REABILITAÇÃO DE EDIFÍCIOS Um projeto para a Ocupação Ouvidor, 63

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REABILITAÇÃO DE EDIFÍCIOS UM PROJETO PARA A OCUPAÇÃO OUVIDOR 63

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MARCOS LIMA DA SILVA

REABILITAÇÃO DE EDIFÍCIOS UM PROJETO PARA A OCUPAÇÃO OUVIDOR 63 Trabalho Final de Graduação apresentado ao Centro Universitário São Judas Tadeu – CSJT, como exigência parcial para a aprovação na disciplina Trabalho Final de Graduação 1 : Contextos do Curso de Arquitetura e Urbanismo Orientador: Prof. M.e Paulo Silva Leite Flores Co-orientadora: Profa. M.a Fabiola Marialva Marques Gilio

Santos, Dezembro de 2021 3


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REABILITAÇÃO DE EDIFÍCIOS UM PROJETO PARA A OCUPAÇÃO OUVIDOR 63 Trabalho Final de Graduação apresentado ao Centro Universitário São Judas Tadeu – CSJT, como exigência parcial para a aprovação na disciplina Trabalho Final de Graduação 1 : Contextos do Curso de Arquitetura e Urbanismo Orientador: Prof. M.e Paulo Silva Leite Flores Co-orientadora: Profa. M.a Fabiola Marialva Marques Gilio BANCA EXAMINADORA Nome do examinador: Paulo Silva Leite Flores Nome do examinador: Camila Garcia Aguilera

Nome do examinador: Fabiola Marialva Marques Gilio

Local: Centro Universitário São Judas Tadeu – Campus Unimonte Data da aprovação: 6/12/2021

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RESUMO Este trabalho visa a discutir porque algumas edificações são abandonadas e esquecidas e, consequentemente, ocupadas por pessoas dos movimentos sociais ligados à causa da moradia. Além disso, apresentar, por meio de estudos, hipóteses sustentáveis de valorizar as edificações existente antes de fazer mudanças e novas construções. Para elaboração da presente pesquisa foi utilizado o método dedutivo e comparativo, tendo como ferramenta de apoio a pesquisa bibliográfica para fundamentação dos assuntos abordados e o procedimento empregado foi o estudo de ao menos quatro casos em que se fala ora de edificação ocupada, ora de alternativas de enfrentamento dos problemas por meio de intervenções do tipo retrofit. Após analisados os dados foi identificada uma proposta de intervenção baseada em estudos e reflexões do escritório francês de arquitetura Lacaton & Vassal. Palavras-chave: Arquitetura; Habitação Social; Retrofit 6

Habitação;


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SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO

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2. CONTEXTO HISTÓRICO

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2.1 Políticas habitacionais brasileiras 3. GUERRA DOS LUGARES E TERRITÓRIOS EM CONFLITO

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3.1. A financeirização da casa própria 3.1

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3.2.A palavra de guerra é ocupar 3.2

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4. A ARQUITETURA QUE TEM LADO

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4.1. O fazer projetual de Lacaton & Vassal 4.1

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4.2. Projetos análogos: retrofit como técnica 4.2

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4.3. Projeto análogo: 530 moradias de Bordeaux 4.3 5. ANÁLISE DA ÁREA DE INTERVENÇÃO

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5.1 Ouvidor 63: contexto histórico

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5.2 Ouvidor 63: condicionantes urbanísticos

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6. PROJETO

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7. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

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8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1. INTRODUÇÃO

O número do déficit habitacional cresce cada vez mais, segundo estatísticas da Fundação João Pinheiro, podendo atingir até 5,88 milhões de famílias. Ao mesmo tempo, o setor da construção civil também cresce cada vez mais, com novos conjuntos habitacionais construídos, sempre com algumas deficiências. Recursos econômicos e ambientais são utilizados para tentar resolver um problema que poderia ser pensado de maneira sustentável, reutilizando edifícios já construídos que já estão localizados em regiões enriquecidas por estrutura urbana e equipamentos de interesse social. Este trabalho visa a discutir porque algumas edificações são abandonadas e esquecidas e, consequentemente, ocupadas por pessoas dos movimentos sociais ligados à causa da moradia. O principal objetivo deste trabalho é entender o motivo por existir tantos prédios abandonados no centro de São Paulo. Além disso, apresentar, por meio de estudos, hipóteses sustentáveis de valorizar o existente antes de fazer mudanças e novas construções, enxergando assim o potencial do edifício abandonado e ocupado no processo de transformar, em vez de demolir para construir. Este trabalho pretende se centrar na Ocupação Ouvidor 63, com o intuito de refletir a respeito de como um imóvel deve cumprir a sua função social, oferecendo habitação e cultura para a região em que ele está inserido. Por meio de uma pesquisa bibliográfica e análise de referências de projetos de arquitetura e urbanismo, pretende-se pensar na questão da apropriação dos espaços e de como é possível, a partir do já construído, expor uma região a um processo de transformação. No capítulo 2, o leitor será apresentado ao contexto histórico das políticas habitacionais brasileiras. Ele será levado a um breve resgate das questões que envolvem a produção de moradia no Brasil, descortinando um cenário dos anos 1920 até os momentos mais contemporâneos, em que o Brasil luta pela Reforma Urbana. Fala-se de política habitacional, de decisões de Estado e das transformações Fig. 1 – Ovidor 63 oc- que existiram até a criação do hoje finado cupation view from Ministério das Cidades. Nesse passeio, há es the Terminal Bandeira bridge, São Paulo 2018. ©Paula Monroy

