Deleuze e a critica linguagem

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A CRÍTICA DE DELEUZE À CRÍTICA DE WITTGENSTEIN José Eduardo Pimentel Filho Doutorando em Filosofia pela UFRJ

Resumo: O presente artigo busca entender porque mesmo não havendo uma obra deleuziana a respeito de Wittgenstein, assim como houveram muitas obras deleuzianas sobres diversos filósofos, Deleuze desfere severas críticas ao pensador vienense em sua famosa entrevista: Abecedário. Buscaremos entender o papel da linguagem, dos conceitos e da própria criação nesta disputa a respeito do papel mesmo da filosofia.

Ao final dos anos 80 Deleuze elegeu um filósofo para representar seu antípoda – em uma linguagem deleuziana, seu personagem antipático. Não era ele Platão, cujos conceitos precisavam ser revertidos, ou Freud que simplificara o homem, ou o Hegel e sua dialética, tampouco os simulacros da filosofia que têm a pretensão de serem criadores de conceitos, ou mesmo os aparelhos repressores do sistema, etc. Todos esses de alguma forma foram eleitos antipáticos, de fato, por Deleuze. Mas esses foram grandes representantes-antipáticos muito mais ao pensamento deleuziano do que à filosofia como um todo – e é neste ponto que focamos a crítica de Deleuze. Mas o que realmente poderia ser uma ameaça para a filosofia? Por onde deveríamos começar de forma mais intensa, e mais angustiante, a busca pelo problema que pode ser posto? Quem seria o vírus que vive dentro da filosofia, que nascera nela e dela se alimenta, deixando-a cada vez menor, mais esquelética, e frágil para que outros tentem tomar seu lugar? Temos uma pista: se em cada palavra de Deleuze encontra-se a importância da criação para a filosofia e a possibilidade de dialogar com o que está na literatura, no cinema, na história, etc.; se para ele é mister que a filosofia valorize os problemas para deles


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extrair conceitos que por vezes levam a mais problemas, tudo isso girando em torno da necessidade de criar perguntas [ainda] sem respostas, de forma a buscar sempre abalar, arranhar, o que nos é dado como fixo, a imagem do pensamento estabelecido; assim sendo, por tudo isso, o perigo à filosofia não seria exatamente uma corrente que unisse em torno de si tudo que é oposto a essas concepções? Se esse é o espírito da ameaça, podemos então dizer que por vezes ela se incorporou em alguns pensadores-linguistas-matemáticos do fim do século XIX e início do XX, e que teve um representante que mereceu atenção e suspeita especiais de Deleuze: Wittgenstein. Em suas obras-teses Deleuze dissecou seus filósofos preferidos, analisou-lhes os conceitos e os experimentou, como um cientista faz no laboratório com as cobaias que podem revelar um novo elemento num organismo já conhecido. Deleuze mostrou o quão relevante fora a contribuição desses pensadores-personagens para a filosofia (principalmente a sua própria), buscou neles ferramentas que não se deixaram enferrujar pela história da filosofia, enfim, lhes fez “filhos pelas costas”, como expressa no Conversações 1 . Mas e Wittgenstein com isso? Não existe uma obra exclusivamente dedicada ao filósofo vienense na bibliografia de Deleuze onde se possa dizer e apontar todo o mal que Wittgenstein e seus seguidores tenham inferido à filosofia. Existem até alguns comentários e citações, como em Lógica do Sentido onde diz que “Wittgenstein e seus discípulos têm razão em definir o sentido pelo uso” 2. Mas o que será que mudou de 1969 quando ele escreveu isso em Lógica do Sentido para 1988, isto é, quando numa entrevista data à Clarie Parnet, Deleuze não poupou palavra para expor seu sentimento a respeito de Wittgenstein: CP: Vamos ao W. GD: Não tem nada em W. CP: Tem sim: Wittgenstein. Sei que não é nada para você... GD: Não quero falar disso. Para mim, é uma catástrofe filosófica. É uma regressão em massa de toda a filosofia. O caso Wittgenstein é muito triste. Eles criaram um sistema de terror, no qual, sob o pretexto de fazer alguma coisa nova, instauraram a pobreza em toda a sua grandeza. Não há palavras para descrever este perigo. E é um perigo que volta. É grave, pois os


