Em terra de chapinha, cacheada é rainha

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Belo Horizonte, abril DE 2015

Tramas contemporâneas

Impressão

Em terra de chapinha, cacheada é rainha Mulheres abandonam a ditadura do liso e resolvem assumir os cabelos naturais fotos: Marina Gualberto

Mulheres afirmam que a principal mudança é interior

Mariana Gualberto “Cabelo, cabeleira/ cabeluda, descabela/ cabelo, cabeleira/ cabeluda, descabelada/ quem disse que o cabelo/ não sente [...] cabelo vem lá de dentro/ cabelo é como pensamento”, Jorge Ben Jor usou a voz para cantar a força dos cabelos em seus mais diversos tipos e formas. E, em meio a tantas técnicas de alisamento capilar, um número crescente de mulheres vai de encontro à ditadura da beleza eurocêntrica e resolvem assumir os cabelos crespos e cacheados. Movimentos em prol dos fios naturais ganharam as redes sociais, as ruas e, principalmente, a cabeça das mulheres. Esse é o caso do Encrespa Geral, que já contou com três edições em Belo Horizonte e tem abrangência tanto nacional, quanto internacional. O evento, que tem o objetivo de incentivar e inspirar a busca do autoconhecimento e a valorização da autoestima, já passou pelas cinco regiões do Brasil, além de ter ganho as cabeças gringas na Irlanda, Inglaterra e Austrália.

O Encrespa Geral não atrai apenas as mulheres com os cabelos naturais, mas aquelas que estão na fase de transição, tentado eliminar a química alisadora dos fios. Dandara Elias, uma das organizadoras da última edição do evento, que aconteceu em outubro de 2014, já foi adepta dos alisadores, mas decidiu assumir os cachos. “Eu sempre quis ter o cabelo cacheado, eu achava lindo, mas nos outros, pra mim não combinava. No início, eu queria ter mas não sabia como. Conheci o grupo, descobri o processo de transição e resolvi tentar. Percebi que eu também poderia ter o cabelo natural. Foi libertador”, confidencia, já com os cabelos naturais. Uma questão de raízes A aceitação das origens e da beleza natural é um dos fatores que dá forças às mulheres, para passarem pela fase de libertação. Dandara explica que a mudança parte de dentro. “Você começa a se questionar: por que eu acho feio o cabelo natural? E quando você

entende que isso é um preconceito, que não é natural o cabelo bonito ser o cabelo liso, você supera mesmo. E eu costumo falar: o cabelo é só a mudança que as pessoas veem, é só o que não coube aqui dentro. A maior mudança é dentro da gente”, comenta. Sob um turbante cheio de cores, que acomodava seus cabelos já natu-

“Como a maioria, eu também passei pelo momento de seguir a sociedade e o mercado. Tem quatro anos que uso o meu cabelo natural. A melhor coisa que a gente faz na vida é se aceitar” Karen Porfiro

rais, e um rosto expressivo, Vitória de Paula também levou para o evento todas as suas raízes e a paixão pela moda afro, que, ela garante, vem de berço. “Minha mãe fez questão de me mostrar a africanidade que eu tinha, através dos meus traços. No momento em que eu assumi os meus cachos, eu falei: vou assumir toda a minha africanidade! Então o turbante, hoje, é como uma peça de roupa, quase não saio sem ele, tenho um monte”, relata. Vitória comenta ainda que, hoje, é mais fácil encontrar acessórios e peças de roupa afro que vêm direto da Nigéria e do Senegal, na capital mineira, o que, há três anos atrás, era quase impossível. Miss black power Corpo esguio, pele morena, olhos verdes, traços finos, lábios bem desenhados e um cabelo cheio de cachos, vida e liberdade. Karen Porfiro, miss Minas Gerais 2014, representa bem as crespas e cacheadas e garante que o melhor é se assumir. “Como a maio-


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ria, eu também passei pelo momento de seguir a sociedade e o mercado. tem quatro anos que uso o meu cabelo natural. A melhor coisa que a gente faz na vida é se aceitar”, pontua. A miss, que também participou da terceira edição do Encrespa Geral, conta que ficou muito feliz por vencer o concurso e receber a aceitação das pessoas. Karen se identifica como uma mistura tipicamente brasileira, “Meu pai tem a pele e os olhos claros, já a minha mãe é negra, com descendência de índios. É a mistura que deixa o país nessa beleza toda”, ressalta. Sobre preconceito e discriminação, Karen comenta ser algo enraizado na história, que, infelizmente, ainda existe, mas, aos pouco, é superado. “Infelizmente ainda tem certos padrões. Quando eu passei no concurso, as pessoas viravam e falavam: ela é bonita, mas o cabelo não é padrão de miss. As pessoas ainda têm esse preconceito, mas, de degrau em degrau, estamos chegando à fase da aceitação”, finaliza. Tratamento especial Os fios crespos e cacheados precisam de cuidados que nem todos os salões de beleza estão aptos a dar.

