Morador de rua, Homeless

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MARCO HOVNANIAN

TESTEMUNHO OCULAR: ESTUDO INTERDISCIPLINAR COM OS MORADORES DE RUA DA AVENIDA VINTE E TRÊS DE MAIO EM SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado Stricto Sensu da Universidade Presbiteriana

Mackenzie, para obtenção parcial do grau de Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Sob a orientação do Prof. Dr. Sérgio Bairon

São Paulo 2005

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BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. SĂŠrgio Bairon

Prof. Dr. Rubens Fernandes Junior

Prof. Dr. Wilton Azevedo

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Agradecimentos

Ao Prof. Sérgio Bairon, Profa. Leila Reinert, Profa. Petra Sanchez, Prof. Rubens Fernandes Junior, Prof. Martim Cezar Feijó, Vitor Bellon Rocha, Ana Marconato, Juliana Cardoso, Mariana D’Almeida, Janaina Rocha, Turma da Sopa. A CAPES pela bolsa concedida para pesquisa. A todos moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio, José De Jesus, Daguimar, Scariote, Valdeci, Clovis, Mohamed, João, José. .

À Ruth Dresler, André Hovnanian e a Deus.

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Pour Jojo

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Resumo

Sempre andei de bicicleta pelas avenidas de São Paulo, mas a Avenida 23 de Maio era um trajeto que raramente percorria. Em 2002, um cenário diferente, composto de moradores de rua que transitavam pela avenida, me chamou a atenção. Intrigado por ver alguns andarilhos, voltei a andar pelo trajeto, e lá estavam os mesmos moradores. Quem trafega em veículos pela Avenida 23 de Maio (230.000 veículos/dia) está sempre em movimento, excluindo visualmente a paisagem urbana. Este usuário não percebe o problema de ser excluído social na cidade de São Paulo. Essa cegueira me levou a documentar e realizar uma pesquisa de campo em toda Avenida 23 de Maio. Debaixo de viadutos, em canteiros, e taludes, moradores de rua criam seu espaço se camuflando para não serem incomodados e discriminados. A pesquisa com narrativa textual-visual apresenta os recursos que os moradores têm e as adaptações feitas para sobreviver na avenida.

Palavras-chave: Moradores de Rua, Avenida Vinte e Três de Maio, Fotografia, Antropologia Visual.

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Abstract

During my rides sit on a bicycle over the avenues of São Paulo, I’ve realized that the 23 de Maio Avenue was a course unexplored. In 2002, a different scenario, composed of homeless that moves across the avenue, surprised me. I came back and there were them. An excluded group of people surviving in one of the most crowd country’s avenues was identified. The one who moves inside the vehicles (230.000 each day) is in constant movement and cannot realize the presence and the real problem of being homeless. This took me, as a photographer, to make a social document of this parallel unaware avenue. Under the viaducts and on the stonemason, homeless people camouflage themselves. The present study exceeded the photography. The proximity with them and the field work (2003-2005) allowed me to document the homeless intimacy and the precarious resources that this avenue offers.

Keywords: Homeless, 23 de Maio Avenue, Photography, Visual Anthropology.

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Lista de Imagens

Imagem 1 Joseph Nicéphore Niépce. Paysage à Saint-Loup de Varennes, 1827. Página: 14 Imagem 2 Louis Jacques Mande Daguerre. Vue de Bry. Página: 15 Imagem 3 André Adolphe Disderi. France Uncut Sheet of (8), 1855-1870. Página: 17 Imagem 4 Eugene Atget. Clochard, boulevard Port-Royal, 1899. Página: 19 Imagem 5 Eugene Atget. Place Du Tertre, 1922. Página: 20 Imagem 6 Jacob Riis. Broome Street, New York, 1890. Página: 22 Imagem 7 Jacob Riis.New York, 1890. Página: 24 Imagem 8 Lewis W. Hine. Ellis Island. New York, 1905. Página: 25 Imagem 9 Lewis W. Hine. Italian Madonna. Ellis Island. New York 1905. Página: 26 Imagem 10 Lewis W. Hine. Breaker Boys. 1911. Página: 27 Imagem 11 Lewis W. Hine. Newsboy asleep on steps, 1912. Página: 28 Imagem 12 Paul Strand. Man, New York, 1917. Página: 30 Imagem 13 Paul Strand. Blind, New York, 1917. Página: 31 Imagem 14 Walker Evans. Farmer's kitchen, Hale County. Alabama, 1936. Página: 33 Imagem 15 Walker Evans. The Fields Family. Alabama, 1936. Página: 34 Imagem 16 Dorothea Lange. White Angel Bread Line. São Francisco, 1932. Página: 35 Imagem 17 Dorothea Lange. Farm Security Administration. Califórnia, 1936. Página: 36 Imagem 18 Dorothea Lange. Farm Security Administration. Califórnia, 1936. Página: 37 Imagem 19 Dorothea Lange. Farm Security Administration. Califórnia, 1936. Página: 37 Imagem 20 Robert Capa. D-day, 1944. Página: 38

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Imagem 21 Werner Bischof. Bihar, 1951. Página: 39 Imagem 22 Sebastião Salgado. Croácia, 1999. Página: 42 Imagem 23 Vista aérea da Avenida Vinte e Três de Maio, 1954. Página: 51 Imagem 24 Marco Hovnanian. Avenida Vinte e Três de Maio, 2004. Página: 52 Imagem 25 Marco Hovnanian. José De Jesus, 2003. Página: XX

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Sumário

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INTRODUÇÃO

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CAPÍTULO 1 A fotografia de rua como documentação do cotidiano

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CAPÍTULO 2 Cultura e Cidade: A Avenida 23 de Maio

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CAPÍTULO 3 Uma relação entre antropologia e história da cultura: Os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio

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CAPÍTULO 4 A Foto-etnografia e a Imagem na História da Cultura: A fotografia como instrumento de pesquisa

100 CADERNO DE IMAGENS 111 CONCLUSÃO 113 BIBLIOGRAFIA

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Introdução

A intenção de milhares de pessoas que usam diariamente a Avenida Vinte e Três de Maio, em São Paulo, é a de percorrê-la o mais rápido possível. Quanto menos tempo se perde na avenida, mais útil ela é. Eu usava a avenida da mesma maneira quando dirigia um carro: sempre olhava para frente, preocupado com o trânsito e com a velocidade.

Em setembro de 2002, percorri a avenida de bicicleta. O espaço aparentemente familiar tornou-se estranho: descobri que toda a avenida era ocupada por moradores de rua. Andando lentamente pelo trajeto percebi que canteiros e viadutos tinham sido transformados em moradas. Defini o percurso da Avenida Vinte e Três de Maio como área para produzir uma pesquisa interdisciplinar.

Envolvendo fotografia, antropologia e história da cultura, o objetivo deste trabalho é pesquisar quem são os moradores de rua que se apropriam do espaço público da Avenida Vinte e Três de Maio e como eles se adaptam à avenida para sobreviverem. Além disso, o trabalho justifica por que os moradores de rua

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escolhem a Avenida Vinte e Três de Maio como morada ao invés de outras avenidas.

Inicio a pesquisa falando sobre fotografia, pois o trabalho na Avenida Vinte e Três de Maio começou por causa da imagem fotográfica. É importante enfatizar que as fotografias são, como apontado por Peter Burke em seu livro Testemunha Ocular, evidências históricas. Assim, não as tratei como ilustrações de um texto escrito.

O capítulo 1 mostra a criação da fotografia e como, desde o início, ela esteve relacionada ao registro da rua. O capítulo também apresenta como os fotógrafos documentais se envolviam com os excluídos sociais e como e porque escolhiam o tema a ser fotografado. Dessa forma, nomeio e analiso os principais fotógrafos documentais que influenciaram meu trabalho na Avenida Vinte e Três de Maio.

O capítulo 2 apresenta o contexto histórico da criação da Avenida Vinte e Três de Maio. Confronta as idéias do passado com a utilização da avenida como morada e descreve como é a ocupação dos viadutos e canteiros pelos moradores de rua.

No capítulo 3 explico como foi meu envolvimento com a Avenida Vinte e Três de Maio e seus moradores e apresento conceitos que justificam o trabalho de campo realizado ali. Ao percorrer a avenida de bicicleta notei que um percurso familiar se tornou estranho – o que encontra ressonância no conceito de estranhamento definido pelo antropólogo Massimo Canevacci. Através da idéia de que ―o movimento é o cegamento‖, de Paul Virilio, defendo a idéia de que devido à 11


velocidade do tráfego de automóveis a avenida se transforma em um local invisível para motoristas e passageiros. Apresento ainda o conceito de homem ordinário, de Michel de Certeau, importante para mostrar quem é o morador de rua da Avenida Vinte e Três de Maio.

O capítulo 4 apresenta o conceito de fotoetnografia de Luiz Eduardo Achutti para justificar o registro fotográfico e o trabalho de campo realizado na Avenida Vinte e Três de Maio. Defendo a importância da linguagem imagem para produção de conhecimento sobre os moradores de rua. Assim, apresento uma narrativa fotoetnográfica sob a forma de um caderno fotográfico. No mesmo capítulo há o depoimento de um morador de rua da Avenida Vinte e Três de Maio para contrapor linguagem-texto e linguagem imagem.

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Capítulo 01 A fotografia de rua como documentação do cotidiano

Inicio essa pesquisa interdisciplinar através da análise da metodologia visual realizada por fotógrafos motivados em revelar os problemas sociais ao longo de diversas épocas e locais. Este capítulo mostra imagens da história da vida cotidiana de pessoas que sobreviveram - em decorrência da miséria-, à margem da sociedade.

O intuito é provocar reflexões no sentido de que a fotografia não tem apenas o caráter ilustrativo, mas sim de que suas qualidades ultrapassam o complemento textual. Dessa forma apresento o conceito do historiador Peter Burke de que as imagens: ―assim como textos e testemunhos orais, constituem-se numa forma importante de evidência histórica ‖1. Burke também aponta o descaso e o analfabetismo visual que acomete alguns historiadores diante do uso indevido e da incompreensão diante das imagens.

1

BURKE, Peter. Testemunha Ocular. Tradução: Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Aarão Reis Filho. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004. p.17.

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Acredito que - apresentando imagens e texto -, empreenda um esforço de sensibilizar a massa urbana sobre o problema social das populações excluídas – principalmente os moradores de rua -, e sobre a responsabilidade social de cada um, com a busca de alternativas para tentar mudar esse panorama, revendo os nossos preconceitos e reintegrando nossas maneiras de tratar e olhar essa população.

A produção de imagens - em se tratando de excluídos - não é um caminho simples; aponto ao longo da pesquisa as dificuldades, as tramas, e técnicas, para se obter imagens em um trabalho de cunho social.

Como o método inicial para a produção dessa pesquisa foi através da imagem, apresento um panorama imagético-histórico de registros sobre ruas e avenidas, incluindo os fotógrafos que documentaram problemas sociais e que nortearam minha técnica fotográfica na Avenida Vinte e Três de Maio, através de ―atos de testemunho ocular‖2 .

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BURKE, Peter. Op. Cit. p. 17.

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1.1. Os primórdios da fotografia e sua popularização

―Fazer retratos instantâneos da vida diária nas ruas é o coração do que é a fotografia de rua‖.

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(Joel Meyerowitz)

A fotografia sempre teve íntima relação com o espaço da rua. A primeira fotografia da história, produzida por Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833) em 1827 já apontava para a relação de dependência entre o fotógrafo e a descoberta e fixação do cotidiano. Direcionando seu olhar para o externo, Niépce registrou, a partir da janela de seu quarto, casas de sua vizinhança. Louis Jacques Mande Daguerre (1787-1851), outro precursor da fotografia, se interessou em capturar as avenidas de Paris.

Imagem 1 - Paysage à Saint-Loup de Varennes, 1827. 3

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MEYEROWITZ, Joel; Westerbeck, Colin. Bystander: A History of Street Photography. Bulfinch 1994. 4 Joseph Nicéphore Niépce. Fonte da imagem: http://www.niepce.com/pages/page-inv.html.

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A impossibilidade de fixar na fotografia o movimento de pessoas e objetos, fazia com que os fotógrafos se interessassem em documentar as ruas e avenidas da cidade de Paris. No lugar de corpos estáticos ou em movimento, manchas e borrões danificavam as fotografias pela precariedade dos materiais utilizados. Hoje, o movimento constante das grandes avenidas de São Paulo impede um registro fotográfico diferenciado. Corpos ficam estáticos dentro de carros em movimento, as avenidas transformam-se em cenário móvel. Os avanços tecnológicos e químicos hoje possibilitam tirar fotografias tecnicamente. No entanto, perceber e se envolver com o ambiente torna-se uma tarefa mais difícil, uma limitação visual, um borrão.

Imagem 2 - Vue de Bry. Data não disponível.

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Louis Jacques Mande Daguerre. Ver site da Sociedade Francesa de Fotografia. Fonte da imagem: www.sfp.photographie.com/. ../Portfolio7.html.

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Aquela foi uma época em que a técnica fotográfica tinha limitações. A burguesia francesa era a única classe social que detinha recursos para pagar uma foto de estúdio. De acordo com Gisele Freund (1908-2000) ―fazer tirar o seu retrato‖6 era uma maneira de ascender socialmente tornando-se visível tanto para si próprio como para seus semelhantes. Os retratos não tinham um aspecto natural. As pessoas fotografadas não deveriam sorrir; a fotografia poderia ser danificada com o movimento facial. Segundo Roland Barthes (1915-1980):

―A fotografia transformava o sujeito em objeto, e até mesmo, se é possível falar assim, em objeto de museu: para fazer os primeiros retratos (em torno de 1840), era preciso submeter o sujeito a longas poses atrás de uma vidraça em pleno sol; tornar-se objeto, isso fazia sofrer como uma operação cirúrgica; inventou-se então um aparelho, um apoio para cabeça, espécie de prótese, invisível para a objetiva, que sustentava e mantinha o corpo em sua passagem para a imobilidade...‖.7

A demanda por fotografias era grande, mas seu alto preço impedia que classes menos abastadas obtivessem um retrato. Foi diante de um mercado ávido por fotografias com preços mais acessíveis que o fotógrafo francês André Adolphe Disderi (1819-1890) patenteou em 18548 um aparelho com diversas lentes. O invento tirava quatro, seis, oito ou até doze fotografias, proporcionando diversas

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FREUND, Gisele. Fotografia e Sociedade. Tradução: Pedro Miguel Frade; 2º. Edição, Lisboa: Vega, 1995. p. 25. 7

BARTHES, Roland. A câmara Clara. Tradução: Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 26. 8 FREUND, op. cit., p. 187.