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wittgensteinianos são maus, eles quebram tudo! Se eles vencerem, haverá um assassinato da filosofia. São assassinos da filosofia. CP: É grave, então? GD: Sim, é preciso ter muito cuidado 3! Mas cuidado com o que? O que teriam feito Wittgenstein e seus discípulos de tão perigoso para filosofia? Ao colocarmos junto as filosofias de Wittgenstein e de Deleuze, dois momentos de choque parecem chamar atenção. Não tanto por conta dos temas em si tratados pelos filósofos, que por vezes também se chocam, mas sim pela forma como esses temas são encarados, isso é, esses dois momentos de discrepância se dão exatamente quando o tema tratado é a própria filosofia e a sua realização. O primeiro momento, e que se mostra mais evidente no Tractatus Logico-Philosophicus, é o da linguagem; enquanto em Deleuze a linguagem deve ajudar ao filósofo a criar (dai toda a importância que ele dá aos escritores), já para Wittgenstein, a linguagem deve servir para que a filosofia não extrapole os limites em suas averiguações; o outro problema também se encontra em germe no Tractatus, mas é encorpado no Investigações Filosóficas, que é a obsessão de Wittgenstein em eliminar o que até então a filosofia chamara de problemas, mas que no fundo, para Ludiwg, não passavam de estranhezas sem relevância filosófica, seu papel seria então o de tirar a mosca do vidro. Ainda no Wittgenstein do Tractatus, quando este acredita e anuncia na introdução da obra que: “a verdade dos pensamentos comunicados aqui [no Tractatus] me parece intocável e definitiva, de modo que penso ter resolvido os problemas no que é essencial. Se não me engano, o segundo valor desse trabalho é mostrar quão pouco se consegue quando se resolvem tais problemas” 4, já aparece um sinal do caminho que será tomado em relação aos chamados “problemas filosóficos”, isso é, sua eliminação. Os problemas em questão na citação acima seriam os relacionados à linguagem, como eles podem causar um mau entendimento na busca do conhecimento, e a partir disso, como se deve superá-los. Essa superação, o segundo ponto de discordância, seria um projeto que visava à criação de uma linguagem própria pra lidar com a filosofia, uma linguagem analítica que não deixasse margem para os “problemas” contaminarem a filosofia, ou como põe o próprio Wittgenstein: “para evitar esses erros devemos usar uma linguagem


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simbólica que os exclua [os erros], pois esta não empregará superficialmente o mesmo signo para símbolos diferentes, e não empregará signos, que designam de maneira diversa, do mesmo modo. Uma linguagem simbólica, portanto, que obedeça à gramática lógica — à síntese lógica” 5. Linguagem essa que colocaria fim ao ensino da história da filosofia a longo prazo (por conta da infelicidade que seus problemas geraram até então), e que seria responsável por igual superação à tendência filosófica de lidar com problemas que não teriam uma solução real. E assim foi creditado Wittgenstein por seus seguidores, principalmente o Círculo de Viena, para o qual “o verdadeiro inimigo era o idealismo alemão – tradição que abarcava Fitche, Hegel e, sob certos aspectos, Kant (...) essa escola, pensavam os austríacos [do Círculo], era uma mistura de ofuscação, mistificação e confusão” 6 . Segundo esse projeto “a principal função da filosofia, eles sustentavam, não era se perder em devaneios metafísicos, mas aperfeiçoar e esclarecer os conceitos empregados pelos cientistas” 7, e assim sendo, “os enunciados religiosos eram elegantemente enviados para a lata de lixo intelectual – que era também, por consequência, o destino da metafísica. Para esse “lixo” iam também os enunciados sobre estética, a ética e o significado da vida” 8. Essa seleção do que seria válido de ser analisado pela filosofia, ou não, se dava de acordo com uma seleção pela linguagem, e tal seleção deveria respeitar o que ficou assim chamado de Lógica Analítica. Ainda pensando de acordo com os acólitos de Wittgenstein só existem duas esferas sobre as quais a filosofia poderia inferir: a) as proposições que podem ser admitidas como verdadeiras ou falsas; b) e as que são empíricas e passiveis de verificação. A famosa sentença de Hume que diz que “só porque o sol nasceu todos os dias, não significa que ele nascerá amanha”, por exemplo, não deveria ser mais um motivo para questionamento filosófico posto que o futuro não seria um problema verificável, não dizia nada à lógica, e consequentemente, não deveria dizer nada à filosofia. E parece que os discípulos de Wittgenstein não temiam estar errados sobre essa postura, posto que estavam protegidos pela sentença, de característica quase talmúdica, proferida pelo seu mentor: “em geral o que pode ser dito, o pode ser claramente, mas sobre o que não se pode falar deve-se calar” 9 e seu complemento, “a filosofia simplesmente coloca as coisas, não elucida nada e não conclui nada. – como tudo fica em aberto, não há nada a elucidar. Pois o que está oculto não nos interessa” 10; que nada mais são senão carismáticas sentenças intelectuais de morte à produção dos inimigos e uma arrogante, ainda que sofisticada, forma de fugir aos desafios e embates.


