Redes sociotécnicas hibridismos e multiplicidade de agências na pesquisa da cibercultura rede amla

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COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E CIDADANIA Saberes e vivências em teorias e pesquisa na América Latina


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Reitora Ângela Maria Paiva CRUZ

Vice-Reitora Maria De Fátima Freire Melo Ximenes Diretora da EDUFRN MARGARIDA MARIA DIAS DE OLIVEIRA

Conselho Editoral Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente) Ana Luiza Medeiros Humberto Hermenegildo de Araújo John Andrew Fossa Herculano Ricardo Campos Mônica Maria Fernandes Oliveira Tânia Cristina Meira Garcia Técia Maria de Oliveira Maranhão Virgínia Maria Dantas de Araújo Willian Eufrásio Nunes Pereira Editor Helton Rubiano de Macedo Supervisão editorial Alva Medeiros da Costa


A. Efendy Maldonado G. Virgínia Sá Barreto Juciano de Sousa Lacerda (Organizadores)

COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E CIDADANIA Saberes e vivências em teorias e pesquisa na América Latina

Editora da UFPB | Editora da UFRN João Pessoa | Natal, 2011


UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Reitor RÔMULO SOARES POLARI Vice-reitora

MARIA YARA CAMPOS MATOS

EDITORA UNIVERSITÁRIA

C741

UFPB/BC

Diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA Vice-diretor JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO Supervisor de editoração ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR Diagramação EMMANUEL LUNA

Comunicação, educação e cidadania: saberes e vivências em teorias e pesquisa na América Latina / A. Efendy Maldonado Gómez de la Torre, Virgínia Sá Barreto, Juciano de Sousa Lacerda (Organizadores).-- João Pessoa; Natal: Editora da UFPB, Editora da UFRN, 2011. 400p. ISBN 978-85-7745-837-0 1. Comunicação. 2. Educação. 3. Cidadania. 4. Saberes – vivências – América Latina. I. Gómez de La Torre, A. Efendy Maldonado. II. Barreto, Virgínia Sá. III. Lacerda Juciano de Sousa. CDU: 659.3

Direitos desta edição reservados à: EDITORA UNIVERSITÁRIA/UFPB Caixa Postal 5081 – Cidade Universitária – João Pessoa – Paraíba – Brasil CEP 58.051-970 Impresso no Brasil Printed in Brazil

Foi feito o depósito legal


SUMÁRIO PRÓLOGO................................................................................................................ 9 INTRODUÇÃO......................................................................................................15 Parte I Comunicação, metodologia e educação Premissas conformadoras de culturas científicas para a formação de investigadoras(es) em comunicação no contexto latino-americano de inícios do século XXI...................................................................................25 A. Efendy Maldonado G. La metáfora: una via para el cultivo del conocimiento y los saberes en los procesos de aprendizaje.....................................................................48 Ana Alejandrina Reyes La educomunicación en Ecuador: experiencias y projecciones.........71 Alberto Pereira Valarezo Andragogía y educación popular: un diálogo inminente.....................91 Julio C. Valdez ¿Nos vemos como ciudadanos? Trabajo con barrios Belisario Quevedo, zona centro norte de Quito....................................................... 113 Ivanova Nieto Nasputh


Parte II Comunicação e metodologias transformadoras

Da metodologia transformadora às transformações na pesquisa.... 123 Nísia Martins do Rosário Coletivos culturais e espaço público midiatizado: delineamentos para investigar as configurações dos usos, apropriações e produções de mídias em grupos étnicos...................................................................... 143 Jiani Adriana Bonin Historias de vida: un recorrido por lo transdisciplinario................. 169 Alí León Itinerário da fotocartografia sociocultural............................................ 193 Itamar de Morais Nobre Vânia de Vasconcelos Gico Parte III Comunicação, metodologia e cultura digital Redes sociotécnicas: hibridismos e multiplicidade de agências na pesquisa da Cibercultura ............................................................................ 221 Theophilos Rifiotis Jean Segata Maria Elisa Máximo Fernanda Guimarães Cruz Modelos teóricos da comunicação no contexto da convergência digital.................................................................................................................. 247 Juciano de Sousa Lacerda Helena Velcic Maziviero Tatiana dos Santos Pais


Parte IV Comunicação audiovisual, metodologia e cidadania Políticas del audiovisual en la integración regional mercosureña: aportes metodológicos para su estudio a partir del análisis comparado y el estudio de caso................................................................. 267 Daniela Inés Monje Televisão e cidadania de comunicação: uma experiência de iniciação científica em análise de comunidades periféricas nos gêneros telejornal e telenovela.................................................................................. 297 Virgínia Sá Barreto Glaucio Pereira de Souza Nayara Klécia Oliveira Leite Raissa Lima Onofre Identidade, histórias de vida e memória: um exercício de comunicação audiovisual............................................................................. 325 Maria Angela Pavan Maria do Socorro Furtado Veloso Seguridad, violencia y medios: la construcción de un abordaje metodológico desde la perspectiva de comunicación y ciudadanía.... 341 Susana M. Morales La Nueva Televisión del Sur: por uma reflexão teórica, metodológica e epistemológica do comunicacional....................................................... 371 Tabita Strassburger SOBRE OS AUTORES....................................................................................... 391


Redes sociotécnicas: hibridismos e multiplicidade de agências na pesquisa da Cibercultura Theophilos Rifiotis Jean Segata Maria Elisa Máximo Fernanda Guimarães Cruz

Introdução O presente texto foi concebido numa linha de desenvolvimento das atividades do GrupCiber (Grupo de Pesquisa em Antropologia do Ciberespaço) da Universidade Federal de Santa Catarina, em parceria com o NECOM (Núcleo de Estudos em Comunicação) IELUSC, para a Rede AMLAT (Rede Temática “Comunicação, Cidadania, Educação e Integração na América Latina”). Portanto, esse deve ser situado no âmbito dos trabalhos anteriores como uma consequência e, ao mesmo tempo, como um ponto atual das pesquisas que temos desenvolvido ao longo dos últimos quinze anos desde a fundação do GrupCiber. (RIFIOTIS, 1994, 2002, 2008); (GUIMARÃES, 2000); (MÁXIMO, 2002, 2003, 2006); (SEGATA, 2008, 2010). Dentro dos limites da presente publicação, cabe lembrar, mais especificamente, os trabalhos publicados no âmbito da Rede AMLAT, na qual iniciamos com um texto sobre a chamada comunicação mediada 221


