foram apelidados de anos loucos. Aboliu-se o espartilho, as saias subiram até a altura dos joelhos, surgiram as meias cor da pele, que sugeriam pernas descobertas. As cores pastéis foram substituídas por estampas em cores vivas, o vermelho, o verde, o amarelo, o laranja, o azul escuro. Os estilistas adotaram o estilo oriental para o corte das roupas, que revolucionaram. As inovações se deveram sobretudo a dois grandes criadores de moda do período: Coco Chanel e Paul Poiret, ela grande disseminadora dos modelos retos (andróginos) e dos colares longos; ele o porta-voz do orientalismo, com sua moda de cores vibrantes e estampas audaciosas. A partir daí Eugênia pôde andar nas ruas sem chamar tanta atenção assim. Várias moças desfilavam com o cabelo à la garçonne e em cada fevereiro de samba ganhavam a homenagem dos compositores: Hoje no Rio o que está na moda E o que se usa com perfeição Qualquer menina de alta roda Faz um mocinho andar contra a mão Cabelos curtos, bem aparados Lindos cangotes nos deixam ver Tão sedutores e tão perfumados Que os gabirus fazem padecer À la garçonne É a tal moda de sensação À la garçonne Lá na avenida é a toda mão (Tudo à la Garçonne, Pedro Sá Pereira e Américo F. Guimarães) Ela antigamente Era tão sossegadinha Hoje, ai minha gente De cartola e bengalinha

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Trança é desmazelo Moça não se impressione Corte o seu cabelo Pela moda à la garçonne (De cartola e bengalinha, Freire Júnior) Cabeças à la garçonne Com tanta graça repetis As cabeleiras encantadoras Da moda chic de Paris Cabeleira à la garçonne Usá-la assim... eis que é preciso Cabeça que só tem cabelo É mais cabelo que juízo (Cabeleira à la garçonne, Pedro Sá Pereira e Américo F. Guimarães)

Outra revolução foi o decote em “V”. Para a sociedade tradicional, era escandaloso. Para a Igreja, abominável, falta de pudor. Para os médicos, perigoso. Os doutores diziam que o decote em “V” fazia mal à saúde, apelidaram o modelo de “blusa pneumonia”. Eugênia adotou o decote e os modelitos da onda oriental, que todos diziam: pareciam feitos para ela. Mas se ela parou de chamar a atenção por causa do vestuário, que agora várias melindrosas usavam, não foi assim nos hábitos. Fumava cigarrilhas em público, causando comentários em bocas maldosas. — Meu Deus, aquela mulher fuma charuto!, diziam algumas senhoras com discrição para seus interlocutores, mas, com todo o cuidado para que a comentada não ouvisse. Não, não eram charutos, eram cigarrilhas. Ate hoje há quem as aprecie, feitas de fumo natural ou homogeneizado, são o meio-termo entre o charuto e o cigarro. O tamanho e a espessura é semelhante ao dos cigarros mas, como os charutos, são envolvidos em folhas de tabaco e não em papel. O aroma é mais fraco que o dos charutos e fazem menos fumaça. As principais marcas do produto são holandesas. Eugênia ia buscar as suas cigarrilhas na tabacaria mais famosa da Rua do Ouvidor: a Loja do Bernardo. Tinha o costume de armazená-las em uma caixinha de madeira. A caixinha sobreviveu ao tempo, é quem sabe o único objeto pessoal de Eugênia que hoje está na posse da família. Por fora mais parece um porta-jóias tão bem feitos os desenhos em baixo relevo esculpidos na madeira.

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As cigarrilhas de Eugênia viravam charutos no exagero das caricaturas. Mas, de fato, quando ficou mais velha, ela adotara os charutos. Gostava de passar o tempo fazendo espirais de fumaça e jogando paciência, sobretudo nos dias de chuva fina. Apesar dos anos loucos, quando a impressão era de que tudo (ou quase) era permitido, até a década de 30 as mulheres fumantes não eram vistas com bom tom pela sociedade. Associavam o cigarro como hábito de prostitutas e de atrizes (que para a moral da época eram praticamente a mesma coisa). Foi o cinema que deu glamour ao cigarro em mãos femininas. O filme Gilda2, com Rita Hayworth, enalteceu a imagem da mulher fatal, que por onde passava deixava uma nuvem de fumaça que enlouquecia os homens. Rita segurava o cigarro em pose cheia de charme, com a cabeça caidinha para o lado. Vestida em um longo tomara-que-caia colado ao corpo, casaco de pele na mão esquerda e cigarro na direita, era um apelo à sexualidade. O cigarro seria definitivamente aceito na década de 60, quando estreou nas telas Bonequinha de Luxo3. A bela Audrey Hepburn causou sensação com sua piteira de melindrosa e motivou milhões de mulheres a experimentarem o cigarro. A bonequinha Audrey não resistiu muito tempo à vida boêmia aromatizada a tabaco. Aos 63 anos morre de câncer de cólon, causado pelo vício. É provável que o tabaco também tenha ajudado a enfraquecer o pulmão e o coração de Eugênia, que tombou aos 50 anos apenas. Quando tinha 49 o médico a advertiu que se não deixasse de fumar, de se preocupar com política e de correr escadas com os netos, teria pouco tempo de vida. A resposta de Eugênia veio calma, entre espirais de fumaça: _ Sem charuto, sem idéias e sem poder brincar com meus netos, está mesmo na hora de ir embora. Apesar de cometer, às vezes, alguns exageros, Eugênia era uma apaixonada pela vida, aliás, era uma mulher de oito paixões...

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1

Os diálogos e a descrição da personalidade de Eugênia na juventude foi baseada no artigo de COTRIM, Álvaro. A primeira repórter brasileira. Revista Cultura, Brasília, n. 33, ano 9, out./dez. 1979, p.17-27.

2

O filme americano Gilda é uma criação do diretor Charles Vidor, gênero Drama/Musical, produzido em 1946 pela Columbia Pictures. Foi estrelado por Rita Hayworth, Glenn Ford e George Macready.

3

O filme americano Bonequinha de luxo ( Breakfast at Tiffany’s) foi lançado em em 1961. Foi dirigido por Blake Edwards e teve no elenco nomes como Audrey Hepburn, George Peppard e Patricia Neal, distribuído pela Paramount Pictures.

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TerceiraParte

As três faces de Eugênia: a mãe, a militante e a atriz



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Capítulo 7 Apaixonada pelo poeta

Com dezesseis anos ela achava que por toda a vida teria uma única paixão: o Jornalismo. Por causa dele nem via o tempo passar, caminhava por horas sem sentir dores nas pernas, enfrentava quem fosse preciso. Era improvável que aparecesse qualquer outra coisa que pudesse disputar com ele sua atenção. Eugênia estava enganada, seria uma mulher de oito paixões, respectivamente, o Jornalismo, o poeta, a política, os filhos, o tabaco, o teatro, os netos, a vida. Entre todas apenas um homem: Álvaro Moreyra. Ele era dez anos mais velho, nem feio nem bonito, culto, boêmio, um homem de letras, gaúcho, filho do comerciante e cronista João Moreira da Silva e de Maria Rita da Fonseca Moreira. Era formado em Direito mas não tinha muito dinheiro nos bolsos, vivia de um pequeno salário pela colaboração no semanário ilustrado Fon-Fon e das mesadas que o pai enviava de Porto Alegre, em compensação, tinha muita história para contar. Quando conheceu Eugênia voltava de uma visita à Europa, presente dado pelo pai como incentivo para que concluísse a faculdade. Seu nome completo era quase impossível de memorizar, Álvaro Maria da Soledade Pinto da Fonseca Vellinho Rodrigues Moreira da Silva1, por isso, preferiu ser conhecido apenas por Álvaro Moreyra, com y, que indicava a supressão dos outros sobrenomes. Morava junto com o amigo Filipe D’ Oliveira, também gaúcho, com quem viera para o Rio de Janeiro. Mais do que um advogado, Álvaro era um poeta. Tudo aconteceu muito rápido, o ano era 1915, ela trabalhava no jornal A Rua e ele na Fon-Fon,

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À esq. carta de Ávaro para Eugênia, escrita em 1916 quando ele viaja para Porto Alegre. À direita bilhetes escritos por ele depois da morte de Eugênia.

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tinham amigos em comum, foi na casa de um deles que se conheceram, logo de início se gostaram. Começaram a namorar, foi questão de meses para que decidissem ficar juntos em um mesmo teto. Eugênia e Álvaro, a jornalista e o poeta, se completavam mas não eram parecidos, a começar pela altura, ele era uns quinze centímetros mais baixo que ela, mas, as maiores diferenças eram de personalidade. Ele fazia o tipo romântico-sonhador, ela era mais voltada para a realidade; o poeta assumia uma posição contemplativa diante da vida, a jornalista era mais prática, punha mãos à obra. Um era teoria, o outro, ação. Até no tratamento dado às pessoas havia diferenças, Álvaro era humilde e caridoso, Eugênia irreverente e justa; ele calmo e paciente, ela brava do tipo que não levava desaforos para casa e que, se necessário, defendia sua gente com unhas e dentes. Os dois formavam um dos casais mais curiosos que o Rio de Janeiro já teve, também um dos mais felizes. Tiveram oito filhos, quase um por ano, os primeiros foram o menino Waldo e a menina Ysia, cujo nascimento inspirou o poeta a escrever Um sorriso para tudo, um livro de crônicas poéticas. Em 1916, a família passou por um momento difícil, Álvaro deixou o emprego na revista Fon-Fon para procurar outro que lhe proporcionasse mais renda. Mas não conseguiu, permaneceu desempregado até o fim do ano, dependendo ainda mais do dinheiro que o pai lhe enviava. Para agradecer a ajuda da família, em agosto ele faz longa viagem a Porto Alegre, permanecendo lá até outubro. Eugênia ficou no Rio de Janeiro. Pela primeira vez longe um do outro, sentiram uma saudade imensa. Nas cartas que trocaram (reporduzidas na imagem), Álvaro comenta sobre uma homenagem que faria para o poeta carioca Olavo Bilac (o mesmo do acidente de automóvel com José do Patrocínio) a convite do Conselho Municipal de Porto Alegre. O evento aconteceu no dia 1 de outubro de 1916, foi um discurso de saudação à chegada de Bilac e também uma declaração de amor a Porto Alegre e ao Brasil. Bilac morreria dois anos depois, em 28 de dezembro de 1918. De volta ao Rio de Janeiro em outubro, Álvaro ainda estava desempregado, aproveitou o tempo com leituras, conheceu toda a obra do autor francês Remy de Gourmont2, que um dia o levaria a afirmar: “O que não ignoro devo a Remy de Gourmont”. Neste período de ócio escreveu mais um livro: A lenda das Rosas, de poesias simbolistas. Em 1917, conseguiu emprego no periódico Bahia Ilustrada, dirigido por Anatólio Valadares, não gostava muito do ofício porque se resumia em elogiar escritores da época, segundo seu julgamento alguns merecedores, outros nem tanto. Era um momento de “vacas magras”, mesmo assim Álvaro e Eugênia não deixaram de lado os programas boêmios, eram sempre vistos nos salões de literatura, em exposições de artes plásticas e em saraus de amigos. Álvaro Cotrim, mais conhecido pela assinatura “Alvarus” de suas caricaturas, que era um amigo pessoal de Eugênia, deixou o seguinte depoimento em um texto dedicado a primeira repórter: “Eugênia foi a esposa exemplar, a companheira, a inspiradora daquele alto espírito que foi o saudoso escritor, foi a mãe atenta a sua ninhada de filhos, amiga dos seus amigos e dos que precisavam dela. E retornaria aos ambientes que sempre lhe foram

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À esq. cartas de Eugênia para Álvaro, escritas em 1916. À direita bilhetes escritos por Eugênia na década de 40.

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familiares e era de ver-se os dois sempre juntos, em todas as manifestações da inteligência: salões onde se cultivavam o espírito, exposições de pintura, conferências, peças teatrais, leilões de objetos de arte, congressos literários, tardes de autógrafos (...) Mulher de opiniões definidas, tinha o maior desprezo pela pusilanimidade, a burrice, a covardia! Era uma mulher sem medo e que não se chocava com a realidade. Personalidade corajosa e positiva na reafirmação de suas convicções políticas e no desassombro em não ocultálas, não raro levava muito gente a considerar uma atitude paradoxal, conflitante, senão mesmo teatral, entre sua maneira de ser na vida pública e aquela atenta, doce e carinhosa companheira do suave Alvinho, amiga sempre pronta a ajudar os amigos em dificuldades, 3 e mãe amantíssima, a dona de casa perfeita”.

Já foi dito que Eugênia teve oito paixões, teve também oito filhos: Waldo, Ysia, Sandro, João Paulo, Álvaro Samuel, Rosa Marina, Maria da Graça e Colette. Valdo e Maria da Graça morreram ainda crianças, vítimas da gripe espanhola que assolou o Rio de Janeiro no início dos anos 20. Em 1918, o casal viveu dias melhores. Álvaro assumiu a direção da revista Para Todos em parceria com o amigo caricaturista J. Carlos, compraram a publicação do editor José Pimenta de Mello. A revista encontra sucesso com a fórmula de vitrine por onde passeiam textos de jovens poetas, caricaturas, traduções de autores franceses e reportagens sobre arte e vida social da elite carioca. O poeta dirigiu também a revista Ilustração Brasileira. No mesmo ano, Eugênia e Álvaro mudaramse para o bairro de Copacabana, para a Rua Xavier da Silveira, número 99. Quem passasse pela Rua Xavier e visse o pacato sobradinho branco número 99 mal poderia imaginar o que acontecia lá dentro, todas as noites. O sobradinho, mandado construir pelo pai de Álvaro, não era apenas uma casa, era um ponto-de-encontro, a lista de freqüentadores era enorme.

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Eugênia Brandão:

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Gabriel Bigó

Arquivo da Família

Matéria de Jornal escrita por Gasparino Damata em homenagem a Eugênia

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1 O jornalista Adelar Finatto biografou o poeta Álvaro Moreyra no ano de 1985. Consultar: FINATTO, Adelar. Álvaro Moreyra. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1985. A Obra de Álvaro é muito extensa, há livros de poesia, crônica, prosa e traduções. Há também um livro de memórias, no qual encontrei mais informações biográficas dele e de Eugênia, consultar: MOREYRA, Álvaro. As amargas, não. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Lux, 1955.

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Remy de Gourmont (1858-1915) foi um poeta, romancista, dramaturgo e ensaísta francês, um dos principais expoentes do simbolismo, defensor da tese de que a crítica deve basear-se somente em princípios estéticos, desprezando os valores éticos.

3

O depoimento foi retirado de: COTRIM, Álvaro. A primeira repórter brasileira. Revista Cultura, Brasília, n. 33, ano 9, out.- dez. 1979, p.17-27.

