Até o Fim - Anna Quindlen

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Mary Beth Latham tem uma vida que considera perfeita. Muito dedicada à família, ao lado do marido Glen, construiu um lar feliz e saudável para Ruby, a filha mais velha, e para os gêmeos adolescentes Max e Alex. Mas, quando percebe uma mudança no comportamento de Max, há algum tempo deprimido e mais calado que o normal, Mary dedica toda sua atenção a ele. E é nesse momento que acontecimentos a princípio sem importância anunciam uma tragédia. Porém, ao se dar conta das rachaduras na redoma na qual instalou a família, já é tarde demais, e a sequência disso é a prova de todo amor e determinação de uma mãe e do poder que a esperança tem em nos manter vivos. Até o fim conta a trajetória de uma mãe que levou adiante uma vida com a qual jamais sonhou, mas que teve coragem suficiente para enfrentá-la.


Há uma noite se aproximando Através dos campos, uma que nunca foi vista, Que não acende as luzes. À distância parece suave, mas Quando pousa sobre os joelhos e o peito Não traz conforto. Para onde foi a árvore, que atava A terra ao céu? O que há em minhas mãos, Que não consigo sentir? O que carrego nas mãos? — PHILIP LARKIN


Esta é minha vida: o alarme dispara às cinco e meia com o murmúrio de um locutor de rádio me dizendo que houve um golpe no Chade, um tornado no Texas. Meu marido se mexe levemente a meu lado, vira-se, pisca e volta a dormir por mais uma hora. Meu robe fica no pé da cama, algodão estampado no verão, chenile acolchoado para o frio. A cafeteira começa a funcionar na cozinha quando saio do banheiro, desço descalça, faço uma pausa para tirar do caminho um par de botas jogado na entrada dos fundos e pegar o jornal no degrau. Os ladrilhos de cerâmica rústica da cozinha foram uma má escolha; estão sempre frios. Deixo a cadela sair do canil e coloco uma xícara de ração em sua tigela. Detesto as primeiras horas da manhã, a animação suspensa do mundo lá fora, o véu negro e depois o cinza opressivo do horizonte ao longo das colinas do outro lado das portas de vidro. Mas é o único momento em que posso descansar sem dormir, pensar sem decidir, falar e ouvir minha própria voz. É o único momento em que consigo ficar sozinha. Pouco menos de uma hora a cada dia, quando ninguém pede nada. Nosso quarto fica no fim do corredor, e, às vezes, ao passar, ouço as crianças respirando, cada uma é tão peculiar ao dormir como quando está acordada. Alex inspira e expira metódica e tranquilamente, como se estivesse em sono profundo, ainda que sempre chute as cobertas, deixando uma longa perna, com suas tênues cicatrizes cirúrgicas, exposta ao ar da noite. Do outro lado do quarto, Max balbucia, resmunga, se retorce e rosna


uma série de sílabas sem sentido. Por mais de um ano, a partir dos 11, Max teve um problema de sonambulismo. Eu o encontrava lavando as mãos na pia do banheiro ou lá embaixo, na cozinha, piscando cegamente para a geladeira aberta. Mas ele melhorou depois do primeiro verão que passou no acampamento. Ruby assobia uma nota alta e estrangulada a cada expiração. Quando ela era mais nova, eu temia que tivesse asma. Na maior parte do tempo, dorme de costas, as cobertas dobradas com firmeza sobre o peito, o cabelo espalhado pelos travesseiros. Seria fácil deslizar para fora das cobertas e fazer a cama, mas ela nunca se dá a esse trabalho, a menos que eu a coaja. Sento-me no andar de baixo com um café e o jornal, olhando pela janela enquanto minha mente estremece. Às seis e meia, ouço o chuveiro ser ligado no banheiro máster. Glen acordou e está se aprontando para o trabalho. Às seis e quarenta e cinco, retiro o edredom de Ruby, que o puxa de volta, enrolando-se como uma larva, e diz: — Só mais dez minutos. Às sete horas me inclino primeiro sobre Alex, e depois sobre Max, e afundo meu nariz em seus pescoços, começando a sentir o pungente odor masculino sob a doçura infantil. — Está bem, está bem — diz Alex, irritado. Max não fala nada, apenas sai da cama e começa a tirar sua enorme camiseta de dormir enquanto cambaleia até o banheiro. Há uma linha pintada no meio do quarto deles. Dois anos atrás, em uma tarde ociosa de junho, eles exigiram o direito de escolher suas próprias cores para as paredes. Eu estava distraída e concordei. Fizeram um bom trabalho, mediram o quarto cuidadosamente, colocaram uma lona no chão. Alex pintou seu lado de azul-claro, e Max, de verde-limão. As outras mães dizem: “Você não vai acreditar no que Jonathan (ou Andrew ou Peter) me contou sobre o quarto dos gêmeos”. Talvez, se os meninos tivessem sido meus primeiros filhos, eu também achasse uma insanidade, mas Ruby me


amansou. Ela tem uma torre de latas de refrigerante encostada a uma das paredes de seu quarto. Ou é um manifesto ambiental ou uma daquelas coisas que fazemos aos 15 anos. Agora que tem 17, ela já superou essa fase, quase a esqueceu, mas como cometi o erro de perguntar antes da hora quando desmontaria aquilo, ela nunca o fez. Entro no quarto de Ruby e, embora a porta não faça ruído algum (ela lubrificou as dobradiças, suponho, provavelmente com óleo para bebês, óleo de banho, ou com qualquer outra coisa inapropriada, para que não possamos ouvi-la se abrir à noite), ela diz: — Estou acordada. Fico ali esperando, pois se acredito no que diz, ela vai se enrolar outra vez e cair naquele longo túnel de sono que só os adolescentes habitam, a um passo do coma ou da inconsciência. — Mãe, eu estou acordada — grita ela, jogando a roupa de cama para o lado e começando a amontoar seu longo cabelo ondulado no topo da cabeça. — Posso me vestir em paz, por favor? Pra variar? Ela diz isso como se eu tivesse o hábito de deixar uma arquibancada cheia de espectadores assistir enquanto ela se prepara para começar o dia. Só Glen surge minimamente alegre, com o paletó sobre um dos braços. Ele deixa os jalecos no consultório. São lavados e passados fora e têm um cheiro maravilhoso, como a mais limpa das roupas. “Doutor Latham” está bordado em azul sobre seu coração. Do andar de cima, ouço o tilintar do cereal em sua tigela. Ele come a mesma coisa todas as manhãs, sai para o trabalho à mesma hora. Usa camisa azul ou amarela, com uma gravata listrada ou outra com uma pequena estampa repetitiva. Às vezes, um paciente agradecido lhe dá uma gravata de presente, estampada com pequenos óculos, um teste oftalmológico ou até mesmo olhos. Ele agradece sinceramente, mas nunca as usa. Glen não é organizado, mas sabe onde está tudo: em que cadeira deixou a pasta, em que parte do balcão da cozinha jogou sua carteira. Ele faz um


trejeito com os cantos da boca sempre que as coisas não estão como deveriam — quando a cadela sobe nos móveis, quando as crianças e os amigos fazem barulho demais tarde da noite, quando as taças de vinho tinto estão no lugar das de vinho branco. Agora essa expressão imprimiu-se permanentemente em seu rosto, como o oposto de covinhas. “Por favor, poupe-me”, diz minha amiga Nancy, revirando os olhos. “Se isso é o pior que pode dizer sobre ele, você não tem o menor direito de reclamar.” Nancy fala que seu marido, Bill, um homem alto e desengonçado com jeito de espantalho, deixa uma trilha de roupas quando se despe, como migalhas nos contos de fadas. Certa vez, perguntou onde ficava a máquina de lavar. “Eu achei que era um milagre ele querer saber”, diz ela, quando conta essa história, o que faz com frequência. “Acabou que o homem do conserto estava na porta e Bill não sabia para onde mandá-lo.” Nossa lavadora fica na área de serviço, fora da cozinha. Há um tubo que vem do segundo andar trazendo a roupa suja para baixo. Ao longo dos anos, nossos filhos o usaram para mochilas, bolas de futebol, baquetas. Bam. Bam. Bam. “É um tubo para roupa suja”, grito. “Roupa suja, roupa suja”. Minha vida é lavar roupa, preparar refeições, ir a reuniões escolares, jogos e recitais. Escolho um cardigã e o coloco sobre um baú ao pé da cama. Estamos no final de abril, na primavera, mas o tempo está tão instável quanto o humor de um adolescente, de sol para nuvens, de nuvens para temporal, de temporal para tempestade e sol outra vez. — Você está fedendo — ouço Alex dizer a Max do corredor. Max não responde. — Você está fedendo a merda — diz Alex. — Olha a boca! — eu grito. — Não falei nada — berra Ruby de trás da porta de seu quarto. Cabides deslizam pela arara de seu armário com o som de um instrumento tribal. Três baques: sapatos, suponho. O quarto dela sempre


parece ter sido revistado. O pai desvia o rosto da porta fechada como se imaginasse o que há lá dentro. Os irmãos são terminantemente proibidos de entrar, e, na verdade, não estão interessados. Pilhas de livros, suéteres jogados, uma bolsa aberta e até mesmo as calcinhas de renda perdem a importância por pertencerem à irmã. Eu sou tolerada porque entrego montes de roupa limpa. “Guarde-as nas gavetas”, sempre digo, e ela nunca guarda. Seria muito mais fácil fazê-lo eu mesma, mas esse impasse se tornou parte de nosso relacionamento: minha tentativa de ensinar responsabilidade a Ruby; a tentativa dela de exibir independência. E muito de nossa vida juntas consiste em deixar passar, em dizer coisas que sabemos que serão ignoradas, e mesmo assim continuar a dizê-las, como música de fundo. De alguma forma, todos os dias Ruby emerge da desordem de seu quarto com um estilo bonito e único: uma velha calça capri, uma blusa de babados que comprei na faculdade, um longo cardigã de caxemira com um buraco de traça na manga, um lenço no cabelo. Ruby nunca se veste como os outros, o que me deixa admirada e um pouco intimidada, como se tivesse descoberto que temos tipos sanguíneos incompatíveis. Alex usa jeans e camiseta. Max usa jeans e camiseta. Max para e acaricia a barriga da cadela quando chega à cozinha. Ela aperta os olhos, eufórica. O nome dela é Virginia, ela tem 9 anos. Chegou ainda filhote, quando os gêmeos tinham 5 anos, e Ruby, 8. Na tigela de cerâmica que compramos em

GINGER

seu primeiro Natal está escrito . Max coça o rabo de Ginger. — Agora você vai ficar fedendo a cachorro — diz Alex. O pão pula da torradeira com um som semelhante ao de uma arma de brinquedo. A porta da geladeira se fecha. Preciso de mais pasta de dentes. Ruby pegou minha pasta de dentes. — Estou indo — grita ela, da porta dos fundos. Ruby não tomou café da manhã. Ela e as amigas, Rachel e Sarah, vão parar na loja de donuts e comprar café gelado e donuts recheados com


geleia. Sarah é nadadora de competição e pode comer o que quiser. “Tem o metabolismo de um beija-flor”, diz minha amiga Nancy, mãe de Sarah, o que é conveniente para nós duas. Nancy é bióloga, professora universitária, então creio que entenda de metabolismo. Rachel é um ano mais velha que as outras duas, e as leva de carro para a escola. As três juram que ela dirige devagar e com prudência. Sei que não é verdade. Imagino Rachel se lamentando sobre um garoto de quem gosta muito, muito mesmo, e que não liga para suas investidas, dirigindo com uma das mãos, um donut na outra, fazendo a curva com um som estridente. Cuidado e boa alimentação são para adultos. Elas são jovens, imortais. — O ônibus! — grita Alex. E, finalmente, Max fala. Esse é um dos pontos altos de nossa vida familiar: Max falar alguma coisa. — Estou indo — resmunga ele. — Levem um casaco — grito. Ou eles não ouvem, ou não se importam. Vejo-os entrando com as mochilas no ônibus da escola fundamental. Alex sempre entra primeiro. — Tem geleia? — pergunta Glen. Ele sabe onde estão as próprias coisas, mas tem amnésia no que diz respeito às propriedades comunitárias. — Está no lugar de sempre — digo. — Abra os olhos e veja. Então, tiro dois potes de geleia da prateleira da porta da geladeira e os coloco com força na mesa em frente a ele. Só consigo administrar uma conduta matinal, então trato meu marido como um dos meus filhos. Ele não parece se incomodar, ou sequer perceber. Glen gosta desse momento, quando as crianças estão ali, mas repentinamente desaparecem. A cadela volta à cozinha, as unhas estalando no piso de ladrilhos. — Não dê comida a ela — digo, como faço todas as manhãs. Poucos minutos depois, ouço sons desordenados de mastigação enquanto Ginger come a casca de um pãozinho. Ela faz o circuito da casa e


depois se joga a meus pés. Depois de ler o jornal, Glen vai para o consultório. Uma vez por semana, ele começa as consultas mais cedo, e três vezes as termina mais tarde, para atender estudantes e pessoas com empregos menos flexíveis. Seu consultório fica em uma pequena casa a um quarteirão do hospital. Ele tira o carro da garagem e vira à direita em nossa rua todas as manhãs. Um dia virou à esquerda, e eu quase corri para chamá-lo. Cheguei a abrir a porta da frente, mas descobri que um vizinho estava recapeando a entrada da garagem e que um rolo compressor bloqueava a rua à direita. O vizinho acenou. “Desculpe pelo inconveniente”, gritou. Acenei de volta. Coloco uma calça cáqui, uma camisa branca e mocassins com solas de borracha. “Essa roupa é tão... de mãe”, diz Ruby, às vezes. Não é exatamente um insulto. Sou forte e bronzeada por causa do trabalho ou, talvez, da genética. Minha mãe ensinava inglês para estudantes do ensino médio, o que não é bem uma profissão fisicamente rigorosa, e também é forte e bronzeada. Aos 70 anos, ainda usa roupas de tênis sem se preocupar. Às oito e meia, um caminhão de entulho para na entrada da garagem. Na lateral está pintado um trio de flores rudimentares, do tipo que meninas do segundo ano desenham no caderno com canetas coloridas. Uma flor azul, outra cor-de-rosa, outra amarela, e ao lado as palavras

PAISAGISMO DE LATHAM. Um dia eu era revisora freelancer, então tive três filhos, fiz curso de jardinagem e abri uma empresa de paisagismo. É um negócio bem-sucedido. — Oi, Mary Beth — diz Rickie, do caminhão. Ele está usando o agasalho da Paisagismo Latham, mas o zíper comprime sua grande barriga dura. O caminhão está limpo, mas sei que no porta-luvas há várias embalagens de doces e papel-manteiga engordurado. Rickie opera as máquinas; ele já não consegue manejar uma pá ou capinar. Estamos indo ver uma faia que está perdendo a casca, a duas cidades daqui. Provavelmente é um fungo que vem atacando, esgueirando-se


silenciosamente através de florestas e jardins, assim como faz um resfriado pelas classes das crianças na escola: primeiro uma, depois outra, depois meia dúzia ou mais. Essa árvore deve ter uns 100 anos e dificilmente envelhecerá muito mais. Uma pena; é uma árvore magnífica, do tipo que parece imutável. Essa é a lição de humildade do meu trabalho: posso olhar para o carvalho em um jardim, ou até mesmo para os narcisos que plantei no outono anterior, e saber que muito depois que eu me for haverá sombra e cor, e não estarei lá para ver. Em diversos aspectos, é uma sensação tranquilizadora, como dizer a sua filha que um dia os brincos de diamante serão dela, sem nunca explicar o que “um dia” significa. — Quer comprar um café? — pergunta Rickie. O que ele quer dizer com café é uma caixa de donuts sortidos. — Claro, nunca é demais. — Remexo minha bolsa. — Espere, esqueci o celular outra vez. Volto já. Ainda pode cair uma geada noturna, então não há muito que possamos fazer nos jardins das pessoas. Nessa mesma época, no ano passado, uma mulher nos contratou para plantar centenas de flores para o casamento da filha, ao ar livre. Deus a favoreceu. A tarde de primavera fora ensolarada e quente, e as esporinhas, as lobélias e os delicados amores-perfeitos roxos e azuis brilhavam contra o verde da grama, rivalizando (ofuscando, eu diria) com o azul dos vestidos das damas de honra. Na noite seguinte, houvera uma forte geada. Os amores-perfeitos eram a coisa mais triste do mundo de manhã, achatados no chão. Eu detestei vê-los daquele jeito. — Recebemos uma solicitação para um grande trabalho no tribunal — diz Rickie. — O secretário municipal quer que você faça um orçamento para eles. — Ah, Deus me livre do secretário municipal. Não importa o que eu proponha, eles vão querer gerânios. Rickie passa por um buraco e as ferramentas pulam na traseira do


caminhão com um som estridente. Tiro um lenço da bolsa e assoo o nariz. Uma mulher que reconheço vagamente acena enquanto esperamos em um sinal vermelho. Todos os dias, com poucas variações (neve, leves indisposições, um jornal que não chegou, uma mochila perdida, uma noite passada na casa de amigos que nos deixa com um, dois ou até três filhos a menos que a configuração habitual), todos os dias são assim. Comuns. Medíocres. Mais ou menos.


Estou sentada em um pequeno banco estofado do lado de fora dos provadores da Molly’s Closet. Eles parecem boxes de banheiro. Na verdade, suspeito de que as cortinas dos provadores de Molly sejam de chuveiro. Elas têm uma estampa alegre de flores que sei que não existem na natureza. O banco é baixo demais até para uma mulher de altura mediana em boas condições físicas. Minhas costas doem, estou com fome e preciso ir ao banheiro. A tríade das mulheres acima dos 40. Pelo menos não estou com cólica. Ruby está. “Preciso muito de chocolate”, ela disse no carro, o que é um aviso para não falar sobre a escola, suas amigas, ou sobre qualquer outra coisa importante. Lágrimas são iminentes. Ruby está tentando encontrar um vestido para o baile de formatura. Este se tornou seu projeto de vida, juntamente com um conto que não tive permissão de ler, mas que, parece, pode se tornar a principal história da revista literária deste ano. Ruby vai editar a revista no ano que vem. Ela também é presidente de um clube que se preocupa com o que chamam de escravização do povo do Tibete, e membro do conselho que se encontra com o diretor uma vez por semana para pô-lo a par do que está acontecendo na escola. “Ah, você é a mãe de Ruby Latham”, as pessoas às vezes dizem quando me apresento. Ela não é o que eu invejava quando estava no ensino médio: a garota popular. É algo que nem tenho certeza de que existia naquela época: a garota confiante. Ela dá a impressão de ser totalmente ela mesma, e apenas parte dessa impressão é falsa.


— Nem pensar. — Ouço-a gemer dentro da cabine, e outro vestido é jogado sobre a barra que sustenta a cortina. A barra também parece ser de chuveiro. O marido de Molly, que é empreiteiro, construiu a loja, mas ela sempre reclama que ele fez economia. “Qualquer coisa que não servisse para outra obra ficou para mim”, diz Molly, mas com uma irritação fingida que demonstra que não é nada de mais. — Posso ver? — pergunto. — Não vale a pena — responde Ruby. Há duas semanas, Ruby foi procurar um vestido de formatura na loja vintage da cidade vizinha. Os rascunhos em sua escrivaninha sugeriam que ela esperava encontrar um daqueles vestidos que minha mãe usava em ocasiões importantes quando era jovem: corpete justo, cintura marcada e saia longa e cheia. Quando eu era criança, havia um baú no porão com o nome do meu pai gravado a estêncil, mas em vez de velhos ternos e livros, ali dentro havia vestidos da minha mãe, que eu usava para brincar de princesa. Ela não se importava. Normalmente estava lá em cima, na cozinha, tomando chá, corrigindo trabalhos, levantando os olhos para a lâmpada fluorescente amarelada, e baixando-os para rabiscar comentários nas margens. “Ah, Mary Beth, não imagino onde foram parar aqueles vestidos”, minha mãe dissera quando eu tinha ligado para ela na Flórida no outro dia, perguntando por eles. Nancy me disse, com um leve ar de superioridade, que Sarah tinha comprado o segundo vestido que experimentara. E, na semana passada, Rachel contou com tristeza que pedira o vestido de um catálogo e não tinha gostado muito dele. Mas Ruby é incapaz de ser indiferente ou resignada. Vejo seus pés sob a borda da cortina, as unhas pintadas de azul, o dedo mindinho curvado como uma vírgula, exatamente como era quando ela nasceu. Eu fazia revisão em casa naquela época, no apartamento que alugávamos em Chicago quando Glen estava terminando os estudos em


oftalmologia. Eu não conhecia ninguém, não fazia nada além de ler manuscritos de livros didáticos e marcá-los cuidadosamente a lápis, hieróglifos do erro. Minha mão esquerda ia e voltava sobre a barriga saliente, sentindo dedos de pé sob a pele como pedrinhas sob uma camada de areia fofa. Não nos sentimos tão bobas, tão idiotas, tão deploráveis ao falar sozinhas se existe alguém dentro de nós com quem podemos fingir conversar. Quando Ruby voltou de suas compras na loja vintage, há duas semanas, suas mãos estavam vazias, e a grande bolsa de tapeçaria estava cruzada sobre seu corpo, murcha e triste. O som que os pés de Ruby fazem na escada é a janela de sua alma. — Ela está pau da vida — disse Alex, sentado à mesa da cozinha. — Olhe a boca — eu o repreendi suavemente. — Pau da vida não é palavrão — retrucou ele. — É vulgar — respondi, tirando o frango para descongelar. Minhas costas doem enquanto Ruby experimenta mais dois vestidos. Ela nunca vai encontrar nada na Molly’s Closet. São roupas bonitas, mas comuns, feitas com tecidos comuns. Ruby gosta de veludo panne, tafetá moiré. Ela aparece em um lindo vestido creme acetinado. Fico feliz em perceber que é um dos que tirei da arara. — Imagine se eu tirasse as mangas e tornasse a gola quadrada. E, talvez, não sei, colocasse algum tipo de enfeite na saia. Talvez renda, para que essa parte ficasse transparente? Faz algum sentido? Inspiro e tento impedir que pareça um suspiro. Se Ruby me ouvir suspirar, dirá: “Eu falei que você não precisava vir.” Tudo para Ruby é oito ou oitenta. Acho que pode ser uma das bases de sua personalidade, embora também possa ser da idade. Minha mãe diz que eu era igualzinha, mas ela parece se referir à maior parte da maternidade como a um martírio. A viuvez, seu real martírio, nós nunca discutimos com seriedade. — Deve ter sido muito difícil para você quando papai morreu —


comentei certa noite, quando tínhamos ficado olhando o sol se pôr sobre o campo de golfe atrás do condomínio onde ela e Stan moram. Ela fez com a mão um gesto de desdém. — É a vida — disse. — E acabou dando tudo certo. Ela acenou novamente, desta vez para o green do 14º buraco, gotas de água diamantinas arqueando-se dos aspersores invisíveis enterrados no solo. Ouvíamos Stan na cozinha, lavando os pratos do jantar. Talvez fosse nele que ela pensava quando imaginava um marido, não no homem de quem eu só me lembrava vagamente: costeletas longas, maxilar forte, o cheiro de colônia cítrica, um beijo seco no topo de minha cabeça. Por alguma razão, meu pai gostava de me chamar de Mary Elizabeth Para Sempre, um desses apelidos absurdos que os pais inventam. Eu também tinha um para Ruby: quando ela era pequena, costumava chamá-la de Ruby Terça-feira, e ela franzia a testa e dizia: “Esse não é meu nome.” Eu fazia o mesmo com meu pai, mãos nos quadris, sobrancelhas unidas: Esse não é meu nome. “Oh, sua mãe era voluntariosa”, minha mãe diz a meus filhos às vezes, balançando a cabeça e trocando olhares de cumplicidade. Eu sou tão moderada hoje em dia que parece impossível acreditar, mas suponho que seja essa a progressão: as arestas pontiagudas da juventude desgastadas pela vida. Uma navalha se torna uma faca, que se transforma em um peso de papel. É difícil acreditar que isso vai acontecer com meus filhos, especialmente com minha filha. — Não estou conseguindo visualizar, mas provavelmente o problema sou eu — digo. Ruby suspira alto. — Sei lá — diz ela. — Você experimentou o azul? — pergunto. — Aquele tem muita cara de revista — diz Ruby. Quando eu era menina, costumava arrancar a foto de um vestido de revista e levar até a cidade para ver se alguém o tinha, ou se tinha algo


parecido, alguma coisa semelhante, mas barata. Se Ruby vê um vestido ou coisa parecida em uma revista, este se desvaloriza pela mediocridade. O telefone toca. É minha amiga mais antiga, Alice, que foi minha colega de quarto na faculdade e hoje mora em Nova York. — Como é a catapora? — pergunta ela, sem saudação ou identificação. Quando estávamos na faculdade, Alice dividia os homens em três categorias: para namorar, para casar e para ter filhos. Desde que nos formamos, há 22 anos, ela encontrou muitos do primeiro tipo, e quase nenhum dos dois últimos. Seu filho, Liam, está com 3 anos e foi gerado pelo Doador nº 236: estudante de medicina, cabelos claros, alto, minucioso, metódico. Sou uma boa amiga, por isso nunca mencionei que a descrição resumida do anônimo Doador nº 236 parece a descrição do meu marido, que Alice chamava de “o homem mais careta do mundo” até perceber que eu gostava mesmo dele. Às vezes, há pessoas que você ama porque aprendeu a amar há muito tempo, porque quando você pergunta: “Lembrase da noite em que fomos nadar nuas na piscina do reitor?”, elas se lembram. Alice e eu tivemos um período de distanciamento na época em que meus filhos eram pequenos. Quando conversávamos, as frases eram vazias: Como está o trabalho? Onde você passou as férias? Como estão seus pais? “Você se perdeu”, ela finalmente disse. Claro que tinha me perdido. E agora Alice também está perdida. — Qual é o tamanho da área afetada? — pergunto, enquanto Ruby bate um dos pés insistentemente e puxa uma longa mecha de cabelo. — Só tem uma bolha, mas está muito vermelha e inflamada. E ele passou a manhã inteira amuado. — Ligo para você daqui a pouco. Nunca é só uma catapora. Ele provavelmente está amuado porque tem 3 anos. Estou comprando um vestido de formatura com sua afilhada. — Ligue assim que terminar — diz Alice e desliga.


“Não sou uma daquelas mães mais velhas malucas”, ela sempre diz. Ela é uma daquelas mães mais velhas malucas. É gentil da minha parte não dizêlo, especialmente porque ela me chamou de louca quando eu tinha apenas 26 anos e descobri que estava esperando Ruby. “Ele a pressionou para engravidar”, ela dissera sobre Glen. “De forma alguma”, eu tinha respondido na época, e era verdade. Ruby foi um bebê acidental. Tínhamos ficado atônitos ao receber a notícia três meses depois de nosso casamento, como adolescentes que tivessem faltado às aulas de educação sexual. Nunca consegui decidir se deveria contar isso a Ruby um dia, talvez quando ela tiver os próprios filhos. Minha primogênita, minha menina, meu mais feliz acidente. Molly está com um vestido sobre o braço e o segura no alto para Ruby. Tem cintura alta e é feito de algum tecido coral transparente. Ruby diz com doçura: — Não gosto muito dessa cor por causa do meu cabelo, mas muito obrigada, Sra. Martin, é lindo. Ruby gosta de dizer que seu cabelo é vermelho, mas na verdade é castanho com luzes ruivas, uma grande massa ondulada que ela alisa quando está pensando e que forma uma cortina ao redor de seu rosto pontudo e levemente élfico. Ela tem modos para fora de casa e para dentro de casa, modos para visitas e para a família. Ou falta de modos. Às vezes, é possível ver nos rostos de seus irmãos que estão se perguntando: “Ruby vai me levar à lanchonete para tomar café da manhã ou vai gritar comigo por deixar o chuveiro pingando?” Só com o pai ela é sempre a Ruby educada e atenciosa que apresenta ao mundo. No ano passado, sua palavra preferida era autêntico. Ela diz que Glen é absolutamente autêntico. Imagino que seja verdade, e talvez tenha sido por isso que me casei com ele. Ou talvez tenha sido a solidão, quando a faculdade acabou e Alice achou um lugar pra morar em Nova York. Lembrome de um final de semana em que visitei Glen na escola de medicina, fomos


a um restaurante italiano, andamos de volta até seu apartamento sob uma chuva fina. Fizemos amor naquela noite e na manhã seguinte e comemos panquecas com bacon no café. Eu ria dos pequenos terremotos que o trem suspenso causava de tempos em tempos, quando silenciava nossas vozes. “Queria que todos os dias fossem como este”, eu dissera, e Glen respondera: “Por que não seriam?”. Como éramos jovens... As compras estão sendo um fracasso. Ruby está vestindo suas roupas, uma saia longa florida, uma regata, um suéter com estampa argyle. De dentro da cabine, amortecida pelo suéter que ela está enfiando pela cabeça, ouço a voz de Ruby: — Estou pensando em terminar com Kiernan. — O quê? — digo. Por causa da surpresa, permiti que meu tom de voz ficasse alto e agudo. — Nada — diz Ruby. — Esqueça que toquei no assunto. Sabia que você ia fazer um estardalhaço. — Eu só disse “O quê?”. — Deixa pra lá — diz Ruby. — Não quero falar sobre isso. É difícil, quase impossível, imaginar Ruby sem Kiernan. Não só porque são namorados há mais de dois anos, mas também porque são amigos desde o jardim de infância. A mãe dele, Deborah, já foi minha melhor amiga; a família de Kiernan era nossa vizinha de porta. De vez em quando, meu marido diz: “Kiernan vai para casa em algum momento?” Mas fala naquele tom maçante e indulgente que os homens usam quando percebem coisas que acham que deveriam incomodá-los, mas que na verdade não incomodam. Para o aniversário de Glen, Kiernan comprara um par de óculos muito antigo que tinha encontrado em um mercado de pulgas, e, ainda que para o restante de nós fosse um presente peculiar (os meninos torcendo o nariz, Ruby dizendo “Não são fantásticos?” com o jeito exagerado de alguém que quer que assim seja), Glen passara um bom tempo examinando as lentes, a estrutura, o material, e os velhos óculos


tinham acabado em sua mesa de trabalho. Eu deveria ter percebido que alguma coisa estava errada de manhã, quando Kiernan não apareceu para o café. Ontem à noite, ele e Ruby saíram para o quintal às onze da noite para observar um cometa que cruzaria o céu. Quando estávamos nos preparando para dormir, eu o vi ajustando o telescópio e depois entrando para desligar as luzes da casa, de forma que a escuridão ficasse mais profunda, e as estrelas, mais brilhantes. Parada ao lado da cortina, ouvi-o dizer alguma coisa a Ruby, que estava deitava sobre uma de nossas velhas colchas de retalhos, mas ela se afastou. Vi uma centelha prateada por detrás das cortinas e me virei para verificar se o cometa estava visível, mas, quando olhei para baixo, percebi que era o flash da câmera de Kiernan, que estava tirando fotos dela. “Por favor, pare”, ouvia reclamar. Quando acordei de manhã, ela estava dormindo na mesma posição, coberta com outra colcha, mas Kiernan tinha sumido. “Ele não gosta de dormir”, Ruby me dissera uma vez, quando eu tinha comentado que Kiernan chegara cedo, antes de qualquer um de nós acordar. “Ele diz que se ficar acordado a noite toda, nunca é ontem.” Ela tinha ficado encantada com a ideia, eu me lembro. Mas nesta manhã parecia exausta. Ela passa por mim ao sair da cabine em direção à porta, parando para sorrir à Molly. — Não estou conseguindo me decidir hoje, Sra. Martin — diz ela com doçura. — Quer ir tomar um chá com muffins? — pergunto, na rua. — Não estou com fome — responde ela. — Tenho que ir pra casa trabalhar em minha história. Minha janela de oportunidade para mais informações foi fechada com toda a força. Terei que esperar.


Estou sozinha no carro, indo buscar Alex na casa de seu amigo Ben. A rua é uma pintura impressionista: Azaleias e rododendros em plena floração. São os arbustos da vizinhança suburbana na qual cresci, mas a maioria de nossos clientes não se interessa mais por eles. Quantas mulheres já não me pediram jardins ingleses? Estamos na Nova Inglaterra, o que absolutamente não é o mesmo que Inglaterra, mas talvez dentes-de-leão, viburnos e malvas a transformem. Todos os livros sobre gêmeos dizem que é bom Alex ter amigos diferentes dos do irmão. Mas Alex também tem mais amigos, muito mais. Seus amigos são outros jogadores da liga de futebol, garotos que planejam entrar para o time de lacrosse no ensino médio, no ano que vem, amigos do acampamento esportivo onde ele refina suas habilidades a cada verão. Em julho, Alex irá para um lugar no Maine onde todos os garotos usam camisetas polo como uniforme e uma vez por semana têm festinhas com as meninas do acampamento do outro lado do lago. As meninas também usam camisas polo. As delas são cor-de-rosa, as dos garotos, azuis. Max irá para um acampamento na Pensilvânia onde aprendeu a fazer tie-dye, a moldar potes de cerâmica e a tocar bateria. Lá, ele é conhecido como Max, o Mudo, mas não de forma pejorativa, não como seria conhecido por esse apelido na escola. Alguns de seus companheiros de acampamento o chamam de M&M. Max tem dois amigos na escola, Zachary e Ezra, que são exatamente o esperado: meninos tímidos, desajeitados e inteligentes que se


sentem jogados em um planeta do qual não são nativos. Eles chegam, vão para o quarto de Max e jogam no computador, mantendo-se no lado verdelimão mesmo quando Alex não está em casa. Não têm o hábito de fazer contato visual. São o tipo de menino que pode crescer e inventar alguma coisa maravilhosa, ensinar em uma universidade de prestígio, curar o câncer. Por enquanto, têm vidas difíceis. Alex tem uma vida tranquila. Tento não protegê-lo menos por isso. É estranho: Glen e eu somos pessoas convencionais, nem estranhos nem criativos, ainda que um dia tenhamos ambicionado ser ambos. E, mesmo assim, o filho que mais se sente como um estranho no ninho é o que mais se parece conosco, imprensado entre o sempre excêntrico irmão e a confiante e peculiar irmã. Ruby vai para um curso de verão para escritores promissores em uma faculdade. Ela parte assim que as aulas terminarem. Quando fala sobre isso, há um leve estrangulamento em seu tom de voz, que parece animação, mas tem traços de medo. “Você já pode parar de se gabar”, ouço Rachel dizer, mas é um equívoco baseado em suas próprias ansiedades. Sarah e Ruby são excelentes alunas; a lista de universidades em que se inscreverão e nas quais provavelmente serão aceitas era presumível desde a época em que ambas já liam no jardim de infância enquanto os outros tentavam entender a diferença entre amarelo e laranja. Rachel se arrastou atrás delas, sentada à mesa da cozinha enquanto Sarah tentava explicar equações de segundo grau e Ruby lia os sonetos de John Donne em voz alta. “Eu também não era uma aluna nota dez e estou bem”, diz a mãe de Rachel, Sandy. Ela e o pai de Rachel se separaram quando a filha era bebê. Vendo treinadores de natação de faculdade nas competições de Sarah e folheando catálogos de programas de escrita literária na escrivaninha de Ruby, Rachel vê no horizonte a dissolução do círculo seguro com o qual substituiu uma família feliz. Ela chama minha filha de Opala, Granada, Pérola, às vezes, de Ametista. Ela me chama de mãe. Às vezes, tarde da noite, quando estou cozinhando para


Ruby e as amigas, Rachel coloca o braço ao redor da minha cintura e deita a cabeça em meu ombro. Ela é uma daquelas garotas grandalhonas e divertidas, com ombros largos e pele branca corada, que está sempre escondendo uma grande tristeza, como se fosse um ovo que carrega nas mãos em concha, com as unhas e cutículas roídas. Saber que Rachel dá tanta importância a sua afeição é um grande peso para Ruby. A casa onde mora Ben, o amigo de Alex, fica em uma estrada sinuosa que sai da cidade, bastante afastada, em uma concavidade situada entre uma escarpa coberta por um bosque e uma elevação cheia de margaridas rasteiras. O nome da mãe de Ben é Olivia, e ela é realmente inglesa, então, faz todo o sentido que nunca tenha me pedido para criar um jardim inglês ao redor de sua casa de pedra em Vermont. A construção é cercada por enormes pinheiros, com uma sebe de arbustos vermelhos ao redor das fundações. Há uma pequena cocheira no pé do gramado, um pouco afastada, cercada por velhos alfeneiros. Tudo parece perfeito, como se tivesse sido feito pela natureza. Muitos de meus clientes querem que seus jardins se pareçam com suas salas de estar, como arranjos cuidadosamente arrumados com cores coordenadas que não devem ser modificados nem usados. — Mas que moleques eles são! — diz Olivia enfaticamente quando abre a porta. Ela é pequena e muito delicada, mas a voz, com suas consoantes precisas, é harmoniosa. O cabelo louro é mantido afastado do rosto por um grampo, e ela está usando um dos suéteres do marido. Assim, submersa em lã cinza, ela própria parece um pouco infantil. — Ah, não, o que eles fizeram? — Nada. São adoráveis, mas espantosamente masculinos. Não dizem uma palavra sobre nada. Como está a escola? Bem. Como vai sua mãe? Bem. Quando sua irmã parte? Sei lá. É como tirar leite de pedra. São de outra espécie, não concorda? Minha irmã diz que a filha a enlouquece com sua reprovação. Ruby não parece ser assim.


A casa de Olivia é bonita e despretensiosa, com equipamentos esportivos em cestas no canto da saleta, da cozinha, do hall de entrada. Máscaras, bolas, bastões. Seu marido, Ted, é tão americano quanto ela é inglesa, com um grande sorriso, um aperto de mão forte e passos largos. Conheceram-se em Oxford quando ela era estudante e ele, bolsista da Rhodes, e ele ainda joga futebol na liga masculina da cidade. Eles têm quatro meninos, Ben é o mais velho e, ao contrário dos meus, todos os filhos de Olivia são parecidos. “Um dia”, ela me disse certa vez, “haverá cinco homenzarrões na casa, e uma mulherzinha.” Não sei por que Olivia e eu não somos amigas. É uma dessas coisas que acontecem. — Chá? — pergunta ela. E eu digo: — Eu adoraria, mas tenho que ir para casa fazer o jantar. Talvez seja por isso que não tenhamos nos aproximado: vivemos em horários diferentes. Muito da amizade se baseia em estar no lugar certo na hora certa. Foi assim que a mãe de Kiernan, Deborah, e eu nos encontramos, ambas mães jovens com crianças pequenas, ambas sobrecarregadas, um pouco perdidas. Alice é a amiga que me conheceu quando eu era jovem e insegura, Nancy, a amiga que fiz quando precisava de alguém seguro, direto e completamente são. Não sei se tenho espaço para mais amigos agora, mesmo para alguém agradável como Olivia. Lamento vagamente por isso sempre que a vejo. Ruby está em casa trabalhando em seu vestido de formatura. Agora está feliz com suas perspectivas. De alguma maneira, ela se lembrou de uma fotografia de minha mãe em um longo com uma estampa psicodélica espiralada. De alguma maneira, minha mãe o desenterrou e o enviou para nós. Ruby removeu a gola drapeada e criou um decote redondo cavado, e fez uma faixa de cetim rosa-vivo. “Um obi”, ela repete quando a descreve. Poucos dias atrás, tudo isso parecia utópico, peças espalhadas pela escrivaninha e pela cadeira de Ruby, seu conto esquecido


momentaneamente. Agora começo a ver como vai ficar. — Sua filha tem um gosto estranhíssimo — diz minha mãe ao telefone. — Ela devia ir para a escola de design. Mamãe dizia que eu devia me tornar enfermeira. Presumo que quisesse o melhor para mim. “Mas o que você vai fazer com um diploma de literatura inglesa?” perguntava, uma professora de inglês de ensino médio lutando para pagar as contas. Ela ficou muito feliz quando Glen se tornou oftalmologista. Ele tinha se formado em filosofia, depois decidira passar o resto da vida examinando os olhos dos outros. — As janelas da alma — disse mamãe. — Imagino o que vamos conversar durante o jantar — respondi. — Sobre o que acha que escritores falam à mesa? — perguntou ela, antes que Glen pudesse dizer qualquer coisa. — Ou artistas? Se o leite acabou. Se o porão está inundado. Não se iluda. Mais tarde, Glen dissera, um pouco amuado: — É possível ser oftalmologista e mesmo assim ler. Ele não lê. Assiste ao noticiário e ao History Channel. Inclina-se à frente para observar a tela quando mostram a edificação das pirâmides, o bombardeio a Hiroshima, a construção de estradas de ferro. “Venham aqui e deem uma olhada nisso”, ele chama as crianças, e ainda que elas se aproximem, rodeando a poltrona, ele aponta para a tela e faz a própria narração: três mil homens, 10 toneladas de dinamite, três décadas, milhares de mortes. De alguma forma, para mim soa sempre igual, não importa que projeto municipal, iniciativa do governo ou desastre natural. Certa vez, perguntei a ele sobre a enorme variedade de cores de olhos que devia ver todos os dias. Isso foi há anos, em um dia que eu tinha passado a manhã à mesa da cozinha, observando os olhos da mãe de Kiernan, Deborah, um verde-claro hipnótico e aquoso. “Você também deve ver uns azuis incríveis”, dissera a meu marido. “A cor dos olhos não é clinicamente relevante”, ele tinha respondido, inclinado sobre o jornal.


— Kiernan me deu isto — diz Alex, no carro, voltando da casa de Ben, segurando um chaveiro com uma grande bússola amarela pendendo de um dos lados. — Quando você encontrou Kiernan? — Ele estava na casa do Ben. Ele, tipo, toma conta deles de vez em quando... não exatamente toma conta, porque o Ben é velho demais, mas, sabe, fica por ali. Sei lá. Você sabe. Eles o conhecem da colônia de férias. No verão passado e no anterior, Ruby e Kiernan foram monitores da colônia de férias do centro comunitário. À noite, eles se sentavam à mesa de nossa cozinha e recortavam estrelas e planetas de cartolina. Escolhiam livros para a hora da história e decidiam que jogos para dias chuvosos eram menos passíveis de terminar em lágrimas. Kiernan tinha ideias grandiosas, e Ruby o chamava à razão. Ele queria produzir Nossa cidade. — K, eles têm 5 e 6 anos — dizia Ruby. — Eles vão entender — insistia ele. — As pessoas sempre subestimam as crianças. Em vez disso, Ruby tinha encontrado uma versão dramática de “João e o pé de feijão” para fazer. Kiernan ficou de mau humor durantes os ensaios. O irmão de Ben, Aidan, era João. — Ele é seu namorado? — perguntara Aidan a Ruby certo dia, em tom acusatório, encarando Kiernan. — O que você acha? — Acho que é. — Aidan não parecia nada feliz em relação àquilo. — Acho que você tem razão — disse Ruby com um leve sorriso. Meus dois filhos gostam de Kiernan, mas eu deveria ter prestado mais atenção, nos últimos tempos, quando falavam dele. É assim que descubro a maior parte do que sei sobre eles e seus amigos: sentando-me no banco do motorista e ficando quieta. Atrás do volante sou invisível, um chofer. Há cerca de um mês, os meninos estavam no carro, as mochilas entre eles, quando meu devaneio sobre se tínhamos alface em casa e que lírios teriam


uma segunda floração foi lentamente dando lugar à discussão murmurada atrás de mim. — Só estou dizendo que ele é esquisito às vezes — dizia Alex. — Você acha todo mundo esquisito — respondeu Max em sua voz baixa, quase inaudível. — Você se lembra daquela vez que ele ficou ouvindo a mesma banda sem parar por, tipo, meses? Ele tirava os fones e você ouvia a mesma música. E a banda nem era boa. — A banda era legal. — OK, não era uma banda popular. Ninguém conhecia, só o Kiernan. Ruby não fala sobre Kiernan comigo. Está arrependida de nem sequer ter mencionado o assunto na Molly’s Closet. “Você faz muito alarde por nada”, diz ela. Quando me refiro a Kiernan como seu par para o baile de formatura enquanto ela pega comida com as amigas, ela começa a fatiar furiosamente o sanduíche que está preparando. Ela não é vegetariana este ano. É um sanduíche de peru. O de Sarah também é de peru, e o de Rachel, de presunto e queijo. Rachel foi à manicure, e suas unhas roídas são tristes toquinhos magenta. Ela fica levando os dedos à boca e abaixando-os em seguida. Sarah diz: — Nós não namoramos mais do jeito que vocês namoravam quando eram jovens. Ela faz nossa juventude parecer algo que Glen poderia ter visto no History Channel. O esporte de Sarah reflete seu caráter; ela passa as tardes nadando em linha reta, as braçadas invariáveis, o corpo em forma de pá de jardim, o cabelo, um bem-cuidado feixe de castanho sedoso que seca perfeitamente no lugar. Ela é o controle de realidade de Ruby. “Estou exagerando?”, Ruby pergunta para Sarah às vezes, e Sarah sorri e diz: “Está”. Como na maioria das amizades triangulares, ambas são muito protetoras em relação a Rachel, porque ela não é a melhor amiga de


nenhuma das duas. — Entendo — digo a Sarah. — Mas cada uma de vocês está indo ao baile com um garoto específico, mesmo que estejam indo juntas. Sarah vai com Eric, o garoto com quem namora desde o nono ano. Não me surpreenderia nem um pouco se eu pudesse acelerar o filme da vida delas e encontrasse Sarah e Eric casados e se mudando para uma casa a um ou dois quarteirões de distância das famílias de ambos. Sarah quer ser enfermeira. Quando Nancy dissera: “Você poderia ser médica, querida”, Sarah tinha olhado para a mãe e respondido: “E você poderia ser reitora, e não professora. São dois trabalhos completamente diferentes.” “Bem”, Nancy me falou ao narrar a história, “acho que eu tive o que merecia.” Não sei o que eu veria para Ruby nesse filme do futuro. Temo que o que veria para Rachel seria infelicidade ou descontentamento. Ruby tem objetivos e desejos específicos. Rachel parece ter uma grande ânsia por algo inominado, que talvez jamais exista. — Kiernan está obcecado pela formatura — diz Rachel, abrindo a geladeira para pegar a mostarda. — Simplesmente obcecado. — Ele precisa crescer — diz Ruby. — É só um baile. Grande coisa. A boca de Sarah está cheia. Certa vez, o treinador de natação calculou que ela precisa de 5 mil calorias por dia só para manter o peso. Com a boca cheia de pão ela diz: — Eric só se interessa pela formatura porque depois vêm o café da manhã e o lago. Torradas francesas e bronzeamento. Não é para me sentir especial? Acho que você deveria ser mais legal com o Kiernan, Rubes — acrescenta ela, olhando-me de soslaio para se certificar de que não está revelando demais. — Eu sou legal com ele — diz Ruby. Começo a dobrar toalhas na área de serviço, esperando que elas fiquem mais eloquentes comigo fora de vista, mas, em vez disso, começam uma séria conversa sobre cores de esmalte para as unhas dos pés. Kiernan


encontrou um smoking azul-celeste no brechó no qual Ruby não conseguiu encontrar seu vestido. Veio com uma camisa de babados, uma faixa e uma enorme gravata-borboleta. Sei exatamente como Kiernan vai ficar. Como James McGhee, o garoto que me levou ao baile de formatura. Ele usou esse mesmo smoking. Lembro-me de encontrar uma velha foto de nós dois posando diante de duas colunas coríntias de isopor que haviam sido colocadas na entrada do hotel, e de pensar como seria bom se o smoking preto clássico tivesse voltado à moda, e o vestido de cintura império tivesse saído. Agora Kiernan vai usar o smoking azul, e Ruby e todas as amigas usam vestidos com cintura império. Estou tentando aprender a não tomar nada como definitivo.


Chove forte e estou estacionada junto ao meio-fio, esperando Max terminar a aula de bateria. Sinto-me tão cansada que não sei se minha visão está embaçada por causa da chuva ou da falta de sono. Através da fina névoa levantada pela água que bate no capô, vejo ocasionalmente um estranho lampejo de movimento na janela panorâmica no segundo andar do prédio da loja de ferragens. Há algumas semanas, tive que estacionar do outro lado da rua, e de lá pude ver que o borrão de movimento era a cabeça desgrenhada de Max. É por isso que ele não quer cortar o cabelo. Ele o arremessa quando toca bateria, e um leve sorriso revela as covinhas que vi tão pouco no último ano. Quando a voz de Max começou a mudar, o humor também mudou. Ambos são escassos na maior parte do tempo. Os estudantes que estão deixando o ensino fundamental e ingressando no médio tiveram de responder a um questionário. “Descreva-se em uma palavra”, era uma das questões. Ruby contou que Max tinha deixado o espaço em branco. “Talvez ele não tenha conseguido escolher uma palavra só”, eu dissera. “Mãe, caia na real”, Ruby respondera, balançando a cabeça. “Ele parece um sem-teto”, diz Glen às vezes, depois que Max limpa o prato e o coloca na pia, seus pés descalços silenciosos no chão da cozinha. “Eu tento ser tolerante.” Glen acredita nisso, mas não é verdade. Ele confunde silêncio com tolerância. Um jovem foi a seu consultório fazer uma entrevista para um emprego de meio período como guarda-livros, e Glen praticamente não lhe dirigiu a palavra porque ele tinha uma estrela


cadente tatuada nas costas da mão. Ele se tornou um ótimo funcionário, mas na maioria das vezes, quando Glen o menciona, acrescenta: “Espero que ele esteja poupando seu salário, porque vai gastar uns bons 2 mil dólares quando decidir remover aquilo”. Certa noite, Ruby pousou o garfo e falou: — Pai, provavelmente ele tem mais de uma. Você simplesmente não as vê. A maioria das pessoas que se tatua tem um ditado: não tatue onde um juiz possa ver. — É melhor que você não pense em uma coisa dessas — disse Glen, o queixo pronunciado apontado como a ponta de uma flecha. — Ah, pai — disse Ruby alegremente, enrolando seu espaguete —, meu corpo é um templo. Max e Alex riram em uníssono, como faziam quando eram menores. Fiquei contente de vê-los em harmonia por um momento. Eles nunca foram parecidos, mesmo quando eram pequenos, um careca de rosto redondo, o outro, só olhos e longas pernas arqueadas, mas naquela época eles se complementavam. Max construía com o Lego e Alex lhe passava as peças. Alex chutava a bola de futebol pelo quintal e Max ia pegá-la entre as árvores. Alex só começou a ser cruel com Max quando as outras crianças começaram. Elas olhavam os complexos rabiscos na capa do caderno de Max e perguntavam: “O que é isso?” e Max respondia: “É um organismo microscópico encontrado na água em Marte. Ele brilha no escuro.” Os que eu chamava secretamente de garotos Camisa Polo torciam o nariz. E as meninas seguiam os Camisa Polo. E o próprio Alex se tornou um dos garotos Camisa Polo. — O pessoal da escola não acredita que mim e Max somos gêmeos — Alex disse um dia. — Eu e Max — corrigi, e depois disse: — Eu estava lá, querido. Vocês são gêmeos, sim. — Gêmeos fraternos — disse ele, como se não fosse a mesma coisa,


talvez nem um parentesco próximo. Vejo o cabelo de Max indo para a frente e para trás, para a frente e para trás, como um campo de trigo em um vendaval; consigo ouvir remotamente algumas batidas. Acho que Max ainda não toca muito bem, mas não estou certa de como se reconhece um bom baterista. Se continuar praticando, vamos construir para ele um quarto à prova de som no espaço inacabado em cima da garagem, e comprar-lhe uma bateria. Por enquanto, ele pega suas baquetas e toca na cama, no balcão da cozinha, no painel do carro. Quando toca, parece mais feliz ou, no mínimo, menos triste. No restante do tempo, parece ausente, como se tivesse ido a algum lugar e deixado o corpo para trás. “Terra chama Max”, diz Alex às vezes para chamar a atenção do irmão. Ao menos estão começando a entrar na puberdade ao mesmo tempo, presos no estranho meio-termo da metamorfose. Suas pernas se tornaram longas e musculosas, e repentinamente cabeludas. Os ossos sob a pele de seus rostos ficaram mais salientes. Ruby diz que eu não deveria me importar com a pornografia nos computadores deles. — É a versão tecnológica da Playboy embaixo da cama — ela me disse. — Quando minha mãe encontrava uma Playboy embaixo da cama de Richard, ele ficava de castigo por uma semana — respondi. — Não sei, isso faz sentido para você? Além do mais, de repente vamos decidir que a vovó foi a mãe perfeita? Às vezes me pergunto se é possível ser honesto demais com seus filhos, ou ao menos com sua filha. Meus meninos não pensariam em julgar minha criação a não ser que eu lhes contasse que fora espancada no porão. Mas Ruby tinha destrinchado as histórias da minha infância e chegado a um retrato bastante exato de uma mãe que acreditava que roupas e comida eram o mesmo que amor. Pelo menos, ao contrário do pai de Glen, minha mãe não acreditava em castigo físico. O projeto do jardim em um terraço está em meu colo. “Hissopo”, escrevo na margem, depois apago. Deixo a cabeça cair para trás e fecho os olhos.


Depois de alguns minutos, obrigo-me a reabri-los. “Monarda”, escrevo, depois exclamo: — Meu Deus. Como posso fazer um jardim para uma mulher que declarou odiar abelhas? Quando perguntei a minha cliente o que achava de borboletas, ela fez um gesto de incerteza com a mão. “Não gosto muito de insetos”, disse. Ruby saiu de casa cedo esta manhã, avisou que ia trabalhar na revista literária. Acho que quer evitar ficar sozinha comigo. No meio da noite de sábado, acordei com um som vindo do térreo e percebi que era a chaleira assobiando. Ruby e Sarah estavam se movendo suavemente pela cozinha, tirando leite da geladeira, pegando o açúcar. Fiquei no vão da porta observando-as antes de Ruby me ver e ter um leve sobressalto. — Volte pra cama — sussurrou para mim. — Pérola — gemeu uma voz da saleta. — Pérola, vou vomitar. — Ah, meu Deus — disse Sarah, quando passei por ela, empurrando-a para o lado. Rachel estava deitada no sofá, coberta com uma manta. Havia ramos e algumas folhas emaranhados em seu longo cabelo escuro, e eu os retirei. — Eu me odeio — murmurou ela, e depois, mais alto: — Eu me odeio. — Shhh — eu disse. Quando Rachel abriu os olhos e me viu ali, gemeu e virou-se para o lado, escondendo o rosto nas almofadas. Vi uma mancha de terra em seu ombro, e algo que parecia um ferimento no pescoço. Lembrei-me da noite na faculdade em que Alice entrara cambaleando ao amanhecer e caíra em sua cama, oposta à minha. “Tantos homens, tão pouco tempo para ir ao arboreto com o errado”, ela tinha murmurado. Foi a única vez em que cuidei dela, em vez de ser o contrário. — Por favor, vá embora — gritou Rachel nas almofadas. — Mãe — sibilou Ruby, da cozinha. — Aonde vocês foram hoje? — perguntei, parada entre Ruby, Sarah e o


fogão. — Ao Tony’s — sussurrou Sarah, pegando uma bandeja com o chá e alguns biscoitos. Temos uma steak house e uma pizzaria, mas os meninos preferem o Tony’s, uma sorveteria a 3 quilômetros da cidade, que coloca mesas de piquenique para fora em maio e as guarda em outubro, e tem um menu de empanados de micro-ondas para acompanhar os sundaes servidos em copos de papel. Os garotos se sentam nas mesas de piquenique (não nos bancos, em cima das mesas), gritam comentários uns para os outros e fazem uma vaca preta durar até que só reste uma lama no fundo do copo para viagem. As garotas puxam as amigas de lado para o imundo banheiro feminino atrás do depósito, para cochichar. Eles terminaram. Ele voltou da faculdade. A menstruação dela está atrasada. Ele foi suspenso. Como uma transmissão de rádio em outro cômodo, nós, mães, ouvimos alguma coisa sobre o assunto depois de ter acontecido, em ligações entreouvidas, em conversas à mesa da cozinha. Os garotos sabem que ficaremos em silêncio, não por tato, mas por vergonha. Sabemos que nossos filhos estão fazendo sexo, fumando maconha, bebendo cerveja, porém é mais fácil não dizer nada. “Ruby está linda!” algumas das outras mães disseram quando minha filha voltou a comer, o que foi o mais perto que chegaram de reconhecer que houvera uma época em que Ruby estava horrível. Mesmo quando somos honestas umas com as outras, pisamos em ovos; a maneira mais rápida de perder uma amiga é sugerir que ela é uma mãe incompetente ou sugerir que seus filhos têm problemas, o que dá no mesmo. (Bom, talvez não seja a maneira mais rápida de perder uma amiga. Eu conheço outra mais rápida.) — Desde quando servem cerveja no Tony’s? — perguntei a Ruby, na cozinha. — Mãe, deixe que a gente cuida disso. — Pede pra ela sair — gritou Rachel do outro cômodo. — Não quero que


ela me veja. Eu conseguia ouvir o murmúrio de Sarah. Ela vai ser uma boa enfermeira. Até eu me acalmei um pouco com o som de sua voz, até Ruby encostou-se a mim e fechou os olhos. Oscilamos juntas como um casal dançando música lenta em uma festinha escolar. — Ah, mãe, ela está tão ferrada... — sussurrou ela. — Quanto? Precisamos da polícia? O momento estava desfeito. — O quê? — disse Ruby. — Ah, meu Deus, não. Nossa. Ela só toma... decisões ruins. Decisões muito ruins. — Ela estremeceu. — Por favor, volte pra cama. Deixe que a gente cuida disso. Eu chamo se precisar. De volta ao andar de cima, fico acordada até o céu clarear. Pela manhã, Ruby dormia em sua própria cama, e Sarah e Rachel tinham ido embora, a xícara sobre o balcão e a manta no chão eram os únicos sinais de que eu não tivera um pesadelo. Se tivessem feito café em vez de chá, se eu não tivesse sido acordada pelo assobio da chaleira, poderia nunca ter sabido que alguma coisa acontecera. Recosto-me no banco do carro e me obrigo a ficar acordada. Talvez hoje à noite eu tome um sonífero, só para acertar o sono. “Buxinho”, escrevo no projeto. A Main Street está quase deserta por causa do tempo e do horário. Acaba de passar das seis da tarde, e embora o conselho municipal já tenha feito o que podia, com as luminárias de rua historicamente acuradas e o estacionamento grátis, ninguém fica na cidade depois que anoitece. O pequeno restaurante de culinária do Oriente Médio que abriu há dois anos, administrado por um casal de imigrantes com dois filhos que já estão destinados a ser oradores de suas respectivas turmas, recebe poucos clientes para o jantar nos dias de semana. Vejo uma mulher passar em uma reluzente capa de chuva amarela em frente ao meu carro. Ela está de capuz e segurando um guarda-chuva, parece uma pessoa qualquer, apressada para resolver algum assunto em


um dia de chuva, mas estou certa de que é a mãe de Kiernan, Deborah. Há uma vivacidade particular em sua maneira de andar, como se seus dedos estivessem virados para fora e ela estivesse na ponta dos pés mesmo usando galochas. Deborah já foi dançarina. Nós já fomos melhores amigas. Estou certa de que sob o temporal ela não notou ou nem reconheceu meu carro, que é uma perua sedã escura como as de metade das mães da cidade. Mas talvez tenha reconhecido e se recusado a olhar em minha direção. Isso acontece com certa frequência, Deborah fingir que não vê nada além de horizonte no lugar em que estou. Sempre fico um pouco enjoada. No ano passado, fui à festa do vigésimo aniversário de casamento dos Lawrences, que aconteceu no quintal. Deborah passou pelas portas do pátio, e lá estava eu, encarando-a. Sem uma palavra, ela partiu, como se fosse um holograma de si mesma, projetado por um instante e depois desfeito. “Mande um beijo para sua mãe”, eu costumava dizer a Kiernan, e depois “mande lembranças a sua mãe”, seguido de “Diga olá a sua mãe”, até que um dia Ruby disse: “Mãe, isso já passou do limite do ridículo. Chega”. Imagino o que Deborah vai pensar se Ruby terminar com Kiernan. Imagino se é sequer possível que Ruby termine com Kiernan. Não porque Kiernan seja apaixonado por Ruby, ainda que eu saiba que é; às vezes parece que os olhos dele vão começar a girar em sua cabeça enquanto ela anda por um cômodo, pegando o telefone ou uma revista. Ele preferiria que Ruby ficasse quieta e conversasse com ele, mas como esse não é o jeito dela, especialmente hoje em dia, ele se contenta com o que tem, perguntando a Alex sobre futebol e a Max sobre alguma animação que viu, a Glen sobre a liga local de beisebol e a mim sobre o que quer que eu esteja cozinhando. Kiernan não ama só a Ruby; ama nossa família. São seis e vinte e cinco quando Max abre a porta do carro. Apesar de todos os meus esforços, acabei cochilando. — Você me assustou — digo. Max não responde. Ele me entrega um bilhete com a estranha letra


intrincada do professor de bateria. “Por favor, me ligue”, o professor escreveu. — Está tudo bem? — pergunto. — Aquela é a mãe do Kiernan? — pergunta Max. A chuva se tornou uma garoa cinzenta, e Deborah passa apressada com uma bolsa em uma das mãos. Vejo de relance seus grandes olhos, tão parecidos com os do filho. O cabelo escuro está bem curto agora, um ou dois centímetros eriçados por toda a cabeça, como se ela desafiasse os outros a evitar aqueles olhos. Seu rosto parece um quarto sem cortinas ou sombras. Ela inclina o guarda-chuva em um ângulo agudo. Há algo de inegável na postura de uma pessoa tentando ignorar alguém. — Mal posso esperar até começar o acampamento — diz Max, tocando uma bateria imaginária no ar.


Estamos do lado de fora de uma casa no Winding Way, Rickie, eu, John e Tony, que opera a escavadeira. — Isto é terrível — diz Rickie. Ele está mordendo com força o lábio inferior. John balança a cabeça. Tony anda pra lá e pra cá, praguejando em voz baixa. Eu tento não chorar. O chefe não deve chorar. Estamos na sexta-feira do final de semana do Memorial Day. Dois dias antes, tínhamos terminado um grande projeto: seis renques de arbustos, um pequeno bosque de ameixeiras-de-jardim e pereiras-bravas, uma longa sebe de veigelas. Quase tudo se foi. O terreno está coalhado de buracos. Alguns dos arbustos foram arremessados por um declive íngreme atrás da casa e estão caídos no riacho lá embaixo, as raízes voltadas para o céu como dedos. Por favor, por favor, salvem-nos, parecem suplicar. Rickie diz que alguns podem ser recuperáveis. As árvores frutíferas e os arbustos maiores sumiram sem deixar vestígios. Rickie já chamou a polícia. Uma patrulha encosta enquanto estou ali, de braços cruzados. Conheço o oficial que salta. Sua filha joga na liga infantil no mesmo campo em que Alex e seu time jogam, e já trocamos comentários educados sobre os fundamentos do jogo. De alguma maneira, isso piora as coisas. Se aqueles jogos de futebol são um estímulo comunitário, isto aqui é o oposto. — Havia mesmo plantas em todos esses buracos? — pergunta o policial.


