Aquele homem era insuportável Não era fácil viver com o insuportável Michael Donahue, ainda que fosse para cumprir os últimos desejos do seu tio. Contudo para a teimosa Pandora McVie foi ainda mais difícil não se apaixonar por ele. Algumas vezes, o último homem pelo qual pensamos apaixonar-nos é o que secretamente o nosso coração deseja…
Um
Cento e cinquenta milhões de dólares não era uma quantia que se desprezasse. Pelo menos, ninguém na vasta biblioteca da mansão do seu tio Jolley se atrevia a desdenhá-la. Excepto Pandora. Espirrou, consequência da sua constipação. Depois de assoar o nariz, sentou-se muito direita, desejando que a medicação que tomara fizesse, finalmente, efeito. E desejando, ainda mais, estar em qualquer outro sítio, menos ali. Encontrava-se rodeada de dezenas de livros que nunca lera e de centenas que nem sequer conhecia, embora tivesse passado muitas horas naquela biblioteca. O cheiro dos volumes encadernados em couro misturava-se com o cheiro a pó. Num canto da sala havia um tabuleiro de xadrez de mármore e marfim, onde perdera muitos jogos. O tio Jolley, com a sua falsa expressão inocente, sempre fora um batoteiro compulsivo. Pandora nunca encarara isso com calma. Talvez por isso se tivesse divertido tanto a ganhar-lhe, com artimanhas ou sem elas. Através das janelas em forma de arco entrava uma luz fraca, mortiça. Uma luz que correspondia perfeitamente ao seu estado de espírito, assim como também ao que estava prestes a acontecer. Sentiria falta do seu tio Jolley, com o seu redondo rosto de querubim, da sua voz melodiosa e do seu humor atrevido, malicioso. Do seu enorme retrato a óleo, na parede principal da biblioteca, parecia olhar para ela com o seu sorriso característico e enigmático. Na verdade, já sentia a falta dele. Nenhum outro membro da sua família a compreendera e aceitara tanto como ele. Triste e deprimida, Pandora continuou a ouvir o executor testamentário Edmund Fitzhugh, enquanto lia o prolixo preâmbulo do testamento do seu tio. Maximillian Jolley McVie nunca se caracterizara pela sua brevidade. Costumava dizer sempre que, quando há que fazer alguma coisa, há que fazê-la a sério, até às suas últimas consequências. Até na sua última vontade fora fiel àquele princípio. Sem se incomodar em disfarçar o seu desinteresse por aquelas formalidades, Pandora percorreu os presentes com o olhar. Ali estava o único filho ainda vivo de Jolley, o tio Carlson, e a sua esposa... Como se chamava...? Lona... Mona? Acaso importava? Estavam sentados muito direitos, atentos à leitura. Faziam-lhe lembrar corvos pousados em cima de uma linha de telefone, à espera que alguma presa caísse aos seus pés. A prima Ginger, tão doce e bonita como vã e frívola. Aquele mês tinha o cabelo pintado de loiro, à Jean Harlow. E o primo Biff, com o seu fato preto. Tinha um aspecto perfeitamente relaxado, como se estivesse a ver um jogo de
pólo, mas Pandora estava convencida de que não lhe estava a escapar uma única palavra. A sua esposa... Laurie?, tinha uma expressão discreta e recatada. Nunca pronunciava uma única palavra que se afastasse do que Biff dissera previamente. O tio Jolley costumava chamar-lhe «estúpida» e «entediante». Embora detestasse ser tão cínica, Pandora não tinha tido outro remédio a não ser dar-lhe razão. E ali estava o tio Morgan, gordo e satisfeito, a fumar um grande charuto, apesar da sua irmã, Patience, não parar de afastar o fumo, agitando um lenço branco diante do seu nariz. «Ou, mais precisamente, pelo nariz», corrigiu-se Pandora. Nada agradava mais ao seu tio que incomodar a sua irmã, que, incompreensivelmente, se desvelava por ele. Também estava presente o tio Hank, bem constituído e musculado, embora pouco mais do que a sua atlética esposa, Meg. A sua lua-de-mel fora dedicada a percorrer os Apalaches. O tio Jolley costumava interrogar-se se fariam alongamentos e exercícios de aquecimento antes de fazerem amor... Aquela recordação provocou-lhe uma gargalhada, que teve de conter levando o lenço ao nariz, exactamente antes de o seu primo Michael olhar para ela. Ou seria seu primo em segundo grau? De qualquer forma, não eram parentes consanguíneos. Nunca se tinham dado bem, embora soubesse que o tio Jolley gostara muito dele. Na opinião de Pandora, qualquer pessoa que ganhasse a vida a escrever guiões para séries estúpidas de televisão devia ser uma espécie de parasita. Sentiu uma fugaz sensação de prazer ao relembrar o momento exacto em que lho dissera na cara. Depois, como é óbvio, havia as mulheres. Quando um homem saía com cantoras e modelos, era evidente que não estava interessado em pessoas que o estimulassem intelectualmente. Assim o dissera a Michael durante a sua última visita à mansão do seu tio, conhecida por todos como Folley. O idoso quase morrera de tanto rir. Mas Jolley morrera. E sinceramente tinha de admitir que, de todos os presentes, Michael Donahue fora quem mais amara e quem mais se preocupara com o seu tio. À excepção da própria Pandora, como é claro. O que parecia ir contra a expressão que tinha naquele momento; desinteressada e, até mesmo, levemente arrogante. O tio Jolley gostava tanto dele que até quisera casá-los. Uma ideia que Pandora se apressara a tirar-lhe da cabeça. O seu aspecto físico agradava-lhe, não podia negá-lo. Era alto e magro, de cabelo escuro. Mas tinha um olhar tão frio e distante... Ainda assim, era uma pena que não combinassem um com o outro. Teria gostado de partilhar com alguém as lembranças do seu tio. Mas não fazia sentido pensar naquilo. Se se tivessem sentado juntos, por aquela altura já se teriam
destruído verbalmente um ao outro. E o velho Jolley, sorrindo-lhe do seu retrato, sabia disso perfeitamente. Com um suspiro, esforçou-se para prestar atenção ao que Fitzhugh estava a dizer. Estava a falar de um donativo para as baleias. Ou algo do género. Michael continuava a aguentar estoicamente a leitura enfadonha do testamento. Pensou com um suspiro que a razão de ele estar ali era o muito que gostara daquele velho louco. A última coisa que podia fazer pelo pobre Jolley era o que estava a fazer naquele momento: fechar-se numa sala com um grupo de abutres a ouvir aquela enxurrada interminável de termos jurídicos. Quando aquilo tudo acabasse, servir-se-ia de um bom copo de brandy e brindaria ao falecido a sós. Jolley costumava ter sempre guardada uma boa provisão de brandy. Quando Michael era um jovem rebelde e sonhador, incompreendido pelos seus pais, o tio Jolley ouvira-o e encorajara-o para continuar a sonhar. Invariavelmente, sempre que o vira desanimado o seu tio impulsionara-o a escrever. E Michael não o esquecera. Estava cheio de vontade de fumar. Só deixara de fumar há dois dias. Dois dias, quatro horas e trinta e cinco minutos. Sentia-se sufocado naquela sala, fechado com aquela gente. Para todos, o velho Jolley não passara de um louco e de uma chatice. Mas o seu património, avaliado em cento e cinquenta milhões de dólares, já era um assunto diferente. Duvidava que algum deles, alguma vez tivesse posto os pés naquele casarão velho, repleto de antiguidades valiosas. À excepção de Pandora, admitiu contrariado. Ela, sim, adorava Jolley. Naquele momento, parecia triste, abatida. Michael acreditava nunca a ter visto tão triste: furiosa sim, desdenhosa, irritante... mas nunca triste. Se não a conhecesse melhor, ter-se-ia sentado ao seu lado e teria oferecido o seu consolo, ter-lhe-ia dado a mão... Embora, o mais certo fosse ela torcer-lhe o pulso. Mesmo assim, os seus olhos surpreendentemente azuis estavam avermelhados, irritados. Quase tão vermelhos como o seu cabelo, pensou enquanto admirava os cabelos que caíam sobre os seus ombros. Estava tão pálida que conseguia distinguir as sardas que salpicavam o seu nariz. Sentada no meio dos seus familiares sombrios, destacava-se como um pássaro exótico rodeado de corvos. Usava um vestido azul brilhante. Michael aprovava a sua escolha, embora não lhe tivesse dirigido a palavra. Não precisava de vestir preto para chorar um ente querido. De forma quase sistemática, Pandora chateara-o com as suas opiniões acerca do seu trabalho e do seu estilo de vida. E sempre que tinham entrado em conflito, Michael não hesitara em criticá-la. Afinal de contas, era uma mulher brilhante e talentosa que se contentava em desenhar jóias extravagantes para boutiques extravagantes, em vez de aproveitar devidamente a sua formação.
