Revista "Pretérito Presente"

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quando o p as sado deixa de fazer sentido.

JEAN BAUDRILLARD fernando pessoa FRANÇOIS JULLIEN arnaldo jabor FEDERICO FELLINI manoel de barros

RUBEM ALVES júlio cortázar FEFE

TALAVERA nego miranda RAFAEL BORBA marcos beccari FERNANDA SANTOS clarice fensterseifer



este C D ĂŠ pa r te i nteg r a nte d a r e v i st a e nĂŁ o pode ser vend ido sepa r ad a mente.

[t r il ha s onora p a ra le it u ra]

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“ Re v i st a P r etér ito P r esente ” nº 1 - out ubr o/2 0 0 7 - u m a publ ic aç ão d a E d itor a Pret é r ito Prese nt e L t d a Fu nd a d a p or M a rcos B ecc a r i & R a fa e l B orba Proibid a a re pro duç ão tot a l ou p a rc i a l dest a publ ic aç ão. M at e r i a l or i g i n a l : C opy r i g ht © 2 0 07 Pret é r ito Prese nt e L t d a

pretérito presente E d ição/ A r te / Produção M a rc os B ec ca r i R a f a el d a Roch a B orba C l a r ic e Fen ster sei fer

Fotog ra f ia Fer n a nd a S a ntos

I mpressão Tec n ic ópi a s Repr oduç õ es Téc n ica s L td a Cu r it iba/PR

Super v isão de Projeto R it a de Cá ssi a S ol iér i Br a nt

Red ação e A d m i n ist ração

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E d itor a P r etér ito P r esente L td a - Ru a D r. Fa iv r e , 4 0 7 - E d . D om Ped r o I I - U F PR , 8 ª a nd a r - Cu r it iba/PR - Fone: 41 - 9 2 0 3 4 0 3 4 ht t p://pr eter itopr esente.blog sp ot .c om


índice 05 13 21 37

capít u lo I

A L iter at u r a

06

M a noel de Ba r r os

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Fer na ndo Pessoa

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Ju l io C or t á za r

capít u lo I I A Fi losof i a 14

Fr a nç oi s Ju l l ien

16

Jea n Baud r i l l a rd

capít u lo I I I A A r te 22

Fefe Ta l aver a

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Feder ic o Fel l i n i

32

Neg o M i r a nd a

capít u lo I V O C ot id i a no 38

Rub em A l ves

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A r na ldo Jabor

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o pret ér ito o presente some e consome as duas faces que estão do outro lado do espelho.

prefá cio

É

formidável como as pessoas valorizam o passado. Chegam a descrevê-lo como “a base da existência humana”. É nosso instinto de defesa. Temos medo e tentamos nos proteger de tudo o que nos é desconhecido. Criamos em torno de nós uma redoma de méritos e verdades (todo o conhecimento que nos foi empurrado goela abaixo). Protegemos nosso ser de um futuro jamais previsível, desprezando assim o presente, o aqui e o agora. Pretérito e presente são denominações que têm sido empregadas como se significassem a mesma coisa. Talvez até signifiquem. De fato, a percepção e a sensibilidade humanas são legitimadas inevitavelmente por experiências passadas. Desta forma, o presente pode ser entendido como o contexto de reformulação de conceitos e reavaliação de perspectivas em que vivemos. Porém, o pretérito presente é mais que isso. Trata-se pura e simplesmente de todo momento em curso, desconsiderando-se qualquer certeza dogmática e científico-religiosa. Momento esse que vem de dentro de nós mesmos ao observarmos a efemeridade e a transitoriedade de nossas vidas, fazendo coro aos desabafos de Salomão no Eclesiastes, e nos perguntamos se tudo isso faz realmente algum sentido. O pretérito presente não é um período temporal visível. É, muito antes, um estado de espírito que contagia a todos que se pretendem buscadores da verdade no presente. E quanto ao passado? Que interesses procura preservar? Quando ele deixa de fazer sentido? Ora, o passado pode ser visto por qualquer um que tenha olhos para vê-lo (e que queira usá-los para tal). O passado não pode ser oculto; não pode ser escondido, porque não é propriedade de ninguém. Se, todavia, entendermos o passado como algo que abre os olhos do indivíduo para fazê-lo ver o que antes lhe estava oculto, então sim, o passado ainda possui algum sentido. Estas e outras reflexões constituem o tema desta primeira edição da Pretérito Presente, que conta com autores como Fernando Pessoa, Arnaldo Jabor e Júlio Cortázar. O que o passado nos apresenta aos olhos é um universo repleto de possibilidades, nos convidando para que o exploremos e conheçamos sua simplicidade. A revista Pretérito Presente é, portanto, um movimento de ruptura literária que busca a conseqüência da expressão humana acumulada e a essência de sua existência investida no presente. Eis o momento de abandonarmos nossas velhas cartilhas, de reconhecer que o passado já não é mais presente e perguntar se realmente queremos isso. Corpo Editorial Edição Rafael Borba & Clarice Fensterseifer Ilustração & Redação Marcos Beccari

[ Em a nexo, t r i l h a sonor a pa r a a leit u r a d a r e v i st a .]

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capĂ­t ulo I

A Lit erat u ra 7


Edição Marcos Beccari & Clarice Fensterseifer Ilustração Rafael Borba

Manoel de Ba r ros

c a pít ulo I A L it e rat u ra

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o liv ro M

anoel Wenceslau Leite de Barros (Cuiabá, 1916) é um poeta brasileiro. Nascido à beira do rio Cuiabá, mudou quando criança para Campo Grande e mais tarde para o Rio de Janeiro, a fim de completar os estudos. Formou-se bacharel em direito em 1941, tendo antes, em 1937, publicado seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado. Na década de 1960 voltou para Campo Grande, onde passou a trabalhar como criador de gado. Desde a década de 1930 foram vários livros publicados. Sua poesia tem como temática o pantanal, representado através de sua natureza e do cotidiano. Recebeu vários prêmios, entre eles dois Prêmios Jabutis e um Prêmio APCA de melhor poesia.


das ignorã ças No descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos. A criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para som. Então se a criança muda a função de um verbo, ele delira. E pois. Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio. Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh. Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto. Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz. Hoje eu desenho o cheiro das árvores. Não tem altura o silêncio das pedras. As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul – Que nem uma criança que você olha de ave. Poesia é voar fora da asa.