Ludmila Bernardes Cresci estrangeira em minha própria casa. Meu corpo. Casa com paredes negras, traços fortes e teto encaracolado. A palavra pertencer, até os 16 anos, não coube no meu léxico, limitado por falta de representatividade autêntica. Nascida de uma mistura tipicamente brasileira-mãe branca e pai negro-, virei café com leite, morena, cor de burro fugido e indefinida, mas nunca negra. Anulei-me com a consciência de que a ditadura dos cabelos lisos e traços finos me excluía. Comprei uma identidade imposta pela sociedade e escondi, atrás de horas de escovas e pranchas, minha raiz. Embora houvesse feito a travessia para dentro do que sou há dois anos, permitindo que aquilo que me era natural ditasse as regras. Externando minhas origens e criando uma linguagem particular por assumir o meu cabelo. rota inconscientemente traçada em busca de uma identidade própria. A incompletude do que eu era, falta de outras semelhantes a mim, ainda me consumia. Assumir-se negra é buscar-se constantemente nas revistas, novelas e etc. É desejar ver a sua própria imagem refletida em um moderno espelho eletrônico e por ele multiplicada com tal intensidade na

tramas contemporâneas Em Belo Horizonte, existem alguns espaços especializados nesse tipo de cabelo. É o caso do Beleza Negra, um dos pioneiros na capital mineira, fundado em 1986, por Betina Borges. A cabeleireira conta que, depois de trabalhar como manicure em um salão também focado nesse tipo de cabelo, criou interesse no segmento e decidiu fazer cursos para aprender sobre os fios. Em 1995, foi para a Carolina do Norte, nos Estados unidos para se especializar em cabelo afro. Segundo Betina, cada vez mais as mulheres vêm desistindo das químicas fortes. “Elas se cansaram de produtos pesados; descobriram que o natural é mais bonito. A internet e a tV têm ajudado bastante, é uma febre que está pegando. Esse momento do cabelo crespo é maravilhoso! Mas é necessário cuidar, hidratar e usar os produtos de acordo”, explica. Hoje, a maior parte da clientela do Beleza Negra está na transição para retirar a química pesada do cabelo. “Atendo de dez a quinze pessoas por dia, com um tratamento personalizado. A cada quinze mulheres, oito estão na transição para retirar a química”, conclui.

Beleza que quebra padrões

esperança de que algo possa mudar uma auto-imagem negativa. No dia 19 de outubro de 2014, após ficar, por alguns segundos, estática, em uma escada rolante que me subia, encontrei, o que narcisicamente, buscava. O meu reflexo. Impensável, outrora, que uma escada rolante seria o meio de locomoção mais adequado para uma interiorização. recebi o bônus da luta que, até ali, havia enfrentado só. Pude ver, enfim, a mulher que me constituí às cegas e na marra. A mulher negra. Mas não era só uma. Eram várias mulheres negras com cabelos crespos, cacheados, ondulados e todas as suas variações. Mulheres reunidas em um encontro que discutia a nossa beleza, mas também os nossos desafios diários. Além das palestras e do depoimento da Miss Minas Gerais, Karen Porfiro, que mesmo com traços eurocêntricos, padrão televisivo. É negra. Stands nos ensinavam mais sobre nós mesmas. Cuidados com o cabelo, turbantes, roupas e cultura. Percebi, então, o quanto preciso do outro para a construção de mim mesma. De minha auto definição. Não precisava mais de outra identidade que não a minha. A que construí. “uma batalha contra a escravidão continua quando o opressor me obriga a fazer o que

ele quer que eu faça. A ser quem ele quer que eu seja. Me assumir negra, de matriz africana é uma construção diária e se eu precisar pisar no chão para buscar energias eu vou pisar. O negro tem que ser guerreiro o tempo todo”, declarou, meio a uma conversa, Katammci uiburé, dona da marca de roupas africanas DJuMBO. Katammci, reforça, porém, que apesar de nossa resistência, o preconceito tem de ser continuamente combatido, pois está em todos os lugares. “Dentro do açougue, um lugar no qual eu nunca esperava, um homem gritou: “cabelo duro”, e repetiu- enfaticamente. Ele tem que me respeitar. Nos respeitar. Chamei a polícia!”, exemplificou. Ser negro é maravilhoso mas, devido às marcas históricas cravadas em nosso corpo, nunca para de doer. A dor mais latente em nós, que seguimos aprendendo a lidar com o preconceito, no entanto, é a dor que sentem as nossas crianças. Criança esta que quando está aprendendo o que é identidade ouve dos outros que você tem que ser outro indivíduo, aquele que a sociedade aceita. Ainda não temos, para esses seres menores- não em grandeza, mas em estatura-, uma grande cartilha de desenhos animados ou filmes nos

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quais elas se reconheçam. Mas o caminho a essa realidade possível vem sendo construído na força e na luta das mulheres que encontram, em um encontro como o Encrespa a força para seguirem resistindo.


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