paço ainda para análises a respeito do Banco Nacional de Habitação (BNH) e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). No capítulo 3, propõe-se a discutir a financeirização da política habitacional a partir das abordagens capitaneadas pelas pesquisadoras Ermínia Maricato e Raquel Rolnik. Seguindo essa linha de raciocínio, o leitor verá como o setor habitacional é absorvido pelo setor financeiro em escala global, o que acaba resultando em perdas, no que diz respeito ao direito à moradia adequada dos mais pobres e vulneráveis ao redor do mundo. Esse mesmo capítulo apresenta uma reflexão a respeito de como ocupar edificações abandonadas acabou sendo a “única saída possível” para quem não tem moradia no cenário da crise das cidades, caracterizada por problemas de mobilidade, predomínio do carro, separação entre edifícios fortificados e favelas, a precariedade e o déficit habitacional. Ocupar virou solução até a quem não consegue pagar o aluguel do cortiço. Vive-se o conflito de territórios. O capítulo 4 apresenta duas vertentes de trabalho para ações em edifícios ocupados. Dentro de uma elaboração calcada na teoria e visitada na prática, escolheu-se trabalhar com os argumentos do escritório de arquitetura Vassal & Lacaton, sobretudo por conta de sua marca registrada: a intervenção não deve ser a demolição. É preciso usar o já feito, ouvir o entorno e, a partir daí, propor quais são as melhores ações, as mais adequadas. Entre as técnicas apresentadas, discute-se o retrofit e a sua aplicabilidade no desenvolvimento de projeto ore estudado. Feito isso, parte-se para um estudo de caso calcado em, ao menos, três referências arquitetônicas diferentes. Para, na sequência, apresentar a proposta de projeto defendida para a intervenção. Fechando o trabalho, apresentam-se as considerações parciais, uma vez que este trabalho ainda está em curso.

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Fig. 2 – Delimitação do bairo. Fonte: Google Earth, autor, 13 2021.


Fig. 3 – Comunidade com problemas de moradia em Belo Horizonte.

Fig. 4– Comunidade da Maré, no Rio de Janeiro..

Fonte: Fernando Frazão/Agência Brasildisponível em https:// agenciabrasil.ebc.com. br/es/node/910221

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Fonte: Antonio Cruz/ Agência Brasil disponível em https://agenciabrasil. ebc.com.br/geral/ noticia/2014-05/ comunidades-relatam-em-belo-horizonte-violacao-do-direito-moradia#+


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2. CONTEXTO HISTÓRICO 2..1

Políticas habitacionais brasileiras

O Brasil vem vivendo um fenômeno de expansão populacional desde o final do século XX. Tal crescimento vem criando uma demanda por moradia, transporte e demais serviços urbanos, além da promoção do debate pela real democratização das cidades, visto que é fato corriqueiro o movimento de expulsão das populações pobres dos centros expandidos e a formação de periferias com a função de receber essa população (Motta, 2010). As questões que envolvem a produção de moradia social no Brasil são complexas e envolvem temas como a definição de políticas públicas, a segregação sócio espacial urbana, o valor do solo, a equidade social, eficiência e sustentabilidade urbana e ambiental. Inúmeros trabalhos do pesquisador Nabil Bonduki apontam para as soluções que foram tomadas no nível de política pública para o enfrentamento dessa demanda. Entre as pioneiras, a partir dos anos 1930, houve a introdução de novos conceitos urbanísticos, inovações no processo de produção da habitação, o surgimento do ideal de que a moradia era uma questão de política pública e, consequentemente, a implantação de importantes projetos de habitação social (BONDUKI, 2018). Apenas para se ter uma ideia, entre 1920 e 1970, a população urbana brasileira cresceu de 5 milhões de habitantes para 53 milhões. São Paulo, em 1920, contava com 580 mil. Em 1934, 930 mil. O salto em 1960 é para 3,3 milhões e, em 1970, 6,7 milhões. O histórico da habitação social no Brasil remete a meados de 1930, na Era Vargas, época que se deu o início as intervenções do governo no setor habitacional e construção de conjuntos residenciais de baixa renda; neste mesmo período, a habitação social era assentada no aluguel, com a criação das Carteiras Imobiliárias dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). Em 1942, o decreto-lei que institui a Lei do Inquilinato regulamenta as relações entre locadores e inquilinos, determinando o congelamento dos valores locativos e proibindo despejos. Bonduki pondera que a partir dessa nova legislação, amplia-se a noção de que a redução do custo de produção do empresa

riado depende do investimento em uma política pública que enfrente o déficit habitacional e os conflitos entre proprietários e inquilinos. Neste contexto, o investimento em casas de aluguel, que até então era muito atraente, deixa de ser interessante. Ainda assim, o modelo vigente promovia o crescimento urbano de padrão periférico, baseado na formação de assentamentos precários e no auto-empreendimento da casa própria, o que vai consolidar a ideia de que a classe trabalhadora não pertence às áreas nobres, mais centralizadas (Bonduki, 2018). Ocorreu também a criação da Fundação da Casa Popular (FCP) - primeira instituição nacional voltada unicamente para a população de baixa renda -, além do Departamento de Habitação Popular (DHP). O objetivo principal da FCP era, através de financiamentos, saciar as necessidades habitacionais da população que não tinha acesso aos fundos de Carteiras e Pensões. A partir dos anos 1960, introduz-se uma noção de reforma urbana que vai enfrentar os problemas habitacionais, em iniciativas como o Seminário de Habitação e Reforma Urbana (SHRU), de 1963, que tenta incorporar a discussão a respeito da democratização do acesso à terra urbana e à moradia no país. Antes mesmo disso, até os anos 1930, houve seminários promovidos por engenheiros e arquitetos. Segundo Bonduki, a diferença é que neste, houve um conjunto sistematizado de propostas para efetivar instrumentos institucionais necessários para enfrentar os problemas habitacionais e urbanos (Bonduki, 2018). Nasce daí a formulação do Plano Nacional de Habitação (PNH), a criação do Conselho Nacional de Habitação (CNH) e a instituição do Fundo Nacional de Habitação (FNH), reformulando a Fundação da Casa Popular (FCP). Tudo isso abre espaço, ainda na década de 1960, para a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), órgão gerenciador de financiamentos do BNH, já em um contexto político e econômico de regime militar instalado com o golpe de 1964. Bonduki aponta que o BNH foi responsável por financiar moradias em todo o país no período de 1964 a 1986, com

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Fig. 5– Por Secom Bahia - Flickr: Minha Casa, Minha Vida em Eunápolis, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=20183953