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Edição Marcos Beccari & Clarice Fensterseifer Ilustração Rafael Borba

Fer nando Pe ssoa

c a pít ulo I A L it e rat u ra

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F

ernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta e escritor português. É considerado um dos maiores poetas de língua portuguesa tendo seu valor comparado ao de Camões. O crítico literário Harold Bloom considerou-o, ao lado de Pablo Neruda, o mais representativo poeta do século XX. Por ter vivido a maior parte de sua juventude na África do Sul, a língua inglesa também possui destaque em sua vida, com Pessoa traduzindo, escrevendo, trabalhando e estudando no idioma. Teve uma vida discreta, em que atuou no jornalismo, na publicidade, no comércio e, principalmente, na literatura, onde desdobrou-se em várias outras personalidades conhecidas como heterônimos. A figura enigmática em que se tornou movimenta grande parte dos estudos sobre sua vida e obra, além do fato de ser o maior autor da heteronímia. Morre de problemas hepáticos aos 47 anos na mesma cidade onde nascera, tendo sua última frase sido escrita na língua inglesa: “I know not what tomorrow will bring... “.


de sassossego

N

.unca durmo: vivo e sonhos, ou antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não há interrupção em minha consciência: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim, o que sou é um perpétuo desenrolamento de imagens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz, se estou desperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso afirmar se não durmo quando estou desperto, se não estou a despertar quando durmo. A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, se estiver desenrolada é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde. Sinto isso, que depois escreverei, pois que vou já sonhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruído da chuva lá fora, a tornarmos mais vagos ainda. São ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisível desce em som a mágoa água que vento alça. Continuo dormindo. Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a tragédia de que resultou a vida. Eram dois e belos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro, e a saudades do que haveria de ser vinha já sendo filha do amor que já não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques próximos, pois através do deserto próprio, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto próprio das áleas abandonadas. Eram crianças inteiramente, pois que o não eram em verdade. De álea em álea, silhuetas entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que não durmo, e também sei viver infeliz. Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; nele roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro. Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais do que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos. Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; não sei, porém, de que lado está. É como se assistisse a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano. Chagam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Peso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serão iguais as velocidades identicas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se não realmente sincrônicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente.

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Edição Rafael Borba & Clarice Fensterseifer Ilustração Marcos Beccari

Julio Cor tá za r

c a pít ulo I A L it e rat u ra

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instr uç uma J

ulio Florencio Cortázar (Bruxelas, 26 de agosto de 1914 - Paris, 12 de fevereiro de 1984) foi um escritor argentino. De pais argentinos, evoltou à Argentina aos quatro anos de idade. Formou-se professor e lecionou em algumas cidades do interior do país, inclusive na Universidade de Cuyo, mas renunciou ao cargo quando Perón assumiu a presidência. Em 1951, Cortázar partiu para Paris (França), onde trabalhou como tradutor da Unesco e viveu até a sua morte, por leucemia, em 1984. Foi enterrado no cemitério de Montparnasse. Seu livro mais conhecido é o romance O Jogo da Amarelinha (1963). No entanto, a maior parte de sua obra é composta de contos, reunidos em livros como Bestiário (1951), Final de Jogo (1956), Todos os Fogos o Fogo (1966) e As Armas Secretas (1959), para citar apenas alguns. Cortázar inspirou um grande número de cineastas, entre eles o italiano Michelangelo Antonioni, cujo longa-metragem Blow-up foi baseado no conto As Babas do Diabo (do livro As Armas Secretas).


N

. inguém terá deixado de observar que freqüentemente o chão se dobra de tal maneira que uma parte sobe em ângulo reto com o plano do chão, e logo a parte seguinte se coloca paralela a esse plano, para dar passagem a uma perpendicular, comportamento que se repete em espiral ou em linha quebrada até alturas extremamente variáveis. Abaixando-se e pondo a mão esquerda numa das partes verticais, e a direita na horizontal correspondente, fica-se na posse momentânea de um degrau ou escalão. Cada um desses degraus, formados, como se vê, por dois elementos, situa-se um pouco mais acima e mais adiante do anterior, princípio que dá sentido à escada, já que qualquer outra combinação produziria formas talvez mais bonitas ou pitorescas, mas incapazes de transportar as pessoas do térreo ao primeiro andar. As escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incômodas. A atitude natural consiste em manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, embora não tanto que os olhos deixem de ver os degraus imediatamente superiores ao que se está pisando, a respiração lenta e regular. Para subir uma escada começa-se por levantar aquela parte do corpo situada em baixo à direta, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.) Chegando dessa maneira ao segundo degrau, será suficiente repetir alternadamente os movimentos até chegar ao fim da escada. Pode-se sair dela com facilidade, com um ligeiro golpe de calcanhar que fixa em seu lugar, do qual não se moverá até o memento da descida.

õe s pa ra subi r e scada

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“ “ “

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É absu rdo f i xa r r eg r a s sobr e o que se de ve e o que n a o se de ve ler. M a i s d a met a de d a c u lt u r a moder na depende do que se nao de ve ler.”

Os poet a s são a s pr ost it ut a s do mu ndo.”

Não d i sc uto c om o dest i no. O que pi nt a r eu a ssi no”

Osca r Wi lde

C ha r les Bu kow sk i

Pau lo L em i nsk i


capĂ­t ulo I I

A Filosof ia 15


............................ ......... ... 16

Edição Clarice Fensterseifer Fotografia Fernanda Santos Ilustração Marcos Beccari & Rafael Borba

François Jullien

c a pít ulo I I A Filo s of ia

um sá bio nã o t em idéia.. ............ .................

U

. m sábio, estabeleceremos de saída, não tem idéia. “Não ter idéia” significa que ele evita pôr uma idéia à frente das outras- em detrimento das outras: não há idéia que ele ponha em primeiro lugar, posta em princípio, servindo de fundamento ou simplesmente de início, a partir do qual seu pensamento poderia se deduzir ou, pelo menos, se desenvolver. Princípio, arché: ao mesmo tempo o que começa e o que comanda, aquilo por que o pensamento pode começar. Uma vez ele colocado, o resto segue. Mas, justamente, aí está a cilada, o sábio teme essa direção imediatamente tomada e a hegemonia que ela instaura. Porque a idéia assim que é proposta faz as outras refluírem, nem que para vir depois a associá-las a si, ou antes, ela já as jugulou por baixo do pano. O sábio teme esse poder ordenador do primeiro. Assim, essas “idéias”, ele tratará de mantê-las no mesmo plano – e está nisso sua sabedoria: mantê-las igualmente possíveis, igualmente acessíveis, sem que nenhuma, passando a frente, venha a ocultar a outra, lance sombra sobre a outra, em suma, sem que nenhuma seja privilegiada. “Não ter idéia” significa que o sábio não está de posse de nenhuma, não é prisioneiro de nenhuma. Sejamos mais rigorosos, literais: ele não avança nenhuma. Mas é possível evitar isso? Como poderíamos pensar sem nada propor? No entanto, assim que começamos a avançar uma idéia, diz-nos a sabedoria, é todo o real (ou todo o pensável) que, de repente, recua: ou antes, ei-lo perdido atrás, será necessário tanto esforço e mediação, daí em diante, para se aproximar dele. Essa primeira idéia proposta rompeu o fundo de evidência que nos rodeava; apontando de um lado, este em vez daquele, ela nos fez pender para o arbitrário, nós fomos para este lado e o outro fica perdido, a queda é irremediável: ainda que depois reconstruamos todas as cadeias de razões possíveis,

