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Uma desilusão que roubou a razão Nas ruas do centro de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, existem personagens que poderiam ter saído diretamente das páginas de um livro de aventura
Se Dom Quixote de La Mancha vivesse nos tempos de hoje, continuaria sendo uma pessoa fora dos padrões. Confundia fantasia e realidade, lutava contra moinhos gigantes e, como um cavaleiro andante, saía pelo mundo acreditando em seus delírios. Algo inadmissível no bom convívio de uma sociedade como a nossa. O mundo está cheio de Dom Quixotes, mas, distantes das páginas dos livros, essas pessoas não são consideradas heróis ou heroínas. Muito pelo contrário, são vistas mais como vilãs dos centros urbanos. “Ela já me assustou quando eu estava caminhando pela Rua Independência. Vinha contra mim e, ao passar do meu lado, gritou ‘sai da frente, guri’”, conta o estudante e morador de São Leopoldo Milton Manoel. Ele está falando de Estrela. “Ela sempre usava muito batom, sentava na frente da loja da Nova Era, falava sozinha e, provavelmente, não tomava banho, pois a catinga era grande”, lembra Milton. Em sua memória, ainda está a lembrança de Estrela dormindo embaixo da marquise da antiga imobiliária de seu pai em São Leopoldo. “Sujava tudo, falava sozinha e ria. Também não gostava que ninguém atrapalhasse suas conversas com os amigos imaginários”, diz Milton. Para outras pessoas, Estrela não era apenas mais uma moradora de rua. Estrela na verdade se chamava Rejane. Um tom de pele escuro, mas não negro, e uma combinação de roupas muito original de saia e calça coloridas. Vaidosa, chegava a gastar um batom inteiro em apenas um dia. Muito solitária e fechada, era diferente dos outros mendigos. E a soma dessas características chamou a atenção da cabeleireira Elenir Oliveira Silva, conhecida como Nica, que no seu caminho diário para o trabalho não deixou de reparar em Rejane. “Eu me aproximei dela para dar coisas para comer. Imagiva que ela morava por aqui, e a família recolhia de vez em quando, como esse outro pessoal da rua”, conta Nica. Na verdade, de vez em quando, Rejane sumia, mas não ia para casa. O serviço social a recolhia e a levava para o albergue municipal, assim como faz com muitos outros moradores de rua.
Sai diabo!
Para Estrela, os vira-latas eram como seus moinhos gigantes a serem todas as noites derrotados. “Ela tinha muito medo de cachorro, pois já tinha sido mordida várias vezes. Ela gritava ‘sai diabo!’”, lembra Nica. Estrela usava sua calça e saia como escudo pra se defender de tudo o que ninguém via quando caía a noite. Um certo dia choveu em São Leopoldo. Normal, às vezes chove nas cidades. Então você vai para casa e ouve a chuva caindo na rua, onde estava Rejane. “Eu comprei uma sombrinha pra ela, e no outro dia cheguei ao trabalho e ela estava no mesmo lugar e com a sombrinha na mesma posição, me deu uma pena dela”, revela a cabeleireira. Rejane só não usou mais a sombrinha num dia que Estrela teve que usá-la como espada para espantar as criaturas da noite.
Letra de diploma
Uma caixa de sapato acompanhada de uma caneta foi suficientes para Estrela revelar uma parte de Rejane. “Ela estava escrevendo com uma letra lindíssima, daqueles de escrever o nome em diploma, perfeita”, conta Nica. Assim, logo percebeu que Rejane tinha estudo, então resolveu puxar assuntos com ela. “Ela conversava sobre tudo, mas depois pirava”, diz a cabeleireira. Além de Nica, as donas da Floricultura Lu, Clair Cavalleiro e Luciane Pagatto, também compartilhavam da mesma simpatia por Rejane. “A letra do caderno era excelente, parecia de professora”, conta Luciane. Rejane então recebia a solidariedade dessas mulheres que ajudavam com alimentos, roupas e, principalmente, atenção. “Dava para perceber que ela não era uma pessoa de rua, pois falava corretamente e era sempre bem educada, falava: ‘será que dá para me conseguir um café, por favor’, ela dizia”, lembra Lucia. Clair conta que ia para casa, mas ficava com muita pena de deixá-la na rua. Seu pensamento continuava em Rejane. “Ela nos marcou muito, que saudades que tenho dela”, revela Clair.