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o intuito de reduzir o déficit habitacional. Este momento no país, com a anulação de um regime democrático, representou transformações significativas na organização das cidades brasileiras (Bonduki, 2018). É neste contexto que a denominação habitacional passa por uma transição: não se chama mais a unidade de conjunto residencial, e sim conjunto habitacional, nome que carrega consigo até hoje de forma pejorativa, inaugurando um conceito impregnado de preconceito, como o “padrão BNH”. Em 1986, com o fim do BNH e a promulgação da Constituição de 1988, surge uma nova fase da política habitacional brasileira denominada “Pós-BNH” (Maricato, 2002). A Caixa Econômica Federal assume as funções do antigo órgão e se torna agente operadora da habitação. Neste período, entendido entre 1986 a 1999, produção da habitação social passa a se dar com experiências alternativas, como concursos públicos e iniciativas público-privadas, com sugestões que fogem do tradicionalismo das moradias mínimas. No “Pós-BNH” ocorre a descentralização da gestão e produção da habitação social, dividindo a responsabilidade da moradia nas três instâncias governamentais: municipal, estadual e federal (Bonduki, 2014). Nessa época de retomada do regime democrático, iniciativas do governo Collor como o Plano de Ação Imediata para Habitação marcam a continuidade da preocupação com a questão habitacional. Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, ocorre uma reformulação no Sistema Financeiro de Habitação, com a criação de ferramentas alternativas de crédito e apoio de financiamento. Já no ano de 2003, o governo federal, sob gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, criou o Ministério das Cidades, que passou a gerir as demandas urbanas, dentre elas a habitação. O Ministério das Cidades tornou-se o órgão responsável pela Política Nacional de Habitação, que viria a ser implantada em 2004. Para sua realização, ela se apoia no Sistema Nacional de Habitação.

A partir de 2004, há um marco no crescimento das necessidades no âmbito habitacional que dura até a crise de 2008. Bonduki sinaliza, por exemplo, que pensava-se em um novo modelo de financiamento em que o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) pudesse se combinar com recursos fiscais para atender as famílias com renda insuficiente para assumir um financiamento. Previa-se o desenho de um novo Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), programas de integração urbana de assentamentos precários e produção de unidades habitacionais novas, com a regulamentação de regras de financiamento mais estáveis e com segurança jurídica (Bonduki, 2018). A estratégia, no entanto, não saiu como se esperava até 2007, com o desenvolvimento do Plano Nacional de Habitação (PlanHab). Bonduki argumenta que as estratégias pensadas nunca foram colocadas em prática, porque antes disso foi lançado, de maneira atropelada, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), no início de 2009. O pesquisador aponta, por exemplo, que fica evidente a falta de diálogo entre as diretrizes do primeiro em relação ao segundo, uma vez que enquanto o PlanHab foi desenvolvido no âmbito do Ministério das Cidades, o segundo acabou ficando a cargo dos ministérios do Planejamento, Fazenda, Casa Civil e Caixa Econômica Federal, que coordenavam o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). A crítica que o pesquisador faz é que antes de enfrentar a questão urbana e de moradia, o PMCMV tinha a finalidade de combater a crise econômica pela qual o segmento da construção civil passava. Para ele, o programa foi estruturado com a finalidade de gerar empregos, dinamizar a economia e dar fôlego às empresas, apesar da geração massiva de moradias de interesse social. Apesar desses pontos à primeira vista positivos, análises empreendidas pelo meio acadêmico apontam problemas de sustentabilidade, impactos urbanos e ambientais que prejudicaram as cidades. Um exemplo disso é que os programas habitacionais empreendidos pelos órgãos públicos, nas três esferas, sempre

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privilegiam o modelo de espalhamento periférico, levando as moradias para os bolsões de pobreza, afastados do centro e das áreas de qualidade de vida e democratização de oportunidades. Até 2014, o PMCMV contratou 3,75 milhões de unidades, com prioridade para setores de baixa renda, com a possibilidade, inclusive, de utilização do MCMV-Entidades, uma produção habitacional em parceria com associações, cooperativas e outras entidades do terceiro setor, com baixíssima adesão, apenas algo menor que 1,5% do total de contratos. Bonduki ainda se depara a dados mais recentes, entre 2015 e 2017, abordando um breve período da gestão Dilma Rousseff e, depois, Michel Temer, com baixa produção habitacional e mudança do compromisso com a produção de habitação à população mais pobre (Bonduki, 2018).

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Fig. 6– Centro de São Paulo foto Henrique Boney [Wikimedia Commons], 2012

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3. GUERRA DOS LUGARES E TERRITÓRIOS EM CONFLITO 3.1. A financeirização da casa própria A pesquisadora Raquel Rolnik vem se dedicando a estudar as relações que estão por trás das ocupações e maneiras de ocupar e viver nas cidades. No livro Guerra dos Lugares, demonstra o impacto do complexo imobiliário-financeiro sobre as políticas habitacionais e, por extensão, sobre as economias políticas da urbanização, assumindo, para tanto, os vínculos que passam a ser estabelecidos entre os mercados fundiários e a regulação urbanística. Em síntese, ela demonstra o processo de financeirização da moradia, com a transformação da casa em mercadoria, sua transmutação de bem de uso em capital fixo. Implícito a esse mecanismo, estaria a construção da hegemonia, tanto ideológica quanto prática, de um modelo de política pública de habitação, fundado no neoliberalismo. É a promoção do mercado e do crédito habitacional para a aquisição da casa própria (Rolnik, 2015). Esse modelo dominante estaria diretamente atrelado aos conflitos urbanos que emergem atualmente em diversas regiões do planeta. Funcionaria assim: “a hegemonia da propriedade individual escriturada e registrada em cartório sobre todas as demais formas de relacionamento com o território habitado constitui um dos mecanismos poderosos da máquina de exclusão territorial e de despossessão em marcha no contexto de grandes projetos (...). Na linguagem contratual das finanças, os vínculos com o território são reduzidos à unidimensionalidade de seu valor econômico e à perspectiva de rendimentos futuros, para os quais a garantia da perpetuidade da propriedade individual é uma condição. Desta forma, enlaçam-se os processos de expansão da fronteira da financeirização da terra e da moradia com as remoções e deslocamentos forçados” (Rolnik, 2014, p. 13). Para a pesquisadora, a tomada do setor habitacional pelo setor financeiro resultou em perdas, no que diz respeito ao direito à moradia adequada dos mais pobres e vulneráveis ao redor do mundo, pois a redução do déficit de moradias é obtida às custas de “aspectos mais amplos desse direito, como habitabilidade, localização, disponibilidade de serviços e infraestrutura” (Rolnik, 2014, p. 127).