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por computador (CMC) e a transversalidade teórico-metodológica entre a Comunicação e a Antropologia, tal como a concebemos e praticamos no Projeto “Estudo etnográfico das formas de apropriação dos centros públicos de acesso pago à Internet”, realizado com financiamento do CNPq e concluído em 2009. (CRUZ; MÁXIMO; RIFIOTIS, 2009). Esse primeiro texto refere-se à nossa participação no encontro da Rede AMLAT na Venezuela, em 2009, quando apresentamos uma reflexão metodológica com foco na contribuição da etnografia no campo de eventos comunicativos com ênfase nos estudos da CMC. Posteriormente, no encontro da Rede AMLAT realizado no Equador, ainda no mesmo ano, avançamos em nossa reflexão teórico-metodológica, analisando os processos de midiatização a partir de uma visão contemporânea da etnografia, refletindo sobre meios, mídia e dispositivos sociotécnicos. O texto publicado a partir daquela apresentação (CRUZ; MÁXIMO; RIFIOTIS, 2010) apresenta uma revisão crítica das abordagens da Comunicação e da Antropologia, apontando os limites e desenhando as linhas gerais de uma abordagem alternativa que não se limita ao âmbito da Antropologia e que vem sendo incorporada pelo GrupCiber, especialmente a partir das obras de Latour (2001, 2005, 2008) e Strathern (1996, 2006). Assim, procuramos avançar nos debates que estamos desenhando no nosso grupo de pesquisa sobre as abordagens das redes sociotécnicas, sem nos colocarmos nos estreitos limites disciplinares, seja da Comunicação ou da Antropologia. Seguindo essa perspectiva, buscamos, no presente texto, contribuir com os trabalhos da Rede AMLAT, na direção de pensarmos criticamente a produção da ciência, apresentando em grandes linhas os fundamentos da abordagem sociotécnica da cibercultura. Para tanto, procuramos sistematizar os principais aspectos de uma série de controvérsias contemporâneas no campo das ciências sociais, especialmente aquelas relativas às dicotomias clássicas tais como: natureza/cultura, sujeito/objeto, humano/não humano, indivíduo/sociedade. Dentro dos limites e objetivos do presente trabalho, lembramos que tais controvérsias referem-se às interpretações do mundo a partir de divisões que, nas últimas décadas, vêm sendo cada 222


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vez mais questionadas. Concretamente, para iniciarmos o debate sobre tais controvérsias iniciamos com uma apresentação das noções de atorrede, simetrização, hibridismo, agência, sempre com ênfase na própria categoria de rede. Pretendemos, deste modo, discutir o lugar dos dispositivos técnicos nas interações sociais e repensarmos a técnica, e assim pensarmos criticamente o próprio campo teórico e metodológico que podemos mobilizar nos estudos da cibercultura e das redes sociais.

Redes sociotécnicas e a chamada teoria ator-rede (TAR)

Em termos teórico-metodológicos, a questão que nos colocamos aqui é a seguinte: como descrever uma rede? Para responder tal questão, necessitamos pensá-la radicalmente como indissociável de uma outra interrogação: o que entendemos por rede? A noção de rede é tão presente no nosso quotidiano e em nossas análises que essa se tornou uma espécie de entidade dada à priori, um automatismo analítico, e até mesmo uma espécie de ícone da contemporaneidade. Assim, quando falamos em redes sociais podemos dizer que mais do que descrever um tipo de objeto de pesquisa ou de interação social, afirmamos um valor. Algo sobre o qual a nossa reflexão crítica fica limitada a uma constante e reiterada afirmação, e cuja descrição e análise giram em torno dela mesma, como esperamos mostrar no desenvolvimento do nosso texto. Sinteticamente, podemos afirmar que tomamos rede em vários sentidos, sendo que a imagem da rede, como um objeto, é uma referência sempre presente e que, muitas vezes, fecha-se na ideia da rede como algo já dado, uma espécie de contexto no qual nos inscrevemos. É uma visão de rede como um produto, um contexto para a ação social. Neste sentido, é que nos referimos à rede bancária, viária, internet etc. Rede como um objeto ou ligação que se torna um cenário para a ação humana. A rede-objeto é sempre apreendida como uma ligação, um vínculo. A rede permite a ligação do que está distante e, dizemos quando queremos afirmar uma qualidade do valor da rede-objeto. Porém, já quando refletimos sobre a rede como produtora de distâncias, uma vez 223


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que ela separa o que está próximo, parece uma incoerência. Ora, ao nos permitir conexões aos meios técnicos, as redes engendram um potencial vínculo à distância, quer dizer que com as redes nos aproximamos e nos afastamos porque, num certo sentido, podemos nos conectar. A rede pode ser, portanto, um processo e um produto. A rede-objeto concebe a rede mais como produto do que como processo e, no entanto, ela é também um processo uma vez que ela própria depende de outras ações para ligar, conectar. Um processo, no sentido de que há sempre outros trabalhando, atuando, para que a conexão ocorra. As redes, num sentido amplo, são ao mesmo tempo imaginadas, traçadas e descritas. Elas são ao mesmo tempo reais, discursos e coletivas, assim para falarmos em redes sociotécnicas nesta concepção, será preciso apresentar os fundamentos que sustentam tal abordagem. Diremos, em primeiro lugar, que a noção de redes sociotécnicas que apresentamos, neste texto, não é uma simples justaposição de termos em busca de mostrar uma relação entre duas entidades, o social e o técnico, supostamente independentes uma da outra e que estariam sendo pensadas na sua conexão. A questão é bem mais complexa e exige um desenvolvimento histórico da questão para que possamos compreender os seus alcances e as consequências trazidas à pesquisa. De fato, falar em redes sociotécnicas implica, logo de início, em assumir que estamos frente a uma perspectiva teórico-metodológica em sintonia com as controvérsias atuais presentes no campo das ciências sociais a que nos referimos supra. Dentro dos limites e objetivos do presente trabalho, lembramos que tais controvérsias referem-se às interpretações do mundo a partir de divisões que, nas últimas décadas, vêm sendo cada vez mais questionadas. Como dissemos anteriormente, a perspectiva que estamos adotando desde os trabalhos mais recentes do GrupCiber poderia ser sintetizada em termos da chamada Teoria Ator-Rede, ActorNetwork-Theory – TAR1, a qual nos permite uma abordagem teórica 1 Callon (2006a) faz o uso do termo SAR – Sociologie de L’Acteur Réseau. Latour (2008), também usa expressões como Sociologia das Associações