nunca escaparemos – aprofundaremos sempre mais, enterraremos sempre mais, enterraremos sempre mais, sempre presos nas anfractuosidades e nas entranhas do pensamento, sem nunca mais voltar à superfície, plana, a da evidência. Por isso, se você desejar que o mundo continue a se oferecer a você, diz-nos a sabedoria, e que, para tanto, ele possa permanecer indefinidamente igual, absolutamente estacionário, você tem de renunciar à arbitrariedade de uma primeira idéia (de uma idéia posta em primeiro; inclusive aquela pela qual acabo de começar). Porque toda primeira idéia já é sectária: ela começou a monopolizar e, com isso, a deixar de lado. Já o sábio não deixa nada de lado, não deixa nada de mão. Ora, ele sabe que, ao se propor uma idéia, já se toma, nem que temporariamente, certo partido em relação à realidade: quem se põe a puxar um fio da meada das coerências, este em vez daquele, começa a preguear (plisser) o pensamento em certo sentido. Por isso, propor uma idéia seria perder de saída o que você queria começar a esclarecer, por mais prudente e metodicamente que o faça: você fica condenado a um ângulo de visão particular, por mais que se esforce depois para reconquistar a totalidade; e, daí em diante, não parará de depender dessa prega (plí), a prega formada pela primeira idéia proposta, de passar por ela; não parará mais, tampouco, de voltar a ela, querendo suprimi-la, e por isso de amarrotar de outro modo o campo do pensável – mas perde para sempre o sem pregas do pensamento. Ora, avançar uma idéia, é por aí que começa – e que não cessa – a história da filosofia: dessa idéia que se avança, fazse um princípio e o resto segue – o pensamento se organiza em sistema; dessa idéia avançada faz-se o ponto saliente do pensamento que um defende, e o outro tem um “gancho” para refutá-lo. A partir desse parti pris proposto, uma doutrina pode se constituir, uma escola se formar, um debate – que não terá mais fim – é iniciado.


............................................. O que fazemos hoje com a sabedoria? O que pode ser uma lógica da sabedoria? Como foi possível fazer uma “fixação” sobre a verdade? O objetivo do filósofo e sinólogo François Julien é, em suas próprias palavras, “abrir a razão”, retirando a sabedoria “do horizonte místico” que atualmente ocupa.

...................

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Ilustração Marcos Beccari & Rafael Borba Edição Clarice Fensterseifer

Jean Baud r illa rd

c a pít ulo I I A Filo s of ia

Suas teorias contradizem o discurso da “verdade absoluta” e contribuem para o questionamento da situação de dominação imposta pelos complexos e contemporâneos sistemas de signos. Os impactos do desenvolvimento da tecnologia e a abstração das representações dos discursos são outros fenômenos que servem de objeto para os seus estudos. 18

senhas o virtual


E

m sua acepção mais usual, o virtual se opõe ao real, mas sua súbita emergência, pelo viés das novas Tecnologias, dá a impressão de que, a partir de então, ele marca a eliminação, o fim desse real. Do meu ponto de vista, como já disse, fazer acontecer um mundo real é já produzi-lo, e o real jamais foi outra coisa senão uma forma de simulação. Podemos, certamente, pretender que exista um efeito de real, um efeito de verdade, um efeito de objetividade, mas o real, em si, não existe. O virtual não é, então, mais que uma hipérbole dessa tendência a passar do simbólico para o real - que é o seu grau zero. Neste sentido, o virtual coincide com a noção de hiper-realidade. Á realidade virtual, a que seria perfeitamente homogeneizada, colocada em números, “operacionalizada”, substitui a outra porque ela é perfeita, controlável e não contraditória. Por conseguinte, como ela é mais “acabada”, ela é mais real do que o que construímos como simulacro. Mas é preciso que se diga que esta expressão, “realidade virtual”, é um verdadeiro oxímoro. Não estamos mais na boa e velha acepção filosófica em que o virtual era o que estava destinado a tornarse ato, e em que se instaurava uma dialética entre as duas noções. Agora, o virtual é o que está no lugar do real, é mesmo sua solução final na medida em que efetiva o mundo em sua realidade definitiva e, ao mesmo tempo, assinala sua dissolução.

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Chegando a esse ponto, é o virtual que nos pensa: não há mais necessidade de um sujeito do pensamento, de um sujeito da ação, tudo se passa pelo viés de mediações tecnológicas. Mas será que o virtual é o que põe fim, definitivamente, a um mundo do real e do jogo, ou ele faz parte de uma experimentação com a qual estamos jogando? Será que não estamos representando a comédia do virtual, com um toque de ironia, como na comédia do poder? Essa imensa instalação da virtualidade, essa performance no sentido artístico, não é ela, no fundo, uma nova cena, em que operadores substituíram os atores? Ela não deveria, então, ser mais digna de crença que qualquer outra organização ideológica. Hipótese que não deixa de ser tranqüilizante: no final das contas tudo isso não seria muito sério, e a exterminação da realidade não seria, em absoluto, algo incontestável. Mas, no momento em que nosso mundo efetivamente inventa para si mesmo seu duplo virtual, é preciso ver que isto é a realização de uma tendência que se iniciou há bastante tempo. A realidade, como sabemos, não existiu desde sempre. Só se fala dela a partir do momento em que há uma racionalidade para dizê-la, parâmetros que permitem representá-la por signos codificados e decodificáveis. No virtual, não se trata mais de valor; trata-se, pura e simplesmente, de gerar informação, de efetuar cálculos, de uma computação generalizada em que os efeitos de real desaparecem. O virtual seria verdadeiramente o horizonte do real - no sentido com que se fala do horizonte dos eventos em física. Mas podemos igualmente pensar que tudo isso não passa de um caminho mais curto para uma jogada que não podemos ainda discernir qual seja.