Sobrepondo-se às demais formas de posse estabelecidas (a habitação para aluguel e algumas formas de propriedade cooperativa e coletiva), o paradigma da “casa própria” se consolidou como modelo praticamente único de política habitacional, fazendo do acesso aos esquemas de crédito estabelecidos pelos mercados financeiro e imobiliário algo vital para as famílias, sobretudo as de baixa e média rendas. Ela assinala que a sociedade contemporânea está diante da desconstrução da ideia de habitação como um bem social e sua transmutação em ativo integrado a um mercado financeiro globalizado de capitais, com ampla liberdade de circulação. Trazendo para uma perspectiva brasileira, a pesquisadora discorre sobre o processo de mercantilização da moradia e do solo urbano situando-o no contexto das transformações que ocorreram no País entre o final do século XX e início do século XXI. Ela sinaliza os efeitos político-territoriais da experiência econômica brasileira de “inclusão via ampliação do mercado”, a partir de duas frentes: o modelo de produção massiva da casa própria via mercado (o programa Minha Casa Minha Vida) e os projetos urbanos mais claramente identificados com as novas formas de financiamento e governança, as operações urbanas em São Paulo e os projetos ligados aos megaeventos Copa do Mundo e Olimpíadas no Rio de Janeiro. Com a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, são obtidos avanços legais no campo da política habitacional em termos de reconhecimento do direito à cidade, com a “quebra do controle excludente do acesso à riqueza, à renda e às oportunidades geradas no (e pelo) uso e ocupação do solo urbano”. A partir de “emenda popular” à Constituição, é proposta uma reforma urbana que leva em conta os assentamentos informais e sua integração à cidade. Instrumentos como as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) são retomados e aperfeiçoado, também os planos diretores municipais participativos. Surgem como desafio à máquina burocrática pública e aos interesses conflitantes dos partidos políticos. Rolnik pondera que o planejamento territorial participativo encarna “a utopia da cidade para todos”, ao propor uma agenda que assume o espaço público em

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Fig. 7– O edifício Wilton Paes de Almeida, em registro de 2014. Fonte: Filipe Villela

sua dupla acepção: tanto como campo de interações políticas, quanto expressão territorial do acordo dessas interações. Tais planos, porém, não chegaram a obter êxito. Como já se falou, durante o governo Lula (2003-2011), foi criado o Ministério das Cidades, órgão governamental encarregado de formular a política urbana nacional e fornecer apoio técnico aos governos locais. Na esteira dessa iniciativa, são instituídos, entre outras coisas, o Conselho Nacional das Cidades, o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Sistema Nacional de Habitação (SNH), que elabora uma Política Nacional de Habitação (PNH). Em 2007, é lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), responsável por grandes obras de infraestrutura. Pautado no modelo único de promoção da casa própria acessada via mercado e crédito hipotecário, o programa passou de pacote de salvamento de incorporadoras financeirizadas, com escala razoavelmente modesta, à política habitacional do país (Rolnik, 2015). Neste cenário, o país vive a crise das cidades, que é caracterizada por uma série de fatores, entre eles: o problema da mobilidade, causado por uma política de suporte à circulação de carros em detrimento do transporte coletivo de massa; um tipo de espaço público marcado pela separação entre edifícios fortificados e favelas, por conta da violência; a precariedade e o déficit habitacional, evidenciados pelo contínuo crescimento dos assentamentos informais, pelas ocupações de terrenos e edifícios vazios, acirrado pelo recente boom no preço dos imóveis e aluguéis, e sua elevação muito acima da renda dos mais pobres.

3.2. A palavra de guerra é ocupar O pesquisador Tito de Montezuma Tricoli traz, em sua tese de mestrado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP), informações relevantes a respeito das ocupações de edifícios abandonados. Elas surgem justamente da segregação das populações já mencionada neste trabalho.

Diante da falta de políticas públicas que sejam integradoras e, ainda, com o mercado imobiliário ditando o custo das moradias e o curso das ocupações nos centros urbanos, a população de baixa renda busca soluções para que possa estar inserida nos centros urbanos. Em São Paulo, há o surgimento, a partir da década de 1970, de ocupações que acontecem em um contexto de abandono, seja pela falta de investimentos públicos, seja por investimentos que começaram a ser destinados para outros eixos. (Tricoli, 2016). Inúmeros projetos surgiram com o objetivo de revitalizar o Centro de São Paulo, como a Operação Urbana no Vale do Anhangabau, também ações que tinham como objetivo intervir em cortiços. Na gestão da prefeita Luiza Erundina, entre os fins dos anos 1980 e início dos 1990, movimentos sociais iniciaram uma organização focada na luta por moradia. A luta seguiu nas gestões que vieram após, como Paulo Maluf e Celso Pitta. De maneira orgânica, essas populações começaram a ocupar imóveis desocupados como maneira de ação e reivindicação ao direito de se viver na região central, melhor estruturada (Tricoli, 2018). Sabe-se que o problema das ocupações de edifícios é relativamente recente e oferece risco à segurança das pessoas que ocupam os edifícios. É justamente por isso que se faz necessária a intervenção, no escopo de arquitetura e urbanismo, para que edificações ocupadas possam garantir a segurança dos moradores que venham a ocupar esses locais. Um dos maiores exemplos dessa carência técnica aconteceu em um cenário de tragédia. Em outubro de 2018, um prédio de 24 andares pegou fogo e desabou na região do Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo. O local era uma ocupação. De acordo com notícias de jornais da época, há relatos de moradores que afirmavam que o fogo começou e se espalhou rapidamente pela estrutura.