A placa de identificação diz que seu nome é Jackson. Apertamos as mãos. Os homens fazem um aceno de cabeça. — Que plantas, que nada — diz Rickie. — Milhares de dólares em árvores também. Isto é mais que vandalismo. Eu diria que estamos falando de 20 mil dólares em plantas, no total. Isso sem sequer contar o trabalho. — Tenho as notas fiscais no escritório — digo. — Onde estão os rapazes? Os rapazes são os mexicanos que trabalham para mim da primavera ao outono. Eles vivem em um velho hotel desativado em uma estrada secundária que um dia foi o melhor caminho para dirigir nesta parte do estado. Quando a interestadual ficou pronta, os hotéis ao longo da velha estrada definharam. Meus rapazes vivem uma vida miserável e temporária em um retângulo de concreto com janelas tão pequenas que mal deixam entrar luz e ar. Eles fazem café em um fogão portátil, comem fast-food. Rickie diz que vivem melhor aqui do que com as famílias no México, para onde mandam dinheiro mensalmente. Resolvi acreditar. O salário que pagamos a eles me envergonha. Isso e o fato de que o único que realmente reconheço como um indivíduo é um homem baixo e atarracado chamado José. Pelo menos foi o nome que ele me deu. Nancy diz que todos usam nomes que consideram fáceis de lembrar e pronunciar para os norteamericanos. José, Manuel, Juan. José é fanático por futebol e falou comigo pela primeira vez quando Alex chegou de uniforme em um terreno em que trabalhávamos. Ele me mostrou fotos das filhas, duas menininhas fotografadas em vestidos brancos segurando cravos cor-de-rosa. — Todo o nosso pessoal está fazendo aquele grande gramado no clube — diz Rickie — Por quê? — Quero resolver isso agora mesmo. Os moradores voltarão no final da semana que vem. Sei que parece loucura, mas vou me sentir melhor se na semana que vem parecer que nada aconteceu aqui. Olho para a casa. É uma residência grande, não muito bonita, mas


imponente. Poderia perfeitamente ter uma placa na entrada:

CUSTOU

UMA PEQUENA FORTUNA. Os proprietários são novos por aqui, um daqueles casais que me deixam confusa: desproporcionalmente prósperos para a idade, que imagino ser uns 30 e poucos. Estão no sul da França e decidiram que este era o momento perfeito para fazer o paisagismo da casa. Agora parece que foi devastada por uma tempestade. Que tipo de pessoa rouba árvores? — Não quero parecer histérica, mas estou realmente assustada com isso — digo. — Não parece histeria em absoluto — diz o oficial de polícia. — Isto é terrível. — Acho que eles têm luzes com sensores de movimento nas quinas da casa — disse Rickie. — Se as ligarmos, talvez evitem que alguém volte e faça de novo. — Existe a chance de colocarmos tudo de volta e isso acontecer outra vez? Rickie dá de ombros. O oficial Jackson diz: — Posso arranjar uma viatura que passe aqui uma ou duas vezes por noite. — Ele toma algumas notas. — Seu seguro vai cobrir o custo das plantas, não é? — É só nisso que as pessoas pensam hoje em dia? — questiona Rickie, sua voz no limite do grito. — Alguém vem aqui, ou alguéns, porque foi uma baita trabalheira, e rouba todas essas coisas que passamos dias plantando, e aposto que jogaram no lixo. Aposto que cada uma dessas plantas foi deixada em um terreno em algum lugar e ainda está lá, morrendo com este calor. Está absurdamente quente para o mês de maio, passando dos 30 graus, e o policial tem grandes círculos escuros sob as mangas da camisa azulmarinho do uniforme. — Ei, estou do seu lado — diz ele. — Isto é mesmo triste e doentio. Se


um de meus filhos fizesse uma coisa dessas, ficaria de castigo por um ano. Só perguntei porque se o seguro for cobrir, eu gostaria de entregar logo a esta senhora um relatório policial para que ela preencha o que é necessário e recupere algumas de suas perdas. — Acha que foram garotos? — pergunto. Todos nos voltamos para olhar os buracos no chão. Os adolescentes da cidade normalmente ficam um pouco descontrolados quando o tempo esquenta. Quando Ruby e os gêmeos eram mais novos e meu negócio ainda não tinha tomado forma, eu me deleitava com a ideia de dias de verão longos e imprecisos, caminhadas nas montanhas, idas à feira do condado, de montar barracas para que eles pudessem passar a noite no quintal olhando as estrelas. Mas as histórias de garotos mais velhos fazendo corridas de carros nas estradas remotas e fumando maconha no bosque me acovardaram, e na época que os gêmeos tinham 6 anos, já haviam se juntado a Ruby na colônia de férias, fazendo cinzeiros de mosaico e jogando badminton. Max envolvia meus quadris com os braços longos e enfiava o rosto em meu flanco como se desejasse voltar ao útero. “Vamos”, Alex dizia no tom de voz calmante que um dia usara com o irmão. “Podemos pintar.” Isso foi antes de Alex começar a entender que o comportamento de Max se refletia no relacionamento dele com as outras crianças. Era estranho que nunca fosse o contrário, que a tranquilidade e a coragem de Alex nunca lançassem um raio de sol sobre seu irmão gêmeo. — Não faço ideia — diz o policial. — Bom, realmente parece vandalismo, mas muito mais grave. Sem contar que mais trabalhoso. Talvez você possa conseguir alguma informação com seus filhos. — Não foram eles — digo, depois suspiro. — Aposto que você ouve isso o tempo todo: “Não foram meus filhos.” Sei que ele ouve. O grande fiasco do fim-do-ano-escolar na cidade aconteceu há dois anos, quando metade do time de beisebol jogou beer pong e ateou fogo a um celeiro em ruínas no limiar do que um dia fora uma


fazenda leiteira. Todos os pais passaram dias negando que os filhos estivessem envolvidos, ainda que dois dos garotos tivessem queimaduras sérias nas mãos. Havia duas desculpas: os lendariamente destrutivos e vingativos garotos da cidade adjacente (que, quando participavam de competições esportivas contra nós, tinham aparência e comportamento idênticos aos de nossos próprios filhos); e os mexicanos, que estavam sempre sob suspeita de pequenos roubos, mas, até onde sei, nunca fizeram nada digno de atenção policial além de brigar entre si. Então, uma empresa de construção que estava fazendo casas do outro lado da estrada apresentou uma gravação de uma câmera de segurança que mostrava oito garotos tirando gasolina do carro esportivo que um deles ganhara de presente de formatura e despejando-a ao redor das portas do celeiro. Os pais se dividiram em três grupos: aqueles cujos filhos ficaram só olhando, o que os tornava inocentes; aqueles cujos filhos retiraram a gasolina e atearam fogo, o que os tornava “mal orientados ou desencaminhados”, de acordo com o advogado que representava o mais desarvorado deles; e os dois decentes casais de pais que obrigaram os filhos a cumprir horas de serviço comunitário, recolhendo lixo ao longo da estrada, mesmo antes que a corte definisse que deviam fazê-lo. — Meus filhos não são anjos — digo —, mas os amigos deles são

MAIS UM PRIMOROSO PROJETO PAISAGÍSTICO DA LATHAM. “É uma aliteração e tanto”, Ruby dissera quando bastante ligados a mim. — Aponto para a placa que colocamos:

pensei na frase. — Entendo — diz o policial —, mas talvez a notícia esteja correndo, sabe? “Haha, adivinha o que eu e o Jason fizemos...” esse tipo de coisa. — Vou chutar o traseiro de alguém — diz Rickie. — Crianças, adultos ou quem quer que seja. Vou chutar o traseiro de alguém até o inferno e voltar. Não tenho certeza de que os meninos me contariam se soubessem. Eles


são bons em informar quando há coisas pequenas envolvidas: que menino do oitavo ano anda com camisinhas, que garota arrumou um namorado no acampamento de verão sobre o qual o namorado sério não sabe. Mas guardam as coisas grandes. Sarah e Rachel tinham mantido o segredo de Ruby por seis meses no primeiro ano do ensino médio, até que em uma manhã entrei no quarto dela e vi suas costas nuas, um xilofone de coluna e costelas sem um grama de gordura para amortecer. “Você demorou demais para perceber”, Rachel me disse com ar de acusação, quando Ruby voltou a comer. Esta manhã, esbarrei com a mãe de Rachel enquanto comprava um café. Sandy estava usando um vestido leve e sandálias plataforma, as unhas dos pés pintadas com um esmalte cor de sangue seco. Sei que ela acha que somos amigas, mas nunca gostei dela. Quando Rachel tinha 12 anos, uma menina parruda torturada por uma pele com acne e um aparelho dentário, sua mãe a mandara para um acampamento de gordos. E o pior, Sandy o tinha chamado assim para as meninas, as mães, para todo mundo: acampamento de gordos. “Como você pode ver, ela não puxou isso de mim”, dissera ela. — Ruby está causando problemas? — perguntou Sandy, a mão em meu braço. — Porque Rachel está tornando minha vida um inferno. — É uma época difícil — eu disse. — Faculdade, o peso dos estudos. Elas estão sob muita pressão. O último ano é provavelmente o mais difícil do ensino médio para essas crianças. — Não é? — Sandy sempre falou como se estivesse recitando as falas de uma cena crucial de novela. — É muito difícil. Não sei se vou aguentar. Eu sempre pergunto a ela: E Sarah? E Ruby? Por que elas não têm esses problemas? — Ah, mas elas têm problemas. — É o fato de eu ter encontros. Ela já tem idade o bastante para aceitar. Quando Sandy se divorciou do pai de Rachel, casou-se com um corretor


imobiliário, depois viveu com um homem que construía piscinas na região. Agora está saindo com o vice-presidente de um banco local. — Bem, acho que isso deve ser difícil para uma adolescente, sabe? — Sei que ela quer me fazer sentir culpada. Mas não vou me sentir assim. Considero a culpa um sentimento inútil. Elas precisam entender que também temos vida. Tomei um gole do meu café em vez de falar. Estava com medo de que, assim como a princesa no conto de fadas, sapos da sinceridade pulassem dos meus lábios e eu respondesse: “Não temos vida. Tivemos filhos. Sua filha está triste, insegura e metida em algum problema. Cresça. Pare de pensar em si mesma. Pare de pensar em homens. Compre roupas apropriadas.” Sou uma covarde. Em vez disso, concordei que era necessário almoçarmos juntas em breve. Quando o policial vai embora, vejo uma mensagem de Alice no meu celular. “Preciso muito de conselhos sobre como ensinar a usar o vaso sanitário”, diz sua voz gravada. E é quase irresistível ligar de volta e dizer: “Ah, meu Deus, não faz diferença: pré-escola, visitas de amiguinhos, dividir as coisas, idade para aprender a ler.” Eu me lembro de Ruby e Kiernan, ambos com 5 anos, brincando lado a lado na grama atrás da pequena casa na qual morávamos quando as crianças eram pequenas, brigando, arrancando brinquedos das mãos um do outro, chamando os gêmeos de bobos e patetas. Deborah estava preocupada que Kiernan se ressentisse do bebê que ela esperava. Alguém disse na época: “Crianças pequenas, problemas pequenos; crianças grandes, problemas grandes.” O que sabíamos nós? Naquela noite jantei com Nancy. As meninas nos ensinaram o que chamam de alerta cidade pequena: antes de começar a falar, é preciso olhar para todos os lados e se certificar de que não há ninguém indesejável por perto que possa entreouvir a conversa. Mesmo em um restaurante a meia


hora de distância da cidade, ambas o fizemos. — Tive um dia infernal — digo. — Por favor — diz Nancy. — Você não faz ideia. — O filho dela, Fred, que está na faculdade, arrancou o siso no dia anterior. Seu mais novo, Bob, caiu tentando pegar uma bola do beisebol e quebrou o tornozelo. — Se Sarah distender um músculo nadando eu fujo de casa. — diz ela. As crises de Nancy sempre parecem superar as minhas, mas mesmo assim eu lhe conto sobre as plantas roubadas e sobre meu encontro com a mãe de Rachel. — Sandy disse que Rachel não entende que a mãe precisa ter uma vida. Disse que culpa é um sentimento inútil. — Ah, por favor — diz Nancy. — Culpa é o que distingue humanos de animais. — Batatas fritas ou uma salada para acompanhar? — pergunta a garçonete, enquanto anota os pedidos. — Batatas fritas — diz Nancy. — Para mim também — digo. — Não aguento mais salada. Nancy teve Fred antes que eu tivesse filhos, e Bob, antes de eu ter os gêmeos. Quando nos conhecemos, descobrimos que Sarah e Ruby tinham nascido com dois dias de diferença e que ambas acreditávamos que parto natural era a grande mentira de nossa época. (Sandy me contara que tinha escolhido fazer cesárea para manter o tônus “lá embaixo”.) Nancy descobre mais sobre Sarah através de mim do que da própria Sarah, e eu descubro mais sobre Ruby através dela do que de Ruby. Ainda que sempre haja menos a descobrir sobre Sarah. — Estou com um problema com Kiernan e não sei o que fazer — digo, quando nossos hambúrgueres chegam. — Ele está sempre lá em casa, o que nunca foi um problema, só que agora Ruby não parece querê-lo por perto. Nancy está de boca cheia e ela sinaliza que quer falar, mas não pode. Ela sempre come rápido demais. Uma vez tive de desengasgá-la em um


restaurante chinês. — Só sei disso por entreouvir Sarah... — conta ela, finalmente. — Claro... — Mas parece que ele anda com a conversa de que comprou um anel para Ruby e quer que ela faça algum tipo de promessa de que vão ficar juntos, vão para faculdades perto uma da outra... — O que é uma ideia que ele pode ter copiado de Eric e Sarah... — O que, como você sabe, me deixa completamente enlouquecida — diz Nancy. — Sinto que sou um mau exemplo para ela, tendo me casado tão cedo e, bem, no final das contas não me arrependo, mas mesmo assim a ideia de que ela pode acabar ficando com alguém que conheceu aos 14 anos... Nancy está comendo minhas batatas fritas porque as dela acabaram. Ela e Bill se conheceram no oitavo ano. Fred tem 20 anos e ainda está com a namorada do ensino médio, e Bob só tem 15, mas está com a mesma namorada desde que iniciou do ensino médio. Eles cresceram com uma mitologia familiar, e estão se apegando a ela. — Então, o que devo fazer? — pergunto. — Afinal, na ordem natural das coisas, sua filha termina com um garoto e você o vê algumas vezes por ano na Main Street ou em um jogo. Mas Kiernan está praticamente morando em nossa casa desde que os Donahues voltaram há, o quê, quatro anos? — Cinco. Eles se mudaram na semana em que me tornei diretora do departamento. Nancy é professora de biologia no campus da universidade estadual, a uma hora de carro ao norte. Aparentemente, ela é uma autoridade reconhecida em alguns organismos unicelulares. Como todos somos, de certa maneira, organismos unicelulares, isso a torna expert em tudo e todos. Minhas amizades têm certa simetria no momento: Alice está sempre me perguntando o que fazer, e Nancy está sempre me dizendo o que fazer. — Não sei o que lhe dizer — diz ela. — Se Kiernan fosse um tipo


diferente de garoto, ele e Ruby poderiam terminar e ele continuaria frequentando sua casa. Mas se fosse um tipo diferente de garoto, ela nem teria ficado com ele. Ela está seguindo em frente, e ele, não. Acontece que Ruby é tão madura que entende isso tudo. — Não acho que você deveria presumir que Sarah é imatura por causa de Eric. Deu tudo certo para você e Bill. Nancy come minha última batata. — Pode ser — concorda ela, em tom monótono. Nancy e Bill darão uma grande festa de bodas de prata no ano que vem. Ele dirige uma agência de seguros, e Glen o acha ótimo. Eu o considero uma boa pessoa. Nancy e eu temos um acordo tácito de não falar demais sobre nossos maridos. Dizemos a nós mesmas que é para não correr o risco de ser desleal e porque os dois são amigos. Mas também temos o direito de garantir que a infraestrutura de nossas vidas pareça mais ou menos intacta. — Acho que se Ruby e Kiernan terminassem, Glen ficaria aliviado — digo. — Achei que Glen gostasse dele. Glen gosta de todo mundo. — Ele não gosta dos pais de Kiernan — digo. — Nunca gostou. — Bom, eles não têm muito a ver com Glen. Kevin Donahue adora contar vantagem e é um galinha, e Deborah é completamente louca. Sinto minha expressão se desfazer. — Sei que odeia ouvir isso, mas é verdade. Nunca entendi como você pôde ser amiga dela. Não digo nada. Não vou submeter Deborah ao julgamento cruel de Nancy, ou contar a ela por que a amizade terminou. — Então, o que devo fazer em relação a Kiernan? — pergunto. — Não faço ideia — diz Nancy. Nem eu.


Estou na cozinha preparando a comida quando Ruby me chama do seu quarto. Normalmente, acho isso irritante, pois sei que ela age assim porque está ocupada, cansada ou sentindo-se importante demais para descer um lance de escadas, enquanto subi-lo é simples para alguém com tão pouco a fazer como sua mãe. Sempre me lembro da pergunta de Alex sobre uma juíza que ele conheceu em uma de nossas raras visitas à casa de meu irmão, Richard, em um subúrbio nova-iorquino: “Mas se ela não tem filhos, o que faz quando está em casa?” O pai dele e eu tínhamos caído na gargalhada no banco da frente, gritando respostas: Dorme! Lê! Conversa com o marido! Quando exaurimos nosso sarcasmo, Ruby dissera em um tom aveludado: “Vocês dois são tão cheios de si que o carro pode transbordar.” Sei que Ruby não quer descer hoje porque Kiernan está sentado na cozinha. Ele está trabalhando no jornal da escola e trouxe a última edição do ano para Alex, na qual há uma história sobre o time de futebol que menciona Alex e Ben. — Com a saída de cinco formandos do time principal — Kiernan lê em voz alta —, incluindo o goleiro Chris Argento, os Hawks encaram um futuro incerto no ano que vem. Mas os calouros Alex Latham e Ben Cooper, cocapitães do invicto time do ensino fundamental, podem ajudar a preencher a lacuna. — Você escreveu isso — diz Alex. — Cara, não escrevi — diz Kiernan, a mão sobre o coração. — Sou o cara


das fotos. Estritamente visual. O editor de esportes que escreveu. — Mentira. Você escreveu. — Juro. Mal sou alfabetizado. — Mãe! Manhê! — grita Ruby de seu quarto, e Kiernan levanta a cabeça e rastreia o som como um cachorro ouvindo um assobio agudo. Estou salteando pimentões. Vou terminá-los antes de subir. — Isso é ótimo, Alex — digo. — Você tem que mostrar ao papai assim que ele chegar. Alex olha para o jornal outra vez. — Quando dizem “podem ajudar a preencher a lacuna”, você acha que querem dizer que Ben e eu vamos entrar para o time principal? — pergunta ele. — Cara — diz Kiernan, levantando as mãos com as palmas para cima, em um gesto de você-já-está-dentro. Lanço-lhe um olhar por sobre a cabeça de Alex. — Ah, querido — digo, mexendo os pimentões na frigideira. — Acho que depende muito de quem mais está jogando e que posições precisam ser preenchidas. Além do mais, se você joga no segundo time, tem muito mais oportunidade de ser titular enquanto é calouro. — Ma-nhêêê!! — grita Ruby. — Cale a boca — resmunga Max. Ele está no banco da janela comendo cerejas e lendo uma revista em quadrinhos. — Você é um babaca — diz Alex. — Só porque ninguém nunca mencionou seu nome no jornal não quer dizer que tenha que agir como um babaca. Babaca. — O quê? — diz Max. — Cara, acho que ele estava falando do uivo demoníaco da sua irmã — diz Kiernan. — Isso aí — resmunga Max outra vez. Quando liguei para o professor de bateria de Max, ele disse que, em sua


opinião, Max estava seriamente deprimido. “Aquele cara não consegue nem ficar em pé direito, e é qualificado não só para ensinar música, como para fazer análise psicológica?” disse Glen, quando conversávamos na cama. Havia quatro retângulos de luz enviesados em nosso teto, de uma branca lua de junho. A luz através dessa janela, o aroma do ar, a silhueta irreal de um galho que se insinuara na linha de visão do meu lado da cama: é assim que acompanho as estações. Não sei por que, mas quando vejo aqueles retângulos de luz no teto, sinto que tudo vai ficar bem. “Devíamos procurar outro professor de música”, Glen disse. Estava realmente irritado, sobretudo porque se preocupa tanto com Max quanto eu. Dois de seus professores dizem que vão reprová-lo por falta de participação na aula. Um deles diz que nunca ouviu a voz de Max. O andar de cima cheira a azeite quente e meias sujas. Quando abro a porta do quarto de Ruby, uma lufada de incenso se mistura aos outros dois odores e me deixa tonta por um instante. A cadela está deitada no pé da cama. Ruby está sentada com as pernas cruzadas na cabeceira, digitando no teclado de seu computador. — Eu chamei você, tipo, dez vezes — diz ela, sem levantar os olhos. — Estou fazendo o jantar e conversando com seus irmãos. E com Kiernan. Que está esperando você lá embaixo, presumo. Ruby solta o cabelo, enrola-o com a mão e o coloca para cima em um coque que parece idêntico ao que ela acabou de desfazer. Seu vestido de formatura refeito está pendurado do lado de dentro da porta de seu armário. É lindo. Um redemoinho de cores primárias com um profundo decote redondo e mangas em sino. Ninguém vai usar nada parecido. Acima de sua cama há uma fotografia das mãos de uma garota usando esmalte escuro e segurando uma caneta prateada com entalhes. Ruby escreve, e Kiernan tira fotos. Há muitas razões para terem se tornado um casal, incluindo o fato de que ele sempre foi apaixonado por ela, pela peculiaridade de sua aparência e de sua personalidade. “Isso é a cara da


Ruby”, Sarah diz às vezes sobre um filme, um livro, um vestido. Mas Kiernan finalmente a tinha conquistado com uma série de fotografias em preto e branco. Ela escrevera um conto sobre um estudante de ensino médio atormentado pelo bloqueio criativo, e Kiernan dera a ela uma série de fotos para acompanhar a história: o close de um armário no corredor da escola, um quadro-negro meio apagado com um esboço da trama de Anna Karenina, as mãos de Ruby enquanto ela escrevia em seu diário. Esta última fora publicada na revista literária ao lado da história, e nessa época as mãos de ambos estavam fortemente entrelaçadas, na rua, no refeitório, em nossa saleta, onde as mãos contavam uma história que o recatado comportamento público de Ruby e Kiernan desmentia. Se Kiernan pensa através de fotografias, Ruby pensa por histórias, e posso imaginá-la inventando uma agora, que começa com: “Quando estava no ensino médio, eu tinha um namorado.” — Pode simplesmente dizer a ele que estou naqueles dias? — pergunta ela. — Ele sabe que não deve me incomodar nessa época. Acho chocante a abertura que minha filha a as amigas têm sobre menstruação. Ruby, Sarah e Rachel falam como se não houvesse qualquer razão para não compartilharem seu mau humor, suas cólicas e dores nas costas. Não que sejam insensíveis: lembro-me de uma tarde à mesa da cozinha, quando Sarah começou a chorar por causa de alguma crítica bastante leve de Eric, e Ruby e Rachel a abraçaram, enroscaram-se em torno dela como de hábito e disseram: “Ah, querida, vamos fazer um chocolate quente pra você.” São abertas à informação e imunes à vergonha. Outro dia encontrei a caixa de um teste de gravidez no banheiro de Ruby. Hesitei, depois o segurei no alto sem falar nada. O ar pareceu vibrar. É muito estranho que, dependendo das circunstâncias, a gravidez seja uma coisa que aceitemos de todo o coração ou o que mais temamos. Os olhos de Ruby se estreitaram. “Rachel”, ela disse em um tom monótono: “Está tudo bem.” Fiquei no vão da porta, segurando-me ao batente com uma das mãos.


“Está tudo bem”, Ruby dissera sem levantar os olhos, em um tom de voz que demonstrava que aquilo era tudo o que eu saberia. — Não tenho que inventar desculpas por você — digo. — Às vezes, Kiernan aparece só por aparecer. Ele trouxe um exemplar do News-hawk com o nome de Alex. — É que ele está sempre aqui, independentemente de se quero vê-lo ou não. — Acho que você é a única que pode colocar um ponto final nisso, querida — digo, coçando o local onde o rabo de Ginger encontra sua anca. Dormindo, a cadela levanta uma das patas de trás, que se movimenta no ar, como se ela estivesse sonhando que coçava a si mesma, depois cai pesadamente de volta na cama. — Você acha? — questiona Ruby com aspereza, depois refaz o coque. — Sério, não acha que com nós três fora durante o verão ele vai se acostumar a não vir aqui? — Ele pode aparecer para dizer oi. — Ele é intenso demais, mãe. Intenso demais. Tipo, nada é casual, tudo é tão... — Ela procura uma palavra, esmurra o teclado, suspira, fazendo com que toda a sua caixa torácica suba e desça. — Intenso. Não respondo que Ruby também é intensa. Ela já tem muito em sua vida: Sarah, Rachel, os irmãos, o pai, eu. Sua escrita e sua política, ainda que rudimentares. Kiernan não vê muito o pai desde o divórcio e, pelo que ouvi, ou entreouvi, não fala muito com a mãe. Ele não tem irmãos. Tem Ruby e tudo o que Ruby carrega consigo: a confiança, a alegria, os irmãos, os pais. — Quer jantar? — pergunto. — Estou trabalhando em minha história. Comecei a achar que o conto de Ruby é menos uma obra de ficção do que a boia que a está fazendo flutuar e a levando embora daqui. No andar de baixo, adiciono frango ao pimentão e começo a fazer o arroz. Kiernan está contando a Alex uma história sobre a liga de futebol na


qual seu pai jogou um dia e com a qual supostamente viajou pela Europa. Pode ser verdade; pode ser uma invenção de Kevin Donahue. O pai de Kiernan é o tipo de homem charmoso e irresistível que está sempre a um passo do grande momento, da grande ideia, da grande vitória. “Posso sentir”, Kevin dizia a Glen quando estava tramando outro de seus planos, e eu percebia a descrença e a desaprovação de meu marido como se fossem uma mudança da temperatura. — K, você vai jantar aqui? — pergunta Alex. Não me volto na direção deles, mas imagino Kiernan olhando fixamente para minhas costas. Finalmente, digo: — Temos bastante comida. Kiernan me ouviu dizer isso centenas de vezes, mas temo que agora haja algo de áspero e relutante em minha voz. — Não, cara — diz ele, e a cadeira se arrasta contra os ladrilhos. — Tenho umas coisas para fazer. — Ruby está trabalhando no conto — eu digo. — Eu sei — diz Kiernan. — Eu a vejo mais tarde. — Por que Ruby está sendo má com Kiernan? — pergunta Max durante o jantar. — Muito má — diz Alex. — Você só gosta dele agora porque ele trouxe aquele jornal idiota — resmunga Max. — O quê? Eu gosto dele. Só o acho esquisito às vezes. — Quem? — pergunta Glen. Ele chegou tarde do trabalho, e está distraído. — Às vezes sua irmã precisa ficar sozinha — digo. Cozinhei demais os pimentões. Estão murchos e sem cor ao redor dos pedaços de frango. Ninguém percebe. Se daqui a uma hora eu perguntar a eles o que comeram no jantar, não vão se lembrar, mas concordarão que estava bom.


— Onde está Ruby? — pergunta Glen. — Lá em cima. Trabalhando no conto. Disse que vai tomar um iogurte mais tarde. Glen torce o nariz. Ele ainda se preocupa com o que Ruby come, com que frequência e quanto. — Alex entrega a Glen o exemplar do jornal da escola, dobrado em um pequeno quadrado, de forma que só apareça a notícia sobre o futebol. — Uau! — diz Glen. — Impressionante, campeão. — Não sei — diz Alex. — Tipo, você acha que isso significa que eu vou entrar para o time principal? — Mãe! — grita Ruby lá de cima.


Já é tarde quando estaciono na entrada da garagem, e o sol começa a manchar o horizonte de lilás e fúcsia, pintando o topo das montanhas verdes de cores vivas, zombando do azul pálido do desbotado céu noturno. As longas horas, agora que os dias estão esquentando, compensam o ritmo embotado dos meses de inverno, e estou sempre exausta, dolorida e suja. Mas às vezes paro e fico sentada ao volante olhando para minha casa. Não é nada de mais: paredes azuis, janelas brancas, uma casa em estilo colonial holandês com pouco que a destaque, mas com um telhado íngreme e três águas-furtadas pontudas. As árvores que a cercam foram plantadas antes que eu conseguisse distinguir um olmo de uma faia: dois grandes carvalhos em um canto, um viçoso abeto azul no outro, e um bordo japonês de um dos lados da porta de entrada. Há teixos topiados ao redor da fundação da casa. Eu os podei três dias depois de assinar a escritura. As crianças eram pequenas na época; sentaram-se de pernas cruzadas no gramado da frente, fascinadas com os traços de agressividade em meu comportamento, e com minha serra elétrica emprestada. “A mamãe odeia de verdade essas árvores”, Ruby dissera solenemente aos meninos. Imagino que a casa pareça feliz, mas creio que é porque é nisso que quero acreditar. Mas nunca me parece mais alegre que no crepúsculo de uma noite quente, quando as luzes se acendem. É bonita quando está coberta de neve macia na neblina azulada de uma noite de inverno, mas normalmente está frio demais em meu carro nessa época para fazer mais


que sair e correr para o conforto de uma boa calefação. Mas em uma noite agradável como esta, posso me dar ao luxo de parar por um instante e olhar as janelas, retângulos dourados. A luz de uma lâmpada se derramando através de uma vidraça significa lar para mim. Quando meus filhos eram bebês, eu cantava músicas absurdas enquanto os embalava e os amamentava, e de repente, do nada, lembro-me de uma delas: São e salvo, são e salvo, tudo aqui está são e salvo. Uma vez Rickie me trouxe em casa e viu outra coisa: — Talvez você também deva instalar uma dessas luzes com sensores de movimento — disse, e, com a melhor das intenções, estragou tudo. — Ah, por favor — respondi. — Aquele policial disse que têm acontecido arrombamentos. E esse episódio com as árvores... não me cheira bem. Também não me cheira bem, tenha sido vandalismo ou furto, adolescentes ou adultos. Mas dei um tapinha no braço de Rickie e disse: — Sempre haverá luzes acesas em minha casa. Glen reclama da conta o tempo todo. Mesmo agora, enquanto estou sentada observando, uma lâmpada se acende na saleta, e me pergunto quem está lá: Glen, com a parte da frente do jornal; Alex, com a seção de esportes; Max, com uma carta de um dos amigos do acampamento. Ou talvez seja Ruby, que aprendeu a percorrer a casa e acender um interruptor aqui e outro ali para iluminar os cantos sombrios. Sinto como se observasse minha vida. Sinto como se não estivesse em minha vida. Saio do carro e entro pela porta para que esse sentimento passe. Faço uma pausa na área de serviço para pendurar minha grande bolsa de lona em um dos ganchos. Os três estão na cozinha fazendo s’mores, se é que esse cheiro é de biscoitos chamuscados. Eu me pergunto se alguém realmente faz s’mores ou se todo mundo finge que esse é o plano e faz o que nós fazemos: coloca o chocolate Hershey’s e o marshmallow entre os biscoitos e pragueja em voz baixa quando os biscoitos se quebram


ao meio, tenta de novo, abandona os biscoitos, tosta os marshmallows, come o chocolate. Vejo Ruby de perfil, um quadrado de chocolate na mão. Ela come em pequenas mordidas, como um pequeno animal, um rato, talvez. O terapeuta disse que provavelmente comeria assim para sempre. Tiro meus tamancos de borracha, cheios de lama na sola depois de mais um dia restaurando a propriedade vandalizada no Winding Way. Os trabalhadores ficaram zangados e emburrados por repetir um trabalho que já tinham feito. Quando terminaram e entraram na van que os deixaria no hotel arruinado, nenhum deles respondeu ao meu “boa-noite!”. Quero subir correndo e tomar uma chuveirada, mas gosto de observar meus filhos quando eles não sabem que estou presente, convencida de que vão se revelar para mim de alguma maneira essencial. São muito diferentes quando estão só os três juntos. “Três pessoas unidas contra um inimigo comum”, diz Nancy sobre os próprios filhos. “Ou inimigos.” Mas não é isso. Meu irmão, Richard, e eu éramos duas pessoas ligadas pelo sangue mas com pouco em comum. Quando ele foi para a faculdade, foi como se a lagoa de nossa família tivesse ondulado levemente, depois se fechado ao redor da turbulência e ficado tranquila novamente. Passamos de dois adultos e duas crianças a um adulto e uma criança praticamente sem abalos, ao menos na superfície. Fui para a faculdade e deixei minha mãe, e ela se casou e me deixou, e me mudei para o Leste e ela, para o Sul. Nós nos falamos pelo telefone uma vez por semana, ela me manda recortes de notícias e às vezes um livro que seu clube de leitura apreciou. Não faço ideia do que ela sentiu quando meu pai morreu, do que sente por mim, do que a aterroriza e a impulsiona. Lembro-me de passar a maioria de minhas férias da faculdade na casa de Alice, uma velha construção, grande e confusa, com duas escadarias, quatro irmãos e pais que trabalhavam juntos em correção de imóveis. Eles contavam piadas obscenas e bebiam uísque sour. O pai dela dizia que quando os filhos não estavam, ele e a esposa iam nadar pelados no lago, e a mãe retrucava que era um ótimo comentário para fazer na


minha frente, que eu ficaria com uma má impressão deles todos, e os garotos cuspiam cerveja uns nos outros à mesa, e Alice dizia: “Ai, cresçam, todos vocês.” Eles eram um clã, e não, como minha família, pessoas dividindo uma casa e um sobrenome. De alguma forma, meus próprios filhos também se tornaram um clã, mesmo quando são cruéis uns com os outros, mesmo quando Ruby é indelicada com os meninos ou quando Max está ignorando Alex e Alex está implicando com Max. Eu os acho perfeitos, ao mesmo tempo em que suas imperfeições me apavoram. Há dois anos, eu estava constantemente preocupada com Ruby. Agora é Max. Não acho que um dia será Alex. — Não, você está certo, a Sra. Ruffino é difícil. — Ouço Ruby dizer de modo solidário, largando seu quadrado de chocolate. — Tipo, minhas notas estão OK em todas as outras aulas — diz Alex —, e ela está dizendo que vai me dar um C. E eu falei, tipo: “Sra. Ruffino, como assim? Eu venho à aula, eu leio as coisas, eu faço os trabalhos.” Acho que ela está sempre em cima de mim porque, tipo, eu não escrevo bem, e estou me ferrando por sua causa. — Então é minha culpa que você vai repetir em inglês? Parece uma desculpa esfarrapada — diz Ruby, lambendo o dedo. — Você vai comer isso tudo? — diz Max, e Ruby empurra o resto de seu chocolate pela mesa para ele. — Não vou repetir — diz Alex. — Um C — responde Ruby. — Nossos pais não vão ficar contentes. — Dã... — O que você está lendo? — pergunta ela. — A letra escarlate — resmunga Max. — E Melinda Bernstein está toda, tipo: “Ah, Sra. Ruffino, eu amo esse livro... é tão bom!” — Alex eleva a voz para um falsete. Ruby ri.


— Vocês dois são alunos da Sra. Ruffino? Achei que a mamãe tinha colocado vocês em aulas diferentes. — Duas turmas — diz Max, desembrulhando outra barra de chocolate. — E, de qualquer maneira, Max está em matemática para gênios e eu estou em matemática para idiotas — diz Alex. — Não é matemática para gênios — diz Max. Sua voz se tornou tão indistinta que sinto que pode desaparecer completamente a qualquer momento, e teremos que ler seus lábios nas raras ocasiões em que falar. — Quando entrarmos no ensino médio vai ser totalmente ridículo, porque todos os professores de inglês vão perguntar: “Você é irmão da Ruby?” — Não vão, não. Max murmura. Está com um marshmallow na boca. — O quê? — Todos preferem você — diz ele. — Eu? — pergunta Alex. — Ruby — diz Max. — Ah, não seja bobo, Max — fala ela. Ruby baixa os olhos para o colo e franze as sobrancelhas. Sei que ela não acredita no que está dizendo. Está raspando alguma coisa em sua calça de lona, provavelmente uma mancha de chocolate. — Não é porra nenhuma — diz Alex. — É melhor não deixar ninguém ouvir você falar assim. — Você diz isso toda hora. — Eu não digo isso toda hora — diz Ruby. — Eu falo muito poucos palavrões, na verdade, comparado à maioria das pessoas que conheço. E sou três anos mais velha que você. — É porque você é uma garota — diz Max. — Isso é sexismo — diz Ruby com ar afetado. — Por que as mulheres


não poderiam falar tantos palavrões quanto os homens? — Não a coisa dos palavrões, a coisa do favoritismo. — É porque ela é a mais velha — diz Alex. — Não é verdade. É, de certa forma. Sinto-me frequentemente angustiada com a diferença entre meus sentimentos por Ruby e pelos outros dois. Talvez seja porque ela é a mais velha, e eu era muito nova, e me descobri conforme aprendi a conhecê-la, descobri que podia ficar sem dormir, sem incentivo, que podia me anular por um bem maior. Sentira-me triunfante ao sobreviver às cólicas, à queda da cama, à manhã em que ela prendera seu minúsculo dedinho na porta do armário. Mas às vezes penso que parte do problema é que nunca vi os meninos como duas pessoas diferentes. Eu nem sequer soube que estava esperando gêmeos até o fim da gravidez. Ruby fora um bebê grande (“4 quilos”, eu dissera, em desespero, à terapeuta, quando o peso dela tinha baixado para 40 quilogramas, como se aquilo demonstrasse que houvera algum terrível engano), e a enorme barriga oval que me precedia em qualquer cômodo era justificável até que ouvimos as batidas dissonantes dos corações. É difícil cuidar de duas crianças ao mesmo tempo: alimentá-las, confortá-las, ter certeza de que sabe quem é quem. Eu usava a palavra “espere” o tempo todo. Nancy diz que estou me enganando, que ela nunca concedeu a Sarah e Bob o tempo que concedeu a Fred, seu primogênito, e que seria o mesmo com Alex e Max se eles tivessem nascido com três anos de diferença. Mas ela está errada, em parte porque não posso lhe contar o que realmente sinto: que de uma forma peculiar e vergonhosa, penso em meus filhos como duas metades de um todo, como se fossem gêmeos siameses inseparavelmente unidos por suas diferenças. Pergunto-me se essa é a razão para eles terem ido para lados diferentes da piscina genética, tornando-se o atleta e o artista, o convencional e o excêntrico, se sou responsável pelo fato de Alex ser quase irritantemente enérgico e de Max


estar afundando em um abismo de torpor. Cada um preenche o espaço não ocupado pelo outro. — OK, então qual dos nossos pais você prefere? — diz Alex, e minha garganta se aperta. — Ah, por favor — diz Ruby com ar irritado. — Essa é mais idiota que a outra. Percebo que, como uma criancinha, estou pensando: me escolha, me escolha, e sinto vergonha de mim mesma. Pobre Glen, dia após dia ajustando gentilmente óculos bifocais nos rostos enrugados de aposentados, pedindo a inquietas crianças do jardim de infância que leiam a quarta linha do teste ótico, confortando adolescentes chorosas que acabaram de ouvir que precisarão usar óculos na sala de aula, que ensinou sem reclamar a andar de bicicleta e de skate enquanto eu acenava da janela, que chorou nas salas de parto e dirigiu cuidadosamente para a emergência mesmo que lá houvesse gritos e sangue. Ele merece mais que a segunda posição. É um bom homem, um bom marido e pai, e eu enfatizo isso exageradamente pelo bem das crianças. “Olha lá seu pai”, digo quando ele faz um sinal de OK enquanto passa zunindo nos esquis. “Seu pai fez essa cirurgia”, digo quando Ruby chega da escola e conta o milagre de alguma garota enxergar o quadro negro sem óculos pela primeira vez na vida. “Comeremos quando seu pai chegar”, digo quando eles se aglomeram na cozinha, abrindo e fechando a porta da geladeira como se, a exemplo de uma caverna de conto de fadas, o conteúdo tivesse sido magicamente modificado nos últimos três minutos. E ao torná-lo fundamental para a existência deles, e sua felicidade, talvez esteja fazendo o mesmo por mim. Não consigo me lembrar bem, ou evocar aquele estranho sentimento que me fazia ansiar por estar com ele a cada momento de todos os dias, que me fazia pensar que “até que a morte nos separe” soava maravilhoso em vez de simplesmente um tempo muito, muito longo. — Não, mas, tipo, se a casa estivesse pegando fogo, quem você salvaria,


a mamãe ou o papai? — insiste Alex. — Eu salvaria o Max, porque ele nem ia perceber que algo estava errado — diz Ruby, lambendo os dedos como um gato. Max boceja, e os outros dois riem. Escolham-me, uma voz dentro de mim grita novamente, e então os três levantam os olhos como se fossem um. Vejo a semelhança: os cabelos brilhantes, embora os de Alex estejam curtos e os de Max, grandes demais; os olhos castanho-escuros, embora os de Ruby sejam puxados nos cantos, como os meus. Eles a fazem parecer sedutora, juntamente com o hábito de baixar a cabeça e olhar para cima através dos cílios. Esse olhar levou a muitos mal-entendidos, e a vários ataques de raiva de Kiernan. Os três sorriem, até Max, um pouco, e a porta da frente se fecha com o ranger de dobradiças emperradas. — Ninguém reparou nesta pobre cadela sentada perto da porta? — pergunta Glen. Ouço as unhas de Ginger nos ladrilhos, e depois o ritmo suave de sua língua enquanto bebe água. — Nunca usamos a porta da frente — diz Ruby. — A Ginger sabe disso. — Ela não latiu — diz Alex. — Ela precisa latir se quer que a deixemos entrar. — Ela nunca late, não é, Ging? Ela não quer incomodar ninguém. Ela é o filhote perfeito, o filhote mais perfeito que já existiu no mundo — diz Ruby com a voz que usa com cachorros, que não é diferente da que usa com bebês. — Pai — diz Alex —, quem é seu filho preferido? Todos dão um sorriso malicioso. É uma brincadeira. Glen dá a mesma resposta desde a primeira vez em que perguntaram em uma viagem de família para visitar os avós, quando Ruby tinha 8 anos, e os gêmeos, 5. — Ruby é minha favorita aos domingos e às quintas, Max é meu favorito nas segundas e sextas, e você é meu favorito às terças e aos sábados. — Um


silêncio, com o som de Ginger ofegando, e depois a familiar conclusão: — E às quartas não suporto nenhum de vocês. — Isso é tão velho... — diz Alex, mas ainda está sorrindo. Ele está feliz por não ter tido que escolher entre um de nós. Uma árvore, dois troncos. É isso o que somos para nossos filhos. Quero que continue sendo assim.


Estamos naquela hora cinza-azulada pouco antes do nascer do sol, e há um lamento vindo lá de fora. No primeiro momento confuso do despertar, penso que é aquele gato da casa atrás da nossa, mas há um fundo fortemente emotivo no som, e finalmente percebo que é alguém repetindo uma palavra: Não, não, não, não, aguda e terrível. — O que é isso? — pergunta Glen. Eu olho para o gramado lá fora. Kiernan está parado observando a janela de Ruby, o cabelo desgrenhado, a gravata-borboleta é um roto emaranhado de cetim pendurado em volta de seu pescoço. Ele oscila, o que faz parecer que está sendo golpeado pelo vento, embora seja uma manhã calma. Ele está chorando, então as consoantes se enfraquecem e desaparecem. — É Kiernan — digo, pegando meu robe no pé da cama. — Não me importo se for o presidente dos Estados Unidos. Se esse barulho não parar, vou chamar a polícia. — Volte a dormir — digo. A última vez que vi Ruby e os amigos foi logo depois das duas horas, quando um grande grupo veio a nossa casa para tomar café depois que o baile de formatura terminou. O par de Rachel desaparecera. As garotas tinham tentado convencê-la a não ligar para ele, embora não estivesse claro se seria para implorar que ele voltasse ou para dizer que ele era um cafajeste e que nunca mais devia esperar uma palavra dela. Eu sabia que não devia perguntar sobre isso e fiquei no fogão, fazendo


ovos mexidos. O rímel de Rachel era uma sombra suja sob seus olhos, e ouvi Sarah dizer: “Isso é totalmente inaceitável”, várias vezes, em um tom determinado muito parecido com o da mãe. — O DJ era uma merda — disse um dos garotos, alto demais, e eu senti o cheiro de algo doce e adstringente, talvez Bourbon, em seu hálito. — Cara... — disse Kiernan com ar de reprovação. — Desculpe. A cabeça lustrosa de Ruby estava inclinada sobre Ginger, que tivera licença especial para sair do canil no meio da noite. Eric estava lhe dando pedaços de muffin de milho por baixo da mesa. — Você não deve dar comida a ela — disse Sarah. Eles já pareciam duas pessoas casadas há muito tempo. Às oito da noite horas, minuciosamente enfeitados, impecáveis, intocados, eles tinham permitido fotos no jardim. Sarah usava um tomara que caia branco, seus ombros, uma plataforma de músculos definidos sobre a tira de ilhoses. Rachel usava um vestido frente única velho e justo demais para ela. Kiernan comprara para Ruby um lindo buquê, pequenas rosas de um cor-de-rosa vivo que combinavam com o obi. Ele curvou-se cerimoniosamente quando o entregou a ela, e quando levantou a cabeça, seus olhos estavam ávidos, suplicantes. Eu vira seu pai, Kevin, com o mesmo olhar. “Dança comigo?” ele dissera certa vez quando todos éramos mais jovens, em uma festa no quintal dos Donahues, ao lado da piscina. Glen, que não gostava de dançar, nos observara enquanto dançávamos descalços. Ele era um bom dançarino, Kevin Donahue, eu lhe concedo isso. Ruby diz que Kiernan também é. Quando a limusine esportiva os trouxera em casa para o café da manhã, o cabelo de Sarah começava a escapar da parte de trás de seu penteado, e ela tinha uma leve mancha em um dos lados do vestido. O vestido de Rachel estava amarrotado porque ela ficara sentada no salão durante o jantar de costela e purê de batatas, e, suspeito, vira seu par dançando com outras


enquanto a deixava sozinha. A aparência de Kiernan também fazia pensar que a noite fora um desastre. Seu smoking estava sujo de terra em alguns pontos, e ele se sentou em uma das pontas da longa mesa da cozinha, pernas abertas, braços cruzados sobre o peito, olhos baixos. “Não, obrigada, mãe”, disse Ruby quando coloquei um prato de ovos em sua frente. As bordas de suas rosas tinham começado sua triste e lenta deterioração. Glen acha que me intrometo demais na vida particular de nossos filhos, especialmente na de Ruby. Antes que ela parasse de comer durante o primeiro ano do ensino médio, ele costumava reclamar para quem quisesse ouvir que seus pais nunca se preocuparam, e estava certo. Nem os meus. Meus filhos ainda acham chocante que meu pai tenha morrido e ninguém tenha ido ao terapeuta. Em vez disso, meu irmão, Richard, tornou-se adulto da noite para o dia, parado à cabeceira de um caixão de carvalho com os tios atrás dele. Ele também se tornou uma das pessoas menos emotivas do mundo, o que imagino ser uma vantagem para um oncologista. Seus pacientes morrem e ele prospera. Tudo, como eles dizem, é uma troca. O lamento aumenta e diminui lá fora. — Alguém tem que colocar juízo na cabeça desse garoto — diz Glen com os dentes cerrados. “Alguns de nós têm que levantar para trabalhar”, quase respondo. “Ambos precisamos”, mas decido que não é o momento. Glen joga as cobertas de lado. — Você não pode ir lá — sussurro. — Vou tomar banho — diz ele. A grama está fria e molhada sob meus pés descalços. Cruzo os braços sobre o peito, consciente de que estou usando somente minhas roupas de dormir. Quando saio, o barulho para, e o silêncio da manhã ressoa sem obstáculos. Uma luz se acende na cozinha de nosso vizinho. É um viúvo que gostava mais de nossos filhos quando eles eram pequenos e iam dormir às


oito da noite. Kiernan está sentado de pernas cruzadas na grama. O paletó de seu smoking está jogado sobre uma das cadeiras de madeira do quintal. Os joelhos de suas calças estão ensopados. Dou-lhe um tapinha no ombro. Seu rosto está todo contraído, do jeito que ficava quando ele era pequeno, esfolava um joelho e sua mãe jogava água oxigenada em cima. “Vai doer”, Deborah sempre dizia, como se saber melhorasse as coisas, quando só o fazia chorar mais. Primeiro a promessa da dor, depois a dor propriamente dita. Ele soluça entre as mãos. Suas emoções são adultas, seu comportamento, infantil. E então percebo que suas emoções não são de modo algum adultas. São imprudentes demais, concentradas demais. Nas palavras da antiga Ruby Latham, são autênticas demais. Se ele tivesse 40 anos e a mulher que amasse o tivesse deixado, ele nunca se sentaria em seu quintal para chorar. Diria que ela sempre tinha sido uma vadia, que nunca fora grande coisa. Ou ficaria bêbado e tentaria transformá-la em outra mulher em um bar e depois na cama. Ou trabalharia demais, ou jogaria golfe demais, ou encontraria outra maneira de engolir o que quer que estivesse sentindo, preferindo um nó na garganta ao coração na mão, preferindo raiva a tristeza, ressentimento a perda. Tudo menos isso, esse desespero indisfarçado. — Querido, acho que é hora de ir para casa — digo suavemente. Kiernan envolve minhas pernas com os braços e pressiona o rosto contra a lateral de meu joelho. Posso senti-lo tremer sob minha mão espalmada. Lembro-me da primeira vez em que vi seu rostinho redondo, quando os Donahues se mudaram para a casa ao lado da nossa, quando todos morávamos em casas menores, pequenas casinhas simples do outro lado da cidade. “Oi”, ele chilreou, parado em uma abertura da cerca viva e irregular entre os quintais. “Minha mãe disse que posso brincar com você. Essa é minha nova casa. Tenho um quarto verde.” Mesmo naquela época


seus olhos tinham seguido Ruby pelo quintal enquanto ela dançava em seu tutu cor-de-rosa, os olhos semiabertos, cantando para si mesma, ignorando-o abertamente. Ambos estavam na idade de entrar no jardim de infância. Os gêmeos eram bebês, e Deborah estava grávida e não sabia se estava feliz em relação a isso. Passávamos longas tardes sentadas em sua varanda dos fundos, bebendo chá gelado e dando picolés às crianças. Em vez de dar banho em todos eles, deixávamos aquele grude ser lavado na parte rasa da piscina, deixávamos Kiernan e Ruby nadar até o trampolim com suas boias coloridas. Como teríamos ficado solitárias uma sem a outra! E todos esses anos depois, isto: Kiernan soluçando na discreta estampa florida de meu robe, o cheiro de álcool emanando dele como um desinfetante, uma mancha na camisa de seu smoking. Ele sempre fora um menininho emotivo, cutucando passarinhos mortos com o lábio trêmulo, ou entrando em casa batendo os pés quando implicavam demais com ele. Eu avisara a Ruby sobre a intensidade de seus sentimentos quando eles eram bem mais novos, antes que se tornassem mais que amigos. Eu avisara que o pêndulo de suas emoções oscilava em movimentos amplos. “Ai, mãe, o Kiernan? Seria como beijar meus irmãos”, ela dissera no oitavo ano. Mas depois ela própria se tornara um pássaro machucado, e Kiernan a tinha ajudado a se curar, tão bem que ela voara para longe. — Eu a amo tanto... — diz Kiernan, suas palavras confusas por causa da tristeza e da bebedeira, de forma que era difícil entendê-lo. — Você vai se sentir melhor depois de dormir um pouco — digo. Ele olha para mim e aperta os olhos. — Você precisa falar com ela — chora ele, alto. — Ela vai ouvir. Diga que isso é um erro. Um grande erro. — Ele faz essa palavra durar para sempre, e sua cabeça cai outra vez. — Ela está cometendo um grande erro — diz ele entre as mãos. — Venha, vamos para casa, Kiernan — digo.


— Diga a ela! — grita ele de repente, e o som ecoa pela casa, pelas montanhas, pelo céu. — Chega — digo severamente. — Você tem que ir para casa. Ele cai para a frente, cotovelos nos joelhos, cabeça baixa. — Eu a amo demais. Diga a ela. O sol aparece sobre a estação de bombeamento na montanha, tornando vermelhos seus tijolos marrons, como faz com os cabelos de Ruby. E percebo que estou com medo de me mover. Kiernan terminará o último ano do ensino médio e irá para a faculdade, e se tornará algo bom e verdadeiro: um professor adorado, talvez, ou o tipo de advogado que representa pessoas pobres. Terá uma vida na qual esta parecerá apenas aquele tipo de sonho que é vívido no momento em que se acorda, mas já se desvaneceu na hora do café. Mas hoje minha filha o expulsou da coisa mais próxima do paraíso que ele já conheceu: nossa cozinha. Para nós parece tão comum, tão pouco, mas eu já vi nos olhos dele, e também nos de Rachel, o brilho da ânsia, e me senti triste, porque o melhor que tínhamos a oferecer era um tipo de empréstimo. Kiernan acreditara que podia transformar o empréstimo em propriedade. E, de tempos em tempos, conforme envelhecer, ele se lembrará de Ruby Latham e de como a amou, e de como a perdeu. Sem saber, todas as outras garotas terão o fantasma de Ruby pairando sobre elas. Quando entro em casa, Glen está sentado à mesa comendo cereais. Fico esperando que me repreenda pelo tempo que passei descalça na grama, por minha incapacidade de ser enérgica, que é uma expressão passada para ele por seu pai e bastante usada em nossa casa. Em vez disso, ele levanta os olhos brevemente e faz um pesaroso trejeito com o canto da boca. — Pobre garoto — diz ele. Também houve uma Ruby Latham na vida de Glen, uma garota com quem ele cursou o ensino médio, chamada Betsy. Esbarramos com ela uma vez quando éramos recém-casados e pude sentir o ímpeto do passado


enquanto ela e meu marido conversavam em frente à casa dos pais dele. É desnecessário dizer que ela parecia um pouco comigo. Ou eu com ela. A cafeteira começa a funcionar com seu estalido habitual, e coloco água para o mingau de aveia. Glen vai lá para fora e em um minuto ouço uma porta de carro bater. Percebo que meu marido, sempre prático, compreendeu que Kiernan não tinha como ir para casa e o levou de carro. Espero que não diga a Kiernan que ele vai superar. Mais tarde, Glen diz que eles não falaram nada um com o outro, exceto por uma vez que Kiernan pediu que ele encostasse. Mesmo enquanto vomitava no meio-fio do posto de gasolina Sunoco, Kiernan continuava chorando. No andar de cima, Ruby foi para nossa cama, como fazia quando era pequena e havia uma tempestade. — Estou me sentindo uma pessoa terrível — sussurra ela, a voz falhando. Sei que ela se sente, e sei também que existe alguma parte sua que irá apreciar essa situação, gostar de ser tão amada e de causar tanta tristeza. Entro no banheiro e, quando saio, ela está dormindo profundamente, uma longa mecha de cabelo enrolada no dedo. Lá embaixo, no gramado, há uma parte da grama achatada, onde Kiernan se sentou, e o paletó azul-claro do smoking foi deixado para trás.


O curso de escrita literária de Ruby começa na semana em que terminam as aulas. Na noite anterior à partida, Sarah e Rachel dormem amontoadas em sua cama. — Por que dizem que vêm “dormir” aqui se nunca dormem? — rosna Glen, que diz isso pelo menos cinco ou seis vezes por ano. De manhã, elas se reúnem na cozinha e choram, mas é o choro aprazível de garotas a quem nada de mau está acontecendo. Ruby não chora. Está quieta e triste desde a noite do baile de formatura. Só a vi sorrir genuinamente uma vez, quando ganhou o prêmio de escrita literária, um dicionário Webster vermelho com seu nome gravado em relevo na capa. — A mãe do Kiernan disse à minha mãe que provavelmente essa foi a melhor coisa que já aconteceu a ele, que ele precisa de um recomeço — diz Rachel, enquanto Ruby está no andar de cima pegando suas malas. — Nossa, Rachel, você é a pessoa mais linguaruda do mundo — comenta Sarah. Lá fora, na entrada da garagem, as três se abraçam. — Vou encontrar um surfista da Califórnia para você depois que encontrar um para mim — diz Rachel, que vai passar o verão com o pai. — Se cuida — responde Ruby. — Sempre — diz Rachel, colocando as bolsas de Ruby na mala do carro enquanto Sarah e Ruby trocam um olhar sobre sua cabeça inclinada. — Está preocupada com Rachel? — pergunto enquanto deixamos a


cidade. — Estou sempre preocupada com Rachel — diz Ruby, distraída. Ela passa praticamente o resto da viagem quieta, olhando pela janela, brincando com o cabelo, prendendo-o em um coque, desfazendo-o. Está tolerando a rádio de música clássica. Está nervosa, eu sei, não porque ache que vai se sentir deslocada, mas, estranhamente, porque não vai, porque por enquanto ela é a garota estranha e bonita em vestidos vintage, cuja história ocupa um terço da revista literária, mas neste verão vai se encontrar entre várias pessoas parecidas e perder a noção do que é se autoinventar. Há vários anos ela começou a desenvolver essa persona segura, e, em retrospecto, parece que não lidei bem com o fato no começo, sem entender de verdade que não estava lidando com nada. Houve uma época, pouco antes de completar 40 anos, em que deixei meu cabelo crescer e troquei minhas calças e suéteres por vestidos que dançavam acima dos meus joelhos. — Você vai usar isso? — perguntara Ruby certa noite, torcendo o nariz. — Qual é o problema? — Estaria tudo bem se você tivesse a minha idade — dissera ela. Já tive a idade dela? Às vezes coloco a música dela no carro, piso com força no acelerador e consigo sentir, vindo de algum lugar das profundezas de meu corpo, uma linha dupla amarela no asfalto me instigando e o som do baixo pulsando em meu diafragma, a sensação de ser jovem. Mas nunca fui esse tipo de garota quando podia ser. Minha mãe gostava de tudo certinho, e nem eu nem meu irmão queríamos perturbá-la. Há dois tipos de temperamento: quente e frio. O segundo é o pior. Minha mãe tinha um temperamento frio, silencioso e duro. Nunca fiz um piercing ou uma tatuagem, nunca usei bijuterias diferentes ou roupas provocantes. Fui ao baile de formatura com um namorado que era tanto um acessório quanto uma pessoa. Nosso relacionamento ficou balançado quando eu estava na


faculdade e fiquei sem selos para minhas cada vez menos frequentes cartas. No último ano, em uma festa, conheci Glen, que já estava na escola de medicina e visitava um dos irmãos. Os dois me acompanharam de volta ao apartamento velho que eu dividia com Alice e outras duas amigas, e jogaram cara ou coroa para ver quem me ligaria na manhã seguinte. Sempre que a família de Glen se reúne para os feriados, seu irmão Doug joga uma moeda no ar e estala a mão sobre ela. “Tarde demais, Dougie”, Glen gosta de dizer. Às vezes relembro a mim mesma que quase faltei à festa, que quase fui para outra faculdade, que um impulso momentâneo poderia ter mudado tudo e todos. Nossas vidas, tão estáveis, tão definidas, são construídas pelo acaso. Ruby sabe que me formei em inglês, e uma vez me perguntou por que eu não tinha decidido me tornar escritora. “Achei difícil demais”, respondi. Ela desviara os olhos. Pareceu que a ideia de que havia algo que ela conseguia fazer, e eu, não, era desconcertante. “Como você sabe sobre o que escrever?” Rachel perguntara certa vez, quando as meninas tinham lido em voz alta uma história escrita por Ruby. “Sabendo”, ela respondera. A faculdade na qual Ruby vai passar o verão não se parece em nada com a grande universidade estadual em que estudei. As arquiteturas são familiares: portões de ferro, colunas de pedra, tijolos vermelhos, um pátio com algumas árvores antigas. Ruby diz que tem ar-condicionado nos dormitórios e frozen yogurt no refeitório. Sua colega de quarto é uma garota de Nova York chamada Jacqui LeBoutillier. “Estou morrendo de inveja do nome dela”, Ruby dissera a Sarah e Rachel. “Acho que levaria a sério qualquer coisa escrita por alguém com esse nome.” Acontece que tanto Ruby quando Jacqui gostam de Robert Lowell, Flannery O’Connor, brechós e manteiga de amêndoas. Esta manhã, antes de sairmos, havia uma sacola em nossa porta dos fundos, e dentro dela tinha uma coleção de poemas de Lowell chamada Estudos da vida. Ruby a pegou, folheou e colocou na mesa, entre os pratos,


canecas e jornais. — Vai levai isso? — perguntei enquanto pegava as chaves. — Eu já tenho — disse Ruby. — Não sei como alguém pode não saber que já tenho. Pobre Kiernan. Parece que não consegue fazer nada direito. Quando seus filhos passam o verão fora, a expectativa dos outros é dobrada. Outras mães presumem que você vai se sentir incompleta ou liberada, dependendo da situação delas. Não me sinto nem um nem outro. Sinto que meus filhos precisam passar este verão fora, Ruby precisa crescer, Max, curar-se, Alex... bem, Alex precisa ir porque os outros dois estarão fora. Glen sempre sente a ausência deles mais que eu. — Uau! — diz ele na primeira noite em que os três estão fora. — Esta casa está muito silenciosa. Ele sugere sair para comer, ver um filme, ainda que ele não goste muito de restaurantes e raramente se interesse por alguma coisa no cinema. Mas depois de um ou dois dias, ele se reacomoda em seus hábitos, e eu nos meus. A outra fantasia dos verões sem crianças é o romance para os casais que estão juntos há muito tempo, sexo épico e nudez pela casa. Certa vez fiz uma insinuação para Nancy sobre as oportunidades perdidas porque Fred, Bob e Sarah ficavam em casa durante o verão, e ela revirou os olhos e disse: — A história do chão da cozinha? Por favor, poupe-me. Em vez de aproveitar o tempo livre, vou trabalhar, em quintais e jardins, até muito depois da hora em que costumo chegar em casa. Esta é a época do ano mais ocupada para mim: podas intermináveis, plantar, capinar, ouvir as lamúrias dos proprietários, revoltados com os caprichos da natureza, o apetite dos besouros japoneses, os vorazes cervos, o clima instável que derruba árvores com uma única tempestade e aniquila as flores sensíveis com um sol abrasador. Depois que deixo Ruby no dormitório, dirijo três horas até em casa, por


estradas ondulantes, parando para supervisionar o trabalho em uma casa de final de semana fora da cidade. — Como estamos indo aqui? — pergunto a Rickie. O homem para quem estamos trabalhando desmatara o topo de uma colina com uma vista incrivelmente bonita de uma cadeia de montanhas e vales para construir um chalé gigantesco. Seu empreiteiro derrubou dezenas de árvores, e agora o proprietário quer recolocá-las. Não é um homem paciente, aparentemente é uma daquelas pessoas que ganha dinheiro ganhando dinheiro, uma daquelas pessoas cujo trabalho não entendo e não quero entender, e ele gosta de árvores grandes. Não quer que nada cresça; quer que as coisas apareçam. Detesto a ideia; o que amo sobre meu trabalho, e suponho, sobre minha vida, é o lento e inevitável desenvolvimento. Conto meus anos em pequenos arbustos que cresceram, trepadeiras que serpenteiam sobre cercas e telhados, brotos que se tornaram árvores. — Conseguimos as nogueiras — diz Rickie. — São muito bonitas. Mas vamos ter que planejar a irrigação. Espero que tenhamos uma boa chuva nos próximos dias. Além disso, estamos com um homem a menos. Luis foi embora. — Ah, não — digo. — Não podemos nos dar ao luxo de perder ninguém agora. Você consegue arranjar mais alguns homens? — Tenho três possíveis candidatos, universitários que estão passando o verão em casa. Um era maconheiro, um trabalhou na pedreira no verão passado e só ficou uma semana porque disse que distendeu alguma coisa no ombro, e o outro aparentemente é o filho mais velho de sua amiga Nancy. — Fred? Como assim? — Disco em meu celular e espero. — Nance? Fred está procurando um emprego? Por que você não me disse nada? Ah, pelo amor de Deus... bom, claro. Claro. Ele já melhorou dos sisos? Diga a ele que está fechado. Não, eu digo a ele. Vou ligar agora. Ou mande que ele me ligue.


— Fecho o telefone. — Você vai adorar o Fred — digo a Rickie. — Você conhece o tipo: ex-atleta, nunca reclama, sempre pontual. — Vai ser uma boa mudança — diz Rickie. — Vá para casa. Estamos quase acabando aqui. Vamos arrumar as coisas e levar os homens. Vou rearranjar o sistema de irrigação amanhã de manhã. Estaciono na entrada da garagem e o telefone toca. É Alice, e eu suspiro. Brotoeja? Alergia? Mas ela diz: — Oi, querida, tudo bem? Ela tinha anotado em algum lugar que hoje era o dia de levar Ruby. Ter um filho a deixou tanto mais suave por dentro quanto mais áspera por fora. — Tudo ótimo — digo. — É um momento maravilhoso vê-la se preparando para ser o que quer que vá ser. — Fico apavorada só de pensar nisso, e meu filho só tem 3 anos — diz Alice. — Lembra-se de nós? — Lembro-me de você. Não consigo me lembrar de mim, na verdade. Eu era confusa como acho que era? — Ah, por favor. Você era calma e sã. Como sua vida, sem surpresas. Era eu que tinha delírios de grandeza e fiquei dando cabeçadas por todos esses anos antes de acertar. Ou semiacertar. — Como está o menino-rei? — Com meus pais. Minha mãe diz que está cansada de me ouvir falar sobre filtro solar, e que criou cinco filhos sem isso. Prometa que seremos profundamente críticas quando formos avós. Não com as crianças, porque eles vão nos evitar, nos afastar dos nossos netos e arruinar nossas vidas. Mas quando falarmos uma com a outra. — Prometo. Max está à mesa da cozinha quando entro, tomando sorvete direto do pote. — Você jantou? — pergunto, abrindo a geladeira. — Jantei — diz ele.


Não consigo evitar, começo a rir. — Ah, Maxie, Maxie, o que será de você? — digo, e de repente ele fica sério. — Não fale isso, mãe — diz ele. — Ah, querido, não é existencialismo. Só estava brincando. Onde está Alex? — Na casa do Ben? — diz ele. Ele não larga o ponto de interrogação atualmente. — Já arrumou as malas? — Mais ou menos. — Alex já arrumou as malas? — Mais ou menos. Pego uma colher para o sorvete. É daqueles com massa de cookie, e toda a massa de cookie foi catada. — Já estava assim — diz Max enquanto cavuco aqui e ali. — Juro. — Onde está seu pai? — Você faz perguntas demais. — É verdade. Coloco o sorvete no freezer. — A que horas saímos amanhã? — pergunta Max. Maxie, Maxie, finalmente indo para o lugar onde se sente em casa. Passo minhas mãos por seu cabelo desgrenhado, beijo sua nuca crespa de menino que está se tornando homem, envolvo-o em meus braços. Ele parece um dente-de-leão, com seu caule fino e sua cabeça eriçada. Antes ele corria para me abraçar; agora só permite que eu o abrace. — Na hora que você quiser — respondo. — Papai está dormindo na saleta — diz ele.