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Capítulo 8 A 99 da Xavier, o lar do Comunismo1

No Rio de Janeiro da década de 20 havia, no bairro Copacabana, uma casa cuja porta estava sempre aberta, não importava a hora do dia ou da noite. Era um sobradinho branco, de portas e janelas azuis, que ficava na Rua Xavier da Silveira, identificado pelo número 99: a casa de Eugênia e Álvaro. Era uma casa simples, porém espaçosa, tinha jardins e vários animais, um burro, um macaco, uma arara, alguns cachorros e muitas árvores. A construção ficou pronta em 1918, três anos depois do casamento da jornalista com o poeta. João Moreyra, o pai de Álvaro, arcou com todas as despesas da obra porque sabia que o filho ainda não tinha meios financeiros, os rendimentos de Álvaro eram quase insuficientes para sustentar Eugênia e os filhos de dois e três anos. O lugar fazia justiça ao desejo de Álvaro de morar em uma casa de campo pois lembrava os solares das chácaras que ele via em Porto Alegre na infância. Também contentava Eugênia que sempre gostou de morar perto da agitação dos grandes centros e do mar. O sobradinho 99 ficava a poucas quadras do mar. A impressão das pessoas que passavam pelo lado de fora da 99 era de uma pacata casa de família, mal poderiam imaginar o que acontecia lá dentro. Quase toda noite se reuniam ali políticos, poetas, artistas e toda sorte de intelectuais que passavam as horas discutindo os rumos do Brasil. Falava-se de teatro, poesia e, principalmente, de política, ou melhor, de Comunismo. A lista dos freqüentadores era grande e repleta de nomes de prestígio: Di Cavalcante, Carlos Lacerda, Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, Vinícius de Morais, Manuel Bandeira, Pablo Neruda,

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Jorge Amado, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Rubem Braga, Graciliano Ramos, J. Carlos, Luis Carlos Prestes, Álvaro Cotrim, Raul Bopp, Mário Peixoto, Mário Cabral e muitos outros. Nem todos comunistas, havia espaço para diferentes posicionamentos políticos, credos, nacionalidades, enfim, diferenças eram bem-vindas pois fomentavam as discussões. A porta também estava aberta para meros desconhecidos, era comum poetas estreantes virem de longe para declamar seus poemas ou para mostrar um original de livro a Álvaro. Eugênia conseguia o silêncio de todos os mestres da literatura que ali estavam e eles se punham a ouvir o novato, oferecendo depois críticas e sugestões, por vezes, aplausos. Havia também os freqüentadores que não eram aspirantes nem mestres em nenhuma arte. Estavam lá apenas para ouvir a declamação de um poema recém-escrito ou uma boa música. O piano do compositor Mário Cabral era atração garantida nos fins de tardes. Certa vez uma freqüentadora assídua da 99, a escritora Eneida Moraes, se incomodou com a presença de um homem que entrava e saia da casa sem cumprimentar ninguém. Muito amiga de Eugênia, não se conteve e foi perguntar sobre o desconhecido. — Quem é aquele senhor misterioso que fica ali no canto sem falar com ninguém? — Não sabemos, respondeu Eugênia, mas gosta tanto de ouvir o Mário...Deixe-o, vem sempre aqui2. Os episódios de declamação, frequentemente, tinham um “Q” de cômicos. Quando não eram os iniciantes em Letras que declamavam seus poemas exagerando na interpretação, eram os veteranos que liam em voz alta suas críticas de mal dizer, desonrando no âmago seus adversários políticos. Entre várias ocasiões, houve um dia que marcou os freqüentadores da 99, foi quando um ousado declamador pediu uma faca de cozinha de lâmina grande para Eugênia. Satisfeito seu desejo, ele se pôs a declamar o poema In Extremis de Olavo Bilac (o mesmo poeta do acidente de automóvel com Patrocínio nas redondezas da Rua do Ouvidor). Ao final da declamação o anônimo rapaz soltou um grito de terror que chegou a ser ouvido na rua: — NUNCA MORRER ASSIM !!! Surpreendidos, os convidados só tiveram tempo de segurar o coração para que não saltasse pela garganta. Eugênia, com o charuto entre os dedos, nem se espantou. O coitado foi Álvaro que estava sonolento na cadeira, quase cochilando, com o grito ele acordou em sobressalto e se assustou com o excesso de dramaticidade do declamador que ainda estava com a faca na mão. Nem a chuva interrompia a regularidade das reuniões na casa Eugênia e Álvaro. É verdade que alguns intelectuais, mais preguiçosos, faltavam às vezes, isso se resistissem à boa argumentação do anfitrião. Um dos amigos, Gilberto Amado, que era um dos jornalistas do grupo, certa vez chegou perto da proeza mas, acabou não resistindo. Era uma noite de chuva torrencial e de vento frio, como poucas vezes se vira no Rio de Janeiro, Gilberto Amado já estava confortável na cama, debaixo de um cobertor, lendo seu Montaigne3. O telefone tocou, era seu amigo Aníbal Machado (outro freqüentador assíduo da 99, professor, promotor, escritor e teatrólogo), intimando-o a ir depressa até a 99 da Xavier: — A turma está esperando, venha, não nos deixe na mão!3 — Aníbal, já estou recolhido, lendo o meu Montaigne...está chovendo... não, hoje não...

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Aníbal insistiu mas, vendo que o amigo estava irredutível e já com voz sonolenta, desligou e avisou a Álvaro da recusa: — Ele já está recolhido... lendo Montaigne... — Você não soube dar o recado, deixa que eu mesmo ligo. O poeta não se deu por satisfeito e telefonou para Gilberto Amado: — Meu caro, estamos esperando, você não pode faltar, especialmente hoje... — Álvaro... hoje não dá, chove muito e tem mais, já estou de pijama, lendo meu Montaigne de todas as noites... — Pois troque de roupa e venha logo para cá. — Não sei... — Escute, a turma aqui está fervendo, esperando você. Sabe qual é o assunto? Estamos falando mal do Gilberto Freyre4! — Nem mais um pio! Me esperem! Daqui a quinze minutos estou aí! Estas duas histórias seriam muitas vezes relembradas na mesa causando gargalhadas sadias enquanto esperavam o jantar. Uma grande preocupação para Eugênia e Álvaro era não deixar faltar comida para toda essa gente. Às vezes surgiam à mesa panelões de feijoada, outras vezes de macarronada, outras de lentilha, dependia do que conseguiam comprar com o dinheiro que tinham no dia. E havia dias que Álvaro não tinha nenhum, o que salvava era a caixinha do canto da sala, os amigos mais íntimos, que sabiam da situação financeira do poeta, deixavam na caixinha alguns vinténs para colaborar nos dias de aperto. O fato é que as panelas de Eugênia nunca vieram vazias para a mesa. A sala de jantar da 99 era ampla, havia uma mesa de madeira com muitos lugares, a proximidade das cadeiras favorecia o diálogo, tanto que o ambiente só perdia para o salão da biblioteca no teor das discussões políticas. Eugênia ia para a cozinha depois de participar do início do debate, dali dava para ouvir o que diziam na sala de jantar e vice-versa. A cozinha parecia retirada de uma pintura de interior de casa flamenca, havia panelas e conchas de cobre penduradas na parede que reluziam como espelhos. Ela tirava uma panela do prego e começava a fritar as cebolas, em paralelo, na mesa os ânimos da discussão de repente cessavam, ficavam no aguardo do comentário da noite de Eugênia, comentário que vinha ácido, nele ela “fritava” o alvo da crítica, geralmente alguém do círculo político, fazia isso com o mesmo empenho que dourava as cebolas. Depois do jantar as discussões prosseguiam, por vezes se estendiam até a madrugada, sempre muito produtivas no terreno das idéias. As teses do Modernismo foram discutidas ali, fizeram uma espécie de balanço da Semana de Arte Moderna que ocorrera em São Paulo em 1922. Já no final da década de 20 a pauta era o Pós-Modernismo, as bases e tendências do movimento foram esboçadas

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Leandro Rocha

Gabriel Bigó

Fotos do arquivo da Família

Fachada da 99 da Xavier Fonte: Revista Para Todos 5.11.1927

Leandro Rocha

Intelectuais no salão da 99 da Xavier

Amigos de Álvaro e Eugênia, a criança é Bibi Ferreira Eugênia e Álvaro na posse do Pres. Dutra

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nestas reuniões. Mas, o assunto que foi mais discutido na 99 foi, de longe, o Comunismo. A casa de Eugênia e Álvaro era, por excelência, o reduto dos intelectuais de extrema esquerda. O Partido Comunista foi fundado no Brasil em 1922, ao longo da década foi trazendo diversos intelectuais para sua causa. Entre eles o jovem político Carlos Lacerda, que foi o responsável pelo ingresso de Eugênia e Álvaro no Partido. Carlos Lacerda veio morar na 99 por causa da separação dos pais, como não queria ficar com nenhum dos dois, pediu abrigo para o amigo Álvaro Moreyra, quem admirava muito. Lacerda conhecia bem a teoria marxista e o contexto da Revolução Russa, fez questão de ensinar o que sabia a Eugênia uma vez que ela se mostrava muito curiosa por aprender que modelo de sociedade seria esse que lhe parecia tão mais justo. Facilmente, os dois arrastaram o poeta para a mesma ideologia e o casal filiou-se ao Partido. Desde a Juventude no jornal anti-hermista A Rua, Eugênia já revelava um gosto pela política, mas a partir do momento que conheceu o Comunismo o gosto virou paixão. Tornou-se militante ativa no Partido, saia para os comícios para falar no microfone, ficava na organização de passeatas e protestos, na sede trabalhava como secretária e tradutora. Já Álvaro era um membro mais passivo, que ficava no âmbito das estratégias enquanto Eugênia partia para a ação. Certa vez, questionado por um amigo sobre por que adotara o Comunismo, Álvaro respondeu com a humildade que lhe era característica: — Ficaria estranho que Eugênia saísse para os comícios e o marido ficasse em casa, fritando bolinhos.5 Nos primeiros anos da década de 30, o assunto na 99 era um só: a Aliança Nacional Libertadora. O Partido Comunista entrou na ilegalidade em 1924, a ALN, diziam os adversários, era “a nova roupagem para os mesmos ideais do Partido, reduto de comunistas”. Mesmo desagradando à direita, em março de 1935 a ALN saiu do papel, tinha como Presidente de honra um freqüentador da 99: Luis Carlos Prestes, o líder dos revoltosos da Coluna Prestes, que foi nomeado “Cavalheiro da Esperança” por percorrer cerca de 25 mil quilômetros com seu grupo invencível de 1500 homens, que tanto trabalho deu para as tropas federais do Presidente Washington Luís. Foi questão de meses para que a Aliança também fosse decretada ilegal, em julho, depois de um comício onde foi lido o manifesto em que Prestes propunha “todo o poder à ANL”, Getúlio Vargas atestou a ilegitimidade da organização com base na Lei de Segurança Nacional. A partir daí todas as manifestações do grupo, fossem comícios ou passeatas, passaram a ser duramente reprimidas pelo governo. Sempre que havia qualquer embate a polícia tinha um lugar certo para “visitar”: a 99 da Xavier da Silveira, que foi taxada como reduto dos comunistas. Para Eugênia e Álvaro tornou-se um hábito serem buscados no meio da noite para “prestar esclarecimentos” na Casa de Detenção. O casal tratava as constantes invasões da polícia com bom humor:

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— Eugênia, arruma nossa malinha que hoje vamos ter visita, dizia Álvaro sempre que ouvia no rádio notícias sobre algum quebraquebra nas ruas.5 A visita era mesmo certa, estivessem eles envolvidos ou não, qualquer vandalismo que ocorresse na cidade era pré-julgado como “coisa dos comunistas”. Em uma destas vezes, porém, Eugênia foi levada para a prisão.

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Este capítulo foi baseado no artigo Uma casa chamada esperança, de Oswald de Andrade, publicado no jornal Correio da Manhã (RJ) em junho de 1948. Foi reproduzido na íntegra na obra de FINATTO, Adelar. Álvaro Moreyra. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1985, p. 80-83.

2

O diálogo foi transcrito do artigo Alegrias e Dores da Xavier da Silveira, 99, de Eneida Moraes, publicado no jornal Diário de Notícias (RJ) em 25 de janeiro de 1959. Foi reproduzido na íntegra na obra de FINATTO, Adelar. Álvaro Moreyra. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1985, p. 92-93.

3

O personagem se refere ao seu livro de cabeceira do autor Montaigne. Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) foi um escritor e ensaista francês, considerado por muitos como o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos seus "Ensaios", analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época.

4

Gilberto Freyre (1900-1987) foi um sociólogo, antropólogo e escritor brasileiro, autor da obra Casa Grande & Sensala.

5

Os diálogos foram transcritos da biografia de Álvaro Moreyra. Consultar: FINATTO, Adelar. Álvaro Moreyra. 3 ed. Porto Alegre: Tchê, 1985, p. 78-86.