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Fonte: dhttps://jornalistaslivres.org/justica-manda-soltar-militante-de-moradia/

Fig. 8– Ocupação 9 de Julho

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Segundo os registros, houve sete mortos nesse incêndio, que teria começado por causa de um curto-circuito. O edifício incendiado levava o nome de Wilton Paes de Almeida e já tinha sido uma agência do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e sede da Polícia Federal por 25 anos. Ele era pertencente à União e tinha sido concedido à Prefeitura de São Paulo. A edificação destruída no incêndio era um dos marcos arquitetônicos da cidade e havia sido protegida pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Com 24 andares, além de dois pisos de sobrelojas comerciais, e 11 mil m² de área construída, o edifício foi projetado na década de 1960 para abrigar a sede da empresa Cia. Comercial Vidros do Brasil (CVB). O prédio era considerado a maior obra do arquiteto Roger Zmekhol (1928-1976). Filho de imigrantes sírios, Zmekhol nasceu em Paris e veio para o Brasil ainda criança. Ele era professor da FAU, da USP. Sabe-se que era um projeto com muita influência do minimalismo de Mies van der Rohe. Uma fachada de vidro que fazia a ocupação do edifício por pessoas sem moradia ser completamente diferente das outras pela cidade. A tragédia abre uma série de perguntas, mas a mais marcante talvez seja: como é possível intervir num patrimônio já construído, eventualmente flexibilizar seu uso e garantir condições de habitabilidade?

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Fig. 8 – Delimitação do bairo. Fonte: Google Earth, autor, 2021.

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Fig. 9 – Retrofit Edifício Marajó / Readymake Paula Monroy, 2021.


4. A ARQUITETURA QUE TEM LADO 4.1. O fazer projetual de Lacaton & Vassal A pesquisadora Maria Laura Ramos Rosenbusch usa um termo vindo da arte, a apropriação, para definir e significar a arquitetura praticada pelos arquitetos do escritório Lacaton & Vassal. Passeia pela ideia do uso de elementos preexistentes, edifícios, peças, partes, sistemas pré-fabricados, partindo da hipótese que toda obra arquitetônica parte de algo apropriado. Para ela, a apropriação surge como uma questão central na produção do escritório (Rosenbusch, 2018). Ela traça um longo panorama da história de arte para mostrar como diferentes movimentos artísticos fizeram da apropriação um processo de criação até desembocar em arquitetos que, na análisa da pesquisadora, usaram do mesmo procedimento, sobretudo no contexto do Modernismo e, consequentemente, do pastiche do pós-Modernismo (Rosenbusch, 2018). Ela se apoia nessa pesquisa de teoria da arquitetura para dizer que a apropriação ocupa um lugar importante na contemporaneidade, como consequência inevitável da enorme produção cultural e industrial contemporânea. Em outras palavras, é como se tanto artistas quanto arquitetos trabalhassem para reinterpretar, reproduzir e ressignificar obras e elementos preexistentes em geral. É neste contexto que surgem os trabalhos dos arquitetos Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal. Desde cedo, a incorporação da preexistência foi elemento importante na produção de ambos. A pesquisadora cita como exemplo a casa construída durante a temporada de cinco anos em que Vassal vive em Niger, nos anos 1980, materializada na observação da maneira com que os habitantes locais constroem com as matérias-primas, clima e natureza disponíveis. Eles se apoiam em diversas razões para justificar o uso de uma estrutura existente, como privilegiar a questão da economia e a ideia de construir o máximo de espaço possível permitindo a liberdade de usos. Os exemplos são inúmeros, como a apropriação de duas estufas para o projeto de uma habitação (Cité

Manifeste), combinando dois sistemas construtivos distintos, em Mulhouse, na França. A pesquisadora evidencia como Lacaton & Vassal trabalham a sobreposição de temporalidades a partir de um conjunto de intervenções para a renovação habitacional em grande escala, inicialmente baseado na demolição de conjuntos habitacionais dos anos 1960 e 1970, com a construção de novos. Eles optaram por não demolir, modificando internamente os edifícios a partir da participação dos moradores. Foi possível, por exemplo, acrescentar estruturas novas que se acoplam à fachada dos edifícios existentes, ampliando e melhorando a qualidade dos apartamentos, mudar fachadas, a partir de um mesmo tipo de esqueleto: pilares e vigas em concreto armado. A proposta deles é que os edifícios devem ser considerados como apenas objetos em si, fazendo com que eles tenham um potencial para a reinterpretação contemporânea. Na praça Léon Aucoc, em Bordeaux, a manutenção se expressa com um programa para embelezar espaços públicos da cidade. Em vez de um embelezamente, a proposta envolve não propor nada, por considerar o espaço como já bonito, porque as pessoas se sentiam em casa naquele lugar. Isso só foi possível a partir de um processo de observação, avaliação e consulta local, segundo Rosenbusch.

4.2. Projetos análogos: retrofit como técnica Nos últimos anos, o termo retrofrit vem surgindo como recorrente quando se pensa em reformar edificações deterioradas. Ele não é uma simples reforma, mas tem como diferença fundamental a possibilidade de adaptar, melhorar o edifício, flexibilizar usos. Tudo isso com a ideia de qualificar aquela construção. As melhorias dependem de diferentes graus de intervenção, em pontos como ambiente, condições de habitabilidade. Na esteira desse movimento, o retrofit traz a possibilidade de reabilitação urbana, uma vez que a conservação do patrimônio é um desses pilares.

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Fig. 10 – ZERO Box Lodge / Thiaho Casanova, 2021.

Fig. 11 – ZERO Box Lodge / Thiaho Casanova, 2021.

Fig. 12 – ZERO Box Lodge / Thiaho Casanova, 2021.

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Fig. 13 – ZERO Box Lodge / Thiaho Casanova, 2021.


A concretização depende ainda de outros, quase sempre ligados às dinâmicas de ocupação e democratização do espaço. O arquiteto William MCDonough cita os princípios de Hanover como fundamentais à adoção do retrofit dentro de uma perspectiva sustentável. São eles: coexistência da humanidade e da natureza; interdependência entre projetos humanos e o mundo natural, refletindo sobre seus efeitos; respeitar a relação entre o espírito e a matéria; aceitar a responsabilidade pelo projeto; criar objetos seguros com valor de longo prazo; eliminar o conceito do desperdício; ater-se aos fluxos naturais de energia; compreender as limitações do projeto; buscar o aperfeiçoamento constante a partir do compartilhamento e do conceito (NESBITT, 2008). A reabilitação surge, então, como uma maneira positiva de adequar edifícios antigos, melhorando suas condições de habitabilidade, flexibilizando usos que proporcionem novas dinâmicas de ocupação e levando, assim, a uma vida útil da edificação que seja melhor do que aquela que têm hoje os edifícios desocupados e/ou ocupados por movimentos de moradia sem um acompanhamento técnico. Essa perspectiva ainda deve otimizar gastos de energia e, de quebra, preservar a memória do local.