Ela chamava-lhe materialista e ele acusava-a de ser idealista. Ela catalogava-o como machista e ele como pseudo-intelectual. O velho Jolley costumava divertirse muito com as suas discussões, rindo-se às gargalhadas. Mas agora que ele já não estava lá, pensou Michael, aqueles confrontos acabariam. Era estranho, mas aquele era outro dos motivos pelo qual sentiria falta do seu tio. A verdade era que nunca sentira nenhum laço familiar forte com ninguém, à excepção de Jolley. Michael não pensava frequentemente na sua família. O seu pai estava algures na Europa com a segunda mulher e a sua mãe integrara tranquilamente a sociedade de Palm Springs com o terceiro marido. Nunca percebera por que razão o seu filho decidira ganhar a vida em algo tão terrivelmente vulgar como a televisão. Mas Jolley percebera e dera-lhe valor. E, o que ainda era mais importante para Michael, apreciara o seu trabalho. Um sorriso apareceu nos seus lábios quando Fitzhugh leu o trecho do donativo à organização defensora das baleias. Aquilo era tão típico de Jolley! Um leve burburinho de irritação surgiu entre os presentes. Cento e cinquenta mil dólares acabavam de escapar por entre as suas garras. Michael observou o retrato enorme a óleo. «Teve sempre de ter a última palavra, velho louco!», pensou ele. «É pena que não esteja aqui neste momento para se rir deles...». – Ao meu filho, Carlson, ... O burburinho esmoreceu enquanto Fitzhugh aclarava a voz. Sem muito interesse, Pandora viu como os seus parentes voltavam a prestar atenção. Os empregados e as organizações de solidariedade já tinham levado a sua parte. Agora começava o grosso do bolo. O executor testamentário levantou o olhar antes de continuar: – ... cuja mediocridade sempre foi um mistério para mim, deixo-lhe a minha colecção de truques de magia, na esperança de que consiga desenvolver algum tipo de noção do ridículo. Pandora reparou divertida como o seu tio ficava vermelho como um tomate. – Ao meu neto, Bradley, e à sua esposa, a minha neta Lorraine, deixo-lhes os meus sinceros parabéns. Não precisam de mais nada, uma vez que já têm tudo. Daquela vez, Pandora teve de conter as lágrimas perante aquela referência aos seus pais. Naquela mesma tarde telefonara-lhes para Zanzibar. – Ao meu sobrinho Morgan, que ainda guarda o primeiro dólar que ganhou, deixo-lhe o último que ganhei, com moldura incluída. À minha sobrinha, Patience, deixo a minha casa de campo de Key West, sem muitas esperanças de que, alguma vez, chegue a ter a coragem de a usar. Morgan engasgou-se com uma baforada de fumo, enquanto Patience adoptava uma expressão de verdadeiro horror.
– Ao meu sobrinho neto, Biff, deixo-lhe a minha colecção de caixas de fósforos, na esperança de que, finalmente, algum dia chegue a incendiar o mundo. À minha linda sobrinha neta, Ginger, tão amiga de se ver ao espelho, deixo-lhe o espelho emoldurado em prata que pertenceu a Maria Antonieta. Ao meu sobrinho neto Hank deixo a soma de três mil quinhentos e vinte e oito dólares. Suficiente, acho eu, para uma provisão vitalícia de gérmen de trigo, muito bom para a saúde. O murmúrio que se levantou com a primeira herança foi aumentando, banhado de um sentimento de raiva e indignação: precisamente o que Jolley teria esperado. Foi nesse instante que Pandora cometeu o erro de olhar para Michael. Já não parecia tão frio e distante. A sua expressão era de admiração. Quando os seus olhares se encontraram, Pandora deixou escapar a gargalhada que estivera a conter, pelo que vários dos presentes olharam para ela com uma expressão sisuda e recriminatória. Carlson não conseguiu resistir e levantou-se de repente. – Senhor Fitzhugh, o testamento do meu pai não passa de uma brincadeira. É óbvio que não estava no seu perfeito juízo quando o redigiu, de modo que não tenho a menor dúvida de que será impugnado por um tribunal. – Senhor McVie – o executor testamentário aclarou novamente a voz. Por trás das janelas o céu estava a ficar cada vez mais nublado, mas ninguém parecia notar. – Compreendo perfeitamente os seus sentimentos. No entanto, o meu cliente encontrava-se num estado de absoluta lucidez quando me encarregou de recolher a sua última vontade. É perfeitamente legal. Como é óbvio, o senhor é livre de consultar o seu advogado. Entretanto, tenho de avançar com a leitura... – Isto é tudo uma estupidez! – resmungou Morgan, mordendo o seu charuto e olhando à sua volta. – Uma estupidez! – repetiu enquanto a sua irmã Patience lhe dava palmadinhas no braço, numa tentativa vã de o acalmar. – E então? O tio Jolley gostava destas coisas – rebentou Pandora. – Se tivesse querido deixar a sua fortuna à Sociedade para a Prevenção da Estupidez, teria estado no seu direito. – Isso é muito fácil de dizer, minha querida – interveio Biff, brincalhão. – Mas acalma-te, espera para veres o que te calhou a ti. É muito provável que aquele velho louco te tenha deixado um simples fio para enfiares as tuas pérolas. – Recordo-te que ainda não tens aqueles fósforos, amigo! – interveio Michael. Estava encostado à parede, num canto da sala, e todos os olhares se viraram para ele. – Lembra-te que brincar com o fogo é sempre perigoso. – Porque não o deixam acabar de ler o testamento, de uma vez por todas? – perguntou Ginger, bastante satisfeita com o que recebera como herança. Um espelho de Maria Antonieta devia valer uma fortuna.