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exposições. O sistema, que foi chamado de cartes de visite9, multiplicou, popularizou e barateou a fotografia. Sobre o barateamento da fotografia produzido por Disderi, Freund aponta que: ―graças a um novo formato da sua invenção, pôde vender os seus retratos cinco vezes mais baratos‖.10 O retrato popular possibilitava a qualquer um ter sua própria fotografia: ―Disderi pedia vinte francos por doze fotografias, enquanto, até então, se tinha pago entre cinqüenta e cem francos por uma única prova‖.11

Imagem 3- France Uncut Sheet of (8) Cartes de Visite, data: 1855-1870.

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O sistema de Disderi democratizou a produção de retratos em massa. A distância social provocada pelo fato de se possuir uma fotografia foi extinta: ―frente à câmera todos são iguais, artistas, sábios, homens de estado, funcionários e 9

Cartões de visita em português. FREUND, op. cit., p. 57. 11 Ibid, p. 58. 12 André Adolphe Disderi. Fonte da imagem: http://www.boxcameras.com/disdericdvsheet.html. 10

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modestos empregados‖.13 A fotografia em forma de cartão postal também ampliou o repertório visual de populações de diversas localidades, abolindo barreiras espaciais: a fotografia ―transformou objetos em simulacros transportáveis, uma nova forma de equivalente universal‖.14 Era possível, por exemplo, ao brasileiro que nunca visitou a França conhecê-la por meio de cartões postais. O turismo estático-visual surgia de forma simples, rápida e barata.

―Existe apenas um Coliseu ou um Panteão; mas quantos milhões de potenciais negativos eles espalharam – representantes de bilhões de imagens – desde que foram erguidos. A matéria nos grandes blocos precisa sempre ser fixa e cara; a forma é barata e transportável...‖.15

Outros fotógrafos usavam as fotografias de Paris não só como objetos para serem admirados, mas como evidência histórico-cultural. No final do século XIX - em meados de 1897 - surge um dos principais fotógrafos de rua da história. Eugene Atget (1857-1927), “retratou todos os bairros de Paris de forma minuciosa durante mais de 15 anos; fotografa as ruas de Paris, os seus monumentos e as suas fontes, algumas vezes os pequenos ofícios da rua, desde o vendedor de chapéusde-chuva até ao mendigo com o seu realejo‖. 16

13

FREUND, op. cit., p. 70. CHARNEY, Leo. O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. Organização: Leo Charney, Vanessa R. Schwartz ; tradução: Regina Thompson. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 43. 15 CHARNEY, op. cit., p. 43. 16 FREUND. op. cit., p. 94. 14

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Imagem 4 - Clochard, boulevard Port-Royal. Paris, 1899.

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A arquitetura parisiense era registrada não só pelo longo tempo de exposição, mas ―porque fotos de arquitetura poderiam ser vendidas‖.

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Nenhum pintor

poderia atingir a precisão de uma fotografia, o que possibilitava aos fotógrafos vender seus registros para garantir sucesso comercial: ―arquitetos compravam como modelo, turistas como souvenires e autoridades para seus arquivos‖.19 Entre 1870 e 191020 diversos fotógrafos foram comissionados pelo escritório de preservação de monumentos históricos e tiraram aproximadamente 20.000 fotografias.21 Em 1897 Atget começou a fotografar Paris não com a visão de um turista, mas de forma sistemática, privilegiando a documentação histórica. Ele 17

Eugene Atget. Fonte da imagem: http://expositions.bnf.fr/atget/grand/8_78.htm WIEGAND, Wilfried. Eugène Atget: Paris. New york: Te neues, 1998. p.11. 19 WIEGAND, op. cit., p. 11. 20 Ibid, p. 14. 21 Ibid, p. 14. 18

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registrou, rua por rua, as portas, monumentos e fachadas dos vinte bairros da cidade.

Imagem 5 - Place Du Tertre. Paris, 1922.

22

Nessa época Atget carregava equipamentos pesados - como sua câmera de madeira, tripé e placas de vidro -, o que não o impediu de registrar o que se passava pelas ruas e com os habitantes de Paris. Enquanto fotografava na Avenida Vinte e Três de Maio, pensando na cidade e em seus trajetos tive como influência o trabalho de Atget, um dos pioneiros em documentar ruas e avenidas.

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Eugene Atget. Fonte da Imagem: http://www.paulcava.com/paulcavafinearti.html.

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1.2. A fotografia como revelação da problemática social

O interesse em documentar a problemática social dos moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio me levou a pesquisar alguns fotógrafos que buscaram expor os excluídos sociais e que revelaram os problemas através da fotografia documental em suas respectivas épocas.

―Quanto à expressão fotografia documental, passou a ser utilizada na década de 1930 nos Estados Unidos (logo após a expressão de filme documentário), para referir as cenas do cotidiano de pessoas comuns, especialmente pobres, como vistos, por exemplo, através das lentes de Jacob Riis (1849-1914), Dorothea Lange (1895- 1965) e Lewis Hine (1874-1940)‖.23

Jacob Riis - jornalista policial de Nova York - foi pioneiro em retratar os miseráveis. Interessado em fotografias para ilustrar suas matérias e publicações, Riis selecionou voluntários amadores e um profissional para tirar fotos. Problemas com seus contratados obrigaram-no a aprender a fotografar. O jornalista nunca almejou ser um grande fotógrafo ―é uma foto ruim, mas não é tão ruim quanto o lugar‖24, admitia que seu trabalho era apenas superior aos ambientes fotografados.

23 24

BURKE, op. cit., p. 26. MEYEROWITZ, op. cit., p. 242.

22


Imagem 6 - Broome Street, New York, 1890.

25

Conforme comentário de Vicki Goldberg: ―Ele queria algo mais convincente que palavras, não conseguia desenhar e não considerava desenhos uma evidência adequada. A tecnologia veio para ajudá-lo. Quando Riis leu sobre o flash de pó de magnésio em 1887, deu-se conta imediatamente que era possível fotografar com flash

dentro

de

apartamentos

escuros

onde

pobres

cidadãos

viviam

mediocremente‖.26

O trabalho de um documentarista não é eficaz somente com uma foto somente; mas com uma série de imagens. Perturbadora, a fotografia documental de Riis

25

26

Jacob Riis. Fonte da imagem: http://www.authentichistory.com/postcivilwar/riis/16.html. GOLDBERG, Vicki. Lewis W. Hine: Children at Work. New York: Prestel Publishing, 1999. p. 11.

23


expõe as mazelas da sociedade e pode contribuir, assim para melhorar as condições de existência dos fotografados.

Em 1890, Riis explorou o interior de cortiços, asilos da polícia, vilas, escolas improvisadas e bairros do subúrbio de Nova York. Em ambientes escuros, cercados de sujeira, crianças e adultos eram fotografados em seu cotidiano. O documentarista usava flash de magnésio conhecido como Blitzlichpulver para iluminar os locais. A preocupação de Riis era denunciar a sofrida condição de vida em que se encontravam vários imigrantes. O lazer inexistia nos registros fotográficos. Os locais em que crianças e adultos viviam eram pequenos porões. Para dormir, as crianças se agrupavam no chão e os adultos disputavam um espaço nos colchões. Todos tinham um aspecto de sofrido.

―Riis mostrou as pessoas que nunca tinham visto fotografias de pobreza e de multidão momentos duros e desconcertantes. Ele convidou-nos ao choque. Nós estamos tão acostumados ao pior que provavelmente não poderíamos entender o quanto eram poderosas estas imagens inovadoras. Ocasionalmente as pessoas ficavam tão perturbadas que choravam e até desmaiavam. As leis de moradia também mudaram. Riis foi imensamente eficaz‖.27

27

GOLDBERG, op. cit., p. 13.

24


Imagem 7 - New York, 1890.

28

Tentar mostrar às pessoas um ambiente não revelado. Essa é a função da fotografia documental. A fotografia, antigo instrumento de uma burguesia interessada em retratar paisagens pitorescas, adquiriu outra função com o trabalho de Riis: a de denúncia social.

A fotografia documental se profissionalizou em Nova York pelas lentes de um sociólogo. Em 190429, Lewis Wickes Hine realizou seu primeiro trabalho de documentação social. No início do século XX, os Estados Unidos atraíam a imigração estrangeira. Pessoas de toda a Europa seguiam rumo à Nova York à procura de trabalho. Em Ellis Island, famílias esperavam a liberação para

28 29

Jacob Riis. Fonte da imagem: Jacob A. Riis. Photo Poche. Paris: Editions Nathan, 1997. GOLDBERG, op. cit., p. 13.

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permanecer no país. Ao longo de cinco anos, Hine fotografou a vida desses maltratados imigrantes.

Imagem 8 - Ellis Island. New York, 1905

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Ele também usava flash em suas fotografias. Seus registros não possuíam o amadorismo de Riis. Hine fez retratos de mulheres e famílias enquanto aguardavam a legalidade.

A fotografia documental em Ellis Island adquiriu

profissionalismo com composições bem enquadradas e iluminadas.

Hine foi o pioneiro a usar a fotografia documental com técnica apurada e com propostas além da fotografia. O fotógrafo permanecia vários meses no mesmo local convivendo com os fotografados. Essa era a proposta que eu tinha desde o 30

Lewis W. Hine. Fonte da imagem: http://www.eastman.org/fm/lwhprints/htmlsrc/m197701770007_ful.html#topofimage

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início: fazer um trabalho fotográfico por meses em um mesmo local, com as pessoas que encontrava ao longo da Avenida Vinte e Três de Maio.

Imagem 9 - Italian Madonna. Ellis Island. 31 New York 1905

―A fotografia documental social estava ainda na sua infância no início do século XX, ainda que Hine tenha dado a ela uma forma canônica. Não que ele a tenha inventado, mas a prática e o conteúdo de seu trabalho influenciariam a fotografia documental americana nas décadas por vir‖.32

Em 1906, o National Child Labor Committee contratou o fotógrafo para retratar a exploração infantil em diversos estados americanos. Hine trabalhou de 1906 a

31

Lewis W. Hine. Fonte da imagem: http://www.eastman.org/fm/lwhprints/htmlsrc/m197701770125_ful.html#topofimage 32 GOLDBERG, op. cit., p. 09.

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191833, fotografando os abusos cometidos contra crianças em fábricas, campos de algodão, indústrias agrícolas, minas etc. O fotógrafo dizia para os capatazes que era vendedor de bíblias, de seguros ou fotógrafo industrial para ter acesso aos locais de trabalho e fotografar as condições em que as crianças trabalhavam.

Imagem 10 - Breaker Boys. 1912.

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Mas a denúncia de Hine ia além das imagens. O fotógrafo usava os botões de sua jaqueta para medir a altura das crianças e calcular suas idades. Sua experiência como professor facilitava as conversas com os pequenos explorados. O sociólogo fazia anotações em um pequeno caderno. Sua pesquisa ia além das fábricas e campos. Quando impossibilitado de fotografar em certos locais, Hine se dirigia às residências das crianças para fazer entrevistas com seus familiares. 33

Ibid, p. 08. Lewis W. Hine. Fonte da imagem: http://www.eastman.org/ar/chus/altest/htmlsrc/m198500810021_ful.html 34

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A intenção de Hine era provocar a opinião pública expondo tais evidências. Suas fotografias foram apresentadas em panfletos, capas de revistas e exibições coletivas. Em 191635, diante do impacto do trabalho do documentarista o congresso americano concordou em rever a situação das leis de proteção às crianças.

―Eu queria mostrar as coisas que deveriam ser corrigidas. Eu queria mostrar as coisas que deveriam ser estimadas‖. 36

Imagem 11 - Newsboy asleep on steps, 1912

35

37

GOLDBERG, op. cit., p 19. MEYEROWITZ, op. cit., p. 246. 37 Lewis Hine. Fonte da Imagem: http://www.eastman.org/ar/letchild/m197701780027MP_ful.html 36

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Jacob Riis e Lewis Hine tiveram algumas semelhanças. Ambos usavam o mesmo tipo de iluminação para o escuro: flash de magnésio Blitzlichtpulver; começaram a trabalhar na mesma época e local e eram colaboradores da Revista Charities and the Commons; Riis escrevia e Hine fotografava. Entretanto, existia uma diferença fundamental entre as intenções dos dois documentaristas:

―Enquanto que o objetivo de Riis era, primordialmente, expor as condições de vida dos pobres, o de Hine era expor as condições de trabalho. Riis foi das fábricas clandestinas para os edifícios, albergues e alojamentos da polícia, enquanto Hine ia para as minas, fábricas e engenhos. Em cada caso, a idéia era penetrar no imundo interior dos aposentos privados e da exploração da América, para revelar algo que era intencionalmente oculto dos espectadores‖.38

Hine ainda influenciou um ex-aluno da Ethical Culture School, Paul Strand (18901976), a seguir essa consciência social na fotografia, capturando o mundo à sua frente. Strand desenvolveu o conceito de straight photography.39 Este tipo de fotografia lidava com cenas e pessoas do dia-a-dia e tentava captar o modo de agir de quem transitava pelas ruas, sem a interferência da câmera.

38 39

Ibid, p. 243. Ver: Jean-Phillipe. Dictionnaire Mondial de la Photographie. Larousse, 1994. p. 610.

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Imagem 12 - Man, New York, 1917.

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Para fotografar essas pessoas do cotidiano, Strand foi para os bairros pobres com uma câmera de lente falsa. Através de um espelho, o fotógrafo mirava a lente verdadeira para a pessoa escolhida, que mal percebia que estava sendo fotografada. Uma das fotografias que me influenciou ao fazer os retratos dos moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio foi o retrato Man de Paul Strand.

Segundo Paul Strand: ―Eu subitamente tive a idéia de fazer retratos de pessoas da mesma forma que elas pareciam nos parques em Nova York - sentadas, sem posar-, e sem consciência de serem fotografadas. Pessoas envolvidas no processo da vida cotidiana‖.41

40 41

Paul Strand. Fonte da imagem: http://www.getty.edu/art/collections/objects/o61917.html. Data de acesso: 12/12/2004.

31


Susan Sontag (1933-2004) explica que os fotógrafos se interessam e buscam rostos reais como o de pobres, loucos etc., pois essas pessoas anônimas encontradas nas ruas são indiferentes à ação agressiva da câmera fotográfica. A autora destaca ―entre os primeiros resultados dessa busca, realizada através de grandes planos, contam-se dois retratos de Strand de vitimados urbanos, Blind Woman e Man, obtidos em 1916‖.42

Imagem 13 - Blind, New York, 1917.

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Na década de 30, o impacto das fotografias de Lewis Hine também influenciou o líder da maior liga de fotógrafos documentais sociais da história: Roy Stryker (1893-1975). 42

SONTAG, Susan. Ensaios sobre Fotografia. Tradução: José Afonso Furtado, 1º edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1986. p. 97. 43 Paul Strand. Fonte da imagem:

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Em 1933, durante a grande Depressão americana, o presidente Franklin D. Roosevelt (1882-1945) propôs, com a aprovação do congresso, projetos de lei para lidar com o problema do desemprego. Este plano de leis foi chamado de New Deal.44 Em 1935, o Farm Security Administration (FSA) foi criado como um dos programas de assistência do New Deal. A intervenção governamental poderia fornecer a cura para as enfermidades na área agrícola e modernizá-la; mas como mostrar para o resto da América que a população rural de seu país enfrentava dificuldades para sobreviver?