entregar mais dinamismo e um ocupação de qualidade à região. Ainda na cidade de São Paulo, o retrofit do Edifício Marajó também merece atenção. Construído no final dos anos 1940, prefigura a verticalização da região central da capital em efervescência. A qualidade dos seus espaços internos atesta a verdadeira generosidade da época para os lugares de vida. Além do retrofit, o projeto se apoia em um restauro das qualidades iniciais do edifício que, à medida do tempo, desapareceram devido ao acúmulo das diferentes renovações. Ele sofria com pichação, estava malcuidado e parcialmente vazio. Outro retrofit que vale a pena ser mencionado é o do edifício Zero Lodge. Ele foi construído para ser uma fábrica de camisas em 1883, em Porto, na zona norte de Portugal, foi reabilitado para ser um alojamento com uma nova proposta de experiência alternativa. O Zero Box Lodge, que não se classifica como hostel nem hotel, oferece acomodações onde os quartos são compartimentos de madeira criados propositadamente para o descanso dos hóspedes. As dimensões do edifício obrigaram o arquiteto a repensar o modo de habitar o espaço, a estrutura e fachada foram mantidas, reformulando integralmente apenas o ultimo piso e a cobertura.

Um exemplo de retrofit aconteceu em um edifício na Avenida Ipiranga, 1225, no centro de São Paulo. Houve um projeto de reabilitação elaborado para a reestruturação do edifício para uso habitacional para o Programa Minha Casa Minha Vida. Com a adaptação, foi possível projetar 120 unidades, em diversas tipologias (apartamento de 1 dormitório, quitenete com e sem varanda). Neste caso, trata-se de um projeto para fins sociais. A cidade de São Paulo passou por uma onda de outras requalificações. Importante notar que essas ações trazem mais benefícios que os gastos que a o Poder Público tem com a criação de infraestrutura em áreas afastadas da periferia. O próprio Plano Habitacional de São Paulo já prevê esse tipo de requalificação na área central, dentro das estratégias para

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Fonte: https://www. a r c h d a i l y. c o m . b r / br/923774/zero-box-lodge-goncalo-queiros-carvalho-architec30 to/

Fig. 14 – planta térreo ZERO Box Lodge / Thiaho Casanova, 2021.


Fig. 15 – planta tipo ZERO Box Lodge / Thiaho Casanova, 2021.

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Fig. 16 mação unidade cionais deaux Ruault.,

Fig. 17 mação unidade cionais deaux Ruault.,

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– Transforo de 530 es habitas em Bor/ Philippe , 2021.

4.3. Projeto análogo: 530 moradias em Bordeaux Quatro grandes projetos de reabilitação de edifícios residenciais realizados pela dupla são a torre Bois-de-Prêtre (2005-2011), ao Norte de Paris, o edifício em Saint Nazaire (2006-2014) e os dois conjuntos de Bordeaux. Fazem parte de um projeto de pesquisa desenvolvido em parceria com o arquiteto Frédéric Druot, denominado PLUS48. Esses trabalhos surgem em oposição a um programa lançado em 2003 pelo governo francês que previa a demolição e reconstrução de uma série de torres habitacionais construídas nas décadas de 60 e 70. Grande parte dos apartamentos é destinada ao que os franceses chamam de “aluguel social”. O método desenvolvido através da pesquisa possibilitou que as obras fossem executadas sem que os moradores precisem ser desalojados, sinalizando a ênfase que os projetistas dão à noção de preservação dos aspectos anteriores ao momento em que iniciam seus projetos. As práticas projetuais estão mais centradas em uma apropriação material, não apenas de representação, mas também dos modos de ação ou mesmo a incorporação de contingências de determinado contexto ao projeto. Essa apropriação vem ganhando uma dimensão ecológica, pois pode-se pensar em termos como “reuso”, “reciclagem”, ao pensar em aproveitar o construído e propor o novo apenas quando necessário, uma ideia absolutamente ligada à sustentabilidade e à economia. De um outro lado, a ação também visa a revalorizar o ambiente construído no sentido de uma renovação urbana sem demolição, flexibilizando usos e acrescentando camadas ao tecido urbano. Fazendo mais com menos.

– Transforo de 530 es habitas em Bor/ Philippe , 2021.

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Fig. 18 – diagramação reformar Tr a n s f o r m a ç ã o de 530 unidades habitacionais em Bordeaux

https://www.archdaily. com.br/br/933180/ transformacao-de-530-unidades-habitacionais-em-bordeaux-lacaton-and-vassal-plus-frederic-druot-plus-christophe-hutin-architecture

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5. ANÁLISE DA ÁREA DE INTERVENÇÃO

A edificação como está tem 3.412 metros quadrados de área construída, divididas em 13 pavimentos e um subsolo. O lote tem 356 metros quadrados. No subsolo, estão reservatórios de água e ramais de distribuição de energia elétrica e telefonia, esgoto e águas pluviais. Há uma rampa para acesso de automóveis. Diante de limites impostos pela pandemia de coronavírus, este trabalho se apoia em informações disponibilizadas no trabalho Reabilitação de Edifícios para Produção Habitacional no Centro de São Paulo, de autoria de Lorena Valentina Bozo, arquiteta formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

5.1 Ouvidor 63: contexto histórico A construção do edifício é da década de 1940. Seu primeiro uso projetado foi servir de sede para as Secretarias da Economia e Planejamento, de Assistência e Desenvolvimento Social e, por último, da Secretaria de Cultura. Há registros de desocupação do edifício pela Cultura em 1990 e, com isso, a unidade ficou sem uso formal. A data que marca a formação da Ocupação Ouvidor 63 é o 1º de maio de 2014. Um coletivo de artistas chamado AndroidAndrógenos escreveu um manifesto nas redes sociais, com o objetivo de articular artistas que pudessem se interessar por se juntar à ocupação. A ideia inicial era de que o espaço servisse de fomento à arte e à cultura, evidenciando que a cidade poderia se transformar a partir do que estava acontecendo naquela edificação. Para isso, foi criado o Festival de Revitalização Holística do Centro, com exposições, saraus e shows, com apenas de dez dias de entrada no edifício.