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e metodológica crítica com implicações fundamentais para todas as ciências sociais, e que consideramos mais diretamente na sua relevância para o campo de estudos da cibercultura. Em termos históricos, mais românticos do que precisos, a TAR começa a tomar forma em meados dos anos de 1970, nos trabalhos de autores como David Bloor, John Law, Michel Callon, Madeleine Akrich e Bruno Latour. Em linhas gerais, ela se configura como um esforço em torno da sistematização de princípios e regras metodológicas subjacentes às formas de tratamento da realidade que se propõem a descrever o mundo a partir de um “princípio de simetria generalizado”, no qual não haveria diferença essencial entre verdade e erro, vencedores e vencidos e fatos e feitos. (FREIRE, 2006); (LATOUR, 2000, 2005, 2008); (STENGERS, 2002). De modo amplo, essas discussões passam a tomar corpo quando David Bloor desenvolve um programa de investigações sociais, cujo objetivo central residia em analisar o que faz certos grupos de cientistas, em diferentes épocas, selecionar certos aspectos da realidade como objeto de estudo (o Programa Forte, dos sciences studies dos idos de 1970). O referido programa tornou possível considerar o trabalho desses cientistas, ou mesmo a ciência, como algo construído sob certos aspectos internos da própria comunidade científica, como igualmente, certos aspectos sociais e históricos. (FREIRE, 2006). Importante sublinhar um certo desconforto inicial nessa empreitada, já que tornar os cientistas como objetos de estudo passíveis dos mesmos procedimentos com os quais eles se investiam em estudar seus objetos, fazia suscitar um clima de desconfiança, como que de provar do próprio veneno. (STENGERS, 2002). Para tanto, Bloor (1975) sugeria em termos metodológicos, o que ele chamava de principio programático da simetria, que consistia basicamente em reconhecer que as mesmas causas podem funcionar ou Sociologia da Tradução (2006b) e (CALLON; LATOUR, 2006b), ou ainda Sociologia da Ciência (2006a). Ambas podem ser lidas como sinônimos sem grandes prejuízos.

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como explicação para as crenças valorizadas como verdade, ou para as crenças rechaçadas; quer dizer que poderia atuar tanto para afirmar a verdade quanto o erro, uma vez que não haveria diferença essencial entre verdade e erro. Sob essa inspiração, no então recém criado Centre de Sociologie de L’Innovation (CSI), da École des Mines de Paris, Bruno Latour, Michel Callon e Madeleine Akrich estendem esse princípio de Bloor às controvérsias entre natureza e sociedade, que como a verdade e o erro, também deveriam ser tratadas sob um mesmo plano, sob um princípio de simetria generalizada, que como resume Latour (2003, p. 06), “permettait d’analyser avec les mêmes procédés et principes les cultures modernes et les autres, les marges mais aussi le pivot de nos sociétes”. Este foi também o caminho traçado para a constituição de um modo de pensar em uma Antropologia simétrica, o qual reivindica uma simetria total entre humanos e não humanos; ultrapassando as grandes divisões entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto, uma vez que ambos, como também a ciência, não se constituem em ideias, mas em práticas. Como continua Latour: Eu desejo uma Antropologia que toque o centro de produção das verdades tanto num caso quanto em outro. E eu parti do postulado seguinte: se queremos compreender as sociedades contemporâneas, é preciso estudar a sua primeira fonte de verdade, as ciências. O que aconteceria então se aplicássemos os métodos antropológicos e etnográficos para a produção científica? [...] Meu projeto é identificar os diferentes lugares onde se produzem as verdades mais essenciais das sociedades contemporâneas, ir ao coração do que as define: a ciência evidentemente, pois a verdade científica descreve todo o horizonte do moderno; a técnica, porque ela forma a referência essencial dos modernos. (LATOUR, 2003, p. 06-08, tradução livre).

Com efeito, essa simetria generalizada, e mesmo essa Antropologia simétrica, amplificavam o potencial do princípio programático de simetria 226


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de Bloor (1975), uma vez que esta última, ainda tomava o social como um lugar privilegiado para se discutir as ciências e a natureza (LATOUR; WOOLGAR, 1996). Além disso, mais do que amplificar seu potencial descritivo-analítico, a simetria generalizada aliviava aquele desconforto em relação ao empoderamento que se supunha à Sociologia, ou ao social studies – o de ser uma ciência capaz de estudar as outras. Agora, seu princípio metodológico poderia ser aplicado a si própria, pondo-se ela mesma em questão. De todo modo, a Actor-Network-Theory precisa, de maneira mais ampla, ser considerada em dois aspectos: o seu valor metodológico e o seu valor teórico. Tratar a TAR como teoria, se tornou uma espécie de desconforto, inclusive para o próprio Latour (1999a). A bem da verdade, segundo o próprio autor, é que os “quatro pregos do caixão” são as próprias palavras que compõem esse nome, Teoria AtorRede: o ator, a rede e o hífen de o ator-rede, e a palavra teoria que lhes reúne em um rótulo - cada uma com sua carga negativa, cansada2. A noção de ator não pode ser confundida com o sentido tradicional de ator social, uma vez que, para Latour (1999a), um ator é tudo que age, deixa traço, produz efeito no mundo, podendo se referir a pessoas, instituições, coisas, animais, objetos, máquinas, ou tudo isso simultaneamente: “usar la palabra ‘actor’ significa que nunca está claro quién y qué está actuando cuando actuamos, dado que un actor en el escenario nunca está solo en su actuación”. (LATOUR, 2008, p. 73). Assim, sublinhe-se que a actancialidade não é o que o ator faz – pois a ação é distribuída, não é univocal, não cabe na identificação do ator-emsi: “por definición, la acción es dislocada. La acción es tomada prestada, 2 Algum tempo mais tarde, em seu Reassembling the Social (2005 – a versão aqui utilizada é a tradução argentina de 2008), Latour se desculparia por haver sugerido uma reforma/descarte do vocabulário e mesmo do nome TAR, e naquele momento mais recente reconsidera o seu uso (2008, p. 24): “desgraciadamente el nombre histórico es ‘teoria del actor-red’ (TAR), nombre que es tan torpe, tan confuso, tan falto de sentido, que merece ser preservado”. No entanto, considero a autocrítica de 1999a retomada aqui, didática e esclarecedora.