Batom e unhas pintadas
Clair, Lucia, Nica e outras pessoas se afeiçoaram por Rejane e ela acabou muito dependente delas. “Um dia ela me pediu batom e esmalte. Também, junto com as gurias da loja Nova Era, nós pintávamos a unha dela”, conta Nica. Rejane encontrou um lugar onde se sentia bem. Até que num dia, não tão belo, Rejane sumiu. Nica ficou preocupada, ainda mais quando soube que uma mendiga, com as mesmas características de Rejane, tinha morrido atropelada em baixo do viaduto do bairro Scharlau de São Leopoldo. Passaram seis meses e avisaram Nica que
Rejane estava de volta na cidade. “Não sei explicar se fiquei contente ou triste, mas saí na rua procurando e logo a encontrei”, conta Nica. Estrela estava de volta de sua aventura em Porto Alegre. De acordo com Estrela, levaram-na da cidade, pois estava incomodando muito. “Contou que um dia conseguiu entrar no trem e voltar para São Leopoldo, pois gostava da cidade”, explica Nica. Nesse dia, Estrela também disse que morava na Bahia, tinha sido adotada por uma família, mas, quando os pais adotivos morreram, os filhos gananciosos a mandaram embora e ela ficou “ruim dos nervos”.
Números e números
Na tentativa de ajudar Rejane, Nica deu um caderno e uma caneta para ela. “Escreve aí tudo que é número de telefone que tu lembrar”, pediu Nica. Ela explicou que talvez tivesse alguém procurando por Rejane. Então Estrela respondeu: “Namorado será que me procura?” E deixou no ar uma esperança para Nica de que Rejane tivesse um passado antes de ser também Estrela. Primeiro, Estrela escreveu páginas e páginas de números. Foi no albergue que Rejane se lembrou de um número específico de telefone e entregou para a assistente social. “Aí nós ligamos, fomos tentando vários códigos de área. Quando colocamos o código de Curitiba, atenderam!”, conta Nica. Pode ser que Estrela fosse da Bahia, mas Rejane era de Curitiba, e seus pais não eram adotivos. “Na época, em 2010, ela estava com 36 anos, muito maltratada. Por telefone, os pais contaram que ela ficou assim aos 18 anos, por causa de uma decepção amorosa. Ela tinha um namorado, estava de casamento marcado, quando o noivo desistiu de casar e ela pirou”, explica Nica. Na manhã seguinte, os pais verdadeiros chegaram para buscar Rejante. “Eu fiquei muito contente que ela não quis viajar sem me ver. Eram seis da manhã, eles chegaram ao albergue, e a assistente social teve que me chamar, pois ela não queria ir embora sem me dar tchau”, conta Nica. Hoje Rejane está em Curitiba e mora com seus pais. Parece que Estrela deu um tempo, pois agora ela está sendo medicada. “Eu já fui visitá-la, levei presente e revi o sorriso lindo que ela tem. Ficou feliz em me ver e perguntou por todo o pessoal do centro que um dia a ajudou”, diz Nica. Assim como Estrela voltou a ser Rejane, no final do livro, Dom Quixote volta à razão, renuncia suas aventuras e morre como Dom Alonso Quixano. Um exemplo de herói que, na sua loucura, foi tão corajoso quanto os verdadeiros herois. Atualmente, Rejane mora em um condomínio fechado, para Estrela não fugir novamente. Mas ela nunca sairá da lembrança dos amigos do centro de São Leopoldo.
Box: Memetizar Vem do termo grego “meme”, que significa imitação. Na internet, o significado de meme refere-se a um fenômeno em que uma pessoa, um vídeo, uma imagem, uma frase, uma ideia, uma música ou uma hashtag alcançam muita popularidade entre os usuários.