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Capítulo 9 Presa pelo governo

Novembro de 1935, era madrugada quando dois agentes de Filinto Muller, o chefe da polícia política de Vargas, bateram à porta da casa 99 da Rua Xavier da Silveira. Eugênia atendeu, era ela mesmo que queriam, só teve tempo de pegar uma bolsa com roupas e olhar os filhos dormindo. Nem quiseram ouvir Álvaro, levaram-na sem algemas, até então o procedimento não tinha nada de diferente em relação às outras vezes que foram “prestar esclarecimentos”. No carro preto de sirenas desligadas Eugênia foi levada até um endereço conhecido, a Casa de Detenção da Rua Frei Caneca. Mas, a partir daí o procedimento começou a mudar, desta vez os policiais nem se deram o trabalho de ouvir depoimento, levaram-na direto para os corredores cheios de sombras das celas. Sob baixa luz, aos poucos as sombras foram se revelando em rostos conhecidos - Maria Werneck de Castro, Eneida de Moraes, Beatriz Riff, Nise da Silveira, Rosa Meirelles, Beatriz Bandeira – eram de amigas de Partido. Nas celas do Frei Caneca havia nove centenas de civis, entre artistas, profissionais liberais, músicos, poetas, políticos e demais intelectuais, muitos... freqüentadores da 99. Não existia uma acusação clara contra eles mas, o motivo era um só: a participação direta ou indireta na Intentona Comunista. A revolução sonhada por Luis Carlos Prestes havia fracassado, apenas em Natal e no Recife ocorreram levantes, nos dias 23 e 24 de novembro de 1935. Na capital pernambucana, os revoltosos foram cercados e presos pela Guarda Nacional, só em Natal que conseguiram tomar o poder mas,

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seria por poucos dias. No Rio de Janeiro a rebelião não avançou os muros dos quartéis, mesmo assim entraria para a história em razão da persistência de um pequeno grupo. Trata-se dos soldados do 3º RI da Praia Vermelha, jovens recrutas liderados pelo capitão revolucionário Agildo Barata, eles estavam sozinhos no combate. Na Escola de Aviação o levante tinha sido controlado ainda em fase de gestação, na Marinha de Guerra não houvera nenhuma manifestação a favor de Prestes. Ainda assim resistiram aos constantes ataques ao quartel por algumas horas até que um bombardeio aéreo deixou a situação insustentável, o lugar estava completamente em chamas, não tiveram outra alternativa a não ser a rendição. A Intentona Comunista acabou por gerar vantagem apenas para os inimigos, Vargas fez dela uma desculpa para decretar estado de sítio e, assim, dissolver os direitos dos comunistas. Integrantes e simpatizantes foram caçados pelos homens de Filinto Müller, os que guardavam informações sobre o alto comando do Comintern1 foram submetidos à tortura. Olga Benário, a esposa de Luis Carlos Prestes, foi levada, semanas depois, para a mesma cela de Eugênia. Sua chegada foi a confirmação do fracasso definitivo da revolução, causando angústia geral. Mas, quando souberam que ela estava grávida de Prestes, recuperaram o ânimo e a vontade de protestar. Havia uma característica que assemelhava Eugênia a Olga: o empenho de organizar as coisas e, se preciso, as pessoas. As duas não admitiam o desmazelo, estarem presas não era motivo para deixar de cuidar do corpo, exigiam que as colegas de cela mantivessem o asseio. Repugnavam a sujeira, apesar das condições da cela que era extremamente úmida e enegrecida pelo tempo, elas faziam o possível para deixá-la limpa. Nem todas as mulheres aprovavam o jeito “autoritário” de Eugênia e suas propostas de asseio, para fazer valer a arrumação do espaço ela acabou discutindo e trocando tapas com uma detenta, o que aconteceu antes da chegada de Olga. Não houve mais rivalidades depois disso, ao contrário, começaram a surgir novas amizades. A organização atingiu as outras celas, inclusive na ala masculina, um mês depois os presos intelectuais tinham horários para tudo. Com linhas e carretéis fizeram o “Voador”2, uma espécie de correio improvisado por onde circulavam bilhetes de uma cela para outra. Havia também o “Periscópio”2, que consistia em um orifício oculto na parede que ligava a cela das mulheres a dos homens, por onde os casais podiam se comunicar trocando declarações de amor. Criaram, ainda, uma rádio improvisada, que ia “ao ar” – claro, sem ajuda de qualquer aparelho a não ser a voz – religiosamente depois do jantar. A Rádio, que recebeu o nome de a “Voz da Liberdade”, trazia notícias sobre acontecimentos do presídio, os prisioneiros novos que chegavam e as pessoas que eram libertadas, a situação da saúde de Olga, as informações que os novos traziam sobre a realidade lá de fora. Até às seis da tarde os prisioneiros podiam circular livremente pela área do presídio que apelidaram de “Praça Vermelha”, ali organizavam “salas de aula” nas quais se aprendia sobre a teoria do Comunismo. Olga era uma das professoras, ensinava aos que desejavam um pouco de geografia e de política na Rússia e no Mundo. Em compensação, aprendia sobre o Brasil, Eugênia era uma de suas alunas, às vezes, mestra. Em meio a tantos intelectuais havia espaço também para poemas e prosa, Graciliano Ramos era um dos escritores do grupo, o mais discreto deles, que praticamente não se envolvia com as atividades dos demais, passava o tempo quieto e concentrado escrevendo em um bloco de papel. Mas, sem dúvida a invenção mais engenhosa era o “Merdafone” 2, cujo inventor afirmava ser tão eficiente quanto o telefone. Para usá-lo os interlocutores das duas celas tinham que acionar a descarga ao mesmo tempo, mantendo a água no fundo do vaso, então enfiavam a cabeça ali e conversavam normalmente, escutando o outro com nitidez. O que não parecia fácil era suportar o odor mal cheiroso do inteligente meio de comunicação. O inventor se gabava: — Isto é muito mais avançado que o telefone, não fosse o cheiro de merda, eu, e não Alexandre Graham Bell, passaria para a história!3

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Um passatempo que a maioria dos presos compartilhava era cantar, faziam diversas paródias e cantavam em coro. Havia uma versão da Cidade Maravilhosa que ao final levava muitos à emoção: Praia Maravilhosa Cheia de balas mil... Vermelha e radiosa, Sentinela do Brasil! A Rádio “Voz da Liberdade” também iniciava sua programação com canções, que vinham logo depois da saudação do bem-humorado locutor, o médico Campos Paz Junior: — Agrade ou agrade, todos à grade! Vamos ouvir a Rádio, a Voz da Liberdade! Os presos políticos cantavam o hino “La Internacional”4, alguns na versão espanhola, outros na francesa, o sotaque perfeito denunciava, havia vários estrangeiros ali, principalmente europeus. Depois, cantavam em uníssono o hino da Aliança Libertadora Nacional. Aliança, Aliança Contra vinte ou contra mil! Mostremos nossa pujança, Libertemos o Brasil! A Rádio tinha, ainda, um quadro de humor, realizado por Aparício Torelli, o barão de Itararé, que mais tarde seria reconhecido com hábil humorista. Em uma das edições ele daria a notícia que todos queriam ouvir, mesmo sabendo que era de mentira. — E atenção, atenção, companheiros e camaradas para uma notícia de última hora que nos chega da rua: minutos antes de enlouquecer, o presidente da República decidiu condenar à prisão perpétua o conhecido meliante Filinto “Mula”! O único dia que a Rádio não ia “ao ar” era no dia de visita dos familiares, que acontecia em um domingo por mês. Todos se preparavam para este dia, até os que não tinham ninguém para visitálos. Barbeavam-se, aparavam o cabelo, banhavam-se com colônias...Às cinco da manhã já estavam em pé em clima de ansiedade. Quando Olga teve certeza da gravidez, as mulheres passaram a pedir utensílios de bebê para a família, como “tias-coruja” participaram deste momento de Olga fazendo roupinhas de crochê e bordando toalhinhas para o enxoval. As agulhas de Eugênia trabalharam muito neste propósito.

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No primeiro domingo de visita de Janeiro de 1916, os familiares não vieram com boas notícias, vencido o tempo de Estado de Sítio de trinta dias, Vargas o estendera por mais noventa. Em compensação, levaram cartas de pessoas queridas, recadinhos dos filhos, peças de roupa, comida e cigarros - o que já era motivo para muita festa além de garantia de assunto para a semana inteira. No final do dia, Eugênia sentiu um misto de alegria e angústia, foi para o colchão com a carta assinada por todos os filhos, leu e releu diversas vezes. Preferiu ficar ali quieta com sua saudade, só no dia seguinte que voltou a conversar com as companheiras, para contar e ouvir as novidades. O mesmo comportamento se repetiria nos demais dias de visita. Em uma destas cartas, Eugênia leu as seguintes palavras do marido Álvaro, no dia 19 de janeiro de 1916. Junto veio um recadinho dos filhos: Minha adorada, Vai aqui nosso beijo, vai a saudade em nome de Mim, das crianças, da sua mãe e dos amigos também. Vivemos na esperança de tua volta. O que nos preocupada é sua saúde, melhoras as injustiças que tendes enfim. Hoje o Carlos Araújo vai procurar saber bem. Vai uma carta com tudo que precisas, os bombons, suas frutas e algum dinheiro. Teu Álvaro Querida mamãezinha, Saudade de todos, graças a Deus estamos com saúde. Nossa única doença é a sua falta. [...] Mando um grande abraço, Beijos da vovó e da Ysia, e também Colete, 5 Rosa Marina, Álvaro Samuel.

Antes destas cartas, porém, Eugênia tinha enviado outra em tom de cobrança, pelo tempo que não recebia correspondência de ninguém: Alvinho querido, Há vinte três dias longe de ti e dos meus pedaços, não tenho mais palavras que digam minha saudade imensa...Faz hoje quinze dias que não me escrevem cartas, o mais leve sinal de vida, diariamente eu fico na solidariedade constante das famílias de minhas companheiras e não compreendo o abandono completo em que me deixam. Já deve ter chegado ao teu conhecimento que eu desejo um advogado, do contrário, ficaria aqui esquecida enquanto duras e Estado de Sítio. O advogado, depois de se interar do meu caso na ordem social, deverá tirar licença para se entender comigo. Peço, contudo, que me mandem cigarros, há mais de uma semana que não tenho nenhum. Preciso também de algum dinheiro para comprar água mineral e laranjas pois não me adaptei à comida. Mande também um vidro com álcool encorpado para picada de persevejo. Ontem estiveram aqui cândido mendes e o procurador Himalaia Virgulino, o proveito dessa visita foi a dispensa para escrever cartas. Vamos ver se agora, com tanta gente em casa, ainda vou ficar sem notícias.

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Muitos beijos e todo o meu carinho para ti e para nossos filhos. Quero também meu bordado com minhas agulhas, dedal e meus figurinos que são necessários. Gen. 12 de Janeiro de 1936, às 10 horas da noite.5

Na verdade os cigarros que Eugênia pediu eram suas cigarrilhas, ela não fumava cigarros. Um evento que deixa isso muito claro aconteceu na Casa de Detenção. Um dos guardas, que tinha no bolso da farda uma carteira de cigarros, oferece um a ela. Indiferente ao galanteio do soldado, Eugênia diz secamente: — Eu não gosto disso.6 Outro dia, porém, o guarda a flagra com a cigarrilha entre os dedos e fica perplexo. — A senhora não havia dito que não fumava? — Nunca disse que não fumava, só não fumo cigarros. Quanto à ausência de notícias, sua impulsividade levara a cometer uma injustiça. Semanas depois ela viria a saber que Álvaro e seus filhinhos não tinham deixado de escrever com freqüência, o que aconteceu foi que as cartas não foram entregues, ficaram nas mãos dos policiais. A respeito disso Eugênia escreveria uma outra carta, revelando zanga pela situação. Trinta dias longe de vocês, quantas saudades... Disse o Doutor Castelo que vou ser chamada à polícia para falar com o Didi, pretendo levar todos os papéis que tenho rabiscados desde que nos esqueceram, desde que nos enganaram que podíamos escrever para mandar a vocês. Hoje, quando a Maria Werneck recebeu a família, ela recebe visitas todas as semanas e escreve para casa, soube e nos parcipou que ficamos aqui até o final do sítio. Nem quero pensar como passar três meses sem ver meus filhinhos, não pode calcular a minha revolta quando penso que várias cartas tuas e das crianças assim como os retratos que andam ai perdidos nas mãos de estranhos. Gen. 19 de Janeiro de 1936. 5

O extravio de correspondências era algo que acontecia com freqüência, em especial, com Olga Benário que tentava, inutilmente, comunicar-se com Prestes. O conteúdo das cartas era vasculhado pela polícia porque poderia trazer informações sobre outros comunistas que continuavam em

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liberdade. Quando não havia informações relevantes para as investigações, depois de rasurar as cartas simplesmente as jogavam fora. Por causa disso, Prestes só ficou sabendo que Olga estava grávida às vésperas da deportação de mãe e filha para a Alemanha. Eugênia já não estava mais na prisão quando aconteceu a célebre cena7 da resistência dos detentos à saída de Olga da Casa de Detenção. Canecas bateram freneticamente nas grades embaladas pelo grito de Guerra: Não leva! Não leva! A manifestação ganhou contornos de rebelião, os homens escaparam de suas celas e vieram para a ala feminina, estavam dispostos a tudo para não entregar Olga para ser deportada. A estratégia dos policiais foi mentir, disseram que levariam Olga para um hospital para oferecer mais cuidados à mãe e à criança. A mentira não convenceu, mesmo assim Olga decidiu ir com os policiais, temia pela integridade de Prestes e pela represália aos colegas. O Coletivo8 de presos elegeu duas pessoas para acompanhá-la, a advogada Maria Werneck de Castro e o médico Campos da Paz Júnior, era o mínimo de garantia que Olga iria de fato para o hospital. Mas, no caminho Olga foi separada deles e levada para o Porto. A última imagem que Olga viu do Brasil foi quando saiu do furgão da polícia, no curto caminho que fez empurrada em uma maca até a rampa do navio La Coruña. Viu o céu azul claro e o mar calmo, em contraste com a geometria violenta da cruz suástica estampada na bandeira do navio. Seus ouvidos se feriram com o som estridente do apito do La Coruña e ela partiu. Em paralelo, nas escadas do Teatro Municipal, outro som ganhava os ares. Era o da voz de Eugênia e de outras mulheres que protestavam pela permanência de Olga no Brasil sem saber que neste momento ela já se distanciava do continente. Quando souberam, transformaram o protesto em campanha, mais mulheres e homens se juntaram ao movimento no Brasil e no exterior. Na Europa ocidental, a mãe e a irmã de Prestes, Dona Leocádia e Lígia, organizaram comitês de solidariedade a Olga, conseguindo o apoio de diversas instituições internacionais, inclusive, da Cruz Vermelha. No Rio de Janeiro, Eugênia prosseguiu como porta-voz da causa em praças públicas. Conseguiram em janeiro de 1938 a libertação de Anita Leocádia, a filhinha de Olga e Prestes, mas, apesar de tanta luta Olga não teria o mesmo destino, em abril de 1942 morreria assassinada na câmara de gás do campo de concentração de Ravensbrück. Depois da libertação de Anita, Eugênia usou a voz para uma outra campanha: o Sufragismo. Assim como outras mulheres de seu tempo, foi defensora do direito da mulher de escolher seus representantes no governo. A luta de Eugênia em defesa da mulher veio desde a juventude, quando no jornal A Rua reivindicou melhores condições de trabalho para costureiras industriais em artigos intitulados “Como a mulher se defende da fome”. Tanta luta levou alguns a interpretá-la como feminista, ela, porém, não gostava de rótulos, contentava-se em ser a voz que convidava a todos para construir uma sociedade mais justa. A voz de Eugênia era facilmente reconhecida nos palanques, distinguia-se das demais vozes femininas pela sonoridade grave, intimista...severa. Um dia esta mesma voz surpreendeu, em paralelo aos palanques de rua alcançou outro ambiente, foi ouvida nos palcos...

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O Comintern ou Komintern (Kommunisticheskiy Internatsional - Internacional Comunista), também conhecido como Terceira Internacional, foi uma organização comunista internacional fundada em março de 1919 por Vladimir Lenin para o objetivo de organizar a revolução proletária no mundo. Dominada pelo Partido Comunista da União Soviética, a Internacional emitia diretrizes que deveriam ser seguidas por todos os seus filiados, inclusive pelo Partido Comunista do Brasil.

2 O “periscópio”, o “voador” e o “merdafone” foram mecanismos primitivos que os presos intelectuais criaram para haver possibilidade de comunicação entre as celas. Estas invenções estão descritas detalhadamente em: MORAIS, Fernando. Olga. 5ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1985. 3

Os diálogos entre os presos foram transcritos de: MORAIS, Fernando. Olga. 5ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1985.