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distribuida, sugerida, influida, dominada, traicionada, traducida” (Id., 74). Daí de se assinalar que se está tratando aqui de um ator-rede, e não simplesmente de um ator e de uma rede em separados. Há agências, as mais diversas, atuando simultaneamente no mundo e assim, com o intuito de se evitar o equívoco de atribuir exclusivamente a agência ao humano, é comum encontrar a utilização do termo semiótico actante, ou seja, qualquer coisa que atue, ou que promova uma ação. (AKRICH; LATOUR, 1992). Nesse mesmo sentido, há ainda a utilização de uma voz verbal presente entre os gregos, a middle voice, que não seria nem passiva, nem ativa, e que à falta em outras línguas, poderia ser traduzida como o que faz fazer (faire faire no francês, ou to make one do no inglês) – ela permite distribuir as certezas do que, ou de quem está agindo. (LATOUR, 1999b). Já a rede (network), mais especificamente, começou a se tornar um problema à medida que a emergência da World Wide Web demandou estudos específicos e então network ficou diretamente colada à ideia de Internet. Na cibernética, a ideia de rede se refere aquilo que transporta informações por longas distâncias, mantendo-a intacta, pura, sem quaisquer deformações, completamente oposta ao projeto latouriano, interessado justamente nas traduções, nos desvios dessas redes, ou seja, nesta perspectiva incorporamos não apenas aquelas traduções bem sucedidas. Neste aspecto, é interessante ainda que se pontue mais detalhadamente outro conceito fundamental na TAR: a tradução. Uma vez que jamais fomos modernos e que não há mais vencedores e vencidos, verdade e erro (ou nunca houve) é preciso refletir sobre as maneiras como se dão as constituições de certos campos científicos, com seus sujeitos componentes. Os modernos, segundo Latour (2005), ativavam práticas de purificação, que consistem em delimitar campos específicos de análise, dentro de pólos exclusivos, de modo amplo, o natural e o social, com elementos dispostos entre o par sujeito-objeto. Essas práticas de purificação, segundo Latour (2005) jamais foram devidamente eficazes, uma vez que não haveria como se pensar nesses pólos, como independentes, puros e exclusivos: haveria os híbridos. 228


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Partindo da discussão entre Hobbes (o cientista político) e Boyle (o cientista natural), Latour (2005) procura mostrar que para os modernos a natureza (os objetos, as coisas em si) não é uma construção nossa. Neste caso ela nos ultrapassam por ser transcendente, enquanto que a sociedade (os sujeitos e as leis), tomada como construção nossa, é imanente à nossa ação. Entretanto, se nós construímos a natureza em laboratório (a bomba que reproduz o vácuo, criada por Boyle), como nossa construção ela é imanente à nossa ação e se não construímos a sociedade, ela é transcendente e nos ultrapassa. Acima deles, ou além deles, em um terceiro pólo, que a modernidade se encarregou de deixar entre parêntesis, está Deus, cuja figura pode ameaçar os trabalhos de purificação, uma vez que a força criadora dos objetos está nele e, ao mesmo tempo, é dele o poder do Leviatã, que o representa no Estado e é soberano dos sujeitos. Há, no entanto, um processo de tradução que permite que se dê outro tratamento a este paradoxo dos modernos. Esta tradução somente é possível por meio das redes, pois são elas que cruzam estes supostos pólos e os faz ligar, bem como ligar humanos e não humanos dentro deles em um coletivo. De fato, as práticas de purificação, que se buscava na modernidade a fim de se obter meios pelos quais os coletivos (separadamente humanos e não humanos) pudessem se ampliar e progredir, só foram mesmo possíveis pelo seu contrário: a mistura deles. Política e natureza, sociedade e ciência não estão separados, tampouco aqueles que estas disciplinas se propõem estudar: eles são híbridos, são quase-sujeitos, quase-objetos dos quais não nos sentimos mais à vontade para dispor em um, ou outro pólo. Neste caminho, o fazer da ciência, por exemplo, não pode ser definido nos termos do dentro e do fora do laboratório, tampouco este fazer se universaliza – a sociedade não está livre da ciência, como a ciência também não está livre da sociedade e seus saberes se estendem até os limites das redes às quais se associa. Assim, o termo tradução para a TAR deve ser lido como o processo de transformação que determinado fato, feito, ou ator vai sofrendo ao passar de mão em mão na rede – e lembremos, as redes aqui não são 229