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Existe atualmente uma verdadeira fascinação pelo virtual e todas as suas tecnologias. Se ele é verdadeiramente um modo de desaparecer, esta seria uma escolha - obscura, mas deliberada - da própria espécie: a de se clonar, corpo e bens, em um outro universo, de desaparecer enquanto espécie humana propriamente dita para perpetuar-se em uma espécie artificial que teria atributos muito mais performáticos, muito mais operacionais. Será que é nisto que se aposta? Penso na fábula borgesiana do povo que foi levado ao ostracismo, jogado para o outro lado do espelho e que não é mais que o reflexo do imperador que o submeteu. Seria assim o grande sistema do virtual, e todo o resto não seria mais que uma espécie de clones, dejetos, algo abjeto. Porém, na fábula, aquelas populações começam a parecer-se cada vez menos com seu dominador, e, um dia, eles retornam para o lado de cá do espelho. A partir de então, diz Borges, eles não serão mais vencidos. Pode-se imaginar uma catástrofe desse gênero e, ao mesmo tempo, uma espécie de revolução em terceiro grau? Quanto a mim, eu vejo mais uma tal hipertrofia do virtual que acabaria por engendrar uma forma de implosão. A que daria ela lugar? É difícil dizer, porque, além do virtual, eu não vejo nada, a não ser o que Freud chamava de nirvana, uma troca de substância molecular e nada mais. Restaria apenas um sistema ondulatório perfeito, que agruparia os corpúsculos em um universo puramente físico, nada mais tendo de humano, de moral, nem, evidentemente, de metafísico. Voltar-se-ia, assim, a um estágio material, com urna enlouquecida circulação de elementos... Abandonemos a ficção científica. Não podemos, contudo, deixar de constatar a singular ironia que existe no fato de que essas tecnologias, que relacionamos com a inumanidade, o aniquilamento, possam talvez, no final das contas, vir a ser o que nos fará ficar quites com o mundo do valor, o mundo dos juízos. Toda essa pesada cultura moral, filosófica, que o pensamento radical moderno empenhou-se metafisicamente em liquidar ao cabo de um labor extenuante, a técnica a expulsa, pragmática e radicalmente, com o virtual. No estágio em que estamos, não sabemos se - ponto de vista otimista - ao chegar a um ponto de extrema sofisticação, a técnica nos libertará da própria técnica, ou se caminharemos para a catástrofe. Mesmo que a catástrofe, no sentido dramaturgo do termo, isto é, de desenlace, possa ter, segundo os protagonistas, formas infelizes ou felizes.

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“ “ “

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M a s o que é f i losofa r hoje em d i a - quer o d i zer, a at iv id a de f i losóf ica - a n ã o ser o t r aba l ho c r ít ic o do pen sa mento sobr e o pr ópr io p en sa mento.”

M ichel Foucau lt

Pa r a m i m , o f i lósofo é u m ex plosivo ter r ível em c uja pr esença t udo c or r e p er i g o.”

Fr ied r ich Niet zsche

E le supõe sab er a l g u m a c oi sa e não sab e , enqu a nto eu , se n ã o sei , t a mp ouc o sup on ho sab er. Pa r ec e que sou u m pouc o m a i s sábio que ele ex at a mente p or n ã o sup or que sa iba o que não sei .”

S óc rates


capĂ­t ulo I I I

A Arte

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ccaapít pítulo ulo IIIIII AA AArrttee

Edição Clarice Fensterseifer Design Marcos Beccari & Rafael Borba

Fefe Talavera

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a letra


A v i rou bicho

selva de pedra paulistana esconde seres agressivos. À espreita, protegidos por uma camuflagem, fundido às reder, eles esperam a hora de pular no seu pescoço. São leões, dinossauros, elefantes, polvos, hienas, gatos e cachorros. Eles rugem com a boca cheia de letras. Também de letras são feitos seus dentes, suas patas, seus corpos e suas caldas. Cuidado, você está cercado pela fauna de Fefe Talavera. Fefe põe seus bichos para fora desde pequena. Eles já foram feitos de muitos materiais, mas foi nas letras dos posters de lambe-lambe que ela encontrou os ossos e músculos ideais para construir seus animais. Numa vista a pequena gráfica que ainda usa carcomidos, tipos de madeira para imprimir grandes posters que anunciam quase todos os shows da cidade, Fefe achou seu tesouro. Procurando apenas um suporte para seus desenhos, ela logo percebeu que não era no verso do papel fino que estava o seu futuro trabalho. As grandes letras de estilos indefinidos, pertencentes a famílias tipográficas cujos nomes não são conhecidos, seduziram a artista. Foi amor à primeira vista.

[composição à p a r t i r d a s obr a s d a a r t ist a]

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As caricaturas da artista convidam nosso olhar a percorrer seus corpos: uma rápida tentativa de leitura. Inútil. Fefe não escreve, desenha. E logo descobrimos como pode ser divertido procurar nossos tipos favoritos no meio das letras embaralhadas, numa espécie de jogo. Ela formou-se em Artes Plásticas na FAAP em 2003. Foi durante o curso que percebeu qual o melhor lugar para desenvolver seu ecossistema: a rua. Desde então a tela é o muro, mas a técnica foi mudando: primeiro o pincel, depois o canetão, o stencil, o sticker, até chegar aos lambes. Depois de escolher o muro ideal – “Gosto quando tem uma árvore”, diz ela – numa rua calma, pois, “são as melhores, muito carro e barulho me atrapalham”, começa o trabalho. Um rápido esboço com canetão e é hora de lambuzar tudo para preparar a superfície. Com rodinho e cola de farinha, letra por letra, Fefe constrói mais um bichão. Mas nem só de feras é composta sua floresta. Nela moram pingüins, macacos, porcos, antas, pavões, preguiças, capivaras, pulgas e ácaros. As pessoas param, perguntam e comentam. Muitas elogiam, outras não entendem, algumas recriminam. O que elas não sabem é que até o mais inocente animal de papel pode atacar se provocado.

htt p : / / w w w. f r e e fo t o l o g . n e t / f f t a l avera . http://www.flickr.com/photos/fefe_talavera . http://fefetalavera.blogspot.com

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Edição Clarice Fensterseifer Design Marcos Beccari & Rafael Borba