A solução foi encontrada por Roy Stryker. Ele selecionou fotógrafos e formou o grupo Farm Security Administration (FSA). O FSA foi uma operação documental para levantar informações e produzir imagens que motivassem a reforma econômica e social. A sociedade norte-americana mudava de uma cultura de leitura para uma cultura visual. As recém-lançadas revistas ilustradas Life e Look alteravam a forma de receber informações.

―Para os fotógrafos não existe, em última instância nenhuma diferença, nenhum esforço significativo, entre o esforço de embelezar o mundo e o esforço contrário de arrancar a máscara‖. 45

O FSA mostrava através de fotografias como o morador do campo vivia, trabalhava, se alimentava etc. Revelada a face da pobreza, o grupo tentou 44

Para mais informações sobre o New Deal Ver: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u1549.shtml. Data de acesso: 22/06/05. 45 SONTAG, op. cit., p. 97.

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combatê-la e lutou para ajudar pequenos fazendeiros a reestruturar as terras e as comunidades devastadas pela grande Depressão. Neste grupo, destaca-se o trabalho dos fotógrafos Walker Evans e Dorothea Lange. Walker Evans (19031975) começou a trabalhar para o FSA em 1935, quando já era um fotógrafo experiente. Os primeiros ensaios foram no sudoeste dos Estados Unidos. A parceria entre o fotógrafo e o Farm Security Administration foi rompida por diferenças com o líder Roy Stryker. O fotógrafo fazia questão de manter a autonomia em seu trabalho, escapando do padrão de propaganda política que o governo impunha e fugindo do modelo de base documental imposto por Stryker. Fotografando objetos do dia-a-dia como placas e fachadas de estabelecimentos comerciais, Evans mostrava a pobreza presente no campo. As moradias dos camponeses muitas vezes eram fotografadas sem revelar seus habitantes.

Imagem 14 - Farmer's kitchen, Hale 46 County Alabama, 1936.

46

Walker Evans. Fonte da imagem:

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Mas Evans foi além da fotografia. O editor Eric Hodgins (1899-1971), da revista Fortune, queria oferecer para seus leitores uma documentação precisa da pobreza no sul dos Estados Unidos. James Agee (1909-1955), que escrevia para a revista desde 1932, concordou em descrever a situação e convidou Evans para fotografar. Evans e Agee produziram o livro Let Us Now Praise Famous Men, que consistia em um estudo antropológico e fotográfico sobre as condições de vida do fazendeiro americano depois da Depressão de 1930. A fotografia foi utilizada como instrumento de pesquisa complementando os textos. O trabalho foi enriquecido com as fotografias que Evans havia produzido para o FSA.

Algumas de suas mais célebres fotografias foram feitas no estado do Alabama. Em uma área primitiva e abandonada chamada Hale County, Agee e Evans passaram meses compartilhando da vida miserável na qual viviam seus moradores. As fotografias revelavam a realidade crua da pobreza e como seus moradores passivamente a aceitavam.

Imagem 15 - The Fields Family. Alabama, 1936. 47

Walker Evans. Fonte da imagem:

35

47


Outro membro do grupo FSA que teve profunda influência na história da fotografia documental foi Dorothea Lange. Em seu trabalho, ela preocupava-se com as pessoas pobres. Um dos seus primeiros ensaios fotografava moradores de rua de São Francisco. Chocada com o número de miseráveis na época da Depressão americana, Lange quis chamar a atenção da opinião pública.

Em suas fotografias, ela mostrou as conseqüências do êxodo de famílias de agricultores que deixavam suas terras e migravam para o leste dos Estados Unidos. Em busca de trabalho, imigrantes e suas famílias viviam miseravelmente. As fotografias produzidas para o FSA mostravam as precárias habitações dos imigrantes e a vida cotidiana de crianças e de adultos trabalhando.

Imagem 16 - White Angel Bread Line. 48 São Francisco, 1932.

48

Dorothea Lange. Fonte da imagem:

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A fotografia mais famosa e difundida pela FSA foi produzida por Dorothea Lange em 1936. A foto Migrant Mother mostra uma mulher cercada por seus três filhos. As crianças se apóiam nos braços da mãe procurando proteção e escondendo seus rostos da câmera. O retrato aponta as dificuldades da época: a mãe com vários filhos, morando num espaço improvisado e precário, com a expressão sofrida. Roy Stryker comenta a fotografia:

―Quando Dorothea tirou aquela foto, foi definitiva. Ela nunca ultrapassou aquilo. Para mim, foi a fotografia do Farm Security. Ela tem todo o sofrimento da humanidade dentro dela, e toda a perseverança também. Uma repressão de emoções e uma estranha coragem‖.49

Imagem 17 - Migrant Mother. Califórnia, 1936.

49

50

Citação obtida no site: http://xroads.virginia.edu/~UG97/fsa/lang.htm . Data de acesso: 09/09/2004. 50 Dorothea Lange. Farm Security Administration. Seqüência de fotografias para chegar no retrato Migrant Mother.

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Imagem 18 - Migrant Mother. Califórnia, 1936.

51

Imagem 19 - Migrant Mother. Califórnia, 1936..

52

A fotografia documental acompanhava os problemas sociais de cada época de perto. Grupos de fotógrafos começaram a se organizar para que a documentação 51 52

Dorothea Lange. Farm Security Administration. Dorothea Lange. Califórnia, 1936.

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fosse eficaz. Em 1947, dois anos após o término da Segunda Guerra Mundial, quatro fotógrafos reuniram-se para formar uma cooperativa de imagens. Henri Cartier-Bresson (1908-2004), Robert Capa (1913-1954), George Rodger (19081955) e David Seymour (1911-1956) criaram a Magnum Photos. Os fotógrafos dividiram o mundo em áreas de cobertura e o exploraram. Os grandes acontecimentos históricos da época deveriam ser documentados com fotografias. A miséria, a pobreza, a guerra eram temas largamente explorados.53

Imagem 20 - D-Day,1944.

54

De acordo com Boris Kossoy: ―O mundo tornou-se de certa forma familiar após o advento da fotografia; o homem passou a ter um conhecimento mais preciso e amplo de outras realidades que lhe eram, até aquele momento, transmitidas unicamente pela tradição escrita, verbal e pictórica‖.55

53

Ver: BOOT, Chris. Magnum Stories. Phaidon, 2004. . Robert Capa, 55 KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2º. edição revisada. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 54

p. 26.

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Werner Bischof (1916-1954) foi um dos primeiros associados da cooperativa a ter um conhecimento preciso sobre outras culturas. Um dos seus mais famosos ensaios foi a documentação da situação de fome na qual se encontrava a região de Bihar na Índia56 . As chocantes fotografias mostravam o sofrimento de um povo faminto. Mães carregando seus filhos desnutridos e pedindo por esmolas foram registradas pelas lentes de Bischof. Revelava-se para o mundo inteiro, através de fotografias, a pobreza nos países subdesenvolvidos. O fotógrafo suíço, que trabalhava em estúdio, mudou seu tipo de trabalho depois de viajar pela Europa devastada pela guerra.

Imagem 21 - Índia, Bihar, 1951.

57

A fotografia derrubou fronteiras. A Magnum Photos distribuía suas fotos para as principais revistas do mundo. O longo tempo de permanência dos fotógrafos em

56 57

Ver: BOOT, Chris. Magnum Stories. Phaidon , 2004. p. 43. Werner Bischof. Área de famintos devido às enchentes.

40


regiões remotas permitia uma reportagem mais detalhada e investigativa de povos e países desconhecidos.

―Era o início de um novo método de aprendizado do real, em função da acessibilidade do homem dos diferentes extratos sociais à informação visual dos hábitos e fatos de povos distantes‖.58

A cooperativa era uma produtora e distribuidora de fotografias que estudava a sociedade. As fotografias da agência Magnum iam além das imagens, elas transmitiam também uma mensagem crítica contra a guerra, a pobreza e as dificuldades que a sociedade enfrentava.

Sobre a mensagem fotográfica, Roland Barthes afirma que: ―a emissão e a recepção daquela concernem ambas a uma sociologia: trata-se de estudar grupos humanos, de lhes definir motivações, atitudes, e de tentar ligar o comportamento deles à sociedade total de que fazem parte‖.59

O brasileiro Sebastião Salgado é um dos fotógrafos que mais se preocupam na atualidade em estudar grupos humanos e seus problemas sociais. Economista por formação Sebastião Salgado foi para Paris no período entre 1969 e 197160 para conseguir o título de doutor. Trabalhando na época para Organização

58

KOSSOY, op. cit., p. 26. LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Cultura de Massa. 6ª. Edição revisada. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 77. 60 http://www.studium.iar.unicamp.br/19/01.html. Data de acesso: 19/05/2005. 59

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Internacional do Café em Londres, o até então economista ―começou a tirar fotos em numerosas viagens que fez a África, enquanto pesquisava a diversificação de plantações de arrubiácea‖.61 Apaixonado pela fotografia, largou seu emprego e passou pelas agências Sigma, Gamma e Magnum. Após sua saída da agência Magnum, Salgado fundou a Amazonas Images e iniciou seus trabalhos autorais documentais. A sociedade excluída e alguns de seus problemas: êxodo, trabalho, migração, doenças, fome são mostradas em suas fotografias.

O primeiro trabalho fotográfico de longo período de Salgado foi em 1977, com a publicação do livro Outras Américas.62 No período de 1986 a 1992, focou suas lentes para o trabalho humano em todo o mundo com o livro Trabalhadores.63

Viajando pelo mundo, Salgado explora visualmente todas as cidades que visita. Na tentativa de explicar por meio de fotografias os problemas sociais e econômicos que acometem a humanidade, o fotógrafo registra crianças, famílias e o ambiente em que essas pessoas sobrevivem.

61

http://www.studium.iar.unicamp.br/19/01.html. Data de acesso: 19/05/2005. Outras Américas. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. 63 Trabalhadores. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. 62

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Imagem 22 – Croácia, 2002.

64

O trabalho de Sebastião Salgado foi referência importante em minha pesquisa na Avenida Vinte e Três de Maio. Esta influência se manifesta pela escolha da película preto e branco, pelo interesse no homem excluído da sociedade contemporânea e por se tratar de um trabalho documental de longo período.

Neste sentido, procurei apresentar no presente capítulo exemplos de fotógrafos que documentaram problemas sociais, levando em conta a relação entre História da Cultura e a imagem como evidência histórica defendida por Peter Burke no livro Testemunha Ocular.65

64

Sebastião Salgado. Êxodos, São Paulo, Companhia da Letras, 2002. Ver: BURKE, Peter. Testemunha Ocular. Tradução: Vera Maria Xavier dos Santos; revisão técnica Aarão Reis Filho. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2004 65

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Capítulo 02 Cultura e Cidade: a Avenida Vinte e Três de Maio

Nascida no século XVI, o que São Paulo mais fez ao longo de seus anos foi crescer. E como cresceu. Cresceu para os lados, para cima, até para baixo, e se tornou uma grande metrópole. Fabuloso progresso. Mas desajeitada, São Paulo esqueceu-se da ordem. E adoeceu. Aglomerações urbanas espalharam-se por bairros afastados do centro da cidade. O fluxo de pessoas e veículos pelas ruas aumentou e os problemas da desordem urbana, do desemprego e da falta de moradia agravaram-se.

O espaço urbano torna-se pequeno para tanta gente. O dinamismo da cidade grande impõe aos seus cidadãos a luta diária contra o tempo. Obrigados a transitar em ruas e avenidas, essas aglomerações disputam um espaço limitado percorrendo longos trajetos. O caminho nem sempre é ágil. São Paulo oferece vias de locomoção que não suportam o enorme número de carros, ônibus e caminhões. A cidade pára; corre, o tempo.

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Notória pelo maciço tráfego urbano e por congestionamentos intermináveis, a metrópole tem sérios problemas nas suas avenidas. O número excessivo de carros nas ruas, o deficiente sistema de transporte público, chuvas e enchentes, parte da frota de veículos antigos e mal conversados, e as intermináveis obras públicas prejudicam o andamento do trânsito de forma alarmante.

O cenário que envolve as grandes avenidas acaba sendo similar apesar das diferenças entre os bairros que as circundam. Levando em conta que a cidade e seus espaços podem ser transformados e recriados de acordo com condições de grupos sociais e estilos de vida, nota-se que as grandes avenidas são sítios abandonados. Locais que abrigavam fábricas e prédios - sinal do progresso econômico na década de 50 - deram lugar a edifícios e empresas desocupados.

A cidade “indiferenciada” torna-se invisível. É dentro desse cenário de invisibilidade que a pessoa em situação de rua sobrevive.

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2.1. A tendência da criação de Avenidas em São Paulo: O caso da Avenida Vinte e Três de Maio

Neste capítulo apresento dados históricos sobre a criação das avenidas para entender como a Avenida Vinte e Três de Maio tornou-se um espaço ocupado por moradores de rua. Dessa maneira, é possível entender como os moradores de rua se adaptaram ao projeto urbano das grandes avenidas idealizado por Prestes Maia.

Ao traçar as avenidas de São Paulo em 1930, os urbanistas buscavam atender ao movimento de pedestres e ao tráfego viário de forma harmoniosa. As avenidas funcionariam como artérias, dividindo a cidade e escoando o fluxo de pedestres e veículos da área central para as mais distantes.

As principais avenidas de São Paulo são as Marginais Tietê e Pinheiros e a Avenida Vinte e Três de Maio. Escolhidas pela maioria dos paulistanos por permitir limites de velocidade de 80 a 90 km/h, ligam todas as zonas de São Paulo direta ou indiretamente ao Centro. Diferenciam-se das demais por possuírem viadutos no lugar de cruzamentos e por excluírem a presença de semáforos. Mas são somente estas as vantagens. A paisagem circundante alcança, cada vez mais, a

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categoria de decadente. Os jardins perdem sua beleza, prédios abandonados tornam-se numerosos e os usuários da avenida mal se dão conta dessa transformação: suas reflexões direcionam-se exclusivamente para o interior dos veículos. A ansiedade de chegar a tempo no trabalho e de retornar o quanto antes para casa bloqueiam o olhar. O que acontece no ambiente externo é ofuscado pelas preocupações do homem. Mais uma vez o tempo sai vitorioso.