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O hino La Internacional foi a canção oficial do socialismo internacional revolucionário. Foi composto em 1888 pelo operário anarquista belga Pierre Degeyter, a partir de um poema do francês Eugéne Pottier, também um operário anarquista . O refrão diz: C’est la lutte finale./Groupons-nous et demain/L’Internationale/Sera le genre humain (Bem unidos façamos,/Nesta luta final,/Uma terra sem amos/A Internacional). A versão em russo serviu como hino da União Soviética de 1917 a 1941.

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As cartas de Eugênia, de Álvaro e dos filhos foram reproduzidas do arquivo da família.

O diálogo entre Eugênia e o guarda foi narrado pela família de Eugênia, em entrevista do dia 26 de maio de 2007.

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A cena em questão está descrita detalhadamente em: MORAIS, Fernando. Olga. 5ª ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1985.

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O “Coletivo” foi a comissão eleita pelos presos intelectuais, formada por alguns representantes do meio deles, respeitados por todos. Foi criada para organizar e mobilizar a população do presídio nos movimentos de reivindicações, protestos coletivos e greves de fome e se encarregava também de recolher e redistribuir, equitativamente, a comida extra recebida das visitas.

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a primeira repórter do Brasil

Capítulo 10 Um teatro onde tudo é de brinquedo

Uma das características marcantes de Eugênia, depois dos olhos negros que fitavam como “carvões acesos”, era a voz. Tinha uma voz firme, severa, que parecia imitar os graves dos vocais masculinos - talvez porque naquele tempo as mulheres “não tinham voz” e ela queria ser ouvida. Eugênia conseguiu ser ouvida desde a juventude, quando contou os mistérios do cotidiano no Asylo Bom Pastor; em seguida, fez outras reportagens nas quais denunciou o trabalho quase escravo das costureiras de sacarias no Rio de Janeiro. Adulta, continuou a ser ouvida quando defendeu o comunismo nos palanques e lutou pela libertação de Anita Leocádia. Esta mesma voz militante um dia também foi ouvida nos palcos, onde tudo era de brinquedo. A brincadeira de Álvaro e Eugênia começou em 1927, faziam parte dela alguns amigos que não saíam da 99 da Xavier - Di Cavalcanti, Álvaro Cotrim, Aída Procópio Ferreira, Luiz Peixoto, Marques Porto, Vasco Leitão da Cunha, René de Castro, Joraci Camargo, Briolanja e Mary Sottmayor, Fernando Guerra Duval, Felipe de Oliveira, Olegário Mariano, Atílio Milano - que juntos inventaram o Teatro de Brinquedo: O sonho de Álvaro e Eugênia. Era um “teatro de arte”, diferente do tradicional, que tinha por lema um pensamento de Goethe1. Humanidade divide-se em duas espécies, a dos bonecos que representam um papel apreendido e as dos naturais, espécie menos numerosa de entes que nascem, vivem e movem-se segundo Deus os criou...

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Gabriel Bigó

Arquivo da Família

Exibição no Teatro de Brinquedo

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Certamente o grupo de Álvaro e Eugênia pertencia à espécie menos numerosa, era a elite intelectual, cuja marca era a originalidade, desde o vestuário até nas idéias. As cortinas se abriram no dia 10 de novembro de 1927, no salão Renascença do Cassino Beira Mar, junto ao Passeio Público. A peça apresentada foi Adão Eva e outros membros da família, escrita por Álvaro Moreyra. Eles, que se propunham a fazer apenas uma brincadeira, tiveram uma grande surpresa: o salão estava lotado, sobretudo por pessoas que não iam aos teatros no Brasil (exceto quando havia turnê de companhias francesas, italianas e portuguesas): a elite carioca. Os atores improvisados perceberam que tinha dado resultado o artigo de Álvaro Moreyra publicado na revista Para todos, em que apresentava o Teatro de Brinquedo: Eu sempre cismei um teatro que fizesse sorrir, mas que fizesse pensar. Um teatro com reticências... Um teatro de ambiente simples, até ingênuo, bem moderno para poucas pessoas cada noite...de artistas amorosos da profissão que a não tornassem profissão... Representaríamos os nossos autores novos e os que nascessem por influência nossa. Daríamos a conhecer o repertório de vanguarda do mundo todo. E a platéia, cento e oitenta lugares apenas. A troupe é formada de senhoras e senhoritas da sociedade do Rio, escrito2 res, compositores, pintores. Tudo gente de noções certas. O teatro de elite para a elite.

O pintor Di Cavalcanti cuidou do cenário, criou um ambiente simples cheio de caixas de brinquedos coloridas que faziam justificar o nome, atendendo bem a proposta do grupo. E assim o sonho de Álvaro e Eugênia se realizava. Subiram ao palco Eugênia e os “outros membros da família” para apresentar um teatro de pura arte, diferente daquele que existia no Rio de Janeiro no qual a proposta era apenas rir com as chanchadas. No dia seguinte vieram os comentários dos críticos de teatro que, por trazerem elogios, acabaram por causar polêmica:o teatro de arte de Álvaro pretendia acabar com o teatro tradicional? Álvaro preparou de pronto uma resposta: O Teatro de Brinquedo não deve ser confundido com teatro de profissionais, e não pode nem se quer fazer concorrência a este (...) Nem pretende entrar em competições. É brincadeira de pessoas cultas que enjoaram de outros divertimentos e resolveram brincar de teatro, fugindo aos cânones acadêmicos, mumificados. As pessoas que, depois do jantar, quiserem fazer uma boa digestão não devem procurar o caminho do Teatro de Brinquedo, porque sofrerão uma desilusão: ele só interessava aos que tiverem a curiosidade intelectual. É um grande colégio em que o público será o reitor, a crítica será a madre 2 superiora e os que representam serão os colegiais.

Álvaro salientou que as pessoas que procuravam o Teatro de Brinquedo para fazer digestão sofreriam uma desilusão. É que na época o teatro tradicional era apelidado de “digestivo” porque fazia rir muito as pessoas que tinham acabado de jantar. A fórmula do Teatro de Brinquedo era outra, as peças eram para reflexão, fugiam do óbvio, eram para incomodar. A peça Adão, Eva e outros

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Gabriel Bigó

Arquivo da Família

Atores no palco do Teatro de Brinquedo

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membros da família veio com uma inovação para a época: um texto em forma de diálogo impressionista, com frases que surgiram em vez de definir, ditas em tom coloquial, em oposição à correção gramatical à chulice. Eram diferentes também os recitais do Teatro de Brinquedo. Os créditos cabiam a declamadora Eugênia Álvaro Moreyra, que aliás, não declamava, contava os poemas... “Eugênia Álvaro Moreyra é a única declamadora que o não é...foram momentos da melhor e mais possível arte de declamação que a gente já teve aqui neste paiz oratorial” (Mario de Andrade - Diário Nacional - São Paulo) “Ella sabe dizer versos sem espalhafato. Diz com uma naturalidade toda sua sem artificialismo e sem esforço”. (Diário da Noite - São Paulo) “Eugênia Álvaro Moreyra brasileiramente os seus versos eis o feitiço simples de sua arte”. (Henrique Pongetti - A Manhã - Rio de Janeiro)

Eugênia se consagrou como declamadora, mas também foi elogiada como atriz. Em Adão, Eva e outros membros da família foi dela um dos papéis principais. A peça rendeu mais que o esperado, ao final dividiram o dinheiro com os donos do Cassino Beira Mar e o que sobrou foi distribuído entre o grupo. Eugênia e Álvaro preferiram usar o dinheiro com gastos do próximo espetáculo, ao qual deram o nome de Arco da Velha. Não foi uma produção grande como a de Adão, foi uma coletânea de Sktches, cançonetas, cenas curtas, pequenas peças em um ato e as chamadas pantominas. Este espetáculo, que estreou no dia 3 de dezembro, não foi tão prestigiado quanto o primeiro. As críticas tacharam a produção como excessivamente amadorística, onde cada conta de seu recado esquecendo do conjunto, além de haver demora entre um quadro e outro. O Teatro de Brinquedo não chegou a apresentar o terceiro espetáculo e acabou como um sonho bom de mais para ser verdade. O grande problema era a falta de administração, não havia naquele grupo de intelectuais alguém que soubesse segurar o dinheiro por mais de dois dias. O último suspiro do Teatro de Brinquedo foi quando o grupo fez uma turnê em São Paulo, em janeiro de 1928, e conseguiu arrecadar trinta e oito contos de réis com as apresentações de Adão, Eva e outros membros da família. Porém, a falta de administração foi tanta que, depois de dividir o dinheiro, Álvaro e Eugênia chegaram no Rio de Janeiro sem nenhum tostão, tiveram até que pedir dinheiro emprestado ao amigo Filipe de Oliveira para irem de automóvel para casa. Apesar do fim do Teatro de Brinquedo, o casal não encerrou a carreira nos palcos. Álvaro e Eugênia colaboraram no Teatro do Estudante, de Pascoal Carlos Magno, que substituiu o Teatro de Brinquedo no salão do Cassino Beira Mar. Em 1931 voltaram a apresentar Adão, Eva e outros membros da família, agora no Teatro Municipal, em benefício da Casa do Estudante. No mesmo período

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fizeram uma turnê em Petrópolis levando alguns membros do elenco do Teatro de Brinquedo e outros novos, para substituir os que não puderam ou não quiseram mais fazer parte da brincadeira. Dez anos depois do fechamento do Teatro de Brinquedo, Álvaro formaria sua própria companhia de teatro, que, por incrível que pareça, foi patrocinada pelo governo, pelo Ministério da Educação. Eugênia não quis participar, em se tratando de política mostrou sim que guardava ressentimentos. Nesta época, ela estava a frente da Casa dos Artistas e decidiu formar um grupo de atores já afastados do palco para levar o teatro aos subúrbios cariocas. E o elenco da Casa dos Artistas se apresentou em circos, em pavilhões improvisados, cine-teatros, clubes populares e até na rua. Porém, meses depois, ela seria afastada da direção da entidade por influência de ministros do governo, voltaria então a se ocupar apenas com os movimentos do Partido e com a família até o fim da vida. O ano de 1938 marca o fim da carreira teatral de Álvaro e de sua companhia. O saldo de mais de dez anos dedicados ao teatro foi zero. Além de não conseguirem arrecadar nenhum dinheiro, gastaram o pouco que tinham para realizar o sonho do Teatro de Brinquedo. Restou a 99 da Xavier quase vazia, mas o casal estava satisfeito, valeram as alegrias que viveram no palco. Álvaro e Eugênia praticamente não deixaram heranças materiais para os filhos, apenas a herança intelectual e espiritual. Eles viveram ao pé da letra aquele ditado popular que diz “desse mundo nada se leva”.

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Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) foi um dos mais importantes pensadores alemães, escritor, filósofo, botânico e cientista. Foi quem escreveu a peça Fausto, nela o personagem principal, o Dr. Fausto, faz um pacto com o demônio Mefistófeles.

2 Trecho do artigo de Álvaro Moreyra publicado no dia 3 de setembro de 1927, na revista Para Todos. Foi reproduzido de DORIA, Gustavo A. Moderno Teatro Brasileiro: crônica de suas raízes. Rio de Janeiro: MEC - Serviço Nacional de Teatro, 1975.

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Capítulo 11 O dia que o poeta chorou

Seis de junho de 1948, este foi o dia que Eugênia partiu. Deste mundo não levou nada consigo, porém, deixou muita coisa para trás: o marido que sem ela nunca mais conseguiu dormir, os filhos, os amigos e os netos e uma história de lutas. Aconteceu tudo muito rápido, ela estava na mesa jogando paciência, de repente sentiu-se mal. Os filhos João Paulo e Álvaro Samuel vieram em seu socorro, já estavam habituados às crises de hipertensão sofridas pela mãe, porém, desta vez era diferente, incrédulos viram aquela fortaleza de mulher desfalecer. Em todas as outras vezes ela superava surpreendendo a todos. Teimosa, contrariava a ordem médica de repousar e continuava em intensa atividade, sem abandonar o vício da cigarrilha e dando um jeitinho de continuar na militância do partido, apesar de desaconselhada pelos amigos que queriam que ela parasse de trabalhar pra cuidar da saúde. Naquele momento de desespero, os filhos tiraram Eugênia da cadeira e levaram-na para o quarto, tinha sofrido enfarte. Telefonaram depressa para o médico da família, ele estava em uma conferência de medicina. Quando conseguiu chegar já era tarde demais. Eugênia Álvaro Moreyra morreu aos 50 anos, por enfarte seguido de derrame cerebral (AVC). No momento da morte gritou: — Meu Deus, por que este castigo? Que mal eu fiz a Deus para que Ele me desse isso?

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Foi o lamento de alguém que adorava viver, que viveria duzentos anos se lhe fosse possível. Viveu apenas 50, mas que foram vividos intensamente. A despedida foi em uma tarde fria, de chuva fina, de lamento, de vazio. Ao lado da multidão de amigos, no cemitério de São João Batista, Álvaro se sentiu sozinho, como se carregasse nos ombros um deserto. Foi então que sentiu um vapor quente a embaçar-lhe as lentes dos óculos pelo lado de dentro...E o poeta chorou... EUGÊNIA Então, por que os teus olhos se apagaram... Por que a tua voz na boca se calou... Por que as tuas mãos no peito se cruzaram... Por que paraste...Então tudo acabou? No fundo misterioso de um jazigo Tantos anos de vida se enterraram? Não, minha amiga! Estás aqui comigo. Foi o teu corpo amado que levaram. Foi o que fez de ti em movimento A obra prima da tua mocidade. O que te mutilou no último alento Foi um instante só na eternidade... És ainda Eugênia, aquela que não cansa. O que deixaste, amor, não foi saudade... O que ficou de ti foi a esperança... Esta casa era a casa da alegria. Sol, calor, cerração – mas que frio! Chove... Fosse qual fosse o tempo Era bom tempo no 99... Era bom tempo! Nossos filhos, flores, livros, Amigos, árvores, pardais... Depois os netos – outros sete amores Que renovaram os dois velhos pais... Não eras a vovó, eras Gegêia, A que fazia todas as vontades Aqui teceste a tua linda teia, Ó tecedeira de felicidade... ...E aqui ficaste para sempre. A casa levantada por ti, guardou-te inteira...

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Nasci dez anos antes de nasceres: Vim para te esperar. Que alegria! Juntamos num ser os nossos seres E fizemos da vida um belo dia! Agora anoiteceu.Estou sozinho. Sozinho sim, mas nunca separado. O teu caminho ainda é sempre o meu caminho. Vamos os dois, como antes, lado a lado... Tu moça.Tu alegre! Eu, velho e triste, Eco, silencio, despedida... És em mim tudo...Tudo que ainda existe. 1 Fiquei por ti, dizendo adeus à vida...