Logo depois do Quatro de Julho, levamos Alex para o acampamento, embora Olivia e seu marido tenham se oferecido para levá-lo com Ben. Os dois saem correndo juntos e temos de persegui-los para o beijo de despedida. O campo de futebol já se encontra cheio. Olivia está um pouco chorosa. — Em casa temos mais três iguais a esse — diz Ted, seu marido, pegando a mão dela. Ela funga, depois sorri, mas o sorriso se desfaz. — Que absurdo — retruca ela para si mesma em seu sotaque britânico, mas parece duvidosa. — Todos vão ter partido antes que você se dê conta — sugere Glen, como se estivesse fazendo um comentário útil. — É, quem tem filhos mais velhos sempre fala isso — fala Ted. — Quer os nossos emprestados? Na viagem para casa, estou fazendo uma lista de compras mental quando percebo que estamos passando pelo hotel em que vivem os rapazes. Uma placa que diz “quartos” oscila no alto de um suporte de metal. Estive ali poucas vezes. Uma vez, um dos homens estava doente e não queria ir ao médico, e eu levei um dos amigos de Glen para examiná-lo. Da outra vez, a polícia me ligou porque houvera uma briga, e eu disse aos homens, que formavam um pequeno grupo no estacionamento coberto de cascalho, que não podia empregar trabalhadores que causassem


problemas. Rickie traduzira enquanto os homens olhavam para os dedos dos pés, os braços cruzados sobre as camisetas sujas. Eles têm uma caminhonete enferrujada para os oito, os cinco que trabalham para mim e três outros que ajudam em uma fazenda leiteira. Não faço ideia de como cuidam das compras e da roupa suja. De dentro do hotel ouço música, tento distinguir alguma agradável canção mexicana, um violão vigoroso, um pandeiro. Em vez disso ouço rock pesado, e o rumor de vozes levemente roucas. Já passa das sete da noite, e eles tiveram tempo suficiente para começar a beber como os homens bebem quando estão muito cansados, que não é um jeito que eu queira interromper. — Eu me preocupo com os rapazes que trabalham para nós — digo a Glen. Ele diminui levemente a velocidade e olha para o prédio. Não pareceria mais melancólico se fosse uma prisão. Na verdade, comparada a isso, a prisão municipal parece um clube. Na primavera, os foguetes amarelos da forsítia ocultam o arame farpado. — Não sei o que dizer — fala Glen. — Você precisa deles. Eles precisam do dinheiro. É vantajoso para ambos os lados. Uma vez José me disse que para visitar as filhas ele viajava durante a noite em janeiro e junho para uma cidade no Texas próxima à fronteira mexicana. Todos os dias as meninas iam ao seu quarto de hotel e jogavam vídeo game na lanchonete local ou iam ao parque de diversões próximo. As meninas tinham documentos especiais de identidade, então podia frequentar a escola na cidade texana e voltar para a casa da mãe no México todas as tardes. Dois anos antes, depois de José ter passado apenas dois dias com elas, os guardas da imigração na fronteira disseram: “Esta semana a escola está em recesso, não está?” No dia seguinte, as meninas ficaram do outro lado com a mãe e acenaram para José, e no outro dia ele dirigiu para o norte outra vez, de volta ao resort de esqui onde os rapazes trabalham


durante o inverno, dirigindo sopradores de neve, limpando estandes. Sempre que o vejo no lugar em que estamos trabalhando, penso nisso, sobretudo com as crianças fora. Sem eles, os dias se arrastam e voam, exaustivos e mesmo assim terminados antes que tenhamos a chance de nos dar conta deles. “Hoje é quarta?” às vezes pergunto à mesa do café, espiando o cabeçalho do jornal para checar. Glen vai a uma conferência de três dias sobre cirurgia a laser em Boston e me traz um colar na volta. Não gosto. “É lindo!” digo. Eu vou a um seminário na universidade sobre controle de pragas e compro joaninhas e caixas para nidificação. Perguntome se é assim que será o resto da minha vida. Nancy e Bill fazem um churrasco, e todos ficam um pouco altos com os gimlets de vodca. A casa inteira cheira a limão. — É um drinque retrô — diz Bill, enquanto os distribui. Na cozinha, um grupo de mulheres se reúne em volta da mesa, beliscando um prato de camarão frio. Os homens estão no quintal. “Aquecendo-se na chama da churrasqueira a gás”, diz Nancy, levantando as sobrancelhas. Fred está na saleta, assistindo a um jogo de beisebol. — Como está indo no trabalho? — pergunto a ele quando entro. — Ele está muito dolorido, disso eu sei — diz Nancy, chegando por trás de mim e me entregando um drinque. — Obrigado, mãe — agradece Fred. — A Sra. Latham me faz uma pergunta e você responde. Parece ventriloquia. — Como está indo? — repito. Vejo parte da resposta: seus antebraços estão cobertos de arranhões e contusões. — Estou bem — diz ele. — Os rapazes estão sendo tolerantes? — Bom, vamos ser francos — comenta Fred —, eu sou o gringo. Eles acham que você está me pagando o dobro do que paga a eles. — Eles disseram isso?


— Falaram sobre isso no primeiro dia. Nenhum deles sabe que falo espanhol. Fred passara um semestre e um verão em um vilarejo a duas horas de Barcelona. Nancy me disse que ele tinha se tornado tão fluente em espanhol que na faculdade ele está ajudando crianças em um projeto habitacional de novos imigrantes. — É, e agora estou preso — diz Fred. — Se começar a falar com eles, vão se lembrar de que nos primeiros dias conversaram na minha frente sobre coisas que talvez não devessem ter falado. Vão perceber que eu os dedurei. — Acho que agora que o ensino médio terminou, esse termo não se aplica mais — fala Nancy. — Que seja. Eu deveria ter usado meu espanhol desde o começo. Buenos dias já de cara, sabe? — Ele se levanta vivamente. Fred sempre teve uma boa forma, mas existe a boa forma de correr 8 quilômetros em tênis caros e a boa forma de cavar um buraco de quase 2 metros com uma pá. Quando ouvimos o chuveiro ser ligado acima de nós, Nancy diz: — Você não está pagando a ele mais que aos outros, está? — Como pode me perguntar isso? — Poupe-me, Santa Mary Beth. Ele é meu filho, você é minha amiga. — Todo mundo está ganhando 15 dólares por hora — paro, multiplico, confiro minha conta. — Nossa, sou uma pessoa terrível, não sou? Isso dá 600 dólares por semana. — Você está certa. Seus empregados estão ganhando o que os professores do ensino infantil ganham. — Nancy desvia os olhos, depois olha para baixo. Quando ela quer dizer algo desagradável, sempre fica absolutamente claro. — O que foi? — pergunto. — Além do mais, pelo menos um deles estava roubando você. O que se demitiu. Ele levou todas as plantas daquela grande propriedade nova no Winding Way. Aparentemente, todos eles sabem. Precisou de três viagens


de caminhão. Ele vendeu tudo para algum horto. — Luis? Você está de brincadeira? Ele parecia uma pessoa tão boa! — Aparentemente não. Você vai contar à polícia? Visualizo meus empregados restantes sendo questionados, sumindo e deixando todos os meus trabalhos por terminar. Sinto-me enjoada, como se tivesse dado uma festa em casa e alguém tivesse roubado minha caixa de joias ou meu armário de remédios, embora eu nunca tenha convidado meus empregados para uma festa em casa nenhuma vez. E agora nunca convidarei. Fiz uma festa de final de temporada no ano passado, com pizza e cerveja, mas foi em um terreno em que estávamos trabalhando, e não tinha pensado em quão sujas estariam as mãos deles depois de um dia de trabalho, até que os vira esfregá-las inutilmente com guardanapos de papel. — A comida está pronta! — grita Bill da cozinha. Nós nos juntamos aos homens lá fora. — Soube que alguém pode alugar a casa dos Donahues — diz uma das mulheres. — Aparentemente, a mãe de Deborah está doente, e ela se mudou para lá para cuidar dela. O olhar de Glen cruza o pátio na minha direção. Tomo um gole do meu drinque e prometo a mim mesma que será o último. Sei que a mãe de Deborah vive em uma cidadezinha a uma hora a norte daqui. Estive lá algumas vezes com as crianças quando Kiernan e Ruby tinham 8 anos. Deborah tinha se mudado para a casa da mãe naquela época também, não porque ela estivesse doente, mas porque Deborah estava. “Um colapso nervoso completo”, Kevin sussurrara. “Catatônica.” A casa de sua mãe era pequena, e nos sentávamos do lado de fora em um balanço da varanda enquanto as crianças brincavam no gramado malcuidado da frente. A luz morria e o sol se punha enquanto eu falava sobre nada e Deborah olhava fixamente para a rua. Suas mãos tremiam em seu colo. Kevin me contara enquanto andávamos até o carro que era por causa da medicação. “Ela precisa muito de você”, ele dissera, segurando minha mão. Kiernan estava a


seu lado e afastara minha mão. “Pai, quando vamos voltar para nossa própria casa?”, perguntara Kiernan. Eles tinham alugado a casa deles enquanto estavam fora. Mais tarde a venderam, compraram outra e voltaram para a cidade. Kiernan tinha 12 anos quando se mudaram de volta. Deborah botara o marido para fora no ano seguinte, gritando com ele tarde da noite no gramado enquanto os vizinhos escutavam atrás das cortinas. Por algum tempo, o episódio prejudicou os negócios de Deborah. Quando os meninos eram pequenos, ela e Kevin tinham aberto uma cafeteria na Main Street; ele lidava com as finanças e ela cozinhava. Venderam-na quando se mudaram para o norte, e quando Deborah voltou, começou a fazer bolos de casamento. Os bolos eram deslumbrantes, com ramos de marmeleiro feitos de açúcar moldado circundando as camadas ou copos de leite de glacê em um feixe realista no topo. Mas por alguns meses as pessoas achavam que dava azar comprar um bolo de casamento com uma mulher que tinha tentado acertar o marido com um taco de beisebol. “Você nunca consegue manter essas malditas calças no lugar?”, gritara ela, para todo o quarteirão. Kiernan também escutara, e depois escutara de novo dos garotos na escola. Ruby fora gentil com ele nessa época. — Alguns desses caras estão indo para as Keys, na Flórida, para fazer pesca esportiva — diz Glen quando saímos do churrasco. — Acho que vou também. — Você não gosta de pescar. — Não? — fala Glen, fazendo uma cara engraçada, e nós dois rimos, e depois, porque estamos bêbados e nossos filhos estão fora e parece a coisa óbvia a se fazer, vamos para casa e fazemos sexo. Nenhum de nós dois parece ter muita vontade hoje em dia, mas quando acontece é ótimo. Faço as mesmas coisas há anos. Ele também. Ainda funcionam. Só parecem um pouco sem sentido, como reler um livro pela sexta vez. Outra coisa que eu nunca teria imaginado quando tinha a idade de Ruby, quando meu


namorado enfiava os dedos dentro da perna de meu short e meus joelhos se abriam como que por reflexo. Na manhã seguinte, Glen sorri para si mesmo enquanto se barbeia. — Espero que as crianças estejam bem — diz ele durante o café, como se quisesse mostrar que estamos interessados nas mesmas coisas. Ambos sabemos que não é verdade. Talvez isso não seja sequer importante. Às vezes, voltando para casa de um trabalho num melancólico crepúsculo de verão, tremendo de frio com o ar condicionado do carro, pego-me chorando por razões opressivas e misteriosas. Quando eu era jovem, minha mãe costumava ficar acordada para assistir a filmes antigos na TV, e quando eu me esgueirava escada abaixo, minhas pernas se agarrando à camisola e transformando-a em uma armadilha ao redor de minhas panturrilhas finas, eu podia espiar através de um estreito vão do corrimão e vê-la curvada para a frente no sofá, lenços de papel amassados na mesa como cravos brancos. Ela chorava em Stella Dallas, mãe redentora, Alma em suplício, Vitória amarga, A ponte de Waterloo. Acho que usava os filmes como uma desculpa plausível para chorar de uma maneira que, do contrário, lhe pareceria indulgente. Seu marido tinha morrido, deixando-a com uma grande quantidade de cinzeiros, duas crianças pequenas e um seguro de vida que só dava para fazer um funeral digno e quitar um carro de cinco anos. Mas ela ainda acreditava que de alguma forma tinha de atar sua dor à tragédia de outra pessoa. Não tenho desculpa para minhas próprias lágrimas. Assim como as mulheres da minha idade, cada vez mais enumero minhas graças em voz alta, como se o fato de serem reconhecidas por outras pessoas as tornassem suficientes: três filhos maravilhosos, um casamento longo e feliz, uma boa casa, um trabalho agradável. E, se sob a superfície, sinto que uma das crianças está a ponto de fugir e outra está infeliz, que meu marido e eu trocamos gracejos públicos e minúcias privadas, que meu trabalho depende do trabalho de homens que acham que os estou enganando, nada disso


deve ser considerado importante. Além do mais, nada disso tem a ver com minhas lágrimas. Se fosse obrigada, teria de dizer que elas são o sintoma de uma grande solidão, tão infundada e desligada da vida cotidiana como um tornado é para o clima habitual. Ela me percorre em um turbilhão, rompendo e rasgando, e então chego ao estacionamento do supermercado, enxugando os olhos, recolocando os óculos escuros, comprando peixe e verduras para o jantar daquela noite. Se alguém pergunta como estão as coisas, digo o que todos dizemos: boas, ótimas, fantásticas, maravilhosas. Mesmo entre mulheres, não falamos sobre isso. Somente uma vez peguei Nancy, sentada no terraço com uma taça de vinho enquanto as primeiras folhas do olmo que sombreava o quintal caíam rodopiando. Fred acabara de partir para a faculdade, e Sarah estava no treino de natação. Eu dissera: — Ah, Nance, o Dia de Ação de Graças vai chegar antes que você se dê conta. Mas quando ela virara o rosto para mim seus olhos estavam vazios, como se ela não conseguisse entender o que eu acabara de falar. No dia seguinte, quando dirigíamos juntas para um brunch, ela dissera acidamente: — Pelo menos você não me perguntou se eu estava menstruada. Quando eu era adolescente, achava que as mulheres só tinham permissão para chorar a cada 28 dias. Como somos tolos às vezes. Certa vez, quando estávamos no começo do namoro, eu perguntara a Glen, minha mão em sua coxa daquele jeito que não sobrevive ao casamento: — Você às vezes chora sem motivo? — Nós éramos tão parecidos, tão compatíveis... Todos diziam. — Acho que não — dissera ele, o rosto contraído em pensamento. — Não me lembro de já ter feito isso. Agora eu não pensaria duas vezes sobre essa resposta. Agora eu nem


sequer perguntaria. — Como foi seu dia? — pergunto. — Bom — diz Glen. — Você chamou alguém para dar uma olhada no telhado? — Eles virão amanhã — digo. — Quer um pouco de vinho antes do jantar? — Acho que vou tomar uma cerveja — responde ele. E se eu lhe contasse que naquela noite, voltando tarde para casa depois de capinar um jardim, indo em direção a uma linha obscurecida de rosa e violeta onde o sol se pusera na serra, eu tinha soluçado como se estivesse com o coração partido. “Por quê?” ele teria perguntado, e o que eu responderia? Teria conseguido me sentar na frente desse homem sincero, com suas bochechas rosadas e seus calorosos olhos castanhos (não clinicamente relevantes), e dizer “solidão”? Pior ainda: e se ele dissesse que fizera o mesmo, que sentira o mesmo? O que seria de nós? — Tem algumas cervejas na geladeira — comunico, tirando o endro da gaveta de verduras.


Algumas vezes, durante julho, recebemos trotes à noite, e o outro lado da linha sempre fica em silêncio. — Alô — digo, e depois, mais alto, com um tom acentuado de raiva: — Alô? Ligam três vezes em sequência em uma noite do fim de julho. Glen atende a terceira quando estamos nos preparando para deitar e diz: — Da próxima vez vou ligar para a polícia. O quarto telefonema acontece logo depois das onze horas e acorda nós dois. — O quê? — vocifera Glen, sentando-se. O telefone está do meu lado da cama. — Mãe, não entre em pânico — diz Max com a voz trêmula, e ouço barulhos ao fundo e percebo o clangor sinfônico de um hospital, um som que ainda é familiar por causa da residência de Glen. — Sinto muito que ele tenha ligado para vocês antes de mim — diz o diretor do acampamento, que telefona enquanto Glen e eu estamos decidindo qual de nós irá dirigir até lá. Max caiu de uma árvore e quebrou o braço. Os raios X não são nada bons. Glen liga para o nosso cirurgião ortopédico. — Não, é o Max, não o Alex. — Ouço-o dizer. Alex deslocou o ombro, quebrou a clavícula e teve aquele problema no joelho. Max só tomou pontos uma vez.


— Esta é a segunda vez que ele cai de uma árvore — digo a Glen. Dirijo noite adentro com um copo de café amargo do posto de gasolina ao lado. Na sala de espera do hospital, Max está afundado em uma cadeira com o braço em uma tipoia, a seu lado está um jovem inquieto, que presumo ser um monitor. — Oi, querido — digo, sentando-me ao lado dele e colocando meu braço em volta de seu ombro. Há linhas sujas em suas bochechas por causa das lágrimas. O monitor vai ao banheiro. — Vou ter que ir para casa, não é? Ele vai. Suas coisas já estão arrumadas. Nos degraus para sua cabana caindo aos pedaços está uma garota muito pequena, uma verdadeira Sininho, com o cabelo pintado de um preto forte demais. Ela tem um diamante em um dos lados do nariz. Max desaparece na lateral da cabana com ela enquanto eu guardo suas sacolas e caixas de baquetas no carro. Apesar do braço e das lágrimas, estou extasiada. Max tem uma namorada de verdade. Eles se abraçam à sombra da cabana e eu desvio os olhos. — Venha nos visitar — digo, voltando-me quando chegamos ao carro, e a garota chora na janela do passageiro. — Mãe, pega leve — murmura Max. No dia seguinte, o cirurgião ortopédico conserta o braço, que se quebrou de um jeito que precisa de um pino. Percebo pela respiração de Max, curta e rasa, que ele está com medo. Seu cabelo está quase nos ombros, e seus ombros estão tomando uma forma retangular que me é familiar, que me lembra o Glen. Mas assim que o sedativo faz efeito e seu grosso lábio inferior fica relaxado, ele fica parecido ao que era quando pequeno, acordando em um dia de verão como este, as pálpebras pesadas sobre os olhos escuros, seu pequeno peito cavado brilhante de suor. — Amo você, menininho — sussurro quando o levam. — Eu também, mãe — sussurra ele de volta.


É praticamente a última coisa agradável que ele me diz pelo resto do verão. É praticamente a última coisa que ele me diz pelo resto do verão. Ele fica deitado no sofá da saleta, vendo bobagens na TV, ignorando a pilha de livros que deveria ler para a escola que eu coloquei em um canto da mesa. Ele emagrece cada vez mais, fica quieto e triste. O celular da namorada não funciona no acampamento, e quando ela liga do telefone da cantina ele ouve os sons abafados da vida que está perdendo. Pratos se empilham na mesinha ao lado dele, e ele os deixa ali até que outra pessoa os coloque na pia. — Ele não está paraplégico — sussurra Glen, com raiva certa noite na cozinha. — Ele vai ouvi-lo. — Espero que sim — responde Glen. — Odeio minha vida — diz Max certo dia, quando saio para o trabalho. É um sentimento que já ouvi de Ruby antes, mas Max diz como se realmente falasse sério. Ligo para a terapeuta que ajudou Ruby para ver se ela conhece alguém para Max. — Ele está deprimido? — pergunta ela. — Não sou uma expert, mas diria que sim. Max não tem nada escrito em seu gesso. O que poderia ser mais deprimente que isso? Seus dedos curvados para fora do gesso parecem que estavam vivendo em algum refúgio subterrâneo, como se, expostos a luz do sol direta, fossem murchar. — Alguma ideia suicida? — pergunta a terapeuta. — Crianças com ideias suicidas as compartilham com os pais? — pergunto com raiva. Eu também estava sempre zangada quando ela tratava Ruby, sempre certa de que estava nos julgando, nossa família, nossa felicidade. Sempre com medo do que ela ia dizer. — Venha para o trabalho comigo — digo a Max. — Um pouco de ar


fresco vai lhe fazer bem. Eu me transformei no pai de Glen, que sempre pensa e fala por clichês: O trabalho não mata ninguém. Não deixe para amanhã o que pode fazer hoje. Deus ajuda quem cedo madruga. Max balança a cabeça. Glen quer que ele comece a arrumar a própria bagunça, que corte o cabelo. — Ele não vai voltar para a escola com essa aparência — diz Glen. — Ele está deprimido — retruco. — Entendo. Ele pode ficar deprimido com o cabelo curto. Ele pode ficar deprimido enquanto coloca os pratos no lava-louça. Nessa noite chego em casa e há uma caixa de pizza sobre o balcão da cozinha. Da saleta ouço um ruído: é a gargalhada forte e boba de Max, há tanto não ouvida. Sorrindo, pego um pedaço de pizza da caixa e entro na saleta. — Oi, mãe, olha — diz Max, e Kiernan se levanta, coloca os braços em torno de mim e aperta com força. — Senti saudade de vocês — diz ele. Eu também senti saudade dele. Ele desenha o sistema solar no gesso de Max, depois tira uma fotografia em preto e branco. No centro há uma estrela, e na foto ele a colore à mão com um amarelo muito intenso, para que brilhe entre a monocromia. Max pendura a foto na parede do quarto, sobre sua cama. Eu ignoro o fato de que a volta de Ruby se aproxima e coloco a lista com os nomes dos terapeutas que consegui na gaveta da escrivaninha. Kiernan está dirigindo uma lata-velha enferrujada com uma pintura fosca cor de vinho que diz que pertence ao tio. Ele está aparando gramados de manhã cedo, assim que o orvalho seca, mas antes que o sol esteja muito forte. — É um dinheiro muito bom — afirma ele, promovendo-se para mim de um jeito peculiar, como se estivesse procurando um emprego.


Ele e Max são parecidos, ambos magros e cabeludos, quase como irmãos quando estão de costas. Isso me deixa nervosa, isso e o fato de que enquanto Max continua quieto na maior parte do tempo, Kiernan não para de falar. Mas depois de algum tempo percebo uma coisa sobre seu comportamento. É um pouco como eu era quando estava em casa com algum de meus filhos pequenos e ia para uma festa. Eu ficava louca por contato humano, falando sem parar, consciente de que logo estaria de volta para minha gaiola. Percebo que Kiernan não tem ninguém com quem conversar. — Último ano — diz Glen ao jantar em uma noite sufocante de agosto. — É mesmo! — exclama Kiernan. — É o fim de uma era. E você, cara. Ensino médio! É o primeiro dia do resto da sua vida. — Quero tirar este gesso — diz Max. — Pense positivo! Você pode fazer acontecer! Tudo é atitude! Kiernan parece um orador inspirado. Glen olha para mim sobre a travessa de costeletas. O médico dissera que Max provavelmente teria que ficar com o gesso até o fim de setembro. Ele está comendo costeletas desajeitadamente com a mão boa, e eu faço uma nota mental de não servilas novamente até que ele possa usar ambas as mãos. Kiernan não está comendo praticamente nada. Ele parece um daqueles jovens estetas religiosos que eu costumava encontrar em algumas das minhas leituras de literatura comparada, apenas membros, olhos e fervor. Se ele fosse um monge medieval, ele se autoflagelaria antes de dormir todas as noites. — Você precisa falar com ele — murmura Glen quando terminamos de lavar os pratos. — Ruby vai estar em casa na semana que vem. Há um leve rumor de vozes graves na sala ao lado; Kiernan e Max estão assistindo TV juntos. — Você mesmo não pode falar? — Mary Beth — diz Glen. — Você sabe que não vou dizer o que você quer que eu diga. Sabe que você mesma quer fazê-lo. Você vive para esses


momentos maternos. — Que comentário terrível. Odeio essa situação. Odeio. Ele é um ótimo menino. Tem sido como um membro da família. Penso em todos esses começos de noite, Ruby lendo seu trabalho em voz alta, Kiernan esparramado no sofá escutando, balançando a cabeça no final, dizendo: “É muito bom, Rubes. Você sabe quanto é bom?” Lembro-me dos dois comendo sanduíches em uma colcha no quintal, depois deitando-se e, com ar sonhador, nomeando as constelações. No ano passado, Kiernan deu a Ruby uma estrela de aniversário. Ela tem um certificado. Imagino onde estará. Membro da família, penso outra vez, enquanto Kiernan me ajuda com o lixo e estende a mão para que eu pare no final da entrada da garagem. — Preciso de um imenso favor — pede de repente. — Posso morar aqui este ano? Fico perplexa. Deve ser evidente em minha expressão, porque ele continua, as palavras saindo de sua boca tão rápido que eu mal consigo acompanhar. — Minha mãe está com minha avó porque ela piora a cada dia; praticamente não entende mais nada, nem sequer sabe quem eu sou, às vezes grita quando entro perguntando “quem é esse homem?”, e minha mãe tem que dizer: “É seu neto”, e minha mãe fica dizendo que precisa da minha ajuda e que eu vou me acostumar, mas, tipo, é meu último ano, meu último ano! E ela quer que eu frequente uma escola de lá, diz que vai ser melhor, um recomeço, um recomeço... eu não preciso de um recomeço, não tenho amigos lá, não conheço ninguém, estou ficando louco. Prometo que não vou dar trabalho, você não vai nem notar que estou aqui, não preciso nem entrar na casa se você não quiser, já planejei tudo... tem aquele quarto em cima da garagem, e um banheiro embaixo, você não vai nem perceber que estou aqui. Os olhos dele estão desvairados, e ele respira como se tivesse corrido.


Ergo a mão com a palma virada para ele. — Kiernan — digo, e ele para. — Respire. — É sério — fala ele, inalando rapidamente. — Sério. Prometo que não vou dar trabalho. A ninguém. Posso ajudar nas tarefas da casa. Posso tirar a neve ou as folhas mortas. Ou posso simplesmente desaparecer. Posso morar aqui e ninguém nunca vai saber que estou aqui. Ambos sabemos a quem ele se refere. — Tem de haver outro jeito — digo suavemente. — Você tem a caminhonete. Seria uma viagem longa, eu sei, mas você poderia vir para a escola todas as manhãs. Tenho certeza de que o conselho escolar faria vista grossa. — Não — diz ele, balançando a cabeça. — Não vou ficar com a caminhonete todos os dias. Ou com um carro. Minha mãe diz que precisa do carro para fazer entregas. Ou para o caso de haver uma emergência com minha avó. — Já conversou sobre isso com sua mãe? — Se aquilo puder se chamado de conversa... — E ela disse não? — Ela riu de mim! Ela disse “nem pensar”. — E sua antiga casa? Você poderia morar lá sozinho. Eu poderia dar uma olhada em você. — Ela já alugou a casa para um cara. Diz que precisa do dinheiro. — E seu pai? Ele só balança a cabeça. — Não posso contrariar sua mãe. — Terei 18 anos em três semanas. Posso fazer o que quiser. Só preciso de uma ajuda por algum tempo. Ele vira-se e fecha as tampas das lixeiras. — Kiernan — repito, mas ele não olha para mim. — Esqueça. Foi uma ideia idiota. Vou dar um jeito.


— Kiernan, sinto muito. — Deixa pra lá — declara ele, indo para a caminhonete e entrando. Glen está terminando sua taça de vinho quando volto para dentro. — Não sei o que Deborah tem na cabeça — digo, exaltada, sentando-me ao lado dele. Pela porta vejo Max, o reflexo da tela da TV é uma sombra tremulante em seu rosto. Ele tem de ler cinco livros antes do início das aulas, em três semanas; eles estão em uma pilha no chão, as lombadas ainda firmes. — Alex ainda não leu — Max dissera quando eu tinha mencionado o assunto. — Como você sabe? — Mãe, cai na real — respondera ele, apontando o controle remoto. — Estou cansando demais para conversar sobre Deborah — confessa Glen, olhando direto para a frente. Nós e os Donahues nunca fomos muito amigos, mesmo quando éramos vizinhos. Glen e Kevin às vezes conversavam, parados nas entradas adjacentes das garagens, e às vezes eles vinham jantar em nossa casa ou íamos jantar na deles. Mas não era como é com Nancy e Bill, quando, com o passar do tempo, os homens começaram a se referir um ao outro como amigos, independentemente da amizade entre as esposas. Era basicamente Deborah e eu. Ela era tão viva, tão franca... Usava túnicas indianas, brincos de prata entalhada, braceletes. Conseguia plantar bananeira. Não sei por que aquilo me impressionava tanto. Foi ela quem disse ao agressivo treinador do time de beisebol infantil que ele era um sádico, e reportou isso em carta à liga atlética da cidade. Ela exigiu que eles acabassem com a separação das ligas de futebol de meninos e meninas, e isso aconteceu também, embora tarde demais para Kiernan e Ruby, que de qualquer forma não teriam se importado muito. “Não estou brigando por meu filho, estou brigando pelos filhos de todo mundo”, ela


falara, furiosa. Glen dizia que ela o lembrava de um adesivo de para-choque que ele vira e que dizia: “Eu amo a humanidade. Só não suporto as pessoas.” Certa vez, no estacionamento do supermercado, eu a vi atacar um homem cuja caminhonete tinha um par de testículos de borracha pendurados no engate traseiro. “Temos crianças nesse carro!”, ela tinha gritado, enquanto o homem ficava repetindo: “Moça, você é maluca.” A discussão se tornara tão alta que os gêmeos, Ruby, Kiernan e seu irmão menor, Declan, tinham começado a chorar, e alguém do supermercado chamara a polícia. A polícia tinha feito o homem tirar aquelas coisas da caminhonete. Em uma minivan cheia de crianças soluçantes, Deborah estava triunfante. Mas quando Ruby, com 7 anos, contara a história à mesa do jantar: — E a mãe do Kiernan gritou e gritou, e deu muito medo, pai, e a polícia veio, e eles tinham ARMAS. Glen me lançara um olhar, e naquela noite dissera: — Não quero nossos filhos nesse tipo de situação. — Ela não aceita desaforo — eu respondera. — Há uma diferença entre ser assertivo e procurar confusão — retrucara Glen. — Não sei como Kevin aguenta. Talvez fosse por isso que Glen não gostasse muito de Kevin, e também por já existirem boatos de que Kevin gostava mais das mulheres dos outros que da própria. Foi Glen que ouviu Deborah gritando naquela noite de verão, quando Kevin tinha ido a algum lugar, provavelmente à casa de alguém, para a cama queen size e para a mulher de alguém. Estávamos comendo na mesa do quintal, e Débora estava na casa vizinha, na cozinha, com as portas de correr da varanda abertas de forma que pudesse ficar de olho nos dois filhos. Kiernan estava flutuando em uma boia na piscina, e Declan estava em outra em formato de barco com alças de segurança de lona dentro. Declan tinha 2 anos na época, um plácido menininho de cabelos claros


fascinado pelas crianças mais velhas. Ninguém jamais entendeu exatamente o que houve, embora pareça provável que ele, de alguma forma, tenha se soltado das alças, deslocado seu peso e, silenciosa e repentinamente, escorregado para o fundo. Em um momento, Deborah dizia depois, aos prantos, ela estava fazendo caretas para seu menininho, e no outro, ele tinha sumido. Lembro-me de flashes de imagens desse dia: Deborah soltando gritos altos e agudos; Glen levantando-se tão repentinamente de nossa mesa no pátio que sua cadeira caiu sobre o concreto; nossos três filhos observando enquanto ele corria para o quintal dos Donahues e subia os degraus do deque da piscina. Durante todo o tempo, Kiernan flutuava na boia na parte funda, congelado, enquanto Glen mergulhava, colocava Declan no deque e se ajoelhava sobre ele. Houve um instante de profundo silêncio antes que Glen começasse a cuidar do menino, um instante despedaçado. Como Ruby disse, em sua aguda, inocente e precoce voz de menininha: — Mãe, o Declan se afogou? No dia seguinte ao funeral, Deborah seguiu meu carro até a loja de jardinagem. Sua voz estava estranha, como se viesse do fundo de um buraco. — Kiernan pode ficar com você? — Ah, querida, não é uma boa ideia — eu disse, afastando-me do carro para que Ruby não pudesse ouvir. — Ele precisa ficar com você e com Kevin. — Só por algum tempo, Mary Beth. Não posso cuidar dele agora. Seria bom se ele pudesse ficar com você só por um tempinho. — Deb, você sabe que não é uma boa ideia. — Inclinei-me para abraçála, mas ela se enrijeceu e cambaleou para trás, e depois empurrou o centro do meu peito com a mão espalmada, e aqueles olhos verdes tinham cintilado. — Você só é amiga nas horas boas — cuspiu ela.


— Deborah, você sabe que isso não é verdade. Eles mandaram uma equipe de construção preencher a piscina. Em menos de um ano, não se conseguia saber que houvera qualquer coisa no quintal que não grama. E então eles voltaram para a cidade, para outra casa, Kiernan andava mais de 3 quilômetros até a nossa, embora só tivesse 12 anos. — Todo mundo continua exatamente igual — dissera ele quando sentamos para almoçar. Mas, na verdade, Deborah e eu nunca mais voltamos a ser amigas e, depois de algum tempo, não éramos nem cordiais.


Ruby está diferente quando volta do curso de escrita literária. Para começar, ela pede que eu não vá buscá-la. Em vez disso, um rapaz vem trazê-la em casa, a ajuda a descarregar suas coisas na entrada da garagem, lhe dá um beijo casto, um longo abraço e vai embora. É só depois que ele parte que eu saio e também lhe dou um abraço, mais apertado e mais longo, do qual minha filha se desembaraça lentamente, com um sorriso, como se estivesse tirando um casaco pesado em um dia quente. — Ele é só um amigo — afirma ela. — Respondendo a sua pergunta. Ela parece mais tranquila, e também mais feliz. Tem dois diários cheios de poesias. Diz que seu professor não aprova que se escreva poesia no computador. Diz que mandou três poemas para revistas pequenas e que está esperando respostas. — Assim que receber as cartas de recusa, os enviarei de novo — diz ela calmamente. Ruby está usando sua voz enganadoramente gentil comigo, e não estou gostando. É como se ela estivesse madura a ponto de superar a necessidade de me contestar, o que, temo, está a poucos passos de me superar inteiramente. Às vezes, penso que a essência da vida das mulheres é se apaixonar por pessoas que irão partir. As únicas variações que consigo distinguir são aquelas mulheres que combatem o amor, e aquelas que combatem o abandono. Para mim, é tarde demais para me encaixar no primeiro tipo, e estou tentando não me encaixar no segundo.


No jantar, diante do gesso de Max e seu inconfundível sistema solar, um pouco da velha Ruby volta à tona. — Legal — diz ela a Max, dando tapinhas no braço engessado, reconhecendo o traço de Kiernan. — Muito sutil. — Você soube de Kiernan enquanto estava fora? — pergunto a Ruby. E ela responde: — Todo santo dia. Ela conta aos meninos sobre o verão enquanto eu e o pai ouvimos. Ela fala sobre sua colega de quarto e sobre seus professores (“Brilhante”, diz respeitosamente, a voz trêmula, sobre o professor de poesia) e sobre um aspirante a escritor de contos com quem parece ter passado muito de seu tempo. — Ele começa Yale na semana que vem — informa ela, e suspeito de que ele é o rapaz que a trouxe em casa. Max franze a testa. Não só ele é leal a Kiernan, como nunca gostou que o irmão ou a irmã tivesse amigos que ele não conhecesse. No ano passado, Alex visitou Colin, seu amigo do acampamento, e depois Colin passou alguns dias em nossa casa. Max estava tão truculento que os dois meninos tinham se mudado para o quarto de hóspedes de forma a evitá-lo. — Não fiz nada contra ele — dissera Colin. E Alex respondera: — Às vezes ele é assim. Ele está assim há semanas, exceto quando Kiernan estava em casa. Seu cabelo está um ninho de ratos, a duas semanas de distância dos dreadlocks. “E daí?” ele resmunga. Rezo para que entre os meninos que estão ingressando no ensino médio, saídos do ensino fundamental, haja alguém que goste de quadrinhos, animação japonesa e bateria. — Então, como foi exatamente que você fez isso? — pergunta Ruby a Max, inclinando a cabeça para o braço dele, depois de perguntar aos dois meninos sobre sua estada no acampamento.


— Caí de uma árvore. — Típico — diz Alex, com a boca cheia de espaguete. Sua história é que ele não comeu nada além de cereal e sanduíches de manteiga de amendoim desde julho. — Por quê? — pergunta Max. — Por que você não diz às pessoas que estava jogando futebol ou algo do tipo? Quem cai de uma árvore? — Pessoas que cagam para futebol — responde Max. — Opa! — exclama Glen. — Você não está mais no acampamento, campeão. — É, como se eu não soubesse. — Max! — diz Ruby. — Não fale com seu pai assim, Max — retruco. — Desculpe, mas alguém poderia fazer o Garoto Lacrosse parar de falar do quanto ele é ótimo? Quer saber, deixe para lá, já acabei de comer mesmo. Ele pega seu prato com a mão livre, vai em direção à pia e o deixa cair. Há pedaços de frango à caçadora, alface e cerâmica italiana por todo o chão. — Ah, não esses pratos. — Ouço-me dizer, e desejo poder recuperar as palavras do sufocante ar de verão e enfiá-las em meu bolso, para sussurrálas mais tarde quando ninguém estiver por perto. Ginger começa a farejar animadamente a comida, agarrando um osso de frango e tentando correr para o cômodo ao lado. Ruby o arranca de sua boca enquanto a cadela ofega. — Não, não, Ging — nega ela. — Frango, não. — Merda — grita Max. — Suba — berra Glen, e Max sai da sala com o som de um batalhão de meninos. Um instante depois, o estampido de sua porta se fechando parece balançar a casa, e Ginger corre, o rabo entre as pernas, para a área de


serviço. — Eu não fiz nada — choraminga Alex. — São os hormônios dele — diz Ruby. — Ãhn... Últimas notícias? Ele é um garoto? — Ãhn... Últimas notícias? Garotos também têm hormônios? Só são hormônios diferentes? — Não quero saber quem tem hormônios — diz Glen, engolindo a comida como faz quando não está contente. — Vamos manter os palavrões sob controle nesta casa. Não vou ceder um milímetro nesse assunto. — É só preguiça — diz Ruby distraidamente. — O quê? — pergunta Alex. — Palavrões. — Você vai mesmo ser escritora? — pergunta Alex. — Vou. — Vai voltar com Kiernan? — Prefiro não falar sobre isso — declara Ruby, levando o prato para a pia. — Max vai odiar você se não voltar. — Max não odeia nenhum de nós — digo. — Max não vai me odiar — confirma Ruby. — Só vai ficar chateado. Ele está passando por um momento difícil. Eu também passei quando comecei o ensino médio. Os olhos escuros de Ruby deslizam da mesa para o teto, para longe de mim, longe de Glen, para o centro das lembranças desconfortáveis. Esse é seu material. Ela me mostrou um dos poemas que escreveu. Diz assim: Juntos comem enquanto o sol cai atrás deles. Mas ele está comendo seus medos, e ela está comendo suas preocupações. Ele está comendo suas horas exaustas


E ela não está comendo nada, porque há muito que engolir. Sua garganta está repleta de suas personas. Nada consegue se espremer por entre eles. Apenas um deles come o que está no prato, não o que está em sua cabeça. Mas todos sorriem uns para os outros enquanto o candelabro forma uma meia taça prateada de luz no pinho polido. Preto para além das janelas, amarelo dentro. Pratos vazios. — Ah, Ruby — eu disse. — A meia taça. — Eu sei — disse ela, dançando parada, uma dança de alegria, do tipo que fazia com muita frequência quando era pequena e parece ter superado. — Eu sei. Assim que escrevi, pensei: é isso. Era como se ela estivesse falando de outras pessoas, alguma outra família, como se a pessoa no poema com as preocupações não fosse eu, o exausto não fosse o pai dela. Onde está a alegria que eu trabalhei tanto para construir? Talvez esteja na meia taça de luz, ou no fato de que ela sequer consiga inventar a meia taça de luz. — Quer ir no Tony’s tomar sorvete? — pergunta Ruby a Alex. Demos a ela seu primeiro carro, um Volvo wagon ultrapassado que Glen comprou de um paciente que estava indo passar a aposentadoria em alguma cidadezinha do sul, onde sempre faz calor. “Volvos têm o melhor índice de segurança do mercado”, Glen dissera a Ruby, mas o rosto dela tinha se iluminado no momento em que vira o carro na entrada da garagem. “Tem tudo a ver comigo”, ela dissera. O que ela quer dizer é que é retrô, incomum, e que nenhum outro estudante do ensino médio vai ter um. Ela pendurou um rosário de cristal azul no espelho retrovisor; ele absorve a luz e devolve seus fragmentos sobre o painel. Ruby leva os meninos à escola todas as manhãs para que eles não tenham que pegar o ônibus, que,


eu soube, é inteiramente povoado de babacas. — Ãhn... quero? — responde Alex, como se ainda estivesse tentando entender o truque por trás da nova irmã solícita. Ele sobe para chamar Max e desce sozinho. Ruby dá de ombros e pega as chaves do carro no prato ao lado da porta. — Talvez o Sr. Huntington estivesse certo sobre Max — digo. — Talvez alguma coisa esteja realmente errada. — Quem? — pergunta Glen. — O professor de bateria. Talvez estivesse certo sobre Max. Talvez ele precise ir a um terapeuta. — Ah, pelo amor de Deus, Mary Beth — retruca Glen. — Ruby está certa. São os hormônios. O rosto dele está horrível, ele precisa se barbear. Está cheirando como um zoológico no verão. Ele vai sair dessa. Esse é um passo à frente para Glen. O pai dele tinha uma verdadeira enciclopédia de sentimentos estoicos. “Vou lhe dar algo por que chorar” era seu preferido. — Ele me falou que quer ter seu próprio quarto — informo. Quando perguntei a Max se tinha discutido isso com Alex, ele respondeu monotonamente: “Ele não vai se importar.” Acho que ele está certo. — Mimado — diz Glen, balançando a cabeça. — Essas crianças são mimadas demais. Eu dividi um quarto com dois irmãos até ir para a faculdade. Fui para aquele quarto minúsculo do dormitório e achei que tinha morrido e ido para o Céu porque era só meu. — E você andava 11 quilômetros pela neve para chegar à escola — digo. — Você é tão bucha... — sentencia Glen, e solta uma gargalhada. Essa é uma das coisas favoritas de Glen, pegar gírias das crianças e deturpá-las com o uso adulto. Há dois anos ele dizia: “Isso é irado” com tanta frequência, que a expressão foi extirpada da linguagem dos garotos para sempre. — Adoro essa palavra, e agora eles nunca vão usá-la — digo.


— Isso é problema deles. Max falou em se mudar para o quarto em cima da garagem, mas esta parece uma péssima hora para ambos os meninos passarem por uma mudança. Imagino Max fechado em solitária alienação, recusando-se a entrar em casa, esgueirando-se até a cozinha à noite para encher a parte da frente da camiseta com comida da geladeira. Visualizo Alex olhando o brilho das luzes no segundo andar, esperando que nós desliguemos nossos abajures e depois saindo sorrateiramente para uma série de mergulhos pelas piscinas da vizinhança. É tarde demais para deslocar Ruby. Ela já está nervosa em relação a seu território. “Você não vai transformar meu quarto em um escritório quando eu for para a faculdade, vai?”, perguntou ela. Aparentemente, a mãe de Rachel já tem planos para transformar o quarto da filha em uma sala de ginástica. Glen vai para a cama cedo, e eu olho alguns projetos de jardins na mesa. Estou sonolenta quando ouço a porta do carro bater lá fora. Alex sobe para tomar um banho, e Ruby põe a chaleira no fogo. — O sorvete não foi suficiente? — Não comi sorvete — responde Ruby. — Alex comeu por nós dois. Ela se senta em frente a mim, o rosto apoiado nas mãos. Seu cabelo está preso em uma trança que lhe desce pelas costas, e ela usa estrelas prateadas nas orelhas. — Kiernan esteve aqui? — Quando? — A qualquer hora. — Não sei com que frequência ele aparece, querida — digo, colocando minhas mãos sobre as dela. — Max gosta de vê-lo. Kiernan foi uma grande ajuda quando ele voltou do acampamento. Ruby se levanta e enfia a mão no bolso de seu macacão. Ela tira um anel de prata. Como seu carro ou a camisa de chiffon de bolinhas que está usando, ou a mistura de raiva e tristeza em seus olhos castanhos, esse


pequeno anel prateado com corações assimétricos tem tudo a ver com Ruby. — Achei isso na minha mesinha de cabeceira — fala ela, deixando o anel cair no balcão, onde faz um som agudo, rodopia e cai. — O que devemos fazer? — digo e, pela primeira vez, estou olhando para ela, falando com ela, de mulher para mulher. — Não sei, mãe. Tenho muita pena dele. A mãe dele é louca e tão escrota... desculpe, sei que você odeia essa palavra, mas é verdade. Fazê-lo frequentar uma escola nova no último ano quando ele já está tão mal? Ele me deixa mensagens, e parece que estava chorando ou que vai chorar, ou está fingindo não chorar. Quero ser amiga dele. Mas preciso que ele me deixe em paz, sabe? Só preciso que ele me deixe respirar. Ele não me deixa respirar. — Ele criou expectativas maiores que as suas — digo. — Não acho. Também era muito importante para mim. Mas, depois de um tempo, comecei a achar que o Kiernan não queria ficar comigo, do jeito que sou hoje. Acho que talvez ele queira simplesmente congelar tudo para sempre. Como, como... como Peter Pan. — E você é a Wendy. — Viu, é isso. Esse é o problema. Eu não sou a Wendy. Eu sou a Ruby. E não sou a Ruby de 5 anos, ou de 15. Sou uma Ruby diferente. E ela começa a soluçar, o tipo de soluço que recusa consolo, e tudo em que consigo pensar é: a vida é difícil. A vida é difícil. Finalmente, ela pega uma folha de papel-toalha, assoa o nariz e enxuga os olhos. — Devo dizer a ele que não é bem-vindo? — pergunto. — Como poderíamos fazer isso? Ele ficaria destruído. Como seus sentimentos são profundos, minha menina madura. Lembrome do momento em que percebi isso. Tínhamos ido a Londres, nós cinco. Foi pouco antes de Ruby começar a definhar, mas ela já estava começando a


se preocupar com coisas estranhas, a perscrutar o âmbito do universo: vida marinha, as constelações. Quando olho para trás, pergunto-me se ela estava imergindo em noções que a faziam sentir pequena antes de realmente dar o passo seguinte e tornar-se menor ainda. Antes de nossa viagem, ela tinha lido uma meia dúzia de livros sobre os Tudors e os Plantagenetas, e perambulou pela nave da abadia de Westminster carregando a árvore genealógica da família real. Os meninos tinham 11 anos, entediados e famintos, sentados ao fundo batendo os calcanhares dos tênis contra o assento de um banco, obrigando-me a repreendê-los sussurradamente. Ruby e Glen estavam parados juntos perto de uma pálida tumba de mármore. Juntei-me a eles e vi que sobre ela havia a figura de uma mulher. — É Elizabeth — disse Ruby. — Não é terrível pensar que ela está ali embaixo, morta? E Shakespeare, Charles Dickens, Henrique VIII, e todos sobre os quais eu li? Estão todos mortos. — Sua voz estava se elevando. Um guia de turismo deteve-se, depois voltou a falar em uma voz levemente mais alta. E então Glen começou a falar como se todo o seu coração estivesse nas palavras. Virou-se para Ruby e disse: — Todos os que caminham sobre a terra não passam de um punhado para as tribos que dormem em seu seio. — O quê? — sussurrou ela. — Todos os que caminham sobre a terra não passam de um punhado para as tribos que dormem em seu seio — repetiu ele. — “Thanatopsis”, de William Cullen Bryant. Nem sempre fui oftalmologista, querida. Os versos do poema ainda estavam em um cartão no meio da cortiça de Ruby. Eu apostava que iam acabar em sua página do anuário. Cubro o anel com a palma da mão, sinto-o quente sob minha pele. — Vou pensar em um jeito de lidar com isso — digo. — Não, mãe — responde Ruby. — Eu mesma tenho que devolvê-lo. Só


espero que ele me ouça. Não acho que ele me escute mais. Ambas levantamos os olhos quando ouvimos os passos pesados de Max acima de nós. — Vou levar uns nachos para o Max — diz Ruby, recolocando o anel no bolso. — Ele não comeu muito no jantar. Estou preocupada com ele. — Eu sei. Leve alguma coisa para ele comer. Só certifique-se de que ele traga o prato para baixo depois. — Ah, OK, ele vai trazer — dclara ela, ainda não completamente mudada.


Estamos sentados lado a lado em um pequeno consultório que um dia claramente foi o melhor quarto de uma casa vitoriana a um quarteirão do hospital. Tem uma janela convexa e um teto de latão. Há cortinas de renda cor de chá, mas todo o resto é típico de um consultório médico: uma escrivaninha de madeira, alguns diplomas emoldurados, duas poltronas estofadas marrom-esverdeadas em tecido grosso, do tipo que ninguém usa em casa, do tipo que é feito para durar. Cruzo as pernas e sorrio. Estou usando um vestido e carregando uma bolsa de verdade, em vez de uma sacola de lona cheia de tesouras e pás. Essa é minha roupa de boa mãe. Posso ter usado o mesmo vestido quando nos encontramos, não muito longe daqui, com a mulher que ajudou Ruby a voltar a comer. “Acho que esta é uma situação remediável”, dissera ela. — Quem usa a palavra remediável? — perguntou Glen depois, com raiva, no carro. “Isso é menos sobre imagem corporal que sobre o senso de autonomia de Ruby”, dissera ela. — Ela é uma criança — disse Glen quando saímos com o carro. — Ela precisa de autonomia? Quando Glen está assustado, ele perde a calma. “Onde está o desgraçado do médico?” gritara ele, quando eu tinha abandonado minha respiração ritmada e começado a gritar na hora em que Ruby estava nascendo. “O


desgraçado do médico está aqui, Dr. Latham”, dissera o obstetra, calçando as luvas. Estou sem fôlego de tanta ansiedade. Certa vez, quando eu tinha 13 anos, quebrei um frasco de perfume que ficava sobre a cômoda de minha mãe. Não me lembrava de vê-la usando o perfume, que parecia uísque e tinha um cheiro tão misterioso e exótico quanto sua cor ambarina sugeria. Mas eu não conseguia me lembrar de uma época em que o frasco de cristal lapidado não estivesse sobre o lado direito do paninho de renda, junto a um conjunto de escovas de prata do lado esquerdo. Eu puxei uma gaveta e o frasco bamboleou e se espatifou no chão, enchendo o quarto com o sufocante odor. Deixei os pedaços lá, e quando, mais tarde, minha mãe gritou severamente “Mary Beth”, sentei-me na beirada da cama, o cheiro deixando-me enjoada e tonta, e disse que não podia imaginar como uma coisa daquelas tinha acontecido. Muitos anos depois, ocorreu-me que, talvez, minha mãe tivesse dado tanta importância àquilo porque meu pai lhe dera o perfume, mas na época eu insistira que não tinha feito nada errado, mesmo diante da evidência. Aquele sentimento é o mesmo que tenho no consultório. O nome dele é Pindaros Vagelos. Nancy me disse que ele é o psicólogo que tratou uma garota da turma de Fred que tentou se matar no primeiro ano do ensino médio, ainda que a mãe insistisse que fora um acidente. “Pulsos cortados acidentalmente depois de trinta Xanax... não se vê isso com muita frequência”, Nancy dissera em um tom muito cruel. Aparentemente, a jovem agora estava tendo um desempenho brilhante em uma das faculdades mais prestigiosas de artes e pensava em fazer medicina. — Provavelmente vai fazer psiquiatria — disse Glen no caminho para o consultório do Dr. Vagelos. — Todos os malucos fazem. As garotas bonitas fazem dermatologia. Os atletas fazem ortopedia. — E os oftalmologistas? — eu disse, mas não era um bom dia para


tentar caçoar dele. “Acho que sim”, Max dissera quando tínhamos perguntado a ele se ele gostaria de conversar com alguém sobre o que estava sentindo. Os pintores tinham acabado de colocar uma cor mostarda no quarto de hóspedes, que Ruby disse que podia muito bem ser chamada de Amarelo Depressão, e a mobília de Max tinha sido transferida de um lado do corredor para o outro. Ele ficou com o velho beliche, pois pareceu não se importar com a cama de casal como Alex. Havia algo muito triste naquele beliche, a cama de baixo desfeita e desarrumada, a de cima muito bem-feita, esperando pelos amigos que, ao menos por ora, não dormiriam ali. Depois de apenas duas semanas de aulas, um orientador telefonara para dizer que Max era um “aluno problemático” e que vários de seus professores tinham reportado que seu dever de casa não estava completo. O gesso fora retirado, mas ele ainda mantinha o braço em ângulo reto ao lado do corpo, e sua caligrafia estava confusa e ilegível. “Alguém entrou em meu quarto?” ele perguntava, se eu esvaziava o cesto de roupa suja ou retirava os pratos sujos da mesinha de cabeceira. Às vezes, eu jurava que estava sozinha em casa, mas então ouvia o leve rangido de uma tábua do chão. Na semana anterior, ele finalmente deixara o quarto depois da escola para vir aqui, para ver o Dr. Vagelos, para declará-lo aceitável. — Como ele é? — perguntei. — Ele usa óculos — disse Max, indo com um pedaço de torta para o segundo andar. Estiquei a mão para tocá-lo, e ela deslizou pelo braço dele como se eu tivesse acertado o corrimão. Óculos, barba, uma leve corcunda, um cardigã: estava tudo no nome. Por isso, eu e Glen ficamos surpresos quando um jovem em uma camisa listrada, desabotoada no pescoço, abre a porta de carvalho envernizada. Ele sorri enquanto aperta nossas mãos e nos acomoda. Trinta e cinco anos, talvez 40, jovial, usando os óculos retangulares de armação preta que eu associo a arquitetos moderninhos. Meu coração afunda.


— Tivemos duas boas sessões — informa ele sobre Max, reclinando-se levemente em sua cadeira. — Não quero parecer insensível, mas tudo isso me cheira a puberdade — diz Glen, entrelaçando os dedos no que tomo como um gesto de médicopara-médico. — Eu passei a maior parte do ensino médio deprimido. — Isso é interessante — declara o Dr. Vagelos. — Não clinicamente deprimido. Mas você entende o que quero dizer. As garotas não gostam de mim, eu não gosto de álgebra, meus pais são um saco. — Acha que Max pode estar clinicamente deprimido? — pergunto. Nancy me disse que os remédios são maravilhosos hoje em dia, embora eu não possa imaginar como ela sabe disso. Seus filhos funcionam a base de endorfina e leite. — Existe alguém na família de algum de vocês dois que sofra de depressão? —pergunta o médico calmamente. Minha apática mãe, o peripatético irmão dele, meu irmão compulsivo por trabalho, o pai alcoólatra dele. — Não — diz Glen. — Talvez — digo. — Não diagnosticados. — Vejam — avisa o Dr. Vagelos —, por que não me dão algum tempo para conhecer Max melhor? Tivemos duas boas conversas. Ele me parece disposto a falar. — Não conosco — digo. — Ele pode estar com medo de preocupá-los. — Ele está nos preocupando por não falar — comenta Glen, e ouço um leve estremecimento em sua voz. Lá se vão a puberdade, as garotas e a álgebra. Para o proveito de nossa união, ele lida com o estoicismo, e eu, com a preocupação. Em horas como essa, eu quero a parte dele. — Ele ama muito vocês dois. E ama a irmã e o irmão. — Ele disse isso? — pergunto.


— Disse. Mas também disse, e lhes conto porque ele me autorizou, que se sente um perdedor. Especialmente se comparado ao irmão. — Ele baixa os olhos para o bloco de anotações. — Seu irmão, Alex. — Isso é ridículo — afirma Glen, a voz forte novamente. — Nós nunca indicamos de forma alguma que Alex é superior a Max. — O relacionamento de gêmeos é complexo — explica o médico, e de repente lembro-me de um dia em que eu estava sentada em uma cadeira de balanço perto da janela, tentando amamentar os dois bebês ao mesmo tempo. As pernas deles estavam entrelaçadas, e ambos tentavam se desembaraçar com os pés. — Eles não gostam um do outro — dissera Ruby solenemente, parada ao lado da cadeira, com o dedo na boca, enrolando um cacho do cabelo. — Claro que gostam, querida — eu respondera. — Eles ficaram juntos dentro da minha barriga todo esse tempo. — Se eles se gostam, por que estão se chutando? — retrucara ela. — Eles são gêmeos fraternos — digo ao médico. — Se os visse juntos, não pensaria sequer que são parentes. — E essa condição tem sua própria gama de problemas, não é? No relacionamento de gêmeos, os problemas de diferença podem ser mais relevantes que os de similaridade. — Só não tenho certeza de que essa seja a raiz dos problemas atuais dele — digo. — Qual é o seu palpite? — pergunta o médico, olhando nos meus olhos. — Acho que ele se sente totalmente deslocado — falo e, chocada e triste com minhas próprias palavras, começo a chorar. — Eu o amo tanto... Não quero que ele se sinta mal por ser quem é. Glen afaga meu braço suavemente. Eu vejo que ele também está chorando. — Realmente acho que ele sabe disso — diz o Dr. Vagelos. — Acho que não precisamos nos preocupar com o fato de Max se sentir valorizado por


vocês dois. Mas a forma como o mundo o avalia pode ser outra questão, que é influenciada pela forma como o mundo avalia o irmão dele. O Dr. Vagelos pega um recorte de jornal sob o bloco de anotações. Eu sei o que é, embora ainda esteja enxugando os olhos. “Latham, destaque no futebol do primeiro ano” diz a manchete. É um artigo do jornal local chamado “Jogador da Semana”, e duas semanas atrás eles escolheram Alex. Glen enviou o recorte para o pai, e este mandou para Alex uma cópia da história em uma enorme placa de madeira. — Max lhe contou que toca bateria? — pergunto. — Sim, contou. E que é um excelente programador de computadores. Mas vocês precisam saber que, em algum nível, ele não sente que seus dons são importantes. E não sente que tem direito de ter sentimentos negativos. Essa é outra das razões por que ele não se sente confortável de debatê-los com vocês. Ele diz que tem uma ótima casa, ótimos pais, ótimos irmãos, e que deveria estar feliz por isso tudo. De certa forma, ele está tão angustiado pelo que entende como a inadequação de suas emoções como por qualquer outra coisa. Uma das frases que ficou repetindo foi “Não consigo evitar”. — Então talvez seja químico — digo. — Essa certamente é uma possibilidade que vou considerar. Mas ainda temos um longo caminho pela frente. Eu queria falar com vocês, e ele queria que eu falasse, para dizer-lhes que achamos que podemos trabalhar juntos. — Nós agradecemos — fala Glen. — Você foi muito bem recomendado. Estou impressionado que tenha pensado em recortar a notícia do jornal. — Eu não a encontrei sozinho, Dr. Latham. Max a trouxe para mim, acho que para me mostrar o que estava enfrentando. Ele tinha outro exemplar que ficou com ele. — Juro — digo, tentando rir — que nunca os vesti com roupas iguais. O Dr. Vagelos sorri novamente. Ele tem um sorriso caloroso; seu rosto inteiro sorri, especialmente os olhos.


— Como falei, às vezes a diferença pode ser um problema maior que a semelhança. — Obviamente, você refletiu muito sobre o fato de ele ter um irmão gêmeo — diz Glen. — É minha especialidade. Desculpe, presumi que vocês sabiam. Presumi que era por isso que tinham mandado Max para mim em vez de para outra pessoa. — Eu não fazia ideia — digo. — É uma relação estranha e misteriosa — fala ele, baixando novamente os olhos para o bloco de anotações. — Pensem sobre isso: ambos os gêmeos ouvem os batimentos cardíacos da mãe no útero. Mas, por uma mera questão de posicionamento, às vezes um deles ouve com menos intensidade que o outro. E, ao pensar nisso, começo a chorar outra vez. Ele se levanta para me entregar um lenço da caixa que fica no canto de sua escrivaninha. Tanto eu como Glen nos levantamos ao mesmo tempo, como se estivéssemos fazendo ginástica. Em vez de estender a mão, desta vez o médico inclina-se para tocar cada um de nós no antebraço. — Acho que Max e eu podemos trabalhar bem juntos — repete ele. Na porta, Glen volta-se e diz: — Por que você se especializou em gêmeos? — Eu tenho um gêmeo — informa o Dr. Vagelos, e faz um gesto em direção a uma foto na estante de dois homens lado a lado com os braços em torno um do outro. À distância em que me encontro, não consigo distinguir os rostos, mas é fácil perceber que um deles é mais baixo que o outro. — Seu irmão lhe ensinou tanto sobre diferenças quanto sobre semelhanças? — digo com uma risada. — Meu irmão tem síndrome de Down — comenta ele. — Então, sim. Nenhum de nós dois fala no carro enquanto passamos pelo hospital e viramos na Main Street. Alguém buzina, e ambos levantamos as mãos para


acenar. — Quem era? — pergunta Glen. — Não faço ideia. Contornamos uma obra na estrada e viramos em nossa rua. A traseira de meu caminhão está repleta de crisântemos, um cobertor amarelo e laranja. — Quantos anos ele tem, uns 16? — pergunta Glen, olhando diretamente para a frente enquanto o carro para no meio-fio. — É mais novo do que eu imaginei — digo. — Gostou dele? Glen faz que sim com a cabeça. A gola de sua camisa está virada atrás, e eu a ajeito. — Tudo o que me importa é se Max gosta dele — responde.


Max está responsável por nossa festa de Halloween, que se tornou tão tradicional que, quando sugeri, certa vez, que não a fizéssemos, minha família se comportou como se eu tivesse blasfemado na igreja. — Mãe — dissera Alex de maneira categórica —, se não fizermos uma festa, o que as pessoas vão fazer no Halloween? É claro que nem todos na cidade vêm a nosso Halloween, embora nos últimos anos, conforme os amigos dos meninos passavam a trazer os próprios amigos, as namoradas, às vezes até mesmo os pais, começou a parecer que sim. Quando dirijo até o mercadinho para comprar mais gelo, ou mais marshmallows para o chocolate quente, vejo várias famílias fazendo o que fazíamos há muitos anos: adultos andando lentamente pela calçada, às vezes com um bebê vestido de abóbora ou um anjo apoiado no quadril, enquanto na frente correm princesas, piratas, esqueletos e fantasmas. Consigo saber há quanto tempo estão na rua pela sombra cinzenta na bainha do vestido de cetim branco, pelos passos vagarosos conforme a bolsa cheia de doces se torna mais pesada, pelo humor das mães e pais parados na rua: só mais quatro casas e, juro, vamos para casa. Ruby adorava o Halloween, adorava ir dançando pela entrada da casa de estranhos e anunciar, suas consoantes precisas: “Eu sou a Bela Adormecida.” Ou a Pequena Sereia. Ou uma bailarina. Glen e eu carregávamos um menino cada um naquele primeiro ano, um vestido de coelho, o outro de gato. “Doutor Latham!” uma ou duas pessoas mais velhas


disseram quando olharam por cima da cabeça de Ruby para nós dois esperando do outro lado do gramado. “Vejo você no mês que vem.” Mas quando Max fez 4 anos, a rotina se alterou. Ele não se aproximava mais das casas de estranhos. Ficava na calçada, vestido de bombeiro, com um chapéu tão vermelho e brilhante que conseguíamos ver o reflexo distorcido de nossos rostos na superfície, e se recusava a ir em frente. Às vezes, durante as semanas seguintes, ele nos dava indiretas na hora do jantar ou antes de ir para cama: Não deveríamos ir a casa de estranhos. Não deveríamos falar com estranhos. Não deveríamos aceitar doces deles. — No Halloween não tem problema — dizia Alex. — Ganhei doces bons, e não sei por que tive que dar alguns para você porque você estava assustado demais para ir. — Maxie, eu já saio no Halloween há muito tempo, e nada de ruim acontece. É legal! Você vai gostar! — acrescentava alegremente a Ruby de 7 anos, com a mesma voz que usava para dizer a ele como a escola seria maravilhosa. Max balançava a cabeça. No ano seguinte, ele vestiu sua fantasia e ficou em casa. Fiquei com ele enquanto entregava barras de chocolate Hershey’s para as outras crianças. Então ele colocou três barras de chocolate em sua própria bolsa, depois trocou com Alex por um doce de manteiga de amendoim. Ruby se recusou a trocar. Ela tinha perdido a paciência. Assim nasceu a festa de Halloween. Não era como a explicávamos aos outros. Um desastre nos deu cobertura. Quando os meninos estavam no primeiro ano, na Noite das Travessuras (“que é um nome adoravelmente poético para uma terrível destruição em massa”, dissera Nancy, que acabara de se tornar minha amiga na época), quatro calouros do ensino médio decidiram derrubar um poste acorrentando-o ao engate traseiro de um trailer. Eles realmente derrubaram o poste, que arrebentou a traseira do veículo e machucou a cabeça de um dos meninos, que passou quase oito meses em um centro de reabilitação aprendendo a amarrar os sapatos e a


reconhecer o alfabeto. O conselho municipal impôs um toque de recolher às oito na Noite das Travessuras e no Halloween para qualquer menor de 21 anos. “Isso tem que ser inconstitucional e, tipo, completamente ilegal”, algum adolescente irá dizer em nossa cozinha em algum momento do começo do outono. Mas ninguém fez nada a respeito em todos os anos desde que a medida entrou em vigência. Os pais das crianças pequenas, cansados das reclamações sobre pés doloridos e bolsas pesadas, as levam para casa muito antes disso. Os pais das crianças mais velhas estão felizes por ter outras pessoas para assumir a responsabilidade de tirá-las da rua em um horário razoável. Os pais de adolescentes estão encantados que a oportunidade de desordem seja restringida por lei. E foi um golpe de sorte para nós, porque nos permitiu criar a festa de Halloween sem ter que explicar que era porque nosso filho tinha pavor de pedir doces na vizinhança. Nossos amigos traziam doces e os filhos fantasiados. Havia piñata de abóbora e maçãs no barril. Montávamos uma saudável casa assombrada no porão, com uma bruxa iluminada que soltava risadas contínuas e um fantasma que voava em uma tirolesa. Max tinha permissão de ver tudo à luz do dia antes da noite da festa, para que não ficasse com medo. Agora as crianças são todas velhas o bastante para vir sozinhas, mas a maioria dos pais ainda aparece, trazendo abóboras de plástico cheias de chocolates e balas. Alguns deles até se arrumam. Glen usa um terno preto e uma máscara de quem quer que seja o presidente na época. Alex sempre usa o que considera uma fantasia de homem decidido; este ano ele é um membro do Boston Red Sox, o que dificilmente deveria contar como fantasia. A fantasia de Ruby sempre se parece mais com uma declaração de estilo: este ano ela é um menino vendedor de jornais da virada do século, com o cabelo sob uma boina e calções presos por suspensórios vermelhos. Ela já tinha tudo de que precisava em seu armário.