Feder ico Fellini

c a pít ulo I I I A A r t e

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F

ellini nasceu em 1920, em Rimini, pequena cidade litorânea da Itália. Começou como jornalista em Florença, na revista de humor “Marc Aurelio”, demonstrando ser excelente desenhista e caricaturista. Logo depois, passou a escrever pequenos roteiros e piadas para comediantes. Seus mestres no cinema foram Rossellini, para quem trabalhou em vários projetos (inclusive “Roma, cidade aberta” e “Paisà”), adquirindo conhecimento da mecânica da produção audiovisual, e Lattuada, com quem co-dirigiu seu primeiro filme. A inspiração neo-realista é evidente na primeira fase de suas obras, com muitos personagens populares, de fácil identificação e grande carga emocional. Pouco a pouco, contudo, a imaginação de Fellini foi superando seu compromisso com a realidade. Em “Oito e meio” já estão presentes o sonho, a fantasia e o grotesco, que formariam a matéria-prima de sua carreira. Fellini escrevia roteiros, mas sempre a contragosto. Dizia que era uma pena transformar em palavras o que, na verdade, deveria ser transportado diretamente da sua imaginação para o filme. Gostava de improvisar, de trabalhar com não-atores e de não planejar muito sistematicamente sua rotina de trabalho. Sabia


cercar-se de outros grandes talentos, que enriqueciam os filmes e davam um suporte seguro para suas “pirações”: Giulietta Masina (atriz), Marcello Mastroianni (ator), Nino Rotta (músico), Tonino Guerra (roteirista). Apesar de, em alguns filmes (principalmente em sua obra-prima “Amarcord” e no feroz “Ensaio de Orquestra”) abordar temas políticos, Fellini não se sentia à vontade com cobranças ideológicas: “Minha natureza não é política; e o discurso político me confunde na maioria das vezes. Não o compreendo. Mas confesso isso como uma fraqueza, como uma de minhas carências.” Poucos diretores de cinema conseguiram marcar tão claramente seu estilo, a ponto de virar adjetivo. Dizer que tal filme ou tal personagem é “felliniano” significa identificá-lo com a estética ao mesmo tempo barroca e popular de seus trabalhos das décadas de 60 e 70, em que o exagero e a predileção pelo inusitado conduzem, na verdade, a uma reflexão séria - e muitas vezes cruel - sobre o cotidiano de seres humanos frágeis e anônimos. Em seus melhores filmes, como “Os boas vidas”, “Julieta dos espíritos”, “A doce vida”, “Amarcord” e “La nave va”, Fellini demonstra que o cinema pode ser absolutamente autoral sem perder sua universalidade.

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Acho que quando crianças todos temos um relacionamento embaçado, sonhado com a realidade; para uma criança tudo é fantástico porque é desconhecido, jamais visto, nunca experimentado, o mundo apresenta-se diante de seus olhos totalmente desprovido de intenções, de significados, vazio de síntese conceitual, de elaborações simbólicas, é só um gigantesco espetáculo, gratuito e maravilhoso, uma espécie de ameba que respira e ultrapassou os limites, na qual tudo habita, sujeito e objeto, confusos num único fluxo incontrolável, visionário e inconsciente, fascinante e aterrorizante, do qual ainda não emergiu o vértice, a fronteira da consciência. Até o segundo grau nunca havia me perguntado o que faria da vida; não conseguia me projetar no futuro. Pensava na profissão como algo que não se pode evitar, como a missa de domingo. Nunca disse: “Quando crescer serei.” Não tinha a impressão de que um dia cresceria e, no fundo, não estava errado. Do dia em que nasci até a primeira vez que entrei na Cinecittà, parece que minha vida foi vivida por outra pessoa, alguém que só de vez em quando e quando menos se espera decide me fazer participar de alguns fragmentos de sua memória. Então devo admitir que os filmes de minha memória falam de lembranças completamente inventadas. E para dizer a verdade, que diferença isso faz? Como dizer de que maneira nasce a idéia de um filme? Quando e de onde vem, os itinerários tantas vezes desconexos ou dissimulados que percorre? Passaram-se 25 anos desde que filmei A Doce Vida e é difícil lembrar. Parece que quando um filme acaba ele sai para sempre de mim, levando embora tudo, inclusive as lembranças. Se eu disser, por exemplo, que um filme pode nascer de um detalhe insignificante, como a impressão de uma cor, a recordação de um olhar ou de uma música que volta à memória, obsessiva e atormentadora, por dias inteiros; ou então, como você bem me fez lembrar, que vi A Doce Vida quando apareceu uma mulher que caminhava pela via Veneto numa manhã ensolarada enfiada num vestido que a fazia parecer uma verdura, não tenho certeza de estar sendo de todo sincero, e quando um amigo jornalista se lembra disso, me sinto ridículo. Não acredito que no mundo exista muita gente que considere a própria

fa zer um

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f ilme

vida mal resolvida porque eu não soube precisar a relação entre aquele vestido da moda saco e o filme que fiz depois. Mas talvez minha impaciência com relação a este tipo de pergunta venha do fato de que muitas vezes as ocasiões que originam um processo criativo, sobretudo se identificadas e alegadas de maneira clara demais, como distintos indícios para severas visitações semiológicas, de repente podem se tornar improváveis, às vezes até meio cômicas ou insuportavelmente exibidas, até mesmo falsas, ou dotadas de uma profunda e embaraçadora gratuidade. Por que desenho os personagens de meus filmes? Por que tomo notas gráficas dos rostos, dos narizes, dos bigodes, das gravatas, das bolsas, da maneira como cruzam as pernas, das pessoas que vêm me encontrar no escritório? Talvez já tenha dito que é uma forma de começar a olhar a cara do filme, para ver de que tipo é, a tentativa de fixar alguma coisa, ainda que minúscula, no limite da insignificância, mas que, de qualquer forma, me parece ter algo a ver com o filme e me fala dele de modo velado; não sei, talvez seja até um pretexto para dar início a um relacionamento, um expediente para segurar o filme, ou melhor, para retardá-lo. Por que faço aquele filme, aquele em vez de outro? Não quero saber. Os motivos são obscuros, inextricáveis, confusos. A única razão que posso declarar com honestidade é a assinatura de um contrato: assino, pego um adiantamento e depois, como não quero restituí-lo, sou obrigado a fazer um filme. E procure fazê-lo da maneira como acho que quer ser feito.”