– As duas últimas heranças estão ligadas – Fitzhugh avançou com a leitura antes que pudesse sofrer mais interrupções. – E são, certamente, um tanto... heterodoxas. – O documento todo é heterodoxo – resmungou Carlson. Várias cabeças assentiram em sinal de aprovação. Pandora lembrou-se por que razão sempre evitara as reuniões familiares: aborreciam-na extremamente. De propósito, levou uma mão à boca e conteve um bocejo. – Senhor Fitzhugh, podemos ouvir o resto do testamento, antes que a minha família continue a cair no ridículo? – O que vem a seguir são as palavras exactas que o senhor McVie utilizou – interrompeu-se por um momento, para criar expectativa ou para arranjar coragem. – A Pandora McVie e a Michael Donahue, os dois membros da minha família que mais alegrias me deram nestes últimos anos de vida, deixo o resto das minhas propriedades, todas as minhas contas bancárias, acções e títulos, todo o meu património mobiliário e imobiliário, com todo o meu carinho. Para que o partilhem em conjunto. Pandora não chegou a ouvir as diferentes objecções e protestos que se seguiram àquelas palavras. Surpreendida e irritada levantou-se da cadeira. – Não posso aceitar o dinheiro dele – com grande rapidez, colocou-se diante de Fitzhugh. O executor testamentário, que não esperara um ataque daquele lado, olhou estupefacto para ela. – Eu não saberia o que fazer com esta fortuna. Desorientava-me a vida. Deviam ter-me perguntado primeiro... – Menina McVie... Antes que o executor testamentário pudesse acrescentar alguma palavra, Pandora virou-se para Michael. – Podes ficar com tudo, se quiseres. Afinal de contas, tu saberias o que fazer com este dinheiro. Podias comprar um hotel em Nova Iorque, um apartamento em Los Angeles, um clube em Chicago e um avião para andares de um lado para o outro. É-me indiferente. Com um tom perfeitamente tranquilo e as mãos enfiadas nos bolsos, Michael replicou: – Agradeço a tua oferta, prima. Mas antes, que tal esperarmos até o senhor Fitzhugh acabar de ler o testamento? Ficou a olhar fixamente para ele. Depois, suspirou e pronunciou, já mais calma: – Eu não quero este dinheiro. – Já o deixaste muito claro – arqueou um sobrolho com aquela expressão cínica que tanto a irritava. – Sabes uma coisa? A tua família está fascinada com o
espectáculo que estás a dar. Tomando consciência da situação, recuperou rapidamente o controlo e virou-se para o executor testamentário. – Por favor, acabe de ler o testamento, senhor Fitzhugh. O executor testamentário demorou algum tempo a limpar os óculos com um grande lenço branco. Previra, quando Jolley redigira o testamento, que a sua família manifestaria uma reacção semelhante. Discutira com o seu cliente, tentara chamá-lo à razão, convencê-lo, indicar-lhe o absurdo das suas condições... Mas, por fim, fora obrigado a dar-se por vencido. – Deixo-lhes tudo isto – continuou, – o dinheiro, as acções, os títulos e os lucros dos meus negócios, que, por si só, já constituem um bom motivo de preocupação. E também a minha casa, o mais importante para mim, com todas as lembranças a ela associadas. Tudo isto irá para as mãos de Pandora e Michael porque só eles me compreenderam e amaram. Deixo-lhes tudo isto porque não existem outras pessoas no mundo a quem possa doar algo que tanto prezei. O que antes era meu, agora é de Pandora e de Michael porque sei que eles manterão viva a minha lembrança. Só lhes peço uma coisa em troca. – Agora é que vem a parte boa – murmurou Michael. – A partir de uma semana da leitura deste documento, Pandora e Michael mudar-se-ão para a minha residência de Catskills, conhecida como Folley de Jolley. Viverão juntos durante um período de seis meses e nenhum dos dois poderá passar mais de duas noites seguidas sob outro tecto. No final deste período, a propriedade passará na íntegra para as suas mãos, em partes iguais. Se algum deles quebrar esta condição, ou os seus termos durante o prazo fixado, o meu património será cedido por inteiro aos meus herdeiros e ao Instituto de Estudo de Plantas Carnívoras, também em partes iguais. Têm a minha bênção, crianças. Não decepcionem um defunto, por favor. Seguiu-se um longo e profundo silêncio de estupefacção. Aproveitando-se da situação, Fitzhugh começou a arrumar os seus papéis. – O raio do velho... – murmurou Michael. Pandora teria ficado ofendida ao ouvi-lo se não tivesse pensado exactamente o mesmo. Uma vez que a temperatura na sala parecia ter subido vários graus, Michael pegou-lhe no braço e tirou-a dali. Só parou quando chegou a uma das pequenas e acolhedoras salas da mansão. Acabava de fechar a porta quando ouviram o primeiro rebentar de vozes e gritos vindos da biblioteca. Tinham-se livrado por pouco. Pandora assoou mais uma vez o nariz e sentou-se no braço de uma poltrona. Estava exausta. – E então? O que vamos fazer agora?
Michael ia puxar de um cigarro. Até que se lembrou que deixara de fumar. – Tomar algumas decisões. Pandora lançou-lhe um olhar longo e penetrante. Michael limitou-se a enfrentar o olhar, sentado diante dela. – Eu estava a falar a sério. Eu não quero o dinheiro. Depois de deduzidos os impostos, ficarão cerca de cinquenta milhões de dólares para cada um. Cinquenta milhões! – repetiu, levantando os olhos para o céu. – É ridículo! – Jolley era da mesma opinião. – Claro! O meu tio só queria os milhões para brincar com eles na bolsa. Para ele, fazer ou perder dinheiro era apenas um jogo. Só que cada vez ganhava mais – incapaz de permanecer sentada, aproximou-se da janela. – Michael, ter tanto dinheiro iria sufocar-me. – Bom, o dinheiro não pesa tanto como tu achas... Com uma expressão desdenhosa, Pandora virou-se e sentou-se no parapeito. – Pois então fica com ele todo. Michael pegou num ovo de cristal azul, que estava numa mesa, e começou a brincar com ele, passando-o de uma mão para a outra. Era um objecto lindo, que deveria custar vários milhares de dólares. – Não é o que Jolley queria. Irritada, Pandora arrebatou-lhe bruscamente o ovo. – Ele queria que nos casássemos e vivêssemos felizes para sempre. Eu gostava de lhe agradar... – voltou a atirar-lhe o ovo – ... mas não sou uma mártir. Além disso, por acaso não estás noivo de uma bailarina famosa? – É curioso! Tendo em conta o quanto desprezas a televisão, nunca teria imaginado que te interessariam tanto os mexericos da sociedade. – Eu adoro os mexericos! – replicou com um tom tão exagerado que Michael desatou a rir-se. – Vamos fazer uma trégua, está bem? Eu não estou noivo de ninguém, mas o casamento não figura em nenhuma cláusula do testamento de Jolley, que eu saiba. A única coisa que temos de fazer é viver juntos durante seis meses sob o mesmo tecto. Enquanto o observava, sentiu desilusão. Talvez nunca se tivessem dado bem, mas sempre o respeitara. Embora apenas tivesse sido devido ao afecto que professara pelo tio Jolley. – Desejas os milhões até esse ponto? Irritado, Michael deu dois passos na direcção dela, antes de conseguir controlar-se. Pandora nem se alterou. – Pensa o que quiseres. Tu não queres o dinheiro, óptimo! Mas esquece isso por um minuto. Vais permitir que esta casa vá parar às mãos daqueles abutres?