Choro de poeta é mesmo poesia, lágrimas escorrem e caem no papel como palavras. A diferença é que as lágrimas são salgadas, já as palavras do poeta...são doces. Lágrimas são mares... palavras são rios, ambos seguem o curso da vida e em algum momento se encontram. Depois deste dezesseis de junho o poeta foi tomado pela insônia, passava as noites sentado em sua velha cadeira de madeira, com a mão encostada no queixo. Sua única luz era a memória dos bons tempos. Ora interrompia o pensamento para chorar palavras. No dia sete de outubro do mesmo ano escreveu para Eugênia uma carta, a primeira depois da despedida.

7 de outubro de 1948 Eugênia, companheira, esta é a primeira carta que te escrevo depois, daquela tarde fria. Foi ontem? Quando foi? Ainda não sei, não sei. Sei que a tarde caía e era uma tarde fria. Tôdas as flores da cidade se juntaram sobre o teu corpo que era frio como a tarde. Ias dormindo, mas não com a cabeça deitada no meu ombro. Ias sozinha e tão triste! Que sono longo! Que sono imenso o teu último sono! Levaste no teu sono o meu sono também. Nunca mais, sem nós dois, pude dormir, Eugênia. A vida sem nós dois é uma noite de insônia.Eu lembro de ti como de um sonho bom. Álvaro Moreyra

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Notas de Falecimento publicadas em jornais da época: Morreu Eugênia Correio da Manhã (18 de junho de 1948) Oswald de Andrade (de São Paulo) Uma coisa acorda os vivos, é a morte. Particularmente a morte de um companheiro de antiga barricada. O que Eugênia Álvaro Moreyra representava para nós, lutadores da renovação social e estética, numa sociedade de avarentos e de lorpas e num país onde correm ainda as águas do Dilúvio, era essencial. Eu mesmo não esperava o baque que senti do seu corpo firme e resoluto, da sua alma férrea, em meio ao desanimo e ao leilão. A minha geração, a de 22, que talvez tivesse começado no ceticismo de Álvaro Moreyra para brilhar com ela, na sua declamação estatuária e tipográfica, no centro das grandes batalhas do Modernismo e depois vê-la também tomar o caminho da dignidade conseqüente nas lutas políticas que encetamos, essa geração de autênticos tinha nela um totem. Eugênia desaparece não com a saudade de uma época, mas como a própria representação física dessa época e da gente que nela nunca se vendeu ou se alugou. O que se escondia por detrás de sua franja agressiva, de cabelos negros, do seu vestir especial, do seu sorriso desafiador agora o sabemos. A diferente Eugênia era uma grande esposa, uma carinhosa mãe e uma amiga exemplar. E foi a mártir de uma bela convicção. O fato de me ter afastado de Álvaro e Eugênia, só pode tornar mais válido o meu depoimento. O que se deve a ela será calculado um dia.

Nota de falecimento Eugênia Álvaro Moreyra Correio da Manhã (20 de junho de 1948) Causou o mais profundo pesar nos meios literários a morte da Sr.a Eugênia Álvaro Moreyra. Esposa do escritor Álvaro Moreyra, Eugênia teve seu nome ligado a algumas das melhores realizações em matéria de teatro no Brasil. Ela mesma era poetisa e jornalista. Com Álvaro M. e outros escritores, fundou o Teatro de Brinquedo que foi o ponto de partida no movimento renovador da cena brasileira. Em 1937, fazia parte de uma companhia subvencionada pelo governo que correu vários pontos do território Nacional fazendo bom teatro. Espírito brilhante e empreendedor – a morte de Eugênia Álvaro Moreyra foi, por isso mesmo, muito sentida pois com o seu desaparecimento perde as nossas Letras uma das suas figuras conhecidas e estimadas. Nota de falecimento Jornal do Commercio(20 de junho de 1948) O Sr. Cláudio de Souza referiu-se com palavras comovidas ao pesar que aflige o coração do ilustre escritor Álvaro Moreyra com a perda de sua esposa: D. Eugênia Álvaro Moreyra, sua colaboradora em construção do teatro artístico no Brasil. Álvaro Moreyra tem na Academia, onde se sentaria inteira justiça afeições sinceras, amigos e admiradores verdadeiros que compartilham nesta hora crudelíssima de seu doloroso e inconsolável luto.

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O poeta nunca se conformou, nunca mais sonhou...apesar disso não se tornou uma pessoa amarga. Depois de cada noite de insônia e recato, contemplava com alegria as manhãs. Morreu de enfarte no dia 12 de setembro de 1964, aos 75 anos, dezesseis anos depois dela. Não levou boas notícias para Eugênia, começava a Ditadura Militar no país. Grande frustração para eles que aqui lutaram a vida toda por uma sociedade mais justa e humana, sem diferenças de classes. Do infinito eles esperam, sonham que os netos alcancem em vida dias melhores para a humanidade.

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a primeira repórter do Brasil Arquivo da Família

Amigos se despedem de Eugênia no Cemitério de São João Batista

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Poesia reproduzida de: MOREYRA, Álvaro. Cada um carrega o seu deserto. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.

Carta reproduzida de: MOREYRA, Álvaro. As amargas, não. 2 ed. Rio de Janeiro: Lux, 1955. p. 258.

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Capítulo 12 Histórias que ficaram na lembrança

A visita mal desejada dos policiais *História contada em texto de Wilson Alves de Carvalho, do arquivo da família. Certa vez alguns tiras cariocas receberam ordens para dar uma batida na casa do escritor Álvaro Moreyra. Lá foram os tiras a procura da casa de Eugênia em Copacabana. Bateram palmas, Álvaro dormia, Eugênia atendeu e, abrindo a porta... — Somos da polícia! “Eu já sabia, a cretinice transbordante dos perdigueiros sem pedigree não engana mesmo ninguém, qualquer mané ceguinho conhece com facilidade os nossos pobres Sherlokes”. Eugênia não disse, mas pensou. — Quê que os Senhores querem? — Nós viemos buscar as armas e os boletins subversivos que a Senhora tem aí.

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— Mas a estas horas ? — Abra! Eugênia pensou um minuto...Entrar eles entravam mesmo, era preciso desarmar os brutos, o melhor foi representar. Ela fez: — Os Senhores não entrarão aqui, isso é uma violência... Não sabem que um domicílio é inviolável? — Que domicílio, que nada, vamos deixar de conversa. — Minhas armas não lhes entregarei, Álvaro está dormindo e é um crime perturbar o sono do poeta. — Senhora, estou perdendo a paciência. — Não entregarei minhas armas, com elas defenderei o Brasil. Aí, os tiras espumaram de raiva, empurram a porta e aos tragulhões foram entrando, Eugênia foi se afastando até se colocar de braços abertos a porta de um quarto tentando interceptar a passagem dos policiais. — Aqui os senhores não entrarão, estas armas são para defender o Brasil. — Segurem esta mulher! Empurraram Eugênia, mal porém a porta se escancarou e os filhos começaram a se entreolhar esquisitamente. Um encarava o outro meio apalermado, não há bruto completamente bruto, a cretinice volumosa cobriu os policiais da cabeça aos pés, o mais façanhudo, cabelo raspado tipo nazista, ainda aventurou uma pergunta: — Onde estão as armas, senhora? Eugênia não deu sua risada clara, falou séria apontando os berços onde dormiam os três netinhos. — Estas são as armas, eles é que vão defender o Brasil no futuro.

Acidente “fabricado” *História contada pelos filhos de Eugênia, João Paulo Moreyra e Álvaro Samuel Moreyra Aconteceu em 1935. Álvaro e Eugênia saíram da redação do periódico Dom Casmurro, estavam a pé, passando pela Rua Buenos Aires, no centro do Rio de Janeiro. Foi então que um carro, que parecia desgovernado, subiu na calçada e bateu neles, na altura da esquina com a Rua Miguel Couto. O impacto ia ser todo em cima de Eugênia, mas, Álvaro a empurrou e se jogou na frente. O poeta quebrou a clavícula e o bra-

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ço, Eugênia bateu a cabeça na parede. O carro deu marcha a ré e desapareceu da vista deles. Não conseguiram identificar quem dirigia. Depois o casal prestou queixa mas a polícia nada fez. Por causa deste acidente Álvaro ficou com um braço mais curto, mesmo depois de passar por diversas cirurgias. Os filhos do casal, Álvaro Samuel e João Paulo, acreditam que foi um acidente “fabricado” pela própria polícia, a mando de Filinto Müller, cuja intenção era um atentado contra a vida de Eugênia. Pouco tempo depois Eugênia foi presa, o que só fez confirmar as suspeitas deles. Porém, não tinham prova alguma.

O macaco Ventura e o papagaio do vizinho *História contada por João Paulo e Valéria Moreyra, filho e neta de Eugênia. Havia vários animais de estimação na casa de Eugênia e Álvaro: cachorros, galinhas, pássaros, o burro Mim, macacos, araras e micos. Mas, sem dúvida, um bichinho que chamava muita atenção pela esperteza e gênio difícil era o macaco Ventura. Ventura se comportava quase como uma criança, o macaco se achava no direito de odiar um vizinho da 99, que tinha um papagaio que o irritava pela voz aguda. Quando escapava das árvores da 99, o macaco ia para a casa do vizinho e destruía tudo que via pela frente, desde maço de cigarro ate vaso de planta. Era a vingança por ele ter ensinado a ave a gritar dia e noite: — Venturááá, Venturáá! Mas certo dia, o macaco Ventura se superou. Foi quando o papagaio do vizinho fez a vez de Ventura e inverteu a situação, escapou da casa e foi ele visitar o jardim da 99. Voou livre pelas mangueiras ate que resolveu ir gritar “Venturáá” na própria árvore do macaco. —Venturáá!Venturááá! O macaco não pensou duas vezes, pegou uma pedra, mirou bem na cabeça do papagaio e lançou. No alvo! A ave caiu dura, mortinha. Difícil foi explicar para o vizinho. Outros animais muito estimados pela família Moreyra foram a miquinha Chuetti, a arara de Eugênia e o burro Mim. A miquinha era tão levada quanto Ventura. A arara tem uma história muito curiosa, conta a família que morreu na manhã seguinte a morte de Eugênia, que era quem dava comida para ela todas as manhãs, bem cedo. Quanto ao burro Mim gerou até eleição na casa quando estava prestes a chegar, todos opina-

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Coleção de Burrinhos de Álvaro Moreyra

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ram na escolha do lugar da 99 que o animal iria ficar, o mais votado foi o jardim de inverno. Álvaro, principalmente, adorava o Mim, se referia a ele como “meu burro de verdade”. O poeta, aliás, tinha paixão por burros, tanto que fazia coleção.

A coleção de burrinhos de Álvaro *História baseada no livro de Adelar Finatto Burrinhos de madeira, burrinhos de plástico, de porcelana, de cerâmica, de panos, de vidro e até de bronze; grandes, médios, pequenos; de todas as cores e formas. A coleção de Álvaro Moreyra reunia perto de mil burrinhos. A maior parte era presente dos amigos, que sempre que viajavam, para qualquer lugar, procuravam até encontrar um burrinho para levar para o poeta. Havia entre as miniaturas peças doadas por Mário de Andrade, Jorge Amado e muitos outros escritores e artistas, originadas de diversos países. A coleção de Álvaro começou em 1938, acredita-se que a afeição pelo animal ele herdou do poeta francês Francis Jammes, que nutria pelos burros uma espécie de adoração. Mas, ao passo que adorava os burros (animais), Álvaro tinha desprezo pela burrice humana. Hoje restam alguns poucos exemplares da coleção de burrinhos, que estão guardados no apartamento da repórter Sandra Moreyra.

A briga de Eugênia e Carlos Lacerda * História contada por Álvaro Samuel Moreyra, filho de Eugênia O jovem político Carlos Lacerda morou na casa de Eugênia e Álvaro por mais de um ano. Saiu por causa de um desentendimento com Eugênia que, por sinal, teve muito a ver com política. Álvaro Samuel, o filho de Eugênia, lembra do acontecido em detalhes: — O Carlos Lacerda foi uma grande surpresa para todos nós...Moreyras. Mamãe adorava o Carlos Lacerda, foi um grande baque para ela porque realmente gostava muito dele. — Mas por que eles brigaram? Eugênia havia sido eleita para a presidência da Casa dos Artistas. Carlos, que na época ainda morava na 99 da Xavier, chegou em casa e foi mostrar a Eugênia o texto de uma entrevista, que ele havia concedido para a revista Observatório Econômico.

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Eugênia Brandão:

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— O Carlos Lacerda dá uma entrevista dizendo que os comunistas estavam se movimentando e colocando gente no poder. E dava como exemplo a eleição da mamãe na Casa dos Artistas: Assim que leu o texto, Eugênia virou para Carlos e disse: — Mas você vai publicar isso aqui? Ao que Carlos Lacerda respondeu: — Ué, são cinco contos que estou ganhando, pô, não tem nada de mais... Eugênia interrompe: — Como que não tem nada? Primeiro de tudo, se o diário publicar isso... me põem na prisão. O que que há? Que isso? Ponha-se daqui para fora, sai, sai! Se tu publicar isso não entra mais aqui em casa. — E foi dito e certo. A mamãe foi posta pra fora da Casa dos Artistas e alguns companheiros que estavam no sindicato dos marítimos foram demitidos. Carlos Lacerda saiu da 99 e só voltaria lá no natal do ano seguinte, na companhia de Samuel Wainer, o presidente do jornal Última Hora. Quando ele entrou, Eugênia estava sentada na poltrona da sala. — Mamãe levantou-se e disse “Álvaro, quando este canalha sair, tu me chama”. E saiu da sala.

Presença de Eugênia no retrato de Ismailovitch Dimitri Ismailovitch era um pintor ucraniano, sua arte pertencia à escola realista. Em 1927 veio para o Brasil, tanto se encantou que se naturalizou brasileiro. Buscou no Rio de Janeiro as paisagens e os rostos do povo carioca, quis pintá-los exatamente como eram. E foi com realismo que em 1931 ele retratou Eugênia Brandão, usando como plano-de-fundo a própria decoração do quarto dela na 99 da Xavier. Eugênia estava com um xale chinês vermelho, estampado com flores. No quarto havia um armário antigo, azul claro, e em cima dele um vaso português decorativo. Tudo isso apareceu no quadro, com fidelidade nos detalhes. Com o retrato de Eugênia o pintor ucraniano ganhou o prêmio promovido pela Sociedade de Artistas Plásticos, em 1931. Em seguida, a obra foi entregue a Álvaro Samuel, o filho artista de Eugênia, que, às vezes, olha para a imagem, buscando lembranças. Ele também a procura em seus sonhos, buscando conselhos. Olhando para o retrato é como se ela ainda tivesse presente.