.Federico Fellini

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la dolce v ita

1960

O

filme se passa em Roma e conta a história de Marcello Rubini, um jornalista especializado em histórias sensacionalistas sobre estrelas de cinema, visões religiosas e a aristocracia decadente, que passa a cobrir a visita da atriz hollywoodiana Sylvia Rank, por quem fica fascinado. Através dos olhos deste personagem, Fellini mostra uma Roma moderna, sofisticada, mas decadente, com os sinais da influência estadunidense. O repórter é um homem sem compromisso, que se relaciona com várias mulheres: a amante ciumenta, a mulher sofisticada em busca de aventura, e a atriz de Hollywood, com a qual passeia por Roma, culminando no ponto alto do filme, a famosa sequência da Fontana di Trevi. Outra sequência famosa do filme é a da abertura, na qual o jornalista, num helicóptero que transporta uma estátua de Jesus até o Vaticano, encontra uma mulher tomando sol numa cobertura e pergunta pelo seu número de telefone. O barulho dos motores impede que ambos possam se entender. A temática da falta de comunicação se repete ao longo de todo o filme. Dentre os momentos mais importantes do filme, está aquele na qual duas meninas atraem uma multidão, ao fingirem ver uma aparição da Virgem Maria nos subúrbios de Roma; e quando o personagem Steiner, um intelectual e colega de Marcello, que vive com a sua família numa aparente harmonia, comete o assassinato do seu próprio filho e se suicida em seguida. Após a morte de Steiner, Marcello embarca numa vida de orgias e, numa destas ocasiões, pela manhã, caminha pela praia em busca de um monstro marítimo morto, o final simbólico do filme. Curiosidades sobre o filme: - O personagem “Paparazzo”, fotógrafo interpretado por Walter Santesso, que trabalha com Marcello Rubini, é a origem do termo que descreve os fotógrafos intrusivos, denominados paparazzi, no plural. - No filme aparece Christa Paffgen, que adotou o pseudônimo de Nico, e fez parte da banda Velvet Underground. - Na “festa dos nobres” alguns dos garçons eram aristocratas verdadeiros. A modelo e cantora Nico interpreta a si própria nesta cena. - Na cena do clube romano de estilo antigo, na qual Marcello faz sua primeira investida em “Sylvia” (Anita Ekberg), aparece Adriano Celentano, que anos mais tarde se tornou famoso na Itália como cantor e ator.

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[A n it a E k berg . “ L a D olc e V it a� . 19 6 0]


c a pít ulo I I I A A r t e

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Edição Clarice Fensterseifer Design Marcos Beccari & Rafael Borba

Nego Mi randa

N

. ego Miranda nasceu em Curitiba/Paraná, em 1945. o início da carreira interessa-se por cinema e viaja para o Rio de Janeiro, onde freqüenta um curso de cinema no Museu de Arte Moderna (1969). Trabalhou na Abracan Filmes e foi assistente de Pedro Paulo Lazzarini até 1975. Retorna a Curitiba, estuda filosofia e conclui o curso técnico de eletrônica do Centro Federal de Educação Técnica do Paraná. Começa a trabalhar com fotografia no campo da publicidade e paralelamente desenvolve trabalhos de expressão pessoal. Fotografou o cultivo da erva mate, as indústrias madeireiras, a arquitetura tradicional de madeira do Paraná, o tabaco em Havana e ensaios sobre o nu. Foi premiado no 2º. Salão Internacional de Fotografia em Havana (1994), no 2º. Concurso Ilford/Micro de Fotografia P&B e na Bienal de Fotografia Ecológica de Porto Alegre (1982), entre outros. Atua também na área editorial e na reprodução de obras de arte.

igrejas


de madei ra do pa raná “o olho e a luz”

A

s primeiras teorias semióticas viam a fotografia como um espelho da realidade. Segundo Pierce, ela é um ícone. Depois veio a celebrada geração dos iconoclastas que a julgaram uma versão codificada da realidade. Um símbolo. Agora, a fotografia passou a ser entendida pelo que realmente é: um índice, ou mais especificamente, um traço deixado para trás por aquilo que ela se refere. Nego Miranda é um mestre desta arte construída pela imagem técnica que introjetou em sua criação as leis da visualidade, permitindo que à realidade do visível fosse dada uma camada interpretativa. É uma longa história de dedicação e pesquisa. De treino do olhar e da firmeza dos músculos. Como se fosse um arqueiro oriental, a respiração presa, a intuição do momento do disparo. Desde os anos setenta, quando o conheci em toda a sua generosidade, Miranda realiza seus exercícios diários e pacientes que combinam o olhar e o tempo exato da apreensão da luz.

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Ele nos tem dado trabalhos incríveis que agora se transformam em álbuns, uma bela maneira de fazer com que sua obra esteja organizada e acessível. O último é este conjunto de fotos que muito nos tocou. Igrejas de Madeira do Paraná. Nele, Miranda nos devolve em imagens os melhores exemplos de uma arquitetura emblemática da civilização surgida de luta e trabalho há mais de século nesta área úmida do planeta. Houve um tempo em que a devastação era sinal de progresso. Sou dessa época e de uma região que viu suas florestas desaparecerem no prazo de décadas. O Paraná foi construído assim, cortando suas árvores, desnudando a terra e erguendo-se em construções feitas de madeira. Muitas cidades do oeste surgiram de aldeamentos em torno de serrarias, as únicas indústrias da região no período dos pioneiros. Só mais tarde a terra seria ocupada pela agricultura. Antes dos semeadores vinham os ceifadores para derrubar a mata. No momento da ocupação a maior riqueza que a terra propiciava era a madeira que lá estava há séculos.

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Pinho, peroba, lapacho, ipê, marfim. De minha cidade, Foz do Iguaçu, desciam pelo rio Paraná em balsas imensas. A primeira instituição a se instalar nesses povoados que hoje são grandes cidades foi a Igreja. Antes do Estado, antes das leis, a Santa Madre chegava para dar ordem e estabelecer regras da convivência. A igreja erguida na praça principal mostrava que existia ali uma sociedade que pretendia sobreviver ao próprio esforço devastador. Igrejas de madeira. A partir delas se alongavam os caminhos e cresciam as cidades. Às vezes simples capelas, outras magníficas construções feitas da provisoriedade da madeira para garantias de eternidade. Estas igrejas que o olho do Nego Miranda fixou neste álbum de impressionante clareza. Quando falo em clareza me refiro a essa capacidade de Miranda para nos restituir, sem truques, sem intervenções adulteradoras, e no entanto com sinais de sua refinada sensibilidade, a imagem fresca de um passado cujos traços começam a desaparecer por completo e do qual só teremos, dentro em pouco, as imagens feitas pelo mestre.


t e x t o d e Ma r ia Cr i s t ina Wol f f d e C a r val ho

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“ “ “

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A a r te é u m a ment i r a que nos fa z c ompr eender a verd a de.”