Jolley amava esta casa e tudo o que contém. E eu sempre pensei que tu também. – E amo! – afirmou. Sabia que os outros a venderiam. Não havia uma única pessoa naquela biblioteca que não estivesse disposta a colocar a mansão no mercado e a fugir com o saque. Todas aquelas salas absurdamente sumptuosas, aquelas arcadas ridículas... De repente, percebeu tudo. – Até depois de morto, quer controlar as nossas vidas... – Surpreendida? – Michael arqueou um sobrolho. Rindo-se entredentes, Pandora desviou o olhar. – Na verdade, não. Passeava lentamente pela sala, enquanto o sol, entrando pelas vidraças multicolores, produzia reflexos nos seus cabelos avermelhados. Michael observava-a com uma expressão de admiração distante. No ecrã de cinema, ou na televisão, ficaria magnífica. Sempre pensara isso. A sua facilidade fotogénica, a sua postura, a sua... arrogância natural. A câmara realçaria ainda mais o seu corpo esbelto e o seu rosto de traços finos, para não falar da cor de fogo do seu cabelo. Mas, naquele momento, não estava interessado em nada daquilo, senão apenas no que se passava dentro da cabeça dela. Não lhe importava o dinheiro, mas não ia ficar de braços cruzados a ver como tudo o que tanto significara para Jolley, o que tanto lhe custara a construir, passava para as mãos daqueles abutres. E se tivesse de pressionar Pandora, fá-lo-ia. Talvez até gostasse. Milhões! Pandora ainda continuava escandalizada com a enormidade da quantia. Tinha a certeza de que tanto dinheiro só lhe traria problemas. Títulos, acções, juros, impostos, encargos. Preferia um estilo de vida muito mais simples. Até àquele momento nunca precisara de se preocupar com dinheiro e queria continuar assim. Acima ou abaixo de um certo nível de ganhos, só existiam preocupações, chatices. Decididamente, aquele dinheiro, ou pelo menos uma parte dele, poderia ajudá-la muito no plano profissional. Com uma segurança económica daquelas, poderia usufruir da liberdade artística que sempre desejara e continuar com o seu estilo de vida habitual sem ter de passar por dificuldades. As suas obras mais originais eram bem recebidas pela crítica, mas o que ganhava com elas não lhe chegava para viver. E, fora de Manhattan, eram consideradas demasiado vanguardistas, extravagantes até. Houvera vezes em que se lamentara precisamente por ter de recorrer a desenhos mais convencionais para conseguir manter-se. Pelo contrário, com cinquenta ou sessenta mil dólares como ajuda, poderia... Furiosa consigo própria, travou o curso daqueles pensamentos. Estava a pensar como Michael. E preferia morrer a pensar como ele. Ele delapidara e desperdiçara
o seu talento à primeira oportunidade que lhe aparecera, tal como estava disposto a aproveitar as actuais circunstâncias em seu próprio proveito. Pensou no seu tio. Como se de um jogo de xadrez se tratasse, tinha de examinar todas as suas opções, as possíveis jogadas. Nunca vivera com um homem. A sua independência era o que mais prezava no mundo. Não se tratava tanto de não querer partilhar as coisas. Era o espaço o que a incomodava dividir. E, se acedesse, aquela seria a primeira das concessões. Depois havia o facto de Michael ser atraente. O suficiente para a perturbar ou inquietar, se não fosse tão irritante. Irritante e fácil de irritar, recordou-se com um ar de satisfação. Sabia exactamente em que ponto tinha de tocar para o irritar. Sempre se orgulhara da sua habilidade para o manipular. Mas nem sempre era fácil. Michael era demasiado perspicaz, demasiado inteligente. Embora fosse exactamente isso que tornava as suas discussões tão interessantes. De qualquer forma, nunca tinham passado mais de uma semana juntos. Havia, no entanto, um factor muito claro e indiscutível. Amara o seu tio. Como poderia viver com a consciência tranquila se lhe negasse a sua última vontade? Ou, melhor dizendo, a sua última brincadeira... Seis meses. Parou e virou-se para olhar para Michael. Ele também estava a olhar para ela. Seis meses que iriam parecer eternos. Mas o tempo podia passar a voar se uma pessoa o aproveitasse bem... – Diz-me uma coisa, primo... Como vamos conseguir aguentar seis meses debaixo do mesmo tecto sem discutir? – Não vamos conseguir. Respondera sem a menor hesitação. Pandora desatou a rir-se. – Acho que, se não fosse assim, aborrecia-me. Posso cancelar os meus compromissos todos e mudar-me daqui a três dias. Quatro no máximo. – Está bem. Apenas naquele instante, Pandora se apercebeu da tensão com que estivera à espera da sua resposta. Não quis pensar no motivo. Também não lhe interessava muito. – Negócio fechado – Michael estendeu-lhe a mão. – Negócio fechado – aceitou, apertando-lha. A rijeza da sua palma, levemente calosa, surpreendeu-a. Esperara uma mão mais fina, mais suave. Afinal de contas, a única coisa que fazia era escrever à máquina. Talvez os próximos seis meses lhe reservassem alguma surpresa... – Vamos contar aos outros? – Vão querer matar-nos. – Eu sei – Pandora sorriu. – Tenta não te divertir demasiado. Quando saíram, vários dos seus parentes já estavam no corredor a fazer o que
melhor sabiam fazer: discutir. – De certeza que vais desperdiçar a tua parte em pesos e em sumo de cenoura – replicou Biff a Hank, desdenhoso. – Pelo menos, eu sei o que fazer com o dinheiro. – Pois! Vais perdê-lo com apostas nos cavalos, não é? – escarneceu Morgan, dando uma baforada no seu charuto. – Investe! – aconselhou-o, com o seu habitual laconismo. – Poupa impostos. – Isso! Porque não investes tu num curso de modéstia? – replicou Carlson, ajustando o nó da gravata. – Eu sou o único filho que restou ao velho. É minha responsabilidade demonstrar que não estava no seu perfeito juízo quando redigiu aquele testamento. – O tio Jolley estava mais cordato que todos vocês juntos – pronunciou Pandora, frustrada e enojada ao mesmo tempo. – E deixou-vos exactamente o que cada um de vocês merecia. Biff tirou uma elegante cigarreira de ouro do bolso enquanto observava a sua prima. – Parece que a nossa querida Pandora mudou de ideias acerca do dinheiro. Afinal de contas, trabalhaste para isso, não foi, querida? Michael colocou uma mão no ombro de Pandora, recomendando-lhe calma. Foi ele quem respondeu àquele insulto: – Gostavas de conservar o teu perfil, primo? E não me refiro ao profissional. – Estou a ver que escrever para a televisão te criou um certo gosto pela violência – Biff acendeu o seu cigarro, a sorrir. – A mim, pelo contrário, as lutas repugnam-me. – Parabéns! – a esposa de Hank felicitou-os naquele momento, apertando-lhes a mão. – Devias colocar um ginásio nesta casa. Fazer um pouco de exercício é sempre bom. Vamos, Hank! Em silêncio, Hank seguiu-a. Os seus braços desenvolvidos ameaçavam rebentar as mangas do fato. – Não passa de um monte de músculos – resmungou Carlson depois de o casal se ter afastado. – Vamos, Mona! – e começou a andar, precedendo a sua mulher e parando o tempo suficiente para fulminar Pandora e Michael com o olhar. – Em breve terão notícias minhas – acrescentou, ameaçador. – Boa sorte, tio Carlson! – despediu-se Pandora, exibindo o mais doce e falso dos seus sorrisos. – Vamos exigir uma autentificação do testamento – avisou-a Morgan com um resmungo, antes de sair com os outros. As mãos da sua irmã Patience tremiam de puro desespero. – Key West, pelo amor de Deus! Eu nunca desci a sul de Palm Beach. Oh,
Virgem Santíssima! – Oh, Michael! – exclamou Ginger, pestanejando e pondo-lhe uma mão no braço. – Quando achas que receberei esse espelho maravilhoso? Michael observou o seu lindo rosto em forma de coração. Por muito bela que fosse, era uma sorte Jolley não lhe ter pedido que passasse seis meses com a sua prima Ginger. – Tenho a certeza de que o senhor Fitzhugh to enviará o mais depressa possível. – Anda, Ginger, nós levamos-te ao aeroporto – Biff pegou-lhe no braço, antes de se virar para Pandora, esboçando um sorriso carregado de desdém. – Se não te conhecesse melhor, querida prima, ficaria preocupado. Não durarás nem seis dias com Michael. Ele tem um feitio simplesmente detestável. Vocês vão matar-se um ao outro antes da primeira semana acabar. – Vamos aguentar os seis meses nem que seja só para te chatear – avisou-o Michael, a sorrir. – Logo vemos quem ri por último! – muito direito, dirigiu-se para a porta. A sua esposa seguiu-o, calada que nem um rato. Não abrira a boca durante a tarde inteira. – Hei, Biff! – chamou Ginger, enquanto se afastavam. – O que vais fazer com aquelas caixas de fósforos todas? – Queimar os barcos dele, espero eu – murmurou Pandora, assim que ficaram sozinhos no corredor. – Bom, Michael. Embora nunca tenha demonstrado muito carinho pelos meus parentes... hoje tenho a sensação de que esse carinho é igual a zero. – Preocupa-te perdê-los? – A verdade é que até hoje nunca tinha tido nenhum problema em perder-te a ti – respondeu, encolhendo os ombros. – Porque será? – inquiriu, irónica. – Jolley costumava dizer que nós os dois somos muito parecidos. – A sério? – arqueou um sobrolho. – Não posso estar mais em desacordo. Tu e eu, Michael Donahue, não temos quase nada em comum. – Temos seis meses para confirmar isso – num impulso, aproximou-se dela e levantou-lhe o queixo com um dedo. Pandora não se afastou. Ainda não. Era uma sensação interessante estar tão perto dele sem soltar um resmungo. – E... sabes uma coisa? – acrescentou ele. – Não nos aborreceremos. Durante esse tempo todo poderemos chegar a experimentar muitas coisas, mas aborrecimento... nunca. Pandora pensou que talvez fosse uma sensação interessante, mas também perigosa. Era melhor ter em mente que Michael não a considerava atraente. E
que, para o seu próprio proveito, não hesitaria em manipulá-la. – E tu sabes outra coisa? Ainda não percebi bem as razões pelas quais te prestaste a este sacrifício. Eu estou a fazer isto tudo pelo tio Jolley. Posso montar o meu atelier de desenho nesta casa, sem grandes complicações. – E eu posso instalar aqui a minha secretária e começar a escrever com a mesma facilidade. – Chamas escrever a redigir aqueles guiões absurdos? – Tal como tu chamas arte àquelas quinquilharias – replicou, mostrando-se satisfeito por ela corar ligeiramente. – Não reconhecerias uma obra de arte nem que ta espetassem à frente do nariz. As minhas jóias expressam verdadeira emoção. Puro sentimento. – Pois! E a quanto se cota o desejo nestes dias? – Oh! Eu pensei que já estivesses familiarizado com o preço. A maior parte das mulheres com que sais vem com etiqueta. Michael não se incomodou em disfarçar o seu divertimento. – Eu pensei que estávamos a falar das tuas jóias. – A minha profissão é totalmente dignificante, já a tua... – Dão-me licença? Fitzhugh apareceu naquele instante à porta da biblioteca. Estava desesperado por se desfazer, de uma vez por todas, da família McVie e beber um copo calmamente. – Devo concluir que ambos decidiram aceitar as cláusulas do testamento? «Seis meses», pensou ela. Iria ser um longo, mas muito longo Inverno... – Pode começar a contar os dias a partir deste fim-de-semana – declarou Michael. – Estamos de acordo, prima? Pandora levantou o queixo. – Estamos de acordo.