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Mas Wittgenstein parece não ter compreendido que seu feito foi exatamente expandir aquilo que tentou combater. Em sua pregação contra os problemas nãofilosóficos, parece que nada mais fez senão criar situações distantes da objetividade. Não é difícil encontrar ao longo das Investigações Filosóficas afirmações que começam com “imagine um jogo de linguagem...” (§ 21), “imaginemos um quadro representando...” (§ 22), “podemos também imaginar que o interrogado...” / “imagine que alguém aponte um vaso...” (§ 31), “imagine alguém que diga...” (§ 279) 11, etc. Nada há aí que se possa chamar de empírico. Tudo isso mostram que o movimento que a filosofia lógica fez em Wittgenstein não foi o de purificar a filosofia do caos que é imaginar, mas sim de inverter conceitos (inclusive, eis aí de fato o que Deleuze indica ser o “fazer filosofia”: criar conceitos); aquilo que Wittgenstein chamara de problema não passara de perplexidade, e vice-versa. O que explicaria então o interesse do Wittgenstein tardio pelas perplexidades. Pois, enquanto combatia seus problemas imaginários, fez a filosofia dormir ou recuar quanto a questões que sempre foram de sua alçada: na esfera da ética, da estética, e tudo mais que cerca a vida e que não se pode por sob a sombra da linguagem lógica. E ainda que compreendido por esse projeto lógico que “não é uma tarefa da filosofia resolver a contradição por meio de uma descoberta lógica” 12 , também não se negou o desejo de “estabelecer a ordem do nosso conhecimento do uso da linguagem” 13. O interesse do pensador de Investigações por questões mais próximas do senso comum ainda não o aproxima da vida onde esse senso comum se realiza. O comentador A. C. Grayling acredita que a grande mudança que há do primeiro Wittgenstein para o segundo é que o segundo abandona o método rigorosamente sistemático do Tractatus e adota em seu lugar uma abordagem fragmentada, explicitamente projetada para não resultar numa teoria estruturada; isso porque, segundo Grayling, Wittgenstein passara a pensar que os problemas que surgem por causa das nossas compreensões errôneas da linguagem não poderiam mais ser resolvidos construindo uma teoria filosófica sistemática, como havia tentado fazer no Tractatus 14. Contudo, segundo o próprio Wittgenstein das Investigações, em vez de inventar teorias para lidar com problemas filosóficos, deveríamos “dissolver” esses problemas eliminando os mal-entendidos que os causam. Assim sendo, devo discordar de Grayling, pois se há um arrependimento do Wittgenstein do Tractatus para o das Investigações, esse arrependimento não é tanto sobre o projeto desejado, mas sim pelas formas de encará-lo; Wittgenstein