―A linguagem cotidiana fornece aqui uma descrição de extrema precisão: ‗pular da cama‘, ‗engolir café‘, ‗pegar o trem‘, ‗mergulhar no metrô‘, ‗chegar em cima da hora‘... Por esses estereótipos bem vemos o que quer dizer ‗ir para o trabalho‘: entrar em uma cidade indiferenciada, afundar em um magma de sinais inertes como em um lodaçal, sendo somente guiado pelo imperativo da hora certa (ou do atraso). Somente importa a sucessão de ações que sejam as mais unívocas possíveis em vista de melhorar a pertinência da relação espaço/tempo‖.66

O cotidiano do paulistano torna-se repetitivo. Pobres e ricos arrastam-se pelo asfalto percorrendo os mesmos caminhos. Os cidadãos, em fila, gastam minutos ou horas nas avenidas de São Paulo. Muito longe do planejado, as avenidas não proporcionam um ritmo mais rápido. O que se verifica é o aprisionamento, o tédio e a perda de tempo. Motoristas e passageiros não percebem a paisagem das grandes avenidas. O entorno das grandes avenidas torna-se invisível.

66

De CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano 2. Morar, Cozinhar. 2ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Vozes,1996. p. 44.

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Diante deste cenário é necessário voltar atrás, até chegar à criação da Avenida Vinte e Três de Maio. Assim, pode-se confrontar passado e presente, para entender a atual utilização da avenida.

A Avenida Vinte e Três de Maio tem sua criação diretamente relacionada com a política de gestão adotada na década de 30 pela Prefeitura de São Paulo, com o objetivo de construir avenidas que possibilitassem maiores velocidades para chegar e sair do Centro da Cidade.

O engenheiro Francisco Prestes Maia (1898-1965), prefeito da cidade no período de 1939 a 194567, anunciou em 1930 um projeto para resolver os problemas urbanos: o Plano de Avenidas, que procurava organizar a construção e a distribuição das avenidas pela cidade. Em 1940, o projeto foi colocado em prática. São Paulo passava por um momento de transformação; a população crescia e o número de automóveis expandia-se rapidamente. A citação abaixo, baseada nas previsões de Prestes Maia, revela este panorama:

―As previsões que havia feito sobre o aumento do uso do automóvel se confirmaram largamente. Durante o ano de 1930 o Brasil inteiro havia importado cerca de 2.000 automóveis. Em 1936 foram mais de 20.000, boa parte seguindo para a cidade de São Paulo, a qual já detinha a 2ª maior frota do país, logo após o Rio de Janeiro. Em meados de 1937 havia mais de 25.000 veículos trafegando na cidade, sendo 18.000 automóveis e 7.000 caminhões e ônibus. A população da 67

http://sampa3.prodam.sp.gov.br/smt/histramp.html. Data de acesso: 20/06/2005.

48


cidade havia crescido de 900.000 em 1930 para 1.200.000 em 1937, o que representou um aumento de mais de 30%‖.68

O desejo pela criação das avenidas baseou-se no tipo de paisagem urbana que emergia no Centro de São Paulo. O momento era propício, como Prestes Maia salienta: ―estamos, sob todos pontos de vista em um momento decisivo da nossa existencia urbana. No centro os arranha-ceus se multiplicam; no taboleiro alem do Anhagabahú os primeiros grandes predios começam a emergir no meio do casario terreo...‖.69 Com a criação das avenidas na região central a circulação de carros aumentava, o que facilitava o trânsito e a procura pelo comércio no Centro da cidade.

―Prestes Maia era, por princípio, um defensor das grandes aglomerações urbanas, e via o urbanismo como um modo de torná-las mais racionais e eficientes. A base de suas propostas para atingir esse fim era a boa estruturação do sistema viário, aos quais todas as outras questões urbanas se articulariam e se subordinariam‖.70

É nesse contexto de urbanização e de crescimento do comércio e do fluxo no Centro da cidade que a Avenida Vinte e Três de Maio foi concebida. O objetivo era construir avenidas nos vales dos rios, tendo sido escolhido o Vale de Itororó, que

68

http://www.terra.com.br/eleicoes2000/historia_sp/hist_pmaia.htm. Data de acesso: 01/09/2004. MAIA, Prestes Estudo de um plano de avenidas para a cidade de São Paulo. São Paulo: 1930. p. 07. Nas citações usadas do livro de Prestes Maia na pesquisa, optei em manter a escrita original da época. 70 TOLEDO, Benedito L. De. Prestes Maia e As Origens do Urbanismo Moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996. Introdução. 69

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deu o primeiro nome da avenida. As obras tiveram início em 1937, durante a administração do 17º. Prefeito de São Paulo, Fabio Prado (1887-1963), que ocupou o cargo de 1934 a 1938.71

O corredor viário, arborizado em todo seu percurso e com características de uma via expressa, obteve êxito. Segundo Porto: “uma lei aprovou a idéia de ser dado a essa avenida o caráter de ‗avenida parque‘ oferecendo o traçado menos sinuoso e mais adequado às altas velocidades‖.72

O aspecto de avenida parque é acentuado pelo canteiro central gramado e arborizado: ―o refugio é uma necessidade de protecção ao pedestre, delimita os dois sentidos de trafego e offerece uma situação aos cadelabros, postes, etc...‖.73

A avenida foi projetada para comportar seu próprio tráfego e o fluxo diametral que serve aos bairros vizinhos - porque ―frequentemente valles ou encostas os separam e impellem os vehiculos até o centro, em busca da radial menos difficultosa...‖.74 O relevo de planalto no Vale do Itororó possibilitou a construção de viadutos que servem de ligação de um bairro ao outro sem interferir no andamento do trânsito: “lançarmos viadutos lateralmente edificados, que não prejudiquem a continuidade das grandes arterias‖.75 A Avenida Vinte e Três de

71

http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2004/jusp707/eventos.htm. Data de acesso:15/04/2005. PORTO, Antonio Rodrigues. História da Cidade de São Paulo Através de suas Ruas. São Paulo: Cathargo Editorial, 1996. p. 22. 73 MAIA. op. cit., p. 59. 74 Ibid, p. 34. 75 Ibid, p. 54. 72

50


Maio foi projetada sem cruzamentos que, segundo Prestes Maia são “... o maior estorvo á circulação...‖.76

O nome Vinte e Três de Maio foi oficializado na primeira administração do prefeito Jânio Quadros (1917-1992), na década de 50. O nome homenageia Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo, estudantes assassinados no dia 23 de Maio de 1932, em um comício na Praça da República, durante a Revolução Constitucionalista.77 No fim da avenida foi criado um mausoléu subterrâneo em homenagem aos mortos da Revolução de 1932, incluindo os corpos de MMDC.78 O monumento em forma de obelisco situa-se no centro de uma praça, em frente ao atual Parque do Ibirapuera.

Somente em 1969, na gestão do prefeito Brigadeiro José Vicente Faria Lima (1909-1969), é que a avenida foi entregue à população. Hoje, ela é uma das principais avenidas de São Paulo, ligação entre o Centro e a zona sul, e apresenta-se, ainda hoje, bastante semelhante ao modelo proposto por Prestes Maia em 1930:

“Quanto ás condições do caminho; os automóveis, porém, preferem alongar seus percursos a fim de aproveitar ruas onde possam desenvolver maior velocidade. O

76

Ibid, p. 88. Para consulta mais detalhada sobre a história do período ver site: www.estadao.com.br/450/historia2.htm. Data de acesso:15/04/2005. 78 Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo. 77

51


perímetro de irradiação com suas rampas suaves, secções amplas, bom calçamento e iluminação attrahira certamente um trafego intenso‖.79

Imagem 23 – Vista aérea da Avenida Vinte e Três de Maio

80

Neste início de século, um mastro com a bandeira do Brasil anuncia o começo da Avenida Vinte e Três de Maio. O terminal de ônibus Bandeira, ao lado do Vale do Anhangabaú, aponta a importância da via expressa. Milhares de pessoas que residem em bairros periféricos utilizam-se das linhas de ônibus que percorrem toda a avenida. Boa parte dos usuários do transporte coletivo toma café da manhã em barracas improvisadas, junto aos pontos de ônibus. Alimentados, seguem rumo ao trabalho pelas escadas que sobem da avenida para o centro da cidade.

79

MAIA, op. cit., p. 49. 1954. Imagem obtida no site: www.igc.sp.gov.br/Calendario/Fevereiro%20h.htm. Data de acesso: 10/07/2004. 80

52


A população mais abastada utiliza carros próprios. Diariamente, mais de 232.000 veículos81 passam na avenida - são cinco faixas de circulação no sentido CentroBairro e quatro faixas no sentido oposto -, em um total de 4,8 km de extensão. Os horários de pico são das 7 às 10 horas e das 17 às 20 horas. Além de ônibus circulares, também transitam os fretados e caminhões em horários restritos no período noturno.

Imagem 24 – Avenida 23 de Maio – Horário do Rush

81

82

De acordo com o relatório da Prefeitura do Município de São Paulo. Departamento do Sistema Viário (DSV). Avenida Vinte e Três de Maio, Volumes de Tráfego, novembro de 2000. Número de veículos medido no período das 7 às 20 horas de segunda a sexta-feira. 82

Foto: Marco Hovnanian, 2004.

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O tempo para atravessar toda a avenida é variável. Para completar o trajeto de carro mantendo a velocidade limite permitida de 80 km/h, gasta-se em torno de 4 minutos. No horário de rush, tanto pela manhã como à tarde, o motorista leva em média 22 minutos.

A avenida faz a ligação entre as zonas Norte e Sul da cidade. Neste trajeto, passa pelos bairros da Liberdade, Bela Vista, Vergueiro, Paraíso, Vila Mariana, Ibirapuera, Vila Clementino, Itaim, Moema e Aeroporto. Depois do Túnel Anhangabaú a conexão com a zona norte é feita pela Avenida Cruzeira do Sul, que dá acesso ao Terminal Rodoviário Tietê. No sentido inverso, chega-se aos bairros mais afastados da zona sul através da Avenida Rubem Berta, que leva ao Aeroporto de Congonhas.

Todo o percurso é atravessado por viadutos: Dona Paulina, Brigadeiro Luiz Antonio, Maria Paula, Costa e Silva, Condessa de São Joaquim, Pedroso, Beneficência Portuguesa, Paraíso, Costa Aguiar, Santa Generosa e Tutóia. O viaduto Pedroso comporta um albergue para 250 moradores de rua.83

Próximo ao Vale do Anhangabaú, diversos prédios encontram-se abandonados. Estes edifícios são ocupados irregularmente por famílias desabrigadas. Na região da Bela Vista encontram-se casas e pequenos prédios transformados em cortiços. Existem poucos estabelecimentos comerciais na via. No início da avenida, dois estacionamentos, no meio, o Hospital Beneficência Portuguesa e, no final do

83

Dado obtido em conversa com funcionário José Luís do albergue Pedroso em 12/05/2004.

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trajeto, a empresa de computadores IBM, e alguns pequenos escritórios comerciais. É difícil encontrar casas e prédios residenciais no percurso. Talvez pelo barulho das buzinas e sirenes, poucas pessoas moram nestes locais. A poluição visual é tão intensa quanto à do ar. Outdoors, backlights, frontlights ocupam todo percurso da avenida.

A Avenida Vinte e Três de Maio é arborizada em quase toda sua extensão, seguindo a tendência dos bulevares parisienses. Um canteiro central e dois canteiros laterais em forma de talude cobrem quase toda a extensão da avenida. O aspecto de avenida parque com canteiros largos e arborizados idealizado por Prestes Maia, assume um outro papel: o de espaço para ocupação e moradia para quem vive nas ruas.

55


2.2. O espaço público como forma de habitação

Apesar deste histórico de planejamento urbano preocupado em atender aos veículos nas avenidas em São Paulo, o caso da Avenida Vinte e Três de Maio expressa a possibilidade de seus canteiros, árvores e viadutos servirem de espaço para morada irregular de moradores de rua.

De acordo com Lúcia Bógus ―a ocupação de logradouros públicos é entendida como uma forma de ‗privatização do espaço‘, definindo seu uso como de sobrevivência e não de circulação ou lazer‖.84

Muitos que iniciam a vida na rua são de outros estados e buscam na metrópole uma alternativa para viver com mais recursos. A porta de entrada para os migrantes em São Paulo é o Terminal Rodoviário do Tietê. O cenário é obscuro e confuso para aqueles que nunca viveram em uma cidade grande: trens, escadas rolantes e milhares de pessoas se locomovendo desorientam e assustam os recém-chegados que desembarcam em busca de uma oportunidade de emprego. A falta de um lugar para morar, o desemprego e o alto custo de vida da cidade

84

BÓGUS, Lúcia M. M. e WANDERLEY, Luiz Eduardo W. (orgs.). A Luta Pela Cidade em São Paulo. São Paulo: Cortez Editora, 1992. p. 142.

56


grande são dificuldades encontradas por alguns destes migrantes, que acabam ficando na rua.

Pela proximidade do centro da cidade e por ser a continuação da Avenida Cruzeiro do Sul, via de acesso à rodoviária, a Avenida Vinte e Três de Maio é o principal eixo de ligação entre o Terminal Rodoviário, o migrante e o Centro de São Paulo. Em algumas conversas com moradores da avenida percebi que vários sequer conseguiram um emprego na cidade. Saindo da rodoviária seguiram em direção à Avenida Vinte e Três de Maio. Não conhecendo a cidade de São Paulo, muitos fixaram moradia na própria avenida pela falta de melhor opção.

A partir do momento que a rua se transforma em local de habitação definitiva, o indivíduo tenta buscar alternativas de onde pernoitar. A Avenida Vinte e Três de Maio, como as Marginais Tietê e Pinheiros, tem um tráfego de moradores de rua intenso. Poucas residências e estabelecimentos comerciais proporcionam liberdade de circulação entre os moradores de rua, favorecendo o uso de drogas a céu aberto e a não discriminação dos moradores de rua pela sociedade que trafega de carro por essas avenidas.

―As diferentes posições no espaço social correspondem a estilos de vida, sistemas de desvios diferenciais que são a re-tradução simbólica de diferenças objetivamente inscritas nas condições de existência (aquilo que chamamos de estilo de vida) porque são o produto do mesmo operador prático, o habitus,

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sistema de disposições duráveis e transponíveis que exprime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades objetivas das quais ele é o produto‖.85

A Avenida Vinte e Três de Maio se encaixa no espaço social descrito por Pierre Bourdieu ao abrigar um grupo com estilo de vida próprio que se adapta às regras e recursos que a rua impõe e ocupa lugares disponíveis para manter sua existência. O operador prático, nesse caso, é a exclusão social e a não reintegração à sociedade, que tornam o grupo distinto perante outras camadas sociais.