Dois
Foi uma viagem agradável, de Manhattan até Catskills, a contornar o rio Hudson. Pandora sempre gostara. E, além disso, deu-lhe tempo para arejar as ideias e relaxar. O seu tio Jolley soubera que acabaria por aceitar as condições do seu testamento. Não pelo dinheiro, como é claro, mas pela casa, pelos laços que a ligavam a ela, pela sua necessidade de manter um vínculo com a família. E agora tinha de abandonar Manhattan durante seis meses. Sempre gostara de viver no centro da cidade, rodeada de agitação, de movimento. Poder observar outras pessoas e relacionar-se com quem quisesse e quando quisesse. Fora educada para isso: para desfrutar e tirar o melhor partido do seu ambiente, num clima de absoluta liberdade. Os seus pais eram ciganos. Para eles, a riqueza significara poder viajar em primeira classe em vez de em segunda. Se tivessem sido nómadas e tivessem viajado em carroças, como os antigos ciganos, teriam tido criados. Mas o espírito era o mesmo. Antes de fazer quinze anos, Pandora visitara mais de trinta estados. Comera sushi em Tóquio, deambulara pelas planícies da Cornualha, regateara nos mercados de Istambul. Uma sucessão de tutores viajara com eles. De facto, até ter entrado na universidade, não passara sequer dois anos de seguida numa sala de aula. Aquela infância exótica e errante deixara-lhe um gosto pela variedade em todos os aspectos da vida: as pessoas, a comida, as formas de viver. Mas, ao mesmo tempo, suscitara-lhe o desejo inquebrantável de um lar. E de um sentimento de pertença. Ao contrário dos seus pais, sempre ansiosos por ver o mundo, Pandora sentira falta de uma base. Onde era a sua casa? Num ano no México, no seguinte em Atenas. Os seus pais habituavam-se facilmente aos seus novos lares, mas ela queria criar raízes. E descobrira que teria de as encontrar sozinha. Por isso, escolhera Nova Iorque. E o tio Jolley. E agora, devido ao seu tio e a sua casa se terem transformado naquela base, concordara em passar seis meses com um homem que mal conseguia tolerar. E tudo isso para poder herdar uma fortuna que não queria, nem precisava. O destino, conforme descobrira há muito tempo atrás, costumava dar voltas misteriosas.
«A última brincadeira de Jolley McVie», pensou enquanto entrava na estrada íngreme que levava até à sua mansão. Mas uma coisa era o seu tio ter conseguido juntá-los... e outra coisa muito diferente era que se casassem. Mesmo assim, sentir-se-ia muito melhor se soubesse exactamente por que razão Michael se prestara àquele sacrifício. Fora por cobiça ou pelo afecto que sentira pelo idoso? Sabia que a sua famosa série Logan’s Run estava no quarto ano de emissão e que tinha outros projectos lucrativos. Mas o dinheiro representava, por si só, uma tentação. Afinal de contas, o seu tio Carlson tinha mais do que conseguia gastar, e mesmo assim estava disposto a impugnar o testamento. O que, na verdade, não a preocupava. O tio Jolley rodeara-se dos melhores executores testamentários e advogados para o redigir. Quando chegou à mansão, estava cansada de conduzir e ainda tinha sintomas de constipação. Embora na véspera tivesse enviado o equipamento do seu atelier, trazia três malas no carro. Decidida a levar as coisas com calma, saiu do carro e ficou simplesmente a admirar Folley de Jolley. Jolley mandara construir o edifício quando tinha quarenta anos, portanto já tinha cerca de cinquenta anos. Parecia estender-se em todas as direcções ao mesmo tempo, como se o seu tio não tivesse sido capaz de decidir onde queria começar o edifício e por onde o continuar. A verdade, no entanto, era que nunca quisera acabá-lo. Para Jolley, o projecto, o jogo, o quebra-cabeças sempre tinham sido mais importantes do que a realidade concreta e acabada. Sem as alas, teria parecido uma mansão sombria do século XIX. Com elas, era uma massa confusa de muros, torres e arcobotantes. Não apresentava qualquer simetria, embora Pandora sempre a tivesse achado tão maciça como se estivesse escavada na rocha. Algumas das janelas eram altas, outras largas, como se Jolley tivesse mudado de ideias enquanto as desenhava. A pedra provinha de uma das suas pedreiras e a madeira dos seus bosques. Quando decidira construí-la, fundara a sua própria empresa de construção. Agora, a Construções McVie era uma das cinco maiores empresas do país. De repente, pareceu-lhe estranho, e até absurdo, o facto de se tornar proprietária de metade das acções daquela empresa. Teria acções em petrolíferas, siderurgias, fábricas de motores espaciais... Em que raio de confusão se metera?, interrogou-se enquanto tirava uma mala do carro. Michael estava a observá-la por uma das janelas do primeiro andar. Pandora vestia um casaco comprido, largo, com patchwork de três cores diferentes: azul, amarelo e cor-de-rosa. Naquela manhã, não estava tão pálida e com olheiras, mas tinha um aspecto sombrio, resignado. Ainda melhor. Durante o funeral, sentira-se tentado a consolá-la. Apenas o impedira a convicção de que aquilo poderia ter sido um erro fatal... tratando-se de uma mulher como ela.