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um meio para transportar algo de maneira intacta, elas se transformam e transformam o que por elas passa, já que o que passa também fica para associar, gerar efeito. Tradução significa então deslocamento de objetivos, significa envolver interesses, transformar dispositivos, ou seres humanos e não humanos. A tradução implica em desvios de rota, invenção de elos que antes não existiam, que não eram previstos, e que de alguma maneira fazem modificar os elementos imbricados na associação. As redes podem ser elas mesmas compreendidas como cadeias de tradução, às quais elas próprias estão suscetíveis. Por fim, para compreendermos a noção de redes sociotécnicas, cabe dizer que essas cadeias de tradução mobilizam outras duas entidades: os intermediários e os mediadores. Ambos não são entidades contornáveis, ou identificáveis antes do próprio curso da ação: se constituem, eles mesmos, no curso das ações. No entanto, a diferença aparece no fato de que um intermediário é aquilo que transporta um significado, ou uma força de ação, sem modificá-la, sem traduzi-la, de maneira que “definir sus dados de entrada basta para definir sus dados de salida”. (LATOUR, 2008, p. 63). Já um mediador não pode ser considerado apenas um, já que pode funcionar como um, como nada, como muitos, ou infinitos. Os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam os significados, ou os elementos que transportam mais amplamente para a composição do social. Ora, quando nos referíamos à Comunicação Mediada por Computador (CMC) estávamos falando nos computadores como mediadores ou intermediários? Em que termos pensávamos e analisávamos os dispositivos técnicos da comunicação? Eles eram meros agentes passivos do processo que transportavam mensagens sem transformá-la ou será que considerávamos sua capacidade de transformar, traduzir as mensagens. Enfim, o que está em foco são os fluxos, as multiplicidades de conexões. Trata-se mais do que uma ideia torta, ou seja, de flexibilização de instituições rígidas, algo que simplesmente nos alivie do peso das noções de sociedade, Estado-Nação etc. Para Latour (1999a, p. 15) não se trata apenas de uma celebração da flexibilidade 230


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das redes e das suas potencialidades analíticas, na realidade, entendemos aqui que o pensamento de Latour aproxima-se da noção de rizoma, no sentido concebido por na filosofia de Deleuze e Guattari. Ou seja, ela é multiplicidade, com suas transformações, translações, traduções como definimos anteriormente. Assim, uma rede não pode ser definida por superfícies, tampouco por seus limites externos; mas pelo foco que está nos agenciamentos, nas alianças entre elementos heterogêneos (humanos e não humanos). Ou seja, a rede por si só pode também se constituir como um ator, uma vez que ela produz efeitos, que ela não é uma entidade fixa, logo, não é o objeto de análise; a análise deve recair na capacidade que essas redes têm em redefinir, ou transformar os seus componentes (internos e externos): de modo resumido, interessam os efeitos das redes. Nesse ponto, é interessante pensar no potencial de fazer fazer ou de agência, nos termos de Latour (2008), dos conceitos e teorias que também podem participar das redes. Ou, melhor dizendo, está posto o desafio de descrever como esses sujeitos agem e se mobilizam em função de como concebem e entendem determinados conceitos, como de rede ou network, por exemplo. Também seria interessante pensar o próprio pesquisador na rede. Nesse caminho, o hífen que liga o ator à rede e a própria ideia ator-rede assim ligados são frequentemente confundidos com unidades binárias, como no estruturalismo, operando em contradição (nesse caso, o hífen divide, não liga), assim causando algum mal-estar. Acrescente-se a isso a crítica de que juntos, ator-rede, formariam uma espécie de monstro de duas faces: numa delas, um Grande Gorila com a demiurgia de se criar em um grande sistema explicativo, na outra, o ataque moralista que vê nessa aberração a dissolução do humano – algo como a morte do homem, agora tornado rede-híbrida. Segundo Latour (1999a), a ideia ator-rede tem como intuito traçar a conexão entre o micro e o macro, o ator e a rede, compreendidos como duas faces do mesmo fenômeno – uma espécie de entidade circulatória, não definível senão pela ação, pelas interações, inscrições e práticas locais. Enfim, como ele mesmo resume, 231


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a “TAR concentra sua atenção sobre um movimento”. (LATOUR, 1999a, p. 16). Por fim, a palavra teoria sugere um conjunto de elementos que em geral lançam de antemão princípios de análise – o que faz eleger o vencedor e o vencido, antes do fim da linha; isso vem de encontro à proposta metodológica dessa mesma TAR, cujo foco central está em rastrear as construções e a fabricação de fatos e feitos no interior das teorias. Como sugere Latour (2008), a TAR deve ser considerada mais como um esforço metodológico negativo, do que como uma teoria constituída do social. E isto implica em compreendê-la em função das modificações e dos tensionamentos produzidos junto à nossa forma de pensar e descrever as associações, tomando por base as concepções de simetria, tradução, ator e rede. Tal estratégia se propõe a seguir a fabricação dos fatos, ou mais especificamente, descrever e rastrear as ações dos atores através das redes, sem explicar o trabalho de fabricação de fatos, de sujeitos e de objetos que se faz em rede, através de associações entre humanos e não humanos. (LATOUR, 2006a); (FREIRE, 2006). Para tanto não é suficiente o reconhecimento da existência de tais redes assim como a afirmação de que os sujeitos que a conformam estão conectados com muitas outras coisas e estão por toda a parte. Para isso, como bem observa Latour, não seria necessária a TAR, pois qualquer teoria social disponível bastaria. “Escoger un razonamiento tan esfralario simplemente para mostrar que sus informantes ‘forman una red’ es perder el tiempo”. (LATOUR, 2008, p. 206). E, nesse ponto, encontramos um esclarecimento importante a ser feito, o de que frequentemente confundimos a rede traçada pela descrição e a rede usada para fazer a descrição. “Dibujar con un lápiz no es lo mismo que dibujar la forma de un lápiz. Es lo mismo con esta palabra ambigua: red”. (LATOUR, 2008, p. 207). Ou seja, não se pode confundir o objeto com o método, pois a TAR, nos termos de Latour, nada diz sobre o que se está descrevendo, mas sim como se faz para descrever. Dessa forma, a rede “es una expressión que sirve para verificar cuánta energía, movimiento y especificidad son capaces de capturar nuestros proprios informes”. (LATOUR, 2008, p. 190). 232


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Tomado o exemplo do lápis e a analogia com a rede, que procuramos discutir desde o início do artigo, diremos que, para Latour, não seria possível reduzir a rede a um ator, tampouco a uma redeobjeto, uma entidade já dada para a análise – redes são associações. Da mesma forma, essas associações não podem ser tomadas como vínculos previsíveis, que conectam elementos claramente definidos, sejam eles sociais, ou naturais (aliás, não há, sob esta perspectiva elementos puramente sociais, ou naturais – há apenas os híbridos), que podem a qualquer momento redefinir suas identidades e suas relações, de modo a redefinir as próprias associações. Em resumo, trata-se das associações como produção de redes e não o contrário.

