ROTA TRANSBORDADA: uma cartografia afetiva

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Rota Transbordada uma cartografia afetiva

Mariana Lydia Bertoche



Rio de Janeiro, 2015.

Este trabalho é dedicado a todos os presos políticos da época da ditadura militar do Brasil. Em especial a meu avô, Mury Jorge Lydia, que não tive a oportunidade de conhecer.


Era uma vez um prĂŠdio


Construído em 1910 na esquina da Rua da Relação com a Rua dos Inválidos, o prédio foi projetado para sediar a repartição Central de Polícia. O edifício sempre

esteve

vinculado

à

coerção

de

reações

políticas que pudessem de alguma forma comprometer a “ordem pública”. Logo no início, reprimia negros e pobres, proibia manifestações religiosas de origem africana e a capoeira, numa época em que ainda se prendia funcionou

por

“vadiagem”.

como

Durante

Delegacia

o

Especial

Estado de

Novo,

Segurança

Política e Social (DESPD), de 1933 a 1944, e na Ditadura Ordem

Militar

Política

e

funcionou Social

do

como

Departamento

Estado

da

de

Guanabara

(DOPS-GB), de 1962 a 1975, quando passou a se chamar Departamento

Geral

de

Investigações

Especiais

(DGIE), até 1983. Em 1987, foi tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) e desde 2010 sofre um processo de restauração para que abrigue o Museu da Polícia Civil em seus aposentos. De “eclético”, além do estilo arquitetônico, o prédio não tem nada, já que,

independente

da

época

em

que

se

inseria,

a

edificação sempre esteve relacionada a políticas de inibição

de

movimentos

e

ideais

considerados

“subversivos”, participando de todos os capítulos da História de repressão da sociedade carioca.


Um prĂŠdio

que me habita


Não conheci meu avô por parte de mãe. Ele era jornalista

e,

por

exercer

seu

trabalho

de

forma

ética e responsável, foi preso em 1970. Mury passou pelo DOPS-GB, e participou de seu “Livro de Ouro”, com sua ficha com impressões digitais e fotos. Eu mesma nunca tive acesso a nada disso - nem mesmo pude tirar uma fotografia com ele -, entretanto, o prédio

cinza

e

sombrio

de

número

40

da

Rua

da

Relação pode conter registros do meu avô dos quais nunca terei a oportunidade de sanar. Morei na Rua dos Inválidos, a mesma em que foi interrogado,

tido

como

“subversivo”

e

tirado

de

circulação. Passo todos os dias ao lado do prédio que pode conter traços e registros do meu avô que eu sequer poderei ter (se não foram jogados às traças e negligenciados, como era comum durante a ditadura). Transito pelos lugares que ele transitava na época de sua prisão - ele trabalhou na Tribuna da Imprensa na época em que funcionava na Rua do Lavradio número 100, a duas quadras de onde morei. Quantas vezes já passeei em frente ao edifício, reconstituindo cenas da época, imaginando os rostos preocupados

dele

e

de

minha

avó,

Dulce?

Quantas

vezes olhei para o cinza de suas paredes e imaginei o

cinza

da

continental

fumaça por

dia ,

de

seus

durante

quatro o

fervor

maços do

de mês


anterior

ao

seu

julgamento,

em

que

teve

que

se

esconder para não ser preso preventivamente? Quantas vezes olhei pelas janelas do prédio, imaginando onde ele

poderia

símbolo

ter

da

estado?

balança

da

Quantas

vezes

justiça,

que

abominei enfeita

o os

dizeres “Polícia Central”, em contradição total com a prática desse ambiente? Quantas vezes contornei o prédio, sem rumo, continuamente, com certo medo de que

tempos

construção

como

esses

voltem,

tão

descomunal?

e

estranhando

Quantas

vezes

essa senti

vontade de conversar com as entranhas desse prédio, perguntá-las o que acontecera nessa cidade com os homens daquela época? “Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrita nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das

escadas,

nas

antenas

dos

pára-raios,

nos

mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões,

serradeiras,

entalhes,

esfoladuras”

(CALVINO, 1990, p.7)

E

minha

alternativa

para

retomar

a

memória

perdida (ou melhor, não vivida) é me utilizar desses escritos formando

físicos

da

outras,

redescobrindo

antigos

cidade, traçando

seguindo novos

percursos,

as

linhas,

caminhos,

delineando

uma

cartografia do afeto nessa cidade que necessita cada vez mais fugir da pragmaticidade e ser ocupada de subjetividades.


Habitar corpos e espaรงos


Formamos

cartografias

subjetivas

em

nosso

imaginário a todo tempo, seja em nossos caminhos diários

-

montando

lógicas

próprias

e

dando

importância maior a determinados lugares e caminhos que

outros,

separando

os

que

consideramos

perigosos, os mais bonitos, os mais rápidos, etc. ou até na concepção de mapa mundi - hierarquizando regiões,

reconhecendo

países

e

depositando

expectativas em territórios. O

trabalho

Rota

Transbordada

se

utiliza

da

lógica cartográfica para desenvolver uma concepção corporal e afetiva de ver e delinear o espaço em torno do prédio. O rastro do caminho é o registro do movimento do meu corpo em forma de pintura, e como Merleau-Ponty (1908-1961) destaca em O Olho e o Espírito, “é oferecendo seu corpo ao mundo que o pintor transforma o mundo em pintura” (2004, p.18). As

linhas

são

nada

mais

que

o

registro

de

um

caminho tortuoso e afetivo em torno do edifício. Escritura

que

não

marca

informações

objetivas,

limites resolutos, mas como um mapa, é “aberto,

é

conectável,

em

todas

as

suas

dimensões, desmontável, reversível, suscetível a receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de

qualquer

indivíduo,

natureza, um

grupo,

(DELEUZE, 2000, p. 21)

ser

preparado

uma

formação

por

um

social”