Conhecia-a desde que eram pequenos e sempre a considerara uma menina mimada e caprichosa. Embora ela tivesse estado quase sempre fora, de viagem com os seus pais, tinham-se visto vezes suficientes para desenvolverem uma antipatia mútua. Só a suportara até àquele momento devido ao carinho que demonstrara por Jolley. E, sendo assim, não tinha outro remédio senão admitir que era muitíssimo mais sincera e humana que qualquer um dos seus demais parentes. Houvera uma altura, um período muito breve, no final da sua adolescência, em que sentira uma certa... atracção por ela. Um capricho de adolescente simples e superficial, puramente físico. Pandora sempre tivera um rosto especial, singularmente atraente. Mas aquele capricho desaparecera sem grandes complicações. – Charles, as minhas coisas já chegaram? – inquiriu Pandora, descalçando as luvas e deixando-as em cima da grande mesa redonda do hall. Ao ver o mordomo idoso, que sempre servira o seu tio, alegrou-se de entrar novamente naquela casa. – Esta manhã, menina – respondeu, dispondo-se a levar-lhe a mala. – Não é preciso, eu levo-a. Onde as puseram? – Na casa do jardim, nesta ala, tal como a menina indicara. Pandora deu-lhe um beijo na face, coisa que sabia agradar-lhe imensamente. O seu rosto carrancudo corou levemente. – Obrigada, Charles. Ainda não lhe disse como fiquei feliz ao saber que Sweeney e você ficam cá. Esta casa não seria a mesma sem os seus serviços de chá. Ou sem os bolos de Sweeney. – Não estávamos a pensar em ir a lado nenhum, menina. O senhor teria gostado que ficássemos. Mas dera-lhes plena liberdade para partirem, pensou Pandora. Jolley deixaralhes a quantia de três mil dólares por cada ano de serviço. Uma herança que, dado o tempo que tinham trabalhado para ele, teria chegado e sobrado para se reformarem com uma boa pensão. – Charles, eu adorava beber uma chávena de chá – disse-lhe, consciente de que se não conseguisse distraí-lo insistiria em levar-lhe a mala. – Na sala, menina? – Perfeito! E se Sweeney tiver algum daqueles biscoitos... – Passou a manhã inteira a fazê-los – e retirou-se para a cozinha. Pandora imaginou aqueles biscoitos deliciosos cheios de açúcar. – Pergunto-me quanto conseguirá engordar uma pessoa em seis meses – murmurou para si. – Uma dieta de bolos de Sweeney não te vai calhar nada mal – pronunciou Michael atrás dela. Estava no cimo da escada. – Os homens preferem as mulheres
rechonchudas às magrinhas. – A minha vida não gira precisamente em torno dos homens – replicou, virando-se. – Eu seria a última pessoa a discutir isso contigo. Parecia estar no seu ambiente. Perfeitamente à vontade. E tão atraente como sempre. Dominando-a a partir daquele lugar elevado, encostou-se ao corrimão e ficou a olhar calmamente para ela, como se fosse o dono da situação. Mas Pandora não demoraria para pôr fim àquilo. O testamento do seu tio Jolley deixara-o muito claro. Herdariam a sua propriedade em partes iguais. – Dado que tu já estás instalado, podias ajudar-me com o resto das minhas malas. – É claro! – desceu as escadas e acompanhou-a até ao carro. – Arrancaste cedo? – Tão cedo que arranquei ontem à noite. Quando estavam à frente do porta-bagagem aberto, Pandora perguntou-lhe: – Estás assim tão desejoso de começar o jogo, Michael? Se não estivesse tão decidido a levar as coisas com calma, teria cedido àquela provocação. Em vez disso, ignorou-a. – Queria ter o meu escritório pronto ainda hoje. Tinha acabado no momento em que chegaste. – Trabalho, trabalho, trabalho – pronunciou ela com um suspiro. – Portanto, trabalhas como um escravo para produzir uma hora por semana daquela série estúpida de televisão? De repente, a calma já não lhe pareceu tão necessária. Quando ia pegar na sua mala, agarrou-a pelo pulso. Naquele instante, nem reparou como era fino, na suavidade da sua pele. Estava demasiado irritado para isso. – A quantidade de horas que dedico ao meu trabalho e o que produzo não te diz respeito. Pandora ficava surpreendida consigo própria pelo facto de gostar tanto de irritar Michael. Os seus outros parentes eram todos tão correctos, tão civilizados... Michael sempre fora um contraponto interessante. Sorriu-lhe, mas não fez qualquer tentativa para libertar o seu pulso. – Pareci-te interessada? Nada mais longe da verdade. Não me interessa nada do que fazes. E agora... Podemos beber o chá? Está um pouco de frio. – Tens razão – controlando-se, largou-a. A seguir, pegou numa mala e deixou a segunda para ela. – Enquanto bebermos o chá, vamos estabelecer algumas regras para o futuro. – A sério? – fechou o porta-bagagem. Sem acrescentar mais nada, pegou na mala e seguiu-o para casa.
O quarto onde costumava ficar encontrava-se no segundo andar daquela ala. Jolley deixara que ela própria o decorasse. Escolhera o branco com alguns toques de cor: as almofadas em vários tons de azul, uma grande paisagem ao entardecer, pintada a óleo, com uma moldura enorme e uma grande cratera de barro vermelho. Enquanto despia o casaco e o deixava sobre uma cadeira, notou com satisfação que a pequena lareira de mármore estava acesa. Michael olhou atentamente para ela. Usava uma camisola fina de caxemira que lhe ficava maravilhosamente bem. Aquilo fê-lo recordar a atracção caprichosa que sentira por ela há anos atrás, quando era um adolescente. Também não falaram enquanto desciam as escadas. Na sala, rodeado pelas antiguidades opulentas que Jolley coleccionara, Charles esperava para lhes servir o chá. – Oh, acendeste a lareira! Obrigada, Charles – e dirigiu-se para a lareira, esfregando as mãos. Precisava de se afastar de Michael, nem que fosse apenas por alguns segundos... porque, por um instante, no seu quarto, apercebera-se de algo estranho nos olhos de Michael. E suspeitava que ela sentira exactamente o mesmo. – Nós já nos servimos. Tenho a certeza de que nem eu, nem Michael vamos precisar de mais nada até à hora do jantar. O mordomo retirou-se. Pandora olhou à sua volta, admirando os cortinados pesados, os grandes sofás de brocado, as almofadas grandes e as urnas de bronze. – Sabes uma coisa? Esta sempre foi uma das minhas salas preferidas – aproximou-se da mesa e começou a servir as chávenas. – Eu só tinha doze anos quando fomos à Turquia, mas esta sala sempre me fez lembrar aquele país. Queres açúcar? – Não – pegou na chávena, serviu uma fatia generosa de bolo num prato e sentou-se. Ele preferia a pequena sala contígua, com aquele estilo rural inglês tão característico. – Regra número um – começou, sem preâmbulos. – Ambos ficaremos nesta ala para poupar trabalho a Charles e a Sweeney. Na idade deles já não estão para muitas andanças. Mas... – interrompeu-se, para enfatizar aquele ponto – ... cada um respeitará, sempre, a zona do outro. – Com certeza! – Pandora cruzou as pernas e beber um gole de chá. – E também, pensando em Charles e Sweeney, parece-me justo tomarmos as nossas refeições ao mesmo tempo. No entanto, por uma questão de sobrevivência, evitaremos os assuntos profissionais nas nossas conversas. Pandora sorriu-lhe enquanto mordiscava a sua fatia de bolo. – Oh, sim, claro! Assim poderemos dedicar-nos aos assuntos pessoais. – És uma maldita... – Hei, calma! Regra número dois: nada de insultos. E regra número três:
nenhum dos dois, por muito chateado ou inquieto que esteja, incomodará o outro durante as suas horas de trabalho. – Regra número quatro. Se um de nós... estiver com alguém, poupará esse espectáculo ao outro. Discrição acima de tudo. – Oh! – exclamou Pandora. – E eu que queria conhecer a tua bailarina... Regra número cinco. O primeiro andar será área neutra e vamos dividi-lo em partes iguais, enquanto não combinarmos outra coisa. Se ambos jogarmos limpo, vai correr tudo bem. – Eu não tenho nenhum problema em jogar limpo. Se bem te lembras, eras tu quem usava artimanhas. – Não sei de que estás a falar. – Na canasta. No póquer. – Isso é absurdo e não tens nenhuma prova – levantou-se para se servir de outra chávena de chá. – Além disso, as cartas são outro assunto – uma vez que já sentia o calor do chá e do fogo da lareira, sorriu-lhe. Como Michael bem se lembrava, o efeito daquele sorriso era simplesmente letal. – Ainda continuas ressentido por causa daqueles quinhentos dólares que te ganhei? – Não me terias ganhado se tivesses jogado limpo. – Claro que joguei limpo! – desafiou-o. – Se eu realmente te tivesse enganado e tu não te tivesses apercebido, neste momento não me estarias a acusar de ter usado artimanhas, entendes? – Tu sempre tiveste uma lógica muito retorcida. Levantou-se também, aproximando-se dela. Pandora não pôde deixar de admirar a sua maneira de andar. Não era exactamente um menear, porque não era absolutamente forçado, era como se não tivesse consciência daquilo. Mas parecialhe bem. – Se voltarmos a jogar – acrescentou, – ao que quer que seja, não conseguirás enganar-me outra vez. – Michael, conhecemo-nos há demasiado tempo para que consigas intimidarme. Ia acariciar-lhe uma face, mas agarrou-lhe no pulso pela segunda vez. E, numa fracção de segundo, Pandora voltou a sentir aquela sensação perigosa que a acometera vários minutos antes, no quarto. Já não tinham o tio Jolley como pára-choques nas suas discussões. Talvez ambos tivessem começado a aperceber-se disso. Fosse o que fosse, estava a afectá-los. Talvez nenhum deles quisesse reconhecê-lo, mas, ao mesmo tempo, eram demasiado teimosos para recuarem. – É possível que só agora estejamos a começar a conhecer-nos realmente... – murmurou Michael.