Max aparenta estar um pouco melhor esses dias, ou, pelo menos, não estar pior. Não tem havido mais telefonemas da escola, e agora que estão em quartos diferentes, ele e Alex parecem mais civilizados um com o outro, embora Ruby diga que Alex ainda ignora o irmão na escola. — Acho que só porque eles são gêmeos, todo mundo acreditava que seriam sempre amigos — disse ela com pesar. — Você falou com Max sobre isso? — Ele mal fala comigo, mãe. Espero que supere isso antes que eu vá para a faculdade. Senti um terrível nó na garganta. — Ah, Deus, espero que isso aconteça muito antes — respondi. Fico aliviada ao olhar pela janela da sala de jantar ao anoitecer e ver um robô prateado na entrada entregando barras de chocolate para as crianças pequenas, algumas das quais dão tapinhas em seu grande corpo retilíneo. Max ainda gosta de distribuir doces para os menores caçadores de guloseimas. A fantasia de caixa é sua especialidade. Em um ano ele foi um conjunto de dados, no outro, uma caixa de lápis de cor. Sua maior façanha foi uma geladeira, com uma porta que se abria, embora parecesse pronta a se soltar a qualquer momento. Dentro havia prateleiras de papelão com algumas embalagens vazias: leite, iogurte, um vidro de picles do lixo, e, acima dos víveres, o rosto de Max, espiando de onde estaria o compartimento do freezer. O robô cambaleia em direção à casa para pegar mais doces. Eu aceno. Ele levanta uma mão calçada com uma velha luva de esqui pintada de prateado. Está andando de maneira rígida, um autêntico autômato. Deve têla confeccionado na garagem, ou a casa estaria fedendo a tinta spray. — Excelente fantasia — grito. Abafado pela caixa, eu ouço: — Obrigado. O gramado está enfeitado com talos de milho entrelaçados com ráfia e


grandes pilhas de cabaças e abóboras. Há amplos vasos de terracota com crisântemos dourados de cada lado da porta da frente. Estou feliz que tenhamos feito isto. Às vezes penso em ter netos que acreditarão que as pessoas sempre faziam festas de Halloween, que zombarão gentilmente do vovô em sua máscara presidencial e se perguntarão por que a vovó não usava fantasia. “Ela nunca usou”, um de meus filhos vai responder. Sei que isso pode muito bem ser um delírio, que é possível que não existam netos, ou que eles vivam a meio mundo de distância, ou que seus pais sejam ocupados demais para dar mais que uma atenção superficial ao Halloween. Antes que as realidades se estabeleçam podemos acalentar nossos delírios. Praticamente no mesmo instante em que coloco os descansos de panela na mesa e as nozes temperadas nas tigelas, os convidados começam a chegar. E são tantos, que em certo ponto não tenho mais certeza de quem está aqui e quem não está. Nancy sempre se veste de bruxa. “Totalmente apropriado”, ela diz em algum momento todos os anos, o cabelo preto sintético caindo ao redor de seu rosto. Sarah está vestida de enfermeira, talvez para irritar a mãe. Estou surpresa de ver a mãe de Ben, Olivia, com seu cabelo louro em cachos e um vestidinho xadrez feminino. Pequena como é, parece uma criança. Ben desapareceu pelos fundos com Alex, mas os três meninos mais novos a rodeiam. Estão vestidos com roupas de urso. — Cachinhos Dourados! — exclamo, rindo, e a abraço. — Este mingau está perfeito — diz ela alegremente, e ambas rimos. É o primeiro ano que ela vem à festa, e sinto-me tocada que tenha se esforçado tanto. Sandy entra com Rachel e está vestida (precariamente vestida) como uma Coelhinha da Playboy. Rachel está usando uma fantasia da Mulher Maravilha, que é basicamente uma fantasia de Coelhinha da Playboy em vermelho, branco e azul. — Uau — digo a Rachel, que cora intensamente. Eis o que sei sobre se vestir como sua filha adolescente: ela sempre vai


ficar mais bonita que você. Olho em volta em busca de Ruby. — Você viu sua amiga? — pergunto a Sarah, que está ouvindo o coração de Eric com seu estetoscópio. — Acho que ela subiu. Seu cabelo fica saindo do chapéu. Talvez ela faça uma trança. — Como está o coração dele? Sarah ouve cuidadosamente. — Ele não tem coração. Eric diz: — Eu dei meu coração para você. — Oooooooooooooohhh. — Sarah e eu suspiramos juntas. — Você é tão esperto... — admite Sarah. O macarrão com queijo está acabando, e eu tiro outra travessa do forno. Glen está comendo presunto com as mãos. — Faça um prato — peço. — Estou só beliscando — fala ele. Levo o lixo para fora pelos fundos e vejo que a maioria das crianças de uma determinada faixa etária está parada no quintal, metade fantasiada. Ben abriu o zíper de sua roupa de urso e a baixou até a cintura. Pelo menos desta vez não choveu, a grande catástrofe do Halloween. “Nãããão”, Ruby gemia se a fizéssemos usar uma capa de chuva sobre as lantejoulas e o cetim. Meus dois filhos estão conversando com um pirata com uma enorme argola dourada e longos cachos pretos meio escondidos por um lenço amarrado. Pelos buracos dos olhos de sua máscara, vejo o brilho do verde. — Aaarrrggh! — grita Kiernan em uma voz de pirata. — Quinze homens no caixão. Cara, está certo? Quinze? Dezesseis? — Ele está brandindo uma longa espada de plástico. Ele cutuca a frente do robô de Max. — Quantos homens mortos no caixão? Deixo o lixo na lateral da casa, volto e toco seu braço. — Macacos me mordam! — diz Kiernan.


— Para você também — respondo. — Como está a escola? — Bem — informa ele. — Como está sua avó? — Meio louca. Ops, desculpe. Não posso dizer isso. Está na mesma. Eric e Sarah saem. — Ahoy, companheiros! — grita Kiernan. Repentinamente, como o estrondo de uma porta batendo, ficamos sem assunto. Conheço esse garoto há todos esses anos, e agora não há nada sobre o que possamos conversar que não seja perigoso: sua mãe, seu futuro, seu pai, seus sentimentos, minha filha. — Você comeu? — pergunto. É o que as mães dizem quando não sabem o que falar: “Você comeu?” — Não, não estou com fome. Vou sair mais tarde. Só queria passar por aqui. Com tradição não se brinca. Eu falei para o Max que acho que venho a esta festa desde o começo. Quase, mas não exatamente. No ano da primeira festa de Halloween, Kiernan e a mãe ainda estavam morando fora. Mais tarde, Nancy me contou que durante aqueles anos ele tivera terrores noturnos e começara a molhar a cama. Lembro-me de que uma vez ele me disse que o mais difícil era saber que sua vida antiga estava tão perto e, mesmo assim, tão distante dele. Pelo menos agora ele dirige. — Estou trabalhando em um grande projeto — avisa Kiernan. — Sobre o quê? Ele põe o dedo sobre os lábios dramaticamente e se inclina em minha direção. De repente, percebo que ele está bêbado. Yo ho ho, e uma garrafa de rum. — Confidencial — diz ele. Está começando a anoitecer, e alguém lá dentro acende as luzes do quintal. Sob elas, Kiernan parece magro e ossudo, mais esqueleto que pirata. Ginger aproxima-se vagarosamente e ele coça suas orelhas.


A porta dos fundos bate com força, e Ruby esquadrinha o quintal, o cabelo revolto ao redor do rosto, não é mais o garoto do jornal. Finalmente, seus olhos nos encontram, ela contrai a mandíbula e vem em nossa direção. — Querida... — começo, mas ela interrompe, balançando o punho diante do rosto de Kiernan. Ela abre a mão de repente, como em uma mímica de tapa, e lá está o anel com os corações assimétricos. Olho de um para o outro. — Fique... longe... do... meu... quarto — grita ela, tão alto que todos que estão no quintal param de falar. Kiernan pisca por trás da máscara. — O quê? — pergunta ele. — Não se faça de inocente comigo. Tenho tentado ser legal com relação a isso, mas agora está impossível. Eu saio da escola, você está parado na calçada. Eu saio da casa de Sarah, você está do outro lado da rua. — Estamos em um país livre — diz Kiernan. Ginger solta um ganido e se joga contra a perna dele. — Está certo, é mesmo. Então pode ficar onde quiser se o que você quer é que eu fique cada vez mais zangada. Mas não pode entrar no meu quarto. Tenho tentado ser legal com relação a isso, mas chega. — Você tem tentado ser legal? Como se eu fosse algum caso de caridade... Ah, pobre Kiernan, tenho que ser legal com ele? — Kiernan, me deixe em paz. Nós éramos namorados. Agora não somos mais. Eu queria que fôssemos amigos. Agora não quero. Até eu estou perplexa. — Tome o anel — fala ela. — Não é meu. — É seu. — Cara... — diz Eric. Ele e Sarah estão ao lado de Ruby agora. — É, que se dane, estou indo embora. — Kiernan bate a espada de plástico contra a perna.


— Preciso que você siga em frente com sua vida — avisa Ruby, virando as costas para ele. Lentamente, ele levanta a espada e a aponta para ela, estreitando os olhos. — Cara! — repete Eric. — Desculpe, Kiernan — digo. — Acho que você tem que ir agora. — Ela tem que ver como trata as pessoas — replica ele. — Você precisa deixá-la em paz. Lamento. — Você não sabe o que é lamentar — fala ele asperamente, e eu recuo. Então ele desaparece na escuridão. Na manhã seguinte, quando vou acordar Ruby, a fotografia de suas mãos desapareceu de cima de sua cama. No meio da parede há um retângulo mais claro na pintura, e um prego. Os meninos descem para tomar café antes dela. Max teve de cortar um pedaço do cabelo para se livrar de um pirulito que, de alguma forma, acabou em seu travesseiro. — Você dormiu em cima de um pirulito? — diz Alex. — Kiernan está incomodando Ruby na escola? — pergunto. — Ela é uma escrota — resmunga Max. — Ei! — grita Glen. — Chega. Pare com isso. — Ele é louco — afirma Alex, com a boca cheia de cereal. — Maxie, você não pode deixá-lo entrar no quarto da sua irmã — digo. — O que está acontecendo? — pergunta Glen.


Minha mãe e o marido, Stan, vão passar toda a semana do Dia de Ação de Graças conosco este ano, com Alice e o pequeno Liam chegando de Nova York na quinta e ficando até domingo de manhã. Estou tentando não me sentir sobrecarregada com idas e vindas, compras e refeições, deslocamentos e sentimentos não expressos. Para acomodar minha mãe, Alex foi para o quarto novo de Max, abrindo mão de sua nova cama de casal por quatro dias. Ele só está levemente irritado. Minha mãe e Stan estão vindo cedo porque Alex vai jogar futebol em uma grande competição. Todos vamos ao jogo juntos. Alex e Ben são os únicos calouros do time, e Alex é o único que joga. — Você consegue fazer Max ir ao jogo? — perguntou-me Ruby. — Alex quer que ele vá? — Ouvi Alex e Ben falando sobre isso, e Alex disse que a vovó e o vovô estavam vindo, e então Ben perguntou sobre o Max, e Alex pareceu muito que queria que ele fosse. — O que Alex disse exatamente? — Mãe, confie em mim, ele quer que o Max vá. Então perguntei para Alex: — Você quer que o Max vá ao jogo? — Se ele quiser... E depois perguntei a Max, que disse: — Sem chance.


Na noite anterior, Glen falou de repente: — Então vamos todos juntos ao jogo de futebol. — Claro — afirma Ruby. — Pode ser — informa Max. — Legal — concorda Alex. — Isso é incrível — declara Stan, sentado na arquibancada da escola, com as grandes mãos peludas nos joelhos. Ele e minha mãe são casados há quase vinte anos, mais tempo do que ela ficou casada com meu pai, mas ele ainda tem o eterno bom humor de alguém que sabe que sempre será um recém-chegado. — Arquibancadas são muito desconfortáveis — diz minha mãe. É difícil saber se somos mais simpáticos com Stan do que os filhos dele são com minha mãe. Ouço apenas o lado de minha mãe. A filha de Stan disse que ela não é emotiva o bastante. — Nem sei se isso é uma palavra — disse minha mãe, sentada em frente a mim na sala de estar, que nós só usamos para visitas desagradáveis. Nancy, por exemplo, nunca se sentou em minha sala de estar, nem eu na dela. De vez em quando, entro para trocar as revistas nas mesinhas. Às vezes, Glen pega algumas e as deixa no consultório para os pacientes. — Por que ela lhe diria uma coisa dessas? — perguntei. É verdade, claro, mas é como dizer que alguém é gago, só piora o problema. — Ela leu um livro. — Minha mãe, a professora de inglês aposentada diz isso como se nada pudesse ser mais inútil que ler um livro. — Um daqueles livros de autoajuda. Ela diz que temos que verbalizar nossos sentimentos. Por que tenho que verbalizar meus sentimentos? Especialmente se suspeito de que ela não gostaria dos meus sentimentos? — Max está fazendo terapia — deixei escapar. Por que sempre faço isso? Quando minha mãe estava falando da necessidade de me estabelecer profissionalmente, contei a ela que eu e Glen íamos nos casar. Quando me disse que precisávamos viver de maneira simples até que ele conseguisse


montar o consultório, eu a interrompi para contar que estava grávida. — É o problema com comida outra vez? — perguntou minha mãe. — Meu Deus, não. Garotos não fazem isso. Ela balança a cabeça categoricamente. — Vi um programa na TV. Agora eles fazem. — Ela estreitou os olhos. — Ele está magro. — Alex também, mãe. Eles cresceram rápido. Vão encorpar. — Então qual é o problema? — Ele está deprimido. “Que motivo ele tem para estar deprimido, pelo amor de Deus?” é a voz de meu sogro em minha cabeça. Já o vejo no Natal. “Ele precisa cortar o cabelo”, ele dirá sobre Max. “O cortador de cabelos ainda está no porão.” Mas, em vez disso, minha mãe disse: — Provavelmente é uma fase. Mas melhor prevenir do que remediar. Eu pisquei, surpresa. — Não sou contra terapia — acrescentou ela. — Só acho que as pessoas deveriam passar menos tempo lamentando os próprios problemas. Mas você pode pagar. Tudo bem. Esse é o julgamento de minha mãe sobre a maioria das coisas. Está tudo bem. Stan acha tudo incrível. Suponho que juntos atinjam um feliz equilíbrio. — Acho que ele tem que verbalizar seus sentimentos — sugeri. — Haha — disse minha mãe. — Muito engraçado. Alex sempre foi o favorito dela. Ele se parece com meu irmão, Richard, mas sem o peso da responsabilidade que o envelhecera tanto tão cedo. No jogo de futebol, minha mãe se inclina para a frente e esquadrinha o campo atentamente. Seus olhos seguem Alex. Max está sentado com os joelhos separados, a cabeça baixa, os braços ao redor da cintura. Usa um casaco com o capuz levantado. Acho que isso o faz parecer um terrorista. — Você parece um terrorista — afirma minha mãe. Ela puxa o capuz


para baixo e diz: — Você fica bem com o cabelo mais comprido. Só está sem corte, nada mais. Max resmunga alguma coisa e mexe no cabelo com a mão de um jeito que não ajuda em nada. Tenho a fantasia de que vamos à farmácia comprar comprimidos e vai ser como era quando ele tinha aquelas terríveis infecções de ouvido: da noite para o dia, um milagre... sem dor, de volta ao normal. “Tento fazer os pais entenderem que medicação não é necessariamente uma panaceia”, dissera gentilmente o Dr. Vagelos, como se pudesse ler minha mente, mas não julgasse seu conteúdo. — Isso é incrível — repete Stan. — É um dia de outono perfeito. — Estou congelando — declara minha mãe. Glen dá a ela um suéter que trouxemos. Ela o veste, puxa o capuz e lança um olhar impassível a Max. Ele sorri, e de repente eu a amo. Ela fez meu Maxie sorrir. Ponho um braço em torno de seu ombro e a abraço. É como abraçar um manequim. Ela não é muito de contato físico. A filha de Stan também lhe disse isso. Mas ela se vira para mim e diz em um tom de voz que só eu consigo ouvir acima dos gritos da multidão: — Vai ficar tudo bem. Atrás das arquibancadas, ando até onde Olivia está parada com as mãos nos bolsos enquanto Luke, seu filho mais novo, brinca com galhos. Ela me entrega um cookie e come outro. — Não vejo você há semanas — digo. — Estou sempre querendo passar na sua casa com as fotos do Halloween. Mas nunca encontro tempo. Olivia está usando um daqueles casacos impermeáveis e grandes botas de borracha, e penso em como parece britânica, com suas bochechas vermelhas e sua roupa. Seu cabelo claro está preso para trás por um arco de tartaruga. — Eu sei — concorda ela. — Levo meus quatro filhos na escola. Ensino médio, fundamental, educação infantil e creche. Às vezes não sei se estou


indo ou voltando. E esse homenzinho está me deixando louca. — É uma idade muito boa — falo, observando Luke tentar fincar um galho no chão. Acho que ele tem 4 anos, talvez 5. — Sério? — retruca Olivia, com um tom particularmente cético. — Ah, por favor. — Preste atenção à camisa. É uma polo vermelha de mangas compridas. — Ele deve estar congelando — digo. — Ele está usando essa camisa há um mês. Simplesmente se recusa a vestir qualquer outra coisa. Consegui arranjar outra igual, e agora roubo uma para lavar quando ele está dormindo e deixo a outra no lugar. Às vezes ele a cheira com desconfiança. — Ruby usou um tutu por dois meses. — Tenho certeza de que você lidou com isso melhor que eu. — Não, não lidei. Relembro por um instante do quanto me enfurecia ver minha menininha vestida com o que logo se tornara um trapo acinzentado, o filó rasgado, o corpete cheio de bolinhas. — E no fim? — pergunta Olivia, que se detém para falar severamente com Luke, que agora tenta enfiar o galho pela arquibancada e acertar as canelas dos espectadores. — Um dia ela desceu usando um macacão roxo de veludo cotelê. Fiquei quieta porque estava certa de que se falasse qualquer coisa ela subiria correndo e colocaria novamente o tutu. Mas quando Glen chegou em casa, foi logo dizendo: “Ruby, o que aconteceu com seu tutu?” Ela respondeu: “Joguei fora. Estava nojento e eu não gostava mais dele.” — Que Deus lhe ouça. — Como está Aidan? Ben disse que ele estava doente. — Contraiu uma bactéria — fala Olivia, despreocupadamente. — Tomou antibióticos, melhorou.


Observo seu olhar perdido sobre os arrasados campos cinzentos de inverno e acrescento: — Você deve ter saudades de casa às vezes, especialmente durante as festas. — Na verdade, finalmente comecei a pensar neste lugar como lar, agora que vivo em uma casa cheia de cidadãos americanos — diz ela. — Embora ainda não esteja convencida dos encantos do peru. E seria bom se as pessoas parassem de comentar sobre meu sotaque. — Que sotaque? — digo. — Deus a abençoe — declara Olivia, e então sua voz desaparece entre os gritos da multidão. — É melhor voltarmos — grita ela. — Talvez o treinador coloque Ben no jogo por alguns minutos. — Ela pega a mão de Luke. — Se Alex fizesse um gol e você não estivesse lá... desastre! — Eu diria que estava — respondo. — Que jogo incrível — exclama Stan. — Onde você estava? — pergunta Glen. — Estou com fome — informa Max. Entrego-lhe um sanduíche e coloco minha cabeça em seu ombro. Todas as atividades normais me dão esperança: comer, dormir, falar. É como se Max fosse novamente um bebê e eu estivesse registrando seus progressos. — Amo você, meu Maxie — falo. — Também amo você, mãe — admite ele, relaxando um pouco. Por trás das costas dele, sorrio para Ruby, e ela sorri para mim. — Quer metade do sanduíche, vó? — pergunta Max. — Acho que sim — responde minha mãe.


Alice e eu estamos sentadas no chão da saleta, rindo alto. Por sorte, a casa é projetada de forma que o barulho desse cômodo mal chegue ao quarto principal, onde Glen está dormindo há uma hora. Sei disso devido as incontáveis manhãs em que ouvi que os amigos das crianças ficaram até depois da meia-noite, jogando uno, assistindo a filmes ou conversando, manhãs estas em que a última coisa de que eu me lembrava era desligar a luz às dez da noite, e cujo último som que ouvira fora o arrulhar de um pombo no gramado dos fundos. — Não acredito que não ouvimos nenhuma reclamação do meu filho — diz Alice, pegando sua taça de vinho. Levanto a minha para ela. Há sanduíches de peru meio comidos em um prato entre nós. Adoro sanduíches de peru, mas no sábado seguinte ao Dia de Ação de Graças, até eu já estou cansada deles. — Repita comigo: Liam está bem — digo. — Liam pode dormir sem mim. Ele pode até respirar sem mim. — Tudo o que posso dizer é que em casa ele sairia do berço e iria para minha cama — diz ela. — E não fale que ele é velho demais para ter um berço. Eu sei que ele é velho demais para ter um berço. — Ele encontrou alguém mais interessante que você. — Impossível — retruca Alice, bebendo o vinho. — Um dia, ele vai se casar com alguém que achará mais interessante que você — digo.


— Está tentando me deixar mal ou bebeu demais? — Os dois — respondo. — Não tomo tanto vinho assim há anos — diz ela. — Na verdade, você não tomou muito. — Eu sei, mas hoje em dia praticamente não bebo. Imagino ter que ir para um pronto-socorro semiembriagada, ou que a babá sinta alguma coisa em meu hálito. — E quando Liam estava com seus pais? — Pior ainda — retruca ela, olhando para dentro de sua taça. — Eu estava convencida de que teria de buscá-lo no meio da noite. Meus pais são muito despreocupados com tudo o que ele faz. Não falo nada. — Não sou uma daquelas mães mais velhas malucas. Sou um pouco controladora, mas você não pode imaginar como é ser o único responsável. Você tem Glen. Você tem até os outros meninos. Olhe como seus filhos se comportaram com Liam. Alice e Liam chegaram uma hora antes do jantar de Ação de Graças. Nós ouvimos Liam gritando quando a porta do carro se abriu. “Ah, meu Deus”, minha mãe disse enquanto se afastava do fogão. É por isso que fiz de tudo para que meus filhos fossem bem-comportados: para que minha mãe não dissesse essas palavras nesse tom. — Podem ir ajudar a tia Alice? — perguntei aos gêmeos. — Tenho que colocar esse recheio no forno. Cinco minutos depois havia silêncio, e Alice estava na porta da cozinha, as bochechas coradas e os cabelos desgrenhados. Desde que nos graduamos na faculdade, ela tivera muitas personificações: terninho de trabalho, cabelo curto, jaquetas de couro, bijuterias enormes, saltos stiletto. Agora sua aparência está bem próxima ao que era quando tínhamos 20 anos: um suéter largo, jeans, botas sem saltos, cabelos compridos. Ela abraçou minha mãe, depois a mim.


— É incrível revê-la, querida — dissera Stan. Glen lhe entregou um copo de eggnog. — Max e Alex saíram com Liam — disse ela, olhando para todos nós. — Ele estava chorando, Alex disse “carinha” em uma voz grossa, ele parou de chorar e foi com eles. O que aconteceu com seus filhos? Eles estão uns homens. — É uma ilusão de ótica — declara Glen, tirando pedacinhos da pele do peru com os dedos. Alice observou maravilhada o filho ficar quieto durante o jantar de Ação de Graças, brincar de Lego docilmente na saleta com Max, assistir ao futebol deitado sobre Ginger, e depois ir sem se queixar para o quarto de Max, onde foi acomodado no futon no chão. O futon das visitas, como nós o chamamos, para quando as camas estão ocupadas. O plano era que Liam dividisse a cama de Ruby com Alice, enquanto Ruby dormiria no sofá da saleta, mas Liam tomara completamente o partido dos meninos. — Tem certeza, Meensie? — perguntara Alice. — Você não prefere ficar com a mamãe? A mamãe tem uma cama bem, bem grande. — Eu sou grande — respondera Liam. — Ele precisa de irmãos — afirma Alice na saleta, juntando distraidamente algumas peças. — Devo adotar? Alice não vai adotar. Liam não vai ter irmãos. Essa é uma daquelas perguntas que fazemos uns aos outros para que nossos amigos digam que vai ficar tudo bem. — Ele vai ficar bem — declaro. — Ele está bem. Ele é tão fofo... — Seus meninos são maravilhosos; estão tão grandes. E foram muito bons com ele. Quantos adolescentes se dariam a esse trabalho com uma criança de 3 anos? Não digo nada. Detesto mulheres que respondem a um elogio com uma lista dos defeitos de seus filhos. Recosto-me em uma pilha de almofadas.


— Que dia — digo. O rapaz que trouxera Ruby para casa do curso de escrita literária veio visitá-la. Seu nome é Maxwell, mas todo mundo o chama de Chip, aparentemente porque ele vem de uma longa linhagem de Maxwell. — Isso está ótimo — elogia ele no almoço de sanduíches de peru com molho e recheio. — Para mim, a melhor parte da Ação de Graças são as sobras do jantar. E os jogos de futebol. Há ótimos jogos nesse final de semana. — Ruby detesta futebol — informa Max com um sorriso malicioso. — Eu não odeio futebol — respondeu Ruby. — Só prefiro outros esportes. — Eu jogo clube rúgbi — confessa Chip. — Isso sim é um esporte violento — disse Glen, levantando-se para pegar molho de cranberry. — Eu tinha um amigo que abriu um consultório de ortopedia em uma cidade universitária de Ohio; ele me disse que passava um terço do tempo cuidando de jogadores de rúgbi. Disse que havia um nariz quebrado praticamente a cada final de semana. Chip baixou a cabeça com modéstia sobre os restos de seu prato. — Quebrei o nariz duas vezes — informa. — Cara — disse Alex —, sangrou muito? — Demais. O nariz dele não parecia quebrado. Ele era bonito à moda dos príncipes da Disney, com traços regulares e ombros largos. Tinha modos adoráveis. — Muito obrigada, Sra. Latham — agradece ele, quando estava saindo depois do almoço, Sarah e Rachel paradas no meio-fio, confusas com a ideia de um recém-chegado em seu círculo. “Você sabia que se alguém ia fazer isso, seria a nossa Pérola aqui”, Rachel dissera quando Ruby tinha anunciado que Chip apareceria aqui a caminho da faculdade vindo do Cape. — O cabelo daquele garoto é um completo desperdício para um homem — fala Alice agora.


— Shh. Estamos falando alto demais. — E começamos a rir, alto. Em algum lugar da casa ouço uma porta se abrir, e nós duas nos levantamos, Alice desamarrotando o suéter, eu largando a taça de vinho. Alice imagina Liam descendo caindo pelas escadas, gritando “mamãe”, acordando minha mãe e Stan. Eu imagino minha mãe descendo e nos dizendo que não estamos deixando que ela e Stan durmam. Se Glen descer, vou apaziguá-lo com uma fatia de torta de abóbora. Mas é Ruby que se esgueira para dentro da saleta e nos fuzila com o olhar. Ela está usando uma minúscula saia de veludo cotelê com meiascalças e botas de cadarço, e enquanto nos olha, ela solta os cabelos. — Posso tomar um pouco de vinho? — pergunta ela. E eu levanto as sobrancelhas enquanto Alice pede: — Ah, por favor, dê uma taça à garota. Daqui a um ano ela vai estar frequentando festas com barris de cerveja. — Muito obrigada. Isso é muito útil. Você gostaria que eu lhe dissesse o que Liam vai estar fazendo daqui a 15 anos? — Você já não me disse que ele vai me trocar por alguma vagabunda? Ruby voltou da cozinha com uma taça de vinho, usando a bainha de seu suéter para enxugá-la, exatamente como o pai sempre faz. — Você usou mesmo a palavra vagabunda? — diz ela, sentando-se de pernas cruzadas perto de Alice. Ruby é crítica demais para idolatrar quem quer que seja, mas é devotada a Alice. Ela comenta sempre que um livro que Alice revisou recebe uma boa crítica ou entra na lista de best sellers, e uma vez ao ano ela toma sozinha o trem para Nova York e vai com Alice a museus, ao teatro, a restaurantes. A julgar pelo jeito amistoso com que brindam, suspeito de que não é a primeira vez que compartilham uma garrafa de vinho. Ruby acredita que Alice é quem eu teria sido se tivesse escolhido uma vida mais interessante. Uma vida mais interessante que não teria incluído Ruby: esse é o problema com sua análise.


— Então? — pergunta Ruby, não se dando sequer ao trabalho de me incluir em seu olhar. — Então, o que seus amigos acharam dele? — responde Alice, sabendo quanto aquilo é importante. — Eles o adoraram. Adoraram. As meninas, pelo menos. Sabe como são os garotos. Territoriais. Mas acho que depois de um tempo eles o acharam legal. Ele e Eric pareceram ter se dado muito bem. Sarah e Rachel o acharam deslumbrante. — E ele gosta de você — diz Alice. — Ele fez questão de dizer isso. — Sua avó o achou educado — digo. — Ela disse que não ouvia alguém usar “senhor” e “madame” há muito tempo. — Ah, ele trouxe uma coisa para você, mãe. Está na mesa da cozinha. É azeite. Algum azeite muito bom. — Ele não precisava fazer isso. Ele nem sequer vai dormir aqui. Embora eu não saiba onde o colocaríamos se tivesse ficado. — Ele podia dormir na cama de Ruby — sugere Alice. — Pare com isso! — exclama Ruby. — Comigo — acrescenta Alice. — Pior ainda! — Já faz tanto tempo... — fala Alice. — Ah, por favor, pare agora mesmo... é informação demais — diz Ruby. — Concordo — digo. — Ele é exatamente o tipo de garoto de que eu teria gostado na faculdade — Alice diz para mim. — Mesmo? — pergunta Ruby. — Ele tem um cabelo lindo — comenta Alice. — Não tem? Cabelo maravilhoso. — Ruby se recosta nas almofadas. — Por que vocês estão no chão? Nós duas rimos.


— Nós sempre nos sentávamos no chão na faculdade — diz Alice. — Não tínhamos cadeiras — afirmo. — Tínhamos aquelas cadeiras de estudo, mas eram muito desconfortáveis. Ruby vira de barriga para baixo e olha para Alice. Uma expressão de aflição cruza seu rosto, e ela coloca a cabeça entre as mãos. Suas mãos são lindas, com dedos longos e unhas polidas. Ela parou de usar esmalte e bijuterias, usa apenas uma pulseira da amizade feita de fios de seda. Rachel e Sarah também usam, e não devem retirá-las até que soltem sozinhas, embora Sarah tenha que tirar a sua durante as competições de natação. — Ele é chato demais — lamenta-se Ruby. — Shh. Você vai acordar a casa toda — digo, mas Alice começa a gargalhar. — Ele é chato mesmo — afirma Alice. — É um bom garoto — digo, indulgente. — Chato — fala Alice. — Chato! — grita Ruby. — Há coisas piores que ser chato — declaro. — Ser casado — diz Alice. — Chega, Al. — Como eu não percebi quanto ele era chato durante o verão? — exclama Ruby. — Havia muitas garotas interessadas nele? — pergunta Alice. — Sim. — Bingo! — Não sou tão superficial — comenta Ruby. — Acho que foi porque ele era muito culto. Ele já leu Aeschylus, Joseph Conrad e Eudora Welty. Foi ele que me disse para ler John Ashbery. — Está bem, querida, ninguém entende John Ashbery — fala Alice. — E ser inteligente nem sempre significa ser interessante. E ser culto nem


sempre significa ser inteligente. Digo isso por experiência. Ouvimos passos na escada. — Viu? — digo a Ruby. — Você está falando alto demais. Ela solta uma risadinha e rola para perto de Alice. — Não é culpa minha — diz ela em um sussurro alto. — É culpa dela. O vinho parece já estar deixando Ruby um pouco tonta. — Você comeu esta noite? — sussurro para ela. — Sobras na casa de Sarah. Pergunte a Nancy se não acredita. Meu Deus. — Não seja escrota — retruca Alice, empurrando-a. Max está parado no vão da porta, piscando, usando uma cueca sambacanção e uma camiseta com GÊNIO escrito na frente. — Essa camiseta é minha — afirma Ruby. — Tia Alice, Liam tirou a fralda e fez xixi no futon. — Ah, querido, sinto muito — fala Alice, tentando se levantar. — Não, tudo bem, tudo bem. Ele só molhou um cantinho, o resto foi no chão. — Ah, não. — Não se levante. Só quero saber onde estão as fraldas dele. Tentei recolocar a velha, mas não gruda mais. Tipo, aquelas fitas. — Achei que ele já sabia ir ao banheiro — digo. — Às vezes acontece um acidente à noite — explica Alice. — Só me fale onde estão as fraldas — pede Max. Os dois sobem. Ruby ainda está deitada no chão, olhando para o teto. — Sou uma desafortunada — admite ela. — Não seja tão dramática — digo. — Posso dormir aqui? — É o único lugar onde você pode dormir. Os cobertores estão dobrados sobre o baú do canto. — No chão, quero dizer. Estou confortável. — Fique à vontade.


Entro na cozinha e apago as luzes. O lugar cheira a peru. Sobre a mesa está uma grande garrafa de um azeite extremamente bom. Os abajures nas janelas das salas de jantar e de estar também estão acesos. Deve haver lua; vejo três galhos em relevo contra o céu, algumas folhas resistentes agarradas enquanto novembro agoniza. Na segundafeira, José virá para remover os talos de milho e as abóboras, e na semana que vem vou começar a pendurar as folhagens e guirlandas. Do outro lado da rua vejo movimento, e me pergunto se um cervo está atravessando para o nosso quintal com a intenção de comer o topo das budleias que ficam na lateral da garagem. Quando desligo a última lâmpada, vejo um homem se levantando dos degraus da frente da casa dos Jackson. Dou um passo para trás inconscientemente. “Você é que sabe”, Rickie dissera na última vez que tinha me trazido em casa, levantando novamente o assunto da iluminação externa. Houve dois roubos na cidade nos últimos dois meses, embora nada importante tenha sido levado: um pouco de dinheiro, algumas joias. Mas quando volto à janela, não há ninguém lá. Percebo, pela mudança na escuridão e nas sombras, que Alice desligou o abajur do quarto de Ruby. A rua lá fora está vazia, um longo túnel de árvores unindo-se sobre a faixa escura de asfalto. A casa está silenciosa, e muito cheia. Ruby está dormindo no chão da saleta, e subo para dormir.


Os quatro retângulos de luz no teto do quarto se alteraram ao longo do outono, movendo-se mais para o canto. Hoje a cor deles mudou também, materializada em um leve azul-prateado. Por um instante, olho com os olhos semiabertos. Não houve alarme, não houve locutor me dizendo que o presidente está em Camp David, que o orçamento ainda está em discussão, que um ganhador do Prêmio Nobel morreu. Interpretei a misteriosa luminosidade corretamente, e o gramado do lado de fora da cozinha está coberto de neve. Começo a fazer o café mais cedo que de costume. É manhã de Natal, e estamos ilhados. O que poderia ser melhor? Uma nevasca é a melhor coisa que pode acontecer a uma família. A força centrífuga da vida diária que nos atira em diferentes direções se aquieta. Glen diz que o carro de Ruby não é estável em tempo muito ruim. Mas quando o tempo está muito ruim o telefone sempre toca logo após o amanhecer, a rede de contatos espalhando seus braços através da cidade para avisar que não haverá aula. Então, não há necessidade alguma de Ruby dirigir. Já houve dois dias de neve neste mês de dezembro, o inverno quase no Dia de Ação de Graças. Na semana passada, cancelei o compromisso com a mulher que estava me esperando para decorar seus corrimãos com galhos de abeto azul e ramos de azevinho, e montar nas cornijas de suas lareiras o tipo de decoração de festas que, antigamente, era feita pelas famílias, e não por paisagistas. “Você não tem um 4x4?” ela perguntou com impertinência


quando eu liguei. A maioria dos pacientes de Glen cancelou. Alex não teve treino de basquete. A revista literária não funcionou por um dia enquanto o prédio da escola, vazio e ecoante, estava sob a neve em um vento uivante. As meninas apareceram para fazer cookies natalinos. Os garotos ficaram em volta, tirando pedaços da massa enquanto Sarah lhes dava tapas nas mãos sujas. Até Max se juntou a nós naquele dia, colocando olhos e sorrisos nos biscoitos de gengibre em forma de homenzinhos, contente por não ir à escola. Seu humor tem melhorando conforme as férias de inverno se aproximam: duas semanas inteiras em casa. Ou talvez suas sessões com o Dr. Vagelos estejam dando resultado. Ele, Alex e Ruby ainda estão dormindo. Antigamente, na manhã de Natal, eles corriam para baixo antes mesmo do amanhecer; agora se contentam em ir calmamente para a sala de estar para ver seus presentes depois das nove horas. Deixo Ginger sair do canil e ela fica parada na porta dos fundos, calculando: qual a menor distância que pode percorrer de forma a manter as patas aquecidas e secas? Ela gane levemente e depois vai até um lugar molhado na entrada da garagem onde a neve nunca se acumula. Ela fareja a porta da garagem e gane, depois a arranha. — Pare com isso, Ging — peço calmamente, o som perdido entre os suaves montes de neve. Max tinha uma consulta com o Dr. Vagelos no dia em que nevou na semana passada, e ele insistiu em arrastar-se pelas ruas para chegar lá. “Ele é um cara legal”, disse Max ao chegar em casa, e, mais importante, sentouse comigo à mesa da cozinha por vinte minutos, bebericando um chocolate quente, ouvindo-me preencher o silêncio com conversa fiada, sorrindo ocasionalmente. Mas tenho percebido que ele varia depois de uma sessão de terapia, fica bem por um ou dois dias e depois lentamente afunda sob o peso de seu torpor e de sua tristeza. Uma meia dúzia de vezes neste semestre ele faltou à aula, alegando dor de garganta ou de estômago, e dormindo o dia todo. O Dia de Ação de Graças o alegrou porque ele não


precisou sair de casa. Nos anos anteriores, eu teria ficado encantada em ver qualquer uma das crianças se dedicar aos avós, em ouvir Max rir enquanto lutava com Liam no chão. “Fiquem à vontade para convidar qualquer um de seus amigos”, eu dissera animadamente aos três, mas Ruby entendera o que eu queria dizer. — Mãe, ele não tem nenhum amigo agora — disse ela, e eu levantei a mão para repelir o golpe. — As coisas vão melhorar — continuou, agora me abraçando. Pouco antes do feriado de Natal, tivemos reuniões com os professores. Como Max tinha se esquecido de nos inscrever e Alex o fizera com atraso, começamos com Ruby. Sua orientadora tinha uma pilha de bilhetes de outros professores, mas todos diziam a mesma coisa: aluna exemplar, participa das aulas, cumpre as tarefas. — Eu estou achando-a muito distraída nos últimos tempos — disse ela. — Mas acho a maioria dos veteranos distraída. Aprendi a ser tolerante em relação a isso. — Então não há nada com que devamos nos preocupar? — perguntou Glen. — Ruby é a menor de minhas preocupações — disse a professora com um sorriso. E a menor das nossas. Alex também é distraído. — Se não incluir uma bola, ele não se interessa — disse a orientadora dele, que também ensina matemática aos dois meninos. — Estou tentando criar exercícios para ele e para Ben que incluam esportes. — Média de rebatidas? — pergunta Glen. — Isso é um pouco rudimentar para o que estamos trabalhando. Para Max, nós nos encontramos com a conselheira escolar. Os professores dele, ela disse, ainda sentiam-se preocupados, embora mais satisfeitos, já que ele estava fazendo terapia. — Ele não parece interessado — acrescentou ela gentilmente.


Max, o Mudo se transformara em O Homem de Lugar Nenhum. Uma vez ele chegou perto de ter uma briga com um dos companheiros de time de futebol de Alex que o chamara assim. — Vocês têm que dizer a ele para se acertar — disse Alex uma noite durante o jantar, quando achou que o irmão não estivesse ouvindo, e Max viera descendo a escada aos tropeções, o rosto furioso, e gritara: — Como você sabe o que é o certo, seu escroto? E depois subiu correndo antes que nós sequer pudéssemos proferir nossas objeções. Ligo a árvore de Natal e observo as luzes brancas produzirem faíscas na superfície das bolas prateadas. Tenho uma meia dúzia de clientes agora que me contrata para decorar suas árvores; tenho um que tem três árvores, uma na sala de estar de pé-direito alto, uma na saleta de paredes de madeira, e outra na imensa cozinha. Eu entrei nesse negócio porque amava seu caráter lento e gradual, a lógica inegável do mundo natural. Agora muito do que eu faço é simplesmente mostrar, uma tentativa de apresentar uma máscara pomposa aos outros. Não há nada menos alegre que decorar a árvore de Natal de alguém que você mal conhece. Dois bolos de frutas suíços passaram a noite crescendo em cima da geladeira. Juntamente com o bolo de carne, essa é a única receita que minha mãe me passou. A família dela era escandinava, embora ela seja vaga em relação a exatamente de onde eles vieram. “Veneração dos ancestrais”, ela tinha denominado quando Ruby fizera um projeto de genealogia. Nós usamos a sala de estar nas manhãs de Natal. Antigamente, ficava cheia de caixas: bonecas, jogos, bicicletas. Havia um frenesi ao nascer do sol. Agora, sento-me à mesa da cozinha, a cadela aos meus pés, tentando decidir quando colocar os bolos no forno para que estejam quentes quando as crianças finalmente se levantarem. Ouço um barulho lá fora, uma pancada, um baque, e Ginger levanta a cabeça, fareja o ar, rosna sem convicção e deita-se de novo. Na sala de estar há uma bateria


extremamente cara para Max, com um cartão dizendo que ela vai ser acompanhada pela reforma do quarto em cima da garagem. Ruby tem duas passagens de ida e volta para Londres em sua meia. Alex tem uma bola de futebol em uma caixa de acrílico assinada pelo time olímpico e a melhor raquete de lacrosse disponível. Sinto falta dos brinquedos. — Você poderia ter dormido um pouco mais — diz Glen quando desce às sete e meia, descalço, vestindo velhas calças cáqui e um moletom. — Levantei assim que clareou, pelos velhos tempos. Ele pega uma xícara de café e coloca seus pés gelados sobre os meus. — Isso é maldade — digo apaticamente, mas não os retiro. Ele me beija. Por causa do tempo, seu pai decidiu não vir para a ceia de Natal, acho que ambos estamos aliviados. O pai de Glen deixa Ruby e Max inquietos. “Ninguém nunca enriqueceu escrevendo”, ele diz a ela e pergunta a Max: “Você pratica algum esporte?” Só Alex serve. “Sente-se e conte ao velho suas estatísticas”, ele diz, e com obediência Alex relata gols, assistências, lances livres. Glen praticava esportes quando estava no ensino médio, mas tenho a impressão de que ele, de alguma forma, nunca foi bom o bastante. Seu irmão Doug era zagueiro, mas quebrou o braço no meio da temporada do último ano. “Foi quando ele engordou” seu pai gosta de dizer, ainda que Doug sempre tenha parecido em forma para mim. O cheiro dos bolos assando invade a casa, e a luz azulada que vem de fora, o silêncio das ruas, tranquilas tanto por causa das festas quanto por causa do tempo, a faz parecer uma caverna aquecida e segura. Às vezes me sinto como Max: por que eu desejaria sair? Quando estou colocando o glacê nos bolos, as crianças descem juntas, Ruby parecendo pequena em uma enorme camisola de flanela, os meninos usando calças de moletom e camisetas. Ruby grita, depois chora por causa da viagem à Europa e diz que tenho que ir com ela, o que é exatamente o que eu queria, embora eu pergunte se ela não prefere levar Sarah. Alex vira a bola de futebol para todos os lados, lê os nomes e repete:


— Onde vocês conseguiram isso? — O Papai Noel a encontrou — diz Glen. Somente Max está em silêncio enquanto circula ao redor da bateria. Mas quando coloco o café da manhã na mesa da cozinha, de repente ouço um longo rufar, um estrépito de pratos, e então um riff que parece durar vários minutos. Estou com medo de olhar, com medo de criar esperanças, com medo de ver suas mãos em movimento, mas seu rosto continua sem vida. — Ele vai acordar o quarteirão inteiro — diz Glen. — Não quero nem saber — digo. Espio pelo canto e ele não está exatamente sorrindo, mas seu corpo se movimenta com vivacidade. A bateria foi cara, e eu teria pagado o dobro só por isso. — Neve! — diz Alex quando eles se sentam, naquela reação atrasada que parece refletir a habilidade dos jovens de só se concentrar em uma coisa de cada vez. Ruby vai até a porta e se curva para olhar pelas vidraças. Ela entrelaça os dedos nas costas e se balança para a frente e para trás. Sei que ela quer acertar tudo antes de ir embora. Quer se sentir em paz com Kiernan novamente, ter certeza de que Rachel não vai seguir seus piores impulsos, curar o abismo entre os irmãos. Ela deu a cada um dos meninos um poema de Natal, e o de Max começa com: “Sinto a sua falta, Camundongo. Volte para casa.” Camundongo e Urso, era assim que ela chamava os irmãos quando era bem pequena. Quando perguntei por que, anos atrás, ela fez aquele exasperado estalo com a língua, que a maioria das garotas não aprende até a adolescência, e disse: “Mãe, você sabe.” Eu não sabia. Não sei. Ela sabe. — Vocês querem ir andar de trenó? — pergunta ela sem se virar. A casa tem um tipo especial de silêncio quando neva, como se todas as nossas comodidades modernas tivessem se tornado obsoletas pela primazia do tempo, como se os telefones fossem inúteis, a calefação um


mero conceito de calor, os carros um gesto vazio. Mas para mim o silêncio é enorme neste momento, porque estou esperando para ouvir resposta dos dois garotos, saber se Max vai se juntar a Alex e Ruby, e se Alex vai se juntar a Max. — Estou dentro — diz Alex. — Pode ser — diz Max. Há a habitual confusão para achar calças de neve e luvas. Não importa quantas eu compre, nunca serão suficientes. Parecendo múmias em tecido acolchoado e lã, os três caminham penosamente pela rua até a colina que há no fim. Dois Flexible Flyers e um tobogã. Glen agita as sobrancelhas para mim, e voltamos para o quarto. Ao meio-dia não há retângulos de luz no teto. Eu me inquieto ao pensar em Max quando Glen e eu estamos fazendo sexo, o que parece terrível, mas inevitável. Então, perto do fim, esqueço-me de Max, o que parece terrível de uma maneira diferente. — Estou com fome de novo — diz Glen, depois. Ele toma banho, e eu também. Sem discutir o assunto, chegamos à conclusão de que nossos filhos podiam sentir cheiro de sexo em nós, e que preferíamos que não sentissem. Eles têm ilusões sobre nós, assim como temos em relação a eles. Também estou com fome novamente, e como parte do segundo bolo. Ligo para minha mãe para agradecer pela receita, mas cai na secretária eletrônica. Talvez eles estejam jogando golfe natalino na claridade de uma tarde da Flórida. Ginger solta um latido agudo uma vez, depois outra, e do gramado vem o som de um ronco amortecido. Do lado de fora, José está passando o soprador de neve na entrada da frente. Está usando um gorro de tricô tão enfiado na cabeça que é quase impossível ver seus olhos. Ele dá a volta para começar na entrada da garagem, e eu coloco botas e um casaco e saio com um pedaço de bolo em um prato de papel e uma garrafa térmica de café. Os rapazes gostam de café fraco e doce. Pelo menos disso eu sei.


— Estou surpresa em vê-lo — digo quando ele desliga a máquina. — John me mandou. Não tenho trabalho hoje, só amanhã. — Feliz Natal. Feliz Navidad. — Fico envergonhada pelas últimas palavras e empurro o prato para ele. Com esforço, ele tira suas grossas luvas e o toma nas mãos. Não consegue segurar a garrafa térmica ao mesmo tempo. — Entre — digo finalmente. — Não, patroa, vou fazer uma bagunça. John volta logo, e eu vou com ele e aí eu como. Obrigado. Gracias. Forcei o pobre homem a ser bilíngue. — Quando você vai para casa? — pergunto. — Acho que não vou desta vez — lamenta. — As coisas não vão muito bem. Muitas coisas. — Sinto muito. Posso ajudar de alguma forma? Ele olha para o bolo e, por alguma razão, tenho certeza de que está faminto. — Coma — digo, mas ele balança a cabeça. — Será que eu poderia receber algum dinheiro agora pelo verão? O ônibus é muito caro, e nós estamos com alguns problemas com a menininha, Graciella. Ela tem um problema com suas... — Ele descreve um círculo com a mão em torno da garganta, procurando a palavra — suas glândulas. — Amígdalas? — Sim — diz ele. — Será que eu poderia receber parte do pagamento agora, e depois trabalhar? Estou envergonhada de minha indecisão. Não custaria nada dar a esse homem algumas centenas de dólares. Estou certa de que ele trabalharia pelo dinheiro quando o tempo esquentasse. Mas penso em Luis, em como também achei que ele era um bom homem. Penso no aviso de Rickie sobre adiantamentos, sobre como os homens estão sempre pedindo 100 dólares a


ele porque perderam no jogo ou pedindo emprestado a um colega. No verão passado ele anunciou à equipe que não haveria pagamento sem trabalho. “Sem exceções”, dissera. — Tenho que pensar, José — digo, virando a garrafa térmica nas mãos. — Normalmente não fazemos isso. — Eu sei — diz ele, já resignado. — Não tem problema. Eu peço, mas eu sei. — Tem certeza de que não quer entrar? — Não, patroa. Faço a parte de trás, a entrada da garagem. John vai voltar. — Vocês vão fazer um jantar especial? Não consigo me controlar. Tenho necessidade de saber que essa não é uma vida terrível, de que não sou responsável por uma vida terrível. — Os rapazes trazem coisas do Chalé — diz ele. O Chalé é o resort de esqui no qual eles trabalham durante o inverno. — Ano passado foi bem bom. — Rickie tem uma coisa para todos vocês — digo. — Ele deu ontem. Obrigado, patroa. Cinquenta dólares para cada homem. Rickie sempre tem medo de que eles gastem no bar da autoestrada, aquele com a placa de neon que diz

BIFES, COSTELETAS, CERVEJA. Nancy diz que às vezes as crianças vão lá, e ninguém jamais viu um bife ou uma costeleta. “Nachos de micro-ondas”, ela falou. Eu me pergunto se os mexicanos acham que somos loucos por comer nachos. Uma hora mais tarde, quando estou na cozinha fazendo o almoço, José bate na porta de trás. Ele me entrega um pacote (papel pardo, fita vermelha), e a princípio penso que é dele e fico ainda mais envergonhada. Mas, aparentemente, estava encostado em nossa porta da frente. Não há cartão nem nada escrito do lado de fora. Naquela noite, depois de comermos nosso rosbife com batatas e cookies


natalinos, hinos de Natal combinando-se em um agradável e familiar som ambiente, enquanto Glen e Alex assistem ao futebol americano na saleta, quando Max foi para a sala de estar esmurrar sua nova bateria (“Não toque depois das nove horas”, pede Glen, e eu penso: “Ah, deixe-o tocar até as dez; por favor, deixe-o tocar para sempre”), mostro o pacote a Ruby. É uma fotografia dela. Ela está em algum lugar ao ar livre, e suas mãos estão para cima, quase cerimoniais, como se ela estivesse regendo uma orquestra ou conduzindo um ritual religioso. O sol está atrás dela, então o contorno de seus cabelos é uma névoa, quase um halo. É o tipo de foto, cheia de alegria, vida e beleza, que qualquer mãe adoraria ter da filha, e se as coisas fossem diferentes eu encontraria um prego agora mesmo e a penduraria na parede. Mas eu soube assim que abri que havia alguma coisa errada com ela, alguma coisa triste e assustadora, então esperei até os últimos minutos do dia, para não estragar a felicidade do Natal, a camaradagem, as bochechas coradas do trenó, a tranquila e simples conversa do jantar, a sonolenta e invariável noite. Ruby a segura por um bom tempo, seu rosto sem expressão, tão diferente do rosto da fotografia. Ela parece quase feia à luz do candelabro sobre a mesa, a meia taça de luz. Parece quase velha. Espero que tenha uma reação violenta, mas não tem. Talvez seja um resíduo do dia, ela suspira. Finalmente, diz: — Eu nem sei quando ele a tirou. — Talvez no ano passado? — pergunto. Ela aponta para um pedaço de camisa na parte de baixo da foto, praticamente indistinguível. — Eu a comprei no brechó em setembro. É uma foto bastante recente. — Ela aperta os olhos. — Acho que estou do lado de fora da casa de Sarah. Ele tem lentes com ótimo zoom. Deve tê-las usado. — Ele está perdido, querida. — No mesmo instante em que as digo, as palavras parecem levianas, vazias. Ruby balança a cabeça.


— Mãe, sabe isso que você faz, de tentar deixar todo mundo feliz? Às vezes não deixa ninguém feliz. Você está sempre arrumando desculpas para ele, como se estivesse tentando compensar alguma coisa, como se estivesse tentando consolar o pobre Kiernan por sua vida ser uma droga. E isso me deixa mal, e dá esse direito a ele. — Ele não vem mais aqui. — Ah, mãe, claro que vem. Você que não vê. Aquele anel reapareceu embaixo do meu travesseiro mais duas vezes. — Por que você não disse nada? — Pra quê? Pra você dizer “ele é um garoto muito doce, ele é ótimo para o Max?” — Ah, querida, lamento tanto... Olho novamente para a fotografia. Vejo algo que não tinha notado antes: com o que parece nanquim, Kiernan desenhou o anel de corações no dedo de Ruby. Silenciosamente, indico o lugar, deixando uma marca no vidro. — Claro — diz Ruby. — Vou falar com ele. Seu pai vai falar com ele. — Sabe, no começo eu meio que gostei, tenho que admitir. Era meio que lisonjeiro. Depois ficou irritante. Agora é assustador, como se ele não conseguisse se controlar. Ele sempre foi assim, como se não conseguisse fazer nada pela metade. Essa é uma das razões de eu ter terminado o namoro. Era exaustivo. — Lamento muito. Eu não tinha percebido, não completamente. — Por que perceberia? Por um bom tempo eu estava feliz. Por que você se preocuparia quando eu estava feliz? Quando estamos felizes, tudo o que você vê é a felicidade. — Acho que é o contrário. Sempre acho que quando vocês estão infelizes, tudo o que vejo é infelicidade. — É, também — diz Ruby. Ela se levanta e baixa os olhos para a fotografia.


— O que você vai fazer com a foto? — Ainda nem pensei. — Livre-se disso por mim — diz ela, e sobe.


— Nem pensar — diz Max de dentro de seu quarto, com a porta fechada. — Nem fodendo — adiciona ele em um resmungo. Mal posso ouvi-lo, mas escolho ignorar. Acabei de perguntar se ele quer passar a noite de AnoNovo conosco na casa de Nancy e Bill. Os filhos deles estarão lá, embora saiam assim que der meia-noite, Fred com a namorada, Sarah com Eric, Ruby, Rachel e Bob para uma festa na piscina que alguém organizou no Holiday Inn para os adolescentes mais novos, de forma a mantê-los longe de problemas. Ainda não há toque de recolher para a noite de Ano-Novo, mas se houver mais acidentes de carro nas estradas sinuosas ao redor daqui, é só uma questão de tempo. “Segurança a qualquer preço”, o chefe do conselho dissera ao jornal local. — Talvez devêssemos ficar em casa — digo a Glen. — Vamos sair — diz ele enquanto passa o cinto pelas passadeiras da calça. — Não vamos continuar dando atenção aos humores dele. — Não acho que seja essa a palavra que eu usaria para descrever o que está acontecendo com ele — digo. — Não me importa a palavra que usamos. Vamos à festa. Depois que Max pergunta “Até que horas posso tocar bateria?”, desisto e deixo que ele fique em casa sozinho. Se ele estiver na bateria, pelo menos não estará no quarto, onde eu abro as janelas para o frio ar do inverno e exorcizo o forte cheiro de garoto adolescente sem asseio. Há uma leve marca suja de seu corpo nos lençóis, como no Sudário de Turim. Duas vezes


por semanas, recolho roupas do chão para o cesto de roupa suja e as mando pelo tubo para a área de serviço, onde Ginger as fareja alegremente. Ela também adora os uniformes esportivos de Alex, que são muitos. Número 18 no futebol, número 21 no basquete, número a ser determinado no lacrosse. Alex está em uma viagem de esqui, organizada às pressas, com a família de seu amigo Colin, do acampamento. Suspeito de que um dos colegas de escola de Colin cancelou na última hora, mas sua mãe é agradável ao telefone, e diz todas as coisas certas sobre supervisão paterna na viagem. No final da noite, começo a pensar que Max está certo. Todos os anos, eu e Glen falamos de ficar em casa na noite de Ano-Novo, assistir a um filme antigo, tomar uma taça de Chardonnay, comer um sanduíche e ir dormir às dez da noite. Mas alguém sempre dá uma festa, e parece grosseiro dizer não. Nancy jurou que planejou uma versão mais tranquila do habitual evento vestido-coquetel-e-canapés, mas há quarenta pessoas, réchauds e champanhe infinito. — Metade das pessoas que convidei está no Caribe — diz ela, estourando mais uma rolha na cozinha. — Eu queria estar no Caribe — digo. Minha pele está pálida e um resfriado paira sobre mim. Sarah já escolheu uma faculdade, aquela que tem um novo centro atlético e o melhor time de natação. Ela está parada na mesa do bufê com uma enorme pilha de bolinhos de caranguejo no prato. Eric está sentando em uma das cadeiras da mesa de jantar, inclinada para trás contra a parede, franzindo a testa. Ruby está com um dos lados do quadril apoiado no piano, conversando com um colega de Nancy da universidade, o que ensina filosofia. — Mau pai se formou em filosofia. — Ouço-a dizer, enquanto pega meu olhar do outro lado da sala e levanta um copo. Ela está usando um vestido de renda preta que vai até o meio da coxa. Seus sapatos foram abandonados perto da porta de trás. Suas unhas do pé


estão pintadas de laranja. Eu sorrio e levanto meu copo em resposta, maravilhada por ser mãe dessa linda garota. Um brinde a ela. Quando eu tinha a idade de Ruby, o Ano-Novo era sempre antecipado, sempre decepcionante. Lembro-me do primeiro réveillon que passei com a família de Alice, e de como ela me convencera de que eu conheceria alguém, alguém mais velho, alguém maravilhoso. Em vez disso, um cara de 22 anos com hálito de cerveja tentara me empurrar para dentro de um closet, derrubara molho de estrogonofe em um vestido rosa de seda e eu tinha tomado duas taças de champanhe depois de quatro White Russians e vomitara barulhenta e desordenadamente no banheiro de Alice. Talvez por causa disso, Alice sempre me liga na noite de Ano-Novo. Sua saudação nunca varia: — Toda vez que vomito depois de uma festa penso em você, querida. — Quando foi a última vez que você vomitou depois de uma festa? Um silêncio pensativo e então: — Acho que eu estava grávida. Isso conta? — Não. Você vai sair hoje? — Como elas crescem rápido... Você já ouviu falar em conseguir uma babá no réveillon? Nunca precisamos de babá. Em nossos círculos, as crianças eram todas da mesma idade; nos as levávamos conosco, enfiávamos umas nos berços das outras, levávamos seus corpinhos adormecidos para o carro depois que a bola caía na Times Square. Elas adormeciam sem esforço, profundamente, nunca acordavam com os gritos, as risadas, o refrão deturpado de “Auld Lang Syne”. Uma vez, Nancy me mostrara uma notícia de jornal sobre um bebê que tinha sufocado sob os casacos em uma festa. “Já tive meus momentos, mas acho que veria uma criança de 2 anos antes de jogar meu casaco na cama”, ela dissera. Uma vez colocamos casacos em cima do pequeno Declan Donahue enquanto Ruby e Kiernan saltitavam ao som de música soul antiga na sala


de estar e os gêmeos dormiam no sofá. Mas o rosto de Declan, tranquilo no sono, tinha permanecido descoberto e elevado sobre travesseiros, de forma que ele dava a impressão de ser um enorme homem peludo parecendo um urso com a cabeça de um serafim. Essa foi a noite em que o pai de Kiernan me beijou no banheiro, sua mão deslizando para cima por dentro de minha blusa de cetim. Na manhã seguinte, eu jurei, enquanto abria um pote de Tylenol, evitar ficar sozinha com ele no futuro. Mais de uma vez desejei ter mantido esse juramento. Noite de Ano-Novo: sempre decepcionante, agora deprimente. Nossos filhos ainda têm a expressão levemente vidrada e esperançosa de quem está determinado a de alguma forma arrancar ótimos momentos da noite gélida. Depois que eles saem, a festa perde a graça, e de repente tudo o que sobra é uma cozinha cheia de pratos sujos e uma dúzia de adultos falando de como sua tolerância para o álcool diminuiu com a idade. — Vou para a cama todos as noites às dez — diz uma mulher, para um silêncio aterrador, pois, é claro, todos vamos para a cama às dez todas as noites, todas as noites menos esta. Glen e Bill têm uma conversa apressada logo após a meia-noite, debatendo na cozinha se o filósofo está bêbado demais para dirigir. Mas quando chegam à sala de estar para encontrar Nancy e perguntar-lhe o que fazer, o homem já foi. — Os faróis dele estavam acesos? — pergunta Glen. — Por que eu faço isso, meu Deus? — diz Nancy, abraçando-me com força à porta. — Foi uma ótima festa — digo. — Não há ninguém com quem eu tivesse preferido passar a noite. — Diga isso pela manhã, quando eu puder entender. Que nós tenhamos um ano maravilhoso juntas. Que sobrevivamos ao pesadelo de mandar aquelas meninas para a faculdade. — Ah, Deus, nem toque no assunto.