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Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil Fonte: Revista Cultura (1985)

Retrato de Eugênia feito por Ismailovitch xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx E, assim, termina a história de Eugênia, a primeira repórter brasileira. Termina com um retrato, da mesma forma que começou. O propósito, desde a primeira linha, foi retratá-la, em suas múltiplas faces. Grande poder tem o retrato, capaz de congelar um segundo do tempo para sempre. A prova é aquele retrato de infância de Eugênia que foi a única coisa que o tempo não conseguiu apagar... Que o tempo também não apague Eugênia Brandão da memória daqueles que lerem estas linhas.

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Seção Bastidores Entrevistas, viagens e descobertas


Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

Vera Verreschi

Gabriel Bigó

Acervo da Fundação Biblioteca Nacional - Brasil

Gabriel Bigó

Matéria de Eugênia no Jornal A Rua

Gabriel Bigó

Vista do Pão de Açúcar a partir da cobertura do shopping

Entrevista com João Paulo no Rio de Janeiro

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Valéria Moreyra mostra arquivo da família


Eugênia Brandão:

a primeira repórter do Brasil

O dia que “fui apresentada” a primeira repórter brasileira A descoberta da primeira repórter brasileira veio por acaso, estava em meados do curso de Jornalismo nas Faculdades Integradas Teresa D’Avila, que fica em Lorena, cidade a 182Km de São Paulo. Voltava para casa conversando no carro coletivo com Deise Carelli, professora do Curso de Artes. Começamos falando sobre alunos que não escolheram o curso certo na hora do vestibular, então, comentei que pensava ter escolhido a profissão certa. De repente, o assunto mudou para jornalismo e jornalistas, a conversa se estendeu pelos doze quilômetros que separam Lorena de Guaratinguetá, nosso destino. Em certo momento Deise disse que tinha uma revista antiga com um artigo sobre a primeira repórter. E me deparei com uma pergunta da professora que me deixou inquieta: — Você sabe quem é? A sensação foi semelhante a que tinha no ginásio quando a professora de inglês sorteava meu nome na chamada oral, era ansiedade misturada com insegurança. Eu era boa nas lições de gramática mas não sabia pronunciar as palavras corretamente, torcia para o sinal bater no momento que fosse levantar da carteira para responder. Fiquei em silêncio por alguns segundos, não, eu não sabia quem era a primeira repórter do Brasil apesar de cursar Jornalismo. O sinal não bateu, disse apenas: — Não...quem é? — Eugênia Brandão, é mineira — Nossa...deve ser antiga... (como se isso fosse desculpa). — É de 1800 e pouco...quer que eu traga a revista para você ver? — Quero sim, se você puder... — Trago amanhã. — Tchau Deise...até amanhã.

O início das pesquisas Eugênia Brandão - não era só mais um nome, li o artigo de Álvaro Cotrim que em oito páginas traçava um perfil muito humano da primeira repórter, que foi sua amiga pessoal. Repórter aos 16 anos quando ainda não havia mulheres no ofício, mãe de oito filhos, musa de poetas modernistas, comunista atuante, sufragista, questionadora das leis e costumes da época que colocavam a mulher em posição submissa...esta foi Eugênia Brandão. E eu não sabia, meus colegas não sabiam, os livros que lemos não citavam. Passei a pesquisar Eugênia na Internet, procurei pelo nome de casada “Eugênia Álvaro Moreyra”, foram apenas quinze resultados, doze se referiam a ela mas, citavam-na brevemente como esposa de Álvaro Moreyra. Procurei então pela palavra-chave Eugênia Brandão. O que encontrei? Quase nada, dos cento e vinte dois retornos que o site de busca Google mostrou, apenas vinte e quatro se referiam, de fato, a primeira repórter e não traziam nada além de trechos pequenos sobre ela. Aliás, a maior parte apenas citava seu nome como

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Eugênia Brandão:

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primeira repórter do Brasil. Recorri então a livros de história do jornalismo e, por incrível que pareça, o resultado foi pior, nem sequer citavam Eugênia. Entre diversas dissertações e teses acadêmicas apenas uma sobre imprensa feminina no Rio de Janeiro trazia um parágrafo sobre Eugênia. Pesquisei durante quase três meses e em setembro de 2006 apresentei minha proposta de pesquisa ao meu orientador, o profº. Ms. Marco Bonito. Era um tema de pesquisa inédito porém incerto, não sabia se chegaria há algum lugar por causa da restrição de material. Do professor recebi o apoio que precisava, nosso ponto de partida seria as indicações de leituras dadas pelo autor daquelas oito páginas. Mas onde encontrar livros velhos que não são vendidos em livrarias?

Os sebos on-line No dia que descobri os sebos disse a mim mesma: encontrei uma mina de ouro. Eram livros raros, em perfeito estado, a preço de R$ 12, R$ 15, no máximo R$ 20. O primeiro livro que trazia alguns parágrafos sobre Eugênia chegou em minhas mãos em outubro, vinha de Porto Alegre, comemorei como se fosse a vinda de um parente estimado. Abri o pacote de papel pardo dentro um livro de capa dura, azul, semelhante a das enciclopédias antigas que muitas famílias guardam em estantes. Em letras douradas o título O Fabuloso Patrocínio Filho, na lombada. Nas semanas seguintes vieram outros livros do Rio de Janeiro, do Paraná, de Minas Gerais e de Brasília. Nem todos citavam Eugênia, traziam, no entanto, o contexto político, artístico e personagens da época, entre eles alguns escritos por autores que conheceram pessoalmente a primeira repórter. Em paralelo às leituras, busquei contatos de entrevistados Da descoberta de que a repórter da Rede Globo Sandra Moreyra era neta de Eugênia até o primeiro contato foi quase um mês. Depois de muito me aventurar pelas páginas de toda sorte de buscadores, descobri o e-mail de Sandra em um arquivo de Chat, com a data de 2000, no qual ela interagiu com internautas sobre culinária brasileira e no final deixou seu e-mail pessoal. Escrevi torcendo para que o endereço eletrônico ainda fosse o mesmo. A resposta de Sandra veio depois de dois dias, ela se dispôs a ajudar, disse que tentaria convencer os dois tios, filhos de Eugênia e Álvaro, a participarem da entrevista. Permanecemos em contato até maio do ano seguinte, mês que viajei para o Rio de Janeiro para fazer as entrevistas. Saiba como foi essa viagem.

Aventuras e desventuras na Viagem ao Rio de Janeiro Guaratinguetá, 26 de maio de 2007, 5:33 da manhã. Acordei atrasada, tenho menos de dez minutos para pegar o ônibus para o Rio de Janeiro. As passagens já estavam compradas para este horário. Meu pai ultrapassou o sinal vermelho, desta vez minha mãe não reclama, não há mais nenhum carro na rua. O silêncio da cidade incomoda, ele liga o rádio para cortar, na sintonia uma música sertaneja, do tipo que convida a ficar desperto. Estamos perto da entrada

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da Rodovia Presidente Dutra, 5:36. De repente, um susto. Uma buzina de carreta, alta e prolongada, cobre por alguns segundos a voz do locutor. Meu pai entrou na Dutra cortando na frente da carreta que minha mãe e eu não vimos, apenas ouvimos. — O que foi isso? Minha mãe se assusta —Quase bati na carreta, responde o homem de jaqueta preta de couro, que só teve tempo de colocá-la por cima da roupa com que dormiu, meu pai. — Você ta ficando louco? — A culpa é de vocês duas que demoram para sair de casa. O susto passou, chegamos na rodoviária, 5:38, desço correndo as escadas em direção ao local de embarque arrastando junto Dona Dalva, minha mãe. O ônibus vem se aproximando, freia e estaciona, rodas e pernas chegam exatamente juntos. O motorista vem conferir as passagens, faltava preencher. Caneta? Caneta? Um rapaz da empresa de ônibus me empresta uma, preencho, na distração subo para o corredor ainda com a caneta na mão. Sento, ajeito as malas e me deparo com o dono da caneta. — Oi? — Você ficou com minha caneta...já usou? — Ah..é, desculpa, entrego um pouco envergonhada. O motorista dá a marcha à ré, o ônibus parte da rodoviária com apenas quatro passageiros. Minha cidade se despede com a imagem do primeiro santo brasileiro, Frei Galvão, que está a abençoar todos que passam por ali. Seguimos para a Dutra, deito o banco do ônibus para ficar mais confortável. — Quer o travesseiro? — Não..Cadê meu caderninho? Encontro o bloco de anotações em uma bolsa, pego também uma caneta e escrevo o que aconteceu até aquele momento para não esquecer. O ônibus faz mais paradas em cidades vizinhas, ao todo vão dezessete passageiros para o Rio de Janeiro. É 6:13 quando observo a mágica do amanhecer pela janela, tento descrever as tonalidades do céu no caderninho mas não consigo, contento-me em olhar. Não consegui dormir durante a viagem, fiquei a observar o caminho. Já no Rio de Janeiro o que me impressiona é o trecho de estrada que passa poucos metros acima do mar. Dos dois lados observo a água escura, a sensação é sinistra, é como se eu tivesse dentro de um navio. Meu celular toca às 9:50, tento mas não consigo atender, estava no fundo da bolsa, pára de tocar quando encontro. Vejo o número, é meu grande amigo Leandro que prometeu ligar quando chegasse na rodoviária. Ele é carioca, combinamos que seria meu guia na cidade. O clima é outro, começo a sentir calor, tiro duas blusas e o cachecol, estava com três além de uma camisete preta. Minha mãe tira o casaco e permanece com uma blusa roxa, a cor preferida de Eugênia. Ás 10:15 abraço meu amigo na rodoviária, ele trouxe mais um rapaz, Gabriel, já o conhecia pela internet. Ambos são altos e fortes, na idade de servir às forças armadas, ironizo que serão nossos seguranças.

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Embarcamos no primeiro ônibus para o centro. Nosso destino: a Avenida Barão do Rio Branco, onde fica a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O plano era usar a parte da manhã para procurar reportagens escritas por Eugênia em jornais da época.

O fiasco na Biblioteca Nacional Descemos do ônibus e atravessamos a avenida. O prédio da biblioteca é lindo, a arquitetura parece inspirada nas velhas óperas da Itália. Há uma majestosa escada no centro e desenhos de escudos reais com iniciais BN em todos os vitrais. Mas, algo me causou estranheza, havia uma faixa próxima à porta principal na qual se lia “Sindicato dos Servidores da Cultura”, ia comentar quando meus amigos apontaram outra coisa ainda mais incomum. Na frente da biblioteca havia um coral, com cerca de 40 pessoas, todas vestidas de traje azul escuro. Havia poucas pessoas assistindo, algumas filmando e fotografando. Como a porta principal parecia trancada, passamos pela calçada na frente do coral e fomos procurar outra entrada. À primeira vista não havia nenhuma entrada lateral, percebemos também uma fita amarela e preta isolando o caminho. Decidimos perguntar na banca de jornal que ficava logo à frente, na mesma calçada. Foi então que ouvi o que parecia absurdo: — Estão em greve — Não acredito... vim de Guaratinguetá para fazer um trabalho aqui. Desde quando estão em greve? — Isso aí eu não sei, moça Era verdade e não havia nada para ser feito, não havia um plano B. Voltamos outra vez para a calçada da frente da biblioteca e, então, penso alto: — Isso vai para o livro, tem que ir —Você deveria ter ligado antes para saber, afinal, não é estudante de Comunicação? — Como eu ia adivinhar, mãe? — É verdade Dona Dalva, nem a gente que é daqui...nem a gente tava sabendo, diz o estudante de advocacia Gabriel, disposto a me defender. — Isso vai para o livro... Passamos de novo pelo coral, olho e penso “só faltava agora o coral dizer ‘bem feito’, em uníssono”. Sem ter a mínima idéia do que fazer, vou andando pela calçada. A entrevista com os familiares de Eugênia era só 1:30. Os meninos vão atrás como se esperassem alguma instrução. Leandro lembra que ali “não era bom ficar”, porque as malas chamavam atenção. Continuamos andando até que Gabriel sugere:

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— Vamos pegar o metrô e ir ao shopping para passar o tempo. Concordamos, lá pelo menos ia ter lugar para almoçar e vitrines para olhar. Nunca havia viajado de metrô, a oportunidade me deixou ansiosa. Já minha mãe não havia gostado da idéia, ela sempre teve receio de lugares fechados, tanto que prefere subir dez blocos de escada a subir de elevador. Os rapazes não dão muito tempo para ela pensar, voltam da cabine com bilhetes nas mãos. Esperamos um pouco em um banco próximo aos trilhos e chega o metrô. As portas se abrem, não estava cheio, entramos. Os rapazes ficam de pé apesar de ter lugares, nós duas vamos sentadas, o metrô parte. Vejo do lado esquerdo um senhor com um jornal, cabelo grisalho, óculos de lentes grossas, cara de vovô. Percebo que ora ele lê, ora cochila. Sinto-me instigada a perguntar a ele se saiu algo sobre a greve no jornal, fico esperando que desperte do cochilo e pergunto. O senhor de óculos responde com simpatia: — Acho que não tem nada sobre isso no jornal, mas to sabendo, é coisa de Brasília, viu? É daquele ministro... o ... Gilberto Gil. Agradeço e tento sossegar, o homem continua a ler o jornal, agora sem cochilar. Olho para minha mãe. — Você está bem? — Mais ou menos, espero que não demore pra chegar. O senhor de óculos fala alguma coisa que não consigo entender por causa do barulho. Então ele fica de pé e me mostra uma nota do jornal sobre a greve. É uma informação de poucas linhas, diz em resumo que a greve é de todos os órgão ligados ao Ministério da Cultura (MINC), que começou no dia 15 de maio por causa do não-cumprimento de um acordo com o setor em 2004 e duraria por tempo indeterminado. Era só a confirmação do fiasco da primeira parte da viagem, mas algo me dizia que as coisas iam melhorar Descemos na estação Botafogo, bairro da zona sul do Rio de Janeiro. Seguimos a pé, Gabriel diz que vai nos levar para o Shopping da praia de Botafogo, que, segundo ele, oferece uma vista incrível da cidade na cobertura. Caminhamos por alguns quarteirões e nada ainda do prédio. — Você sabe mesmo o caminho?, pergunta Leandro. — Engraçado... já era para o Shopping ter aparecido no horizonte. Todos rimos, foram só mais alguns minutos até chegarmos ao shopping. Subimos oito escadas rolantes para chegar a cobertura e fomos premiados com a bela paisagem. É a vista do mar e do Corcovado, a partir da praia de Botafogo. O deslumbramento valeu por tudo que deu errado, pensei naquele instante que mesmo se a família ligasse desmarcando a entrevista, a viagem teria compensado...que linda vista, que espetáculo da natureza. Depois deste instante de contemplação, fomos almoçar. A comida do Botafogo Praia Shopping não cabia no nosso orçamento, contentamo-nos com uma pizza tamanho família. Uma hora depois estávamos no táxi, indo para o apartamento de Sandra Moreyra.

