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EDUCAR EM TEMPOS DE LAPTOPS [04/11/2010] (texto disponível até 17/11/2010)
Margarita Victoria Gómez
Agradeço o convite, já que esta é uma oportunidade de conhecer o projeto Um computador por criança – OLPC e as pessoas que nele trabalham em diversos lugares do mundo. Devo dizer que, quando fui convidada para participar, uma frase ou consigna que estava escrita no e-mail ficou especialmente registrada: “Não continuar fazendo mais do mesmo”. Achei até interessante, pois acredito que por vezes voltar ao mesmo sem acrescentar nada de novo cansa, mas também imaginei que poderíamos fazer e pensar do mesmo mais como responsabilidade pedagógica, no sentido de que muita coisa na educação, em especial as experiências anteriores, ainda não foi resolvida nem discutida o suficiente, a ponto de se saber se deram ou não deram certo. Acredito que temos de ter a sensibilidade de revisitar o velho para incorporar o novo, pois não acredito que possamos criar do nada – como afirmava Paulo Freire – e assim restabelecer eventuais relações sociais e históricas, mediações homem/máquina, para o avanço social e educativo que queremos. A sabedoria de olhar a própria prática e refletir sobre a mesma para reinventá-la, é essa sabedoria que dá vida ao professor. Estou propondo colocar o professor como aquele que aprende e por isso ensina, superando progressivamente o paradigma do professor que não sabe e da educação adultocentrada. Pois, definitivamente, sabemos que hoje não somente o aluno lida com a tecnologia em sala de aula ou além dela, o professor está sendo um mediador dos conhecimentos e juntos interativamente aprendem mais. É nessa perspectiva que o programa 1x1 me instiga a pensar algumas questões que vou procurar colocar para iniciar minha fala, fazendo mais perguntas que oferecendo uma dissertação conclusiva sobre algumas questões específicas do projeto OLPC, pois não participo em nenhuma instância do mesmo, tendo conhecido o programa através da mídia e do livro 1@1 Derivas en la educación digital, que comprei na Argentina, no mês de julho passado. Pretendo relacionar a experiência de introdução do laptop em sala de aula com a minha pesquisa publicada no livro Educação em rede: uma visão emancipadora, que levanta algumas das premissas a partir de Paulo Freire para pensar a pedagogia na rede. Uma das primeiras premissas que destaco ao revisitar o velho é trazer a pedagogia a um questionamento, pois nela encontramos fundamentos para pensar o sujeito, a educação, a sociedade, a visão de mundo que temos, a que desejamos e que podemos. Considero que nem os pedagogos, nem os educadores, nem a instituição escola e nem as políticas públicas se podem arrogar o direito de não conhecer, de não refletir sobre as tecnologias que estão aí e pressionam para entrar na escola ou que aí entram sem que seus usuários as conheçam. Mesmo que nós não tenhamos os conhecimentos e as estratégias necessárias no momento para assumir a decisão (pois vamos ter que aprender) e que o professor se sinta desanimado quando escuta Nicholas Negroponte numa entrevista de 2007 ao jornal El País, de Madrid, afirmar que ele é bom para vender ideias mas não tão bom vendendo laptops, o que nos faz lembrar ranços neoliberais e suspeitar daqueles que pensam por nós, doadores de sentido, daqueles que tem um banquinho para vender ideias, assim como nos faz também lembrar daqueles bancos (tipo Mundial) que sempre subsidiam e promovem essas mudanças. Não seria essa a visão mercantilista da educação bancária criticada por Paulo Freire? Incentivar a comprar ideias prontas no mercado global? Vamos ter de conhecer mais a situação e nos perguntar novamente o que entendemos por educação, por aprendizagem? Muitas outras perguntas são as que o projeto me provoca, sem considerar questões sobre o tipo de máquina, de conexão e de conteúdo que forneceriam elementos para abrir e discutir algumas questões no viés da preparação ou formação do professor, bem como as necessidades advindas, podendo ser geradas através da implementação do projeto OLPC e, portanto, do uso dos laptops.