— OK, Nance, isso está ficando sentimental — diz Bill. — Se você não pode ser sentimental na noite de Ano-Novo, quando você pode ser sentimental? — exclama Nancy, o braço ainda em volta de meu ombro. — Você está bêbado? — pergunto a Glen, quando andamos para casa de mãos dadas. — Estou — diz ele em tom monótono. — Não estou orgulhoso. — Somos velhos demais para isso. Tomei três Cosmopolitans, duas taças de vinho tinto e duas de champanhe. — Uau! É bastante bebida! À frente, nossa casa está acesa, as janelas da cozinha e da área de serviço brilhando contra o exterior escuro. Isso não diz nada sobre o que está acontecendo lá dentro. Nossos filhos têm o hábito de ir para a cama com a televisão e todas as luzes do andar de baixo acesas. Dentro de casa, olho em volta procurando pistas. Não há sinal de Ruby, de sua pequena bolsa chinesa vermelha, ou de seus altíssimos saltos roxos no meio da cozinha. Ruby deixa uma trilha de si mesma no andar de baixo após uma festa: sapatos, joias, às vezes uma caixa de Band-Aid para bolhas. Lá em cima, a porta de Max está fechada, sem qualquer linha de luz indicadora sob ela. — Não desligue os abajures — digo, enquanto tomo um sonífero. Glen franze a testa. Ele quer me dizer que eu não deveria tomar um sonífero depois de beber álcool, mas ele sabe que eu sei. E eu sei que ele sabe que deve deixar os abajures acesos. Digo isso todas as vezes que chegamos em casa e as crianças ainda estão na rua. Ser casado é assim: conversas nas quais, na verdade, ninguém fala. Levo meus sapatos para cima. Não há qualquer som no quarto de Max. A luz de Ruby está acesa, e vários vestidos de festa rejeitados estão no chão, juntamente com um emaranhado de lingerie e meias arrastão. Algum dia ela terá esquecido isso e dirá à própria filha que seu quarto é um chiqueiro. Ou insistirá que eu era indulgente demais e que deveria ter exigido que ela


fosse mais organizada. — Ele está dormindo? — sussurra Glen embaixo do edredom, levantando minha camisola. Glen acredita em sexo na noite de Ano-Novo. Depois, encontro minha camisola embolada ao pé na cama. Glen veste uma camiseta e uma cueca samba-canção e começa a roncar. Eu ajusto minha respiração à dele e imediatamente caio no sono. Eu desperto levemente quando ouço um barulho lá embaixo, e olho para o relógio digital: 3:43. Espero para ouvir Ruby nas escadas, mas em vez disso parece que algo cai lá embaixo. Glen tosse, rola para o outro lado. Por alguns instantes, não ouço nada. Minha cabeça está tonta e agora não tenho certeza de que sequer ouvi alguma coisa, de que não foi o fechamento de um sonho ou um efeito colateral do sonífero. Uma noite, há muitos anos, desci porque sentira um cheiro de cookies com gotas de chocolate assando, mas a cozinha estava escura e cheirava apenas a óleo de limão e a Ginger, que ganira suavemente de dentro de seu canil. Glen diz que o sonífero pode causar isso. Então ouço um som de pés se arrastando, e vozes, e mais alguma coisa cai, e Glen abre os olhos. — Quantas vezes eu disse a eles? — sussurra. Muitas vezes: não nos importamos até que horas vocês fiquem acordados, ou que tragam os amigos, contanto que nos deixem dormir. Outro ruído, talvez alguém se sentando pesadamente em uma cadeira. — Provavelmente beberam muito — digo. — Pelo menos não estão dirigindo por aí. Ouço algo cair com um baque. Glen se levanta e veste um par de calças. — Detesto quando eles me fazem descer — diz ele. — Eu vou — digo, lembrando-me da noite em que encontrei Rachel suja e triste no sofá da saleta, mas Glen já está descendo as escadas. Perco o som de seus pés descalços entre os outros barulhos da casa: os lamentos e


suspiros do velho aquecedor sob nossa janela, o raspar da árvore que precisa ser podada na parede lateral, a janela batendo no fim do corredor. Lá de baixo vêm mais ruídos, mais altos, e me pergunto se é o som de um êxodo adolescente, se Glen botou todo mundo para fora, e de manhã nossa filha estará ressentida, os lábios contraídos naquela expressão que indica que a decepcionamos outra vez. Ela estava linda esta noite em seu vestido de renda preta, sua pele clara formando uma meia-lua na gola canoa. Estou pensando em como ela estava quando o sono me puxa novamente. Quando acordo novamente, não tenho certeza do porquê. Por um instante, achei que alguém estava preparando algo na cozinha, assim como pensei da outra vez, mas dessa vez não eram cookies, era outra coisa. Deitome de costas e sinto uma dor aguda na base do crânio, e tento me lembrar de quanto bebi. As árvores desfolhadas lá fora estão produzindo sombras nos retângulos de luz com a forma das janelas no teto, dedos de galhos em preto e cinza, e me pergunto se há uma tempestade vindo, e se os amigos de Ruby chegaram em casa. Ouço Glen subindo as escadas, mas vagarosamente, com passos pesados, e olho em direção à porta. Há apenas uma luz fraca no corredor, a do quarto de Ruby, e ele para no vão da porta, e vejo que não é ele de jeito algum. Desajeitado demais, esbelto demais, desgrenhado demais. — Maxie? — murmuro suavemente, com medo de que ele se assuste com o som, que ele ache que eu estava dormindo. E em um só movimento ele se move até a porta e me ataca com força, no ombro, e eu grito e rolo para o chão entre a cama e a parede. Choro e ouço uma respiração, e um longo tempo parece passar. Então ouço pés no chão outra vez, desta vez descendo, rápido. — Maxie — repito. Estou virada para a parede e não sei se consigo me mexer. Há uma queimação em meu peito e um gosto em minha boca como o que eu sentia quando escondia moedas embaixo da língua na infância. Acho que ouço


mais barulhos lá embaixo, mas não tenho certeza porque meu coração bate alto demais em meus ouvidos. Sei que perdi a noção do tempo, porque quando ouço novamente um som, mais fraco desta vez, há luz lá fora. Não abro os olhos, estou com medo, mas há o cinza esmaecido, o vibrante sinal que a luz do dia causa dentro de suas pálpebras quando estão fechadas. Imagino que tive um sonho terrível, mas a dor ainda está lá, e agora meus lábios parecem estar colados com alguma coisa grossa e viscosa. Abro os olhos levemente e vejo sombras marrom-avermelhadas a meu redor no rodapé, na tomada e no velho tapete oriental. E fecho meus olhos novamente. Na última vez que acordo, ouço pessoas na casa, e me pergunto se delirei a noite toda, se Glen estava certo, se o sonífero mais algumas taças de champanhe me deram uma breve visão do inferno, se todos estão lá embaixo fazendo o café da manhã e se perguntando quando vou finalmente acordar. “Nunca mais farei isso”, vou dizer a Glen quando finalmente descer. Ou talvez não lhe dê essa satisfação. Mas então ouço passos na escada, e fico bem quieta, meu rosto pressionado contra a borda do tapete. — Meu Deus — diz alguém, bastante próximo. — Estão todos mortos? — Os três — diz outra voz.


Estou olhando para o sol. Consigo distinguir um relance de sua borda arredondada atrás de um halo de luz. Ela penetra em minha cabeça, e me lembro de que quando eu era jovem, no lago em Michigan, um de meus amigos disse que se alguém olhasse diretamente para o sol, ficaria cego. Minha mãe disse que não era verdade, mas depois perguntou por que eu desejaria olhar para o sol, para começo de conversa. — Mary Beth! — diz uma voz muito alta que não reconheço. — Mary Beth, consegue me ouvir? Não quero me arriscar a ficar cega. Fecho meus olhos e volto a dormir.


Certa vez, quando Ruby tinha 6 ou 7 anos, estávamos no carro com as três crianças no banco de trás, dormindo. Os meninos estavam afundados nas cadeirinhas, e ela estava em um assento entre eles, a cabeça baixa, de forma que seu queixo estava encaixado no vão do pescoço. — Eles apagaram como lâmpadas — eu disse a Glen com um sorriso. Mais tarde, percebi que estávamos tendo uma discussão idiota sobre se deveríamos visitar velhos amigos que tinham nos convidado para a praia, se devíamos construir um anexo na casa, se era cedo demais para eu voltar ao trabalho. Procurei em minha memória se tínhamos mencionado que esses velhos amigos tinham estado perto de se divorciar por causa do caso dele, se tínhamos discutido quão pouco dinheiro tínhamos para o anexo, se tínhamos começado a brigar porque Glen não queria que eu voltasse a trabalhar e eu queria muito sair um pouco de casa. Não encontrei nada. Nossas vozes deviam ter sido música de fundo, murmúrios em duas oitavas, uma baixa, uma alta. Mas ainda assim foi uma surpresa quando Ruby repentinamente se inclinou para a frente entre nossos bancos. — Estou acordada! — gritou, sobressaltando os meninos momentaneamente. — Ssshhhhh! — sussurrei. — Estou acordada — sussurrou Ruby alegremente. — Só fingi que estava dormindo para poder ouvir a conversa de vocês.


É isso o que estou fazendo agora. A princípio fiquei quieta, mantive os olhos fechados, porque através da névoa turva de um sono incomum eu não sabia onde estava. Então percebi pelo cheiro e pelos sons que estava em um hospital. Às vezes, alguém chama meu nome e eu fico quieta, ouvindo o bipe de um monitor. Parece que não consigo atravessar o manto de densa insensibilidade, deixá-lo para trás, mas uma vez tentei com toda a força me concentrar e ouvi vozes de uma conversa em surdina. Minha mãe e Alice, depois, um pouco mais tarde, Alice e Nancy. Quando Alice começou a chorar, um som soluçante não muito diferente do que ela faz quando ri, um pensamento cruzou minha mente, mas eu o deixei de lado e fui novamente para o fundo. — Ela está agitada — disse alguém, quando o monitor começou a acelerar seu ritmo agudo. Por um instante, lembrei-me de alguma coisa, e por um momento soube o que era: o tempo no outro hospital, com o monitor em minha barriga, quando a enfermeira dissera, olhando para a impressão da máquina: “Você está tendo uma contração.” E eu queria gritar: “Eu sei que estou tendo uma contração! Consigo senti-la me rasgando.” A lembrança fez meu coração bater mais forte, os bips se aceleraram, alguém tomou minha pulsação, e eu afundei novamente. Agora estou acordada, tentando manter minha mente tão quieta quanto meu corpo. Meus olhos estão entreabertos, de forma que consigo ver quem está no quarto, mas eles não conseguem me ver. Houve uma época em que Max acreditava que se fechasse os olhos ficava invisível. “Ainda consigo ver você”, Alex dizia, olhando para ele. “Não consegue, não”, Max respondia, fechando com força as pálpebras. Meu ombro dói, e uma agulha intravenosa repuxa a pele delicada da parte posterior do braço. Há uma cadeira no canto, e nela está minha mãe. Ela tem revistas no colo, mas olha por uma pequena janela. A tinta verde da parede se reflete se alguma maneira em seu rosto, como se ela estivesse sentada na borda de uma piscina iluminada à noite. Isso a faz parecer


doente. Ela também parece cansada e séria, mas ela é assim na maior parte do tempo, foi assim na maior parte de minha vida. Minha mãe nunca sorri em fotos. Diz que não gosta de seus dentes, que parecem normais para mim. Em nossas formaturas, nossos casamentos... ela é a mulher solene perto da noiva, do noivo. Eu costumava me perguntar se havia fotos sorridentes dela antes que seu marido morresse, ou depois que ela se casara, mas nunca vi nenhuma. Ela começa a existir quando nós começamos, exceto pela foto de casamento. Há um toque de felicidade em seus olhos, mas não um sorriso. Ela olha para mim, depois aperta os próprios olhos como se estivesse me imitando. Vem até o lado da cama e pega minha mão. — É hora de acordar, Mary Beth — diz ela. Por um momento minhas pálpebras se agitam, depois olho para cima. — Bom — diz ela. Levo minha outra mão à garganta e tusso. Meu ombro lateja e eu estremeço. — Eles a colocaram no respirador no primeiro dia, quando pensaram que era pior — diz ela. — É por isso que sua garganta está doendo. Vai passar logo. — Ela está falando? — pergunta uma enfermeira do vão da porta, e minha mãe levanta a mão sem se virar. — Eu lhe aviso quando deve voltar — diz ela, na voz que usava para maus alunos. A enfermeira se afasta. — Onde está Alex? — pergunta minha mãe. Sua voz está elevada, e me pergunto se todos eles acham que perdi a audição. Minha visão está embaçada. Talvez eu tenha perdido todos os sentidos e não saiba. — Alex? — É um sussurro áspero, e minha garganta queima. — Mary Beth, você tem que se concentrar agora. Isso é muito


importante. Você tem alguma ideia de onde Alex esteja, de para onde pode ter ido? Qualquer ideia? Pode me dar alguma pista? Fecho meus olhos e tento pensar. Eu sei a resposta. Eu sei. Pensar com esse cérebro é como respirar em um resfriado, como olhar para as coisas debaixo d’água. Meus pensamentos tremulam. Minha mente se esforça. — Colorado — sussurro. — Colorado? — pergunta ela, como se eu estivesse falando em outra língua. — Esquiando. Colin do acampamento. Na geladeira. E então algo extraordinário acontece. Minha mãe começa a chorar. Sua boca está contraída com tanta força que a pele ao redor dos lábios fica branca como a de um fantasma, e os músculos de seu rosto se movem espasmodicamente. Mas lágrimas estão rolando por seu rosto para as linhas ao redor da boca. A última vez que a vi chorar foi em meu casamento, e presumi que eram lágrimas de felicidade. Essas também têm algo de alegria, o que não consigo entender. — Alex está esquiando? No Colorado? Com alguém chamado Colin, do acampamento? Pisco os olhos. Acho que vai doer se eu fizer que sim com a cabeça. — Está — sibilo. — Quando ele volta para casa? Fecho novamente os olhos. Ouço minha mãe ao telefone. Está dizendo a alguém para ir ao refrigerador. — O refrigerador! — berra ela. — A geladeira! Não é permitido falar ao celular no hospital. Havia grandes avisos quando eu estava esperando que o braço de Max fosse engessado. Tive que ir até o estacionamento para falar com Glen. Estava muito quente na rua naquele dia. Minhas mãos estavam escorregadias e eu deixei o telefone cair. Quando levei Max para casa, ele disse que o ar condicionado do carro estava frio demais. Glen falou que era a anestesia. Fiz um sanduíche para


Max, mas ele adormeceu antes de comer. Glen disse que era a anestesia. Eu me pergunto se tomei anestesia. Afundo novamente. Acordo. Uma enfermeira coloca um termômetro sob minha língua. — Meu nome é Brittany, Sra. Latham — diz ela suavemente. Acho que a vi experimentar um vestido na Molly’s Closet. Quando ela sai, vejo Alice sentada na cadeira. Está dormindo, a boca entreaberta. Ela vai ficar chateada ao perceber que babou no próprio queixo. Está com um manuscrito no colo. Acho que minha mãe saiu para procurar um refrigerador, mas não consigo me lembrar exatamente por quê. Observo Alice pelo que parece um longo tempo. Nancy entra e coloca a mão em seu ombro e a sacode, violentamente, me parece. Alice acorda sobressaltada. — Vou assumir agora — diz Nancy. Nenhuma das duas olha para mim. Quando finalmente o fazem, Alice solta um grito, depois começa a chorar de novo. Acho que me lembro de alguma coisa: — Onde está Alex? — pergunto. Minha voz está um pouco alta. — O quê? — diz Nancy, quase gritando. — Onde está Alex? — Colorado — diz Alice. — Está vindo para casa amanhã. Estará aqui amanhã. Ela está soluçando. Mal consigo entendê-la. Nancy sai e volta trazendo minha mãe. — Acho que vocês duas deveriam esperar lá fora por alguns minutos — diz minha mãe. Alice começa a dizer alguma coisa, eu também, mas todas ficamos quietas. Consigo ouvir o monitor, meus pensamentos não estão mais tão incoerentes, e desejo que pudesse voltar a dormir por mais algum tempo. Acho que me lembro de outra coisa. — Estão todos mortos — digo, e soo exatamente como minha mãe:


monótona, fria. E então repito, e não parecem palavras, mas uma terrível canção, como algo de uma ópera. Digo mais uma vez, e então há um forte ruído no quarto, mas ouço-o como se meus ouvidos estivessem tapados. Parece o som que fiz no hospital quando estavam todos gritando para mim, todos gritando “Empurre! Agora! Mais forte.” Aquele som foi ruim, mas logo terminara. Desta vez não para. Pessoas estão correndo nos corredores. Alice chora, e Nancy coloca os braços ao redor dela. Uma enfermeira entra. Sinto algo escorrendo por meu queixo. — Um momento, por favor — diz minha mãe à enfermeira, pressionando um lenço contra meu rosto, e entendo que ela é a pessoa perfeita para este momento, que ela é a pessoa perfeita para contar a alguém uma notícia tão terrível que ninguém mais consegue sequer formar as palavras. Imagino se ela sempre foi assim, ou se aprendeu a ser depois que alguém lhe contou coisas terríveis. O barulho se torna cada vez mais fraco, como se estivesse se afastando de mim. — Shh, shh, Mary Beth — diz minha mãe, sentando-se na beirada da cama, colocando o rosto tão perto do meu que sinto o cheiro do xampu que ela usa. — Alex está vindo para casa amanhã. Alex está vindo para casa amanhã. Você entende? — Ela parece embaçada, e quando aceno com a cabeça, seu rosto parece cintilar à luz fluorescente. Percebo que minha boca está aberta, e a fecho. Ela aproxima o rosto do meu. Sinto sua bochecha, úmida. Quero que tudo fique quieto. — Max, Ruby e Glen — sussurra ela. — Alguém... — finalmente digo, e ela aquiesce. — Eles não sabem quem foi. E de repente eu me lembro. Lembro-me de que pensei que fosse Max, Max que entrara em meu quarto, que me atacara, que me ferira. E ouço aquele som novamente, mais alto desta vez, e minha garganta queima, meu ombro dói, as luzes do quarto são como sóis, e estou tão, tão envergonhada de ter pensado que meu pobre e triste menino poderia ter machucado


qualquer um de nós. Minha mãe me abraça com força. — Alex — digo, quando consigo falar novamente. — A polícia achou que tinha sido ele. Porque ele tinha sumido. Porque não conseguiam encontrá-lo. Ninguém sabia que ele estava viajando. — Alex? — repito. — Eu não acreditei. Não podia acreditar. Disse a eles que estavam errados. — Ela precisa de um sedativo? — diz a jovem enfermeira, do vão da porta. Qual é mesmo o nome dela? Não consigo me lembrar. O monitor está fazendo barulho demais. Não consigo respirar. É como um resfriado. A diferença entre a médica e a enfermeira é que a médica usa um jaleco branco. Exatamente como o de Glen. Deve ter vindo do mesmo lugar. A médica diz às enfermeiras o que fazer, mas não consigo ouvi-la. Esse som em meus ouvidos. O sol se abranda. A boca de minha mãe se movimenta, mas não há palavras. Acho que quando Alex chegar farei pudim de chocolate para ele. Pudim de chocolate é seu doce preferido. O som para, e eu parto outra vez.


Ginger está perambulando pela cozinha da casa de hóspedes de Olivia e Ted, procurando um lugar onde se acomodar. Três ou quatro vezes ela percorre o pequeno espaço e decide que o melhor ponto para se deitar é exatamente em frente ao fogão. Não tenho ânimo para tentar tirá-la dali, embora isso dificulte alcançar as bocas do fogão. Meu braço esquerdo é uma asa danificada, flácido e pouco confiável. Um fisioterapeuta vem três vezes por semana e me faz apertar uma bola de tênis. “Muito melhor, Sra. Latham”, diz ele, olhando para o meu braço, evitando meus olhos. Minha mente diz a meu corpo para fazer coisas, mas ele se recusa com teimosia, como se ainda estivesse semiadormecido. Desde que saí do hospital, há três semanas, minha mente se habituou lentamente aos pedidos que são ignorados pelo meu corpo. Ginger gane e dou a ela um pedaço de cenoura. Ela mastiga ruidosamente e gane outra vez. Estou fazendo sopa de legumes. É uma boa receita, fácil de congelar. Vou colocá-la em fôrmas de gelo. Então, quando eu quiser almoçar, ou Alex quiser almoçar, ou ambos quisermos jantar, posso tirar alguns cubos e reaquecê-la. É uma sopa muito boa. Glen sempre adorou comê-la nesta época do ano. “Sopa!” ele dizia, como se uma tigela de sopa fosse o maior presente que uma pessoa pudesse dar. Alex também diz que gosta, mas não consigo lembrar se é verdade. Ele praticamente só come na casa de Olivia agora, com Ben e os irmãos de Ben. Quando está aqui, fica com o prato na


mão, apoiado no balcão da cozinha. Acho que é porque a mesa é pequena, com apenas dois lugares. Quando nos sentamos juntos, de frente um para o outro, ela conta uma história em que nenhum de nós dois quer acreditar. Tiro as fôrmas de gelo. Há apenas duas. Fiz sopa demais. Não há mais espaço no freezer. Há a lasanha que fiz na semana passada, o ensopado de cordeiro, e os quatro pães, um com queijo. Isso é o que sempre fiz. Sempre tive comida no freezer para que houvesse uma refeição gostosa e quente no jantar, mesmo quando eu estivesse fora de casa. Não saio muito da casa de hóspedes. Basicamente fico aqui dentro. É uma boa casa, pequena e aconchegante, decorada à maneira de Olivia. Calorosa. Acolhedora. Bonita. É o tipo de casa que nos faz sentir seguros. Às vezes ando pela margem do bosque com Ginger, mas ela sempre quer voltar para dentro, assim como eu. Há neve antiga no chão, e covas escuras na neve, poças sujas de cinzas e lama e grama triste e despedaçada. As covas são as marcas dos meus pés. A neve tem uma brilhante camada de gelo, e Ginger não deixa marcas porque é leve demais para rompê-la. Nas primeiras duas semanas, ela não comeu absolutamente nada, nem mesmo suas comidas favoritas: fatias de maçã, ossos de carré de porco. “Vamos lá, você sabe que quer”, Alex dizia, sentado de pernas cruzadas no chão com um pedaço de carne ou de queijo na palma da mão. Ela pousava a cabeça nas patas dianteiras e olhava para ele, as sobrancelhas contraídas. Ela vai fazer 10 anos em maio. Nós tínhamos o hábito de calcular quantos anos as crianças teriam quando Ginger fizesse 5, quando Ginger fizesse 10. Nunca passamos disso. Não queríamos pensar em quantos anos eles teriam quando Ginger fosse “posta para dormir”. Fui eu quem foi posta para dormir, tão profundamente que os policiais pensaram que eu estava morta enquanto andavam pela casa. Um deles levou Ginger para seu carro e a colocou no banco de traseiro, atrás da grade de metal. Depois a deixaram sair porque ela se jogou com tanta força contra a grade que quebrou dois incisivos e arrancou o dedão. Olivia a levou ao


veterinário enquanto eu estava no hospital, e o veterinário arrancou seus dois dentes e enfaixou a pata. Ela ainda manca um pouco, e me pergunto se é mais memória que ferimento. Ginger salvou minha vida. Nosso vizinho do lado acordou na manhã de Ano-Novo e viu a porta dos fundos aberta, agitando-se violentamente em um frio vento de granizo, e quando ele se aproximou para fechá-la (“Olá?” Imagino-o chamando, embora não o tenha escutado. “Glen? Mary Beth? Está tudo bem?”), ouviu Ginger chorando dentro de seu canil. Ele chamou a polícia. Foi o que me contaram. Tudo o que sei sobre aquela noite é o que me contaram. Tudo o que ouvi foi o som dos amigos de meus filhos na saleta fazendo barulho demais. Tudo o que ouvi foi meu marido descendo para repreendê-los e mandá-los para casa. Ou foi isso o que pensei ouvir. Nancy diz que os jornais publicaram que eu dormi durante tudo o que aconteceu, o que é mais ou menos verdade. Imagino a mim mesma lendo isso sobre outra pessoa e não acreditando. É o que as pessoas fazem: imaginam-se em seu lugar, e sabem que agiriam diferente, melhor. Assustam-se um pouco com uma tragédia emprestada, e depois se recolhem à tranquilidade de sua casa segura, ou o que consideram sua casa segura. Quando começo a imaginar meu próprio lugar, tomo mais uma pílula. A forma como elas me fazem sentir me lembra da maneira que eu via o mundo, e que o mundo me via, quando o véu de noiva estava sobre meu rosto, antes que Glen o levantasse. Chamam de voilette essa parte do véu que cobre o rosto e suaviza levemente a tudo ao redor. Em breve vou parar de tomar as pílulas. Mas não à noite. Não consigo imaginar como algum dia eu vá voltar a dormir de outra forma. Tomo o sonífero, e depois pego um livro, virando as páginas no ritmo exato de alguém que está lendo. Não tenho ideia do que aconteceu na página, e de repente adormeço por cinco ou seis horas. Alex não sabe, mas há uma babá eletrônica embaixo de sua cama. O receptor está sob meu travesseiro, ligado no máximo do volume,


de forma que qualquer som me acorde de meu sono entorpecido. Antes de tomar a pílula, eu o escuto por meia hora. Checo o relógio. Nunca há som algum. Ginger se rearranja contra o fogão e deixa a cabeça cair pesadamente no chão. Mexo a sopa, depois vou para a pequena sala de estar e me sento no sofá. Minha mente estremece e para, estremece e para, como um relógio quebrado. Perco a noção do tempo a toda hora, como perdi naquela noite, como perdi no hospital. Mas estou acordada quando isso acontece. Olho pela sala para a moldura biselada do espelho ou para a maçaneta oval e caio em um sonho acordado, só que não há nada nele, nem pessoas, nem sentimento. Ocasionalmente ouço uma voz familiar, e quando isso acontece sinto um calafrio, o sonho termina e eu encontro algo para fazer, mesmo que seja só mexer a sopa outra vez. Às vezes, quando me movimento, percebo que meu rosto está molhado. Eu o enxugo com papel toalha. Não consigo pensar nisso como choro. O bom de morar nesta nova casa, onde ainda não sei como trocar as grades do forno ou ajustar direito o termostato, é que não sinto como se esta fosse minha vida. É uma animação suspensa, entre o que era e alguma outra coisa, alguma coisa sobre a qual não consigo pensar. Não penso no que vem em seguida, só que há uma receita de chili em um livro na prateleira que devo testar. Chili, amanhã. Ou talvez até hoje. Ainda não é nem meio-dia. Pergunto-me como vou preencher o resto do dia, e penso que talvez coloque Ginger no carro e dirija pelas estradas da montanha, passando por algumas casas das quais fiz o paisagismo no passado. Pode-se fazer coisas em um carro que não se pode fazer em mais lugar algum. Gritar. Falar palavrões. Falar sozinho ou com pessoas que não estão ali. Ninguém pode ouvir-nos em um carro, embora nos sinais vermelhos seja importante parar, de modo que a pessoa da faixa ao lado não nos considere loucos. “Pobre Mary Beth Latham”, a pessoa poderia dizer a todos, na escola, no clube. “Eu a vi falando sozinha na esquina da


Main Street com a Valley Road.” Na primeira vez que saí com o carro, certifiquei-me de estar de volta às três e meia da tarde, para estar em casa quando Alex chegasse. Ouvi as portas do Suburban de Olivia batendo, e me acomodei na cozinha, perto da mesinha, mas não nela, e disse ao meu cérebro para colocar um sorriso em meu rosto, o que funcionou, mas quando mandei-o colocar minha mão esquerda no encosto de uma das pequenas cadeiras, ele se recusou. Ginger ganiu, e depois de dez minutos Alex ainda não tinha chegado, e eu subi a colina correndo, usando um par de mocassins finos, que estavam encharcados quando cheguei à porta dos fundos da casa de Olivia. — O que foi? — disse Olívia quando viu meu rosto e ouviu a cadela latindo estridentemente. — Ouvi seu carro — eu disse. — Mas Alex não chegou. Sabe onde ele está? — No basquete — respondeu ela, em voz muito baixa e lenta, sua mão ainda em meu braço, seus olhos fixos nos meus enquanto me conduzia para dentro da casa. — Eles têm basquete esta tarde. Sua precisa voz britânica é tão calma que entendo, e acredito. No hospital, e depois, mais tarde, quando ela ficara comigo, percebi pela primeira vez que a voz de Alice é instável: para cima e para baixo na escala. Isso fazia minha cabeça doer e meu coração bater mais rápido. “Quando a tia Alice vai para casa?” Alex perguntara uma noite, quando novamente comíamos sanduíches no jantar. E eu dissera, sem pensar: “Amanhã”. Liam estava morando com sua babá trinitária, mas chorava todas as noites quando o sol se punha. “Voltarei logo, querida”, dissera Alice e me beijara. A voz de Olivia é uniforme e tranquila como a própria Olivia. Ela também salvou minha vida. Deu a nós dois um lugar para ficar. Quando Alex voltara do Colorado, com um bronzeado cor de caramelo, enquanto eu ainda estava no hospital, ela o colocara no quarto de Ben, e nas primeiras três noites dormira em um colchão inflável no corredor do outro lado da


porta. “Ele diz que não quer falar sobre isso”, Ben dissera a ela. Não falamos sobre isso. Alex vai à escola. Eu faço suas refeições. Juntos, na semana seguinte à minha saída do hospital, fomos ao funeral. Segurei forte a mão de Alex durante a cerimônia. Ela parecia sem vida encostada à minha. Isso é basicamente o que me lembro. Sarah falou, e Ezra, e Nancy e Bill juntos, e o irmão de Glen, Doug, e o coral do ensino médio cantou. Acho que era “You’ve Got a Friend”, mas não tenho certeza. Tomei um monte de pílulas naquele dia. Mas me lembro da mão de Alex, e dos grandes buquês de amarílis e de sempre-vivas no tablado do centro comunitário, e das fotografias de Glen, Ruby e Max nos cavaletes. No centro, havia uma foto de nós cinco juntos em Londres. Max estava olhando para o lado. O cabelo de Ruby estava em seu rosto. “Essa é a melhor?” Glen tinha perguntado quando eu a escolhera para nosso cartão de Natal. “Todo mundo está se mexendo nas outras”, eu respondera. “Esta é a que tem menos gente se mexendo.” A amiga de Ruby, Jacqui, a garota com quem ela dividiu o quarto no curso de escrita literária de verão, leu um poema de Ruby que eu nunca tinha ouvido: Como posso pedir mais Que este minuto, quando as estrelas brilham contra o veludo Sem a cortina de nuvens E a terra embaixo tem um cheiro maduro e pleno De nós dois, deitados aqui, Olhando em direção ao céu. Lembro-me de ter chorado, e de Alex ter segurado firmemente a minha mão, ele estava com uma expressão dura e raivosa, a cara que os homens fazem quando estão tentando não desmoronar. O pai de Glen tinha a mesma expressão. Atrás dele, Stan sentava-se abraçado à minha mãe,


assoando-se em um enorme lenço, e minha mãe dava tapinhas em sua perna grande e forte como se fosse um bebê que precisasse de conforto. Não falei com Jacqui depois que ela leu no funeral. Em algum lugar da pequena escrivaninha da sala de estar desta pequena casa, na grande pilha de papéis, há uma carta adorável dela, e um bilhete daquele garoto, Chip, que Ruby conhecera no curso de escrita literária da faculdade, e da garota que Max gostava no acampamento. A pilha era muito maior no começo, mas Nancy a examinara todos os dias depois do trabalho por uma semana e tinha retirado os panfletos religiosos sobre um lugar melhor e vida eterna, as mensagens de detentos que perguntavam se eu queria me corresponder, e as cartas, em sua inconfundível caligrafia contundente, dos esquizofrênicos que queriam que eu entendesse que minha família estava sendo mantida prisioneira em uma usina nuclear no deserto. “Há gente louca e patética demais no mundo”, dissera Nancy, com os dentes cerrados, e por um instante pensei que se referia a mim. Ela nunca viu a carta de Deborah Donahue, ou tenho certeza de que a teria jogado fora, talvez até queimado. “Você matou meu filho”, escreveu a mãe de Kiernan, em uma caligrafia não muito diferente da dos loucos. Deborah e eu sempre estivemos em improvável harmonia uma com a outra. Houve um ano, quando as crianças eram pequenas, que até nossos ciclos menstruais estavam sincronizados, e fizemos um pacto de nunca ir à casa uma da outra nessas épocas porque ficávamos tão irritadas que certamente teríamos brigado. Agora ambas somos mães desoladas que viram o desastre se aproximando lentamente e de alguma forma nos convencemos de que era uma ilusão de ótica. O pai de Kiernan foi ao funeral. Ele tentou me abraçar depois, mas eu me afastei. Lembro-me disso. Havia um grande anel de rejeição pública ao seu redor, como se ele tivesse uma doença contagiosa ou emanasse um campo de força. — Não acredito que ele teve a audácia de vir — disse Nancy, alto


bastante para que ele ouvisse. — Tudo bem — sussurrei e me afastei. O que aquilo importava para mim? O que qualquer coisa importava para mim? Com exceção de Alex. Isso é o que preciso ficar lembrando a mim mesma. No hospital, minha mãe ouvira uma das enfermeiras sussurrar que toda a minha família tinha morrido. “Ela tem um filho”. minha mãe dissera friamente. “Ela tem um filho.” Eu tenho um filho. Ele vai ter fome. Por causa do hospital, e de nossa casa fechada, e da polícia, e das perguntas, as pessoas não apareceram com caçarolas e bolos, como fazem depois que alguém morre. Quando olho para o freezer apinhado, percebo que estou fazendo minhas próprias comidas fúnebres. Levo a maior parte da sopa para a casa de Olivia, e ela abre a porta e diz: — Acabei de colocar a chaleira no fogo. Ginger também entra, e deita-se entre nós duas sob a mesa da cozinha. Não acho que Ginger deva ser deixada sozinha. A casa está tão quieta entre nossas frases que consigo ouvir o tique-taque do relógio de pêndulo no hall, mas Olivia nem sempre tenta preencher o silêncio. É uma boa ouvinte, só que não tenho nada a dizer, ou nada que possa dizer em voz alta. Quando o barulho do relógio se torna doloroso demais, desço novamente a colina sem qualquer lembrança sobre o que falamos. Sento-me no sofá outra vez, a cabeça de Ginger sobre meus pés. Passo o dedo pela longa cicatriz em meu ombro e penso: Glen se foi, Ruby se foi, Max se foi. É assim que eu memorizava poesia quando era mais nova. É como se estivesse tentando ensinar isso a mim mesma para que possa entender.


Então é assim não estar medicada ou, pelo menos, um pouco medicada: as luzes parecem cacos de vidro, os vidros das janelas parecem espelhos, os espelhos refletem uma mulher cinzenta com olhos escuros. Estou usando o mesmo vestido do funeral, e enquanto fecho o zíper desajeitadamente, tentando torcer meu braço bom até o meio das costas, digo a mim mesma que vou jogá-lo fora pela manhã. “Doe para a caridade”, sei que minha mãe dirá, mas acho que o tecido agora guarda sua história, então seria como doar um suéter cheio de traças ou uma cômoda com carunchos. Estaciono em frente ao escritório do advogado, e assim que paro homens em ternos escuros emergem da fila de carros. As batidas das portas de metal são minhas boas-vindas. Eles convergem para mim, e penso que parecem carregadores de caixão: o pai de Glen, seu irmão, Doug; meu irmão, Richard; o marido de Nancy, Bill. Os homens estão aqui para lamentar a morte da maneira que lhes parece mais útil, resolvendo os assuntos práticos. Um por um, beijam minha bochecha. Vieram juntos em caravana do escritório de seguros do marido de Nancy, e me pergunto se seus carros estavam com os faróis acesos como em uma procissão fúnebre enquanto vinham pelas estradas secundárias. Meu irmão se aproxima para pegar minha mão e entramos, unidos, no grande e reluzente lobby. Ele nos anuncia. O pai de Glen ajeita o cabelo para trás com a palma da mão. Seu paletó está aberto, e tenho certeza de que não fecharia se ele tentasse. Acho que é o mesmo terno que ele usou há 11


anos, quando sua esposa morreu de câncer de mama. Nem nessa ocasião ele chorara. “Eles fizeram tudo o que podiam”, repetia aos enlutados, e “Ela lutou até o fim”. Desde então, as viúvas levam para ele panelas de ensopado e pratos de cookies, mas ele ainda vive sozinho e dirige a empresa de telhados com o irmão de Glen, Peter, ainda sobe a escada e se equilibra nos beirais. A mulher de Peter compra suas roupas, lida com a faxineira e faz seu supermercado, de forma que a vida dele não é tão diferente de quando a mulher estava viva. Eu dizia isso a Glen toda hora, mas agora estou envergonhada, pois sei que ter outra pessoa na casa, mesmo que mal se fale com ela, mesmo que mal se note sua presença, é muito, muito diferente de estar sozinho. — Como vai, papai? — pergunto, e ele pigarreia para disfarçar os olhos vermelhos, e porque raramente o chamo assim, e a gentileza o faz se sentir exposto. — Estou bem para um velho — diz ele, como de costume, mas aperta meu ombro. Glen diz que quando era pequeno pensava que seu pai era um gigante, e ele ainda é um homem grande, envelhecendo como fazem os homens grandes, com uma barriga dura e um pescoço grosso inclinado para a frente como o de um predador. Ele insistiu em vir. Meu irmão também, ainda que o fato de ficar levando à mão ao coração, ao bolso onde guarda o celular, demonstre que seu escritório está ligando sem parar. Gosto do meu irmão, e o admiro, mas daquela forma que gostamos e admiramos pessoas que só vemos duas vezes por ano em festas. Ele sente o mesmo em relação a mim. Faríamos qualquer coisa um pelo outro, mas ficamos felizes por nunca ter realmente que fazer. — Como vai o Alex? — pergunta meu sogro no elevador. — Está conseguindo jogar bastante como titular? — Ele é só um calouro, pai — diz Doug. — Para um calouro ele joga muito como titular — diz Bill. — A menos


que se machuque, provavelmente vai acabar jogando na faculdade. Não na primeira divisão, mas em uma menor. — Não sei, não — diz meu sogro. — Eles têm monstros jogando nas faculdades hoje em dia. Aberrações da natureza. Temos que ver que altura ele terá. Meu irmão vê a expressão em meu rosto e aperta minha mão. Sem as pílulas, o aperto parece forte, mais como se ele estivesse tentando me chamar à razão do que me confortar. Talvez tenha medo de que eu vá gritar se ouvir mais uma palavra sobre a possibilidade de Alex jogar basquete na faculdade. Talvez esteja só preocupado se vou gritar. Mesmo aqueles que me conhecem melhor olham para mim como se estivessem com medo. Estão com medo de mim, medo de que me ver desabar sob este imenso peso seja terrível. Eles não têm como saber que gasto todo o meu tempo e minha energia me esforçando para que isso não aconteça, pelo bem de Alex. “Ela tem um filho”, minha mãe dissera às enfermeiras. Lembro-me do escritório do advogado por causa da assinatura de nossos testamentos, há cinco ou seis anos. Seu nome é Reinhold. Parece incrível ter sido capaz de me lembrar disso, embora esteja escrito em uma pasta que estou segurando no colo. Não consigo me lembrar do primeiro nome, mas não importa. — Olá, Sr. Reinhold — cumprimento. E ele diz: — Por favor, me chame de Larry. — Larry — repito obedientemente. Ele contorna a mesa, inclina-se e murmura: — Mary Beth, lamento muito. Faço um gesto com a mão para impedi-lo de continuar. As pessoas não entendem como as palavras podem ser vazias, inúteis, medonhas. Palavras não acalmam, apenas nos ressaltam. Por favor, eu gostaria de dizer, fique quieto para que eu possa ser normal outra vez, para que possamos agir


como se estes fossem assuntos como quaisquer outros, para que eu possa voltar ao sofá da casa de hóspedes de Olivia e esvaziar minha mente. Os olhares são igualmente ruins. Quando saio, o que ainda não é frequente, os olhares são como palavras. Antes os olhos dos outros passavam por mim de maneira desatenta, um olhar casual: superficial, vazio, o equivalente ao “tenha um bom dia”. Agora hesitam tentando não encarar: disfarça, disfarça, para, volta, para, volta, titubeia, baixa os olhos. É como um passo de dança: Ah, meu Deus, ah, meu Deus, sabe quem é? Aquela pobre mulher. Mesmo a recepcionista lá na frente agiu assim. Sou como uma vítima de queimadura, só que todos estão imaginando minhas cicatrizes. E eu as sinto, a pele destruída, os nervos expostos. Preciso voltar para casa. Nosso advogado decorou seu escritório como se fosse um profissional inglês: mesa e aparador de mogno, cadeiras forradas de couro vermelho, quadros de caçada. Acho que Glen e eu zombamos disso depois que saímos da última vez, mas, por um instante, ouço a risada de Glen e esvazio minha mente outra vez. Algumas cadeiras são trazidas da sala de conferências para acomodar todos os homens. Os remédios devem ficar um tempo no organismo. Terei de me concentrar muito para acompanhar a conversa. — Algum de vocês por acaso é advogado? — pergunta Larry Reinhold. — Somos homens de negócios — diz meu sogro. Tudo é bastante simples, na verdade. Não há sequer necessidade de esses homens estarem aqui. Talvez tenham se sentido privados de algum papel cerimonial quando decidi, no hospital, que os corpos seriam cremados rapidamente. Os corpos, eu disse a mim mesma muitas e muitas vezes, como se isso pudesse me fazer acreditar. “Eu queria dizer adeus”, dissera meu sogro, cuja esposa aparecera em seu caixão aberto com a roupa da Páscoa do ano anterior e seu batom habitual (acho que se chamava Coral Reef) nos lábios finos. Eu já dissera adeus. Dissera adeus a Max quando estávamos saindo para


a festa de Ano-Novo na casa de Nancy e Bill. Max estava com a porta do quarto fechada, e eu podia ouvi-lo andando de lá para cá, esperando que saíssemos, e agora digo a mim mesma que tudo bem eu não ter forçado a entrada, fungado em seu pescoço, arrumado seu cabelo, o enfurecido com minhas afetuosas intromissões. Eu disse adeus a Ruby quando ela colocava o casaco sobre o vestido para ir a outra festa mais jovem, melhor. Eu disse adeus quando a abracei apertado, seu cabelo embolado em meu rosto, e digo a mim mesma que está tudo bem não tê-la lembrado de ter cuidado, de ir para casa cedo, de não tê-la forçado a virar-se para mim com sua expressão impaciente e calar meu exaltado falatório. Eu disse adeus a Glen quando ele se levantou furioso, o ponto onde estava na cama a meu lado ainda quente quando adormeci outra vez, e digo a mim mesma agora que está tudo bem eu não ter dito a ele, uma última vez, como dizíamos quando éramos jovens, com meu coração, e não apenas com meus lábios: “eu te amo.” — Você gostaria de vê-los? — tinham me perguntado no hospital, e, de repente, com terror e repugnância, eu soubera que eles estavam lá, no mesmo prédio, esperando para serem reconhecidos, esperando que alguém tomasse alguma decisão. Repentinamente, entendera que, se cambaleasse pelo corredor, e depois para o elevador, e descesse até as entranhas do prédio, poderia encontrar seus corpos, não eles, apenas um terrível facsímile vazio e destroçado. — Não — eu dissera. — Não. — Por um momento, pensara que aquele terrível som recomeçaria, agora que sabia que aquele som vinha de dentro de mim. — Tem certeza? — tinha perguntado Nancy. — Isso pode ajudar. “Ajudar em quê?”, eu pensara, mesmo em meio à névoa. Ajudar a matálos para sempre, a transformar minha família risonha e amorosa em um silencioso cortejo de cegos imóveis? — Pare — eu dissera, e Alice olhara para Nancy com horror e o que


parecia aversão e falara: — Deixe-a em paz. Deixe-a em paz. — É um simples testamento “eu te amo” — diz Larry, o advogado. Que termo adorável. Eu te amo. Eu te amo. Significa que se eu morresse, tudo o que possuíamos seria de Glen, e se ele morresse, tudo ficaria para mim. Eu te amo eu te amo eu te amo. A frase percorre minha cabeça, continuamente, como um desses sinais digitais. Eu te amo. Glen escrevia isso todos os anos quando mandava rosas em meu aniversário, no pequeno cartão que o florista lhe dava: Eu te amo. A boca de Larry se movimenta. A boca de Bill se movimenta. Eu te amo eu te amo. Perdi alguma coisa. Não sei bem o quê. Tento prestar atenção novamente, mas parece que não consigo. Eu te amo, eu te amo, onde estou? — ...guardião — diz Larry. — Obviamente, isso não é um problema — diz Bill. Lembro-me de como, anos atrás, nós debatemos sobre quem nomear para guardião legal de nossos filhos. Eu queria conversar sobre Deborah e Kevin. Mas Glen não queria ouvir falar nisso nem mesmo antes de Declan se afogar. Em meu testamento agora, meu irmão, Richard, e sua esposa ficariam com Alex se alguma coisa me acontecesse. Olho para meu irmão, e ele corre a mão pelo encosto de minha cadeira. Vou mudar isso assim que tiver chance de pensar no assunto. Olivia, creio, ou talvez Alice. Glen era tão cuidadoso, tão responsável... O seguro da casa significa que não há mais hipoteca a pagar. O valor de seu consultório significa que já existem três compradores em potencial. E o seguro de vida de Glen significa que agora tenho muito dinheiro. Bill sabe de tudo isso, já que é nosso agente de seguros. — Então a situação dela está assegurada? — pergunta meu sogro, e sei que esta será uma das coisas que ele vai dizer: Glen cuidou para que a situação da esposa ficasse assegurada. Um tipo de loteria. Tudo está resolvido. O testamento será confirmado. O dinheiro do


seguro será depositado em nossa conta de investimento. A conta de investimento será colocada apenas em meu nome. O consultório de Glen será vendido. — Pela oferta mais alta, certo? — diz Bill. Mas eu falo: — Quero entrevistá-los — digo repentinamente. Surpreendo-me ao me ouvir. — Os compradores potenciais? — pergunta Larry Reinhold. — Podemos cuidar disso por você — diz Bill. Todos querem fazer coisas por mim. Pergunto-me o que eles acham que vou encontrar para fazer se tudo for feito por mim. Fazer sopa. Dirigir sem rumo. Folhear livros de receitas. Dormir. O fantasma de Mary Beth Latham passará, insensível, por sua própria existência, esperando algo para fazer, esperando que alguém chame. Esperando, e escutando, por três vozes familiares. — Quero entrevistá-los — repito. — Não quero que os pacientes de Glen acabem com alguém de quem não vão gostar. Ele não ia querer que isso acontecesse. — “É algo que posso fazer”, penso. “Eu te amo”, penso. Quase digo em voz alta. Ninguém responde. Finalmente, Larry anota alguma coisa e aquiesce: — Posso arranjar isso. Provavelmente aqui, não acha, não no próprio consultório? Mais alguma coisa? — O que me diz de um processo? — pergunta meu sogro. — Podemos processar aquele desgraçado? Podemos processar a mãe e o pai dele por sua, sabe... — Negligência — diz Doug. — É possível? Demoraram três dias para encontrar Kiernan. A polícia local estava fora de sua alçada, para ser gentil, ou sendo incompetente, segundo o pai de Glen. Eles passaram um dia inteiro procurando Alex depois que encontraram roupas ensanguentadas em uma pilha no chão de seu quarto,


e a cama feita. Visitaram os amigos das crianças, entrevistaram os vizinhos, reviraram a casa, desvirtuando qualquer evidência que pudesse ser encontrada ali. E, três dias depois, quando a história, as mancadas, e o fato de que Alex estava há milhares de quilômetros enquanto eles esquadrinhavam a floresta atrás dele chegaram aos jornais, a polícia estadual assumiu o caso. Eles foram ao quarto em cima da garagem e lá estava Kiernan, pendurado em uma viga por uma espalhafatosa corda de náilon azul e dourada em torno do pescoço, uma corda que eu comprara para amarrar algum compensado no teto do carro para um projeto de paisagismo do qual já não consigo me lembrar. A única razão pela qual me lembro da corda é porque tinha as cores da escola. Aparentemente, Kiernan passava períodos sobre nossa garagem havia meses, enquanto a mãe pensava que ele estava passando o final de semana com o pai, enquanto o pai pensava que ele estava com ela, enquanto ambos pensavam que ele estava na casa de um novo amigo da escola, embora não tivesse feito nenhum amigo, pois mal frequentara a nova escola. Quando alguém ligava para dizer que ele faltara à aula, ele apagava a mensagem; quando as cartas chegavam, ele as destruía. Como deve ter sentido frio quando o inverno chegou naquele quarto sem calefação, enrolado em seu velho saco de dormir, aquele que tinha usado em todas as noites em que olhava o céu com Ruby. Ele estava falando a verdade no Halloween, quando dissera que estava trabalhando em um projeto. Este cobria as paredes do quarto da garagem: dezenas de fotografias que ele tirara dos membros de nossa família: à mesa do jantar, no quintal, na Main Street, do lado de fora da escola. Ruby predominava, é claro, mas estávamos todos lá, e depois que as colara, tinha usado tinta spray para escrever diversas vezes

FAMÍLIAS FELIZES em vermelho sobre as imagens preto e brancas. A polícia não entendeu a referência a Anna Karenina, mas eu entendi. Ruby e Kiernan tinham lido o romance em inglês avançado, e Ruby desdenhara Anna por deixar o filho para trás e escolher Vronsky. Kiernan


dissera que ela não podia evitar, que o amor a fizera agir assim, o amor a fizera se jogar na frente de um trem em movimento, que o amor obrigava as pessoas a fazer coisas que não fariam de outra maneira. Ouvi Alice e Nancy falando sobre isso, e sobre o fato de que uma galeria de Nova York tinha pedido para remover as paredes da garagem e exibir a coisa toda. — As pessoas não têm vergonha — disse Nancy. E Alice respondeu: — Você viu a foto? — Não me diga que é incrível, porque se eu ouvir isso mais uma vez vou bater em alguém — respondeu Nancy. Acho que eu devia estar dormindo quando elas tiveram esta conversa, quando estavam discutindo as “diferentes possibilidades” do que acontecera naquela noite em termos de tempo e intenção. Mas quando eu imaginava aquelas letras vermelhas obliterando nossos rostos, nossos olhos, nossas vidas, a única possibilidade que fazia sentido para mim era a que eu achava mais difícil de acreditar. Ele só queria eliminar todos nós. — Sem processo — digo, e acho que Larry Reinhold parece aliviado. Talvez ele saiba o que eu sei: que ou eu sou uma mulher que era cega à obsessão de um jovem que estava instalado em sua própria casa, ou sou uma mulher que sabia exatamente do que ele era capaz e o acolheu mesmo assim. — Não estamos falando de dinheiro — continua meu sogro. — Estamos falando de responsabilidade. Se ele ainda estivesse vivo, seria condenado e apodreceria na cadeia. Agora é como se ninguém tivesse de assumir a responsabilidade. Lembro-me do que Glen uma vez disse sobre o pai: “Tudo tem que ser culpa de alguém. Se um raio cai em sua casa, é porque você colocou o pararaios no lugar errado.” — Não — repito. — Chega dessa conversa.


Quero ir para casa. Quero minhas pílulas. Não consigo respirar. Há um buraco de traça em meu vestido. Já estou de pé para apertar a mão de Larry quando meu sogro diz: — E eu? Posso processar os desgraçados? Estou me encaminhando para a porta quando Doug diz: — Pai, este não é o lugar adequado. — Que bobagem é essa? Este é um escritório de advocacia. — Pai, por favor. Eu me senti obrigada a convidá-los para almoçar. Finalmente, terei a chance de esvaziar o freezer. A lasanha, os pãezinhos integrais. Sentamonos na sala de estar com os pratos equilibrados no colo. Ginger late quando os homens desconhecidos entram na casa, depois fica zanzando pela sala, o focinho levantado procurando cegamente por algo. Meu irmão lhe dá um pedaço de pão. — Richard, não faça isso — digo reflexivamente. — Ela vai engordar. — Alex pode ter uma opinião diferente sobre um processo — diz o pai de Glen. — Pai, chega — diz Doug. — Onde ele está? — pergunta meu sogro. — Na escola. Depois tem basquete até as seis. Quer ficar para jantar conosco? Você seria bem-vindo. — Sinto como se estivesse recitando as falas de uma peça. Mal posso esperar que vão embora. Quando forem, poderei me sentar em uma cadeira. Apenas me sentar. — Temos seis horas de carro pela frente — diz ele, limpando o prato com um pedaço de pão. — Tenho um trabalho de manhã cedo. Talvez passemos lá para vê-lo jogar. Quando começam a sair, puxo meu cunhado para o quarto. — Certifique-se de que ele não diga uma palavra a Alex, ouviu? Estou tentando mantê-lo equilibrado, e não quero que seu pai o perturbe. — Deixe comigo, MB — diz Doug.


Ele é o único que me chama assim, e sempre achei afetuoso. Em alguns aspectos, ele é mais como meu irmão que meu verdadeiro irmão, que é mais como meu médico. Meu irmão ficou em contato com o posto de enfermagem supervisionando minha medicação e meus cuidados durante todo o tempo que passei no hospital. Ele ficou no telefone comigo na terceira noite, quando eles queriam me dar alta, mas eu estava com medo de partir. “Parece que quando coloco os pés no chão, estou pisando em um espaço vazio”, eu dissera, lutando para concatenar as palavras. “É como... exatamente como quando fomos ao lago e eu caí naquele ponto fundo e submergi e papai teve que me puxar. Sinto-me exatamente assim.” Houvera um silêncio, e meu irmão tinha dito: “Fui eu, não o papai.” Não sei mais em que acreditar. “Vou fazê-los trocar sua medicação”, dissera Richard. — Não sei como você está aguentando — diz meu cunhado, e eu quase rio diante da ideia. — Não consigo compreender, sabe? — continua ele. — Sabe, às vezes ficávamos um, dois meses sem nos falar. Mas eu sempre soube que podia contar com Glen. É como se eu tivesse perdido um pedaço de mim. — Ele levanta os olhos, depois os desvia outra vez. — Não acredito que estou dizendo isso logo a você. E sabe o que me mata? Lembro-me de ter encontrado aquele garoto aqui há dois verões. Quando foi, no final de semana do Memorial Day? Ele parecia ser um bom menino. Todos nós pensávamos que ele era um bom menino. Os jornais disseram que ele tomou ácido, fenilciclidina ou coisa do tipo. Eu nunca imaginaria que ele era um drogado. Aparentemente, esse é uma das muitas possibilidades. Kiernan era bipolar e não usava medicação, usava medicação, mas tinha parado de tomar os remédios, era viciado em drogas, era viciado em álcool. Era viciado em nós. Que diferença isso faz agora? — Quem sabe? — digo, cansada.


— Douglas! — vocifera meu sogro, da porta da frente. O ar frio invade a pequena casa. Ginger empurra seu focinho contra minha mão e lambe meus dedos, engordurados pelo bocado de manteiga que passei no pão para tentar fazê-lo descer. Sei que deveria odiar Kiernan, mas para mim é tão difícil quanto acreditar que nunca mais verei Ruby, Max ou Glen. Talvez tudo venha mais tarde: a compreensão, a raiva. Lembro-me de que instalamos um sistema de segurança para evitar intrusos em casa, e que só o usávamos quando saíamos de férias. Isso não importa: nosso intruso tinha um lugar em nossa mesa, sabia onde escondíamos os ovos de Páscoa e onde enterrávamos os porquinhos-da-índia. Era tão familiar que quando o vi no vão da porta do quarto naquela última vez, pensei que era meu próprio filho que vinha me matar. Ginger pula no balcão e come um pedaço de pão. Um pedaço grande, meu pedaço de pão, com apenas um cantinho mordido. Ela corre para o quarto, rasteja para baixo da saia da cama, presumindo que tentarei abrir suas teimosas mandíbulas, mas deixo-a ir. Que fique gorda. Limpo a cozinha, deito-me no sofá. Ginger fica embaixo da cama. Deve ser como uma caverna. Por um instante, queria estar lá. Isso me lembra de quando eu queria entrar no berço de Ruby quando ela era pequena, para poder ver o que ela estava vendo. “Isso é loucura, Mary Beth”, dizia Glen. O telefone toca. É o celular de Olivia. — Posso comer comida chinesa com o Ben? — pede Alex. O seguro, a casa, o testamento... está tudo resolvido, e as coisas parecem mais fáceis e calmas por causa das pílulas. Que ele coma lá. Deve ser barulhento, alegre e descomplicado lá. — O vovô apareceu no treino — diz Alex. — Disse que se eu crescer o bastante, talvez possa jogar basquete na faculdade. Ele e o treinador têm a mesma tatuagem. — Semper fi — digo.


— O vovô disse que significa “fique firme”. — Mais ou menos — digo. — Significa “sempre fiel”. — E, conforme as palavras saem da minha boca, levo o punho aos lábios. Há algo na frase, algo no que ela significa para mim agora, que me faz sentir como se fosse começar a gritar. Entendo que terei de ser fiel para sempre: à memória, à história, a uma vida que só não deixou de existir em minha mente. — A mãe de Ben disse que vai me mandar para casa com uma lanterna — diz Alex. — Disse que vai ficar me olhando da porta. Há um longo silêncio enquanto tento repelir minha onda de sentimentos. Os nós dos meus dedos pressionam meus dentes da frente. Sempre fiel. Sempre. Meu Deus, sempre é tempo demais. — Mãe? — chama Alex. — Você está aí? — Vou ficar na porta esperando também — digo, mas ele já desligou, e logo faço o mesmo. Dormir, dormir. É o único momento em que me sinto segura. Que ironia. Dormir. Eu te amo, penso enquanto me distancio.


Tenho um novo telefone. O velho está em algum lugar da minha antiga casa. Não estive lá ou sequer passei por lá de carro. “Já decidiu o que vai fazer com a casa?” meu sogro sempre pergunta quando liga. “Ainda não”, digo. “Você vai ter muita dificuldade em vendê-la”, diz ele. “Eu sei”, respondo. Tenho um novo número de telefone também. De alguma forma, os repórteres descobriram o antigo, antes de perderem o interesse em mim. Alice diz que tivemos sorte: no começo de janeiro um senador foi preso por conduta sexual imprópria em um banheiro público, e um terremoto destruiu parte de uma pequena cidade ao sul de São Francisco. Um dia depois, um grupo terrorista foi descoberto em Detroit. O chefe de polícia dissera aos repórteres que minha casa parecia o cenário de um ataque terrorista, e suponho que estivesse certo. Mas em vez de fervor político ou religioso, o ataque a nós foi impulsionado por algo mais poderoso: amor, raiva, desespero, todas aquelas coisas que o mundo adulto deprecia e não consegue entender porque deixou de senti-las. Se ao menos Kiernan pudesse ter vivido o bastante para aprender a sentir menos. Meu telefone toca, e a voz masculina do outro lado da linha é levemente familiar; a princípio, acho que é um dos repórteres, que se interessou por nós outra vez. Há um zumbido na linha, e um som semelhante ao que uma agulha fazia ao deslizar sobre o prato da vitrola. Depois o ruído cessa e eu ouço: — Sra. Latham?


É o Dr. Vagelos. Estou parada na cozinha perto da mesa. Estamos em março, e gotas caem ruidosamente do telhado para a sarjeta de cascalho ao redor da casa. — Sim? — digo. — Gostaria de falar com você sobre seu filho. Ouço a água batendo nas pedras. Ping. Ping. Os menores sons são altos para mim agora. No ano passado, Max começou a ler um monte de gibis sobre o apocalipse, o fim do mundo. “Pornografia de desastre”, Ruby repudiara. Agora entendo o objetivo. As imagens de cidades sendo arrasadas são apenas tentativas dos humanos de encontrar uma alternativa na qual não sejam sentenciados a sofrer sozinhos. Sei como o desastre realmente acontece, não com uma nuvem em forma de cogumelo, mas com choro, um punhado de lenços amassados, o alto e incessante retinir da água no cascalho. — Ele está morto. — Deixo escapar. E por algum motivo falar em voz alta torna o fato mais real do que nunca, mais real do que quando os atestados de óbito chegaram pelo correio, mais real do que quando o advogado me fez assinar os documentos do seguro e do espólio, mais real que quando as urnas cheias de cinzas chegaram da funerária e eu as coloquei na prateleira mais alta do armário do quarto. Por um instante, perco todo o ar do meu corpo, e então coloco o telefone na mesa e saio pela porta de trás para a grama. Não sei quanto tempo se passa, mas quando volto para dentro não há ninguém na linha. Então o telefone toca novamente, e ouço a voz do Dr. Vagelos, mais suave desta vez. — Sinto muito — diz ele, sem preâmbulos, e lembro-me de que pensei tê-lo visto no funeral. Cabelo escuro, armação escura nos óculos. Seus óculos. Foi assim que me lembrei de quem ele era. Caso fosse ele. Havia rostos demais naquele dia. Pacientes, colegas de turma, vizinhos, clientes, amigos. Tantos... — Obrigada — digo, como sempre.


— Na verdade, estou ligando para falar de Alex. — Alex? — Ele veio me ver ontem. Quer conversar comigo. É um pouco incomum tratar irmãos, mas o faço de tempos em tempos, especialmente se são gêmeos. Eu gostaria de ajudá-lo se você concordar. — Alex? Alex quer falar com você? — Se você concordar. — Ele não falou nada comigo. — Imaginei que podia ser o caso. Tenho a impressão de que ele não quer preocupá-la. Sei que você está ciente, mas ele está em uma posição difícil. As pessoas usam o termo “culpa do sobrevivente” casualmente, mas é um fenômeno real. Acho que ele sente a necessidade de conversar com alguém de fora de seu círculo habitual. Enquanto o médico fala, posso visualizá-lo em minha cabeça, vejo-o e à sua fotografia com o irmão. Eu presumira que o irmão estivesse vivo, mas talvez estivesse enganada. Não quero perguntar a ele. Descobri que a morte é algo que as pessoas não querem discutir. No silêncio, ele adiciona: — Se você está desconfortável comigo por causa de Max, posso recomendar outra pessoa. E, por um momento, sinto um amor enorme por esse homem, que falou o nome do meu filho. Ninguém faz isso; ninguém diz o nome deles. E porque sou tão culpada quanto os outros, repito: — Max. — Sinto falta de ver Max — diz o Dr. Vagelos. E com grande esforço eu digo: — Eu também. Sento-me por um bom tempo à mesa e depois subo a colina para a casa de Olivia. Comecei a pensar em procurar uma casa para alugar, embora Olivia e Ted tenham dito muitas vezes que podemos ficar na casa de


hóspedes indefinidamente, que Ben adora ter Alex por perto, que as notas de Ben melhoraram nos últimos meses porque os dois fazem os deveres de casa juntos, que os meninos menores sentem como se tivessem outro irmão mais velho. — Preciso falar com você — digo quando ela abre a porta dos fundos. Conto-lhe sobre a ligação do Dr. Vagelos. Ela baixa os olhos para as próprias mãos, estendidas sobre a mesa, e diz: — Não acha uma boa ideia? Eu acho. — Acha que ele está em conflito? Está preocupada com o comportamento dele com você e os meninos? — Na verdade, não — diz ela. — Ele está mais quieto do que era antes, mas acho que seria estranho se não estivesse. Ben diz que ele parece triste às vezes. Diz que às vezes Alex começa a falar sobre Max e então para, como se ainda não soubesse como fazê-lo, ou o que dizer. Mas eles são meninos. Eles não expõem os sentimentos, não é? Gostaria que o fizessem. E se ele realmente se deu ao trabalho de ir sozinho ver esse homem e pedir para conversar com ele, acho que seria benéfico. Ele precisa desabafar. Imagino que não sinta que tem outro lugar para fazer isso, além, talvez, do consultório desse médico. — Ele realmente compartilha essas coisas com Ben? Quero dizer, eles são melhores amigos. — E assim que digo essas palavras, percebo que não conversei com Alice ou com Nancy ou com a própria Olivia sobre nada disso, que minha maior preocupação tem sido manter a agonia e a raiva que sinto longe da luz, por medo de que, se forem vistas claramente, se tornarão insuportáveis. Como se pudesse ler meus pensamentos, Olivia responde, em uma voz suave: — Tenho certeza de que às vezes parece mais fácil, ou ao menos mais simples, não falar sobre o assunto. — Mesmo comigo.


— Especialmente com você. — Seus olhos azuis cintilam na iluminada cozinha branca, e percebo que ela está à beira das lágrimas. Penso no círculo que se formou à nossa volta, nossas famílias, nossos amigos, e que todos fizemos um voto de silêncio que está nos comendo vivos. Eu aquiesço e me levanto, desço a colina e pego minha bolsa e minhas chaves. Coloco Ginger na traseira do carro e começo a dirigir. Dirijo rapidamente, diminuo a velocidade, acelero outra vez, passo por montanhas e vales, passo por estradinhas de cascalho de mão única e cruzamentos. Sigo a esmo, sem destino. Acabo na casa de final de semana na qual plantamos todas aquelas grandes árvores e deixo Ginger sair. Ela fareja desconfiada o terreno desconhecido, depois faz xixi e pula de volta para o carro. Percebo pelos indícios de brotos verdes nas pontas de alguns galhos, que todas as árvores pegaram, todas exceto uma perto da entrada, que parece um esqueleto cinzento. Esta precisará ser arrancada e substituída. E me pergunto quem o fará. A ideia de que um dia eu estive parada aqui, com Rickie, uma escavadeira e um plano para o futuro, para o futuro de algo simples como uma árvore, parece impensável. Consigo visualizar aquela mulher, com suas calças capri cáqui e seus tamancos de jardinagem, com as mãos nos quadris. Mesmo assim, de alguma forma ela não sou eu. E mesmo assim eu decidi tentar fingir que sou ela apenas por esta tarde, pelo bem de meu filho. Estaciono na Main Street e passo em frente à Molly’s Closet, os três vestidos floridos nos manequins da vitrine, um anúncio de uma primavera que parece improvável conforme o tempo frio se arrasta março adentro. Entro na farmácia, e o farmacêutico, que está ao telefone, acena enquanto olho para coisas que não vejo realmente e que não vou comprar. Escolho um xampu que, percebo, é o mesmo que já tenho no banheiro. Levanto os olhos para uma janela de segundo andar onde Max tinha suas aulas de bateria, mas não há movimento ali. Meu telefone toca. É Alice.