Em pesquisa realizada por Vieira no ano de 199286 com moradores de rua na cidade de São Paulo, observou-se que os logradouros eram a primeira opção para ocupação do espaço público como moradia:

―Ruas e avenidas são os lugares utilizados preferencialmente pela população como dormitório, na maioria das vezes junto a prédios comerciais, tendo como abrigo as marquises‖.87

O corredor viário serve de passarela para moradores de rua da avenida e da região centro-sul que moram, trabalham e transitam na área central. A interligação 85

BOURDIEU, Pierre. Coleção Grandes Cientistas Sociais. ORTIZ, Renato (org.), 2ª. Edição. São Paulo: Editora Ática, 1994. p. 83. 86

Ver: VIEIRA, Maria Antonieta da Costa, BEZERRA, Eneida M. R. ROSA, Cleisa M. M. População de Rua: quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992. 87 VIEIRA, op. cit., p. 54.

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entre a Avenida Vinte e Três de Maio e o Centro da cidade é feita pelas escadas e acessos dos viadutos Tutóia, Condessa de São Joaquim, Pedroso, Beneficência Portuguesa, Costa e Silva e Maria Paula.

Não é de se estranhar que o tráfego de moradores na Avenida Vinte e Três de Maio seja movimentado. Ela nasce na Praça da Bandeira, ao lado do Vale do Anhangabaú, onde há grande concentração de moradores de rua. Pequenas praças servem para o descanso e para tomar cachaça. O Centro é o local da cidade onde existe a maior concentração de moradores de rua. Segundo Marisa Borin tamanha aglomeração deve-se a:

―Condições de sobrevivência através de trabalhos informais, temporários e bicos, além da grande oferta de alimentação gratuita distribuída por entidades filantrópicas, religiosas e por restaurantes, lanchonetes e bares. Outra razão se deve ao fato de que o centro da cidade vem sofrendo uma degradação progressiva, em função do processo de transformação da estrutura produtiva da cidade, que promoveu alterações no mercado de trabalho com conseqüências na apropriação do espaço urbano‖.88

88

BORIN, Marisa do Espírito Santo. Desigualdades e Rupturas Sociais na Metrópole: Os Moradores de Rua em São Paulo. Doutorado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica. Orientadora: Lucia Maria Machado Bógus, 2003. p. 85.

59


Os canteiros da avenida, que começam na altura da Praça da Sé, foram projetados para proteger os pedestres que circulariam nas calçadas da avenida89, mas quem se protege nestes canteiros é o morador de rua. Os locais mais movimentados para descanso e moradia na Avenida Vinte e Três de Maio são os canteiros arborizados. A avenida tem um largo canteiro central e dois canteiros laterais a partir do Viaduto Maria Paula. O canteiro central se estende até o Centro Cultural São Paulo; os laterais terminam próximo ao Viaduto Tutóia.

A ocupação do espaço pelos moradores de rua é feita de diversas formas nos três canteiros. Na altura do Viaduto Maria Paula grande parte dos moradores de rua ficam o dia inteiro dormindo na grama ou sob as árvores dos canteiros laterais. O lugar atrai os excluídos, por um lado da avenida obtém-se acesso à Praça da República e ao Vale do Anhangabaú, e pelo outro lado à Praça da Sé e ao bairro da Liberdade.

Nos trechos dos canteiros debaixo dos viadutos a apropriação é diferente. Como os cruzamentos eram estorvos à circulação de carros90, a criação dos viadutos foi a solução encontrada por Prestes Maia para unir os bairros separados pelo Vale do Itororó. Entretanto, esses viadutos tornam-se locais ideais para a criação de moradias fixas entre moradores de rua. O espaço nos canteiros centrais debaixo de um viaduto é compartilhado por vários moradores. Cada um tem seu próprio colchão ou papelão demarcando seu próprio espaço embaixo da marquise. A

89 90

Ver subitem 2.1. Ver subitem 2.1.

60


cobertura os protege das chuvas e, quando é frio intenso, os moradores acendem fogueiras.

Outra característica dos viadutos é que eles podem camuflar os moradores de rua com a paisagem urbana, fazendo com que estes não sejam percebidos pela população que trafega na avenida. Apesar de existirem grades nos canteiros centrais colocadas pela prefeitura para coibir a ocupação desses locais, a apropriação é efetiva quando os moradores serram ou torcem as barras para facilitar a entrada e saída. Segundo depoimento de residentes o local é infestado de ratos que circulam de madrugada e usuários de crack que usam o local para consumir a droga e se esconder da policia.

Nos canteiros laterais encontram-se moradias feitas com sacos plásticos, tecidos, madeira e lonas, entre outros materiais. Várias casas de madeira foram levantadas no alto dos taludes da via expressa por pessoas que moravam embaixo do viaduto e foram despejadas pela Prefeitura. Até a copa de uma árvore chegou a ser habitada. O acesso para as casas é feito pelo próprio canteiro ou pela Rua Vergueiro, que é paralela a Avenida Vinte e Três de Maio.

―O abrigo, nesses casos, seria a própria cobertura do viaduto, buracos escavados nas suas laterais em espaços aterrados pelo poder público, ou abrigos de madeira edificados sob estes viadutos. Nesses pontos de pernoite, particularmente, verifica-se a tentativa de reprodução de casa, da moradia, enquanto espaço privado de habitação. Tal fato fica demonstrado pela existência de alguns 61


utensílios de cozinha, móveis, caixas e caixotes improvisando mesas e armários. É comum a presença de carroças junto à moradia‖. 91

A apropriação do espaço público não é feita apenas em espaços abertos. No Viaduto Condessa de São Joaquim existia um pequeno albergue entre o canteiro e o viaduto. O local estava abandonado e atualmente serve de moradia para muitos usuários de cola e crack. Os moradores desse local improvisaram uma escada de madeira, torceram as grades e quebraram os vidros, possibilitando a entrada no local pelos dois lados da avenida. Outro espaço que é aproveitado, próximo ao Viaduto Condessa de São Joaquim, é o vão entre o chão e as escadas.

Muitos

moradores

ficam

temporariamente

nesses locais

sujos

acendendo fogueiras e inalando cola.

Diversos buracos feitos nos espaços entre a avenida e os canteiros transformamse em moradia. Esses buracos são muito quentes e escuros, habitados por insetos e ratos. Ao longo da avenida existem quatro buracos: dois, pequenos, no vão do Viaduto Maria Paula, uma fenda enorme a alguns metros de distância, ocupada por mais de vinte pessoas, e outro, no Elevado Costa e Silva, que abriga um casal e o maior buraco da avenida chamado Buracão. O Buracão é semelhante a uma enorme gruta escura com muita poeira e pequenas fendas de luz. A movimentação é intensa na frente e dentro da caverna.

91

VIEIRA, op. cit., p. 54.

62


Esses espaços foram abertos com a retirada dos tijolos e das pedras. O chão é forrado com papelão para proteger do frio e da umidade. Dentro de um destes buracos existia uma placa avisando aos outros moradores de rua que o local estava ocupado. Os moradores de rua respeitam e não invadem o lugar de seu semelhante caso já esteja demarcado. Cada um improvisa seu próprio espaço e o ocupa temporária ou permanentemente. Durante o trabalho de campo na Avenida Vinte e Três de Maio não tive conhecimento de brigas ou discussões em função do espaço delimitado por cada um.

Além do percurso da Avenida Vinte e Três de Maio, os moradores de rua circulam pelas ruas que interligam a avenida ao centro da cidade e a bairros mais abastados como Ibirapuera, Jardins, Paraíso, Aclimação, entre outros. É circulando em regiões movimentadas que os moradores de rua coletam papelão e latinhas para reciclagem e acham marquises para dormir. A avenida faz a ligação entre o Centro e esses bairros de forma rápida. Muitos moradores de rua preferem circular e vasculhar os lixões de restaurantes e hotéis à noite para não serem notados e discriminados.

Dessa maneira, percebe-se que ao longo dos anos, a Avenida Vinte e Três de Maio acumulou outra função, jamais imaginada por Prestes Maia: a de abrigo para moradores de rua. Debaixo de seus viadutos, ao longo de seus canteiros ou em cortiços, essas pessoas encontram alternativa única para a sobrevivência e para o descanso, chegando a fixar-se por meses ou anos.

63


Capítulo 3 Uma relação entre antropologia e história da cultura: Os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio

3.1. A descoberta da Avenida Vinte e Três de Maio

Baseado em conceitos defendidos pela antropologia cultural de Massimo Canevacci, e pela história da cultura de Michel De Certeau, apresento neste capítulo como foi o processo de descoberta da Avenida Vinte e Três de Maio.

Minha pesquisa na Avenida Vinte e Três de Maio teve início em setembro de 2002. Na época eu era estudante de graduação e usava a bicicleta para ir à faculdade. Pedalando na avenida percebi que o tráfego de pedestres é praticamente nulo: evita-se caminhar no trajeto pela periculosidade dos arredores e pela falta de estabelecimentos comerciais. Os poucos pedestres são aqueles que se servem dos ônibus que trafegam na avenida. Preocupados em chegar ao ponto de ônibus e tomar o rumo de suas casas, poucos observam as particularidades do local.

64


O trânsito caótico e barulhento, os motoristas impacientes e um longo trecho de subida desencorajam os ciclistas, que também são raros na avenida. Entretanto, foi justamente pedalando na subida que percebi detalhes que envolviam a Avenida Vinte e Três de Maio. Revelaram-se acontecimentos em uma avenida que parecia inabitada. Naquele momento, ainda sem pretensão alguma de obter fotografias, eu flanava pela cidade:

―Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a distinção de perambular com inteligência [...] O flâneur [...] acaba com a idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio [...]. E de tanto ver o que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete [...]. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas‖. 92

A sensação que tive inicialmente andando de bicicleta pela avenida era de estranhamento. Parecia aquela uma paisagem desconhecida. A sensação de estranhamento e desenraizamento são analisadas no livro A Cidade Polifônica de Massimo Canevacci, o pesquisador italiano descreve como se perdeu na cidade de São Paulo. Deslumbrado pela enormidade da metrópole, Canevacci lançou-se a flanar pelas ruas a fim de se familiarizar com o estranho.

92

RIO, João do, apud, GOMES, Ricardo Cordeiro. Revista Semear 5. Espécies de espaço: Democracia e exclusão em crônicas de João do Rio. http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/5Sem_15.html. Data de acesso: 11/12/2004.

65


―De um ponto de vista antropológico, o processo de estranhamento deve ser conduzido ao ponto em que o nosso relacionamento com o mundo é mais costumeiro e, portanto, mais ‗familiar‘, enquanto o processo oposto de familiarização deve focalizar e descobrir o que é desconhecido‖. 93

A Avenida Vinte e Três de Maio era um trajeto familiar quando percorrido de carro, mas transitando a pé ou de bicicleta o percurso tornou-se estranho para mim. Eu pude “saltar na cidade‖,94 percorrer o desconhecido e estar “dentro e fora do espaço urbano‖.95 Como motorista me sentia fora do espaço, pois não tinha contato com o externo; como flâneur a situação mudava: eu me envolvia com a avenida. Como explorador da mata que encobre a avenida, pude encontrar caminhos alternativos usados apenas pelos moradores de rua e entender como eram os mecanismos para sobreviver ali.

A minha atividade como observador e fotógrafo na avenida tiveram três momentos. O primeiro foi como motorista ou passageiro de um veículo. O segundo foi passando de bicicleta e andando pela calçada. O terceiro, quando entrei nos canteiros e comecei a explorá-los.

Desorientei-me dentro dos canteiros. Sempre procurava algo novo quando andava lentamente no relevo acidentado envolvido por árvores. Como Canevacci salienta,

93

CANEVACCI, Massimo. A Cidade Polifônica: ensaio sobre antropologia da comunicação urbana. Tradução: Cecília Prada, 2ª. Edição. São Paulo: Studio Nobel, 1997. p. 30. 94 CANEVACCI, op. cit., p. 20. 95 Ibid, p. 20.

66


é importante para o pesquisador ser receptivo ao novo, narrar a cidade com o olhar estrangeiro ou “tornar familiar o que é estrangeiro e, ao contrário, estranho o que é familiar‖.96 As moradas escondidas e seus moradores, que num primeiro momento eram estranhos tornaram-se familiares com o tempo que passei com eles.

A delimitação do local a ser descrito ou fotografado foi o passo inicial para a produção de fotografias e conhecimento. Escolhi como espaço para trabalho de campo e registro fotográfico todo o percurso da Avenida Vinte e Três de Maio, porque ―a delimitação prévia do percurso e a cobertura do trajeto em sua totalidade sem interrupções são condições para captar a diversidade de uma rua, por exemplo, sem se deixar levar pela fragmentação que, à primeira vista, ela parece exibir‖. 97

Intrigado pela impossibilidade de perceber o cenário que compõe o dia-a-dia do paulistano através das janelas de um carro, indaguei-me sobre como poderia extrair material da avenida. A ―imobilidade doméstica, a hipervelocidade noturna, a lentidão do passeio solitário‖98 são conceitos usados por Canevacci sobre a percepção cognitiva e a diferença do ritmo ―de comportamento e de controle espaço-temporal‖.99 A Avenida Vinte e Três de Maio possibilita estes três estados de movimento. Transitando dentro de um veículo, motoristas e passageiros ficam 96

Ibid. p. 105. MAGNANI, José Guilherme C. e TORRES, Lilian de L. Na Metrópole: Textos de Antropologia Urbana. São Paulo: Editora EDUSP, ano 2000. p. 37. 98 CANEVACCI, op. cit, p. 14. 99 Ibid, p. 14. 97

67


domesticamente imobilizados todos os dias ao usarem o trajeto para ir ao trabalho e voltar para casa. À noite, aproveitam a alta velocidade noturna que a via expressa oferece com o tráfego livre. Diante da imobilidade ou da velocidade os que utilizam a avenida ficam impossibilitados de perceber mais atentamente os acontecimentos, pela quantidade de informações externas – outdoors, veículos - e pela velocidade do tráfego. A única alternativa para perceber o ambiente que os envolve seria andar lentamente pela avenida em um passeio solitário.

Mesmo dentro de um carro, como seria possível ver cenas interessantes? De que maneira eu me aproximaria para registrar um momento em uma das avenidas mais movimentadas do país? Na Avenida Vinte e Três de Maio o fluxo de veículos não é interrompido por cruzamentos e semáforos, como planejado por Prestes Maia,100 ou seja, sempre há movimento. De acordo com Paul Virilio ―o movimento é o cegamento‖,

101

a velocidade e a aceleração fazem com que não vejamos as

coisas mais lentas que estão bem à nossa frente: ―não percebemos o que seria a realidade do próprio termo em que o movimento se dá‖. 102

A relação espaço-tempo é modificada com a invenção do motor. Segundo Virilio o motor ―criou uma nova percepção do tempo, a de um tempo em excesso‖.103 Os corpos ficam ociosos, estáticos; essa inércia produz uma mudança nas nossas

100 101

Ver capítulo 2. VIRILIO, Paul. A Arte do Motor. Tradução: Paulo Roberto Pires. São Paulo: Estação Liberdade,

1996. p. 64. 102 103

VIRILIO, op.cit., p. 64. Ibid, p. 76.