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Leandro Rocha

Gabriel Bigó

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Leandro Rocha

Álvaro Samuel, filho artista de Eugênia

Da esq. p/ dir. Valéria, João Paulo, Sandra, Valdina e Álvaro

Gabriel Bigó

Gabriel Bigó

Gabriel Bigó

João Paulo folheando o livro “As Amargas não” de Álvaro Moreyra

Lea, mãe de Sandra Moreyra Valéria e os pais João Paulo e Valdina

Sandra Moreyra, repórter da TV Globo

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A entrevista com os donos da história Entramos no elevador, dei uma olhada no espelho para ajeitar o cabelo, estava ansiosa demais, meu rosto não transmitia serenidade, as mãos estavam frias apesar do dia quente. Saímos em um patamar escuro, havia ali uma única porta, bati e uma senhora simpática, que aparentava uns 80 anos nos convidou a entrar, era a mãe da repórter Sandra Moreyra. A filha apareceu em seguida, nos cumprimentamos e ela anunciou que os outros membros da família chegariam logo. Sentei em um sofá branco, ao lado de Sandra, minha mãe e os meninos ficaram em um divã estampado em marrom claro e preto, na nossa frente. O apartamento tinha várias peças de artesanato, algumas plantas e muitos quadros, as paredes eram brancas mas a cor predominante era o marrom palha das cadeiras, do piso e dos móveis de canto. Mostrei a Sandra o projeto do livro e contei sobre como descobri Eugênia, ela achou que eu fosse mineira, porque é comum os biógrafos serem da mesma terra da personalidade que pretendem retratar. Perguntou também se meu sobrenome era Brandão, respondi que era Almeida. De repente um cachorrinho branco pulou do meu lado no sofá. O nome dele me chamou a atenção: Sadam Russein, apesar disso, era manso. Conversamos por mais algum tempo até que alguém chegou, era um dos filhos, Álvaro Samuel, apelidado pela família de tio Vivinho. Sandra, depois de cumprimentá-lo, saiu da sala para o interior do apartamento e começou a trazer algumas fotos e recortes de jornais sobre Eugênia e Álvaro. Aproveitei para gravar imagens das fotografias de moldura com minha filmadora de mão. Álvaro Samuel ficou encostado na mesa da sala e pegou do meio dos recortes uma fotografia de uma casa branca de janelas azuis. Era a oportunidade para puxar assunto com o senhor calvo de bigode grisalho e camisa xadrez azul escura. — Esta é a casa 99 da Xavier, onde vocês moravam? Ele respondeu em afirmativa com uma voz grave e simpática, em seguida, começou a descrever a casa em detalhes, as cores da fachada e das janelas, os quartos, a biblioteca, o jardim, contando, inclusive, como ficou depois da reforma. A entrevista, de fato, só começou cerca de uma hora depois, chegaram João Paulo, o outro filho de Eugênia; Valéria, a neta atriz e dançarina; e Valdina, a mulher de João Paulo. Preparei o gravador e fui para o sofá com João Paulo e Álvaro. Conversamos por bastante tempo. Álvaro era quem falava mais, sempre gesticulando e mudando o tom da voz para interpretar algum personagem resgatado de suas lembranças. João Paulo se colocou na posição de completar as respostas do irmão, sempre em tom bem humorado, ao final de cada frase soltava uma risada que levava todos da sala a acompanhar. Em um momento, Álvaro Samuel diz: — Mamãe era um faz tudo, o que ela queria fazer...fazia! Era impressionante, se queria fazer vestido, comprava o tecido e fazia, não pegava metro, não pegava nada, a medida dela era os dedos. Álvaro Samuel mostra com gestos como Eugênia media a gola e a distância dos ombros de uma camisa, de dois em dois dedos. — E servia em vocês?, pergunto. — Como uma luva!, diz ele satisfeito.

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— E ela, como ela se vestia? Que acessórios usava? — Usava tudo que uma mulher usa hoje, brincos enormes, pulseiras... Mamãe se vestia, realmente, diferente das mulheres da época, ela criava as roupas dela, usava um tipo de bata que ela criou. —Ela se pintava, usava maquiagem, isso não era comum na época..., é João Paulo quem complementa. — Como Eugênia era como mãe? — Era mãe, mãe...mas, nada de “rapa pé”, nada de “qui-qui-qui”, que belezinha meu filho vem fazer “pipi” aqui, não tinha nada disso não, tratava todo mundo muito bem, mas não tinha nada de paparicar, responde Álvaro. — E vocês, eram muito levados? — Eu era levado, confessou Álvaro, teve uma vez que perdi os dentes da boca, levei um tombo e cai da varanda. Foi na época da reforma, eu tava lá no alto e meu irmão Sandro me viu e gritou “A lá mamãe, olha o Alvinho”...Só me lembro que na pressa eu cai e buumm lá embaixo, sete metros..fiquei com os pulsos, as pernas... todo machucado, e com os dentes daqui da frente...tudo arrebentado. — E o que a Eugênia fez? — Ela não fez nada, só me levou para o dentista, fui com os dentes na mão. — E o senhor, também era levado assim?, perguntei a João Paulo. — Pai, conta para ela que você quebrou o nariz, Valéria entrega o jogo. — Foi na escada, quebrei o nariz quando rolei pela escada. Precisou operar, mamãe me levou para o médico, eu tinha uns sete anos. Quem responde as próximas perguntas é Álvaro Samuel. — E que quem era a maior autoridade na casa, do Álvaro ou da Eugênia? — Era da mamãe, o Alvinho [Álvaro Moreyra, o pai] era mais de passar a mão na cabeça, ela não, mas não batia, falava só. — Como era o relacionamento dos dois? —O Álvaro era o eterno namorado da mamãe, era apaixonado por ela, era um namorado... — É verdade que a casa de vocês era sempre cheia? — Era sim, estava sempre cheia de intelectuais. Houve uma época, inclusive, que mamãe criou o jantar dos intelectuais. Acontecia uma vez por mês, vinha gente de São Paulo, de Minas, do Sul, de todos os lugares...O jantar era só para eles, nós filhos não participávamos, ficávamos olhando pela escada até a hora que mamãe nos mandava subir, os jantares iam até a madrugada. — Sobre que assuntos os intelectuais conversavam nestes encontros? — Era o papo comum do intelectual, sobre política, arte, literatura...Faziam apresentações de poesias... — Tinha gente que ia só para comer...brinca João Paulo. A conversa com os dois filhos de Eugênia continuou por mais de uma fita cassete. Álvaro Samuel responde a maior parte das perguntas, João Paulo segue completando as respostas, sempre com bom humor. Mas, a entrevista teve também momentos tristes, que levaram Álvaro Samuel a emocionar-se: — Mamãe viveu a vida dela do jeito que achou que tinha que ser vivida e o resto, que se dane, não dava importância para o que os outros diziam dela. — A única coisa que não gostava era ficar parada, ela precisava se mexer, recorda João Paulo.

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— Quando não tinha nada para fazer jogava paciência. Ela morreu jogando paciência. Sentiu-se mal, nós dois pegamos ela na cadeira e levamos para cima, para o quarto dela. — Mas já estava infartada... — Chamamos o médico e ele estava em uma conferência, quando chegou já estava morta. Antes de morrer ela disse: “Que mal eu fiz a Deus para que Ele me desse isso?, me mata logo que não quero ficar aleijada”. Depois fui para a mesa conversar com a família toda, além dos dois filhos estavam às netas de Eugênia, Sandra e Valéria; a mãe de Sandra, que se chama Lea (viúva de Sandro Moreyra, o filho jornalista de Eugênia); e Valdina, a mulher de João Paulo. Perguntei a eles sobre a infância de Eugênia, não sabiam, reforçaram que não havia restado nenhum documento. Sobre a juventude sabiam pouco, conheciam apenas o lado profissional, nada sabiam sobre o namoro de Eugênia a Álvaro. Não detêm registros oficiais de nascimento, casamento e óbito, porém, possuem textos de jornais e revistas que sustentam as datas. Guardam também quadros do patriarca da família, o Barão de Pitangui, e dos pais de Eugênia e Álvaro. Um dos momentos que foram muito marcantes na entrevista foi quando Valéria explicou a ausência da outra filha de Eugênia, Rosa Marina, que eles chamam de tia Rosa. Ela não veio por estar doente mas me mandou um recado por meio de Valéria: — Tia Rosa me disse assim: “Fala pra ela que mamãe era aquela pessoa forte, muito ligada a política...mas era a maior mãe do mundo, era ela quem fazia nossa roupa, a roupa dos meninos, ia para a cozinha e fazia um almoço estupendo para a família e para quem tivesse de convidado e estava sempre pronta para começar tudo de novo...” — A Tia Rosa falou alguma coisa sobre a formação de Eugênia?, li que ela sabia francês e espanhol... — É verdade, ela sabia sim, inclusive, eu comentei isso com a Tia Rosa ontem... Que ela traduzia textos em francês e espanhol eu já sabia, o que eu não sabia é que ela aprendeu tudo sozinha, lendo dicionários... Tia Rosa disse que ela não freqüentou escolas, foi autoditada. Conversamos, ainda, sobre as três faces de Eugênia: a militante, a mãe e a atriz. Sobretudo na militante foram grandes revelações. — Mamãe odiava ouvir que ela era líder feminista, há alguns autores que dizem que ela foi feminista mas está errado, ressalta Álvaro Samuel. — Ela defendeu o direito das mulheres ao voto, participou de diversas manifestações, mas não gostava de rótulos, não gostava de ser chamada de feminista, explica a neta Sandra Moreyra. Ela detestava a ordem corrente da época, por exemplo, tem um momento que ele está viajando e ela escreve para ele que vai ao banco para receber a ordem de pagamento, mas não pode pegar o dinheiro porque a ordem de pagamento estava nominal a ele, mas se fosse nominal a ela, o marido poderia receber. Ela ficava furiosa com essas coisas... — Ela participou da luta pela libertação de Anita Leocádia? — Foi inclusive uma idealizadora do movimento, foi com ela que começou, revela Valéria. Fazia greve de fome e falava em praça pública pela libertação de Olga Prestes ou para conseguir, pelo menos, resgatar a Anita. — Mamãe fazia comícios relâmpago no centro da cidade para libertar os Prestes, lembro que estava junto com ela nas escadaria do teatro municipal, ela me pegou pelo braço e disse “vem pra cá, vem pra cá”, subiu até a porta do teatro e “saudações amigos” e boow, soltou a palavra..., conta Álvaro Samuel com direito a sonoplastia. — Qual era a relação ela com o partido comunista?

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— Era comunista de carteirinha, estava em todas as manifestações..., ressalta Valéria. — Ela era tradutora do partido...trabalhou na sede principal do partido, ficou lá até que mandaram ela ir para casa para tratar coração, o secretário do comitê disse pra ela “cuida da tua saúde que quando melhorar você volta”. E não adiantou nada, chegou em casa foi trabalhar, limpando e arrumando a biblioteca de Alvinho - conta Álvaro Samuel enquanto acende um cigarro. Mais uma vez, João Paulo completa a resposta: — O Mauricinho, irmão do Carlos Lacerda, disse que botou mamãe de castigo, que mandou ela para casa, fui lá na sede do partido busca-la e ela tava com 20 por 14 de pressão.Ele disse “não deixa sua mãe trabalhar mais” , e ela ficou revoltada. Não parou não, ficou trabalhando em casa até morrer, não adiantou nada. Pergunto a família o que Eugênia deixou de herança. Sandra responde: — De material nada...eles gastaram tudo o que tinham no Teatro de Brinquedo. A grande herança que deixaram foi intelectual e espiritual.

A segunda tentativa na biblioteca Voltei à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro no dia três de agosto, a mesma que encontrei fechada em maio por causa da greve. Por sinal, em agosto os funcionários ainda estavam em estado de greve, mas, atendendo à exigência do governo, voltaram a trabalhar no dia 27 de julho para, então, haver possibilidade de acordo. Porém, se não houvesse propostas favoráveis à categoria até o dia 10 de Agosto, retornariam a greve por tempo indeterminado. Soube destas informações porque desta vez fiz o dever de casa direitinho, acompanhei o blog dos grevistas diariamente e entrei em contato com os departamentos por e-mail e telefone. Fui, então, às pressas para a biblioteca. Cheguei de ônibus na Avenida Barão do Rio Branco, e olhei o prédio enquanto atravessava a rua, era o início da recompensa: as portas da biblioteca estavam abertas. Fui direto para o setor de periódicos. Ei, nem tão depressa... as malas tinham que entrar no estreito armário. Conosco uma mochila de viagem e uma frasqueira para os equipamentos. Usamos dois armários, colocamos a frasqueira tombada em vertical e amassamos a mochila para diminuir o volume. Tirei apenas uma caneta da mochila e, de imediato, um senhor me advertiu: não é permitido utilizar caneta na biblioteca, apenas lápis. O fato é que trazia comigo três canetas de cor azul, uma preta, uma vermelha e nenhum... nenhum lápis! Ali por perto não havia lugar para comprar, na avenida só se viam prédios gigantescos, de bancos, de seguradoras e outras empresas; nenhuma papelaria. Será que por causa desse detalhe a viagem estaria outra vez ameaçada? Exagero ou não, foi isso que pensei naquele instante. Levei, então, apenas algumas folhas em branco para o setor de periódicos, além da que estava com a descrição e localização do jornal A Rua, que imprimi em casa. No balcão havia um lápis pela metade, pedi emprestado para poder preencher o pedido, puxei assunto com os bibliotecários e arrisquei pedir para ficar com o lápis pra copiar trechos do material, concordaram, então fui para a mesa e fiquei aguardando. Depois de quase trinta minutos, levaram o jornal para minha mesa. Veio uma coleção encadernada, do tamanho de um jornal Standart atual, havia

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ali mais de trezentas páginas. As folhas tinham uma tonalidade café-com-leite, estavam corroídas nas pontas e com diversos rasgados pelo meio; era um material muito sensível, folheá-lo foi uma tarefa à parte. Minha mãe e eu movemos cada página segurando sincronizadamente, com quatro braços. Encontramos as reportagens de Eugênia e notas quase diárias sobre o crime da Rua Januzzi. Meus amigos cariocas tinham combinado de nos encontrar lá. Leandro apareceu sem Gabriel, riu enquanto explicava que o amigo não pôde entrar porque viera de camiseta regata. Saiu outra vez para tentar comprar ou emprestar uma camiseta de mangas. Minha mãe e eu começamos a copiar as reportagens de Eugênia, conseguimos mais um lápis pequeno e um apontador no balcão. Na Biblioteca não era permitida a reprodução do material em xerografia, apenas pelo serviço de microfilmagem, cujo processo levava cerca de vinte dias. Como havia possibilidade de retornarem à greve na semana seguinte, desaconselharam que eu fizesse a encomenda. O jeito foi copiar a mão o máximo possível. Quando meus amigos voltaram, agora devidamente vestidos, fizemos uma espécie de cooperativa para copiar o conteúdo, enquanto um ditava, os outros copiavam. Voltei para casa com o resultado de nosso esforço: cinco reportagens de Eugênia Brandão, a reconstituição do crime da Januzzi, o artigo do livro do jurista Elysio de Carvalho sobre a perícia gráfica do crime e mais algumas notas do jornal A Rua...Com este material escrevi os três primeiros capítulos que aliás, não foram redigidos primeiro, comecei o livro pelo quarto capítulo, no mês de julho, entre julho e agosto fui até o nono e, no final do mês, voltei aos três primeiros. No mês de setembro minha principal preocupação era redigir os sete capítulos que faltavam e conseguir entrevistados especialistas em comunismo, feminismo, jornalismo (livro-reportagem) e sociedade da época.