Hibridismo e multiplicidade de agências

Considerando o que foi dito anteriormente, podemos agora afirmar que a noção de redes sociotécnicas permite uma leitura mais apurada, próxima da dimensão vivencial e das experiências concretas, das relações entre humanos e não humanos, e de um modo mais específico, da chamada Comunicação Mediada por Computador. A noção, como temos trabalhado, permite reconstituir a multiplicidade de modos de interação entre humanos e não humanos e os processos que estão em curso na comunicação, além de situar a multiplicidade de lugares que pode ocupar os próprios dispositivos técnicos. Em outros termos, se pretendemos descrever processos de interação que envolvam a técnica, e todos em alguma medida o fazem, as referências dadas pela chamada Teoria Ator-Rede (TAR) atuam como um contexto teórico-metodológico propício. Como temos mostrado desde o início, a rede não se reduz apenas a um meio neutro que transporta informação ou possibilita ligação entre humanos. A internet, por exemplo, pode ser pensada como um mediador, e concordando com Latour, diríamos que ela deveria ser chamada net-work, rede-trabalho, no sentido de apontar o trabalho, o movimento, a transformação que ela pode operar. A rede não é a web e não é a sua explicação, mas aquilo que devemos explicar. 233


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Nestes termos, o que está em pauta é a agência. Mas não a agência pensada em termos, digamos clássicos, de humanos agindo com intenção e significado, frente a objetos neutros e passivos, nem tampouco o contrário. Ao mostrarmos que os objetos tecnológicos não podem ser tomados exclusivamente como meros intermediários na comunicação, mas que podem ser pensados também como mediadores, apontamos para o potencial de agência dos próprios objetos. Assim, os dispositivos tecnológicos não seriam redutíveis à simples apropriação ou ressignificação por parte dos humanos. Não são meros objetos inertes, neutros, sobre os quais incide a ação humana, motivada, pensada ou desejada. Os objetos podem atuar como intermediários ou como mediadores, no entanto, não se trata de uma opção ontológica, mas sim contingente. A questão está justamente em rastrear os modos como se dão as interações para poder descrever qual o potencial de agência em cada relação. Necessitamos ser mais concretos para prosseguirmos com o nosso argumento. Para tanto, lembramos inicialmente os exemplos dados no nosso trabalho anterior (CRUZ, MÁXIMO, RIFIOTIS, 2010), quando argumentamos a partir das relações e mútuas transformações que ocorrem entre indivíduo e arma. Naquele momento, nos referimos ao indivíduo-arma como uma nova síntese sociotécnica, a qual aponta também para a possibilidade de pensarmos a arma-indivíduo e as mútuas mudanças provocadas em cada um deles, com consequências de extensividade e contingência da agência. Assim, seguindo o princípio da simetrização, diríamos que na perspectiva socioténica só há híbridos, como afirmou Latour numa entrevista na Revista Mana (2004). No presente texto, pretendemos aprofundar a questão do hibridismo e da agência, e por esta razão citamos um outro exemplo também tirado da obra A Esperança de Pandora de Latour (2001, p. 214) o quebra-molas. Numa descrição detalhada que reproduzimos a seguir fica claro o ponto de vista do autor: O quebra-molas obriga os motoristas a desacelerar no campus (chamado em francês de ‘guarda-dorminhoco’). O objetivo do motorista

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é transladado, em virtude do quebra-molas, de ‘diminua a velocidade para não atropelar os alunos’ para ‘vá devagar para proteger a suspensão do seu carro’. Os dois objetivos são bastante diversos e, aqui, reconhecemos o mesmo deslocamento que já presenciamos na história da arma. A primeira versão do motorista apela para a moralidade, o desinteresse esclarecido e a ponderação; a segunda, para o egoísmo puro e ação reflexa. Pelo que sei, mais gente responde à segunda que à primeira [...]. O motorista altera seu comportamento em consequência do quebra-molas [...]. Todavia, do ponto de vista de um observador, pouco importa o canal por onde se chega a um determinado comportamento. Da janela, o reitor nota que os carros passam devagar, respeitando sua determinação, e isso basta.

A transição de motoristas afoitos para motoristas disciplinados foi efetuada por outro desvio. Ao invés de placas e semáforos, os engenheiros do campus usaram concreto e asfalto. Nesse contexto, a noção de desvio, de translação deve ser modificada para absorver não apenas [...] uma nova definição de objetivos e funções, mas também uma alteração na própria substância expressiva. O programa de ação dos engenheiros, “façam os motoristas desacelerarem no campus”, está agora articulado com o concreto. Qual a palavra certa para essa articulação? Eu poderia ter dito ‘objetificada’, ‘reificada’, ‘realizada’, ‘materializada’ ou ‘gravada’ – mas esses termos implicam um agente humano todo-poderoso impondo sua vontade à própria matéria informe, ao passo que os não humanos também agem, deslocam objetivos e contribuem para a sua definição. (LATOUR, 2001, p. 214).

O longo exemplo citado é bastante claro no seu argumento. Há uma agência do quebra-molas sobre o comportamento. A presença do quebra-molas na rua faz os motoristas diminuírem a velocidade dos seus automóveis. Não se trata de uma determinação, mas de uma 235