68


ações e “relativiza nossos pensamentos‖.104 Como Canevacci explica ―as cidades também são máquinas destinadas a produzir a inércia num ritmo e numa proporção infinitamente mais elevada do que a organização quantitativa que implicam‖.105

Dentro de um carro a preocupação do motorista é a aceleração, e a ansiedade de percorrer o espaço em um curto período de tempo cria a necessidade de ter “alguém para indicar os locais em que ele [o motorista] se encontra‖.106 O que está de fora passa a ser supérfluo e passageiro. Alcança-se com o deslocamento dos corpos ―estados vizinhos da privação sensorial‖.107 Henri Heine escreveu em 1843 que ―através das ferrovias o espaço é aniquilado, não nos resta nada além do tempo‖.108 O que acontece na Avenida Vinte e Três de Maio não é diferente: o espaço é aniquilado pela velocidade, o tempo gasto em suas pistas é precioso. Quanto mais rápido se atravessa a avenida, mais útil ela será.

Transitar de bicicleta pela avenida me possibilitou a descoberta de lugares, e me proporcionou certa mobilidade e liberdade para registrá-los. A proximidade e o tempo compartilhado com os moradores foram os principais fatores para o sucesso das fotografias e da pesquisa. Ao longo do tempo, com a convivência intensiva, pude estreitar meu relacionamento com eles como pesquisador. Como Canevacci afirma, o trabalho de campo não é meramente conversar com o 104

Ibid, p. 76. CANEVACCI, op. cit., p. 93. 106 VIRILIO, op. cit, p. 78. 107 Ibid, p. 78. 108 HEINE, Henri, apud, VIRILIO, Paul. p. 80. 105

69


pesquisado, mas ―estabelecer um profundo relacionamento de intercâmbio mútuo, de dons emotivos, de empatias cognitivas, de solidariedades divergentes‖.109

Em todo o período da pesquisa, pude perceber a reação dos motoristas que trafegavam na avenida em dois momentos. O primeiro foi quando fotografava os moradores e andarilhos nas calçadas: alguns poucos motoristas buzinavam ao passar. O segundo foi ao fotografar dentro dos canteiros - nesse caso - era mais difícil sermos notados, pois ficávamos, entrevistados e eu, camuflados pelas árvores.

Nas palavras de Magnani, a observação já deve ser preestabelecida e o ritmo variável para se realizar uma pesquisa de campo:

―O pesquisador... mesmo numa caminhada de reconhecimento, tem um plano preestabelecido, e seu caminhar, mais lento do que o do usuário e mais regular do que o do passante, deve permitir uma observação e seguir o fluxo do andar e parar‖.110

Toda vez que eu percorria a avenida pedalando reencontrava moradores que permaneciam no trajeto. A bicicleta foi fundamental no desenvolvimento do trabalho. Com ela, era possível ir e voltar diversas vezes por toda a avenida. Determinava o ritmo e parava de acordo com os acontecimentos. Quando

109 110

CANEVACCI, op. cit., p. 44. MAGNANI, op. cit., p. 37.

70


precisava subir em alguma parte do relevo acidentado na avenida, deixava a bicicleta de lado e fazia o percurso andando. A velocidade e a mobilidade da bicicleta proporcionavam-me o acesso a vários pontos da avenida enquanto eu procurava por moradores e andarilhos.

No início, causou-me constrangimento andar pela avenida com equipamento fotográfico, afinal, o corredor viário é perigoso. Mas a descoberta de locais, histórias e rostos fascinantes levaram-me a adentrar com liberdade aquele universo desconhecido: o dos moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio. Segundo Magnani:

―A antropologia, lá ou cá, na floresta ou na cidade, na aldeia ou na metrópole, não dispensa o caráter relativizador que a presença do ‗outro‘ possibilita. É esse jogo de espelhos, é essa imagem de si refletida no outro que orienta e conduz o olhar em busca de significados ali onde, à primeira vista, a visão desatenta ou preconceituosa só enxerga o exotismo, quando não o perigo, a anormalidade‖.111

Por intermédio da câmera fotográfica, aproximei-me dos habitantes da avenida. O ambiente ganhou outro significado. Descobri novos locais de moradia com as conversas que se aprofundavam com os excluídos. Convivendo com os moradores do espaço público - transformado em dormitório - pude entender melhor como era viver em tais condições. Sentado em canteiros por horas, em dias de chuva e sol, comecei a ganhar respeito e confiança. Explicando minhas 111

Ibid, p. 37.

71


intenções e o objetivo de minha pesquisa, pude estreitar meu relacionamento com o pesquisado. De acordo com Magnani, a delimitação do ambiente e o conhecimento dos atores são fundamentais para o trabalho de antropologia urbana:

“Delimitar o cenário significa identificar marcos, reconhecer divisas, anotar pontos de intersecção – a partir não apenas da presença ou ausência de equipamentos e estruturas físicas, mas desses elementos em relação com a prática cotidiana daqueles que de uma forma ou outra usam o espaço: os atores‖.112

Todos os habitantes da

avenida foram fotografados com

seu

próprio

consentimento. Sem interferir em seu cotidiano, participava de eventos do dia-adia como morador de rua: o banho, a refeição, o descanso, etc. Sempre tentei passar para as fotografias quem é o morador de rua; não a imagem de mendigo ou de pedinte que se costuma vincular aos que vivem na rua. A maioria dos moradores de rua não são mendigos.

A liberdade para fotografar o cotidiano dos moradores de rua foi conquistada. Então, comecei a refletir sobre como aquela comunidade conseguiria sobreviver com os recursos que a avenida apresentava. Quando interrogado pelos próprios moradores de rua sobre o objetivo do trabalho, respondia que queria fazer um estudo, por meio de imagens, sobre o homem que vive nas ruas. Dessa forma, através de uma série de fotografias, estudaria esse grupo camuflado pelos 112

Ibid, p. 37.

72


canteiros da Avenida Vinte e Três de Maio. Explicava que me interessava compreender como era possível sobreviver privado das necessidades mais elementares - moradia, saúde alimentação e família - através do convívio, do registro fotográfico e das conversas. Perguntava-me como era possível que seres humanos se adaptassem à condição de marginalizados de uma sociedade capitalista.

Percebi que as dores que esses moradores de rua carregam são muito mais do que físicas. O preconceito é diário. Muitos são tidos como ladrões, pedintes e mendigos. Todos procuram a duras penas um meio de subsistência. Ser chamado de mendigo representa grave ofensa para quem mora na rua. Por serem marginalizados e alvo de discriminação, muitos tinham medo quando me aproximava com a câmera. A sensação era de que eu estava também sendo observado: ―olhar não significa somente olhar, mas também ser olhado...‖.113 Fui confundido com agente da prefeitura ou investigador. Alguns moradores achavam que estavam sendo catalogados e fichados para possível retirada da avenida. O que me interessava era de que maneira esses moradores reagiriam à câmera e às conversas que começávamos a estabelecer. De acordo com Magnani:

―Enquanto as maneiras de ser ou agir de certos homens forem problemas para outros homens, haverá lugar para reflexão sobre essas diferenças que, de forma sempre renovada, continuarão a ser o domínio da antropologia‖.114

113 114

CANEVACCI, op. cit., p. 43. MAGNANI, op. cit., p. 17.

73


O aspecto inicial que me interessava no trabalho fotográfico era o retrato dos moradores. Seus rostos, marcados pela dureza da vida nas ruas, fascinavam-me cada vez mais.

―Justamente por serem marginais, isto é, por não terem acesso pleno aos canais de participação que permitem a um extrato social numa sociedade complexa influir nas decisões que afetam seu próprio destino, é que estes grupos podem ser analisados com sucesso pela antropologia, ciência de certo modo também marginal à civilização urbano-industrial‖.115

Um dos principais aspectos para dar seguimento ao trabalho foi a percepção de que as pessoas que circulavam dentro dos veículos não tinham tempo para perceber o que se passava na avenida. Bombardeados por propagandas e pressionados pelo ritmo do tráfego, os motoristas e passageiros que cruzavam a avenida – inclusive eu, nessas condições – olhavam apenas à frente, nunca para os lados.

―A natureza fragmentada da vida moderna torna difícil o ajustamento à visão global. A capacidade de visão do conjunto do observador depende da proporção de envolvimento dele em relação ao seu meio ambiente. Nós modernos nos afastamos de um relacionamento muito envolvente com o ambiente que nos

115

OLIVEN, Ruben George. A Antropologia de Grupos Urbanos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1985. p. 25.

74


circunda, pois comumente lidamos apenas com partes desse esquema de grande amplitude‖.116

Dessa maneira, pude identificar dois fluxos completamente diferentes, opostos até, de movimentação e de relação com o ambiente da avenida. De um lado, o ritmo dos veículos que se servem das pistas buscando a ligação entre bairros. A intenção é usar a avenida de forma rápida. A relação com o espaço é temporária, pouco importante ou interessante. Do outro lado, os moradores de rua. O ritmo dos habitantes da avenida é lento. Muitos andam o dia todo e aproveitam todos os recursos que ela oferece. Seu vínculo com o espaço público é permanente.

As ruas e avenidas de São Paulo se tornam habitadas. A fotografia relaciona-se com história da cultura e a antropologia para entender como é a vida dos moradores de rua

116

COLLIER, Jr., John. Antropologia Visual: a fotografia como método de pesquisa. São

Paulo: EPU Universidade de São Paulo, 1973. p. 01.

75


3.2. O homem ordinário na Avenida Vinte e Três de Maio

O homem ordinário, segundo definição de Michel De Certeau é: “um Outro que não é mais um Deus ou uma musa, mas o anônimo‖.117 É um ser simples, comum. O conceito de cotidiano de acordo com o mesmo autor, surge das práticas do homem comum. Através das táticas do dia-a-dia, o homem fabrica maneiras e alternativas para viver.

Para atravessar os episódios do cotidiano, o homem ordinário inventa suas maneiras de fazer. Tenta se superar a cada dia transformando o espaço e o tempo em que vive. Das especificidades de seu ambiente nascem os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio.

Morador de rua não é aquele que vive somente embaixo de viadutos e em praças públicas. Segundo Shor e Artes:

―Quando definida de maneira ampla, inclui pessoas, que, sem moradia, pernoitam nos logradouros da cidade, nos albergues ou qualquer outro lugar não destinado a habitação. Pode compreender, também, pessoas ou famílias que, tendo perdido sua moradia por despejo, encontram-se alojadas provisoriamente em abrigos 117

De CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1 Artes de Fazer. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999. p. 60.

76


públicos, privados ou morando em domicílios de terceiros. É possível incluir, ademais, as famílias residindo em habitações precárias de qualquer espécie. No Brasil, a definição mais ampla incluiria, assim, não apenas os albergados e a população que pernoita nas ruas, mas também os moradores de cortiços e favelas, dado a precariedade de seus domicílios‖. 118

Existem três tipos de moradores de rua na Avenida Vinte e Três de Maio: os albergados, os que vivem nos cortiços e os que pernoitam nas ruas. Todos têm uma característica comum: sobreviver na rua e subsistir do que ela oferece. Para os que vivem nos cortiços, a estrutura familiar encontra-se preservada e as necessidades básicas como moradia, alimentação e higiene de alguma maneira são supridas, ainda que precariamente. Aos demais, as duas alternativas possíveis são viver em albergues ou permanecer na rua.

A busca por uma vida mais digna obriga esses moradores se amontoarem nos grandes pólos urbanos. Iludidos pela oportunidade de trabalho, arriscam-se em territórios desconhecidos; são ―moradores que vem de outros estados sofrendo como heróis a árdua tarefa de se perder na vastidão da cidade grande se deparando com a sociedade urbana...‖,119 O processo de desvinculação de sua cidade de origem é a tentativa de sair do anonimato.

118 119

SHOR e ARTES apud, BORIN, p. 56.

De CERTEAU, op. cit., p. 60.

77


―O movimento para a individualidade é o movimento para a universalidade, e viceversa. Mas o cosmopolitismo é ou o civismo alargado a toda humanidade, a libertação de todos os preconceitos particulares, aquilo que se denomina internacionalismo na óptica revolucionária, ou o isolamento da individualidade no mundo, o desligar-se de tudo, a solidão‖.120

O morador de rua emerge nas ruas da cidade associado a perda da identidade, a solidão, a loucura e o isolamento do mundo. Maria Vieira analisou três estágios de vivência na rua segundo a permanência e o vínculo com a rua: ficar na rua, estar na rua e ser da rua.121

O desemprego, a dependência química e o abandono da família são variáveis que impulsionam a escolha por ficar na rua. É no primeiro contato com a rua que aparece a figura do desabrigado, seja pela falta de dinheiro para estadia em uma pensão ou pelo desconhecimento de albergues públicos. Sem rumo, o desorientado, ele encontra na rua a única alternativa.

Como essas pessoas nunca habitaram logradouros ou praças não podemos considerá-los moradores de rua. Chamaremos esse individuo de ocupante

120

MORIN, Edgar. O Homem e a Morte. Tradução: João Guerreiro Boto e Adelino dos Santos Rodrigues. 2ª. Edição. Portugal: Publicações Europa-América, 1970. p. 46. 121

Ver: VIEIRA, Maria Antonieta da Costa, BEZERRA, Eneida M. R. r ROSA, Cleisa M. M. População de Rua: quem é, como vive, como é vista. São Paulo: Ed. Hucitec, 1992.

78


temporário. Ninguém escolhe ir para rua como opção; a fraqueza e a dificuldade são fatores que levam esses ocupantes a perambular pelas avenidas.

A priori essa é uma situação circunstancial. O ocupante temporário não estabelece nenhum vínculo com a rua. Pelo contrário, o logradouro desperta o medo, a estranheza, a vergonha e a humilhação. Alguns poucos conseguem emprego novamente, seja na construção civil ou em serviços informais, o que possibilita a moradia em pensões, ou no próprio local de trabalho. Reintegram-se à sociedade.

―A continuidade/descontinuidade de trabalho acarreta, além da incerteza do morar, a desagregação do grupo familiar, ausência ou baixo rendimento, resultando no aviltamento de suas condições de cidadania‖.122

No entanto, verifica-se grande dificuldade para recolocação no mercado de trabalho, seja pela idade avançada de alguns moradores, pelos vícios adquiridos por problemas psicológicos ou pessoais, e por antecedentes criminais. Todos esses fatores afastam a oportunidade de se obter um emprego novamente.

―A existência da desagregação familiar, que aliada à questão da pobreza, configura uma situação limite, podendo desencadear uma relação dialética de

122

BÓGUS, op. cit., p. 134.