Se é uma estratégia educativa, podemos perguntar o que entendemos por educação. É só transferir conhecimento? O que implica a tecnologia em sala de aula? E o conteúdo? Que sujeito? A preocupação ficará centrada na venda de máquinas e no cuidado do negócio? Vamos fortalecer a imagem da incapacidade da criança e entrar na cibercultura com máquinas de pequeno porte e com professores desinteressados e sem condições de conhecer essa riquíssima relação para a aprendizagem? Podemos nos perguntar o que acontece ainda hoje com o uso parcial dos dicionários/enciclopédias digitais, com a criação/consulta da Wikipédia, com a produção e leitura dos e-books, com o uso do celular na sala de aula? Qual o lugar que ocupamos nesse universo relacionado com a vontade política e o sentido que tem para nós docentes incorporar massivamente o programa 1x1. E se tiver sentido, como realizar a formação? É sabido que a formação básica do professor ainda está longe do mundo digital. Como aproximá-lo? Se não integramos massivamente e integralmente os professores na sala de aula – com a sua valorização e direitos –, qual o sentido de integrar massivamente o laptop nas escolas públicas? É possível substituir o lápis e o papel por similares digitais para mudar as vivências e o rendimento tal como os entende Nicholas Negroponte (2005)? É possível acreditar que todo aluno, pelo simples fato de nascer na era digital será um programador em potencial, conseguirá a sua autonomia para a autoaprendizagem e se tornará cidadão do mundo? Educação é mais do que o conteúdo disponibilizado e muitas vezes vendido nos portais? O que é alfabetização? E alfabetização digital? Novamente, qual o lugar do docente? Seguiremos colocando a responsabilidade nas costas do docente, no viés do Banco Mundial? É melhor deixar o aluno navegar livremente ao sabor de eventuais conexões, em vez de nas mãos de um docente despreparado? Qual a autonomia do aluno/professor para usar e recriar aqueles artefatos culturais e o que fazer com os artefatos que por eles sejam criados? Como criar cultura e respeito pelo artefato? Brincadeira de criança? Que repositório usaremos nós, professores? Um repositório global? Numa vida cada vez mais digitalizada percebemos que muita coisa está mudando com o uso dessas tecnologias - não somente pelos diletantes -, que muita coisa está passando sem pena nem glória e nem sei certamente até que ponto isso interessa para a humanização das pessoas. Uma certeza eu tenho: o que poderia contribuir para uma educação humanizadora é que as políticas públicas valorizem definitivamente as pessoas, principalmente o professor, e que propiciem o acesso massivo à alfabetização e a uma educação geral de boa qualidade. Posso pensar que o velho encontraria um diálogo enriquecedor com o novo quando este trouxer dignidade para o professor sempre desvalorizado e criticado, mas também a única possibilidade de mudar a educação. Acredito sinceramente que não há educação sem professor. Outra premissa que eu levanto a partir do pensamento do mestre Paulo Freire é que educar não é transferir conhecimento e sim criar as condições para a sua produção. Uma das possibilidades é conscientizar as pessoas sobre o sentido da incorporação do laptop, fazer com que tenham um conhecimento a respeito das condições e dos esforços realizados para isso, não apenas fazendo a cabeça dos educandos em relação aos bens ou aos males do uso do computador, demonizar ou enaltecer seu uso. Educar na/para a competitividade não pode ser sua preocupação fundamental e, sim educar para a cidadania. Para isso é importante conhecer, usar e respeitar os laptops como artefatos culturais situados nos lugares educativos possíveis, não somente nos lugares mirabolantes de grandes vitrines de obras de qualquer governo. É importante apropriar-se deles e utilizá-los como um direito de quem usufrui dos bens públicos, não como uma caridade de pessoas com boas intenções. Entendendo que o analfabetismo, tanto o convencional quanto o digital, não poderá ser erradicado instantaneamente – já que não é uma planta – sem uma construção social e histórica que envolve muito mais que conteúdo e tecnologia. Para tanto precisaremos mudar as condições sociais conjuntamente, pois não existe o tempo ideal para isso. Daí a fortaleza da educação como meio para se construir paulatinamente tempos melhores. É necessário nos apropriar dos espaços e lugares de aprendizagem e redesenhá-los segundo nossas visões de mundo. Apropriar-nos da rede e usá-la com autonomia para gerar novos artefatos culturais. No cotidiano do professor, é necessário desenvolver círculos de cultura digital como espaço e estratégia de aprendizagem na qual não existe um detentor do saber, aquele que ensina por um lado e, por outro, aquele que apreende um conhecimento dado. Em tais círculos se aprende com os outros, pois o conteúdo não está pronto, mas é produto das interpelações/inter-relações que o coordenador propicia que ocorra entre os participantes; dos saberes e da cultura que, como sujeitos conhecedores da sua realidade/situação real/potencial, desenvolvem sua competência conceitual e política – não a partidária – através da crítica, da criatividade e da ação transformadora. Introduzir a cultura cotidiana no processo educativo implica que a escola esteja aberta à sociedade, levando em consideração a cibercultura. Foi essa perspectiva cultural uma contribuição da sociologia da educação, por meio da qual Freire e outros autores têm contribuído para o pensamento e a interpretação dos processos de mudança educativa e da aprendizagem.