— Oi, querida — diz ela, suavemente. Já faz um tempo que não pede conselhos sobre Liam, e eu sinto falta disso. Decido dizer a ela. — Você já tem muito com que se preocupar — comenta ela. — Não tenho nada com que me preocupar. Acabei de passar uma hora fazendo... o que era aquele negócio sobre o qual você me falou na igreja, em que você andava e olhava para placas de Jesus subindo a colina? Eles tinham números, orações ou coisa parecida? — A via-crúcis? Não penso na via-crúcis há anos. A única parte de que consigo me lembrar é aquela em que Verônica enxuga o rosto dele. — Quem é Verônica? — Não faço ideia. Você não está falando da verdadeira via-crúcis, não é? — Não, estou na Main Street, fazendo a via-crúcis do Center Valley. Sinto que tenho que tentar agir como uma pessoa normal. Já se passaram dois meses. — Ah, querida — diz Alice. — Dois meses não são nada. — Alex quer ir a um terapeuta. Acha que é bom? Olivia acha. — Acho que sim. — Acho que eu também. Como está Liam? — Está apaixonado pela professora da escola. Exatamente como você me alertou. Fico em silêncio. Sobre o que mais alertei Alice? Cadeirinhas para bebês mal afiveladas no carro? Pequenas peças plásticas de brinquedos? Esses eram os tipos de coisas sobre as quais as pessoas me alertavam. Não me alertaram sobre barulhos estranhos no meio da noite, sobre o quarto acima da garagem. — Mary Beth? — diz Alice. — Desculpe, desculpe, estou distraída. Tenho que ir. Estou indo à loja de ferragens. Preciso de um martelo. Compro um martelo. Estamos no meio do dia, e há poucas pessoas na Main Street. O vento


ainda está forte, e as nuvens amareladas sugerem chuva. Mas, naturalmente, esbarro com a pessoa que tenho menos vontade de ver, a mãe de Rachel, Sandy. Tenho que ligar de novo para Alice e dizer que havia uma cruz especial esperando por mim. Há pessoas que querem toda a pompa da tragédia sem qualquer dor, e sei que Sandy é uma delas, e que ela contou a qualquer um que tenha perguntado, e mesmo a quem não o fez, que somos amigas íntimas e que ela está devastada pelo que aconteceu. Seu abraço dura um tempo exagerado, e seus olhos se enchem de lágrimas rápido demais. — Penso em você constantemente — diz ela. — Obrigada — respondo. — Tem sido terrível para Rachel — diz ela. — Ela se sente responsável. Ela e Sarah se sentem responsáveis. — Isso é ridículo. — Não se podem evitar os sentimentos. Cada um sente o que sente. Parece que ela está lendo algum livro de autoajuda em voz alta. Tenho uma prateleira cheia deles agora: Transpondo o luto, Como é perder um filho, O legado da violência, Oração e cura. As pessoas os enviaram para mim. A filha de Stan me mandou um chamado Criando uma nova vida, e suspeito de que minha mãe o jogou fora depois de arremessá-lo contra a parede. Quando me casei, ganhei um réchaud prateado com uma vela embaixo, e quando Ruby nasceu, ganhei um vestido infantil de veludo preto com uma delicada gola de renda. Esses livros são igualmente inúteis. Quando chegar em casa, penso, vou colocá-los todos na lata de lixo reciclável. — Mande um beijo para Rachel. — Ela quer ver você. Tem sido terrível para ela. Ela sente muito a falta de vocês. — Ela se inclina para mais perto, conspiratória. — Ela está indo a um psiquiatra. Não tive escolha. Assinto com um gesto de cabeça.


— Ela perdeu quase 5 Kg desde que tudo aconteceu — continua Sandy com ar confidencial, e não consegue impedir a si mesma de parecer satisfeita. Nossa conversa morre rapidamente. Não posso culpar Sandy. Assuntos fúteis parecem fúteis demais, e exageros parecem gigantescos. Sei disso por vergonhosa experiência. Nos últimos dois meses, pensei com frequência no casal cujo filho morreu de leucemia. Na primeira vez em que encontrei a mãe depois do que aconteceu, disse todas as coisas apropriadas, lembreime até de que ele tocava guitarra e escrevia músicas. Mas na segunda vez, quando sua perda já estava um pouco desgastada, não consegui decidir como me aproximar. Eu a vi na calçada e ajustei meu rosto cuidadosamente: nem sorridente, nem triste, apenas solícito. Ficamos paradas na rua e nos esforçamos para transpor a distância entre nós, mas o esforço tornou impossível atravessá-la. A sobrevivência dela parecia não só incrível como imprópria. “Como ela está suportando os dias?”, perguntávamos a nós mesmas, satisfeitas com a noção de que nossos próprios filhos sujariam a cozinha e deixariam toalhas no chão do banheiro naquela mesma noite. Um dos piores aspectos de agora viver na margem oposta, é que do outro lado do abismo vejo meu antigo eu despreocupado e inconsciente. Desprezo aquela mulher, suas tolas preocupaçõezinhas e sua desprezível solidariedade. Ela não sabia nada. Mas não posso desejar para ela o que sei agora. Paro na floricultura e compro uma orquídea para Olivia, e a florista me conta que ouviu de várias pessoas que esperam que eu volte ao paisagismo em breve. Passo em frente ao hotel deserto fora da cidade e suspeito de que isso não vá acontecer. A polícia passara dois dias interrogando todos os rapazes mexicanos, e quando o interrogatório tinha terminado, meus homens deixaram o estado e depois o país, onde tinham todos entrado ilegalmente. Eu sabia que eram imigrantes ilegais, é claro. Apenas nunca perguntara. Imagino se José está morando com suas duas filhas agora, se a


menor conseguiu remover as amígdalas. As velhas janelas do hotel estão quebradas, e alguém jogou pneus velhos em um dos cantos do estacionamento. Outro dia, no jornal, diziam que a cidade estava pensando em exigir que o proprietário reformasse o lugar ou o demolisse. Talvez seja isso que farão com minha casa também. Se a demolirem, arrancarem as águas-furtadas e o telhado, reduzirem a garagem a uma pilha de tábuas velhas, será como se a noite de Ano-Novo nunca tivesse acontecido? Sei que Nancy providenciou uma equipe de limpeza, que o sofá da sala de estar no qual a polícia encontrou Ruby foi descartado, que o tapete de nosso quarto foi jogado fora, e o tapete da saleta também. Mas sei dessas coisas apenas por ouvir as pessoas debatendo-as. Isto é o que me pergunto: eles apagaram as luzes? Se eu tivesse passado por lá depois, teria visto o brilho amarelo na noite de inverno, os abajures acesos para me dar as boas-vindas à casa? Se eu morasse do outro lado da rua, teria observado as luzes se apagarem com o tempo, uma por uma, até que a casa escura desaparecesse na escuridão da noite? Nancy foi a nossa antiga casa e encheu uma sacola com as roupas de Alex, seus uniformes, suas bolas e tacos. Ela pegou sua bola de futebol também, aquela assinada dentro da caixa de acrílico, mas ela está na prateleira mais alta do armário dele, atrás de uma caixa com suas roupas de natação e suas camisetas polo do acampamento. A escola brilha na noite, não amarelo, mas o branco áspero da fluorescência, uma luz que mais intimida que acolhe. Uma fila de carros forma uma parede entre sua mureta bege e a estrada. Há quatro dias, um dos calouros entrou rápido demais na curva em que estou e foi levado de helicóptero para o hospital com a espinha quebrada. Essa é mais um das maneiras pelas quais o que aconteceu com nossa família começa a esmaecer na consciência da cidade. Paro ao lado do carro de Olivia. Ela está meio voltada para o banco de trás. Percebo que repreende um dos meninos pequenos. Ela não levanta a


voz; tem um tom comedido que suspeito ser mais eficaz que minhas estridentes explosões jamais foram. Ela me vê, para e sorri. O pequeno Luke segue seu olhar, olha para mim e fecha dramaticamente a cara, o lábio inferior projetado, a testa franzida. Está claro que se ressente de toda a atenção que a mãe tem me dado. Alex e Ben correm juntos para o carro, os casacos abertos, as mochilas sacolejando em seus ombros direitos, os rostos vermelhos de esforço e suor. Ouço Alex rir e percebo que é a primeira vez que ouço esse som em meses, talvez desde o Natal. Ele tem uma risada grave agora, não uma risada de homem, mas chegando lá. Vejo-o correr em direção ao carro de Olivia, e de repente entendo o motivo de ter dirigido até aqui sem sequer saber por quê. Com a família de Ben, Alex sente-se confortável, calmo, afastado da raiva, do luto, da amargura e do desânimo, do horror e do silêncio. Com a família de Ben ele pode fingir que esqueceu o que aconteceu, fingir que tudo está bem e normal, que a vida é simples e segura. Ele poderia facilmente se tornar o Kiernan da família deles, um garoto procurando um lar temporário em uma cozinha mais feliz. Olivia sai do carro e diz: — Alex, querido, veja quem está aqui. Eu também saio e olho para meu filho. Seu rosto não tem expressão alguma. — O que aconteceu? — pergunta ele, e o máximo que consigo fazer é não verbalizar o que passa por minha cabeça, não dizer: “O que mais poderia ter acontecido?” — Nada — digo. — Só achei que podíamos ir comer uma pizza. Ben pode ir também se você quiser. Alex olha para Ben, depois olha de novo para mim. Olivia diz animadamente: — Ben fica conosco. Leve Alex. Você vai trazê-lo para a escola amanhã? — E nesse momento, quando percebo que ela observa e entende tudo,


Olivia se torna não só minha salvadora, mas minha amiga. Para completar, ela pisca para mim. — Eu preciso muito fazer xixi — grita Luke de dentro do carro. — Tenho um monte de dever de casa — diz Alex, quando saímos. — Não vamos demorar — digo. Minha voz soa falsa para mim e percebo que é minha voz social, a que usei com Sandy e com o homem da loja de ferragens que me disse que tipo de martelo comprar. — Não vamos demorar — repito, e desta vez pareço mais comigo. — Legal — diz Alex. — Como foi o treino? — O novo treinador é muito maldoso. — Mesmo? — Ninguém gosta dele. Tipo, ele é muito sarcástico. Ele chega para mim, “Latham, a bola pertence ao time todo, não é só sua”, como se eu fosse algum fominha! E eu não estava prendendo a bola. Não conheço o novo treinador, mas o adoro por esse dom da maldade. Eu o adoro por não ser amável e brando com Alex, por não lembrá-lo e a todos os outros de que Alex está indelevelmente assinalado como ferido. Irei ao próximo jogo e direi: “Olá, sou a mãe de Alex.” — Falei com o Dr. Vagelos hoje sobre vocês se encontrarem — digo quando descemos uma colina íngreme. Alex vasculha sua mochila enquanto decido o que dizer em seguida. E me pergunto se ele é tão cuidadoso comigo quanto sou com ele. Não digo: “O que o fez ir vê-lo?” Não digo: “Por que não me contou?” Não digo: “Por que não conversa comigo?” Não digo: “Como é, para você, que todos eles tenham partido?” Sei como é não ter pai, com uma mãe que nunca fala sobre isso. É ruim. É muito ruim. Digo: — Acho ótimo.. — Legal — diz Alex.


Depois de alguns instantes, ele fala: — Estou com muita vontade de comer pizza. “Anchova?” tenho vontade de dizer. É uma velha piada familiar. “Não se você dá valor à sua vida”, posso ouvir Ruby respondendo. Ela ensinou os dois meninos a dizerem a mesma coisa. Em silêncio, seguimos enquanto a noite preenche o carro.


Alice está vindo passar dois dias conosco. “Há uma feira de artesanato!” diz ela, como se estivesse falando de uma estreia na Broadway ou de uma visita real. Quando estaciona o carro, Ginger late, e eu olho para a elevação em direção à casa de Olivia. Imagino que Olivia abriu levemente as cortinas floridas de seu quarto para ver Alice chegar. Alice é péssima em guardar segredos, e com certeza vai me contar se Olivia tiver ligado para dizer que este seria um bom final de semana para ficar comigo. Essa é outra coisa que aprendi a antever, mas da qual não consigo gostar: a ideia de que as pessoas estão falando sobre mim, tirando minha temperatura emocional. Meu sogro liga, e no dia seguinte o irmão de Glen, Doug, faz o mesmo, e imagino a conversa que ocorreu entre eles: Ela me pareceu deprimida, ela não está saindo muito, ela precisa trabalhar, arranjar uma casa, sair daquele lugar. Ao menos Nancy se nega a esconder-se atrás de amabilidades. Na última vez que nos falamos ela disse: “Procurei você no jogo de basquete. Onde você estava?” Onde eu estava? Foi a noite em que assisti a um filme na TV, ou a noite em que limpei o banheiro? Ou foi uma noite mais comum, uma noite em que tomei uma xícara de chá e guiei minha mente através de um labirinto traiçoeiro, passando pela visão de Ruby atrás do volante de seu Volvo sorrindo para mim, passando por Max esmurrando sua bateria com o cabelo marcando o tempo, passando por Glen abaixando-se para acariciar a cadela e depois apoiando o braço no encosto do sofá atrás de mim. Minhas


lembranças são traiçoeiras. Há uma semana, eu estava no supermercado e me vi em frente à sessão de congelados, olhando para caixas de hambúrgueres vegetarianos do tipo que eu tinha de procurar para Ruby quando ela parou de comer carne no oitavo ano. Abandonei o carrinho e as compras e dirigi para casa, tremendo. Ontem achei uma meia preta masculina entre minhas camisetas, uma única meia do tipo das que meu marido usou durante toda a vida adulta, e a pressionei contra o rosto, depois a deixei na borda da pia do banheiro, em seguida a escondi embaixo do armário do banheiro para que Alex não a visse, então a tirei de debaixo da pia e a recoloquei na gaveta na qual a encontrara. As fotografias e recordações de família ainda estão na outra casa, na casa assombrada, na casa abandonada. E mesmo assim sou encurralada por comida congelada, por meias perdidas. — Comprei bagels! — diz Alice, segurando o saco de papel no alto. — Você trouxe bagels suficientes para um exército — digo. — Mary Beth, sei que você vai me matar por dizer isso, mas está falando exatamente como sua mãe — diz ela, e eu dou um tapa em seu braço, e ela me abraça. Quando sorrio, pareço a porta da frente de nossa antiga casa: cheia de dobradiças enferrujadas e sem uso. Mas eu tento. Alex e Ben estão em um workshop de final de semana sobre basquete. “Eu tenho que ir”, dissera Alex quando me entregara o formulário de permissão e vira a expressão em meu rosto. Dirijo até a escola para ver o time entrar no ônibus. Entreguei a Alex sua sacola e uma caixa de cookies com gotas de chocolate. “Ainda estão quentes”, eu disse. Enquanto as portas do ônibus se fechavam com um silvo, vi os cookies sendo passados de banco em banco. Alex estava falando com alguém do outro lado do corredor quando o ônibus saiu. Acenei para ninguém. — Você pode jantar conosco? — perguntou Olivia, enquanto voltávamos para nossos carros. — Acho que vou ficar em casa esta noite — respondi, como se não fosse


o que fazia todas as noites. — Vamos sair para jantar! — diz Alice, e eu compreendo que esta é a visita designada a me reinserir no mundo exterior, a visita feliz, a visita da conversa fiada. Até mesmo Alice está com medo de ouvir o que estou pensando. Não a culpo; estou com medo de pensar o que estou pensando. Dirigimos até uma steak house na qual Nancy e eu jantamos muitas vezes, e Alice fala de um livro sobre Thomas Jefferson que está revisando, de uma controvérsia sobre uma estação de tratamento de água em seu bairro, e do preço dos imóveis em Nova York, e deixo as palavras dela deslizarem sobre mim, meu rosto arranjado como se eu estivesse ouvindo. Há um macete para fazer isso, mas eu o aprendi: a-hã, a-hã, aquiesço com a cabeça, a-hã, ahã, aquiesço. — Não está bom? — pergunta ela finalmente. — Comi muito no almoço — digo. — Quer uma quentinha para o cachorro? — pergunta a garçonete. — Nós temos mesmo um cachorro para quem levar — diz Alice. Ginger ganha metade, e colocamos a outra metade na geladeira. — Para mais tarde — diz Alice. Isso significa que em quatro dias, que parece um tempo adequado, vou jogar aquilo fora. Alice se abaixa para olhar dentro da geladeira. — O que é aquilo? — pergunta ela, apontando. — É um peru. Rickie trouxe outro dia. Um dos rapazes com quem trabalho. — O grandão? Eu faço que sim. — Um peru inteiro? — E uma furadeira sem fio — acrescento. Ele apareceu na porta usando um casaco acolchoado e um boné de beisebol, os braços fortes. Ele deixara a barba crescer, e havia migalhas nela. Eu ofereci café, mas ele não podia ficar, ou disse que não podia. Um


peru e uma ferramenta elétrica: imaginei-o quebrando a cabeça para decidir o que trazer. Beijei sua bochecha. — Estou exausta — digo a Alice, e é verdade. É exaustivo fingir que se é outra pessoa por todo esse tempo. Ou não outra pessoa: a mesma pessoa de antes, que parece alguém que conheci há muito tempo. Normalmente, só preciso agir assim em doses homeopáticas: dez minutos aqui, uma hora ali. No restante do tempo, ocupo-me de pequenas tarefas repetitivas. Pensei em aprender a tricotar, mas imagino Alex indo para a escola com suéteres deformados e sentindo-se culpado ao enfiá-los no fundo de seu armário. Talvez eu faça uma manta. Certa vez, disseram que ninguém quer uma manta. Fui eu, antes, aquela outra eu. — Não são nem nove da noite — diz Alice. Ela se senta no sofá, e sentome perto dela, ambas olhando para a frente. Gastamos toda a conversa fiada. Parecemos duas pessoas esperando o ônibus em um banco. Duas estranhas. — Não sei como agir na sua frente — diz ela finalmente. — De certa forma, é mais fácil falar pelo telefone. — Sua voz está rouca, e quando olho ela está chorando. Ela soluça e eu afago suas costas. — Ah, meu Deus — exclama ela finalmente. — Isto é imperdoável. Por que sou eu que estou sentada aqui chorando enquanto você me conforta? Estou envergonhada de mim mesma. — Ginger cheira o rosto dela, gane suavemente. Ginger fica angustiada com lágrimas. Isso me ajuda a parar, às vezes. — Está tudo bem, Al. — O que está bem? Que sou completamente inútil para você? Que passei a noite inteira tentando agir como se nada tivesse acontecido nos últimos seis meses além de um apartamento em meu prédio ter sido vendido por 1 milhão de dólares? Que você é minha melhor amiga e não consigo sequer encontrar uma maneira de falar com você? — Isso vale para nós duas — digo. Sei que é verdade. Quantas vezes nos últimos três meses me lembrei das duas personalidades de Ruby, a jovem


amável e atenciosa que falava com tanta doçura a estranhos e a pessoa que ela libertava em casa, onde estava segura, onde podia ser agressiva, desagradável, indecisa e confusa? Eu também tenho duas personalidades agora, aquela que sai para o mundo e diz o que parecem ser as coisas adequadas, e aquiesce, e escuta, e às vezes até sorri, e a mulher real, que a observa em choque, que não é nada além de uma ferida, uma ferida que não para de latejar a não ser quando está anestesiada. Sei o que o mundo quer: que eu me cure. Mas para me curar eu teria que esquecer, e se eu esquecer, minha família morrerá de verdade. Eu consigo enterrá-la, aquela mulher ferida. Tento empurrá-la para baixo. Mas ontem à noite, quando voltei da escola, sabendo que Alex estaria fora até a noite de domingo, ela tomou conta da casa, sua gêmea controlada banida para o armário com meu casaco e meu cachecol de lã. A quietude era como uma mão sobre minha boca e meu nariz, e senti que ia sufocar. Estava com medo de começar a gritar, e fui ao quarto de Alex, que não é voltado para a casa de Olivia, de forma que ninguém me ouviria. Sentei-me na cama emprestada de meu filho e percebi que era desconfortável, que o colchão afundava no meio, e enchi o quarto com meu lamento. Por alguma razão, eu me peguei repetindo em voz alta a palavra “Chega. Chega.” Não que eu quisesse morrer; só não conseguia suportar a sensação interminável de estar viva. E então me ocorreu que eu já estava morta, que o que restara era uma carapaça, como as cascas de cigarra que encontramos há alguns verões. Eu era plena, de criar os filhos, de tomar conta, de tarefas e planos e um futuro brilhante, e agora tudo o que restou foi a pele translúcida do que um dia foi minha vida. — Podemos conversar? Conversar de verdade? — pergunta Alice, enxugando os olhos com a lateral da manga, do jeito que fazia na faculdade. — Sobre o quê? — Sobre tudo. Sobre eles. Sobre o que você está sentindo. Sobre como é. Paro por um instante e realmente penso no que ela disse, em vez de


fingir que estou pensando. Eu devo a Alice mais que a Mary Beth que criei para consumo público, mas não posso mostrar-lhe aquela outra mulher escondida. Ela é terrível demais, como se eu também tivesse sido estrangulada e retalhada, como se meu verdadeiro eu estivesse mutilado, dilacerado e assassinado. Não posso mostrar o corpo a Alice. Ela não é tão forte quanto pensa. Ela também tem uma mulher escondida, uma personalidade mais delicada e insegura. — Ainda não consigo conversar sobre isso — digo, finalmente. Acho que talvez nunca consiga, não do jeito que Alice pensa. Por que eu compartilharia o que ninguém quer saber? Por que ouviria as palavras daqueles que não sabem nada? Posso predizer o que dirão: Vai ficar mais fácil. Mentira. Você consegue aguentar. Mentira. O tempo cura. Mentira. O tempo passa. Lentamente. — Estou preocupada com você — diz Alice. — Parece que estou falhando com você. Quando éramos jovens, eu era ótima nisso. — Anime-se! — digo. — É o que você sempre dizia. — Eu a fiz ir a um monte de festas e bares que você não queria ir dizendo isso. Eu a fiz ir àquela festa na qual conheceu Glen. — Eu me lembro — digo. — Lembra-se de quando você achou que podia querer virar terapeuta? — Uau! — diz Alice. — Eu tinha praticamente me esquecido disso. — E que se tornou voluntária em um grupo de ajuda, conversando com as pessoas sobre seus problemas? Alice se surpreende. — E depois de duas semanas — adiciono —, você voltou para o quarto e disse: “Desisto, só me interesso pelos problemas das pessoas que conheço.”


— É verdade. Mas agora... — continua Alice, sua voz começando a tremer. — Eu sei. Eu sei. — Abraço-a com força. — Olivia telefonou para você pedindo que viesse hoje? — Olivia? Não. Foi o Alex. Ele disse que você passaria o final de semana sozinha. Eu viria em breve, de qualquer forma, mas ele disse que este final de semana seria bom porque ele ia viajar. Eu me recosto. — Ele está sempre me surpreendendo — digo. — Primeiro o terapeuta, depois você. — Não acho que o que ele tinha em mente era que eu me sentasse aqui e chorasse — diz Alice, assoando o nariz. — Pelo menos você tem o Alex. Ah, meu Deus, essa é a coisa mais idiota a se dizer, não é? — Não — digo —, é a verdade. Mas não o tenho da forma que Alice diz. Quando ele chega em casa, vai para o quarto e fecha a porta. A música é ligada e eu me lembro de Max, só que, como sempre, Alex inverteu as coisas. Ele fica satisfeito lá fora, no mundo, mas quando volta para cá, para esta pequena casa, para este lar provisório, para a mesa da cozinha com apenas duas cadeiras, sua perda é algo terrível, palpável. Ele a coloca em um quarto apertado, a mantém prisioneira. — Estou mesmo cansada — digo. — Você se incomoda de ficar no quarto de Alex? Eu troquei os lençóis. — Sei que Alice quer dividir o quarto comigo, como fazíamos quando éramos jovens, mas isso significa que ela dormiria no lado da cama de Glen, o que é intolerável. Na manhã seguinte, vamos à feira de artesanato. Alice compra para Liam um chapéu de bobo da corte de feltro com guizos. Compra uma blusa de seda feita com pedaços de velhos quimonos, e brincos para presentear sua assistente no aniversário. Eu passo por peças de cerâmica, mensageiros do vento de cobre, cachecóis de tapeçaria, e paro em frente a uma barraca de


paninhos emoldurados, uma exposição de axiomas: “Uma filha é uma amiga para a vida toda.” “Há um lugar especial no céu para as mães de menininhos.” “Viva Ria Ame.” Uma mulher está sentada em uma cadeira de praia, bordando em ponto cruz uma peça que diz “Mais hoje que ontem”. — Posso ajudá-la? — pergunta ela. — Não — respondo. — Você não comprou nada? — pergunta Alice, no carro. Eu deveria ter comprado alguma coisa, qualquer coisa, para tranquilizála. Quando chegamos em casa, comemos bagels com salmão defumado e até alcaparras, que Alice trouxe em um vidrinho, e subimos para que Alice veja Olivia. — Ela é ótima — diz Alice, quando estamos descendo novamente a colina. — Ela tem sido uma boa amiga — digo, e quando vejo a expressão de Alice, falo: — Al, você tem sido maravilhosa. Você estava lá desde o começo. — Sinto que não fiz o bastante. — Ninguém pode fazer tanto — digo. Ginger segue atrás de nós. — Vamos caminhar pelo bosque — diz Alice. Uma trilha de cervos parte dos fundos da casa de hóspedes penetrando profundamente nos densos pinheiros. Alex diz que há um riacho mais à frente, mas nunca fui tão longe. Quando me distancio demais, mesmo levando a cadela, começo a sentir medo. Não temo aquelas coisas que as pessoas podem imaginar, sons repentinos, a aparição de um estranho. É que a cada passo sinto que estou ingressando em outro mundo, o mundo de Mary Beth sem Glen, Mary Beth sem Ruby e Max. Foi por isso que não consegui comprar nada na feira, nenhuma das mantas angorá ou saladeiras de madeira, ou mesmo os cordões de contas de vidro. Se comprar alguma coisa, significa que estou construindo uma vida posterior.


— Vamos voltar — digo a Alice.


Nancy me convidou para almoçar com as duas meninas, com Sarah e Rachel. Há narcisos em um vaso na mesa redonda do canto da cozinha. Sarah fez uma quiche, e Rachel fez uma salada Waldorf. Há um caráter de revista feminina no evento: “Faça um almoço feminino com as meninas de sua vida!” Mas às vezes sinto que tudo em minha vida agora é uma reportagem tutorial: Como criar um filho único. Como saber se você está tomando remédios demais. Como sair da cama de manhã. “As meninas precisam falar com você”, dissera Nancy ao telefonar. É por isso que estou indo, pelas meninas. A temporada de basquete deu lugar à de lacrosse; o inverno, à primavera. Já se passaram quase quatro meses desde que estive na casa de Nancy para a festa de Ano-Novo. Eu me pergunto se Nancy sequer pensou em como é difícil para mim estar aqui, passar pela porta do último lugar em que tive Ruby nos braços. Eu e ela não nos vimos muito desde as semanas seguintes à minha saída do hospital. Nancy foi feroz e focada quando ferocidade e foco eram necessários. Ela intimidara a equipe de enfermeiras, ligara para a escola, atormentara a polícia e cuidara dos amigos de Ruby, que afluíam a sua casa. Eles se sentavam no chão da saleta e assistiam às gravações de eventos escolares, olhavam antigos livros do ano e contavam histórias uns aos outros. Sarah gravara as histórias, as passara para o papel e as mandara para mim em uma grande caixa. Ainda não as li. Tenho muitas caixas que não quero abrir.


Mas Nancy parece incapaz de esmorecer com o passar do tempo, de oferecer conforto ou só silêncio, como Alice faz ao telefone e Olivia, em sua cozinha. Ela vocifera perguntas para mim, ou instruções: Preciso ver um conselheiro de luto, percorrer a velha casa, exigir um relatório policial. “Eu ia querer ver as fotografias”, dissera ela com firmeza. “Eu ia querer saber.” Ela pensa que os fatos são importantes, a precisa coreografia da noite. Talvez seja porque ela é bióloga. Talvez essa seja uma abordagem científica. Sei de tudo o que preciso saber. Minha filha foi estrangulada. Meu filho foi esfaqueado várias vezes. Meu marido foi esfaqueado duas vezes, nas costas e no pescoço. O chefe de polícia me contou isso quando foi me ver. “Foi uma sábia decisão pedir a sua mãe que fizesse os reconhecimentos”, dissera ele, como se eu fosse entender exatamente o que aquilo significava. Talvez Nancy fique satisfeita em ouvir que tenho procurado casas para alugar. O corretor me levou para ver uma, e quando saí estava olhando para o antigo quintal de Kiernan. Havia uma leve depressão de um dos lados, que eu sabia um dia ter sido uma piscina. A varanda ainda estava lá, a varanda na qual Deborah e eu tínhamos passado tantas tardes nos apoiando contra a forte correnteza do dia a dia materno, a varanda na qual meu marido tentara reanimar o pequeno Declan depois de tirá-lo da transparente água azul. “Esta não”, eu gritara sobre o ombro para o corretor enquanto atravessava a casa e voltava para o carro. Rachel e Sarah descem as escadas assim que toco a campainha. Abraço as duas com força, como se estivesse tentando absorvê-las para dentro do meu corpo. Ambas ainda estão usando as pulseiras da amizade. Rachel de fato está mais magra. Sarah tem uma aparência exausta e cortou o cabelo. Não ficou bem. Os olhos de ambas se enchem de lágrimas assim que me veem. — Você está bonita — diz Rachel. Olho para baixo. Estou usando um suéter cinza e calças pretas. Ambos são largos e quentes demais para o tempo que está fazendo. Sinto frio o


tempo todo e suspeito de que perdi muito peso. Não há balança na pequena casa de hóspedes de Olivia. — Que bom ver vocês — digo, enquanto Nancy fica parada na cozinha, observando. — Vamos nos sentar — diz ela. Conto a elas que estou procurando uma casa para alugar e falo sobre alguns dos lugares horrorosos que tenho visto, tentando fazer tudo parecer divertido e comum: a casa tão próxima à estrada que a luz dos faróis dos carros passavam pela parede da sala de estar; a que cheirava a gatos; a que tinha uma pia no quarto, mas não tinha armário; a que tinha uma piscina interna e até a cozinha cheirava a cloro. — Eu conheço essa família — diz Sarah. — O filho deles estava no time de natação quando eu era caloura. Nem eles conseguiam aguentar o cheiro. Mando beijos de Alice e de minha mãe para Nancy, embora sejam inventados: sei que Alice não gosta de Nancy, não depois dos dias no hospital, e minha mãe não tem o hábito de mandar beijos a ninguém. Pergunto sobre o treinador de basquete, cuja maldade agora se tornou lendária. Incentivo as meninas a falar sobre aqueles assuntos nos quais não querem tocar por medo de que me entristeçam: seus planos para a faculdade, o baile de formatura, o verão. Tudo o que Ruby jamais fará. A conselheira da faculdade me ligou para dizer que ia entrar em contato com todas as universidades e rescindir as inscrições de Ruby. Eu estava dormindo quando o telefone tocou, e tinha tomado algumas pílulas, e gritei com ela “Não se atreva! Não se atreva!” Agora recebo as cartas de admissão. “Por favor, envie seu depósito até o dia primeiro de maio para garantir sua vaga”, todas dizem. Eu as coloquei na gaveta, embaixo das minhas camisolas. Ruby poderia ter estudado onde quisesse. Em vez disso, vão plantar uma árvore no pátio dos veteranos da escola, uma pereira brava que terá uma nevasca de minúsculas flores brancas a cada abril. Eles vão colocar uma página no anuário, embora eu suspeite de


que tiveram dificuldade de encontrar uma boa foto de Ruby que não tenha sido tirada por Kiernan. No fim da página, haverá uma citação de “Thanatopsis” que Ruby adorava e que sempre ouvirei na voz de Glen. O poema completo estava nas costas do programa do funeral, e dias depois percebi que as duas últimas palavras eram “bons sonhos”. Às vezes digo isso a Alex à noite, antes que ele desapareça em seu quarto. Não sonho nada por causa dos remédios. Fico muito feliz por não sonhar. Sarah tira os pratos. Tem bolo de cenoura para a sobremesa. De repente, todas ficamos muito quietas, e percebo que não há mais ninguém em casa. Ouço alguma coisa cair pesadamente no cômodo ao lado, como se houvesse alguém desajeitado que não consigo ver, e uma afiada espada de pânico perfura meu flanco. Então o gato entra na cozinha e entendo que apenas ouvi-o pular de um móvel para o chão. Minha mão vai até a longa cicatriz que foi deixada no lugar onde a faca penetrou. Sarah e Rachel se entreolham, e então Sarah toma fôlego, profundamente. — Rachel e eu achamos que há algumas coisas que precisamos lhe contar — diz ela. — Sobre o Kiernan — diz Rachel, levando o guardanapo estampado de azul e amarelo à boca. — Acho que eu sei. — Não, não sabe. Não de verdade — diz Rachel. — Ele a estava seguindo a todo lugar. Todas nós falávamos, “Ruby, isso que ele está fazendo é assédio”. Dissemos até que ela deveria ir à polícia. Dissemos que ela deveria falar com você e com o Dr. Latham. — Ele deixava coisas no carro dela — diz Sarah. — Chegávamos ao carro e lá havia flores ou um livro de poesias. Uma vez ela gritou “Kiernan! Pare!”, o mais alto que pôde. Mas nunca o víamos. — E ele ligava para ela um milhão de vezes por dia. Ela não podia deixar o telefone ligado. Ela ia pegar suas mensagens, e sua caixa estava cheia. Ele


estava totalmente obcecado. E, às vezes, quando o víamos, ele parecia... não sei, parecia bem esquisito. — Sabíamos que ele não podia estar frequentando aquela escola nova — diz Sarah. — Ficava por aqui tempo demais. Mas ela não fazia nada. Acho que sentia que era culpa dela. Como se ela o tivesse enlouquecido ou coisa do tipo. — Dissemos que ela devia ligar para a mãe de Kiernan, mas ela disse que não podia. — Ela disse que também não queria que você ou o Dr. Latham ligassem. — Tentamos fazer com que ela lhe contasse que alguém precisava fazer alguma coisa — diz Rachel. — Pedimos diversas vezes que ela lhe contasse como as coisas estavam ficando ruins — diz Sarah. — Ninguém sabia que ele estava na garagem — adiciona Rachel. — Nós teríamos dito alguma coisa a você se soubéssemos que ele estava na garagem. — Ruby teria pirado se soubesse — diz Rachel. Repentinamente, a quietude retorna. O gato se esfrega em meus calcanhares. — Só queríamos que você soubesse que tentamos avisá-la — diz Sarah. — Tentamos de verdade. — Ela simplesmente não agia. Você sabe como Ruby era quando não queria fazer alguma coisa. Agora só queríamos ter contado alguma coisa a você, mesmo que ela ficasse zangada conosco. — Então por que vocês duas não me contaram? — pergunto suavemente. — Vocês ficavam na minha casa o tempo todo. Por que não me puxaram de lado e disseram o que estava acontecendo para que eu pudesse ter feito alguma coisa? Eu não teria contado a Ruby. — Nós queríamos, quase contamos um dia, mas não sabíamos como Ruby se sentiria — diz Sarah. — Não queríamos fazer nada pelas costas


dela. Ela nos contou como você estava feliz porque Kiernan era legal com Max. E também estávamos preocupadas com Max. — Mas esse não foi o problema — digo. — O problema foi que tudo isso estava acontecendo e os adultos deveriam ter sabido. O pai dela e eu deveríamos ter sabido. — Ela disse que você sabia — diz Sarah. Por um instante perco a fala, e então percebo que, como sempre, Ruby estava certa. Eu tinha visto o anel e a fotografia no Natal. Eu ouvira Kiernan bradar seu amor enquanto soluçava em nosso gramado depois do baile de formatura. Eu sabia de tudo, e não fizera nada. Tinha procurado a interseção entre o cuidado com minha filha e sua habilidade de cuidar de si mesma, e entendera tudo errado. Rachel começa a chorar. — Odeio isso! — lamenta-se.— Sinto muita falta de Ruby. Tudo está arruinado. Tudo! Sarah coloca os braços em volta de Rachel e também começa a chorar. — Sabíamos quanto você amava Kiernan — balbucia ela. — Mas sabem que eu amava Ruby mais — digo. — Nós amávamos tanto Ruby... — chora Rachel. — Sentimos muito. É tudo nossa culpa. — Ah, querida, não. Não é culpa de vocês. — É, sim! — geme Rachel. — Chega — diz Nancy em voz baixa. — Sarah, leve-a lá para cima. Rachel sussurra: — Quero ficar aqui. — Agora — exclama Nancy, e Sarah se levanta, sua cadeira cai e eu me assusto outra vez. Coloco o rosto entre as mãos. — Desculpe — digo. — Não estou acostumada a falar sobre isso. Desculpe. Vou subir daqui a pouco. Lamento muito que elas pensem que têm culpa.


— Deveria lamentar mesmo. — E a voz e Nancy é tão dura, tão maldosa, que levanto os olhos. Ela está furiosa, seu rosto vermelho e contraído. A última vez que a vi assim foi quando fora preterida da promoção no trabalho que considerava certa. — Obviamente, você tem alguma coisa que quer desabafar — digo. — Eu? Eu? E você? Em que ponto da conversa você vai admitir Kevin Donahue? Sei que meu rosto corou, mas me recuso a desviar os olhos dos dela. — Falei com Deborah — continua Nancy. — Ela acha que você é responsável pela morte de Kiernan. Acha que você desencadeou toda a corrente de eventos. Ela acha que você teve um caso com o marido dela e que foi quando a família dela desmoronou. Tento ouvir algum ruído no andar de cima, mas não há nenhum. — Podemos continuar esta conversa em algum lugar onde as meninas não possam entreouvi-la? — digo friamente. Estou perplexa e muito zangada, e o ferimento em meu ombro dói por causa da adrenalina, da emoção e talvez por alguma memória muscular primitiva, como se Kiernan estivesse novamente me cortando com uma de minhas próprias facas de trinchar. — Como sabe que elas já não sabem? Como sabe que Ruby não sabia? E Kiernan? Talvez ele também soubesse. Como sabe que Deborah não contou a Kiernan e Kiernan não contou a Ruby? Nancy não tem certeza, e nem Deborah tinha. Pelo menos é o que digo a mim mesma. Não sei bem. Tudo o que sei é que uma noite eu estava terminando de fazer o jardim em volta da fundação de uma casa onde Kevin estava construindo um muro de pedra. Depois que a cafeteria que ele possuía afundara sob o peso da morte de Declan, ele abrira uma loja de molduras, então a fechara e ingressara despretensiosamente no negócio de construção de pátios. “Ele sempre tem algum projeto infalível”, Glen dissera com aspereza. Tanto Kevin quanto eu estávamos trabalhando em uma nova


construção numa rua sem saída, conversando durante os intervalos de almoço, falando de trabalho enquanto ficávamos parados lado a lado, e quando o sol se pôs naquela noite, um disco sangrento sob um estriamento de nuvens acinzentadas. Kevin entrou na garagem vazia onde nós dois deixávamos nossas ferramentas, as paredes ainda cheirando a madeira fresca. Ainda consigo evocar a sensação depois de todo este tempo. Ele se inclinou para me beijar e me puxou, encostando meu corpo todo ao dele, e houve aquela explosão de sensações que você esquece até que, improvável e inesperadamente, ela ressurge: nada mais nem menos que calor, necessidade e impulso. Dura apenas um ou dois minutos, e depois é rapidamente substituída pela desajeitada e constrangedora logística: botões, chão. Lembro-me de um prego sob uma coxa que me marcou com um círculo vermelho-arroxeado. Mas isso era depois. Naquele instante, no começo, havia apenas uma sensação: sim; Sim. Sim. Agora. Aconteceu três vezes naquela semana, duas na garagem, uma no andar de cima. Talvez meu casamento tivesse perdido a graça. Talvez eu tivesse começado a perceber cabelos brancos entre os castanhos. Talvez o desabrochar de Ruby tivesse me conscientizado de meu próprio declínio. Talvez eu estivesse vivenciando todos os clichês sobre mulheres que já tinha ouvido ou lido. Mas na época parecia que nada daquilo tinha a ver com meu marido, minha família, minha natureza habitual. Por um instante, eu sentia de maneira aguda, forte e inegável alguma coisa da qual sentia falta havia muito, e quando terminava, sentia só vergonha e nojo. Tudo o que sei é que depois que Kevin ligou para minha casa querendo se encontrar em algum lugar mais romântico, como ele disse, eu nunca mais me permitira ficar sozinha com ele. Por um ou dois meses ele tinha ligado diversas vezes, exatamente como seu filho faria mais tarde com minha filha, e eu deixava suas mensagens sem resposta. Em uma festa, ele tentara me encurralar no quarto de hóspedes, e eu tinha me desvencilhado com uma


risada constrangida. E não seria incorreto ou ilusório dizer que em um ano aprendi a não pensar no que tinha acontecido, a eliminar seu lugar em minha vida. “Ela era minha melhor amiga!” imagino Deborah berrando enquanto o colocava para fora. Mas isso é a minha imaginação. Kevin era tão infiel e imprudente, que a gota d’água pode muito bem ter sido outra pessoa: a garota que trabalhava na mina onde ele comprava pedras, a professora de ensino médio que atraiu muita atenção antes de ir embora. Mas é possível que tenha contado a ela sobre mim. Aquele homem tolo, com olhos azuis brilhantes e um sorriso sedutor, deve ter pensado que estava se penitenciando, mas se o fez foi porque sabia que era a forma perfeita de tortura. Deborah atravessou a Main Street na vez seguinte em que me viu, de forma que eu soube que alguma coisa estava errada. Então simplesmente desapareceu de minha vida. Mas não conseguia manter Kiernan afastado. “Não quero mais os Donahues aqui em casa”, disse Glen, certa manhã, por trás do escudo do jornal, e eu não respondi. Disse a mim mesma que era por causa da cena que Deborah causara no quintal deles quando finalmente expulsara Kevin, não por causa de nada que tivesse contado a Glen, não por causa do círculo vermelho irritado gravado na parte de trás de minha perna. Não tinha deixado cicatriz. Agora falo tranquilamente, inclinando-me em direção a Nancy: — Deixe-me fazer uma pergunta, Nance. Você está zangada porque acha que fiz isso de que está me acusando? Ou na verdade está zangada por que acha que fiz e não lhe contei? Eu me levanto e coloco o guardanapo na mesa. Ela me amava quando dividíamos a mesma vida: marido, filhos, segurança, proteção, controle. Ela sempre odiou a incerteza. Uma cientista, afinal de contas. Eu sou um universo despedaçado. — Como sabe que Glen não era infiel? — pergunto. — Ou Bill, por falar


nisso? Ela inspira ruidosamente. — Glen? Glen traiu você? — Não que eu saiba, mas o que você sabe? O quê? Eu achava que Kiernan era um ótimo menino. Eu achava que Ruby ia para a faculdade em setembro. Como você sabe, Nance? Como você sabe se o que é certo está na sua frente quando está olhando para o outro lado? — Se você sabe alguma coisa sobre meu marido ou meus filhos, talvez devesse vir logo a mim e dizer. — Eu não sei de nada, e você está fugindo do assunto. A questão é que não sei nada, mas isso não significa que não haja nada a saber. A questão é que todos somos icebergs. Noventa por cento estão sob a superfície. Obrigada pelo almoço. Despeça-se das meninas por mim e diga que sinto por tê-las chateado. Na porta, sinto-me tentada a voltar-me para dizer “Você só é amiga nas horas boas”. Mas não consigo. Dirijo sem saber para onde estou indo, dirijo enquanto choro e então paro de chorar e sinto algo pior que as lágrimas, algo terminado, morto e enterrado. Certa vez, Ruby e eu estávamos sentadas no quintal, observando as borboletas-monarcas as aglomerarem-se na monarda. Devíamos estar no começo de setembro, um daqueles lentos dias de fim de verão, quando as aulas tinham acabado de começar, mas tudo parecia incerto, o livro fechado, os suéteres ainda embrulhados em seus plásticos embaixo da cama. Ruby adorava me contar coisas que eu não sabia, e naquela tarde, enquanto tomávamos limonada e arrastávamos os pés na grama alta, ela me contara sobre o efeito borboleta, sobre como as batidas de suas asas no México podiam causar uma brisa em nosso quintal. — Isso é meio assustador — respondi. Mas enquanto falava, percebi que isso era o que todos acreditávamos desde o momento em que tivéramos


filhos. O bebê que mamava no peito se tornava um adulto confiante. A criança que ouvia histórias na hora de dormir fazia doutorado. Batíamos nossas asas em nossas cozinhas e o vento soprava pelo futuro deles. — É assustador — disse Ruby, mas com prazer. — Mas faz você pensar antes de agir. — Era assim que ela falava naquela época, como se a vida pudesse ser analisada e, portanto, não apenas vivida, mas de acordo com o plano. Lembro-me de saber naquele momento que, algum dia, quando o primeiro filho dela tivesse cólicas, e o segundo insistisse em chupar o dedo e andar com seu paninho até a idade de ir para a escola, ela viraria para mim e diria que não fazia ideia do que a vida realmente queria de nós. Minha filha fantasma fala de borboletas, as pernas graciosas sob vestidos de brechó. Meu filho fantasma passa por mim com seu andar desleixado, o cabelo desgrenhado. Meu marido fantasma se deita comigo à noite, de forma que seu lado da cama ainda está feito a cada manhã, os travesseiros ainda fofos. Será que cheguei a esta meia-vida porque fui infiel três vezes, o que para uma mãe não é simplesmente trair um homem, mas uma família e uma vocação? Será que troquei minha vida comum, medíocre e perfeita por relações sexuais apressadas em um chão de cimento? Será que Ruby sabia, ou sentia, e parou de comer para sufocar seu horror, seu medo, seus próprios desejos sexuais? Será que se voltou para Kiernan em busca de consolo, ou para, de alguma forma, consertas as coisas? Será que Kiernan acreditava que os pais tinham se divorciado por minha causa? Ele transformara nossa família em um bote salva-vidas apesar ou por causa disso? Será que ele enlouqueceu quando Ruby o abandonou e o deixou sozinho em mar aberto? Será que colocou as mãos ao redor do pescoço dela e extinguiu sua voz porque ele a ouvira levantá-la contra ele? Será que pretendia deixar a casa depois disso, Ruby caída em um canto do sofá, quando foi surpreendido por Max, vindo da saleta onde tinha cochilado? Será que então ele tirou a faca do cepo e esfaqueou Max com golpes frenéticos e apavorados, depois se sentou e se admirou com o


fato de ter chegado tão longe em tão pouco tempo? Quanto tempo será que esperou ali, ensanguentando a cadeira da cozinha na qual se sentara em tantas refeições, antes de Glen descer e ele esfaqueá-lo pelas costas? Foi quando decidiu subir e também matar Alex e eu, para eliminar a família feliz que era a última coisa que via todas as noites quando dormia em cima da garagem, perto o bastante para ouvir as gargalhadas, ver a luz dos abajures, sentir o cheiro da comida? Ou será que planejara fazer isso desde o começo, apagar os sorrisos dos nossos rostos? Pergunto-me o que ele pensou quando percebeu que Alex não estava em casa. Imagino se ele se sentiu derrotado ou frustrado, ou talvez até aliviado, quando deixou o próprio jeans e a camiseta ensanguentados no meio do chão do quarto e vestiu roupas limpas da gaveta de Alex. E então só restava eu. Pergunto-me se ele achou que tinha atravessado meu coração com a lâmina, ou se, afinal, eu era a única que ele não suportou matar. Eu me pergunto até se ele quis me deixar viva como vingança. Eu me pergunto quanto do que aconteceu foi efeito das drogas que ele aparentemente estava tomando, quanto foi da bebida que ninguém tinha percebido que ele consumia, quanto da erosão de sua personalidade pelo isolamento e pela tristeza, quanto de uma doença que só parece nefasta em retrospecto. Eu me pergunto quanto fui eu que causei. Dirijo tão rápido que meus pneus se desprendem da estrada nas curvas, depois, tão devagar que o adolescente no carro de trás buzina até eu ir para o acostamento. O vazio ainda está dentro de mim porque Nancy disse em voz alta o que era apenas um sussurro desde que acordei no hospital. Agora está gritando, a voz que diz que meus filhos e meu marido estão mortos porque não fui cuidadosa o bastante, atenta o bastante, boa o bastante, acordada o bastante. Não fui o bastante. Quando estaciono na entrada da casa de hóspedes, estou ofegando, e descanso a cabeça no volante, e então levanto os olhos para ter certeza de que Alex não está olhando pela janela. Às vezes vivo tanto em minha mente


que esqueรงo o que estรก bem diante de meus olhos.


Futebol, basquete, agora lacrosse. Alex tem a rotina perfeita para um garoto que não quer pensar demais. Ele passa praticamente o dia inteiro ocupado. Não o vejo muito, meu menino. Ou o vejo, fico por perto, mas não falo com ele. Às vezes, quando estamos no carro, eu tento: Como está a escola? Bem. Como foi o teste de álgebra? Difícil. Como foi o treino? Bom. Ele está com os fones de ouvido, a música toca. Ambos caímos em um devaneio. No espelho retrovisor vejo o relance de alguma coisa, e por um instante penso que é o cabelo de Max. Os fones de ouvido são retirados. — Vai ter um baile na sexta — diz ele. Isso é o que passa por conversa. Estou perdida sem o familiar badminton conversacional entre irmãos. Ruby fala com Max. Max fala com Alex. Glen e eu ouvimos. Era assim que acontecia, noite após noite, ano após ano. Lembro-me de mim e de minha mãe, depois que Richard foi para a faculdade, inclinadas sobre nosso bolo de carne em uma densa nuvem de silêncio, quebrada basicamente pelo estalido dos garfos nos pratos de resina. Alex e eu temos poucas oportunidades de conversar. Nos últimos dois


meses de aula, ele tem treinos cedo às terças e quintas, treinos depois da aula todos os dias até as seis da tarde, Dr. Vagelos às quartas das seis e meia às sete e meia, quatro horas de dever de casa todas as noites, jogo todos os sábados. Eu o pego no treino de lacrosse, vou a todos os jogos, fico no cômodo ao lado enquanto ele estuda. “Mãe, calma”, ele diz às vezes, como se pudesse ler minha mente ansiosa. Na semana passada, ele me trouxe um formulário: os alunos prestes a entrar no segundo ano terão aulas de direção. Sempre me esqueço de assiná-lo. Tento levá-lo eu mesma a todos os lugares. Nunca disse isso ou deixei o pensamento se delinear totalmente em minha cabeça, mas sei que é para que, se houver um acidente, estejamos juntos. Tento passar os domingos sozinha com ele, mas ele dorme até o meio-dia, e gosta de assistir à TV e de falar ao telefone com uma garota chamada Elizabeth. — Como é a Elizabeth? — pergunto. — Bem legal — diz Alex. Eu a vejo um dia, quando Alex está entrando no carro depois do treino. Ela é alta e magra, com longos cabelos claros e olhos enormes. Vê-los de mãos dadas me deixa nervosa. — Temos que ir para casa — grito, de maneira mais ríspida do que pretendia, da janela do carro. Por várias semanas o mantive por perto e longe da casa de Ben, dizendo a mim mesma que mais cedo ou mais tarde ele teria que se acostumar com nossa família amputada. Sei que Olivia entendeu. Ela aparece de quando em quando durante o dia, mas nunca fica muito tempo, como se percebesse o limite de minhas habilidades sociais. Na semana passada, ela veio à casa de hóspedes quando todos estavam na escola para me perguntar se eu ficaria com os filhos dela no final de semana em que ela e Ted iam a Nova York para uma conferência de negócios. Meus olhos se encheram de lágrimas diante da ideia de que ela confiaria a mim a segurança deles. Sei que havia pessoas na cidade que diziam que eu fora descuidada, que eu deveria ter


acionado o alarme, descido, ou até chamado a polícia. Imagino quantos pais agora acordam com o mínimo som no andar de baixo. — Não consigo pensar em mais ninguém a quem pedir — disse Olivia. — Bom, são quatro. Até eu acho pesado. Fico imaginando pregar isso no quadro da universidade e fazer todos os estudantes explodirem em gargalhadas só de pensar. Ou exigir quantias enormes para cuidar deles. — Vou exigir uma quantia enorme — eu disse. — Pagarei com prazer. — Você já fez demais por nós. Prometo que já teremos encontrado nossa própria casa no verão. É terrível o que há para alugar. Talvez eu devesse comprar. Não quero comprar uma casa pelo mesmo motivo que não quero ir a uma das dúzias de terapeutas cujos nomes me foram recomendados. O objetivo disso é seguir em frente. Não quero seguir em frente. Quero voltar. — Vocês podem ficar quanto tempo quiserem — dissera ela. — Meu filhos adoram. Ted adora. Todos nós adoramos. Passarei as noites de sexta e de sábado no quarto de hóspedes deles, enquanto estiverem em Nova York. É um daqueles quartos relativamente pequenos nos quais todas as quinquilharias que não tinham lugar vão parar: uma velha cômoda de pinho, uma cadeira estofada de linho cor de papoula, uma colcha de retalhos. Como resultado, é o quarto mais agradável da casa. Quando estou quase adormecendo na primeira noite, Luke, que agora tem 5 anos, aparece no vão da porta, uma silhueta preta delineada pela luz do corredor. Sinto um calafrio e depois tento sorrir. — Tive um pesadelo — diz ele, aproximando-se e franzindo a testa para mim. — O que foi, querido? — Tinha monstros. — Deite aqui — digo, puxando a colcha e chegando para o lado. Olivia diz que às vezes Luke faz xixi na cama. Espero que não aconteça esta noite.


Agora estou arrependida de ter tomado meio sonífero, mesmo que não faça mais muito efeito. E se os monstros voltarem? Tenho que reaprender a dormir sem remédios. Lembro-me da última vez que consegui. Foi em outro mundo, outra vida. Luke vira de lado, põe o dedo na boca e fala. — O quê? — digo. Ele não retira o dedo, mas diz bem alto: — Eu tenho um pênis. Eu faço que sim com a cabeça, e enquanto observo, seus olhos se fecham e ele adormece, como se fosse ele que estivesse drogado. E então adormeço também. Acordo pouco antes do amanhecer, a luz da lua ainda brilhante através das cortinas abertas. Ela torna prateada a testa lisa de Luke. Eis uma das piores coisas sobre a morte de alguém que se ama: acontece novamente todas as manhãs. A suave trama do sono começa a se desfazer e então, em um instante, sua mente pergunta e responde uma terrível questão. Em vez de lutar contra isso, agora decidi me render nesta última hora da noite, quando estou sempre acordada e novamente desolada. Luke facilita as coisas, o suave ruído enquanto chupa seu dedo, mais rosa e inchado que seu membro. Primeiro lamento pessoas que já se foram há muito tempo: o pequeno Max agachado na grama alta do fundo do quintal para olhar os grilos; Ruby aos 5 anos levantando o vestido acima da cabeça em puro entusiasmo. Só então lamento pessoas imaginárias: Max, o criador de revistas em quadrinhos de Nova York; Ruby, a professora de poesia de uma pequena faculdade. Invento meus próprios filhos. Às vezes Max, Alex e Ruby estão juntos, enfileirados do outro lado da rua, empurrando seus trenós em direção à colina, o sol tão brilhante sobre o prata da neve que causa uma explosão de luz que me ofusca, e eles desaparecem. Luke está no lado da cama de Glen, estico a mão e toco delicadamente seu cabelo. Às seis e meia seus olhos se abrem. — Eu gosto de panqueca — diz ele.


Às sete horas, ele pede para ligar para a mãe e, às oito, deixo que o faça. — Eu disse à mãe do Alex que eu tenho um pênis — ouço-o dizer a ela. — Você tem permissão para deixá-lo de castigo no quarto — Olivia me diz, sarcástica. — Está pronta para hoje à noite? — pergunto. Ted é diretor de pesquisa e desenvolvimento de uma grande empresa farmacêutica, e há um jantar formal esta noite. Fomos juntas à Molly’s Closet para comprar um vestido. Molly tinha me visto estacionar na vaga em frente a sua vitrine, e seu sorriso estava fixo e pronto quando entramos. Sentei-me no banco em frente ao provador e tentei não pensar em nada. Mas a cada vez que olhava, via os pés de Ruby, seu dedinho curvado, sob uma das cortinas. Olivia tinha aparecido com um vestido de seda azul-gelo (“Parece uma deusa”, disse Molly) com um grampo adornado com pedras no cabelo. E atrás de mim eu ouvi claramente uma única palavra, dita com o som alto e claro de um sino de Natal: “Perfeito!” Não consegui me virar, temendo tanto a possibilidade de Ruby estar parada ali, prendendo o cabelo para cima, os olhos brilhando de aprovação, quanto a possibilidade de não haver absolutamente ninguém, apenas mais um espaço vazio. Fixei o olhar à frente, cega. Olhando para mim, Olivia disse tristemente: — Não ficou bom? E com esforço eu me concentrei, olhei de cima a baixo e disse, sem pensar: — Está perfeito. Perfeito. — Mande um beijo para, para... seu filho — disse Molly. Eu estava quieta no carro. — Desculpe-me — eu finalmente disse. — Estou distraída. Tenho muitas coisas para fazer. Minha mãe está vindo em três semanas para a formatura da escola, e meu sogro, e sabe-se lá quem mais. Posso acabar com a casa cheia. Vai dar tudo certo. Eu certamente não deveria reclamar logo com


você. Tenho certeza de que gostaria de ver seus pais com mais frequência. Há uma grande fotografia no piano da sala de estar de Olivia. Duas pessoas bonitas usando suéteres e chapéus, rindo para a câmera. — Na verdade, ambos já morreram — respondeu Olivia em um tom casual que suspeitei que ela usara para esse assunto muitas vezes no passado. — Eles sofreram um acidente de carro há muito tempo, quando eu estava em Oxford. Foi assim que conheci Ted. Ele estava lá fazendo a Rhodes, e nos conhecemos em um pub, e pensei: “Ah, então você quer me levar para muito longe daqui? Sim, por favor.” — Meu Deus, não acredito que só agora estou ouvindo sobre isso. — Todo mundo guarda alguma coisa, não acha? Só que isso não vem à tona do jeito habitual. Você não aborda uma mulher bonita em um coquetel e de repente diz: “Ah, então seus pais estão mortos. Os meus também.” Meio grosseiro, não é? — Eu nem preciso contar a ninguém — eu disse. — Todo mundo já sabe. Ouviu Molly hesitar quando estávamos saindo? Como se, caso tivesse dito filhos, no plural, por engano, eu tivesse um colapso. — Foi um pouco parecido comigo no começo. Meus pais eram bastante conhecidos, e foi um acidente terrível. Mas depois as pessoas esquecem. Todo mundo guarda alguma coisa. Minha mãe falou algo parecido quando estava partindo pela última vez para voltar à Flórida. — Acontece com todos, isso de perder pessoas — disse enquanto estava parada no corredor com sua mala, uma despedida que ela claramente ensaiara. — Só que normalmente acontece em estágios, não tudo de uma vez. Você passou pelo pior que alguém pode passar, Mary Beth. Mas ainda precisa encontrar um meio de seguir com sua vida. — Não sei o que é a minha vida agora — eu disse. — Você tem um filho. Isso é o que importa. — Eu gosto de desenhos animados — diz Luke, sentado de pernas


cruzadas no chão da saleta na manhã de domingo. Eu me pergunto se ele pede alguma coisa, ou se sempre se limita a dizer o que gosta e esperar que aquilo venha em seguida. Ele dormiu em minha cama outra vez. “Você não é minha mãe”, disse antes de cair no sono. “Eu sei”, respondi. Andrew e Aidan saem de seus quartos. — Podemos ligar para nossos pais? — pergunta Aidan. — Podem — digo. — Cale a boca sobre seu pênis — diz Andrew a Luke. — Vou dizer ao papai que você falou “cale a boca” — diz Aidan. — Vocês são maus — fala Luke aos dois. — Meninos — repreendo, e me sinto alegre por um instante com a briga em família, e então me sinto terrível por causa da alegria, e preparo bacon. Quando Alex e Ben vão para fora, começam um jogo de frisbee no gramado, e Luke corre para lá e para cá, para lá e para cá, o disco passando por cima de sua cabeça até que ele finalmente cai no choro e eu o acalmo com alguns desenhos animados e um cookie. Os meninos maiores entram para jogar batalha naval. “Atingido e afundado”, ouço, pelo que parecem horas, e então faço com que todos se reúnam na grande mesa de pinho para fazer os deveres de casa. — O Andrew fica botando o pé dele em cima do meu — diz Aidan. — Mamãe! — grita Luke, quando ouvimos o carro. Ted nos acompanha até a casa de hóspedes. Alex entra, e nós ficamos na porta enquanto um vento frio e repentino começa a soprar à nossa volta. — Talvez tenhamos uma tempestade esta noite — digo, olhando para as nuvens que passam rapidamente. — Não tenho como lhe agradecer — diz Ted. — Não foi nada — digo, e percebo que é quase verdade. Não foi tão terrível estar com outras pessoas por dois dias. Ou talvez seja porque as pessoas eram crianças, que não pensaram em se preocupar, em se inquietar e se perguntar como eu estava me sentindo, em me persuadir a


compartilhar. Eles só queriam que eu providenciasse refeições, mediasse brigas, mantivesse a ordem. — Eles são mesmo ótimos — acrescento. — São, e dão um trabalho dos infernos. Acredite, eu sei. Mas o que quero mesmo é agradecer pelo que tem feito por Olivia. Tornar-se sua amiga fez uma grande diferença pra ela. Não tem sido fácil morar em um lugar estranho, sem conhecer ninguém de verdade, tendo tantos filhos em um espaço de tempo tão curto. Ela era bastante solitária. E agora, nem tanto. Ela realmente preza sua amizade. — E eu prezo a dela. Sinceramente. — Então ótimo. Pode levá-la às compras quando quiser. Foi um vestido e tanto que vocês escolheram para ela. — Era perfeito — digo.


Estamos na Times Square indo para o norte, Alice, Alex e eu. Sentimo-nos diminuídos pelas estrelas dos esportes, músicos e atores, gigantes planos pairando sobre nós em enormes outdoors enquanto abrimos caminho entre vendedores de rua e turistas que tiram fotos uns dos outros nas calçadas. Um homem entrega a Alex um panfleto de um clube de striptease, e eu tento tirá-lo de sua mão. — Senhora, senhora — diz Alex —, fique calma. Mais cedo, eu tentara pegar seu braço enquanto saíamos do metrô para a rua. “OK, não”, ele tinha dito em tom monótono, enfiando as mãos nos bolsos. Ele cresceu mais uns 5 centímetros, e agora não é mais um menino que perdeu a gordura infantil, mas um meio-homem, barbado, de voz grave, uma espécie diferente da minha. — Está triste por causa do quanto ele cresceu? — perguntou-me Alice na noite anterior, quando eu mencionei o assunto, seus dedos brincando distraidamente com o cabelo comprido demais de Liam. Ela está tentando conservá-lo bebê de diversas maneiras, dos cachos emaranhados aos pijamas com pezinhos. — Na verdade, não — respondi. O que me entristece é que Max nunca vai crescer, que Ruby nunca envelhecerá. Mas não digo isso. É bom que Alice ainda me pergunte os velhos lugares-comuns. Alex quer ir a uma loja na Times Square que vende equipamento esportivo, depois passar pelo Central Park para ir ao Museu de História


Natural. Alice comprou-lhe ingressos para um jogo dos Yankees e para um show em um clube no centro da cidade. Ela foi muito atenciosa; um estudante de Columbia que mora em uma quitinete no prédio dela vai levar Alex a ambos, de forma que eu e ela tenhamos tempos para nós mesmas. O nome do estudante é Nate, e aparentemente ele ama beisebol e música de maneira igual. Está fazendo doutorado em antropologia. — Nate está subindo para conhecer vocês — disse-nos Alice assim que chegamos, e enfiou o rosto no cabelo de Liam. — O Nate é muito legal! — gritou Liam. Nossa viagem a Nova York fora um interlúdio inesperado. Quanto mais o carro se afastava da casa de hóspedes, e de nossa antiga casa, e de nossa cidade, e das pessoas que moram lá, mais eu me sentia calma. Meus ombros pareciam relaxar a cada quilômetro. Quando estacionamos em uma parada da estrada (café para mim, dois hambúrgueres, batatas fritas e Coca para Alex) eu me senti um pouco como se fôssemos como quaisquer outras pessoas. Eu pensara duas vezes em cancelar o passeio, incerta sobre se conseguiria aguentar a viagem, a distância, a normalidade simulada. — Tenham um bom dia — disse a garota atrás do balcão, olhando Alex de alto a baixo. — Para você também — respondi. Liam estava certo: Nate era muito legal. Ele envolveu Alex em uma longa conversa particular sobre o Knicks e sobre como uma série de ferimentos que afetara a última temporada deles. É o tipo de conversa que Alex costumava ter com o pai. “Eles não têm defesa”, Glen dizia, e Alex suspirava. Eu gostaria de me lembrar mais dessas conversas, mas nunca prestava atenção. Agora Alex as tem às vezes com meu sogro pelo telefone. — Nate, você pode ler para mim? — perguntava Liam, parado no meio dos joelhos de Nate, suas pequenas mãos agarradas às coxas de Nate. — Posso — disse Nate gentilmente, mas Liam fixou seu rosto e balançou a cabeça. Observei Nate colocar Liam sobre um dos joelhos e continuar a


conversa com Alex, passando a falar sobre beisebol, enquanto Liam se encostava a ele e chupava o dedo. Alice levou uma caneca de leite para Liam, uma Coca para Alex e uma cerveja para Nate. — Eu sei jogar beisebol — disse Liam, interrompendo. — Fique quietinho e escute — disse Alice, oferecendo-me uma taça de vinho. Nate levantou os olhos para ela e sorriu, e ela também sorriu. Ela foi para a cozinha pegar queijo, e eu a segui, agarrando seu braço quando chegamos à pia. — Estou chocada — eu disse. — O que foi? — Não se faça de boba comigo. Quantos anos ele tem, e há quanto tempo vocês estão se vendo? — Se vendo? Você é minha mãe? — Está bem. Há quanto tempo está dormindo com ele? — Você está falando alto demais — sussurrou Alice. — Está bem — sussurrei também. — Responda a minha pergunta. E, com um sorriso meigo, Alice respondeu: — Ele tem 34 anos, e eu o conheci em fevereiro. — Como? — Ele mora no prédio, e me chamou para jantar. Não aceitava não como resposta. Eu disse que era quase dez anos mais velha que ele. Eu disse que tinha um filho. Fui tão má quanto pude. — Isso é maldade — eu disse. — Não fez nenhuma diferença. Ele me venceu pelo cansaço. — E você não me contou. — Achei que você pensaria que eu estava louca. Coloquei meus braços em volta dela e pensei que aquilo era uma verdade parcial. Ela não me contara porque era uma notícia feliz em um momento terrível. E então, porque me parecia que tudo o que eu realmente ouvia de qualquer conversa era o não dito, eu disse isso a ela.