79


negação da ordem instituída e das relações familiares anteriores, produzindo um modo de existir onde o fundamental é o não compromisso com o estabelecido‖.123

A decisão de não retornar para o ambiente familiar, seja por vergonha ou desentendimentos, aliada ao desemprego faz o marginalizado passar da condição de ficar na rua para estar na rua. Como estar na rua é um fato recente na sua vida, o necessitado começa a fazer contato com outros moradores de rua.

A depressão e a dependência química são comuns entre aqueles que sofrem de carência de direitos, esperanças e possibilidades. O álcool é uma das soluções para amenizar a dura realidade e a instabilidade da vivência nas ruas. A bebida aparece como principal elemento de aproximação. Receptivos quando têm uma garrafa de álcool, alguns viciados formam grupos e dividem litros de bebida. Quando o engradado acaba, vão junto a solidariedade e o companheirismo; cada um toma seu próprio caminho. A aproximação, a convivência e a troca de informações a respeito de como sobreviver na rua é transmitida através destes grupos.

―Através do álcool, das drogas, enfim, de todo tipo de artifício, procuram um distanciamento da realidade cruel em que estão mergulhados e uma parcela parece reconhecer uma identidade na rua, fazendo dela o seu presente, sem perspectivas de futuro‖.124

123

124

BÓGUS, op. cit., p. 139. BORIN, op. cit., p. 55.

80


Alguns moradores de rua, se mantêm à custa de entidades filantrópicas e doações de pessoas que fornecem alimentos e roupas; outros apelam para a mendicância ou para a criminalidade para sustentar seus vícios. A formação da identidade do morador de rua é concretizada quando ele é aceito pelos seus semelhantes. Mais familiarizado e não se sentindo mais ameaçado, ele acredita que pode continuar na rua com os poucos recursos que ela oferece.

―O tempo de rua se torna uma variável central, uma vez que, quanto maior a inserção nas redes sociais constituídas na rua, o horizonte de saída dela fica mais difícil e, portanto, mais distante. Novos hábitos passam a ser incorporados, os códigos são decodificados e até mesmo o medo e a vergonha que existem inicialmente se enfraquecem ou mesmo deixam de existir‖.125

A permanência e o tempo na rua se tornam fatores definitivos. O morador passa a ser da rua, quando usa o espaço público para encontrar alimento, tomar banho, catar latinhas e papelão, entre outras atividades e hábitos.

Banido pela sociedade de consumo, o homem que vive nas ruas improvisa. Impedido de entrar no modelo capitalista e de usufruir dele, cria novos hábitos de moradia e de subsistência. Apesar de não possuir nenhum bem e de ter todos os seus sonhos cancelados pela vida sofrida e pela falta de oportunidade de crescer,

125

Ibid, p. 50.

81


luta diariamente pela sobrevivência. Mas o que faz esse homem continuar a jornada do cotidiano? O que o motiva a viver com os poucos recursos que o espaço da rua oferece? Ele se perde na vastidão da cidade grande. Dentro das grandes avenidas, ele disputa espaço com veículos e edifícios suntuosos. O cotidiano o oprime, o prende, o torna refém da miséria.

O homem que sobrevive nas ruas é um cidadão excluído. Todos os dias ele é acordado pela luz do sol e pelo barulho da massa urbana. O homem ordinário levanta-se logo cedo, às vezes nem consegue dormir. No meio de um viaduto da Avenida Vinte e Três de Maio ele fixa sua residência. Sua janela é panorâmica. O nascer do sol às 6h da manhã cobre seu corpo de calor e o expulsa de seu sono; o trajeto é ocupado por carros e ônibus. Seu despertador toca logo pela manhã; é alto o ruído dos motores. A dificuldade de viver o desperta para o cotidiano; sua única preocupação é o agora. Ele deixa de ter direitos, mas resiste. Continua sua caminhada solitária para satisfazer suas necessidades básicas.

Como Michel De Certeau aponta, o homem que vive no cotidiano é como “uma multidão de heróis quantificados que perdem nomes e rostos‖.126 É uma multidão nômade. Confunde-se com a paisagem urbana. Essa multidão de desconhecidos prefere o anonimato a ser identificada e rotulada; perde sua própria identidade, “tornando-se a linguagem móvel de cálculos e racionalidades que não pertencem

126

CERTEAU, op. cit., p. 58.

82


a ninguém‖.127 Camufla-se entre as sombras de viadutos e no meio de árvores e arbustos.

Embora compartilhem o espaço no qual a sociedade vive seu cotidiano, os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio não são percebidos pela maioria das pessoas. Escondidos em buracos e moradas improvisadas transformam-se em fantasmas.

―Mas embaixo, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, cujo corpo obedece aos cheios e vazios de um ‗texto‘ urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem...‖.128

Os excluídos preferem se esconder da sociedade. Assim não são perturbados ou discriminados. Procuram locais de difícil acesso para morar. No alto dos viadutos alguns acham sua morada, se encaixam em buracos com sombras. Nestes locais, ficam isolados e protegidos da sociedade que pode discriminá-los.

As grandes avenidas são locais atraentes, transformam-se em passarela para andarilhos, catadores, etc. A circulação de veículos em alta velocidade é o cenário perfeito para os moradores de rua não serem percebidos. Pedestres sequer usam

127 128

Ibid, p. 58. Ibid, p. 171.

83


essas vias para transitar. São espaços neutros que a sociedade utiliza temporariamente. A massa urbana segue frenética sem perceber o ambiente do qual faz parte diariamente.

―Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada‖.129

A própria organização da avenida, com a ausência de semáforos e cruzamentos, é excludente. Aqueles que têm carro estão aptos a usá-la, estão incluídos no trajeto. Mas quem caminha por esse espaço está fora do sistema. O homem comum que vive nas ruas caminha o dia todo. Não tem lugar definido. Sua caminhada é a única forma de continuar inventando formas de viver na cidade.

129

Ibid, p. 171.

84


Capítulo 4 A Foto-etnografia e a Imagem na História da Cultura: A fotografia como instrumento de pesquisa

Neste capítulo, apresento em linguagem-texto, o trabalho de campo realizado na Avenida Vinte e Três de Maio, com o depoimento do morador de rua José da Silva de Jesus. O capítulo mostra também, em linguagem-imagem, o trabalho de fotoetnografia realizado na avenida sob a forma de um caderno de fotografias.

A idéia de criar uma narração foto-etnográfica partiu do estudo e da metodologia descritos no livro Foto-etnografia na Biblioteca Jardim.130 No livro, Luiz Eduardo Achutti pesquisou na Biblioteca Jardim, França, as atividades das pessoas que trabalhavam nas instalações e a relação que elas tinham com o espaço da biblioteca. O autor defende a união da fotografia com a etnografia sob o nome de foto-etnografia. A palavra foto-etnografia é defendida por Achutti desde o ano de 1993,131 época em que o pesquisador defendeu sua dissertação Foto-etnografia: um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho.132 De acordo com o autor a foto-etnografia é ―uma das formas de etnografia que utiliza a

130

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto Alegre: Editora da UFRGS,Tomo Editorial, 2004. 131 http://www.ufrgs.br/fotoetnografia/projeto.htm. Data de acesso: 01/06/2005. 132 ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropologia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre. Tomo Editorial, 1997.

85


fotografia como meio de penetrar, apreender e relatar (no sentido de narrar) a cultura e os valores de um determinado grupo social‖.133

A narração foto-etnográfica deste capítulo apresenta o universo dos moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio. A imagem que a sociedade tem destes indivíduos é equivocada: freqüentemente eles são confundidos com pedintes e mendigos. Esta narração tem o objetivo de desmistificar a imagem do morador de rua associada ao mendigo ou pedinte. As fotografias revelam quem são e de que maneira sobrevivem os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio.

As fotografias criam uma narrativa visual com o objetivo de ―estruturar corretamente um conjunto de imagens fixas a fim de propô-las enquanto narração ou relato visual‖.134 O trabalho divide-se em linguagem-texto e linguagem-imagem. O objetivo desta divisão é o de articular e complementar uma linguagem com a outra abrindo ―perspectivas experimentais tanto científicas quanto artísticas‖.135

De acordo com Emmanuel Garrigues a articulação entre texto e imagem como produtora de linguagem ―permite recorrer a encontros entre pesquisadores e criadores e articular também o sensível e o racional aprofundando essa necessidade cada vez mais evidente de ter uma abordagem científica não-

133

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. http://www.ufrgs.br/fotoetnografia/projeto.htm. Data de acesso: 01/06/2005. 134 135

ACHUTTI, op. cit., p. 84. GARRIGUES, Emmanuel, apud, ACHUTTI, p. 86.

86


mutilante do emotivo e do subjetivo como portadores de conhecimento da realidade‖.136

A fotografia como instrumento de pesquisa ainda é pouco utilizada. Etienne Samain se refere à imagem fotográfica como “uma modalidade entre um leque imagético moderno muito mais abrangente‖.137 Entretanto, a fotografia é pouco explorada, apesar de toda sua riqueza em informações, ―cujas possibilidades até ignoramos ainda‖.138

Com a narração fotoetnográfica, pretendo explorar a riqueza da linguagem imagem. As fotografias foram colocadas todas juntas, em seqüência, ao invés de ficarem isoladas ou espalhadas pelos capítulos anteriores. De acordo com Achutti ―as fotografias jamais devem ser utilizadas de forma isolada‖.139 O pesquisador aponta a importância da seqüência fotográfica pela associação de uma imagem com a outra ―tendo por objetivo treinar o leitor a praticar outras associações para nelas encontrar uma significação...‖ ou ainda ―... fazer pensar através das imagens...‖.140 As fotografias em seqüência têm o objetivo de ―se oferecer apenas ao

olhar,

sem

nenhum

texto

intercalado

a

desviar

a

atenção

do

leitor/espectador‖.141 A pesquisa não se posiciona contrariamente quanto ao uso intercalado entre o texto e a imagem, mas com a organização das duas 136

GARRIGUES, Emmanuel, apud, ACHUTTI, p. 86. SAMAIN, Etienne. A pesquisa fotográfica na França - Notas antropológicas e bibliográficas. Textos de cultura e comunicação – Departamento de Comunicação Mestrado em comunicação e cultura contemporânea/ UFBA – número 29 – Salvador, 1993. p. 110. 138 SAMAIN, op. cit., p. 110. 139 ACHUTTI, op. cit., p. 95. 140 SAMAIN, Etienne. Apud. Achutti, p. 83. 141 ACHUTTI, op cit., p. 109. 137

87


linguagens diferentes de forma separada, as informações dadas anteriormente pelo texto servem de referência para a narrativa visual e vice-versa.

“... a justaposição dessas duas formas narrativas é possível e mesmo desejável, mas é importante notar que o ideal seria que cada tipo de escritura fosse oferecido ao leitor separadamente, de forma que cada uma conservasse todo o seu potencial. Trata-se de escrituras diferentes que devem ser então oferecidas e abordadas de maneiras diferentes‖.142

Justifico a proposta de linguagem-texto e linguagem-imagem sob duas formas. A primeira é através de relatos feitos com a pesquisa de campo José de Jesus. A segunda se concentra em mostrar através da narração fotoetnográfica a pesquisa fotográfica realizada na Avenida Vinte e Três de Maio.

142

Ibid, p. 109.

88


4.1. José da Silva de Jesus

4.1.1. Dia-a-dia na avenida

Apresento o relato do morador de rua José da Silva de Jesus, para dar voz ao excluído. Com isso, é possível entender como José se tornou morador de rua e quais são as suas reflexões sobre a vida na rua e seu cotidiano na Avenida Vinte e Três de Maio. É interessante apontar a relação deste relato com o conceito de homem ordinário de Michel De Certeau143 e a análise da situação de morador de rua pesquisados no capítulo 3, com o objetivo de complementar o relato do morador de rua.

O primeiro morador de rua que encontrei na Avenida Vinte e Três de Maio e que me impulsionou a fazer o trabalho fotográfico chama-se José da Silva de Jesus. Natural de São Paulo, nascido no dia 4 de janeiro de 1937, José diz que é morador de rua “há mais de trinta e três anos”.

143

Ver Capítulo 3.

89


Imagem 25 - José da Silva de Jesus, 2003.

144

Toda vez que passava pela avenida encontrava José no mesmo lugar. O morador de rua repousa entre os viadutos Costa Aguiar e Santa Generosa por horas. Ele fala sozinho e gesticula, junto dos pertences que sempre carrega quando sai para andar. Dentro de cinco sacos plásticos, o morador leva pão, roupas, jornais, cobertores, sacos plásticos, garrafas de água, sabão, etc.

José levanta entre 4 e 6 horas da manhã e anda de três a quatro horas pelo bairro dos Jardins para ―catar, pra comer, andando a toa‖. Percebi que José escolhe o bairro pelo número de restaurantes, hotéis e boates, devido ao tipo de lixo produzido por estes estabelecimentos. Além da escassez de alimentos, os moradores de rua enfrentam a dificuldade em encontrar água para beber. Por existirem poucos edifícios comerciais e residências, faltam torneiras na Avenida 144

Foto: Marco Hovnanian.

90


Vinte e Três de Maio. José diz que consegue água em um edifício na Alameda Jaú: ―quando vejo alguém eu peço, quando eu não vejo ninguém, eu pego‖.

―Aqui temos um homem — ele tem de recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu tudo o que desprezou, tudo o que destruiu, é reunido e registrado por ele... separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um avarento com seu tesouro e se detém no entulho que... vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis‖.145

José diariamente faz: um ―exerciciozinho‖ para evitar ―câimbras e estiramentos nos tendões‖. O morador retorna entre 8 e 10 horas da manhã: ―eu ando todo dia à toa... sossegado... pra chegar aqui, sentar e ficar prestando atenção nessa palhaçada todinha...‖. Chegando à copa da árvore onde mora, bebe água e come o que encontrou. Precavido, José tem uma reserva de comida na sacola para o dia seguinte: ―eu como uma vez por dia, duas no máximo‖.

Em suas caminhadas o morador de rua procura locais para tomar banho: ―tomo banho a seco, cinco anos sem tomar banho to eu, de 2000 até a data de hoje... banho nem por reza brava, nem por decreto de lei‖.

Durante o dia, José fica sentado sob a copa de uma árvore. Quando a noite avança, ele alterna entre sentar e deitar no chão. Questionado sobre como é

145

BENJAMIN, Walter, apud, MARGATO, Isabel. http://www.letras.pucrio.br/catedra/revista/4Sem_13.html. Data de acesso: 06/10/2004.

91


passar as noites na rua ele responde ―eu não durmo, nunca mais dormi, estou com trinta e três anos e meio de rua e nunca mais dormi‖.

