5 minute read
O dia que meu tio brigou com uma onça
O DIA QUE MEU TIO BRIGOU COM UMA ONÇA Por Daniel Munduruku
Advertisement
Algumas vezes, acompanhei meu pai e meu tio em suas caçadas. Antes disso, porém, fui ao rio pescar siri e ao mangue para pegar caranguejo. No início, ia apenas como ajudante: carregava os aturás, ajudava a guiar a canoa, vigiava para que os bichinhos não fugissem. Só depois de algum tempo é que eles me deixavam perseguir e tirar os caranguejos.
Com o passar do tempo nosso aprendizado vai aumentando. A gente vai aprendendo muitas coisas novas e conquistando a confiança dos adultos. Essa é a preparação natural para caçadas maiores e outras atividades mais perigosas e arriscadas.
Um belo dia, saí com meu tio e meus primos para uma caçada. Saímos cedo, como é de costume. Nos preparamos para a
atividade com toda a cerimônia necessária. Tomamos nosso banho matinal e contamos nossos sonhos uns para os outros. Pintamos nossos corpos com urucum e dançamos a dança de gratidão aos espíritos da floresta, pedindo proteção.
Depois de tudo organizado, nos pusemos a caminho. Duas horas depois, chegamos à região escolhida. Era um lugar farto de alimentos, de folhas, raízes e sementes. Por isso, era o lugar ideal para caçar macacos, cotias, capivaras, veados. Mas, nesse dia, não havia movimentação e isso só ocorria se esses animais de médio porte estivessem com algum receio, talvez temendo a presença de um predador perigoso. Meus primos mais velhos e meus tios sentiram que era o momento de ficarmos mais atentos.
Meu tio Moisés – esse é o seu nome em português, pois seu nome indígena eu não posso revelar – disse que tínhamos que andar a favor do vento para não sermos seguidos pelo predador. Falou também sobre a importância de aprendermos a ler os sinais que a natureza nos apresentava para que não fôssemos surpreendidos. - Quem fala muito se distrai – disse-nos ele. – Quem se distrai acaba virando comida de onça.
Moisés pediu que esperássemos um pouco, enquanto ele ia dar uma volta pelas redondezas para verificar o que está acontecendo. Assim fizemos. Cinco minutos, ouvimos um grito de Moisés. Era um grito de desespero. Meu primo mais velho foi o primeiro a correr na direção
do grito. Fomos atrás dele. Quando chegamos ao local, não vimos Moisés . Mas ouvimos o rosnar. Era uma onça, e das grandes. Cada um de nós correu para uma árvore. Menos Olinto, meu primo mais novo. Ele não conseguiu encontrar uma árvore que desse pra subir e ficou ali, atônito, sem saber o que fazer. Eu mesmo pensei em descer, mas não tive coragem. Armamos nossos arcos e nossas flechas quando vimos a onça se aproximar de Olinto. No momento exato em que ela foi dar o bote, vimos surgir do nada meu tio Moisés, que puxou o menino para trás e tomou o seu lugar. Nesse instante, a onça avançou com toda fúria sobre Moisés, que aparou as duas patas da fera.
Com receio de errar os disparos e flechar acidentalmente o meu tio, ficamos inertes, assistindo a essa luta impressionante: a luta entre um homem desarmado e uma das mais perigosas feras da floresta. Os dois, agarrados, olhavam fundo um no olho do outro. Os dois ficaram assim por algum tempo. Várias vezes falei com meus primos, aos gritos, procurando uma forma de interferir nesse
combate desigual. Dei ideias, mas nenhuma proposta convenceu a todos. Ao mesmo tempo, nosso tio lançava olhares a todos, como se dissesse que não devíamos intervir. Não intervimos. Ficamos ali quietos, esperando o desfecho da luta.
Já passados mais de vinte minutos do começo da luta, ambos contendores mostravam sinais de cansaço. Mas pareciam dispostos a continuar o combate. Até que houve algo surpreendente. De um momento para o outro, a onça recuou, soltando o meu tio. Olhou ainda dentro de seus olhos, virou as costas e foi embora. Momentos depois, Moisés desfaleceu.
Descemos imediatamente das árvores. Corremos ao encontro do tio e vimos que ele está muito machucado. Nós colocamos numa rede amarrada num pau e conduzimos para a aldeia.
Ao chegarmos à aldeia, fomos direto para a casa do pajé, que, por algum motivo, já nos aguardava. Contamos rapidamente o que acontecera, e o pajé começou a cantar e a rezar na língua dos espíritos. Enquanto isso, a mulher do meu tio trouxe água quente e panos para limpar os ferimentos.
Durante todo o dia, ficamos velando pela saúde de nosso heroico parente. De repente, ele abriu os olhos e perguntou por nós. Queria saber se todos estávamos bem. Depois disso, voltou a dormir. Esse gesto aumentou ainda mais a admiração que eu já sentia por ele.
Dois dias depois ele acordou. Não se lembrava de nada. O velho pajé disse que era efeito da experiência pela qual havia passado. - E como o senhor explica isso? – eu perguntei ao meu avô. - A onça não queria matar o seu tio, mas testá-lo. -Testar o que? -Sua coragem, sua força, sua sinceridade. - Como assim? Devo acreditar que tudo foi de caso pensado? - Não exatamente - meu avô respondeu – Você deve acreditar que seu tio foi visitado por um espírito ancestral. - Isso acontece sempre?
- É mais comum do que parece, meu neto. Infelizmente, o que a gente vê hoje em dia é a maior descrença nas coisas da nossa tradição. Mas asseguro que o que vocês precisaram foi mais do que uma luta entre o bem e o mal. Foi também uma forma de a natureza testar a sinceridade em nossos corações. Posso garantir que seu tio nunca mais será o mesmo. E assim aconteceu.
Quando Moisés se recuperou, passou a falar de um jeito diferente. Estava mais sábio e muito mais autoconfiante. Passou a acompanhar o Pajé em seu trabalho de assistência à comunidade, dando conselhos e falando da tradição.
Ele nunca mais me acompanhou em nenhuma caçada, mas passou a nos ensinar coisas cheias de sabedoria e simplicidade. Desse dia em diante, meu tio ficou conhecido como o homem-onça e nunca mais saiu para caçar, usando arco e flecha.
Ainda hoje, a sua história se repete pelas aldeias e ele continua falando a respeito do teste pelo qual passou. E eu estava lá.