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descrição detalhada da ação que nos mostra que ou quem faz outro fazer. Ou seja, a descrição da ação dos motoristas, sem pressuposição moral ou outra, não pode ser reduzida a uma escolha que não leve em conta também a presença de um objeto na rua que pode prejudicar a suspensão do seu automóvel. Procurando descrever a ação, estamos mais próximos das experiências dos sujeitos e mais identificados com os móveis da sua ação e interações. Repetindo um argumento, citado no trabalho anterior, lembramos que frente aos atores sociais, assumindo a postura de simetrização, “hay que restituirles la capacidad de crear sus propias teorías de lo que conpone lo social. La tarea ya no es imponer algún orden, limitar la variedad de entidades aceptables, enseñar a los actores lo que son o agregar algo de reflexividad a su prática ciega”. O pesquisador deveria, nesta perspectiva, “seguir os atores mesmos”3. (LATOUR, 2008, p. 28). A postura de simetrização implica, portanto, que o analista não tenha uma perspectiva superior aos sujeitos com os quais faz a sua pesquisa. Ele tem também um conhecimento sobre o que ele etnograficamente observa e descreve, e os sujeitos de pesquisa não podem mais ser considerados, na perspectiva que estamos propondo, como meros “informantes” para a nossa pesquisa. Eles são os agentes que produzem as associações, mas agentes que atuam em condições e contextos relacionais concretos os quais estamos analisando e como tais a ação desses é etnograficamente fundamental, como também pode ser a dos objetos. O foco da narrativa etnográfica concentra-se 3 A questão estaria mal colocada se considerássemos toda esta discussão como atinente exclusivamente à cibercultura. Interessante, por exemplo, observar a pesquisa desenvolvida por Leticia Freire junto aos moradores da localidade de Icari (Rio de Janeiro). A pesquisadora, orientada pela perspectiva da TAR, se ocupa da descrição do processo de implantação do Programa Favela-Bairro, mais especificamente das “redes que estavam sendo tecidas no processo de internação urbana”. Nesse sentido, para Freire interessava menos identificar vínculos e alianças geradas em torno dessa intervenção, do que mapear (em termos não taquigráficos) os “efeitos produzidos por estes vínculos”. (FREIRE, 2006, p. 26).

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nas ações que são realizadas, naquilo que faz fazer: o quebra-molas, os engenheiros, os atropelamentos, etc. Ou seja, o foco da descrição está na trama, na distribuição das ações e dos agentes que ocupam distintos lugares, conforme a ação descrita. É dando atenção e procurando descrever as ações e as redes de actantes que se formam no curso da própria ação é que percebemos efetivamente que nem sempre a ação começa e termina com um humano. Fazer uma descrição dos modos de interação que estabelecemos com os objetos pode nos mostrar relações que invisibilizamos, ou melhor, obliteramos para continuar a nossa narrativa sociologizada que reintera, apesar de tudo, uma única agência que os discursos da modernidade reconhecem: a agência humana. Devemos, por assim dizer, resistir ao pensado imediato que coloca os atores como possuidores de uma linguagem e os analistas como tendo uma metalinguagem, em tudo superior a dos sujeitos das nossas pesquisas. Os atores sociais, na perspectiva que estamos trabalhando (simetrização do conhecimento), não são agentes não reflexivos cuja ação precisa ser significada em segundo grau pelo analista. Não se trata de uma hermenêutica da desconfiança, mas de uma atitude frente ao observado, um deslocamento descritivo que foca a sua narrativa na ação e nas interações entre actantes, e não em atores cuja trama estes desconhecem. Em resumo, se há atores que fazem outros agirem, então estes atores (humanos ou não humanos) devem ser considerados como agentes da ação, pois possuem agência no contexto e na relação específica em que fazem fazer. Isso implica em se considerar que há muito mais sujeitos povoando o mundo do que supõem as nossas vãs filosofias (VARGAS, 2007), todos jogando, de igual para igual. Por alto, tudo é interação: natureza, ciência, tecnologia, sociedade, política, economia, que antes tomados como uma espécie de entidades com ontologias bastante contornáveis passam então a ser vistos como coletivos compostos por atores que se associam e se traduzem formando redes que descentram agências e dissolvem purezas e universalidades. 237


Considerações finais

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De modo geral, pode-se pensar que a perspectiva metodológica da Teoria Ator-Rede para se pesquisar o social produz um deslocamento da solução tradicional que se produz no mesmo movimento em que se questiona o que é o social. Como sugere Latour (2008), de modo tradicional, o social remete a uma espécie de contexto – contexto social, ou dimensão social, ou ordem social, ou prática social, ou estrutura social – onde domínios da realidade, como a Economia, a Biologia, a Geografia, o Direito, a Psicologia, para citar alguns, estão em parte situados. Neste caso, o social aparece de maneira negativa, como aquela instância que faz perder a pureza de algum desses domínios, cuja totalidade deve prever aquelas nuvens dos aspectos sociais, ou dos fatores sociais, que geralmente são tomados como o fator de desordem – aquilo que não se pode ter o controle do rigor científico, justamente por não se saber ao certo as consequências daquelas dimensões obscuras e mutantes. Da mesma forma, quando tratamos especificamente dos sujeitos, tomamos o cuidado de não esquecer as influências sociais que estes podem receber – “influenciado por determinado contexto social o sujeito fez...” – de maneira que há aparentemente um tom de distância, de deslocamento daquilo que é social. Somos algo, ou conjuramos um domínio do saber que se relaciona com o social, de maneira a parecer que este é uma instância deslocada, ou externa. Por outro lado, quando assumimos o social como algo interno, ou inerente, atribuímos a esse um tom de tumor, como uma espécie de resíduo dentro de nós, ou dentro de um domínio do saber. Há, assim, uma espécie de naturalização, ou homogeneização daquilo que se compreende por social – assim, ele, o social, como também a sociedade, por si só, se tornam autoexplicativos, obsoletos. (STRATHERN et al., 1996) e medida para explicação do próprio social. (LATOUR, 2008). Isso aparece nos discursos dos jornais e revistas, nos discursos políticos e científicos, nas histórias de amor, na moda, ou no senso comum, e, sobretudo, nas próprias ciências sociais. Contudo, para a Teoria Ator-Rede, o social é plano. Não vem do alto, 238