Desde os primeiros encontros, antes de abordá-lo, já havia percebido que José fica estático, com os olhos abertos, murmurando, alternando momentos de lucidez e de delírio. Ele justifica ter perdido o trabalho e ser prejudicado na rua por uma gangue que aparece falando ―no ar‖: ―a gangue se chama matar sem por a mão... mata de raiva... sou de um mundo e eles são de outro... eles têm a cara virada no avesso‖. A perseguição que sofre por esta gangue imaginária é assunto recorrente em nossas conversas. Ele diz que passou por duas internações - devido ao etilismo - em uma clínica localizada na Rua Monte Alegre. Menciona ter recebido, nas duas ocasiões, uma indenização em dinheiro. As aparições da gangue começaram após sua primeira internação, que durou 79 dias (a segunda internação foi de 60 dias).

José nunca reclamou de nenhum tipo de doença ou dores no corpo, mas seus olhos estão sempre com inflamações e lacrimejando. O olho esquerdo praticamente não abre. No lado esquerdo do rosto, há uma cicatriz e afundamento da face que ―foi feita sem eu sentir um arranhão, um outro camarada que viu... eu estava nessa avenida mesmo‖.

José tem o hábito de ler o jornal Metrô News que encontra na rua. O morador gosta dos encartes de supermercado e admira-se com a diversidade de produtos

92


para comer e beber. Depois, arruma uma boa função para os jornais ―leio, depois faço tudo outros usos dele... faço tudo a palhaçada, a digestão... e taco no lixo‖.

O local onde José mora é limpo e organizado. Para proteger-se da chuva, o morador se cobre com um plástico. ―Ponho cobertor nas costas um plástico na cabeça... encolho a perna e fico sossegado‖. Ele possui três cobertores que carrega em seus sacos para se proteger contra o frio ―meu cobertor é de 2000, os dois vão indo pra merda, ai eu vou ter que me enrolar num plástico, ou num papel junto pra não passar frio‖.

4.1.2. Histórias do passado

As lembranças e histórias do passado acompanham até hoje a memória de José. Ele recorda que residiu no bairro da Santa Cecília em um quarto alugado. Possuía ―roupas, fogão, rádio, eu tudo eu tinha‖ que comprou via crediário ―toda a vida tive o nome limpo, nunca tive na lista de caloteiro e mau pagador, cada vez que eu comprei com crédito, eu usei o credijato‖.

É difícil entender como foi à relação de José com seus pais e como foi sua criação na infância. Ele provavelmente morou em uma creche ou orfanato ―família sua mora ali, e você mora aqui numa casa, que mora um montão de gente‖.

93


Aparentemente abandonado pelos pais, ―inventaram que eu não tinha nem mãe nem pai‖, José fala que foi criado por ―uma avó que caiu do céu, que cuidou de mim‖. Quando surgem perguntas sobre sua avó ele desconversa e diz ―não adianta falar mais dela, ela deixou de existir‖.

As lembranças familiares do morador de rua são confusas. José sempre repete nunca ter conhecido seu pai e sua mãe, mas em contrapartida diz: ―família minha era tudo gente militar, era tudo funcionário federal militar. Eu num servi‖. Quando questionado sobre irmãos, cita um deles: ―Arantes do Nascimento, começou jogando futebol com o nome de José Edson e acabou também morando na rua‖.

O morador sabe ler e escrever e diz que freqüentou uma escola até os doze anos de idade, quando arrumou seu primeiro emprego nos arredores da Rua Domingos de Moraes.

―Aonde se vê Bingo Vila Mariana, toda aquela extensão era extensão do cinema Fênix, trabalhei ali, menor de idade, trabalhava das cinco da manhã as doze na área de limpeza‖.

Ele valoriza a educação que lhe foi dada ―a passagem minha pela escola... enquanto eu tiver um sopro é bobagem cagar nos cinco anos meus de escola...‖, pois ninguém pode tirar o conhecimento que a escola lhe deu quando era criança.

94


José se orgulha da época em que trabalhava: ―comigo trabalhando eu fiz horrores, fiz tudo o que eu gostava, eu bebia duas caracu com ovos, eu trabalhando eu bebia todo dia, café da manhã meu era aquele... eu tive essa maravilha que sempre gostei por mais de dez anos‖. Ele lembra que trabalhou como operário na área de construção civil em obras de ―casas, sobrado, vila, galpão‖.

4.1.3. Histórias como morador de rua

O morador não conta histórias sobre seu dia-a-dia na rua. Ele lembra da data em que começou a morar na rua ―o primeiro dia de rua meu foi 11 de julho de 1972... até a data de hoje eu estou na rua‖ e diz ―na rua você tem que entrar no castigo‖.

―A rua caracteriza-se por ser o avesso do sucesso, na sociedade brasileira. A pobreza, no período pós-industrial tornou-se um castigo, e a rua é o local da execração pública dela‖.146

O primeiro contato com a rua como morador foi ―debaixo da passarela do Detran, escolhi lá por que trabalhei e andei por ali‖. José conhece bem a região centro-sul de São Paulo. Ele comenta que trabalhou, estudou e circulou nos arredores dos bairros da Vila Mariana e do Paraíso. Depois de ficar perto do Detran, José diz 146

CONDEIXA, apud, BÓGUS, op. cit., p. 130.

95


que morou em diversos pontos nos arredores da Avenida Vinte e Três de Maio. Ficando na rua, ele diz que trabalhou coletando latinhas e papelão para se sustentar. Vendia o que coletava para um depósito no bairro do Ibirapuera.

―Eu tive vinte anos trabalhando de papelão, carregando papelão na mão, cada vez eu carregava quinze a vinte quilos e eu descia três a quatro vezes, que dava sessenta quilos. Todo dia ganhava dinheirinho, eu gastava com comida e bebida‖.

José diz que mora na Avenida Vinte e Três de Maio por que ninguém o perturba ou o discrimina ―ninguém mexe comigo, ninguém fica reclamando, por isso eu fico aqui... aqui num vão sair de lá do prédio deles pra me incomodar, ‗pô vagabundo fica aí o dia inteiro‘, na porta do prédio deles eu não vou poder ficar o dia inteiro, aqui eu posso‖. Isolado em um ponto da avenida onde poucos pedestres passam José encontra tranqüilidade: ―eu sou um camarada isolado na face da terra, não tenho parente...‖.

José não costuma falar com outros moradores de rua. Explica que não gosta de misturar-se porque ―os outros moradores de rua só vem procurar pinga. Enquanto você tiver com o litro cheio tem cara junto, o litro secou ai o cara se despede e sai‖. Vê os que estão na mesma situação sua com imparcialidade: ―eu não gosto de criticar, ninguém sabe o porquê do cara vir pra rua‖.

Apesar de estar próximo dos veículos na avenida, José não é notado pelos motoristas. Reclama de ser excluído pela sociedade, mas prefere manter 96


distância: ―justo não é. Na pior das hipóteses eu tinha que estar trabalhando... a sociedade... eu não vou mexer com a sociedade, a sociedade é gente superior‖.

Quando o questionei sobre como ele acha que a sociedade o vê, José diz ―eles estão te vendo, eles te vêem carregando tudo essa palhaçada, ladrão não é, mau elemento não é, é um cara que está aí na rua, deixa ele aí parado, amanhecer aí parado‖.

Quando conversamos sobre como ele mesmo se enxerga José diz: ―eu... eu... chamo eu mesmo de cidadão, eu não chamo eu de mendigo, nem de maloqueiro, nem de vagabundo, nem alcoólatra, eu chamo eu de cidadão‖; “eu fui a maior palhaçada‖. Deprimido, desiludido, José sempre fala da morte e da paciência para permanecer vivo. Acredita que é um ―cidadão que já tá no fim... pedi pra sair... pra sair do mundo‖. Algumas de suas reflexões angustiadas pelo fim da vida o acompanham dia após dia na Avenida Vinte e Três de Maio: ―melhor presente meu ficar fora do mundo... eu pedi pra não emplacar o ano 2000. Eu tinha que ter saído... Tinha que ter morrido pra ajudar por que vem vindo gente com mais desenvolvimento‖.

97


4.2. A narração foto-etnográfica Os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio

A pesquisa apresenta neste capítulo o trabalho fotográfico produzido na Avenida Vinte e Três de Maio sob a forma de um caderno fotográfico. As fotografias foram divididas nos subitens: Moradores Fixos, Andarilhos, Invisibilidade do Morador de Rua, Invisibilidade do Espaço Público Apropriado e O Cotidiano do Morador de Rua.

À medida que produção fotográfica foi crescendo, o envolvimento com os moradores de rua da avenida foi-se solidificando. Com o olhar amadurecido, meu interesse foi além do fotografar: queria saber onde essas pessoas moravam e de que maneira viviam. Meu olhar inicialmente voltado para fotografia foi se direcionando para a antropologia tal como Howard Becker descreve a trajetória fotógrafo-antropólogo e antropólogo-fotógrafo: ―os fotógrafos estudaram a antropologia e a sociologia, e os sociólogos estudaram a fotografia‖.147 Achutti aponta duas maneiras de se produzir um trabalho de antropologia visual:

―Um trabalho de antropologia visual que utilize a fotografia exige, por parte do antropólogo, que este domine a linguagem específica à fotografia e, por parte do fotógrafo, que seu olhar seja de um antropólogo‖.148

147 148

BECKER, Howard, apud, ACHUTTI, p. 86. ACHUTTI, op. cit., p. 83.

98


Pude perceber e classificar diferentes tipos de moradores de rua na Avenida 23 de Maio. Os moradores fixos não são muitos. Alguns têm diversos pontos ao longo da avenida, onde se fixam em função das condições climáticas e das ações de despejo movidas pela Prefeitura; outros têm residência fixa em buracos e no canteiro central, debaixo dos viadutos que cruzam a avenida. Existem também moradores de rua que circulam na Avenida 23 de Maio, mas não fixam residência: os andarilhos. Alguns deles sempre estão na avenida, enquanto outros passam apenas esporadicamente.

Os retratos da narração foto-etnográfica são divididos em duas partes: Andarilhos e Moradores fixos. O objetivo dos retratos é mostrar quem são os moradores de rua e os andarilhos que usam a avenida como ligação para o Centro da cidade e para as estradas. Todos os retratos foram feitos em close-up, assim era possível: ―... conhecer e aproximar-se dos homens...‖.149 Aproximando-me fisicamente dos moradores pude “... revelar e entender quem é este ‗outro‘, este diferente... ‖.150 A divisão entre moradores fixos e andarilhos foi feita segundo a observação dos moradores de rua que circulavam e moravam na avenida durante a pesquisa.

Ao contrário dos retratos, as fotografias dos subitens Invisibilidade do Morador de Rua e a Invisibilidade do Espaço Público Apropriado não têm a mesma proximidade física com o fotografado. A maioria delas foi feita à distância para 149

SAMAIN, Etienne. Cadernos de antropologia e imagem. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Núcleo de antropologia e imagem – n. 1 - (1995), Rio de Janeiro: UERJ, NAI, 1995. p. 145. 150 SAMAIN, op. cit., p. 145.

99


mostrar como o morador de rua se camufla no espaço em que vive. Assim, é possível comprovar que os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio e suas moradas são invisíveis. Eles se tornam visíveis através de um registro fotográfico específico, possível mediante uma observação minuciosa. Quando passava pela avenida de bicicleta lentamente não conseguia ver os esconderijos criados por moradores. Só conseguia percebê-los andando, parando e olhando atentamente. Conclui-se, portanto, que esses moradores de rua e suas moradas se tornam invisíveis devido à velocidade com que os motoristas e passageiros cruzam a avenida como foi discutido no capítulo 3.151

A maioria das moradias que aparecem nas fotografias do subitem Invisibilidade do Espaço Público Apropriado ficam em canteiros, buracos e embaixo dos viadutos. Misturando-se às árvores, entrando em buracos ou ficando debaixo dos viadutos. Estes moradores conseguem ver o que se passa na avenida, mas dificilmente são vistos pelas pessoas que circulam por ali.

151

Páginas 52 e 53.

100


Conclusão

O trabalho realizado entre 2002 e 2005 na Avenida Vinte e Três de Maio começou quando descobri que a avenida era ocupada por moradores de rua que sempre estavam no mesmo ponto do trajeto ou andavam ao longo da avenida. Fiquei surpreso quando retornei à avenida e vi as mesmas pessoas dentro do mesmo contexto de miséria social. Concluí então que a avenida era um trajeto utilizado por moradores de rua pela proximidade do Centro da cidade. No decorrer do trabalho concluí também que, enquanto os motoristas e passageiros passam temporariamente pela via, aproveitando a velocidade que ela propicia, os moradores de rua circulam lentamente pela avenida, atentos para descobrir locais para dormir e maneiras de sobreviver naquele ambiente.

Observei que a minha percepção como fotógrafo mudava quando trocava o carro pela bicicleta ao andar pela Avenida Vinte e Três de Maio. A redução da velocidade e a conseqüente mudança na relação espaço/tempo tornava estranho o trajeto que até aquele momento era familiar. Este estranhamento permitiu que eu percebesse moradores de rua camuflados ao longo dos canteiros e sob os viadutos da avenida. Essas pessoas se apropriavam do espaço público, demarcando espaços de moradia. Concluí então que, mais do que ocupar o espaço, os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio estabeleciam um vínculo com ele.

101


Com o tempo, pude estreitar meu relacionamento com os moradores de rua da Avenida Vinte e Três de Maio; já não era mais uma pessoa estranha para eles e vice-versa. Essa aproximação me fez perceber que o trabalho de campo seria favorável para entender melhor como é morar na rua. Além disso, as conversas me permitiram descobrir outros locais de moradia na avenida e algumas estratégias usadas pelos moradores de rua para sobreviverem.

A concepção da Avenida Vinte e Três de Maio - cujo desenho privilegiou os canteiros amplos e os viadutos, com a intenção de melhorar o aspecto estético e facilitar o fluxo de automóveis – resultou, ao longo do tempo, na criação de locais para ocupação temporária ou permanente de moradores de rua. Os buracos e a vegetação dos canteiros, associados à velocidade do tráfego, impedem que os moradores de rua sejam percebidos pelos motoristas e passageiros que trafegam na avenida.

Finalmente, conclui-se que a fotografia pode ser um instrumento autônomo de produção e difusão do conhecimento. Ela não só prescinde da linguagem texto como também se torna mais eficaz quando utilizada sozinha. Dessa forma, pude realizar um trabalho interdisciplinar de acordo com o programa da Universidade Presbiteriana Mackenzie em no curso de Educação, Arte e História da Cultura, interpretando as dimensões histórico-antropológico-culturais das sociedades contemporâneas, através da fotografia.

102


Este trabalho não se conclui com a pesquisa apresentada aqui. Em uma etapa futura, a ser desenvolvida, as fotografias produzidas durante este trabalho serão projetadas nos viadutos e expostas nos outdoors ao longo da Avenida Vinte e Três de Maio. A intenção desta etapa será, em primeiro lugar, tornar os moradores de rua visíveis para sensibilizar sobre os motoristas e passageiros da avenida sobre o problema da exclusão social. Pretende-se também avaliar quão eficiente é esta forma de exposição.

103


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