Nesta perspectiva, também, a cultura e a pesquisa são fundamentais para aprender. Explorar, descobrir, constatar, decidir o quê? O para quê? Com quem? Como? A favor de quem? Essas constatações são parte fundamental da aprendizagem. É nesses círculos de cultura digital que o professor e a comunidade podem desenhar uma proposta pedagógica para uso de laptop após conhecer e discutir detalhes dos elementos de que dispõem em relação com sua formação e participar para tal implementação. Também se pode pensar sobre a licitação, o desenvolvimento de conteúdos, a propriedade de direito autoral/ intelectual, os repositórios, a organização da aula, respeitando a cultura, a diversidade cultural e a diferença. Entendo que somente o professor aberto às novas aprendizagens é quem poderá ensinar neste milênio. Não há como negar que a particularidade do fazer pedagógico é o permanente aprendizado. Nesse sentido, se pode chamar para a formação do professor a quem entenda os interesses e a situação profissional do docente, a quem entenda como está organizado o tempo/espaço de seu trabalho além de chamar os especialistas. Pois é nesse processo que os professores mobilizam saberes da teoria e da prática que os levam a refletir esses mesmos saberes, bem como sobre as competências e habilidades adequadas para construir novos conceitos na docência. Acredito que, como estratégia de política educativa, o projeto 1x1 pode ter em vista abrir o espírito crítico e propiciar o acesso ao computador na educação básica e na educação média, mas isso não é possível sem a discussão da proposta pedagógica e sem se pensar especificamente na formação dos professores. É preciso considerar a competência conceitual e política do professor que pretende ensinar na cibercultura, pois isso implica mobilizar sensibilidades e conhecimentos conceituais, instrumentais e atitudinais fundamentais neste início de milênio. Tais conhecimentos muitas vezes estão em construção, como, por exemplo, o uso de laptops, o desenho de espaços na internet, a programação de atividades e o uso da simulação como estratégia de aprendizagem. Considerar a formação do professor é importante, pois ela envolve uma preocupação com a formação sistemática das próprias crianças para utilizar o laptop além da dimensão lúdica, embora integrada. Isso deve constar na planificação inicial, para que se possa atender todos os aspectos da avaliação sistemática da proposta, do uso da máquina por parte dos alunos, das famílias e dos gestores. Não basta a tomada de consciência da importância da tecnologia na sociedade atual. Há que se procurar mais conscientização da sociedade a respeito do uso do laptop na educação, chamando para essa construção toda a comunidade escolar, incluindo os bibliotecários, por exemplo, fundamentais no momento de definir e trabalhar os conteúdos. Retomando as premissas levantadas a partir de Freire, considero que se a originalidade de seu método foi pensar como aprendem os adultos, tendo se deparado com o fato de que eles aprendiam com métodos de crianças, podemos pensar o mesmo hoje, na ordem inversa, ou seja, pensar que as crianças aprendem na era da cibercultura com computadores de adultos – por isso o laptop é bem vindo – e os professores, aprendem com computadores de crianças?, estando seu universo vocabular muitas vezes relacionado com a sua linguagem nativa Windows e com a lógica das janelas. Desse universo vocabular talvez venham à tona temas para uma discussão, até mesmo para a proposição do software livre, quando não considerado. Também se pode pensar em propostas pedagógicas para além do construtivismo ou do socioconstrutivismo como possibilidade. Pode-se revisitar, por exemplo, a ideia de rizoma para a educação na rede, a teoria sociológica do ator-rede, que eu aproximo no livro Educação em rede. Nas premissas que levantei em minha pesquisa para trabalhar a tecnologia/rede na educação, proponho os princípios do Rizoma e da educação popular para dizer, com relação a esta última, que ela não é somente educação para pobres e sim para/com o povo, para a cidadania; a educação não é neutra, é um ato político não necessariamente partidário que demanda crítica, criatividade e ação transformadora; a ciência e a tecnologia, também, não são neutras; o sujeito, por ser histórico e social, não é determinado; a metodologia é feita no diálogo e é desenvolvida pelos participantes do processo; ninguém vai fazer por nos, é na mobilização que vamos encontrar elementos para uma nova organização dos saberes e poderes; no ciberespaço ainda impera a cultura do silêncio, sendo ele o lugar onde podemos achar as sementes para a transformação, ficando evidente que não é suficiente trabalhar a favor de um ideal e por/ com um sujeito desconectado das condições sociais e do esforço de suas práticas educativas, pois sabemos que a estrada para o inferno está pavimentada por boas intenções. Considero que podemos colocar o homem/mulher praxiológico no eixo do processo, sendo aquele que é produto de seus afazeres, que transforma e é transformado, sempre inconcluso e incompleto, sendo consciente disso e abrindo-se para o outro por uma questão ética. Por fim, se faz necessário projetar a ideia de continuar educando para quando a tecnologia não for mais problema, continuar educando para a solidariedade humana. 3º Encontro sobre os Laptops na educação, 14 set. 2010.