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pronto, acabado, para cobrir feito uma centelha de luz determinados entes e lhes dar qualquer forma que os diferencie de outros - ele se constitui no plano, nas mãos que vão se dando, se associando e fazendo movimentar. E tão fugaz quanto sua constituição, ele vai se desmanchado, tão logo as mãos parem de se movimentar, se estabilizem, se soltem. De tal modo que podemos afirmar que se as coisas não são sociais por si mesmas, se elementos e conexões não são previsíveis, seria possível presumir que não deveríamos encontrar aquilo que esperamos encontrar com nossos projetos de pesquisa. E ao encontrar o não previsto, não predefinido, não deveríamos forçá-los à traição de se tornarem inteligíveis às nossas categorias, senão por algum equívoco. “Traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença ao invés de manter em silêncio e presumir uma univocalidade original e uma redundância última – uma semelhança – entre o que era e aquilo que nós estamos tentando dizer”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2009, p. 57). Num sentindo mais amplo, como afirma Viveiros de Castro (2002, p. 129), seguindo Deleuze: “não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro, mas sim a verdade do relativo”. Finalmente, cabe retomar o objetivo geral do presente texto, lembrando que procuramos aqui explicitar os pressupostos de uma abordagem sociotécnica para analisarmos a cibercultura. Iniciamos nossa apresentação discutindo as noções de ator-rede, simetrização, hibridismo, agência, dando ênfase à categoria de rede. Deste modo, como dissemos no início do presente texto, problematizamos o lugar dos dispositivos técnicos nas interações sociais e repensarmos a técnica, e assim discutirmos criticamente o próprio campo teórico e metodológico que podemos mobilizar nos estudos da cibercultura e das redes sociais. Terminamos por nos perguntar sobre os limites da própria categoria cibercultura não como algo já dado, uma espécie de simples contexto em que as interações sociais ocorrem, mas como um processo de produção no qual interagem humanos e não humanos; procurando ultrapassar os limites estritamente disciplinares, quer da Comunicação ou da Antropologia, nos colocando como horizonte a abordagem que nos possibilita a TAR. 239


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Cabe aqui lembrar que as análises etnográficas que temos realizados no GrupCiber (GUIMARÃES, 2000), (MÁXIMO, 2002, 2006); (SEGATA, 2008) nos têm mostrado claramente que na comunicação na e pela Internet os dispositivos técnicos são fundamentais, seja na forma dos computadores ou celulares, da velocidade de conexão ou dos softwares utilizados. Na realidade, os nossos estudos têm dado ênfase, desde o início, especialmente às plataformas de sociabilidade e aos modos de interação que estas promovem. Estamos agora caminhando em direção a uma abordagem que nos permita descrever a íntima e indissolúvel relação que observamos, nos nossos trabalhos, entre os elementos da técnica e os sociais, e que, a noção de redes sociotécnicas permite fazer. A posição central do nosso argumento foi resumida por Rifiotis no III Simpósio da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura – ABCiber (São Paulo, 2008) e na VII Reunião de Antropologia do MERCOSUL (Buenos Aires, 2009), quando esse, ao apresentar as questões relativas ao campo de estudos da cibercultura em termos de novos cenários e dilemas para a pesquisa, afirmou que é paradoxal a centralidade atribuída ao estudo das redes sociotécnicas no campo da chamada cibercultura. Isso porque, essa se traduz ao mesmo tempo pela afirmação discursiva, pela descrição de plataformas e ambientes de sociabilidade, dispositivos técnicos e pela descrição da rede física e das tecnologias da CMC, etc., e por uma gramática recorrente: apresenta-se numa primeira parte os hardwares, redes físicas, plataformas, e, mais inicialmente, uma narrativa histórica da internet, que surpreendentemente está isolada de uma segunda parte em que aparecem exclusivamente as relações entre atores humanos. Para Rifiotis, trata-se antes da afirmação de uma vontade de saber sociotécnica do que de uma análise sociotécnica. Na primeira, domina a afirmação de uma centralidade nunca realizada na análise entre humanos e não humanos. Procura-se, desta forma, tentar escapar do tecnocentrismo, mas voltamos para a sociologização nas análises, ou na melhor das hipóteses, trata-se de uma justaposição entre humanos e não humanos. 240


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Eis o desafio colocado e que o presente texto procurou espelhar a partir de uma reflexão sobre os fundamentos da abordagem sociotécnica. Podemos afirmar agora que a própria CMC, comunicação mediada por computador é analisada em termos de comunicação intermediada por computador, no sentido de que os computadores são entendidos como meros intermediários no processo e não como elementos atuantes numa rede sociotécnica. Portanto, tratando-se de redes no campo da cibercultura, do ciberespaço, uma primeira distinção que se impõe ao analista é a separação da internet em relação à noção de redes sociotécnicas. Em resumo, trata-se de um problema de pesquisa cuja invisibilidade na maioria dos estudos leva, por exemplo, a uma identificação imediata da World Wide Web com a noção de redes sociotécnicas. Porém, como dissemos anteriormente, na perspectiva da TAR a distinção entre elas é capital e exige um aprofundamento da própria noção de redes sociotécnicas. Foi neste sentido que desenvolvemos o nosso texto discutindo o que entendemos por rede, ou melhor, por ator-rede, para, em seguida, apresentarmos os debates em torno da noção de redes sociotécnicas, o caráter híbrido e as agências que a análise destas permite descrever. Procuramos, desta forma, apresentar a perspectiva da TAR e seu potencial analítico no campo da cibercultura. Finalmente, lembramos ainda que a tendência de recuperar a ideia de social como associação tem trazido importantes contribuições a diversos debates contemporâneos que tendem a dissolver a força dessas categorias, privilegiando as conexões entre as mais diversas entidades, humanas e não humanas. Entende-se assim, que o social, ou sociedade não são domínios, mas sim movimentos. Dessa forma, a Sociologia e a Antropologia, por exemplo, podem ser compreendidas como disciplinas, cujo domínio de conhecimento não é um domínio, mas movimentos de conexões entre coisas, para além do social. Neste sentido, para concluir, diremos que o enfoque na ação não se reduz à mera descrição do ato, mas trata de recuperar o evento que ela produz, relacionando actantes. A agência nunca é uma atribuição ontológica, mas contingente, e ela é o 241


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resultado da mediação de um actante no curso da ação. As redes, como pretendíamos desde o começo mostrar, são processos incessantemente produzidos por híbridos e coletivos (humanos e não humanos). Em síntese, a partir das nossas reflexões sobre a TAR, a maneira mais adequada de pensarmos a cibercultura seria em termos da afirmação: estamos em rede, somos redes.

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