A principal dificuldade Sempre pensei que a maior dificuldade neste trabalho seria descobrir material escrito sobre Eugênia. Não foi, o mais difícil foi encontrar especialistas acadêmicos dispostos a contribuir com entrevistas. A primeira barreira foi o próprio nome de Eugênia, pesquisei acadêmicos mais próximos dos temas que iria retratar no livro, entrei em contato e, muitos dos que responderam, argumentaram que não poderiam ajudar porque não conheciam nada sobre Eugênia. Retornei o contato dizendo que não ia perguntar sobre ela, mas sobre o contexto que viveu, de acordo com o campo de estudo deles. Mesmo assim, preferiram me indicar para outras pessoas que conheciam, que, aliás, estavam ainda mais distantes do foco. Entrei em contato por e-mail e telefone com estas indicadas e prossegui pesquisando outros nomes, poucos responderam. Mas, em compensação, entre elas encontrei o professor Gildo Brandão, doutor em ciências políticas pela USP, pesquisador do comunismo. Ajudou-me muito, desde o primeiro contato demonstrou interesse pelo meu tema e, se não conhecia, pesquisou por iniciativa própria sobre Eugênia e me perguntou várias coisas sobre ela. Gildo descobriu que um amigo dele havia conhecido Eugênia e Álvaro pessoalmente e me apresentou a ele. Seu nome: Marco Antônio Tavares Coelho, jornalista e ex-deputado federal em 1967, autor do livro Herança de um sonho- memórias de um comunista. Marco Antônio também foi muito atencioso comigo, contou o que sabia de Eugênia com honestidade, disse que sabia pouco porque só a conheceu de vista, em uma das vezes que foi para o Rio de Janeiro:

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“Uma vez estive na casa em que Eugênia e Alvinho moravam, em Copacabana. Não cheguei a travar conversa com eles. Foi em 1945 ou 46, eu estava com menos de vinte anos, poucas vezes ia ao Rio e era apenas um jovem comunista, mineiro. Impressionava a todos a postura de Eugênia, pela estampa, fumando cigarrilhas e disposta a topar qualquer discussão. Via-se que era “diferente” em quase tudo dos padrões femininos de então. Sabia-se que sua casa abrigava qualquer pessoa e se comentava que ela havia desacatado o Carlos Lacerda, tido e havido como um renegado”. (COELHO, Marco A. T. Entrevista concedida a Lara Almeida em 30 ago. 2007)

Assim Marco Antônio descreveu a pessoa de Eugênia Brandão, contribuindo com depoimento externo ao âmbito familiar, mas que confirmava o que os filhos de Eugênia tinham contado. O jornalista disse que ficou muito contente com o trabalho sobre Eugênia e me desejou sorte para seguir em frente. Precisei mesmo de sorte, mais do que isso, precisei de força, depois passaria por um momento de crise. Começou com uma discussão entre meus pais, na véspera de minha viagem a São Paulo pra entrevistar uma socióloga pesquisadora do movimento feminista. Motivos banais causaram a discussão, mas meus pais foram tão duros nas palavras que ficaram a um passo da separação. Mesmo assim, na madrugada seguinte, às 3:30, fomos os três viajar, acompanhados de um amigo de meu pai. Clima pesado, meus pais não trocaram palavras em nenhum instante. Pela manhã, chegamos ao local agendado, quase duas horas antes do combinado com a socióloga. Encontramos uma padaria e lá ficamos para passar o tempo. Faltando meia hora, minha mãe e eu aguardamos na recepção do prédio. Fui chamada, com atraso, para ouvir algo que me desanimou no íntimo. A socióloga disse que não sabia que eu era jornalista e por isso tinha aceitado nosso encontro. Categórica, afirmou que era contrária a qualquer tipo de entrevista. Argumentei que tudo estava explicado nos e-mails que trocamos, além de duas vezes que telefonei confirmando horário e local. Não adiantou, ela disse que entendeu errado e que os havia apagado da caixa de mensagens. Explicou que havia pessoas que a procuravam para poder visitar a biblioteca do lugar, achou que eu tivesse ido pelo mesmo motivo. Como último recurso, fui com ela para a biblioteca e tentei conquistar sua confiança com humildade, conversamos por quase meia hora. Depois disso a socióloga encerrou a conversa dizendo que sentia muito pela minha viagem mas não podia me ajudar porque era contra entrevistas. Passei por um momento de crise depois da viagem, meus pais continuaram brigados, sem se falar por longo período. Contei com o apoio do meu orientador e de meus amigos para recuperar o ânimo. Depois de vinte dias sem escrever uma só linha, consegui voltar ao trabalho. Procurei mais pessoas pra entrevistar, entre elas o professor Marcel Cheida, doutor da PUC-Campinas, que me ajudou a compreender o cenário atual da produção de livros reportagem nos cursos de Jornalismo das universidades brasileiras. Ele me alertou para o fato de que muitos alunos acabam por produzir uma reportagem grande em livro (reportagem extensa, sem qualidades jornalísticas e literárias) ao invés de uma grande reportagem (envolvente, descritivo-narrativa, feita com técnica). “Os currículos dos cursos não privilegiam os processos de pesquisa, apuração e investigação conforme o método de ‘imersão’ exigido para o autor de um livro reportagem. Essa fase é demorada e exige tempo que nem sempre o aluno e a disciplina dispõem. Além disso, os currículos, de modo geral, dão pouca importância para a relação entre jornalismo a literatura”. (CHEIDA, Marcel. Entrevista concedida a Lara Almeida em 25 set. 2007).

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Entrevistei também a professora doutora Rachel Soihet, que é referência no país nos estudos sobre o feminismo. Ela me contou um pouco sobre a militância feminina na época de Eugênia, além de explicar o surgimento do feminismo e do sufragismo (movimento que reivindicou o voto feminino, no qual Eugênia foi uma das grandes manifestantes). “Na década de 1930 as mulheres conseguiram em 1932 garantir o direito de voto. Já no ano de 1922 foi lhes reconhecido o acesso ao Colégio Pedro II e aos liceus provinciais. Havia ainda na imprensa inúmeras matérias antifeministas com vista à ridicularização daquelas que lutavam por direitos”. (SOIHET, Rachel. Entrevista concedida a Lara Almeida em 29 set. 2007).

Considerando as mudanças que ocorreram comparando-se a sociedade de 1930 em relação a atual, em que o número de famílias que têm a mulher como principal referência (responsável ou líder) cresce a cada ano (pesquisa do IBGE divulgada em setembro de 2007 revelou que o crescimento do número de mulheres que chefiam os lares foi de 79% entre 1996 e 2006, passando de 10,3 milhões para 18,5 milhões nesse período), perguntei a Rachel Soihet sobre as reivindicações das feministas hoje. “Atualmente, as feministas lutam para garantir o respeito às conquistas obtidas; exigir medidas efetivas no que tange à violência contra as mulheres, o que ainda ocorre com grande freqüência; e por medidas que garantam a maternidade consciente, através de campanhas junto a homens e mulheres pelo uso de anticoncepcionais e em último caso a realização de aborto de forma segura. Também há campanhas levadas a efeito pela partilha igualitária das responsabilidades domésticas e cuidados com os filhos”. (SOIHET, Rachel. Entrevista concedida a Lara Almeida em 29 set. 2007).

Por fim, perguntei a ela se considera que as mulheres que exercem hoje dupla jornada de trabalho, cuidando do lar e exercendo suas profissões, são herdeiras de Eugênia (que foi mãe de oito filhos, repórter, comunista e atriz) e de outras mulheres militantes do mesmo período como Patrícia Galvão, Bertha Lutz e Maria Werneck de Castro. “Elas são herdeiras não apenas dessas mulheres como de muitas anônimas que as antecederam. Na verdade, cabe-lhes hoje lutar pela parceria com os homens no desempenho dessas atividades”. (SOIHET, Rachel. Entrevista concedida a Lara Almeida em 29 set. 2007).

Assim, apesar das dificuldades, no final consegui todos os especialistas que precisava e, se consegui, foi por insistência.

Lições... Olho para trás, vejo tudo que consegui reunir: livros antigos com trechos sobre Eugênia, matérias de jornais, poucas fotografias, entrevistas com especialistas no tema e as fitas cassete com a memória dos filhos e netos - meu material mais precioso. Nada

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foi fácil de conseguir, para cada peça desse meu quebra-cabeça que foi a biografia de Eugênia foi um argumento e uma espera, vezes recompensada, vezes decepção. Encontrar a biblioteca em greve, conversar horas com os filhos de Eugênia, passar por dificuldades na hora de encontrar fontes, passar por conflitos pessoais, administrar o tempo e suportar a pressão de concluir o trabalho até a data limite, enfim, tudo isso me fez amadurecer como pessoa e como profissional na área que escolhi. Também aprendi muito com a personagem que busquei biografar neste livro reportagem. Eugênia Brandão foi um exemplo de perseverança, de coragem, de amor pela profissão, de paixão pela vida. Foi alguém que acreditou que a palavra (aliada à ação) pode contribuir para transformar a mentalidade das pessoas.

E a melhor parte? A melhor parte é que todas estas experiências com o Trabalho de Conclusão de Curso são lições que vou levar para a vida toda.

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Epílogo: Se estivesse viva hoje Eugênia Brandão teria 109 anos e veria que o cenário do jornalismo mudou. Diferente de seu período, hoje são os rostos femininos que predominam nas redações. Segundo dados da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), as mulheres ocupam 51,5% das vagas no Jornalismo. Em 2006, dos 11.574 jornalistas contratos e regularizados no país, 6.284 eram mulheres. O número não abrange os profissionais que trabalham sem registro em carteira mas, acredita-se que se considerados a porcentagem de mulheres jornalistas seria ainda maior. Porém, nem tudo deixaria a pioneira Eugênia satisfeita. Ela questionaria o fato das mulheres ainda receberem salário inferior ao de homens da mesma função e capacitação. Segundo a FENAJ, os homens jornalistas ganham, em média, 500 reais a mais que as mulheres. Também são deles os cargos de chefia na maior parte dos veículos de comunicação do país. Fora do universo nos números, Eugênia também perceberia outras transformações. As redações não são mais aqueles ambientes romanescos e barulhentos movidos à máquina de escrever e à fumaça de cigarro. Hoje se parecem mais com os setores administrativos das empresas. Não se ouve mais o ruído das máquinas de escrever, nem os gritos de bronca dos copidesques; a produção não é mais artesanal, é em ritmo de indústria. Os jornalistas voltam da rua (quando não apuram a matéria por telefone mesmo) e ficam em mesinhas próprias com seus computadores, batalhando para tentar cumprir o número de pautas proposto no início do dia – por vezes, há divisórias do lado das mesas que separam o pequeno espaço de cada um na grande sala. Nos tempos atuais, dificilmente Eugênia poderia sair da redação à tarde para ir aos “cafés”, os expedientes quase sempre se prolongam até a noite. Os jornalistas costumam colocar objetos pessoais e fotos dos filhos em cima das mesas para compensar o pouco tempo que podem ficar com a família. O mercado exige que sejam versáteis (para produzir uma mesma pauta para diversos formatos de mídia – TV, internet, rádio, revista, jornal); rápidos (para apurar um número considerável de pautas por dia); e bem relacionados (com uma agenda de contatos numerosa e com nomes de peso). Há, porém, algo que não mudou. Assim como antes, os jornalistas de maneira geral são seres apaixonados pela profissão. O dinheiro está longe de ser a maior motivação na hora de escolhê-la, pouquíssimos tem o privilégio de receber remuneração semelhante a de um William Bonner. A realidade é bem diferente daquela do senso comum que imagina o jornalista como alguém que só se veste com ternos de grife e tem situação financeira abastada. Para se ter uma idéia, o piso salarial (FENAJ) em São Paulo para trabalho em jornais e revistas foi de R$ 1.575 em 2006/2007 na capital e de R$ 1,300 no interior; para rádio e TV foi de R$ 1.134 na capital e R$ 723 no interior em 2005/2006. Mesmo assim há vários exemplos de pessoas que se arriscaram para cobrir boas pautas, José Hamilton Ribeiro que perdeu a perna na explosão de uma mina na Guerra do Vietnã, Tim Lopes que morreu assassinado em investigação nos morros cariocas, jornalistas anônimos de diversas nacionalidades que recentemente foram cobrir a Guerra no Oriente Médio... Maior motivação nesta profissão é viver cada dia diferente do anterior, é contar histórias de vida, conhecer pessoas e sair diferente de cada conversa. É provável que em 1914 Eugênia Brandão já tivesse descoberto isso quando começou a fazer reportagens. Ela também

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usou a palavra para tentar a missão do Jornalismo que muitos consideram utopia, mas que está presente nos ideais de grande parte dos jovens que escolhem ser jornalistas: contribuir para uma sociedade melhor - o que para ela significava mudar a mentalidade capitalista e combater a exclusão das minorias sociais. Eugênia morreu antes de colher êxitos nesta luta e acabou esquecida pela sociedade. Porém, deixou herdeiros para dar continuidade aos seus ideais: o filho Sandro Moreyra que seguiu a mesma profissão (já falecido), depois as netas repórteres Sandra Moreyra e Eugênia Álvaro Moreyra e agora as bisnetas que estudam para ser jornalistas. Além deles, todos os jornalistas, sobretudo as mulheres, são herdeiros da pioneira Eugênia, cabe a eles exercer a profissão com honestidade e da melhor maneira possível.

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O CRIME da rua januzzi: o sumário de culpa do tenente paulo. A Rua. Rio de Janeiro, 11 abr. 1914.

UMA ALEGRIA que se enclausura: da vida intensa da reportagem para o mysticismo da cella - por que ella partiu? Última Hora. Rio de Janeiro, 1914. Apud COTRIM, Álvaro. Apud COTRIM, Álvaro. A primeira repórter brasileira. Revista Cultura. Brasília, nº 33, ano 9, out. - dez. 1979, p. 17-27.

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