Pandora concordava. E não gostava nada. Michael não era um estúpido presunçoso como Biff, nem um corpulento inofensivo como Hank. Gotejava violência. Uma violência que, de vez em quando, aparecia nos seus olhos, ou se manifestava na sua maneira de se conter. Pandora sabia reconhecê-la porque era um reflexo da sua própria. Talvez fora por isso que sempre se sentira compelida a provocá-lo, só para ver como reagia. Ficaram imóveis por um momento, a tirarem as medidas um ao outro com o olhar. Pandora pensou que o mais prudente seria reconhecer o que tinha a seu favor e retirar-se. Mas, em vez disso, levantou o queixo. – Mais tarde continuamos esta conversa, Michael. Agora estou um pouco cansada da viagem. Se me dás licença... – Regra número seis – pronunciou ele, sem a largar. – Se um de nós se meter com o outro, pagará as consequências – largando-a bruscamente, virou-se de costas para ela. – Vemo-nos ao jantar, prima. Pandora acordou pouco depois de amanhecer, descansada e cheia de energia. O pequeno-almoço podia esperar, decidiu enquanto tomava banho e se vestia. A primeira coisa que queria fazer era instalar o seu equipamento e começar a trabalhar. A casa estava completamente silenciosa. Deduziu que Charles e Sweeney ainda dormiriam mais algumas horas. Foi à despensa e tirou um bolo. Pelo que recordava, Michael não costumava levantar-se antes do meio-dia. O jantar da noite anterior decorrera sem incidentes. Tinham-se comportado com extrema cortesia em atenção a Charles e a Sweeney, ou talvez estivessem demasiado cansados. De qualquer forma, tinham-se limitado a conversar sobre o tempo e a comida. Por volta das nove horas, cada um fora para o seu quarto. Pandora fora ler até os olhos se fecharam de sono e Michael fora trabalhar. Ou, pelo menos, fora isso que ele lhe dissera. Na rua estava frio, o suficiente para a deixar arrepiada. Subiu a gola do casaco e começou a andar pelo jardim. Gostava daquele silêncio, daquela solidão absoluta, do cheiro maravilhoso a montanha e a rio. Uma vez, no Tibete, estivera quase a morrer congelada porque não fora capaz de resistir ao chamamento dos cumes cobertos de neve. Considerava Catskills tão fascinante como aquelas paisagens. Sempre achara que o Inverno era a melhor estação do ano. O Inverno nas montanhas era uma estação que remetia ao básico, ao primitivo: comida, calor, trabalho. E havia vezes em que Pandora só aspirava ao básico. Havia vezes, em Nova Iorque, em que passava horas a discutir sobre política ou
direitos civis, porque a verdade era que... adorava discutir, criar polémica. Como se precisasse de um estímulo exterior para fortalecer as suas convicções. Outras vezes, no entanto, não desejava mais que um amanhecer calmo de Inverno e a promessa de uma bebida quente em frente à lareira. E também, embora apenas em certas e determinadas vezes, um ombro onde encostar a cabeça e uma mão à qual se agarrar. Fora educada para encarar a independência como um dever e não como uma escolha. A relação dos seus pais fora a mais equilibrada do mundo, de igual para igual. Pandora sempre os vira como uma raridade num mundo cheio de desigualdades. Tinha vinte anos quando decidira que o casamento não era para ela. A partir de então concentrara toda a sua paixão e energia no seu trabalho. Esta dedicação intensa dera os seus frutos. Era uma artista notável, que alcançara algum sucesso, e no plano criativo não podia sentir-se mais satisfeita. Abriu a porta do alpendre. Era um edifício grande e maciço, quadrado, tão amplo como um celeiro de dimensão média, com o chão de tábua corrida e as paredes forradas a madeira. Acendeu a luz. Seguindo as suas instruções, os caixotes que enviara tinham sido empilhados ao longo de uma parede. As prateleiras onde o seu tio costumava guardar os utensílios de jardinagem tinham sido esvaziadas. A canalização era boa, tinha uma pia grande em aço inoxidável e uma casa de banho pequena com duche. Conseguia contar até cinco bancadas para trabalhar. E a luminosidade e a ventilação eram excelentes. Pensou que não demoraria muito tempo a transformar aquele espaço num atelier eficiente. Demorou três horas. Numa das prateleiras colocou as suas caixas de contas de várias cores: ouro, ametista, coral, marfim. Havia bandejas de pedras preciosas e semipreciosas de todos os tamanhos. Tinha peças e lâminas de ouro, prata, bronze, cobre. E ferramentas: martelos, tenazes, pinças, brocas, verrumas, alicates, braçadeiras, limas. Noutra prateleira estavam os frascos de produtos químicos e metros infindáveis de fios, correntes e cordéis. Investira todo o dinheiro da herança da sua avó naqueles materiais, juntamente com todas as economias que fizera enquanto estagiária. Valera a pena. Podia forjar ouro e prata, preparar ligas e elaborar desenhos incrivelmente complexos. Podia trabalhar os metais até transformá-los em fios muito finos ou em grandes peças maciças. Pandora podia fazer tudo o que desejasse, com ferramentas que pouco tinham evoluído desde tempos imemoriais. Era essa sensação de continuidade e, ao mesmo tempo, de variedade inacabável, o que mais a fascinava. Nunca fazia duas peças iguais. Por vezes, as suas peças eram elegantes, de desenho clássico, vendiam-se bem e permitiam-lhe concentrar-se noutras coisas. Outras vezes, eram desenhos insólitos, nada
convencionais. Era o humor e o estado de espírito o que a guiava, não as modas. Muito raramente aceitara fazer peças por encomenda com um desenho predefinido. Uma vez, recusara a encomenda de um político importante porque considerara o desenho que este lhe apresentara demasiado vulgar. Noutra vez, criara um anel para outra pessoa, um jovem pai que desejava oferecer um presente bonito à sua esposa, porque se apaixonara pela sua ideia. Naquele momento, Pandora acabara o desenho de um colar de três voltas que lhe encomendara o marido de uma cantora conhecida. Esmeralda: aquele era o nome da cantora e o único requisito que o seu cliente exigira. Quisera muitas esmeraldas. E pagara bem pelas doze que Pandora escolhera antes de deixar Nova Iorque. Quadradas, de três quilates cada uma, e do verde mais belo que jamais vira. Tinha a certeza de que aquela iria ser a sua grande oportunidade, tanto no plano profissional como no artístico. Se o colar fosse um sucesso, poderia gozar de plena liberdade para se dedicar ao que quisesse, sem compromisso algum. A sua ideia consistia em fazer uma corrente de ouro em forma de teia de aranha, para que as pedras fossem engastadas nela simulando gotas de orvalho. Durante as duas horas seguintes, começou a trabalhar o ouro. Entre os dois aquecedores da casa e a chama dos seus maçaricos, começou a fazer um calor intenso na sala. Estava a suar, mas não lhe importava. Seria um desenho simples, mas extremamente elegante. O tempo foi passando sem que se apercebesse, até que, finalmente, conseguiu formar a primeira enfiada de ouro. Já tinha quase acabado quando, de repente, se abriu a porta do alpendre e entrou uma corrente de ar frio. – O que raios achas que estás a fazer? – virou-se para Michael, fulminando-o com o olhar. – A cumprir ordens – tinha as mãos nos bolsos do seu casaco, mas não o abotoara até acima. Nem se incomodara em barbear-se. – Isto parece um forno. – Estou a trabalhar – limpou a testa com a ponta do avental que tinha vestido. Tentou pensar que era a interrupção que a incomodava e não que a tivesse surpreendido vestida como se fosse um ferreiro. – Lembras-te da regra número três? – Foi o que eu disse a Sweeney – deixando a porta entreaberta, entrou na sala. – Diz que já é suficientemente mau teres perdido o pequeno-almoço. Aparentemente não está disposta a que percas também o almoço – com uma expressão de curiosidade, observou as pedras de uma das bandejas. – Ordenoume que te leve para lá. – Ainda não posso. Michael pegou numa safira e levantou-a para olhar para ela através da luz.