Pablo P ica sso

S omente qu a ndo não se sab e o que est á fa zendo, u m pi ntor f a z a s b oa s obr a s.”

E d g a r D eg a s

Um a pessoa enc ont r a o seu est i lo qu a ndo não c on seg ue at u a r de out r o modo.”

Pau l K lee


capĂ­t ulo I V

O Cotidiano 39


c a pit ulo 1 V O C ot idiano

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Edição Clarice Fensterseifer Ilustração Rafael Borba & Marcos Beccari

Rubem Alve s

R

ubem Alves (Boa Esperança, Minas Gerais, 15 de setembro de 1933) é um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis. Durante sua infância, enfrentou os problemas comuns ocasionados pelas freqüentes mudanças de estados e de escolas. Tais mudanças influenciaram sua atitude de introspecção que o levou à companhia dos livros e ao apoio da religião, base de sua educação. Presbiteriano, tornou-se pastor. Teve três filhos, e entrou numa crise de fé decorrente de um problema de saúde na família, tendo assim de abandonar o pastorado. Apóstata do cristianismo, tornou-se crítico da religião organizada. É considerado persona non grata na Igreja Presbiteriana, pelas suas posições liberais e anticlericais.De volta ao mundo secular, tornou-se escritor e acadêmico, de onde vem sua fama.

koan

O

s mestres Zen eram educadores estranhos. Não pretendiam ensinar coisa alguma. O que desejavam era “desensinar”. Avaliações de aprendizagem? Nem pensar. Mas estavam constantemente avaliando a desaprendizagem dos seus discípulos. E quando percebiam que a desaprendizagem acontecera, eles riam de felicidade... Loucos? Há uma razão na loucura. “Desensinavam” para que os discípulos pudessem ver como nunca tinham visto. Nietzsche dizia que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. Ver é coisa complicada, não é função natural. Precisa ser aprendida. Os olhos são órgãos anatômicos que funcionam segundo as leis da física ótica. Mas a visão não obedece às leis da física ótica. Bernardo Soares: “O que vemos não é o que vemos, senão o que somos”. É preciso ser diferente para ver diferente. Mas, e o “Ser”? Ele é feito de quê? “Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo”, dizia Wittgenstein. O “Ser” é feito de palavras. Prisioneiros da linguagem, só vemos aquilo que a linguagem permite e ordena ver. A visão é um


a escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir processo pelo qual construímos nossas impressões óticas segundo o modelo que a linguagem impõe. Então, para se ver diferente, é inútil refinar a linguagem, refinar as teorias. O refinamento das teorias só aumenta a clareza da mesmice. A pedagogia dos mestres Zen tinha por objetivo desarticular a linguagem, quebrar o seu “feitiço”. Com o que concordaria Wittengstein, que definia a filosofia como uma luta com o feitiço da linguagem. Quebrado o feitiço, os olhos são libertados dos “saberes” e ganham a condição de olhos de criança: vêem como nunca haviam visto. Está lá em Alberto Caeiro, que fazia poesia para que os seus leitores ganhassem olhos de criança... A psicanálise é uma versão moderna da pedagogia Zen. Freud sugeriu que os neuróticos são pessoas “possuídas” pela memória, memória que as obriga a viver vendo um mundo da forma como o viram num dia passado. A memória nos torna prisioneiros do passado, não nos deixa perceber a “eterna novidade do Mundo”. Os neuróticos são prisioneiros da sua mesmice. Por isso, são confiáveis: serão hoje

e amanhã o que foram ontem. A psicanálise é uma pedagogia da desaprendizagem. É preciso esquecer o que se sabe a fim de ver o que não se via. Se a terapia for bem-sucedida, se o paciente conseguir desaprender suas memórias, então ele estará livre para ver o mundo que nunca havia imaginado. Roland Barthes teve uma iluminação Zen na sua velhice. Na sua famosa “Aula”, ele diz, como “últimas palavras”: Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; vem, em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender. E ele concluiu: “Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia...” Os mestres Zen nada ensinavam. O seu objetivo era levar os seus discípulos a “desaprender” o que sabiam, a ficar livres de qualquer filosofia. Para isso eles se valiam de um artifício pedagógico a que davam nome de koan. Koans são

“rasteiras” que os mestres aplicam na linguagem dos discípulos: é preciso que eles caiam nas rachaduras de seus próprios saberes. A psicanálise repete a mesma coisa: a verdade aparece inesperadamente quando acontece o lapsus, a queda, uma fratura do discurso lógico. Aí, nesse momento, a iluminação acontece. Abre-se um terceiro olho que estava fechado. Acontece o satori: o discípulo fica iluminado... Isso que estou dizendo os poetas sempre souberam. Poemas são koans, violências à lógica da linguagem para que o leitor veja um mundo que nunca havia visto. É por isso que a experiência poética é sempre um evento místico, de euforia. Não resisto à tentação de transcrever um trecho do poema de Vinícius de Moraes, “O operário em construção”. Tenho medo desse poema porque choro todas as vezes que o leio. Ele começa descrevendo a mesmice do mundo que o operário via no seu cotidiano, os pensamentos que ele pensava, as palavras que ele falava. Mas, de repente...

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do li v ro “Amor é pro s a , s e xo é p o e sia”

c a pit ulo 1 V O C ot idiano

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A r naldo Jabor

A

rnaldo Jabor (Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1940) é cineasta brasileiro, crítico e escritor. Já foi técnico de som, crítico de teatro, roteirista e diretor de curtas e longas metragens. Os textos de Arnaldo Jabor têm o poder de despertar, inquietar, polemizar. Ácidos, líricos, deliciosamente vorazes, estão sempre sintonizados com os assuntos que mexem com a vida dos brasileiros e brasileiras. ‘Amor é prosa, sexo é poesia’ reúne suas melhores crônicas sobre nossas obsessões mais íntimas; sexo e amor, família, mulheres. São 36 textos em que Jabor anuncia sem pudores sua fome de beleza em tudo; na vida, na política, no amor, no sexo. E será assim, exaltado, rodriguiano, que vai admitir um dos maiores medos; “os abismos das mulheres são venenosos, o seu mistério nos mata.” A percepção de Jabor sobre linhas intangíveis, como a que separa o amor do sexo, costuma ser tão afiada quanto seus discursos anti-Bush. Mais do que o poder, ele aposta, o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver.