Fig. 19 – Fachada da Ouvidor 63, maior ocupação artística da América Latina/ Rose Steinmetz, 2021.

Entre os anos 1998 e 2005, houve ocupação do edifício por movimentos sociais organizados de moradia. No entando, houve ação de despejo com decisão judicial desfavorável aos moradores ocupantes. Nesse período de ocupação, houve a realização de um Laboratório de Projeto Integrado e Partici

pativo para a Requalificação de Cortiço, com envolvimento de orifessires alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP). Fruto desse encontro foi o livro “Requalificação de cortiço: O projeto da Rua do Ouvidor, 63 no centro de São Paulo”. As equipes que se dividiram para atuar diretamente em projetos para soluções de problemas na edificação envolviam diversas áreas: arquitetura, engenharia, sociologia, financeiro e jurídico-legal. No fim, foram apresentadas propostas para a adaptação de 57 unidades habitacionais (de um e de dois dormitórios), área de lazer e de uso comunitário, além de adequação dos elevadores. O custo total chegava próximo de R$ 1 milhão, com R$ 340 mil previstos para obras e R$ 600 mil para a aquisição da edificação. Não foi possível viabilizar nem a doação nem a venda da edificação.

5.2 Ouvidor 63: condicionantes urbanísticos A Ocupação Ouvidor 63, localizada na Rua do Ouvidor, 63, no distrito da Sé, está no coração do Centro de São Paulo. Trata-se de uma região caracterizada pelo fenômeno do esvaziamento populacional causado pela interferência de políticas públicas e pela ação do mercado imobiliário em outras regiões de São Paulo. Com isso, a elite que habitava a região se deslocou e a região passou por um movimento de degradação, com um aumento de comércio de rua, circulação de pessoas em passagem e u baixa fixação de moradores. Apesar de nos últimos anos, a região central ter ensaiado uma retomada de população, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostra que a região central tinha, nos anos 1980, 60.999 habitantes. Esse número caiu para 57.797 nos anos 1990, depois para 47.718 nos anos 2000 e um retorno da população nos anos 2010, para 56.981 moradores. Apesar dessa recuperação, vê-se que a população ainda é menor que a dos anos 1980.

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Essa é uma região altamente ocupada, com verticalização quase que absoluta, concentração de atividades econômicas e de serviços públicos. Estima-se, por exemplo, que 55% da ocupação da região central seja destinada ao uso de comércio e serviços.

Outro ponto crucial na avaliação do entorno da área de intervenção diz respeito à acessibilidade a equipamentos culturais, tais como o Sesc 24 de Maio, os teatros Municipal, Jaguará, outros de menor porte, a Biblioteca Mário de Andrade e até mesmo o recém inaugurado Parque Augusta.

A região concentra um grande fluxo de ônibus, com linhas de transporte coletivo que levam e trazem pessoas de todos as zonas da cidade. Inclui-se aí o metrô, com destaque para estações como Anhangabaú e República, além de terminais de ônibus das imediações, como o Parque Dom Pedro II, Praça das Bandeiras, Praça Princesa Isabel. Uma estimativa da Prefeitura de São Paulo dá conta de que 2 milhões de pessoas circulem pela região central diariamente, metade dessa população chega por meio do transporte público. É importante ressaltar que a pandemia trouxe reflexos econômicos e sociais que atingem diretamente no empobrecimento das famílias, sobretudo aquelas que são mais pobres. No entanto, ainda não é possível dar um panorama com estatísticas atualizadas. Por isso, este trabalhou adotou como parâmetro as informações disponíveis no IBGE. A renda mínima da região pode variar de R$ 1.573,00 a R$ 28.585,00, dando uma média de R$ 7.939,00. Essa estatística certamente deixa de lado as famílias de renda inferior que acabam morando no centro nas instalações precárias como cortiços e até mesmo favelas. No perímetro desta intervenção, é fundamental prestar atenção ao que indica a Operação Urbana Centro, que estabelece incentivos para a reconstrução ou reforma de edifícios, dispõe de exceções à Lei de Uso e Ocupação do Solo e ao Código de Obras e Edificações. No mesmo perímetros, são encontradas demarcações de ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social) com edifícios subutilizados, vazios, deteriorados e em total dissonância com o conceito do uso social da propriedade particular. Lotes vazios em áreas bem localizadas, fazendo com que a coletividade pague o ônus da especulação imobiliária. Fig. 20 – Delimitação do bairo. Fonte: Google Earth, autor, 2021.

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USO E OCUPAÇÃO DO SOLO

COMÉRCIO E SERVIÇOS

SEM PREDOMINÂNCIAS EQUIPAMENTOS PÚBLICOS RESID . E COMÉRCIO / SERVIÇOS

RESID. VERT. MÉDIO/ALTO PADRÃO GARAGEM 40


GABARITO

0 - 10M

10 - 20M 20 - 40M 40 - 80M

80 - 140M

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DEMARCAÇÕES ZEIS

ZC

ZEIS 3 ZEIS 5

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RENDA

R$0 A R$4.700,00

R$4.700,00 A R$7.800,00 R$7.800,00 A R$12.600,00

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DENSIDADE DEMOGRÁFICA

1 A 100

100 A 200 200 A 300 300 A 500

300 A 3200 HAB/HA 44


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TEATRO MUNICIPAL VALE DO ANHAMGABAÚ