— É verdade — disse ela. — Não conseguia me imaginar ligando para você e dizendo: “Ah, querida, adivinhe o que aconteceu? Arranjei um namorado.” — Ele é seu namorado? — Ele me apresentou à mãe. — Uau! — E o melhor é que ela o teve tarde. Então não tem uma idade próxima à minha. Nem perto. — Ela sabe sobre Liam? — Ela trouxe um macaco de pelúcia para ele. — Ela é melhor que eu seria. — Que eu também. Fico tentando imaginar Liam com uma namorada dez anos mais velha. Nate diz que a mãe teve medo de que ele fosse gay quando se mudou para Nova York, então está aliviada que eu seja mulher. — De onde ele é? — Nova Escócia. — Talvez esteja usando você para conseguir um green card — eu disse sombriamente. — Não me importa — disse ela, e eu a abracei outra vez. Vou ter que aprender a ser generosa com a felicidade alheia. Rachel e Sarah, Olivia e Alice. Até mesmo Alex. Chegará uma época em que coisas boas acontecerão a ele, e terei de acolher seus triunfos e alegrias, e garantir que eles não sejam sempre obscurecidos pelo pai, pelo irmão, pela irmã. — Nate é muito legal — disse Alex naquela manhã, lendo sobre o jogo no jornal. — Ele sabe muito sobre o museu. Ele não pode ir conosco porque tem que dar uma aula, mas me disse o que ver. Quando chegamos ao Museu de História Natural, Alex tira um pedaço de papel dobrado de seu bolso de trás. É a lista de Nate. Vida marinha, diz. Centro espacial. Passamos quatro horas perambulando de maravilha em maravilha. Apenas uma vez sinto-me abalada pela memória e pelas


sensações, e é quando entro na exibição de borboletas e observo-as esvoaçar com asas de vitral. Encosto minha cabeça em uma parede fria e respiro profundamente, depois sigo em frente. — Mãe, veja isso — diz Alex, parado com a cabeça para trás embaixo da baleia azul presa a um teto chanfrado, e por um instante ele volta a ser um menino, um menino sem preocupações. Penso em como Max, Ruby e Glen gostariam de estar aqui e desejo que tivéssemos feito isso juntos anos atrás. Pegamos o metrô de volta ao bairro de Alice no Brooklin. Em frente a nós no vagão estão sentados um homem de turbante, uma mulher coberta de tatuagens, uma mulher em um terninho preto lendo uma antologia de poesia e um adolescente mais ou menos da idade de Alex, fazendo o que parece ser o dever de casa de matemática em um caderno de espiral. Sintome anônima e feliz por isso. Diante de uma fileira de casas de tijolo com entradas gastas, Alex diz: — É muito legal morar aqui, não é? Um pequeno caminhão branco vagueia pelo quarteirão, o homem no volante dizendo alguma coisa que não consigo entender em uma voz monótona. — O amolador de facas — diz Alice. — Você pode levar suas facas até o caminhão. — Isso é muito legal — diz Alex, sem qualquer traço do que eu sinto: as facas afiadas, um arrepio de medo. Em um restaurante italiano ele come um prato de nhoque, um pouco de vitela, uma sobremesa de sorvete listrada como uma bandeira. Deixo-o beber um dedo de vinho tinto em seu copo. Ele e Alice debatem o filme sobre o show espacial do museu e o livro que ela está revisando sobre a vida em Marte. — Esse é um emprego legal — diz Alex. Sou uma mulher comum jantando com o filho e uma velha amiga. É a


primeira vez que me sinto comum em muito tempo: livre do escrutínio, da compaixão e também do julgamento público. Sei que há julgamento. A mãe de um dos meninos do time de basquete chamou o treinador de lado e disse que seu filho achava perturbador jogar no mesmo time que Alex. O treinador disse que consideraria uma pena perdê-lo. O garoto disse que a mãe era louca. A mãe desistiu. Eu deveria encará-la durante os jogos com uma expressão hostil, mas em vez disso baixo os olhos quando ela olha em minha direção. Ninguém me julga de maneira mais cruel que julgo a mim mesma. Ninguém me quer fora de vista tanto quanto quero estar. É como se eu fosse uma vítima de queimadura, com o rosto tão dilacerado e cheio de cicatrizes, que as outras pessoas têm que olhar e depois desviar os olhos. Na vitrine de um brechó, Alex vê uma velha jaqueta do exército, e o fazemos experimentá-la, e só as mangas ficam um pouco compridas. Alice as dobra uma vez. — Eu me pergunto quem foi Steiner — diz Alex, olhando para o nome gravado sobre o coração. — Você devia comprá-la — digo, e é o que fazemos. Alex está dormindo no quarto de Liam, em um sofá no qual a babá dorme quando Alice tem que trabalhar até tarde, e enquanto tomamos outro drinque pouco antes da meia-noite, escuto-o pela babá eletrônica. “Cara, a lula gigante”, ouço, mas não consigo entender o resto. — Ele não pode estar falando com Liam, não é? — pergunto. — Se Liam estivesse acordado, Alex não teria a chance de falar nada. Acho que Liam está um com pouco de ciúmes por termos saído sem ele, e por Nate estar dando atenção a Alex. O que me lembra... tenho que pedir um enorme favor. — Diga. — Posso torná-la guardiã legal de Liam caso algo me aconteça? — Nada vai acontecer a você. — Nada vai me acontecer — concorda ela. — Mas preciso saber que


tenho alguém que me ampare. Meus pais são velhos demais. Meu pai acabou de fazer 77 anos. — E seus irmãos? — Está bem, querida, vamos recapitular: John é casado com uma pessoa louca; Jim é casado com uma mulher que não quer ter os próprios filhos, que dirá o meu; Tommy não é casado, porque isso exige um comprometimento; e Teddy é um gay que ainda não saiu do armário. Eu amo todos eles. Mas para ser pais? Nem pensar. — Não estou tentando tirar o corpo fora. Só quero ser capaz de ir à corte e dizer: “Sim, Meritíssimo, sei que ela tinha quatro irmãos, mas ela não achava que nenhum deles daria um pai competente. Com exceção, talvez, do que está dentro do armário.” — Isso é um sim? — Claro que é. Você faria o mesmo por mim. Chegou perto de precisar. — Pare. — É verdade. No monitor, ouvimos Alex dizer alguma outra coisa. Parece algo como “subindo e descendo as escadas”. Ou talvez fosse “ao redor, e assustado”. — Alex parece estar muito bem — diz Alice. — Está. Ele decidiu ir ao terapeuta. Talvez isso esteja ajudando. — Ele sempre foi muito equilibrado. — Eu sei. Ele é o único que consigo imaginar passando por isso. Ruby ou, Deus me livre, Max? Não posso imaginar. Alice esfrega os olhos. — É em Glen que penso às vezes. Se alguma coisa tivesse acontecido a você, não acho que ele teria conseguido sobreviver. — Seu lábio treme. — Você conseguiu passar esta visita inteira sem chorar — digo. — Não estrague tudo agora. Eu choro quando estou sozinha. De manhã cedo, saí para caminhar pela alameda que margeia o rio. Andei por quase duas horas, a princípio sem


companhia, exceto por dois policiais e um homem adormecido em um banco, depois cercada de corredores que tinham o passo seguro e tranquilo daqueles que seguem uma rota familiar. Enquanto eu chorava, eles mal olhavam para mim. Talvez, com todos vivendo tão próximos, os moradores da cidade estejam acostumados a ser figurantes nos dramas e nas tragédias dos outros. Ouço Alex rir, falar, engasgar, rir outra vez. — Talvez esteja falando enquanto dorme — digo. Fico feliz que haja um receptor na sala de estar, onde insisti em dormir. Temo que Alex tenha um pesadelo na casa pouco familiar. Ele resmunga mais enquanto caio no sono. Mas quando acordo às cinco horas e entro na ponta dos pés, Alex parece estar dormindo o sono de um adolescente, tão profundo que não pode ser abalado nem mesmo por Liam, que deitou-se na cama com ele e jogou uma perna rechonchuda sobre sua perna longa e cheia de cicatrizes. Volto para a sala de estar e penso em Glen, e em como ele teria gostado do show espacial, e como ele teria se esgueirado até a loja de presentes para comprar uma lembrança para mim. A lembrança de Alex será essa nova jaqueta. “Essa jaqueta é totalmente fantástica”, ouço Ruby dizer. “Tire a mão, cara”, Alex diz para Max, e Max faz uma careta, como se estivesse pensando “Essa jaqueta não é para você, cara, é para mim. Vou surrupiá-la de seu armário na primeira chance que tiver”. Nate e Alex trocam um complexo aperto de mão enquanto nos preparamos para ir embora na manhã seguinte. Liam parece confuso, depois irritado. — Mamãe! — diz ele. — Quero ir ao parque. — Não estrague tudo — sussurro enquanto abraço Alice. — Pode deixar — diz ela. No carro, Alex coloca os fones de ouvido, e eu ouço um programa de rádio. Uma voz intensa descreve o fenômeno do colapso das colmeias. “Por


todo o país, apicultores estão abrindo suas colmeias e descobrindo que suas abelhas estão mortas”, diz o repórter. Uma entrevista com um escritor monossilábico se segue, e minha mente divaga. Eu me pergunto se Alice vai ligar para pedir meu conselho, cuidadosa e insegura, sobre se casar. Imagino se um dia pedirei o conselho dela sobre ser a única responsável por meu filho único. Olho para Alex. O que consigo escutar de sua música, lá de dentro de seus fones de ouvido, é dissonante e metálico, como o zumbido das abelhas. — Espero que Ginger esteja bem — digo, quando ele tira os fones por um instante. — Ela está ótima. Eu liguei para o Ben ontem. Luke está fazendo companhia a ela. — Você se divertiu? — Mãe, eu fiquei pensando em por que estava indo viajar quando podia simplesmente ficar com meus amigos, mas me diverti muito. Foi muito melhor do que eu esperava. — Eu também. Então tenho uma grande ideia: que tal morar lá? — Eu estava pensando nisso. Nate me disse que existem muitas faculdades boas em Nova York. Mesmo que eu não conseguisse entrar para a Columbia, há outros lugares para onde se pode ir e continuar na cidade. Ele disse que existem até algumas universidades da terceira divisão nas quais talvez eu pudesse jogar. Com certeza vou pensar sobre isso. Olho pelo para-brisa. A linha amarela precipita-se em minha direção. — Eu estava pensando mais cedo — digo. Faço uma pausa. — Não há motivo para não nos mudarmos para o Brooklyn. Há várias boas escolas particulares. Foi o que Alice falou. Todos dizem que é muito difícil entrar, mas você é um atleta tão bom que aposto que eles ficariam felizes em aceitá-lo. Alex está em silêncio. Seus fones de ouvido descansam em seu colo. “Who are you?” ouço o Who cantando baixo, mas parece apenas waah-


waah. — Bem, você gostou mesmo da cidade, não é? Haveria muito para fazer, e você não precisa dirigir; pode simplesmente pegar o metrô e ir ao cinema com seus amigos. Alice falou... — Não vou me mudar — diz Alex com tom monótono. — Não vou deixar meus amigos e minha escola. Não vou me mudar. — Ele se voltou para mim e sua voz está alterada. Estendo minha mão como se fôssemos parar de repente. — Não vou me mudar — grita ele. — Está bem, desculpe, já entendi. Acalme-se. Ele está ofegante como fica no campo de futebol. — Só pensei que poderia ser uma boa mudança para nós — digo suavemente. — Não vou me mudar. — Entendi. Viajamos em silêncio pelo que parece um longo tempo. Não consigo achar outra estação de rádio decente. Ele coloca os fones de ouvido. Estraguei tudo. Não sei o que fazer, ou o que fazer em seguida. O funeral, o testamento, o seguro: ninguém diz como agir em seguida, quando as coisas deveriam voltar ao normal. Suponho que o que venha depois é fingir a normalidade. Pensar sobre isso me deixa exausta. Paramos para comer. Sob a luz forte da lanchonete, vejo que Alex precisa se barbear. É um pensamento espantoso. De tempos em tempos, ele passava uma gilete no rosto, mas era mais uma declaração de maturidade do que uma necessidade real. — E quanto a este verão? — pergunto alegremente, como se nada tivesse acontecido. — Mãe, acampamento. Eu vou para o acampamento todo verão. — Quer ir de novo? — Mãe, você me inscreveu no ano passado. Eu vou ser monitorassistente.


Ele está certo. Eu inscrevi os três. Max ia ser baterista na banda de rock de seu acampamento. Ruby ia ter aulas de composição poética avançada. Glen e eu faláramos em tirar férias, talvez em Nantucket ou Martha’s Vineyard. Vou entrevistar o último médico interessado no consultório de Glen de manhã cedo. A placa do lado de fora será trocada, o nome bordado no jaleco será diferente. Outra pessoa vai ganhar o prêmio de escrita literária na formatura. Outra pessoa vai jogar xadrez de computador com Ezra. A superfície do oceano da vida diária se fechará sobre eles três e a água parecerá calma novamente. Eles viverão apenas em um quadro vivo encenado incessantemente em minha cabeça. — Desculpe, desculpe, não sei onde estava com a cabeça — digo, empurrando meu prato para o lado. — Não vamos nos mudar, não é? — pergunta Alex quando voltamos para o carro. — Não se você não quiser. — A tia Alice vai se casar com Nate? — pergunta ele. — É cedo demais para saber — digo. — Ela devia — diz ele, e recoloca os fones de ouvido.


“Ruby Lee Latham” está escrito em caligrafia rebuscada. O diploma está em uma pasta de couro na estante no pequeno corredor. Quando passo por ele, toco-o. Lembro-me novamente de Alice, de ir à igreja com Alice e sua família e de como todos eles mergulhavam dois dedos reflexivamente na profunda bacia de mármore cheia de água na entrada da nave. Minha mão faz o mesmo com o diploma. Parece quente para mim. Tudo acontece ao mesmo tempo na escola agora, agora que o ano escolar está terminando novamente. Eles plantam a árvore e leem três dos poemas de Ruby, os que eu já ouvira. A revista literária é dedicada a ela, o anuário, a Ruby e Max, o que é um conforto, porque de outra forma seria como se Max tivesse desaparecido no passado da mesma forma que desaparecia em seu quarto, em sua cabeça, em sua infelicidade. Sarah, Rachel, Eric e um garoto chamado Gregory que eu nunca tinha visto aparecem a caminho do baile de formatura. Sarah está usando um vestido amarelo, Rachel, um tomara que caia cor de pêssego. — Esse vestido foi feito para você — digo a Rachel, e seu rosto se ilumina. Gregory passa o braço ao redor de sua cintura e sorri. Ele deu a Rachel um ramalhete de pulso de rosas e samambaias. Rachel e Sarah me compraram um grande buquê de margaridas. Eu as coloco em um jarro no meio da mesa. Elas são ótimas meninas. Espero que não achem que dormi com o pai de Kiernan. Meu rosto queima diante desse pensamento. Tiro uma foto deles.


— Ouvi muitas coisas boas sobre você, Sra. Latham — diz Gregory, e me pergunto se perder Ruby levou Rachel a isso: um menino bom, gentil, um menino que traz flores e a olha como se ela as merecesse. — Alex está aqui? — pergunta Rachel. Ela se aproxima: — Nós gostamos muito da namorada dele. Nancy é a primeira pessoa que vejo no campo de futebol americano quando chego para a formatura. Ela beija minha bochecha e a de minha mãe, aperta a mão de meu sogro. Então olha para mim e diz: — Este deve ser um dia muito difícil para você. — É um grande dia para Sarah — digo, olhando em direção à longa fila de estudantes em capelos e becas azuis. Estão tirando fotos uns dos outros, falando sobre planos para as festas, rindo e acenando para as famílias. O diretor perguntou se eu queria receber o diploma de Ruby no palco, mas eu lhe disse que temia atrair atenção demais, distrair os outros da felicidade do dia. O sol está forte, o céu branco e azul, e por um instante me sinto tonta, mas pisco, olho de volta para Nancy e sorrio. Espero que o sorriso não pareça falso como é. Estou usando um vestido vermelho vivo, e não me importo como o que ninguém diga ou pense sobre isso. É cor de rubi, um vestido de Ruby. Alex já está aqui, sentando com um grupo de companheiros de time, prontos para aplaudir os formandos dos times de futebol, basquete e lacrosse. Ele está de pé, esquadrinhando a multidão, e então se aproxima e nos abraça a todos. Enquanto volta para as arquibancadas, minha mãe toca meu braço: — Você deveria se sentar — diz ela. Junto minhas mãos com força sobre meu colo enquanto a procissão alfabética se desenrola. Finalmente, “Ruby Lee Latham”, o diretor diz, depois de Kimora Kim e Robert Landman. Há um rumor, como o som de um avião, ou de um trem, um rumor e toda a plateia se levanta. O aplauso é como meu coração batendo em meus ouvidos, mas ampliado um milhão de


vezes, como se meu coração pudesse explodir. De minha cadeira, levanto os olhos, e é como se estivesse sentada no interior de um poço profundo, com paredes de pessoas a meu redor, e deixo minha cabeça cair entre minhas mãos. O aplauso dura um longo tempo. — Levante-se, Mary Beth — diz minha mãe, a mão em meu ombro, mas não consigo. — Max Evan Latham — sussurro enquanto o aplauso diminui e o diretor prossegue para Christine Lessig, cujo nome foi chamado após o de Ruby desde que elas estavam no primeiro ano. Seus pais estão sentando no fim de nossa fileira, e me inclino para a frente e aceno com a cabeça, e eles acenam em resposta, o rosto da mãe úmido e brilhante. — Bem, está terminado — diz minha mãe quando voltamos para a casa de hóspedes, e meu sogro prepara old-fashioneds para os dois com os ingredientes que trouxe em uma grande sacola marrom. — Jesus Cristo, estou faminto — diz ele enquanto entrega o drinque a minha mãe. Alex sai do quarto menor usando uma camiseta e um short. — O que tem para o almoço? — pergunta. — Ele está sempre com fome — diz minha mãe. — Está em fase de crescimento — diz o pai de Glen. — Frango frito e macarrão com queijo — digo. — Você é a melhor mãe do mundo — diz Alex. (“É verdade”, dizem Ruby e Max em uníssono atrás dele. Glen apenas sorri). O pai de Glen leva minha mãe ao aeroporto à noite, depois segue pela interestadual. — Pode contar comigo, Mary Beth — diz ele. — Eu sei — digo. Ele quer que nós passemos o Dia de Ação de Graças com ele. Digo que não consigo planejar com tanta antecedência. Minha mente fica vazia


diante da ideia. Acontece o mesmo quando deixo Alex no acampamento: não tenho certeza do que quero fazer depois. Ele e Ben estão em cabanas diferentes, monitores-assistentes para universitários da Austrália e da República Checa. Suas camas ficam um pouco afastadas daquelas dos campistas de 9 anos que vão supervisionar. Alex está ajudando com a liga de futebol júnior e com os treinos de basquete. Ele tem uma camisa polo oficial. A palavra LATHAM está bordada sobre seu coração embaixo da insígnia do acampamento. — Será que você vai poder ficar com elas? E Alex me lança um olhar. — Porque são completamente toscas? — diz ele. Subo a íngreme colina até a sede do acampamento. O diretor sai, aperta minha mão e diz algumas palavras familiares sobre tomar cuidado especial com Alex. Digo que sei que telefonemas não são permitidos, mas que espero que ele abra uma exceção. Ele diz que Alex pode telefonar para casa. No estacionamento, uma mulher loura, e tão magra que sua pele é translúcida, se aproxima lentamente. — Você é a mãe de Alex? Eu sou a mãe de Colin — diz ela, e ambas tentamos sorrir. A pele ao redor de seus olhos tem o cinza-azulado de um céu ameaçador. — Não cheguei a ligar para lhe agradecer — digo. — Pelo quê? — Por levá-lo para esquiar. Por colocá-lo em um avião para casa tão rápido. Por ter mandado seu marido no voo de volta com ele. — Ficamos muito abalados com o que aconteceu. Tentamos fazer o melhor que podíamos para ajudar. A parte mais difícil... — ela se interrompe. — Não poder contar a ele? — Foi isso. Saber, e saber que tínhamos que fingir. Sua mãe disse que só


devíamos contar que você estava no hospital. Não sei se ele sabia que estávamos escondendo a verdade. — Estou agradecida pelo que fez. É uma vergonha eu não ter ligado ou escrito para agradecer. — Não pense nisso. Eu não pensei. Eu mesma estava um pouco preocupada — ela dá de ombros, e sua mão vai até seu coração. — Câncer de mama. — Outra mulher mostrando um rosto para o mundo e vivendo uma vida diferente por dentro. Estico minha mão para a dela. — Ah, Deus, sinto muito. — Eles dizem que vou ficar bem. Mas é difícil para as crianças. Especialmente para Colin. Ele e Alex são tão próximos... e agora isto. — Ela dá de ombros novamente. Parece um gesto habitual, quase um tique. — Essas merdas acontecem — diz ela, e ambas sorrimos tristemente. — Mãe — ouço um grito através dos campos esportivos, e me viro. — Mãe? — grita Alex. — Você ainda está aqui? Paro em um horto para comprar algumas plantas perenes e zínias. Penso que talvez plante as perenes ao redor da porta dos fundos da casa de hóspedes. Estou fazendo uma lista de tarefas, não coisas que tenho de terminar, mas coisas que tenho que fazer para preencher o tempo. Uns poucos clientes me ligaram. Alguns dos quais, com grandes terrenos, com árvores precisando de poda e grandes canteiros que necessitam de adubação, ouviram que não tenho mais a equipe necessária. Rickie está trabalhando para a universidade como superintendente de instalações. John está fazendo todo o paisagismo para o município. “Você sabe que se precisar de mim posso ajudá-la em um piscar de olhos, Mary Beth”, ele dissera quando tínhamos nos encontrados na loja de jardinagem. Mas basicamente estou fazendo jardins pequenos para algumas das pessoas que me empregavam no começo, quando a Paisagismo Latham era só eu, dois universitários e uma secretária eletrônica. A Sra. Feeney, uma mulher de seus 90 anos para quem planto flores anuais e jardineiras na janelas há


anos, disse-me quando ligou para marcar a visita: — Não recebo mais o jornal local. É deprimente demais. Mas concluí que foi você, não foi, no Ano-Novo? — Sim, fui eu. — Sinto muito por ouvir isso — disse ela. — Você está em minhas orações. Pode fazer o mesmo aqui que fez no ano passado? — Claro — respondi. Estava aliviada por falar com alguém tão prático. Talvez, aos 90 anos já tenhamos testemunhado e, quem sabe, experimentado, todo tipo de tragédia imaginável, pessoas queridas que morreram em guerras e pessoas que perderam a vida em acidentes de carro e pessoas que simplesmente morreram de repente e sem motivo, queimaram como uma lâmpada usada. A Sra. Feeney gostava de mariassem-vergonha, dálias e petúnias, todas as flores coloridas e antiquadas que não eram muito sensíveis e duravam apenas um verão. Certa vez tentei fazê-la se interessar por hortênsias, mas ela só balançou a cabeça. Eu esperava sentir mais falta do meu trabalho, mas não sinto. Era o tipo de emprego que se tem por causa dos filhos, que deixa tempo para compras de supermercado, jogos de futebol e para buscá-los na escola, e provê assunto para as festas. Adoro fazer as coisas crescerem, retirar as flores mortas da dedaleira e observar uma improvável segunda floração, desenterrar uma grande moita eriçada de narcisos no outono, dividi-la em cinco ou seis plantas menores e depois ver cada uma explodir em floração no verão seguinte. Mas percebo que não me importo com projetos de paisagismo, canteiros em terraço, caminhos de pedra, pérgolas: todas as coisas que as pessoas querem para transformar seus jardins no que as revistas agora chamam de “salas ao ar livre”. Minha ideia de uma sala ao ar livre é uma varanda telada com uma mesa de piquenique. Paro em uma lanchonete logo depois da divisa estadual e me sento no balcão com o jornal. Há dois terríveis assassinatos nele. Há quase um por semana. Eu não percebia antes. Peço uma omelete de queijo e um café.


Como metade da omelete. — Estava tudo certo? — pergunta a jovem garçonete, preocupada que a comida estivesse ruim e que isso prejudique sua gorjeta. — Quer que eu embrulhe para você? — Sim. Não. Deixo uma nota de 10 dólares para uma conta de 6, de forma que ela fique tranquila. Comecei a comprar algumas roupas em tamanhos menores. “Você está linda!” disse a mãe de Rachel, Sandy, na semana passada, quando nos esbarramos na farmácia. Ela não está. Sandy decidiu ficar loura e, com seus olhos negros e sobrancelhas, parece que está usando uma peruca. Ela ficou falando por quase vinte minutos, e percebi que estava solitária, que talvez no último minutos tivesse percebido que com Rachel na faculdade, ela chegaria em casa todas as noites e encontraria um silêncio tangível e específico, que cai como poeira sobre uma casa que fica vazia o dia todo. Sei que o sentirei quando chegar em casa esta noite, embora Alex tenha deixado uma bagunça tamanha que eu ainda tenho um ou dois dias de roupas sujas e camas desarrumadas para impedir a vibração dos cômodos vazios de zumbir em meus ouvidos. Ao menos tenho Ginger. Como isso soa patético. Sandy devia arranjar um gato, mas então me lembro que Rachel é alérgica, a gatos e a nozes. Eu sempre tinha que ser muito cuidadosa quando cozinhava para ela. A uma hora de casa, percebo que devo ter escapado de uma tempestade violenta. Duas vezes tenho de contornar árvores atravessadas na estrada, e meus pneus passam sobre galhos e ramos. O asfalto está brilhante, as nuvens, baixas, e quando ligo os faróis eles refletem asperamente a superfície lustrosa da estrada. Então entro em um trecho de chuva tão forte que paro no acostamento, os limpadores de para-brisa inúteis contra a água escorrendo pelas laterais do carro. A chuva carrega a lama através da estrada em linhas marrom-avermelhadas, e ouço um barulho que parecem tiros, mas provavelmente são os galhos das árvores se quebrando no vendaval. O sinal do rádio está ruim, mas depois de alguns minutos o


locutor diz que há um aviso de tempestade, e que todos devemos nos abrigar e ficar fora das estradas. — Tarde demais — digo em voz alta, e coloco para tocar uma das miscelâneas de música que Alex deixou no carro. A tempestade é bravia, e nenhum outro carro passa por mim. Depois de algum tempo, como um trecho de um concerto clássico, a música da tempestade se torna mais lenta, a melodia das gotas no metal e no asfalto é a mesma, só que mais baixa, menos violenta. Começo a dirigir novamente, e logo há apenas o som de gotas intermitentes como contraponto da música de Alex. Passo as músicas até finalmente chegar a uma velha canção que é praticamente só bateria chamada “Wipeout”. Nenhuma palavra, só uma batida maníaca. Depois volto pelas músicas e percebo que a música é de Max, embora eu pudesse jurar que Alex a estava tocando esta manhã na viagem para o acampamento. Os ventos e a chuva arrasaram a cidade, e conforme chego ao topo da colina, vejo uma confusão de luzes vermelhas que devem ser os carros de bombeiros em torno do poste no final da Main Street. Está escuro na tarde tempestuosa de verão, mas não há luzes brilhando dentro das lojas ou dos restaurantes, e me pergunto se haverá eletricidade na casa de hóspedes quando eu chegar. Olivia deixou uma lanterna na porta dos fundos para seus convidados. Desço a colina em direção ao desvio para a casa de Olivia. Dois grandes grupos de álamos tombaram da elevação acima, e a estrada termina em uma desordenada parede de galhos e folhas. A chuva parou e a luz do fim do dia doura as árvores molhadas; penso distinguir um grande ninho no chão ao lado de uma delas. Que pena seria construir uma casa graveto por graveto, forrá-la com musgo e botar alguns ovos e depois observar enquanto tudo despenca do céu, para se tornar nada mais que um amontoado de destroços e galhos no acostamento da estrada. Vou o mais longe que posso e encosto, mas há um íngreme declive para


dentro da floresta cerrada, íngreme demais para que eu possa manobrar ao redor dos álamos. Não posso me arriscar. Sou tudo o que Alex tem. Usei um pouco do dinheiro do seguro para fazer uma enorme apólice sobre minha própria vida. “Mary Beth, se alguma coisa acontecesse, teríamos recursos suficientes, entre o seguro de Glen e o consultório e a eventual venda da casa”, dissera o marido de Nancy, Bill. Fiz o seguro mesmo assim. Viro o carro e volto mais ou menos 1,5 quilômetro colina acima, onde sei que existe uma pequena estrada de cascalho que Olivia diz que serpenteia ao longo do cume e depois desce atrás de sua casa. No fim, junta-se com a estrada que está bloqueada pelas árvores. Nunca passei por ali. Chama-se estrada do Chalé Escondido, e logo descubro por quê. Não há nada por mais de 1 quilômetro, as árvores ficam tão próximas que formam um escuro telhado de folhas sobre o carro, até que, depois de uma perigosa curva em S, a estrada se desvia tão repentinamente que um motorista distraído ingressaria em um estreito caminho de pedra que aparentemente não leva a lugar algum. E porque está tarde e passei a maior parte do dia dirigindo, e não consigo dirigir sozinha sem ver rostos no espelho retrovisor e escutar vozes no banco de trás, é exatamente isso o que faço. Vejo que o caminho se divide para criar um grande bojo e depois volta a se juntar diante de uma antiga casa de fazenda, a tinta branca brilhante à meia-luz prateada da noite tempestuosa. Isso é tudo que brilha; a casa está escura e, apesar da sombra de cortinas na janela e uma lata de leite ornamental perto da porta, tem o inconfundível ar desolado de uma casa na qual ninguém mais vive. No centro do bojo do caminho há um abeto concolor, uma variação com agulhas delicadas pela qual sempre tive um fraco. Certa vez, escolhemos uma delas como nossa árvore de Natal, ou eu escolhera e Glen concordara. Mas as crianças reclamaram que era uma árvore esquisita, não a que estávamos acostumados, que a cor estava errada, não era verde o bastante. No ano seguinte, voltamos ao abeto comum.


Esta é uma árvore de Natal fantástica, mas para um local público, a nave de uma catedral, uma prefeitura. Tem pelo menos 12 metros de altura, delineada em um triângulo perfeito. A única razão pela qual consegui sequer ver a casa foi porque meu carro deslizou para um dos lados do caminho de cascalho. Do contrário, a concolor protege a casa da visão. Tento estimar a localização e me pergunto se ela torna a casa escura durante o dia, mas a árvore está plantada distante demais para lançar uma sombra sobre os cômodos ou para cair sobre o telhado durante uma tempestade forte. Enfiado no chão em frente ao abeto está uma placa gasta.

À

VENDA COM O PROPRIETÁRIO, com o número de telefone abaixo. Não há papel em minha bolsa, então anoto na palma da mão com uma caneta.


Estou sentada na varanda telada suando enquanto um beija-flor ataca um brinco-de-princesa pendurado em um suporte do lado de fora. Os fundos da casa são sombreados por uma cortina de floresta, a luz caindo asperamente sobre o caminho para o celeiro. Estamos em um começo de agosto sufocante, com um odor argiloso, e a frente da minha camiseta está cinza de suor. Lixar pisos de carvalho é um trabalho difícil, e o estou fazendo desde pouco depois do amanhecer. Olivia usou uma expressão um dia que eu nunca tinha ouvido. “Seguros como casas”, ela disse sobre alguma coisa e, quando viu minha expressão, adicionou: “Os americanos não usam essa? Significa certo, seguro.” Disse que achava que tinha alguma coisa a ver com imóveis como investimento, e presumo que estivesse certa. A professora de inglês de Ruby me contara que o pai de Olivia fora editor do Dicionário de Inglês de Oxford. Gostei da expressão, mas achei que significava algo mais, a forma como a casa nos faz sentir segurança. Assim como os pecadores continuam a acreditar no bem com teimosia, ou agnósticos vislumbram Deus quando seu avião começa a sacolejar com o menor ventinho, em algum lugar ainda acredito que uma casa pode nos manter seguros. Não estava exatamente à venda com o proprietário. O número na placa era de uma historiadora de arte da universidade cuja mãe estava definhando em um asilo. — É grande demais para uma pessoa só — disse a mulher, como se


precisasse justificar a venda da casa onde crescera. — Você a viu. Você sabe. A professora, uma mulher pequena em um vestido preto, encontrou-me na casa dois dias depois da tempestade. Ao crepúsculo, o enorme concolor estava prateado, uma árvore que carregava as próprias sombras entre os galhos. Mas sob a luz do sol suas agulhas verdes tinham um leve reflexo azulado. — É uma árvore e tanto — eu disse. — Meu pai dizia que era Natal o ano todo — respondeu ela. Uma sala de estar com lareira, uma sala de jantar com lambris, uma cozinha ao longo da parte de trás da casa, que não era modificada havia cinquenta anos, uma varanda telada por toda a parte dos fundos para equilibrar a varanda aberta na frente. Um lance de escadas íngreme e estreito leva a quatro quartos pequenos, dois de cada lado de um corredor com um banheiro no meio. A entrada de cascalho continua até um pequeno celeiro vermelho, desbotado para cor de ferrugem. Uma casa retilínea, antiquada e prosaica, do tipo cuja planta você já conhece antes mesmo de entrar. — Não tem garagem — disse a professora. — Tudo bem — respondi. Eu a aluguei por seis meses com opção de compra. Era o meio-termo entre presente e futuro, um reconhecimento de que eu tinha que fazer alguma coisa sem fazer demais, sem enfrentar uma escritura e um documento de hipoteca com apenas meu nome. E me proporcionava tarefas com as quais ocupar meus dias. — Posso fazer alguns consertos? — perguntei, e a professora olhou em volta para as paredes desbotadas e a madeira lascada. — Se quiser — disse. Eu lhe dei um cheque no começo de julho, e então comecei a ir para lá trabalhar todos os dias, retirando papel de parede, pintando, arrancando o


velho carpete esverdeado que percorria a casa como limo. Sob o piso vinílico da cozinha, feito para se assemelhar à ideia de tijolos, havia linóleo vermelho salpicado de preto, como em uma sala de aula antiga. Eu o esfreguei e apliquei uma seladora. Os únicos sons eram os da natureza, pássaros, vento e uma chuva ocasional, gotejando sobre as folhas com um leve ratatá. Eu falava sozinha às vezes, sem ninguém para ouvir, ninguém para se importar, ninguém para sussurrar que Mary Beth Latham ainda não conseguira superar o que tinha acontecido, como se algum dia eu fosse ser alegre e animada. Duas vezes um guaxinim em uma lata de lixo me assustou, e uma tarde um carro escuro estacionou na estrada, o primeiro carro que eu vira desde que a professora e eu fecháramos o acordo do aluguel. Segurei meu martelo com tanta força que depois ficou uma marca roxa em minha mão. Um homem estava ao volante, um homem em uma camisa esporte branca. — Ãhn... olá? — chamou ele, olhando para o martelo enquanto caminhava em minha direção, o rosto sombreado por um boné de beisebol — Sou eu. Ed Jackson. Quando ele chegou um pouco mais perto, meu coração começou a desacelerar lentamente. — Oficial Jackson — eu disse. — Não o reconheci a princípio. Mas reconheci sua voz. Eu a ouvira quando estava deitada no chão de meu quarto na manhã de primeiro de janeiro. — Você está mesmo no meio do nada aqui — disse ele. — Não tem problema — respondi. — Vai instalar um sistema de segurança? Limitei-me a sorrir. — Todos me perguntam a mesma coisa — respondi. Ele me trouxera uma árvore da borracha, uma daquelas plantas com grandes folhas lustrosas que parecem artificiais. Havia um laço vermelho em volta do vaso. Eu o coloquei na varanda dos fundos, fora do caminho.


Às vezes, Olivia aparecia depois de deixar os meninos mais novos na colônia de férias e limpava minha bagunça, arrancando a fita adesiva azul viva, esvaziando o saco da lixadeira. Um dia ela apareceu de repente saindo do bosque, uma princesa das fadas com uma auréola de partículas de poeira. — De onde você veio? — gritei da janela de um dos quartos. — Lá de baixo — gritou ela de volta. — Calculei que eram 2,5 quilômetros através do bosque. Há um caminho aberto pelos cervos. Levei meia hora, mas os meninos vão levar vinte minutos correndo. Se as árvores não fossem tão próximas umas das outras, poderíamos colocar uma tirolesa. — Estarei aí assim que você quiser — disse Alice ao telefone. — Parece perfeito. — É bem comum, mas a localização é boa — respondi. Ela estava no lago em Michigan com Liam e Nate. Seus irmãos tinham gostado de Nate, assim como sua mãe. — Meu pai está desconfiado — disse ela. — Ele disse a meu irmão Tommy que Nate provavelmente teve uma ideia errada sobre mim porque eu sou mãe solteira. — Ou seja, Nate vai pensar que você é fácil. — Ah, meu Deus, foi exatamente essa a palavra que meu pai usou. Quem ainda diz isso? E, por falar no assunto, meu pai não entendeu a parte sobre o doador de esperma? — Não diga a palavra “esperma” perto do seu pai. — Enfim, ele disse que Nate pode estar tentando se aproveitar de mim. Eu disse a Tommy que ele está se aproveitando de mim em todas as oportunidades que tem. — E Tommy falou “Ah, meu Deus, Al, cale a boca”. — Exatamente. Agora o trabalho está quase terminado. Era o que eu queria, estar com a


casa pronta quando Alex voltasse do acampamento. Foi por isso que não a comprei, para que Alex possa decidir. — Você vai deixar um menino de 15 anos decidir sobre a compra da casa? — perguntou Alice ao som rítmico de Liam batendo alguma coisa de metal contra o fone. — A casa é dele também — respondi. — Eu entendo, mas... Querido! Querido! Não me bata mais com isso, ou nada de praia! Está ouvindo? Nada de praia, nada de boias! — Liam se queixou. — OK, quem era mesmo que estava dando conselhos paternos? — Só quero que ele fique confortável — eu disse, suspirando. Durante toda a manhã, um caminhão trouxe mobília e caixas. Minha mãe está aqui há quatro dias, feliz, diz ela, por deixar o forte sol da Flórida, e esteve empacotando em nossa antiga casa. Nunca mais irei lá. Eu disse a ela para trazer a cama de casal praticamente nova de Alex, sua escrivaninha gasta, seus pôsteres, seus livros. A cadeira que acabou no quarto de Max, a velha cadeira de balanço de carvalho com o assento estofado na qual amamentei os dois e também Ruby. O estofado agora é xadrez vermelho vivo e amarelo, mas se o tirar, acham-se bolinhas amarelas, e por baixo os cavalos de balanço, e por baixo aquela horrenda e rachada imitação de couro verde que já estava ali quando a comprei em uma loja de coisas usadas em Chicago. Glen e eu a carregáramos para casa, cada um segurando um dos grossos braços. Um vizinho desconhecido ajudara Glen a carregá-la para o segundo andar. Eu planejava deixá-la apenas com sua desbotada tonalidade dourada, mas primeiro havia uma criança, depois três, e hoje em dia eu não a mudaria de jeito nenhum. Decidi ficar com as boas antiguidades: a escrivaninha da sala de estar, o armário da cozinha, os móveis de mogno de nosso quarto. Todas as pinturas virão, embora haja uma linda paisagem em aquarela de que Olivia gostou e que pretendo dar a ela. Não acredito que a saleta esteja maculada, então disse a minha mãe para pedir aos homens da mudança que tragam


toda a mobília de lá. Os dois sofás e as poltronas, a mesa de centro e a grande estante de livros: juntos preencherão a sala de estar. Todo o resto da casa vai embora. — E os espelhos? — perguntou minha mãe. — Livre-se dos espelhos — respondi. Não sei bem por quê. Ontem à noite, minha mãe e eu dividimos uma jarra de chá gelado de hortelã na pequena mesa da casa de hóspedes, e ela olhou em volta e disse: — Você teve sorte de arranjar este lugar. — Eu sei. — Queria eu ter tido. Não entendi exatamente do que ela estava falando, mas deixei para lá. Não estava mais propensa a cutucar as cascas das feridas de nosso passado compartilhado. As caixas tinham chegado pela entrada, descido para o celeiro, rotuladas com sua caligrafia em preto. Eu observara de uma janela enquanto os homens as carregavam, minha vida inteira em papelão, tudo o que eu amara e perdera: ternos de G, livros de M, suéteres de R. E lembreime de que o mesmo tipo de caixa fora armazenado no porão da casa na qual cresci. A tábua de passar ficava lá embaixo, e enquanto eu passava uma saia ou uma camisa, eu olhava para elas, empilhadas de um dos lados do boiler de ferro fundido: livros de J, camisas de J, coisas soltas de J. Nunca pensei em abri-las, e não tinha pensado, até agora, no que acontecera com elas depois que minha mãe vendera a casa e se mudara para o sul com Stan. Estariam em algum depósito juntamente com as caixas cheias dos vestidos e bijuterias da primeira mulher de Stan? Ou será que minha mãe finalmente as doara para a caridade, ou deixara algumas no meio-fio para a coleta de lixo matutina? Eu poderia perguntar a ela, suponho, mas que diferença faria? O que quer que tivesse feito estava bom. Foi isso o que aprendi. Está bom. O que quer que você consiga fazer. Baixo os olhos para o chão de cimento da varanda telada. Decidi pintá-lo com três camadas de tinta vermelha para exteriores, mas primeiro tenho


que terminar o último quarto. O andar de baixo está pronto. As paredes estão pintadas de amarelo-claro para tentar capturar a luz do sol. Meu corpo fica dolorido todas as noites, e eu acolho a dor. Na terceira noite em que trabalhei aqui, deitei-me em uma velha espreguiçadeira no quintal para descansar por alguns minutos antes de fechar a casa. Os pernilongos incomodavam meu rosto úmido, e fechei os olhos, adormecendo sem remédios pela primeira vez em sete meses. Então tive um sonho, o primeiro em todo aquele tempo. Era por isso que queria as pílulas, não tanto porque me faziam dormir, mas porque eu não sonhava. Tinha pavor que as vagas ideias que me circulavam durante o dia se tornassem acentuadas e vívidas no escuro, em minha desprotegida mente inconsciente. Temia ver, instante a instante, passo a passo, o que acontecera primeiro a Ruby, depois a Max, e finalmente a Glen. Mas o sonho não teve nada daquilo: nenhum barulho alto, nenhum grito abafado, nenhum sangue. Nem sequer foi um sonho real. Não havia lugares ou pessoas improváveis ou irreconhecíveis, nenhuma das estranhas e absurdas ocorrências que aprendemos a reconhecer como as misteriosas estradas secundárias de nossa mente. Quantas vezes nós descíamos para a mesa de manhã, franzindo os olhos por causa da luz, procurando o café, dizendo um para o outro: “Tive um sonho estranhíssimo esta noite.” Animais. Atores de cinema. Voos alados. Quedas livres. Sempre tínhamos certeza de que sabíamos o que os sonhos dos outros significavam, mas nunca conseguíamos analisar os nossos. O sonho que tive no quintal, enquanto os pernilongos davam lugar aos mosquitos que picavam meus braços (eu descobriria mais tarde) e um morcego voava pela varanda aberta através das portas da cozinha para dentro da sala de jantar (eu descobriria no dia seguinte), foi simples e direto. Estávamos todos à mesa da cozinha. Glen estava em seu lugar à cabeceira, e eu no meu, em frente a ele. Ruby estava à direita dele, Alex, à sua esquerda, Max entre mim e Alex. Por anos tínhamos ameaçado mudar


essa disposição, quando as brigas deles chegavam a ponto de empurrões e tapas, mas nunca conseguimos fazê-lo. Era assim que sempre nos sentáramos. A sexta cadeira, a cadeira na qual Kiernan sempre se sentava, tinha sumido. A mesa estava arrumada para o jantar, mas não havia comida. Estávamos todos conversando uns com os outros e sorrindo, até Max. Ruby pegou o guardanapo e o colocou no colo. Ginger estava embaixo da mesa. Glen disse alguma coisa a Max, e ele passou o saleiro. Quando moviam os lábios, eu não conseguia ouvi-los. “Onde está a comida?” eu perguntei, e todos riram, e de repente eu estava completamente acordada, como se tivesse despedaçado a visão por fazer a pergunta. O sonho não tivera tempo de se desvanecer, e eu estava confusa com minha posição, com o quintal escuro, com o bosque, com a varanda e com a casa. Ginger estava dormindo no pé da espreguiçadeira, respirando suavemente. Fiquei ali deitada e olhei para as estrelas, que pareciam excepcionalmente brilhantes. Então fechei os olhos e tentei vê-los novamente, reunidos ao redor da mesa de jantar. Por que eu tinha me importado com a comida? Por que falara em voz alta? Fechei meus olhos, mas o sonho, convidado, recusou-se a voltar. Quando olhei o relógio vi que eram quase cinco horas, eu me levantei, fiz café e comecei a lixar novamente. Agora cortei pela metade a dose dos soníferos. Tenho o sedativo do trabalho duro e dos dias longos, do calor úmido e das noites escuras. E Alex não está aqui, então não preciso me preocupar em estar consciente se ele gritar, ou em me manter controlada quando ele chega. Na maior parte do tempo, durmo no colchão novo que foi entregue e que ficará na sala de jantar até que o sinteco do chão do quarto seque. — Você não fica assustada lá? — perguntou Nancy quando nos


encontramos no mercado do produtor. Não consigo mais dar a resposta vazia e social que todos esperam. — O que ainda poderia me assustar? — respondi suavemente, e me afastei para pesar alguns pêssegos. Quando entrei no carro, ela apareceu na janela. — Mary Beth, sinto que precisamos resolver essa situação — disse. — Quando você quiser — respondi. Minha mãe teme que muitos façam o que fiz a princípio: que vão perder a curva acentuada e entrar em meu jardim. Mas durante todo o tempo em que estive trabalhando aqui, houve apenas um punhado de carros que desceu a estrada, a maioria perdido e, por isso, dirigindo vagarosamente, procurando o caminho. Até minha mãe teve dificuldade para me encontrar. Quando chega com a última carga da mobília, ela traz sanduíches e uma torta de cereja. Seu rosto está imundo. Ela contratou um serviço para limpar a casa velha completamente. — Por dentro e por fora — diz ela, e me pergunto se isso significa que ela mandou limpar também a garagem. Um casal com duas filhas pequenas assinou um contrato para comprar a casa por apenas um pouco menos que as outras na vizinhança. Pedi à corretora de imóveis que contasse a verdade sobre o que acontecera a qualquer um que quisesse visitá-la, e ela reclamou que isso afastava a maioria dos compradores. Mas, aparentemente, esses dois não estavam preocupados. Disseram a ela que acreditavam que criar memórias felizes podia expurgar os eventos daquela noite. Sei o que querem dizer, pois estou me esforçando muito para sentir o mesmo. — Estão tirando medidas para o carpete — diz minha mãe, com desaprovação. — E para novos armários na cozinha. Levamos nossos sanduíches para a varanda e comemos em silêncio. Minha mãe deve estar cansada. Ela é saudável e magra (mais magra agora, talvez, do que era), mas tem 70 anos, e está trabalhando duro há dias.


Procurei por sinais de lágrimas em seu rosto, mas não encontrei, o que não significa nada. Ela é competente em manter a discrição sobre seus assuntos, tão competente que é difícil para mim saber como falar com ela às vezes. Enquanto embalo metade do sanduíche para comer mais tarde no jantar, digo, forçando-me encará-la. — Muito obrigada, mãe. Você tem sido uma rocha. Eu a peguei de surpresa, e ela baixa os olhos. Finalmente, diz: — Tenho muita admiração pela maneira como você se comportou, Mary Beth. Você tem sido muito forte. — Eu tinha outra escolha? — Essa não é a questão. Muitas pessoas teriam desmoronado nessa situação. — Eu me pergunto como desmoronar seria diferente do que estou passando. Não consigo acreditar que seria pior. No silêncio, o barulho dos grilos é alto, insistente e agudo. Finalmente, eu digo: — Você os viu. — É uma frase imprecisa, quase misteriosa, mas quando minha mãe levanta os olhos, percebo que ela não só entende o que quero dizer como tem esperado por este momento. Ela aquiesce com um gesto de cabeça. — O chefe de polícia me disse que você teve de identificá-los — digo, e ela aquiesce novamente. — Como eles estavam? Minha mãe contrai a boca. — Como se estivessem dormindo — diz ela. — Não acredito. — Estou lhe dizendo, eles pareciam estar dormindo. Havia lençóis cobrindo-os até o queixo, e eles pareciam estar adormecidos. — A polícia tem fotos que eu posso olhar — digo. — Também há fotos naquelas caixas — diz minha mãe. — De Ruby em um pônei em uma fazenda, de Max nadando em um lago, e sua foto de casamento, e de sua festa de aniversário de 10 anos de casamento. Se quer ver fotos, veja essas.


— Não quero ver fotos — digo. — Ainda não — diz minha mãe. Ela me entrega seu guardanapo para enxugar as lágrimas. — No começo, tudo o que eu queria saber era como aqueles últimos minutos tinham sido para eles — digo. — Eu imaginava isso o tempo todo. Tinha medo de imaginar. Em que estavam pensando. Se doeu. Se Glen sabia sobre Max e Ruby. Essa parecia ser a pior parte. Agora parece que a pior parte é só... — Que eles tenham partido. — Todas as coisas que estão perdendo. Toda a vida que não terão. — Isso é tudo — diz minha mãe, olhando-me nos olhos, a boca contraída, como se estivesse zangada. — Todos esses anos não vividos. — Ela pega minha mão, e repentinamente eu tenho uma visão, nítida e clara, e são Max, Ruby e Glen, lado a lado, adormecidos. A boca de Max está um pouco entreaberta. O cabelo de Ruby cobre seus ombros e pescoço. Minha mãe fez isso. Ela me fez ver o que queria que eu visse. A única pessoa que entende é a única pessoa que jamais esperei que me entendesse. Juntas, ficamos quietas e imóveis. — Espero que Alex goste desta casa — finalmente digo. Minha mãe olha em volta. Ela não gosta de casas antigas, minha mãe. Às vezes, penso que a melhor coisa que Stan já fez por ela foi levá-la para um lugar onde todo mundo tem claraboias, pias duplas e banheiras. — Ele vai gostar — diz ela. — Você vai torná-la agradável para ele. Meu sogro também não gosta muito de casas antigas. Eu disse a Doug que estava pensando em comprar esta, e há dois dias o pai de Glen veio descendo o caminho em um dos caminhões de manutenção de telhados, escadas dobráveis chacoalhando nos suportes laterais enquanto ele ia em direção aos fundos. Ele desceu lentamente da boleia (perna, perna, um suspiro e o torso em seguida) e lançou um olhar de desaprovação quando eu saí pela porta da varanda.


— Telhas de ardósia — disse ele. — Sabe por que não se veem mais telhas de ardósia com frequência? Um, são caras. Dois, a manutenção é infernal. — Não há sinal de goteiras no sótão. — Não há sinais óbvios — disse ele e tirou uma das escadas do caminhão. Ao meio-dia ele fez uma pausa para o almoço. Glen me disse certa vez que o pai parava para almoçar ao meio-dia todos os dias, independentemente do que acontecesse. Sábados, domingos. Durante a formatura do ensino médio, que tivera início às onze horas, sua perna esquerda começara a se sacudir incontrolavelmente meio-dia e meia. — Quer a boa notícia primeiro? — perguntou ele, tirando a tampa de uma cerveja que trouxera em um cooler. — A boa notícia é que essa ardósia vai durar cem anos. — Qual é a má notícia? — A casa tem quase 80 anos. Em vinte anos você precisará de um novo telhado. — Eu consigo lidar com isso — eu disse. — Vou precisar de um telhado novo em vinte anos — digo a minha mãe. Ela dá de ombros, entra e corta para cada uma de nós uma fatia de torta. Como as beiradas da minha. Tomo um pouco de chá. — Você acha que faz algum sentido ir lá uma última vez? — pergunta ela. — A data de fechamento é logo após o Dia do Trabalho. Depois disso, você nunca mais terá uma chance. — Não posso fazer isso. Não posso de forma alguma. Não consigo sequer passar de carro pela rua. Se eu estacionasse na frente da casa... não sei o que faria, mas não seria bom. Então acho que se a questão é pensar que seria útil, a resposta é não. É bem o contrário. Exatamente o contrário. — Feito — diz minha mãe, e fico sem saber se ela se refere à sua fatia de torta ou à conversa sobre nossa velha casa. Ela dá tapinhas insistentes na


borda do meu prato. Deixo minha torta deslizar para o chão e Ginger a faz desaparecer em um instante. Minha mãe chama da cozinha: — Vamos arrumar os móveis — diz ela.


Pedem aos pais que fiquem no pé da colina para esperar que os campistas desçam com as sacolas. — Detesto esta parte — diz uma das mães, cruzando e recruzando os braços sobre o peito. Sempre achei que esta era uma boa maneira de evitar a enlouquecida confusão paterna, mas hoje estou ansiosa para correr pelo longo caminho até a cabana 14, onde meu filho monitor-assistente tem dormido entre uma dúzia de garotinhos. “Depois disso, nunca vou querer ter filhos”, uma voz gorjeia sarcasticamente no fundo de minha mente, e percebo que é de Ruby. Quero responder, mas há gente demais em volta. Um homem alto com cabelos sem cor penteados sobre as entradas da testa abre caminho até mim. — Você é a mãe de Alex? — pergunta ele. — Sou o pai de Colin. É um prazer conhecê-la pessoalmente. Acho que conheci seu marido há dois verões. — Ele olha para cima da colina. — Algum sinal deles? Pouco a pouco, os meninos pequenos começam a aparecer. Atrás deles, vem uma caminhonete atulhada até em cima de sacolas. — Brendan! Brendan! — grita uma das mães. Uma leve aurora de flashes das câmeras ilumina a fila de campistas que descem. Um dos meninos cai, e um homem dispara à frente. — Está tudo bem — diz em uma voz firme. — Está tudo bem. O pai de Colin e eu nos afastamos para o fundo da multidão, trocando


esquecidos primeiros nomes. O dele é Jack. Concordamos que parece improvável que nossos meninos já tenham sido tão pequenos. Alex me contou que Colin usa sapatos tamanho 46. Baixo os olhos para os mocassins de Jack. Hereditariedade. — Nós éramos assim tão malucos? — sussurro, observando os pais dos meninos mais novos. — Eu não. Minha mulher era. Olho em volta. — Onde ela está? Jack encolhe os ombros. Talvez seja um traço familiar, como o tamanho dos sapatos. — Está em casa. Ela não estava se sentindo bem. — Ah, não — digo e, de repente, quase explosivamente, vejo-me lutando contra as lágrimas. Isso me acontece às vezes agora, normalmente por causa da má sorte de outras pessoas. Na manhã em que vi um filhote de corça com as pernas esmagadas no acostamento da estrada... tive um acesso de choro que durara um bom tempo. — Justin! — uma das mães grita enquanto a fila de campistas cresce para uma multidão confusa. — Olhe — diz o pai de Colin, e no topo da colina vejo Alex. Enquanto anda, um menininho corre atrás dele e pega sua mão, e Alex sorri, vira-se para trás para gritar alguma coisa. — Lá está Colin — diz seu pai afetuosamente, e um menino gigantesco corre para o outro lado de Alex. — Qual é a altura dele? — Um e noventa — diz Jack. — Esperamos que esteja parando de crescer. — Uau! — digo. — Aquele é meu monitor, mãe. — Ouço um dos meninos pequenos gritar naquela voz alta e trinada dos menininhos. Chilreio, era como chamávamos quando Max contava uma história. Alex tinha uma voz mais


baixa. — Ei, moça — chama ele quando se aproxima. Quando me abraça, parece um adulto em meus braços, com ossos longos e fortes. Todo verão sinto que ele mudou, mas neste verão tenho certeza. — Onde está a mamãe? — pergunta Colin bruscamente. — Em casa, esperando — diz seu pai. — Fazendo seu jantar. — Subtexto, subtexto. Se eu fosse capaz de fazer isso há um ano, ouvir as palavras que não estavam sendo ditas, será que tudo teria sido diferente? Meus olhos se enchem de lágrimas outra vez. — Senti muitas saudades suas — digo, minha boca contra o ombro de Alex. O menininho ainda está perto dele. — Ei, Charlie — diz Alex —, esta é minha mãe. — Charlie acena. Seu polegar move-se lentamente em direção à boca, depois vai para dentro do bolso, como uma tentação guardada bem fora de vista. Alex anda com ele até a sede. Quando sai, parece sério. Ele e Colin dão apertos de mão que se transformam em tapinhas nas costas que se transformam em abraços apertados. — Com certeza vou visitar você, cara — diz Colin. — É, isso é duvidoso, cara. Você diz isso todo ano. Na viagem de carro para casa, conto a Alex sobre a tempestade, sobre como a chuva tinha me cegado, como eu tinha entrado na casa que agora estávamos alugando. Explico que sua avó viera me ajudar, e seu avô inspecionara o telhado, mas que eu tinha feito a pintura e os pisos sozinha, e que suspeito que isso me fez mais bem que levantar pesos e correr. — Isso é duvidoso — diz ele. — Então “duvidoso” é a palavra do acampamento deste ano? — pergunto finalmente. — Acho que sim — diz ele, e então adormece, jogado para um lado. Quando ele acorda em uma parada de caminhões, diz:


— Sabe aquele menino, o Charlie? Os pais o mandaram da Inglaterra para o acampamento. Tive que dormir em seu beliche na primeira semana porque ele chorava todas as noites. Agora tem que voltar de avião sozinho, com algum crachá em volta do pescoço com, tipo, seu nome e telefone e essas coisas. Os pais dele devem ser muito escrotos. — Olhe a boca — digo. Normalmente há dois ou três dias intensamente profanos depois do acampamento, antes que os hábitos civilizados sejam reaprendidos. Enquanto estamos na fila do cachorro-quente, digo: — Não acho que o acampamento devesse ter concordado com isso. É desumano. — O quê? — Charlie. Inglaterra. — Totalmente duvidoso, não é? Quando pegamos a estrada, começo a falar rápido demais: sobre como a casa de Ben fica a uma curta caminhada pelo bosque, sobre como eu deixei vazio o quarto ao lado do de Alex, de forma que ele possa usar para o que quiser, sobre como acho que a chaminé vai funcionar bem. Estou sem fôlego quando descemos o caminho de entrada e viramos diante da varanda da frente. Coloquei cadeiras de balanço ao longo dela. Eu as enfileirei ontem, depois percebi que eram cinco e levei uma para a varanda telada e a pus no canto. Quando abro a porta da frente, Ginger pula e coloca as patas no peito de Alex, lambendo freneticamente seu queixo malbarbeado. Ele toma as patas nas mãos e dança com ela, depois se senta em uma das cadeiras de balanço e acaricia atrás de suas orelhas. — Você gosta daqui, menina? Gosta? É uma boa casa? — Ginger deita de costas e pedala com as patas enquanto ele coça sua barriga. — Tem um monte de esquilos, hein? — Ele levanta os olhos e balança a cabeça. — Que árvore monstruosa — diz. O telefone toca uma, duas, três vezes, mas o ignoro enquanto ele circula


pelo interior da casa, olha pelas janelas, abre a geladeira. Quando chegamos ao seu quarto, que eu pintei de cinza claro, ele pergunta: — Essa é a minha cama? Da casa? — É — digo. — Os homens da mudança trouxeram. Ele senta-se na beirada. Há lençóis novos, uma nova colcha. Parece uma cama nova. É praticamente nova. — Legal — diz ele. Tenho uma caçarola enorme no forno, frango tetrazzini do jeito que ele gosta, sem cogumelos, e um grande prato de brownies. Ele toma um banho como faz sempre que chega do acampamento, onde, segundo eu soube, a água é fria demais, difícil demais, praticamente uma goteira, onde as toalhas sempre cheiram a mofo e alguém sempre pega o melhor sabão. Ele toma um banho muito longo, e eu ligo o forno. — Elizabeth pode vir aqui? — pergunta ele, quando desce cheirando a limão. — Claro — digo, um pouco entusiasmada demais. Elizabeth nunca veio a nossa casa. Fui apresentada oficialmente a ela na formatura. Fiquei feliz em ver que estava usando um lindo vestido florido, nem decotado nem curto demais. E, de repente, antes que eu me dê conta, Elizabeth está na varanda telada com sua melhor amiga, que me diz que seu nome é Allison Holzberg, e três garotos do time de futebol, que se tornarão veteranos este ano, um deles namorado de Allison, todos colegas de time de Alex. Estendo colchas no gramado dos fundos e coloco a comida no balcão da cozinha, faço uma salada e abro um molho de maçã. E, em um instante, em apenas um instante, com a batida de portas teladas e o ruído de rodas de carro sobre o cascalho e o retinir dos talheres nos pratos, nossa casa se torna aquela casa outra vez: a casa na qual as crianças vinham, iam e voltavam. Sinto algo estranho por dentro e desejo que, de alguma maneira, pudesse pegar essa sensação e guardá-la em um pote, como vaga-lumes, com buracos na tampa


para que possam respirar. — Você deveria mesmo receber Colin para uma visita — digo, enquanto despejo limonada em copos de papel. — Meu melhor amigo do acampamento — diz ele aos outros. — Junto com o Ben. Ele é duvidoso, cara. Totalmente duvidoso. Toda a caçarola e todos os brownies são comidos, ainda que as duas garotas tenham comido muito pouco de cada. Elas me ajudam a levar os pratos de plástico para a cozinha. Nunca lavei muitos pratos aqui, e deixo que me auxiliem a carregar a lavadora porque é a primeira vez que a uso e ainda não desenvolvi um modo específico de fazê-lo. — Você também está no segundo ano, Allison? — pergunto em minha voz amistosa de mãe, que parece levemente falsa por causa da falta de uso. — Estou, Sra. Latham — diz ela. — E não sei se você se lembra, mas eu estive na sua casa no último Halloween. Sua outra casa. Você sabe. A antiga casa. — Sua voz está trêmula, e eu encorajo: — Diga-me qual era sua fantasia. Aí vou me lembrar. Havia muitos jovens lá. — Annie Oakley? — diz ela, e de repente eu me lembro dela, o cabelo trançado, calças de vaqueiro, um enorme chapéu de caubói. — Você estava adorável — digo. Mas não consigo me obrigar a prometer que haverá uma festa novamente este ano. “Doce ou travessura”, ouço Max dizer, e volto-me para a pia. Os garotos estão conversando no quintal, e quando terminamos na cozinha eles se levantam e entram. Por alguma razão, eles ocupam mais espaço que o tamanho de seus corpos faria supor. Já as garotas, não, já notei antes. Com os garotos do lado de dentro, o cômodo fica repentinamente lotado, e percebo como é pequeno. Alex é tão alto quanto os mais velhos, embora seus ombros e sua cintura não sejam tão largos. — Está pronta? — pergunta Alex a Elizabeth. — Aonde vocês vão?