Mesmo

ao

ser

retirado

em

menos

de

24h

de

montagem, essa será mais uma forma dele se renovar e nascer novamente de outra maneira - e sua supressão fará parte do trabalho como uma de suas etapas. É por

estar

“inteiramente

voltado

para

uma

experimentação ancorada no real”, não reproduzindo “um inconsciente fechado sobre ele mesmo”, mas o construindo (DELEUZE, 2000, p.21) que o mapa faz ainda

mais

sentido

enquanto

participante

de

um

processo artístico que tenta resgatar e recriar uma memória não existente. A ocupação desse espaço público se dá como uma maneira

de

se

reapropriar

do

território

que

habitamos, aproximando nosso corpo aos outros corpos - nesse caso, o edifício, a calçada, os transeuntes - já que “visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo,

e

sua

coesão

(MERLEAU-PONTY,

2004,

é

a

de

p.20).

alguma

coisa”

Também

para

Merleau-Ponty, “o corpo é para a alma seu espaço natal e a matriz de qualquer outro espaço existente” (2004, p. 37), então esse movimento se dá como um retorno do espaço ao corpo e do corpo ao espaço ligando-os

de

modo

poético

e

significativo.

Essa

reaproximação acontece porque “as coisas e meu corpo são

feitos

do

mesmo

estofo”

(idem,p. 21), e


juntá-las através de linhas vermelhas, em um bordado

cartográfico afetuoso, ligando meu caminho, minha história, inserido

a e

história a

dos

do

local

pedestres

que

em

que

está

participam

do

trabalho enquanto ele está montado, me interessa muito. “é

preciso

que

com

meu

corpo

despertemos

corpos

associados, os “outros”, (...) que me frequentam, que frequento (...), como animal nenhum frequentou os de sua

espécie,

seu

território

(MERLEAU-PONTY, 2004, p.18)

ou

seu

meio”


O transbordar dos corpos


O trabalho Rota Transbordada teve sua primeira montagem na manhã de sábado do dia 10 de janeiro de 2015. Na manhã do domingo, dia 11, não estava mais lá. Fora retirado com menos de 24h de duração - mas essa era apenas a primeira etapa do trabalho.

A

segunda

A

montagem

foi

no

dia

23

de

fevereiro.

terceira, dia 8 de março. No dia 4 de abril, junto com o evento do Ocupa-DOPS, em descomemoração de 51 anos do Golpe Militar, foi o fechamento do trabalho, em

sua

última

cartografia

fase.

foi

A

cada

montada,

retirada, com

uma

suas

nova linhas

gradativamente mais espessas. O previsto era que se chegasse num momento de transbordamento da linha em que o vermelho predominasse, mostrando uma presença cada vez mais marcante. A calçada, enquanto suporte de

trabalho,

foi

tomada

pela

expansão

material

e

imaterial do trabalho - e a instalação só terminou de fato quando foi, pela última vez, suprimida. A cada nova etapa, o trabalho apareceu novamente, mas mais forte - com linhas que cada vez mais ficaram evidentes. A cor vermelha não é à toa. Muito sangue foi derramado em favor das ditaduras e em detrimento da liberdade dos “vermelhos” que subvertiam a ordem. A parte frontal do prédio, cada vez mais enrubrecida,


revela o transbordamento de um mapa real do prédio. Cada vez mais o rastro de meu corpo, a cartografica desse caminho tortuoso em volta desse edifício, pôde ser notada. Sem uma palavra, sem uma explicação, tudo está dito. A Ditadura Militar ocupou os corpos e a memória de milhares de brasileiros. Por um tempo longo tirou suas vidas, muitas vezes não as devolvendo, outras as deixando com sequelas. Me aproprio de Calvino (1923-1985)

quando

descreve

Zaíra

em

Cidades

Invisíveis, dizendo que “a cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata”

(1990,

p.7).

Dilatemos

esses

espaços

de

memórias sórdidas, transbordemo-nos - façamos nossas linhas se expandirem até ocuparem definitivamente a memória da cidade.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALVINO,

As

Ítalo.

cidades

Invisíveis.

São

Paulo,

Companhia da Letras, 1990. CARTOGRAFIAS DA DITADURA. Desenvolvido pelo Instituto de

Estudos

da

Religião

_colaborativo.

(ISER).

Disponível

Conteúdo em:

<www.cartografiasdaditadura.org.br> Acesso em Janeiro de 2015. DELEUZE,

Gilles;

GUATTARI,

Félix.

Mil

platôs

Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2000. MERLEAU-PONTY, Maurice.

O olho e o Epírito, Cosac

Naify. 2004.

AGRADECIMENTOS Coletivo RJ Memória,Verdade e Justiça; OcupaDOPS; Amy Jo Westhrop; Janne Calhau; José Pedro Almeida; Luciana Chernicharo; Paulo Cesar Ribeiro; Além de todos amigos e familiares que deram apoio durante o processo desse trabalho.


Mariana Lydia Bertoche é formada em Artes Visuais com

habilitação

em

Licenciatura

Plena

pela

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Como

artista

visual,

arte-educadora

carioca

e

neta de um ex-preso político, atua em escolas, pesquisa

através

do

campo

artístico

os

desdobramentos da violência de Estado e milita na Campanha Ocupa Dops pela Transformação do Prédio do

ex-DOPS/RJ

em

Espaço

de

Memória

Resistência. Contato: blydiamar@gmail.com

da



Rio de Janeiro, 2015


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