Edição Clarice Fensterseifer & Marcos Beccari Ilustração Rafael Borba

nossos dias

mel


hore s nunca v i rã o?

A

ndo em crise, numa boa, nada de grava. Mas, ando em crise com o tempo. Que estranho “presente” é este que vivemos hoje, correndo sempre por nada, como se o tempo tivesse ficado mais rápido do que a própria vida, como se nossos músculos, ossos e sangue estivessem correndo atrás de um tempo mais rápido. As utopias liberais do século XX diziam que teríamos mais ócio, mais paz com a tecnologia. Acontece que a tecnologia não está aí para distribuir sossego, mas para incrementar competição e produtividade, não só das empresas, mas a produtividade dos humanos, dos corpos. Tudo sugere velocidade, urgência, nossa vida está sempre aquém de alguma tarefa. A tecnologia nos enfiou uma lógica produtiva de fábricas, fábricas vivas, chips, pílulas para tudo. Funcionar é preciso; viver não é preciso. Por que tudo tão rápido? Para chegar aonde, para gozar sem para? Mas gozar como? Nossa

vida é uma ejaculação precoce. Estamos todos gozando sem fruição, um gozo sem prazer, quantitativo. Antes, tínhamos passado e futuro; agora tudo é um “enorme presente”, na expressão de Norman Mailer. E esse “enorme presente” nos faz boiar num tempo parado, mas incessante, num futuro que “não pára de chegar”. Antes, tínhamos os velhos filmes em preto-e-branco, fora de foco, as fotos amareladas, que nos davam a sensação de que o passado era precário e o futuro seria luminoso. Nada. Nunca estaremos no futuro. E, sem o sentido da passagem dos dias, de começo e fim, ficamos também sem presente. Estamos cada vez mais em trânsito, como carros, somos celulares, somos circuitos sem pausa, e cada vez mais nossa identidade vai sendo programada. O tempo é uma invenção da produção. Não há tempo para os bichos. Se quisermos manhã, dia e noite, temos de ir morar no mato.

“Q u e e s t ra n ho ‘pr e s e nt e ’ é e s t e q u e v i ve mo s hoj e , c or r e ndo s e mpr e p or nada , c omo s e o t e mp o t i ve s s e f ic ado mai s rá pido do q u e a própr ia v ida (...)”

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Há alguns anos, eu vi um documentário chamado Tigrero , do cineasta finlandês Mika Kaurismaki e do Jim Jarmusch, sobre um filme que o Samuel Fuller ia fazer no Brasil, em 1951. Ele veio, na época, e filmou uma aldeia de índios no interior do Mato Grosso. A produção não rolou e, em 92, Samuel Fuller, já com 83 anos, voltou à aldeia e exibiu para os índios o material colorido de 50 anos atrás. E também registrou, hoje, os índios vendo seu passado na tela. Eles nunca tinham visto um filme e o resultado é das coisas mais lindas e assustadoras que já vi. Eu vi os índios descobrindo o tempo. Eles se viam crianças, viam seus mortos, ainda vivos e dançando. Seus rostos viam um milagre. A partir desse momento, eles passaram a ter passado e futuro. Foram incluídos num decorrer, num “devir” que não havia. Hoje, esses índios estão em trânsito entre algo que foram e algo que nunca serão. O tempo foi uma doença que passamos para eles, como a gripe. E pior: as imagens de 50 anos é que pareciam mostrar o “presente” verdadeiro deles. Eram mais naturais, mais selvagens, mais puros naquela época. Agora, de calção e sandália, pareciam estar numa espécie de “passado” daquele presente. Algo decaiu, piorou, algo involuiu neles.

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Lembrando disso, outro dia, fui atrás de velhos filmes de 8mm que meu pai rodou há 50 anos também. Queria ver o meu passado, ver se havia ali alguma chave que explicasse meu presente hoje, que denunciasse algo que perdi, ou que o Brasil perdeu... Em meio às imagens trêmulas, riscadas, fora de foco, vi a precariedade de minha pobre família de classe média, tentando exibir uma felicidade familiar que até existia, mas precária, constrangida; e eu ali, menino comprido feito um bambu no vento, já denotando a insegurança que até hoje me alarma. Minha crise de identidade já estava traçada. E não eram imagens de um passado bom que decaiu, como entre os índios. Era um presente atrasado, aquém de si mesmo. A mesma impressão tive ao ver o filme famoso de Orson Welles It’s All True, onde ele mostra o carnaval de 1942 – as únicas imagens em cores do país nessa década. Pois bem, dava para ver nos corpinhos dançantes do carnaval sem som, uma medíocre animação carioca, com pobres baianinhas em tímidos meneios, galãs fraquinhos imitando Clark Gable, uma falta de saúde no ar, uma fragilidade indefesa e ignorante daquele povinho iludido pelos burocratas da capital. Dava pra ver ali que, como no filme de minha família, estavam aquém do presente deles, que já faltava muito daquele passado.

Vendo filmes americanos dos anos 40, não sentimos falta de nada. Com suas geladeiras brancas e telefones pretos, tudo já funcionava como hoje. O “hoje” deles é apenas uma decorrência contínua daqueles anos. Mudaram as formas, o corte das roupas, mas eles, no passado, estavam à altura de sua época. A depressão econômica tinha passado, como um grande trauma, e não aparecia como o nosso subdesenvolvimento endêmico. Para os americanos, o passado estava de acordo com sua época. Em 42, éramos carentes de alguma coisa que não percebíamos. Olhando nosso passado é que vemos como somos atrasados no presente. Nos filmes brasileiros antigos, parece que todos morreram sem conhecer seus melhores dias. E nós, hoje, nesta infernal transição entre o atraso e uma modernização que não chega nunca? Quando o Brasil vai crescer e chegar a seu “presente”? Chega a ter inveja das multidões pobres do Islã: aboliram o tempo e vivem na eternidade de seu atraso. Temos a utopia de que, um dia, chegaremos a algo definitivo. Mas ser subdesenvolvido não é “não ter futuro”; é nunca estar no presente.

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“

Todo d i a el a fa z t udo sempr e i g u a l .�

C h ico Bua rque de Hol l a nd a

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PretĂŠrito Presente Outubro / 2007

pp 2007 n01


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