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nas Investigações acaba por afrouxar sua teoria sobre a linguagem para si mesmo, mas não para a filosofia. O que vem no bojo das Investigações, só contesta o modus operandi do Tractatus, e não sua finalidade. O pano de fundo referido na introdução das Investigações Filosóficas que deve ser posto para diferenciar essa obra do Tractatus não se destaca tanto por apontar lados oposto de uma mesma moeda, mas sim por se situarem nessa mesma moeda. O projeto se perpetua ao longo da bibliografia wittgensteiniana. Cada vez mais supervalorizando uma linguagem de estufa para situações que jamais veriam a luz do sol, e trabalhando não mais problemas, mas apenas perplexidades. Enfim, tudo isso fica claro quando a mesma pergunta é feita aos dois pensadores: “O que é a Filosofia? À qual Wittgenstein responde ser o conjunto das proposições primárias que, independentemente das provas, são assumidas como verdadeiras pelas várias ciências” 15; nada mais oposto à resposta que Deleuze e Guattari dão: “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” 16 . A primeira resposta põe a filosofia como uma ferramenta de outrem (no caso a ciência), enquanto a segunda indica ferramentas que a filosofia possui para ser independente e singular. A primeira pede para filosofia não ser “enxerida”, para não se meter com os problemas; entretanto, não há como ouvir a filosofia em tudo que ela já fez sem notar que toda sua busca e sua existência parecem sempre conter um eco desse pedacinho de crítica do pensador igualmente vienense, Karl Popper, ao projeto de Wittgenstein: “o Wittgenstein tardio costumava falar em “perplexidades” resultantes do mau uso filosófico da linguagem. Só posso dizer que, se eu não tivesse problemas filosóficos sérios e nem esperança de resolvêlos, não teria nenhuma desculpa para ser filósofo: em meu espírito não existiria pretexto para a filosofia” 17. O que, por fim, explica o medo de Deleuze quanto a um possível “assassinato da filosofia”, pois “a filosofia é um conjunto de problemas com consistência própria” 18, e sem problemas, o que mais lhe restaria... perplexidades?!

Notas DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992. p 14.

1

DELEUZE, G. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Forte. São Paulo: Edidora Perspectiva, 2003. p. 148.

2

DELEUZE, G. Abecedário. Entrevista dada à Claire Parnet nos anos de 1988 e 1989. Uma

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realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. W de Wittgenstein. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logicus-philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Editora da Univesidade de São Paulo, 1988. p. 54.

4

Ibid. p. 67.

5

EDMONDS, D. & EIDINOW, J; O atiçador de Wittgenstein. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Editora Difel, 2003. p. 163.

6

Ibid. p. 168.

7

Ibid. p. 168.

8

WITTGENSTEIN, L. Tractatus logicus-philosophicus. p. 53.

9

WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas – Os Pensadores. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo:Editora Abril Cultural, 1979. p. 57.

10

Páginas abertas ao acasos do Investigações filosóficas: feito para encurtar a citação de todos os parágrafos que incitam a imaginação do leitor e para efeito de confirmar o incessante apelo do autor pelo uso da imaginação.

11

WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas – Os Pensadores. p. 56.

12

Ibid. p. 57.

13

GRAYLING, A.C. Wittgenstein. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Editora Loyola, 2002. Constatação extraída do segundo e terceiro capítulos desta obra.

14

EDMONDS, D. & EIDINOW, J; O atiçador de Wittgenstein. p. 48. Trecho retirado de um artigo de Wittgenstein apresentado no ano de 1912 em Cambridge, curiosamente o artigo se chamava: Was ist Philosophie? (O que é a Filosofia?).

15

DELEUZE, G & GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2005. p. 10.

16

EDMONDS, D. & EIDINOW, J; O atiçador de Wittgenstein. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Editora Difel, 2003. p. 233.

17

18

DELEUZE, G. Abecedário. Entrevista dada à Claire Parnet nos anos de 1988 e 1989. Uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. K de Kant.

Referências DELEUZE, G. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992. _____. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Forte. São Paulo: Edidora Perspectiva, 2003. _____. Abecedário. Entrevista dada à Claire Parnet nos anos de 1988 e 1989. Uma realização de Pierre-André Boutang, produzido pelas Éditions Montparnasse, Paris. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2005.


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EDMONDS, D. & EIDINOW, J; O atiçador de Wittgenstein. Trad. Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: Editora Difel, 2003. GRAYLING, A. C. Wittgenstein. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Editora Loyola, 2002. WITTGENSTEIN, L. Tractatus logicus-philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Editora da Univesidade de São Paulo, 1988. _____. Investigações filosóficas – Os Pensadores. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1979.


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