PREFEITURA

OUVIDOR 63

TERMINAL BANDEIRA

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6. PROJETO

Conforme vem sendo apresentado ao longo deste trabalho, a Ocupação está organizada em espaços dos 13 pavimentos, levando em consideração as “necessidades” impostas pela ocupação desordenada. Atualmente, cada pavimento corresponde a um grupo de artistas, onde existe a mistura de espaço de morar com espaço de produção artística. A ocupação atual conta com espaços coletivos, como as cozinhas e horta. No térreo, por exemplo, há espaços de reunião, estúdio de tatuagem e um brechó. A proposta deste projeto será a de se apoiar nos usos atuais para promover uma reorganização, criar e melhorar as áreas de convívio, melhorar os acessos e a distribuir áreas de uso público na edificação. O projeto proposto, que ainda precisa de mais desenvolvimento nas etapas seguintes, pretende manter a relação direta da ocupação com acessos abertos. O projeto terá como partido manter boa parte do uso público da ocupação, sobretudo nas áreas do térreo. A ideia é trabalhar com planta livre, com poucas paredes construídas e instalação hidráulica concentrada. A ideia será manter o máximo de paredes existentes para se adequar a um novo layout, em técnicas e materiais de menor impacto ambiental e de carga na estrutura da edificação. Será preciso, na etapa seguinte, elaborar estudos para a possibilidade de abertura de novos shafts, com a finalidade de possibilitar a adequação aos usos e distribuição de redes hidráulicas de apartamentos. Será preciso ampliar os estudos a respeito do projeto para a fachada da edificação, a partir de um momento de escuta. Como deve ser essa fachada? Como os moradores da Ocupação veem essa fachada? Será preciso pensar na substituição ou restauração de caixilhos? Que alternativas técnicas estão disponíveis para levar adiante esse retrofit? São algumas das questões que precisam ser respondidas na continuidade desta pesquisa.

Fig. 21 – Edificio e entorno. Fonte: Google Earth, autor, 2021.

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ATUAL

13. moradia e terraço com horta coletiva 12. moradia artista de rua 11. moradia 10. moradia 9. moradia artista pela em luta pela igualdade de gênero, pequena horta e cozinha coletiva 8. galeria Nuventre, acontecem saraus, exposições e rodas de conversa 7. moradia / artista de xilogravura e Lab Ouvidor 63 6. moradia / artistas de rua e circo 5. exibição de filmes e biblioteca 4. ateliê de moda e serigrafia 3. moradia / espaço para banda e uma cozinha coletiva 2. biblioteca e cozinha coletiva 1. oficinas ligadas a ativdades corporais (dança, yoga, alongamento) TÉRREO. brechó, teatro e café -1. espaço para reuniões, exposições, apresentações, estudio de tatuagem. Fig. 22 – Fachada Ouvidor 63. Fonte: Lucas Lerchs 2016.

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13. lavanderia colevita 12. hostel e bar 11. moradia 10. moradia 9. moradia

8. moradia 7. moradia 6. cozinha coletiva e refeitório 5. auditório livre, exibição de filmes 4. ateliê livre 3. sala para banda e aulas de instrumentos 2. espaço para yoga, dança, alongamento e praticas circense 1. biblioteca, coworking e lab ouvidor 63 TÉRREO. loja brechó, cafeteiria e galeria -1. teatro e pista de skate

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PROPOSTO

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MORADIA (USO PRIVADO) ÁREA COMUM (USO PRIVADO) USO PÚBLICO

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7. CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Ao longo deste trabalho, foi possível identificar uma linha evolutiva das políticas habitacionais brasileiras. Desde as primeiras décadas do século passado até os doas atuais, pôde-se analisar o que deu certo, o que não deu. Além disso, foram exibidos os inúmeros motivos que levam a sociedade brasileira, talvez mundial, a uma crise sem precedentes, que é de desigualdade social, humana, territorial. Tudo isso, junto e misturado, leva a cidade de São Paulo, não apenas a área da Ocupação Ouvidor 63, mas a cidade como um todo a um cenário de profunda desorganização. Enquanto as políticas públicas promovem ações de esvaziamento dos centros urbanos, levando os mais pobres para mais longe, edificações, muitas com qualidades de projeto e localização, caem aos pedaços. Ou, na melhor das hipóteses, acabam ocupadas por organizações de moradia popular. A partir das referências de projeto compartilhadas, da base teórica estudada a partir de escritos e de projetos do escritório Lacaton & Vassal, este projeto chega até essa etapa com a convicção de que é possível mudar esse cenário. É possível requalificar edificações como a Ouvidor 63, a partir de um partido que seja calcado no aproveitamento máximo do já construída e na apropriação desse espaço para sua consequente transformação. Ao não concordar com o que a política habitacional brasileira faz, situando as habitações populares em localizações periféricas, afastadas da região central de São Paulo e longe das oportunidades, consequentemente criando outros problemas urbanos e sociais, este trabalho apresenta uma proposta, uma alternativa a isso. De agora em dia, para o próximo semestre, seja preciso integralizar propostas, ouvir atores que fazem parte da ocupação e, com isso, refinar a proposta de projeto.

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7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONDUKI, Nabil (org.). A luta pela reforma urbana no Brasil. Do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. São Paulo: Instituto Casa da Cidade, 2018. BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa Própria. São Paulo: Estação Liberdade, Fapesp, 2017. CONTANTINOU, E., & BETTIO MACHADO, L. (2019). Reflexões sobre o espaço habitado contemporâneo. Risco Revista De Pesquisa Em Arquitetura E Urbanismo (Online), 17(1), 6482. https://doi.org/10.11606/issn.1984-4506. v17i1p64-82 KOWARICK, Lúcio de. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

OLIVEIRA, Letícia Daidone. A Experiência da Ocupação Artística Ouvidor 63: desafios e possibilidades de um projeto de cidade. 2017. TCC (Graduação) - Curso de Administração de Empresas, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2017. Disponível em: http://issuu.com/ le.daidone/docs/tcc_final. Acesso em 21 nov. 2021 ROLNIK. Raquel. Guerra dos Lugares. São Paulo: Boitempo, 2015. ROLNIK, Raquel. Territórios em conflito – São Paulo: espaço, história e política. São Paulo: Três Estrelas, 2017. ROSENBUSCH, Maria Laura Ramos. Lacaton & Vassal: Uma análise do conceito de apropriação, seus significados e motivações na arquitetura contemporânea. Rio de Janeiro, 2018. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

LIMA, Nathalia Mara Lorenzetti. Reabilitação de edifícios do centro da cidade de São Paulo novas moradias em antigos espaços: avaliação de desempenho, sob o enfoque ergonômico, das funções e atividades da habitação. 2017. Dissertação (Mestrado em Tecnologia da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. doi: 10.11606/D.16.2018.tde05072017-094424. Acesso em: 10 nov. 2021 MOREIRA, Antônio Cláudio Moreira Lima e Org.; LEME, Maria Cristina de Silva. NARUTO, Minoru. PASTERNAK, Suzana. Intervenção em cortiço: uma experiência didática. São Paulo: FAUUSP. 2006. NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. 2 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

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