— Ao Tony’s, tomar sorvete. — Sorvete? — digo. — Não tinha bastante comida para vocês? — Nunca há comida o bastante — resmunga um dos garotos, que os outros chamam de Alce. Ele é filho do ortodontista que colocara o expansor palatino em Max. Estávamos esperando até este ano para ver se resolveria seu problema de apinhamento e tornaria desnecessário o aparelho. — Além disso, vamos ver todo mundo, conversar, sei lá. Vamos. Repentinamente, Alex foi promovido a uma diferente categoria adolescente, a dos que têm carro. Gostaria que Glen estivesse aqui para me dizer o que fazer. — Quem vai dirigir? — pergunto. — Meu Deus, mãe. Por favor. — Tudo bem, cara — diz Terrence, que é um dos capitães do time. — Sou eu, Sra. Latham. Tenho 18 anos, então já dirijo há dois anos. Sem multas, sem acidentes. Juro. E de repente estão todos no carro, e eu estou acenando, e em um instante não há nada além do zumbido da lavadora de pratos e os baques irregulares dos insetos noturnos atingindo as telas, e o silêncio que me pressiona como um teto baixo. Tento me agarrar ao momento, à sensação, ao barulho e à vida na casa, mas já se perdeu, pelo menos por ora. Volto para a cozinha e há 2,5 centímetros de água sobre o velho linóleo. — Ah, droga! — grito, engatinhando para baixo da pia de forma a desligar a válvula de água. Esfregão, balde, toalhas. Pela manhã, terei que chamar o encanador. Às onze da noite, já terminei de arrumar a bagunça e lavei todos os pratos à mão. O prato da caçarola está de molho na pia. Jogo a sacola de Alex no porão; sei, por causa dos anos anteriores, que não haverá nada dentro dela além de roupas tão sujas de lama e suor que alguns dos shorts e quase todas as meias terão de ser jogados fora. Eu poderia começar a lavar agora, mas o porão é úmido e pouco iluminado, e há lacraias


ondulando pelas paredes de pedra. Repentinamente, percebo que estou exausta e sem energia, que meu corpo dói como se eu tivesse plantado, me exercitado, corrido. Sento-me na varanda por algum tempo, olhando para o nada. É uma noite sem lua, e a linha das árvores se mesclou ao escuro céu noturno. Entro e ligo a televisão, pego um livro, finjo estar fazendo alguma coisa quando o que estou fazendo é tentar ouvir o som de um carro na estrada, pneus agarrando os cascalhos soltos. Meia-noite é a hora em que Alex tem que chegar. Tenho certeza de que vai pedir para que seja prorrogada este ano, mas não vou concordar. Ruby tinha que chegar à meia-noite nos primeiros dois anos do ensino médio, depois meia-noite e meia, e finalmente uma hora no último ano. As únicas exceções eram as ocasiões especiais: festas de aniversário, baile de formatura. A noite de Ano-Novo, é claro. Ruby tinha permissão de chegar tarde na noite de AnoNovo. Outro erro. À uma hora, comecei a lavar as roupas porque não consigo ficar parada, e quando abro um livro não faço ideia do que acabei de ler. Parece que o tempo está mudando; há um assobio agudo e intermitente do vento de uma tempestade através das árvores. Liguei para o celular de Alex duas vezes, mas quando esvaziei sua sacola no chão de concreto do porão, encontrei-o entre um emaranhado de camisetas, com a bateria descarregada. Perguntome se devo ligar para os pais de Elizabeth, mas seu sobrenome é Jackson, e sei que já pelo menos três ou quatro famílias na cidade com esse nome, e não sei qual é a dela. Penso em ligar para Olivia e pegar o número de Terrence da lista do time, então me lembro de que Olivia está em Londres, de férias com Ted e os meninos. Eu poderia ligar para o celular dela (é manhã na Inglaterra, abençoada manhã segura), mas não acho que ela viaje com a lista de telefones do time. No serviço de informações, consigo o telefone da única família Holzberg da área, que deve ser a de Allison, mas não consigo me obrigar a ligar. Lembro-me que isso acontecia ocasionalmente, que a mãe de um dos amigos de Ruby telefonava e nos


acordava, balbuciando desculpas. Não, eu dizia, Ruby estava em casa, na cama, havia bastante tempo. Imagino se Deborah alguma vez quisera ligar procurando por Kiernan, se tinha começado a discar o velho e familiar número e então desligara. À uma e quarenta e cinco estou no porão, colocando a primeira leva de roupas na secadora, imaginando Alex enquanto o carro atinge uma árvore, enquanto as sirenes da ambulância tocam, quando ouço um barulho lá em cima e Ginger late. Subo as escadas rapidamente, tropeçando no último degrau, e vou até a porta. O carro esportivo está parado com o motor ligado, e Alex desliza do banco de trás, gritando alguma coisa para os meninos lá dentro. Fico parada no vão da porta com os braços cruzados sobre o peito. Com a luz dos faróis bem em cima de mim, devo estar parecendo um anjo vingador. — Onde você estava? — pergunto. Alex entra na cozinha e ouço a água correndo. Quando ele volta para a sala de estar, seus olhos estão parcialmente encobertos por seu cabelo, mas consigo ver que estão vermelhos. Eu me aproximo e sinto cheiro de cerveja. — O que significa isso? — grito. — Ninguém consegue achar este lugar — diz ele, piscando e embolando as palavras. — Tipo, nem no posto de gasolina eles sabiam como chegar aqui. Nunca tinham ouvido falar daqui. Nenhum dos caras tinha sequer ouvido falar daqui. Estrada do Vale Escondido? Que merda é essa? Aposto que nem a polícia ouviu falar daqui. — É estrada do Chalé Escondido, Alex. Chalé Escondido. — Ah, ótimo. Eu não sei nem o nome da minha própria rua. Que ótimo. Eu nem sei onde moro. — Você está de castigo — digo. — Eu nem sei onde é a minha casa. — Ele olha em volta e cambaleia, porque virar a cabeça o desequilibrou. — Esta é a minha casa? Não sei. Onde estou, afinal?


— Vá para a cama, Alex — digo. — Podemos conversar de manhã, quando você estiver sóbrio. — Onde é minha cama? Hein? Onde é minha cama? — Suba. Ele sobe e fecha a porta. Ouço um baque pesado e sei que ele vai dormir em cima do edredom novo, dos novos lençóis, de roupas e sapatos. Estou inquieta por causa da intoxicação de adrenalina que sempre tenho depois de brigar com meus filhos. Certa noite, após uma discussão à meia-noite com Ruby por causa do cheiro de maconha em seu cabelo, reorganizei os armários da cozinha. Glen descera depois de uma hora, observara o que eu estava fazendo e voltara para a cama. Ele conseguia gritar com as crianças e voltar a dormir em um instante. Fora isso o que eu pensara que aconteceria na noite de Ano-Novo. Gostaria que Glen estivesse aqui. Quero tomar um sonífero, mas agora não posso, não posso mais. Como posso me permitir ficar inconsciente em noites como esta, inconsciente em relação ao que acontece fora daqui? Já fiz isso demais. Quando empacotei nossas coisas na casa de hóspedes, rastejei para baixo da cama em que Alex dormia para tirar a babá eletrônica, mas ela já tinha sumido. Por meses, eu tinha dormido com o receptor, pensando que estava ouvindo o som de um sono tranquilo, quando não estava ouvindo absolutamente nada. Deito-me na cama. Não há luz vindo do lado de fora para o teto. A princípio, começo a cochilar e sou acordada por um som gutural de algum animal lá fora. Ginger está dormindo no quarto de Alex; imagino-a abrindo os olhos, levantando a cabeça, depois acomodando-se outra vez. Mais tarde, acordo de um sono leve com barulho de vômito no banheiro do outro lado do corredor. Viro-me e olho para o relógio digital no chão em um canto do quarto parcialmente mobilhado. Acaba de passar das quatro horas, esse horário amaldiçoado, quando a noite já se esgotou, mas a manhã não chega nunca. Um deles, quando era bebê, sempre acordava a essa hora, querendo


mamar, mas não tenho certeza de qual. Só me lembro da inexorabilidade da escuridão. Fico deitada por alguns minutos, então suspiro e desço para fazer café e bebê-lo na varanda, enquanto a secadora funciona e o sol luta para se levantar novamente. Há uma última leva de roupas para lavar, tudo jeans, e eu esvazio os bolsos de Alex, esperando não achar um baseado ou uma camisinha. Esta foi uma longa noite. Mas, inacreditavelmente, todos os bolsos estão vazios, com exceção de um M&M perdido e uma chave que não reconheço. Por último, a calça jeans com a qual ele voltou do acampamento, e no bolso de trás encontro sua carteira. Sem hesitar, abro-a e olho. Sete dólares. Sua identificação escolar. Uma foto de Elizabeth segurando algum tipo de certificado, sorrindo e apertando os olhos. A foto no anuário de Glen, preta e branca e embaçada, de acordo com a moda da época. Eu me perguntava onde tinha ido parar essa foto. Atrás dela está um pedaço de papel sem pauta, dobrado em um pequeno quadrado, de forma que quando é aberto as dobras estão puídas e finas. Parece que pode se despedaçar a qualquer momento em um punhado de pequenos retângulos. É claro que reconheço a letra bonita e levemente afetada de Ruby, as enormes curvas acentuadas dos “Y”, o risco extravagante dos “T”. Ela sempre escrevia assim quando copiava a forma final de um poema, ainda jovem o bastante para acreditar que se pode mudar a própria letra e, assim, mudar a si mesmo. É o poema que ela escreveu para Alex no Natal. Não sei onde foi parar o de Max. Talvez esteja em sua carteira também, onde quer que sua carteira esteja. Talvez um dia eu abra uma caixa e a encontre. Ah, urso, Eu o vejo em seu pelo lanoso Movendo-se rapidamente sobre suas grandes patas. Sei que há uma vozinha dentro de você, Pedindo mel.


Mas quando você tenta falar, Eles só ouvem um rugido. Só você sabe o que está dizendo. Eu leio e releio. O sol nasce. A varanda fica quente. Dobro o resto da roupa, releio o poema, torno a dobrá-lo e coloco a carteira de Alex no balcão da cozinha. Quero copiá-lo, mas de certa forma me parece errado, e naquela noite percebo que o gravei na memória sem nem sequer tentar.


Estou na loja de jardinagem colocando crisântemos na traseira do carro. A Sra. Feeney gosta de crisântemos. Todos os anos, logo depois do Dia do Trabalho, ela telefona e pede crisântemos nos vasos que ladeiam suas portas da frente e dos fundos. Em um ano, eu achei belos híbridos, pétalas acobreadas com um centro marrom. No ano seguinte, ela dissera: “Quero aqueles velhos amarelos de sempre.” Comprei os velhos amarelos de sempre, e um arbusto de rosa-de-sarom que pretendo plantar perto da porta da varanda dos fundos. Florescerá em branco no verão. Rickie e John vão plantar uma cerejeira pendente na lateral da casa de Olivia, um agradecimento eterno a ela por ter nos acolhido, dando-nos um lar temporário. — Você tem que parar de me agradecer — Olivia me disse um dia. — Você tem alguma noção de como eu estava desocupada antes de conhecêla? Desocupação, é assim que nós, mulheres, chamamos isso, quando estamos sobrecarregadas pelos cuidados com crianças pequenas, pelo peso das tarefas pequenas, uma vida na qual caímos na cama no fim do dia, exaustas por ser tudo para todos. Eu me demoro olhando os maltratados perenes nos fundos, as caixas de bulbos. Grande parte do terreno em torno da casa fica na sombra, e não tenho certeza de quanto plantar no jardim. Olivia pediu aos homens que cuidam de seu gramado para abrirem um caminho através das amoras-


silvestres colina acima até minha casa. Ben e Alex pintaram “X” nas árvores. Logo, o terreno vai estar bastante gasto. Alex não disse exatamente que gosta da casa, ou sequer que está inclinado a ficar, mas convidou Elizabeth para jantar duas vezes desde que seu castigo começou. Eu disse que se eles estivessem no quarto dele, a porta tinha que ficar aberta, mas eles basicamente ficavam sentados na varanda telada, ou andavam pelo bosque, ou assistiam à televisão comigo. Ela é educada, tranquila e sempre se levanta para pôr a mesa. Gosto disso. Eu me pergunto se Ruby alguma vez cruzara com Elizabeth nos corredores da escola, se ela e Max tinham estado na mesma turma. Talvez um dia eu venha a saber. Perguntei a Alex se ele queria visitar a antiga casa uma última vez antes que fosse vendida. Dei ao advogado poderes de procurador, de forma que eu não precise assinar os documentos ou encarar os compradores, com seus sorrisos exultantes por causa da casa nova. — Eu estive lá — respondeu Alex monotonamente. — Olhei pelas janelas. Está, tipo, completamente vazia. Mas, naquela noite, olhando pela porta da cozinha para o quintal, ele perguntou de repente: — Você esteve lá? — Não — respondi, entendendo imediatamente o que ele queria dizer. — Não consigo. Sinto que deveria, mas não consigo. — A vovó trouxe todas essas coisas? Fiz que sim com a cabeça. — Foi incrível o que ela fez por mim. Por nós. Não sei o que eu teria feito em outras circunstâncias. Ele pensou e disse: — A mãe de Ben, talvez. Ou a tia Alice. Ou quem sabe a mãe de Sarah. — Eu não conseguiria fazer sozinha. Ele deu um tapinha sem jeito em meu braço, olhou para mim, depois desviou novamente os olhos.


— Tudo bem, mãe. Você não precisa ir. É só, tipo, uma casa. Tipo, uma construção, sabe? É só uma casa. — Eu me pergunto se ele sabe que está enganando a si próprio. Compro uma centena de bulbos: tulipas brancas e amarelas e jacintos azuis. Vou cavar valas, plantá-los em canteiros e torcer para que os esquilos não desenterrem todos. Quero algumas begônias, mas não há nada aqui. Essa é uma das únicas coisas que eu queria da outra casa, mudas dos arbustos e das flores. Suponho que possa começar do zero. Compro duas hortênsias-folha-de-carvalho. Há um ponto ensolarado de um dos lados da varanda da frente, e tive sorte com elas no passado. Eu caminhara pela propriedade naquela manhã, observando-a com meus olhos profissionais, decidindo quanto precisava ser feito imediatamente. Salamandras cruzavam a entrada com suas pernas arqueadas, sinais de ponto e vírgula laranja nos trechos ensolarados entre as árvores. Uma delas parecia surpreendentemente grande, mas quando me inclinei, percebi que era uma folha que tinha amarelado cedo demais e fora lançada ao chão. Logo será outono, depois inverno. Vai nevar e, independente do que eu faça, será Natal. Estou um pouco melhor do que estava há seis meses, seja lá o que isso signifique. Consigo ouvir as pessoas falando por um tempo mais longo antes que minha mente se recolha para uma caverna escura, consigo ficar mais tempo sem me desligar ou me paralisar, ficar apática ou chorar. A mulher exterior, a mulher que agradece ao vendedor, que guarda as compras no carro sem se dar conta de como são poucas sacolas, está no controle na maior parte do tempo. Mas o Natal a apavora, e o Ano-Novo, é claro. Se eu fosse uma ilusionista, faria novembro se transformar em janeiro. É como se dezembro fosse desfazer os pequenos passos que dei para tentar criar uma vida para Alex que seja minimamente parecida com a vida que ele teve um dia. Tenho até o dia primeiro de janeiro para decidir se vou comprar a casa. Quando o corretor usou essa data eu tive um calafrio, um calafrio que


minha mãe sempre disse que significava alguém andando sobre seu túmulo. Mas não vou esperar. Adoro o chalé escondido. O isolamento, que todas as outras pessoas consideram perturbador, envolve-me e faz minha solidão parecer natural. Alex fica bastante em casa, mas junto com Elizabeth, seus olhos, conversas e dedos indo na direção um do outro, fazem-me sentir evidentemente só. Sou uma viúva. Na primeira vez em que esse pensamento cruzou minha mente, pareceu absurdo. Ainda sou mãe, porque Alex foi esquiar em vez de ficar em casa. Mas sou viúva porque Glen foi ver quem estava fazendo todo aquele barulho lá embaixo. Meu telefone toca. É o numero de Alice no visor. Vou retornar a ligação quando terminar de carregar o carro com plantas. Alice tem um novo emprego. Ela é revisora de uma pequena editora que publica um romance por mês. E está muito feliz. Tenho falado com ela de forma incoerente sobre fazer uma revisão freelance. Sinto que deveria ter algo mais com que me ocupar além de comprar crisântemos para a Sra. Feeney e cozinhar para Alex e Elizabeth. Vou a todos os jogos de futebol. Terrence tem dificuldade em me olhar nos olhos depois de tirar meu filho bêbado de seu carro. A mãe de Terrence diz que ele elogiou muito meu frango tetrazzini. Mentimos agradavelmente umas para as outras nas arquibancadas, mentimos por omissão. Como você está? Bem. E as crianças? Ótimas! E se eu dissesse a verdade? Como você está? Semimorta. E as crianças? Bom, só me restou um, e não tenho ideia de como ele está. Quando fui fazer meu checkup, nosso médico perguntou se eu precisava de alguma coisa para a ansiedade. — Não tomo mais essas coisas — eu disse. — É uma boa ideia, a menos que você precise — respondeu ele. Fecho a tampa da mala depois de guardar o relógio de sol de cobre. Rickie disse que vai fazer uma base de concreto para fixá-lo. Rickie aparece frequentemente, sempre com algum presente aleatório: um carrinho de mão, um presunto, um mapa da região. Da última vez que veio, ele marcou um quadrado para o relógio de sol e cavou um buraco para a base. Vou


colocá-lo perto dos fundos do quintal, onde a luz atravessa a cobertura de folhas. Quando o fizer, Alex terá certeza de que decidi comprar a casa, e eu também. Deslizo para o banco do motorista, pensando se devo plantar alguns bulbos ao redor da base do relógio de sol, quando simultaneamente sinto e ouço a repentina explosão que significa que alguém bateu na traseira de meu carro, com força. Ainda não coloquei meu cinto de segurança, e minha cabeça atinge o volante, e o interior do carro fica preto com partículas prateadas. Minha visão clareia no exato momento em que sinto o impacto novamente. Os funcionários da loja de jardinagem correram para a porta e estão ali, olhando, de boca aberta. Uma mulher que estava procurando repelente quando eu paguei minhas plantas está agachada atrás de uma estante de enfeites para jardim. Seu rosto aparece entre um esquilo de pedra e um anjo quando sinto o terceiro impacto. Desta vez estou me segurando com os dois braços. Olho pelo espelho retrovisor e, através do para-brisa, vejo Deborah atrás do volante. Pelo que posso perceber, ela danificou mais o próprio carro que o meu. Parece perturbada, os dentes da frente prendendo o lábio inferior como se ela fosse arrancá-lo. Seu cabelo está muito curto, quase uma versão dos cortes a máquina que o treinador de basquete exige, de forma que seus olhos parecem dilatados, como se ela estivesse tendo uma visão, ou fosse cega. Sua boca se movimenta. Espero que as janelas estejam fechadas para que as pessoas não consigam ouvir o que ela está dizendo ou gritando. Quero muito sair de meu carro, andar até o dela e dizer alguma coisa. Mas não imagino o que seria. Acho que ela me atropelaria sem pensar duas vezes. Eu me pergunto se ela ouve vozes, fragmentos de conversas, os comentários que às vezes ouço. Essa é a diferença de como me sinto em reação a Kiernan. Nunca ouço sua voz, vejo sua sombra no corredor, penso que vislumbrei suas costas enquanto ele se afasta dos campos esportivos


da escola. Suponho que é assim que o castigo pelo que fez: Ruby ri em meu ouvido, Max faz um comentário do banco de trás, Glen dá uma sugestão do travesseiro ao lado do meu. Mas Kiernan está morto na garagem. Ele se foi. Ele se foi para sempre. Ruby me disse que eu precisava escolher um lado. E eu escolhi. Encosto minha cabeça ao volante e espero, mas nada acontece. Agora há uma nuvem de fumaça em meu espelho retrovisor e, quando se dissipa, não resta nada além do fedor de borracha queimada e do som de um carro seguindo com dificuldade pela autoestrada, com alguma coisa danificada no chassi. Eu saio, e o rapaz que administra a loja de jardinagem grita: — Quer que eu chame a polícia? Olho para a traseira do meu carro. A mala terá de ser substituída. O relógio de sol está quebrado ao meio. — Não — digo, exausta. — Não faça isso. — Ela bateu em você de propósito — grita a mulher de trás da prateleira. — Vou dizer à polícia que ela bateu em você de propósito. — Obrigada — agradeço. — Está tudo bem. Paro na oficina para fazer um orçamento. Digo ao mecânico que deixei o carro estacionado no supermercado e que estava desse jeito quando voltei. — Ah, cara, essas pessoas de hoje — diz ele. Quando chego em casa, ligo para Alice e conto o que aconteceu. — Estou louca? — pergunto. — Não consegui. Eu não podia jogá-la aos lobos daquela maneira. — Ou talvez eu estivesse preocupada com o que ela ia dizer sobre mim. Não quero mais que as pessoas me olhem, quero que me olhem normalmente como faziam antes. Mas isso não foi tudo. Entendo por que ela fez o que fez. Sei como é estar enlouquecida de tristeza, querer culpar, atacar, gritar. Talvez, no lugar dela, eu fizesse exatamente a mesma coisa. Talvez fizesse algo pior. — Você teve sorte de ter sido só o carro — diz Alice. — Então, você teria ligado para a polícia?


Alice fica em silêncio por um bom tempo. Finalmente fala em uma voz tranquila, a mesma voz que costumava usar quando se deitava ao meu lado no primeiro ano de faculdade quando eu soluçava de saudade de casa. Ela me dava barras de chocolate da Hershey’s até que a fronha estivesse além da possibilidade de ser lavada. — Não. Eu teria feito exatamente o que você fez. — Sei que ela está pensando em Liam. — Ela não tem nada. Nada — digo, e minha voz falha. — E você tem Alex. Glen não queria deixá-lo ir esquiar. “Nós não conhecemos bem essas pessoas”, dissera ele. “Não sabemos que tipo de pais são.” “Eles parecem legais”, eu dissera. Ele balançara a cabeça. Eu me lembro, ele balançara a cabeça. — E eu tenho Alex — digo. Tiro as plantas da mala do carro e carrego o relógio de sol para o celeiro. Ele vai se tornar um daqueles artefatos com os quais me deparo de tempos em tempos, que nunca vou usar, mas provavelmente nunca jogarei fora. Uma aranha fez uma teia no canto do vão da porta, e passo diretamente por ela, que se fecha sobre meu rosto como uma máscara, uma mortalha, e eu a arranco, arrepiada, até que meus dedos fiquem coalhados de caroços de seda pegajosa. Um deles tem um pequeno inseto dentro, ainda se debatendo, e eu me retraio e o jogo no chão. E então, sem pensar, corro de volta para casa. Pego o telefone e, de algum lugar, algum lugar onde detecto datas de aniversário e endereços pouco lembrados (467 Wallingford, repentinamente me recordo, foi a casa onde cresci), recupero um número de telefone para o qual não ligo há anos. — Alô? — diz uma voz monótona e sem vida, e por apenas um instante eu penso que lembrei errado do número. — Alô? — E agora reconheço, e inspiro, sentindo um pouco de teia ainda grudada a meu lábio inferior, e digo:


— Deborah? Nunca mais se aproxime de mim. E desligo.


Não se pode planejá-los, embora eu suponha que essas pessoas que meditam e praticam ioga pensem que é possível, mas há alguns momentos em que experimentamos alegria física sem querer, antes que nossas mentes nos lembrem das razões pelas quais não deveríamos senti-la. Uma leve brisa, um sol cálido, a delicada música de um pássaro: nossos sentidos dizem alguma coisa antes que o bom senso os desdiga. Ah, se pudéssemos ser criaturas físicas com mais frequência... Estou no jogo de futebol. Alex acaba de marcar um gol, e depois de ser socado alegremente pelos colegas de time, ele se dá ao trabalho de acenar em minha direção. Exatamente como no futebol americano na TV: Oi, mãe. Eu pulo. Sinto o que sinto, e empurro meus pensamentos para o fundo, para baixo dos sentimentos. Vou me permitir este momento. Em alguns dias Alex está bem; em outros, não. Alguns jantares são cheios de conversa, outros, silenciosos. Um fotógrafo do jornal local tira uma foto dele da linha lateral. É uma tarde quente de outubro, mais verão que outono, e o rosto de Alex está lustroso de suor. Ele segura a bola. Se o fotógrafo for bom, será uma ótima foto. Estou usando um vestido largo e um cardigã comprido. (“Você vai usar isso?” pergunta Ruby. “Cale a boca”, diz Max.) Meu cabelo precisa de um corte. É assim que preencherei a quinta-feira. Vou cortar o cabelo. — Foi um gol e tanto — diz uma voz atrás de mim. É Nancy. Ela me beija suavemente na bochecha. É assim que vai ser. Quando Alice e eu tínhamos


uma briga, ela sempre a terminava com o que chamava de pow wow. Ela atacava, eu me defendia, eu chorava, ela chorava, ambas admitíamos culpa mesmo que não acreditássemos nela, nós nos abraçávamos. As coisas seriam como antes. Nancy não fará isso. Ela falará comigo em público, depois ligará, depois me chamará para jantar. Nós nos tornaremos amigas de novo, de alguma maneira. Sempre haverá Sarah para nos unir. Mas sempre haverá uma cerca de arame farpado entre nós, sombras sobre tudo o que falemos ou façamos. Fred está com ela, veio da faculdade para o final de semana, e ele me abraça. De dentro da jaqueta ele tira uma carta. É de José, que passou o verão colhendo tomates em Nova Jersey e quer que ele me diga que tem rezado por mim e por Alex, e que sua filha mais velha entrou para a lista de melhores alunos. — Isso é muito gentil — digo tranquilamente, esticando uma das mãos. — Posso ler? — Está em espanhol — diz Fred. — Então finalmente contou a eles que fala espanhol? — Acho que eles sempre souberam. Talvez lessem meu rosto quando diziam certas coisas, sabe, e conseguissem perceber que eu sabia o que estava acontecendo. — O que ele diz? — pergunto. Fred vira a carta. — Diz que a mulher arrumou um emprego na Pennsylvania. Eles vão deixar as meninas com a avó, no México. — Que triste... — Acho que muitos fazem o mesmo. É o preço que pagam. Ele disse que a menininha teve… não conheço esta palavra, que ela teve alguma coisa removida? A garganta, talvez? Não pode ser. — Amígdalas. Ela teve as amígdalas removidas. — Talvez — diz Fred. — Não conheço esta palavra.


Elizabeth e Allison chegam com o comportamento levemente tímido, aqueles que as garotas costumam demonstrar quando se aproximam de mães de garotos, especialmente garotos de quem elas gostam. Ruby nunca o demonstrara, mas ela conhecia a mãe de Kiernan praticamente a vida toda. E poucas coisas deixavam Ruby insegura. — Ele marcou um gol — digo. — Ai, que mancada — diz Elizabeth. Gosto de suas expressões antiquadas. Ela também diz “puxa vida”. — Tivemos uma reunião do Movimento Tibete Livre — diz Allison. — Ah — digo, e então acrescento: — Ruby participava do Tibete Livre. Elizabeth observa Alex. Ele está ocupado demais correndo em direção à extremidade do campo para notá-la. — Diga a ele que foi um ótimo jogo — peço. — Ele nunca vai saber que você não assistiu. — Ela parece chocada. Provavelmente é jovem o suficiente para acreditar que a honestidade é a melhor política. Talvez pense que minha sugestão é duvidosa. Agora parece que todo mundo no segundo ano está duvidoso sobre alguma coisa. As garotas desaparecem. Nancy está conversando com a mãe do melhor amigo de seu filho mais novo. Um jovem bonito de óculos escuros e camisa azul se aproxima de mim. Ele sorri. — Imaginei que a encontraria aqui — diz ele, amistosamente. Ele olha para o jogo e eu percebo que é o Dr. Vagelos. — Você costuma comparecer aos eventos esportivos de seus pacientes? — pergunto. — Só quando são muito bons — diz ele. O outro time pega a bola, marca um gol. Alex chuta um torrão de grama, e o treinador lhe diz alguma coisa. Ele olha em minha direção, e seu rosto se ilumina. Ele balança a cabeça entusiasmado. “Legal”, praticamente consigo ouvi-lo dizer, e então percebo que ele está olhando para o homem ao meu lado.


— Ele o convidou? — pergunto. — Caso contrário, eu não estaria aqui. Eu o observo em silêncio por vários minutos, até que ele olha para seu relógio. Nancy o encara, desvia os olhos quando olho para ela. Eu me pergunto se ela sabe quem ele é. — Tenho que ir — diz ele. — Vou dizer a ele como estava bem quando o vir amanhã. Temos uma sessão amanhã às seis e meia. Você poderia ir? — Eu? Ele faz um gesto afirmativo com a cabeça. Os óculos são muito escuros, um tipo de disfarce, e não consigo ver seus olhos. — Alex e eu concordamos que seria bom para nós ter uma sessão juntos, nós três. Acho que há algumas coisas sobre as quais ele precisa falar e para isso quer sua presença. — Ele olha para mim e se aproxima. — Sei que é inesperado. Talvez até inoportuno, talvez. Mas realmente creio que será útil. Não precisa ser amanhã se você estiver ocupada. Podemos esperar uma ou duas semanas. — Não estarei ocupada. Nunca estou ocupada. — Ótimo — diz ele e aperta minha mão, depois acena para Alex, que acena de volta. — Vejo você hoje às seis e meia — digo a Alex quando ele sai para a escola de manhã, e ele concorda. O consultório parece o mesmo. A fotografia do Dr. Vagelos e seu irmão está no mesmo lugar na estante. Eu chego primeiro. As duas cadeiras que ficavam viradas para a mesa agora se voltam uma para a outra. Eu sentome em uma delas. — Ele joga futebol muito bem, não é? — diz o médico, e quase imediatamente há um zumbido, e percebo que é assim que ele sabe quando há alguém na sala de espera. Ele abre a porta para Alex. Meu filho cheira como se não tivesse tomado banho depois do treino. Talvez não haja tempo bastante e o Dr. Vagelos tenha se sentado ali semana após semana


envolvido pelo cheiro maduro de adolescente. — Estava acabando de dizer que você joga futebol muito bem — repete ele, e Alex ruboriza. — Ontem foi um dia bom — diz ele. O jornal o tornará jogador da semana outra vez em breve. Meu coração bate forte quando imagino Max trazendo aquele recorte até aqui. Tento senti-lo na sala, depois tento deixá-lo de lado para que possa me concentrar em Alex. Já estou perdendo terreno. O médico está dizendo que Alex tem algumas coisas que quer me dizer e, em meu devaneio, perdi metade do que ele falou. Eu te amo, eu te amo, penso comigo mesma, para me forçar a prestar atenção. Alex e eu estamos com os joelhos encostados. Ele parece cansado. A pele sob seus olhos tem uma aparência machucada. Ele dá a impressão de passar horas no quarto fazendo o dever de casa. — Por que não fala? — diz o Dr. Vagelos. — É minha culpa — despeja Alex. E o que diz tem o ar de uma frase que já foi dita muitas vezes, ensaiada na frente do espelho, escrita diversas vezes à mão: é minha culpa é minha culpa é minha culpa. — O que quer dizer, querido? — O que aconteceu. É minha culpa. Eu sabia que Kiernan estava morando na garagem. Eu tinha saído uma noite e voltei andando para casa e contornei para a parte de trás da garagem para... para mijar, essa é a verdade. E ele estava lá atrás no vão da porta... sabe, aquela porta que ia para os fundos, que nós nunca usávamos? Eu faço que sim com a cabeça. Ele precisa de um instante para recuperar o fôlego. Olho para o médico, mas ele não demonstra expressão alguma. Ele deve ter ouvido tudo isso antes. — Eu falei, cara, qual é? E ele disse que tinha ido ver Max e levar uns livros para ele ou alguma coisa assim, mas eu sabia que não era verdade porque era um dia de semana, e Ruby estava em casa, e eu podia vê-la em


seu quarto, sabe? E eu disse, uau, está mesmo muito tarde, ou alguma coisa idiota, e ele falou que estava indo para casa, mas aí, quando entrei na cozinha, olhei pela janela e o vi entrando na garagem. E eu disse a Max, cara, o Kiernan está ficando na garagem? E ele só disse: fique frio. Então eu não disse nada. — Então Max também sabia? Alex faz que sim. — E se nós tivéssemos contado a você, você o teria feito ir embora, e então, sabe, sei lá, tudo, tudo... — As mãos dele estão erguidas, em concha, da forma que ficam quando ele está esperando que alguém lhe jogue a bola de basquete. Ele perdeu o fôlego oura vez. — Ah, querido — digo suavemente. — Provavelmente não teria feito a menor diferença. Ele poderia ter ido até nossa casa de onde quer que estivesse morando. Não foi culpa sua. Não foi culpa de ninguém. — Você acha mesmo isso? Eu faço que sim. Quero que ele se sinta melhor. Quero que ele não sinta nada. — Isso é balela, mãe! — grita ele. — Foi culpa do Kiernan. Foi culpa dele. Como ele pôde fazer isso conosco? Ele ficava em nossa casa, ele jantava conosco. Todos nós éramos legais com ele. Como ele fez isso? — Não sei. Não sei. Não posso imaginar. — Sabe, isso também é ruim. Eu fico imaginando que o que aconteceu foi muito ruim, horrível, como um filme de terror. E foi porque eu não estava lá. Eu estava esquiando e estava assistindo a algum filme idiota com o Colin. Sabe quando as pessoas dizem que gêmeos sabem quando o outro gêmeo está com problemas? Eu estava assistindo a algum filme idiota na TV com o Colin bem na hora. Ou, pelo menos, acho que era a hora. Tentei calcular a diferença de horário, e tenho quase certeza de que era a mesma hora. — Você estava viajando, querido.


— Isso torna tudo pior. Não vi nada, então talvez eu torne o que aconteceu pior que foi. — Eu sei. — Mas você estava lá. Então pelo menos você sabe. — Eu não estava lá, Alex. Eu estava dormindo. — Volto-me para o Dr. Vagelos, e ele encontra meu olhar em cheio, e o seu está tão repleto de entendimento e de tristeza que não consigo sustentá-lo, e também não consigo olhar para Alex. — Voltei a dormir depois que seu pai desceu. Não ouvi nada. — Não? — diz Alex. — Não. Não vi nada. Não vi mais que você. Eu não sabia o que tinha acontecido até acordar no hospital. Então me contaram. Mesmo assim, era como se estivesse acontecendo com outra pessoa. — É por isso que você nunca chora? — O quê? — Você nunca chora — diz Alex, e sua voz é brutal. Nenhum de meus filhos jamais usara esse tom comigo antes. — Nunca vi você chorar — diz ele. — Nem uma vez. Pareceu que você ia chorar no acampamento, e eu não entendi por quê. Mas você não chorou. — Sua voz é dura. É uma acusação. — Eu não queria abalar você — digo, e quando vejo o rosto dele, percebo que disse exatamente a coisa errada. Ele urra para mim: — Como você pode dizer isso? Como eu poderia não estar abalado? Abalado... que palavra idiota. Abalado? — Ele bate com o punho no peito com força, com tanta força que me pergunto se vai ficar um hematoma ali. — Sabe como eu me sinto? — Não quero que você se sinta assim — sussurro. — Você não pode controlar a forma como me sinto. Não posso controlar o quanto me sinto terrível. Eu assinto com a cabeça.


— Eu entendo — digo. — Por que você nem sequer chora? É o que eu quero saber. Você age como se nada tivesse acontecido. Vamos comprar uma casa nova e mobília nova e então agiremos como se estivesse tudo bem. Você pensa neles em algum momento? Você sequer sente a falta deles? Você diz seus nomes? Devo parecer uma pessoa louca, respirando pela boca, tremendo. E de repente eu desmorono e começo a chorar, a cabeça baixa sobre os joelhos. Sinto Alex se afastar, puxar as pernas para trás, retrair-se. Ofego em busca de ar, levanto a cabeça depois a abaixo outra vez, com medo de desmaiar. Não consigo parar, e choro por muito tempo, talvez tempo bastante para compensar todas as vezes que me recusei a deixá-lo ver minhas lágrimas, quando entrava no carro e dirigia, ou trancava a porta de meu quarto para poder chorar sem que Alex visse. Após alguns minutos, estico em silêncio a mão e sinto um lenço pressionado nela. Finalmente, estremeço, assoo o nariz e levanto a cabeça. — Alex, você se sentiu como queria? — diz suavemente o Dr. Vagelos. Ambos olhamos para Alex. Ele está horrorizado. Lágrimas correm silenciosamente pelo seu rosto. Ele as afasta com a palma da mão. — Acho que o que aconteceu — diz o Dr. Vagelos — é que você tem tentado ser forte pelo bem de Alex. E Alex tem tentado ser forte pelo seu bem. E, por causa disso, ambos subestimaram a força de seu sofrimento. E não sofreram juntos. — Não falamos sobre nada disso — digo. — Pensei em esperar a hora certa e o lugar certo. Mas, na verdade, eles não existiam. — E Alex precisa falar sobre muitas dessas coisas. — Eu falo com Max — diz Alex de repente, como se fosse outra frase que ele vem ensaiando. — Coloco as cobertas sobre a cabeça para que você não me ouça, e falo com ele à noite. — Ah, querido — digo, começando a chorar novamente, tentando me conter, pressionando a mão com força sobre a boca. — Eu também. Falo


com eles a toda hora. — Assim, eu não falo sobre nada importante. Fico, tipo, cara, sabe aquela garota de quem você gostava? Ela ficou muito gata depois do verão. Ou tipo, cara, você tinha que ter visto a lição que eu dei naquele garoto da minha aula de matemática que acha que é tipo um gênio da matemática. Ou, tipo, às vezes, cara, estou tão encrencado com a mamãe; passei de todos os limites outro dia. — Apenas assuntos corriqueiros. — Apenas assuntos corriqueiros. Às vezes, eu fico, tipo, putz, isso é loucura, eu estou totalmente louco. Mas eu contei pra Elizabeth, e ela disse que achava que era totalmente normal e que é isso que ela faria. — É totalmente normal — digo. — Eu realmente faço isso o tempo todo. — Mesmo? Eu assinto. — Max responde? — pergunta Alex. — Todos respondem — digo. — Todos eles falam comigo. — Isso é legal — diz Alex com tristeza, e me pergunto se é porque Max não responde a ele, ou Ruby, ou o pai. O médico sorri levemente. — Alex, eu lhe disse que gostaria de falar um pouco a sós com sua mãe. Você poderia esperar lá fora? E devemos fazer isso de novo? Eu assinto. Alex assente. Ele esfrega o rosto. — Posso ir andando para a casa de Elizabeth? — pergunta-me ele, e escreve o endereço em meu antebraço, e seus dedos são fortes e quentes, e sem pensar tomo sua mão na minha, dou um beijo na palma e fecho seus dedos. Quero dizer que ele salvou minha vida, que ele me deu uma razão para sobreviver, mas sei que isso é um peso grande demais para um menino. Então, em vez disso, digo: — Amo você do fundo do meu coração. Ele se inclina e beija o topo de minha cabeça.


— Eu também te amo — diz ele. Quando ele sai, choro por mais alguns minutos. Posso sentir o Dr. Vagelos esperando. Ele deve fazer muito isso, apenas esperar. — Eu estava errada sobre tudo — finalmente digo. — Ele pensou que eu não me importava. — Não, não acho que seja verdade. Ele sabe quanto você o ama, e quanto amava o pai, o irmão e a irmã. Mas ele precisava de permissão para que seus sentimentos evoluíssem. Ele precisa ser capaz de sentir raiva e tristeza. Sua mãe lhe disse que ele tinha que ser forte e cuidar de você. O avô lhe disse que ele era o homem da casa. Foi um grande peso. Ele não dorme porque teme que alguém invada a casa e ele precisa garantir que nada lhe aconteça. — Ah, meu Deus. Meu sogro fica insistindo que eu instale um sistema de segurança. — Não acho que um sistema de segurança vá ajudar. Estamos tentando transpor o medo e a tendência de se culpar. Mas ele precisa poder expressar sua dor de forma mais aberta e emotiva. Precisa dividi-la com você e precisa que você divida a sua com ele. Não toda, é claro, mas um pouco. — Ele nunca foi um garoto especialmente emotivo. — E você se sentia confortável com isso? — Achei que sim. Tornava as coisas mais fáceis. — Mais fáceis para quem? Balanço a cabeça. Sou uma estranha para mim mesma. — Você tem filhos? — pergunto. — Explique por que isso é importante. — Às vezes nós... às vezes você... existem crianças que precisam de mais. Ou não tanto, mas diferente. Desculpe, não estou sendo clara. — Existem crianças para quem os pais dão mais. — Eu não colocaria dessa forma.


Ele sorri. Mais uma vez, há algo ao mesmo tempo triste e compreensivo em seu rosto, ou talvez seja apenas minha imaginação. — Deixe-me reformular a frase — diz ele. — Às vezes, as crianças podem receber mais atenção porque parecem ter mais necessidade de atenção. E há outras crianças que parecem tão confiantes e autossuficientes que parecem precisar de menos. Eu concordo. — Está falando por experiência pessoal? — E então me lembro de seu irmão, e balanço a cabeça. — Desculpe-me. Eu estava falando em termos de seus próprios filhos. — Tudo bem. Todo o objetivo disto é que você pode dizer aqui coisas que não poderia em qualquer outro lugar. — Meus filhos costumavam falar sobre quem era o favorito. — E o que concluíam? — Que era minha filha. Ruby. Que era Ruby. — Eles estavam certos? — Que diferença isso faz? — Não sei. Você trouxe isso à tona. — Eu achei que Alex estava se saindo bem. — Alex está se saindo bem, nestas circunstâncias. Mas você não podia mesmo acreditar que ele não teria problemas significativos, considerando o que aconteceu. — Não. Só queria acreditar. Queria que alguém saísse vivo disso. Queria que alguém saísse ileso. Creio que foi uma ilusão. Ele não poderia estar ileso. Em alguns dias parece zangado. Em outros, praticamente não fala. Chegou bêbado no outro dia. — Tudo isso me parece normal para alguém de 15 anos. — Acha que ele está deprimido? Acha que vai começar a usar drogas e beber o tempo todo e tentar chamar atenção? Meu Deus, detesto essa expressão. A analista de Ruby costumava usá-la o tempo todo. Desculpe...


você detesta o termo “analista”? Ele sorri, e penso que ele parece jovem demais para já ter filhos. Pergunto-me se ele toma conta do irmão, se seus pais são mais velhos, talvez até estejam mortos. Sentamo-nos com as pessoas, e lhes contamos coisas, e imaginamos a vida delas, e na verdade não sabemos nada sobre elas. — Sou agnóstico em relação ao termo analista. Acho que “chamar atenção” é uma frase de efeito sem muito valor, e não sei o que vai acontecer com Alex em um ano, ou dois, ou vinte. Nem você sabe. Mas eu sei, e você também, que isso estará com ele para sempre. — Sim — digo. — É tudo o que sei. Gostaria de saber o que vai acontecer em seguida. — Alguma vez conseguimos saber? Levanto os olhos repentinamente. — Não. Mas eu achava que sabia. Era sobre isso que eu estava mais enganada. Eu me preocupava com eles o tempo todo, no útero, quando eram bebês, crianças. Tomadas, piscinas, picadas de abelha. Eu me preocupava com tudo. Mas sabe o que sei agora? Eu não acreditava de verdade na preocupação. Era um hobby, ou um jogo mental, como palavras cruzadas. Nunca pensei que nada tão ruim aconteceria. Eram as coisas boas que pareciam reais para mim: em que faculdade estudariam, onde morariam, como meus netos me chamariam. — O que você decidiu? — Sobre o quê? — Como seus netos irão chamá-la. — Por quê? — Porque ainda é importante. Fecho os olhos e penso, não me importo, não me importo... vovó, vovozinha, vó. Imagino tentar abraçar um menininho se contorcendo, imagino-o se livrando do abraço e dizendo: “Pare, vó.” E diante desse


pensamento sinto uma punhalada de alguma coisa dentro de mim, alguma coisa viva, como o que senti quando estava grávida. E sempre me sentia tão vazia naqueles primeiros meses insones depois do parto, as mãos pressionadas contra minha barriga mole, como se ter algo vivo sob a pele fosse meu estado natural. — Sabe o que eu acho? — exclamo. — Acho que todos os medos que já tivemos, trovões, aranhas ou montanhas-russas, são todos o medo de morrer. Até o último medo. O Dr. Vagelos volta-se para sua mesa, pega um cartão e me entrega. Olho para o nome de mulher impresso. — Ela é boa — diz ele. — Faz muito aconselhamento de luto. Esse pode ser seu próximo passo. Você disse que queria que alguém saísse disso vivo. Não vai ser o bastante se for apenas Alex. Coloco o cartão no bolso e balanço a cabeça. — Não sei se posso viver assim. Acha que é possível, viver assim? — Nunca tive um paciente em sua situação, então creio que a resposta mais honesta é que eu não sei. — Mas qual é a sua opinião? — Acho que você não tem escolha. Você tem um filho. Você o ama profundamente. Ele precisa de uma vida. Não apenas disso, ele precisa de uma vida boa, uma vida plena. — Como isso é possível? — Qual é a alternativa? — E eu? — pergunto. — O que quer dizer? — Nem sei. — É um começo — diz ele.


É sábado. Alex e Elizabeth estão na cozinha fazendo cookies de aveia. Allison estava aqui, mas teve de ir para casa ver a irmã que está chegando da faculdade para o feriado de Ação de Graças. Alex tem de ir para o treino de futebol em três horas. Eu vou levá-lo e deixar Elizabeth em casa. Ela mora em uma dessas estreitas casas de tábuas na cidade, com um retângulo de jardim na frente e outro atrás. Na primeira vez que fui até lá para buscar Alex, na noite em que nós dois nos encontramos com o Dr. Vagelos, a mãe dela escancarou a porta e vi que ela era uma das enfermeiras que tinha cuidado de mim no hospital. — Ouvimos falar muito de você — disse ela. Ela e Elizabeth passarão o Dia de Ação de Graças aqui. Elas não têm mais ninguém. O pai de Elizabeth mora em Phoenix. Ela não tem irmãos. Acho que vão gostar de passar o Dia de Ação de Graças em nossa casa. O pai de Glen, seus irmãos e suas famílias estão vindo. Todos ficarão na casa de hóspedes de Olivia, sacos de dormir por todo o chão. Alice e Liam também estão vindo, com Nate, minha mãe e Stan. Eles vão ficar aqui, no andar de cima. Serão vinte pessoas. Rickie e John trouxeram alguns cavaletes. Haverá dez na mesa da sala de jantar e dez em uma velha porta colocada sobre os cavaletes, uma toalha de mesa disfarçando o arranjo. Vai ser apertado, mas conseguiremos. Às vezes, Alex e eu ficamos distraídos pela expectativa e pelo planejamento para todos os convidados, e às vezes ficamos distraídos pelas eliminatórias do futebol, e às vezes não estamos absolutamente


distraídos. Às vezes, ambos nos esforçamos para falar de coisas que não queremos discutir: Kiernan, o que aconteceu na casa na noite de Ano-Novo, como Alex sente falta do pai, da irmã, do irmão, e como eu também sinto a falta deles. Ontem caminhamos pelo bosque e conversamos sobre Max e sobre como ele estava no ano passado. — Eu não deveria ter sido, tipo, tão indiferente a tudo o que ele estava passando — disse Alex tristemente. — Eu fui muito duro. Deveria ter sido mais legal, conversado mais com ele sobre como estava mal, sabe? — Era difícil na situação em que seu irmão estava no ano passado — eu disse. — Seu pai também teve muita dificuldade para lidar com isso. — Eu acho que ele teria melhorado. — Seu pai ou Max? — Os dois, não é? Você não acha que o Dr. Vagelos teria ajudado Max? Max me contou que ele era muito legal. Foi por isso que fui vê-lo. No começo, só queria dizer aquilo, e depois eu queria ter certeza de que Max estava mesmo melhorando. Mas por fim decidi que eu mesmo queria falar com ele. Não achei que demoraria tanto... sabe, tipo, que eu teria que conversar com ele tantas vezes. Tipo, talvez por anos. — Você se sente melhor depois do Dr. Vagelos? — Deus abençoe aquele homem, se há alguma coisa que ele me ensinou foi fazer perguntas. — Muitas vezes, sim. Ou, pelo menos, sinto como se entendesse as coisas. Como se eu não entendesse as coisas antes e agora eu entenda. — É assim que me sinto com ele. — Mas você sempre entendeu. Nós sempre pensamos, tipo, não é assustador como a mamãe sabe o que estávamos pensando enquanto estamos pensando? Ou antes de pensarmos? — Eu só fingia — eu disse. — Não, mentira. Muitas vezes eu sabia mesmo. Eu me esforçava muito. — Eu sei — disse Alex, então, e eu chorei um pouco, e enxuguei meus olhos, e fiz uma careta.


— Agora todas as vezes que eu choro, imagino que você acha que é por causa do que me falou — eu disse a ele. — Às vezes eu acho, mas tudo bem. Coloco outro pedaço de madeira no fogo. Na cozinha, ouço Elizabeth dizer: — Precisamos de três ovos. — Ouço-a murmurar outra coisa suavemente e então escuto Alex rir. A lareira na sala de estar é uma maravilha. Aquece tanto o térreo que às vezes temos que entreabrir as janelas. E aí ela aquece até uma pequena área da varanda. Puxo minha velha cadeira de balanço, me enrolo na manta do sofá e escuto a madeira estalar. O gato senta em meu colo e fica amassando a manta com as patas. O gato saiu do bosque logo depois da festa de Halloween, quando todos tinham ido embora pelo caminho e estávamos limpando as sujeiras bolo do chão. Alex insistira para que fizéssemos a festa, mesmo que fosse uma versão muito menor e mais modesta. “Em memória de Max”, dissera ele. Alex e Elizabeth estavam catando os doces da piñata do quintal quando viram o gato se aproximando como um convidado atrasado, seus olhos amarelos estreitos e desconfiados. Decidiram chamá-lo de Jack-o’-Lantern, abreviado para Jack. Tivemos medo de que alguém aparecesse para pegá-lo de volta, mas desde então ele é nosso. Ele sibila para Ginger quando ela se aproxima demais, mas quando ela está dormindo, ele se acomoda por perto, as patas enfiadas sob o corpo, de modo que ele fica retangular, um tijolo preto e branco de pelo e tendões. Rickie e John apareceram e usaram um cortador de troncos em algumas das árvores derrubadas por tempestades, então ainda temos muita lenha. Eles amontoaram um pouco na lateral da casa, uma parede de madeira, olmo, choupo e muito carvalho. Colocaram o resto no celeiro. Fui até lá e olhei as caixas. Perto da frente está uma que diz “Filmes Caseiros”. Eu me pergunto quando poderei abri-la, se um dia conseguirei assistir aos três passando pela saleta, acariciando a cadela, sorrindo para mim, mesmo que


seja apenas em uma tela de TV. Em algum lugar estão as urnas com as cinzas. Suspeito de que minha mãe as colocou bem atrás, para que eu não as encontre por muito tempo. Um carro estaciona na entrada, e Sarah e Rachel saem. Abro a porta da frente e elas correm para mim, uma de cada lado, me abraçando forte, tão forte que eu sinto que poderia cair, a não ser porque elas duas estão me segurando, levantando-me como se eu fosse uma criança. — Eu adorei a casa! — diz Rachel. Lá dentro, Sarah estica as mãos para o fogo, e Rachel me entrega dois potes de condimento de cranberries feito em casa que tinham comprado no mercado do produtor. Ela ainda está magra e, de alguma forma, diferente, menos insegura, subordinada. Acho que Ruby ficaria feliz em vê-la assim. Talvez com apenas as duas no círculo encantado, haja mais espaço para Rachel. — Você está ótima — digo. — Estou adorando a faculdade — responde ela. Rachel descobriu a história da arte; Sarah está repentinamente interessada em economia. Sarah não está certa de que nadar vale a pena (“Sempre acordamos às seis horas da manhã e sempre acabamos andando com outros nadadores”), e Rachel diz que sua colega de quarto tem problemas, embora não seja mais específica. Sarah está usando calça jeans e uma bata, e seu cabelo agora está abaixo dos ombros. Ela está vestida menos como Sarah e mais como Ruby. — Como está o Eric? — pergunto. E ela diz: — Acho que está bem. Parece que eu estava enganada em relação a todas aquelas suposições de um dia fiz sobre o futuro de Sarah gravado em pedra. Mas estava enganada em relação à maior parte do futuro, quando sonhava com ele há tanto tempo, há um ano.


— Onde está Alex? — pergunta Sarah, e então as duas correm para a cozinha, e há gritos pontuados pelo rumor da voz de Alex. “Meu ouvidos estão doendo”, ouço Max dizer, como fizera tantas vezes antes diante dos gritos altos e penetrantes das meninas. — Meus ouvidos estão doendo — diz Alex com um sorriso, e eu vou até a cozinha. — Problema seu. São minhas amigas. — É o que Ruby sempre dizia. Eu digo agora, e as duas olham para mim e piscam com força. Depois se recuperam e enfiam os dedos na massa, e Alex dá um tapa na mão de Sarah com a colher de pau enquanto Elizabeth fica de lado e sorri timidamente. — Nós sentimos tanto — diz Rachel a ela maliciosamente, e os olhos de Elizabeth se arregalam, enquanto fala: — Por quê? — Porque você está presa a esse chato! — E ela e Sarah repetem a palavra algumas vezes e fazem um C maiúsculo com o dedão e o indicador e tentam colocá-los na testa de Alex. — Vocês duas são, tipo, totalmente duvidosas — diz ele. Todos nos sentamos na sala de estar, e Rachel esfrega o braço da cadeira, e sei que ela está se lembrando dela da saleta da outra casa. Ambas vieram da escola, onde os nadadores interromperam o treino para fazer um estardalhaço em torno de Sarah. — Menos aquela vagabunda da Amanda — diz Rachel. — Ãhn... moças, cuidado com o vocabulário, por favor — digo. — Mal posso esperar para ir para a faculdade para poder falar palavrões o dia inteiro — diz Alex, e estremeço na casa aquecida, pensando nela vazia. Logo estão todos famintos, e voltamos para a cozinha e fazemos queijos quentes. As meninas manuseiam as pulseiras da amizade inconscientemente e dizem a Elizabeth quanto ela vai gostar da faculdade. Elas se aglomeram à minha volta no fogão enquanto pressiono o pão com a


espátula. Alex quer bacon em seu sanduíche, Sarah e Elizabeth, tomates. Rachel e eu (e Ruby) gostamos dos nossos simples, apenas queijo e pão. Todos querem picles doces. Sarah levanta os olhos para mim enquanto abre o vidro, sorrindo, e então seu rosto muda em um instante para uma expressão de tamanho sofrimento que eu quase começo a chorar. Ela voltase para a pia, escondendo seu eu secreto. Sei que sempre haverá fantasmas com essas garotas. Comprarei presentes de formatura para elas, irei a seus casamentos, mandarei presentes para os bebês e talvez até almoce na casa delas. E sempre haverá não o fantasma da Ruby que existiu, mas o fantasma da Ruby que poderia ter existido. Não conheço essa pessoa, e mesmo assim sinto sua falta. Sinto falta do Max que poderia ter existido. Sinto falta do Glen que existia. — Vou jantar aqui no Dia de Ação de Graças — diz Elizabeth suavemente. — O mundo inteiro vai comer aqui — diz Alex. — Eu não — fala Rachel. — Você está convidada — digo rapidamente. — Assim como sua mãe. — Não, tudo bem, nós temos planos. Mas aposto que vocês têm planos melhores. E comida melhor também. — Parece que Sandy está saindo com o instrutor do campo de golfe. Sei que eles servem jantar de Ação de Graças (“Afinal, quem janta em um clube de golfe no Dia de Ação de Graças?” Glen sempre dizia), e me pergunto se elas vão comer lá. Vamos passar o Natal aqui também. Alex disse que devíamos decorar o abeto concolor, embora eu tenha dito que precisaríamos de um caminhão com cesto aéreo e centenas de luzes. No dia seguinte ao Natal, sairemos da cidade por uma semana. Na noite em que saíamos da sessão com o Dr. Vagelos, ambos sem saber o que dizer no carro, ambos com medo de falar demais, ou de afundar outra vez no silêncio, eu repentinamente disparara: — Se você pudesse viajar para qualquer lugar, para onde gostaria de ir? — Com você?


Eu fiz que sim. Os olhos dele estavam brilhantes, realçados no escuro pelas luzes do painel. Ele de repente parecia um desconhecido. Mal posso ver mais o jovem Alex nele. Há um traço do jovem Glen em sua mandíbula e nos olhos. Ou, ao menos, é o que digo a mim mesma. — Eu quero muito ir a Cooperstown, para o Hall da Fama do Beisebol, mas não acho que você gostaria muito, então, talvez não com você. Eu esperei. Podia ouvi-lo respirar. — Nova York — dissera ele finalmente. — Nova York? — É. Bom, há muitos outros lugares para onde eu queria ir, como a África, talvez, algum dia. Ou a China. A China seria legal. Mas Nate falou que há uma exposição inteira de armaduras que não vimos. E Ellis Island. Eu disse a ele que estava pensando que talvez gostasse de ser um historiador, e ele me disse que eu tinha de ir a Ellis Island. — Você quer ser historiador? Nunca imaginei. — Eu não acrescentei: “E nem seu professor de história, a julgar pelo seu último boletim.” Mas como se tivesse ouvido meus pensamentos, Alex disse: — O Sr. Betts é um péssimo professor. Tipo, a ideia dele de história é “Decore um milhão de datas e então vou passar uma prova.” Uma vez eu falei, tipo, Sr. Betts, sabia que milhões de pessoas morreram na Europa em 1920 quando pegaram a gripe? E ele: Sim, Alex, eu sabia, mas isso é história europeia, e o programa deste ano é história americana. Como se você pudesse separar as duas. — Eu não sabia disso, sobre a gripe. — Foi muito feio. Eu vi um programa sobre isso no History Channel. — Com seu pai. — É. Iremos juntos a Ellis Island, embora Alice insista que vamos congelar na viagem de volta na barca. Iremos ao museu, embora pode ser que eu deixe Alex olhando as armaduras sozinho enquanto observo as pinturas


impressionistas. Na noite de Ano-Novo, à meia-noite, há uma corrida de 6,5 quilômetros pelo Central Park, e Nate e Alex estão inscritos para participar juntos. Aparentemente, há fogos de artifício, matracas, champanhe, fantasias e uma alegre multidão. “Feliz Ano-Novo”, direi a estranhos. Em algum lugar ao longo do percurso, observarei quando meu filho passar correndo em uma noite prateada, as luzes das ruas mantendo a escuridão afastada. Algum dia Alex dirá: “Lembra daquela corrida à meia-noite no Central Park?” E vou fazer que sim, e talvez até sorrir. Alex se levanta às pressas da mesa, com medo de se atrasar para o treino. Rachel e Sarah estão indo para a cidade de qualquer maneira; elas vão levá-lo. Ele sobe correndo para pegar o equipamento. — Meu pai disse que ele jogará pelo estado como calouro do ensino médio — comenta Sarah. — Ele é um ótimo jogador de futebol — diz Elizabeth, que volta à varanda telada para pegar o casaco. — Alguma de vocês duas viu a mãe de Kiernan? — pergunto. — Minha mãe a viu há algumas semanas, entregando um bolo — diz Rachel. — Disse que ela está totalmente louca. Contou que ela vai se mudar para algum lugar. Talvez a Califórnia? Ou o Canadá? Mas muito, muito louca. — Não fale assim, querida — digo, enquanto coloco os braços em torno dela. Sarah me abraça também. — Minha mãe sente muito a sua falta — sussurra ela. Uma voz mordaz fala: “Ela sabe onde eu moro.” Vou ignorar essa voz. Em vez disso, digo: — Diga que eu sinto a falta dela também. Diga que sinto muito a falta dela. Por que vocês duas não aparecem na sexta para comer sanduíches de peru? Minha amiga Alice estará aqui com o filhinho e o namorado. — Ele é bonito? — pergunta Rachel.


— O menininho ou o namorado? — Você sempre me pega com esse tipo de coisa. — Os dois são muito bonitos — comento. — Vou me atrasar! — grita Alex enquanto desce a escada correndo. — O treinador vai me matar! Eu ouço o barulho dentro do carro enquanto eles saem, o que torna o silêncio que se segue ainda mais profundo. Vou para o quintal e me sento em uma velha cadeira de madeira que achei nos fundos do celeiro. Há apenas uma, o que é estranho. Acho que a outra deve ter se quebrado. Essas coisas sempre vêm em pares. O gato me seguiu para fora, e agora está sentado no limite do bosque, a ponta de seu rabo agitando-se no ar. Ginger corre em direção a ele. Por um instante, com as quatro patas levantadas sobre a desbotada grama de outono, ela é uma cadela jovem outra vez. Preciso começar a fazer os acompanhamentos para o jantar de quinta-feira. Posso fazer as batatas doces e as cebolas com creme. Meu sogro gosta delas. Minha mãe fará alguns pãezinhos na casa de Olivia e os trará pela manhã, embora ela não cozinhe muito bem. Olivia, Ted e os meninos virão depois do próprio jantar, com tortas para a sobremesa. Ela disse que virão juntos pelo bosque. “Não duvido que você nos ouça antes de nos ver”, disse ela. Minha mãe acha que ir a Nova York é um erro. — Você não pode fugir das coisas para sempre — disse ela. — Não é para sempre — respondi. Eu queria acrescentar: “Nada é para sempre”. Mas sei que minha mãe sabe disso. Na primeira gaveta de minha escrivaninha está o cartão que o Dr. Vagelos me deu, o cartão da conselheira de luto. Talvez eu ligue para ela em janeiro. Não planejo mais muito à frente. No celeiro, uma caixa está marcada como “Enfeites de Natal”. Por alguma razão, não consigo parar de pensar neles. Visualizo todos em minha mente: o anjo de porcelana coroado com azevinho que ganhei no chá de


bebê de Ruby. As bengalas doces de massa que os gêmeos fizeram no primeiro ano. O minúsculo cachorro amarelo de papel machê que Ruby trouxera de uma excursão da turma a Nova York. O dinossauro de cerâmica de Max. A bola de futebol de vidro de Alex. Eu poderia comprar enfeites novos, imaculados, sem história ou lembranças. Mas que tipo de árvore de Natal seria essa? Seria como aquelas árvores com cores coordenadas que eu critiquei por todos esses anos, aquelas que eu era contratada para montar e decorar. Não quero uma árvore dessas. Mas estou com medo de abrir aquela caixa. “Não tenha medo, mãe”, ouço Max dizer. Mas é um Max diferente, um Max mais sábio, um Max que sabe agora que a maioria de nossos medos são mesquinhos e pequenos, e que apenas nosso amor é monumental. “Sou eu”, ouço Ruby dizer, do jeito que fazia quando chegava em casa da escola. “Eu quem?” Glen responderia se estivesse em casa. Ele será jovem para sempre, meu Maxie, sempre desgrenhado, sempre com os pés chatos e os membros longos. E Ruby também, com seus olhos incandescentes e suas mãos dançantes. E Glen não envelhecerá nem mais um dia, mas eu sim. Talvez algum dia eu seja uma mulher velha com um marido jovem, um marido jovem lutando para fechar suas calças, a boca contraída enquanto desce para por um fim àquela balbúrdia. Talvez um dia eu seja uma mulher velha com um filho adulto, dizendo a sua mulher: “Essa casa é grande demais para minha mãe. Gostaria que conseguíssemos fazê-la se mudar para um lugar menor.” E sua mulher (por favor, por favor, que ela seja boa, que ela seja como eu, que ela seja uma boa mãe), sua mulher dirá: “Ela tem muitas memórias naquela casa.” Ginger resfolega, vira-se de lado e suspira. E então, porque eu quero, porque não há ninguém para achar estranho, chamo seus nomes, um por um, no silêncio. O silêncio é tão grande quanto o céu, e conforme chamo cada um deles, parece que o nome é um pássaro, voando sobre as árvores para dentro da tarde que cai. As orelhas de Ginger se movem ao ouvir os


sons familiares. Talvez loucura seja apenas a palavra que usamos para sentimentos que não podem ser controlados. — Como está passando? — perguntou minha mãe outro dia, quando ligou para me contar os planos da viagem de Ação de Graças. — Estou tentando — respondi. — Isso é bom — disse ela. — É o máximo que se pode querer. Eu estou. Todos os dias, estou tentando. Estou tentando por Alex. Estou tentando por Ruby. Estou tentando por Max. Estou tentando por Glen. Isso é tudo o que sei fazer agora. Esta é minha vida. Estou tentando.

FIM


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