– Foi com muita dificuldade que consegui evitar que viesse ela própria. Se voltar sozinho, ela virá buscar-te. E tu sabes que, com a artrite dela, o frio não lhe faz nada bem... Pandora praguejou entredentes. – Larga isso! – ordenou-lhe e tirou o avental. – Algumas destas coisas parecem de verdade – comentou ele, enquanto largava a safira para se concentrar num diamante redondo. – Algumas destas coisas são de verdade – baixou-se para desligar um dos aquecedores. – E porque raios as tens em bandejas, como se fossem rebuçados? – inquiriu, franzindo o sobrolho. – Deviam estar num lugar seguro, num cofre. – Porquê? – Pandora diminuiu a intensidade do segundo aquecedor. – Alguém poderia roubá-las. – Alguém? – levantando-se, sorriu-lhe. – Por aqui não há muita gente. Com Charles e Sweeney não preciso de me preocupar. Mas talvez deva começar a desconfiar de ti. Soltando um resmungo, Michael voltou a colocar o diamante no seu sítio. – Faz o que quiseres, prima. Mas se eu tivesse vários milhares de dólares concentrados numas poucas pedras preciosas, teria muito cuidado. Embora em qualquer outra circunstância tivesse concordado com ele, Pandora limitou-se a pegar no seu casaco. Afinal de contas não estavam em Manhattan, mas no meio do nada. Se guardasse as suas peças num cofre, teria de as tirar cada vez que quisesse trabalhar. – Acho que essa é outra coisa que nos distingue, Michael. Talvez por isso te dediques a escrever sobre os instintos mais baixos do ser humano. – Também escrevo sobre a natureza humana – observou o desenho do colar em que estava a trabalhar. – Diz-me uma coisa... tu desenhas tantas jóias... porque é que nunca as usas? – Porque me incomodam quando estou a trabalhar. Eu tenho outra pergunta. Se tu escreves sobre a natureza humana... como é que todas as semanas apanham o mau da fita? – Porque escrevo para as pessoas, e as pessoas precisam de heróis. Pandora abriu a boca para argumentar, mas depois mudou de ideias. – Hum... – foi tudo o que disse, enquanto desligava as luzes e saía da casa. – Pelo menos, fecha a porta. – Não tenho chave. – Então vamos ter de arranjar uma. – Não precisamos. – Tu sim – replicou Michael, fechando a porta.
Pandora limitou-se a encolher os ombros, enquanto começava a andar pelo jardim. – Michael, sabias que estás mais resmungão do que o normal? – Deixei de fumar – explicou depois de tirar um rebuçado do bolso e colocá-lo na boca. – Já reparei. Há quanto tempo estás sem fumar? – Há algumas semanas – respondeu, sem parar. – E estou a enlouquecer. Pandora desatou a rir-se, compadecida, e deu-lhe o braço. – Hás-de sobreviver, querido. O primeiro mês é o mais difícil. – Como sabes? – franziu o sobrolho. – Tu nunca fumaste. – O primeiro mês é o mais difícil... para tudo. Só tens de conseguir manter a mente ocupada. Fazer exercício. Vamos correr depois do almoço. – Correr? Os dois? – Sim e jogamos canasta depois do jantar. – Estás a brincar! – Estás a ver? Já tens a mente ocupada – olhou para ele. Parecia um pouco áspero, mas aquela aspereza, nele, era sedutora. O aspecto excessivamente plácido e despreocupado das pessoas sempre lhe aborrecera. – Não te fará mal deixar um dos teus vícios, Michael. Tens tantos... – Eu gosto dos meus vícios... – resmungou. Viu que lhe lançava um sorriso radiante. Com aqueles sorrisos, conseguia sempre fazê-lo esquecer os inúmeros problemas que lhe causava... além de lhe relembrar o quanto o atraía aquela bela mulher, de vida boémia e cabelos de fogo. – Deduzo que uma mulher como tu também terá uns quantos... – Estou demasiado ocupada – pronunciou muito séria, mas com um brilho de malícia nos olhos. – Os vícios consomem demasiado tempo. – Segundo a lenda, quando Pandora abriu a famosa caixa, os vícios saíram à luz do dia. E espalharam-se pelo mundo. – Entre outros, muitos males e desgraças – parou à frente da porta das traseiras da mansão, que comunicava com a cozinha. – Acho que é por isso que penso tanto antes de abrir qualquer caixa. Michael estendeu uma mão para lhe tocar numa face com a ponta do dedo. Um gesto que sabia que poderia transformar-se facilmente num hábito. Pandora estava certa: já tinha a mente ocupada. – Pois, mais tarde ou mais cedo, terás de abrir a tampa. Pandora não se afastou, embora Michael tivesse a impressão de ter notado um leve estremecimento de tensão, de atracção, ou de desejo. – Há coisas que é melhor manter fechadas. – E há fechaduras que não são tão resistentes como deveriam ser.
Estavam muito perto. Pandora conseguia sentir o sol nas costas e a brisa fresca no rosto. Se desse um passo em frente... arderia. Era algo de que nunca tivera a menor dúvida e que, portanto, sempre evitara. Suspirando, agarrou na maçaneta da porta. – Não devemos deixar Sweeney à espera.
Três
As ruas estão quase desertas. Um carro dobra uma esquina e desaparece. Está a chuviscar. As luzes de néon reflectem-se nas poças. É uma zona da cidade particularmente cinzenta, lúgubre. Uma loira bonita, muito arranjada, caminha com rapidez. Está nervosa, como se estivesse fora do seu ambiente. Aperta, com força, um envelope contra o seu peito. Pára diante da porta de um clube. A luz azul de néon reflecte-se no seu rosto. Hesita. Passa o envelope de uma mão para a outra. Entra. De repente, ouvem-se três tiros e fica paralisada... *** Bateram três vezes à porta do escritório de Michael. Antes que pudesse responder, Pandora entrou. – Parabéns, querido! Michael levantou o olhar da sua máquina de escrever. Passara a maior parte da noite a trabalhar mentalmente aquele parágrafo. Eram nove da manhã e só bebera uma chávena de café. Não fumara um único cigarro. A cena que acabara de idealizar esfumou-se. – De que raios estás a falar? – colocou a mão numa tigela de amendoins. Já comera quase todos. – Duas semanas inteiras e nenhum osso partido – Pandora fez um barulho com a língua ao observar aquela desordem e sentou-se no braço de uma cadeira: era o único espaço sem papéis. – Lembras-te de que Biff previu que não aguentaríamos tanto? Tinha um aspecto fresco e relaxado, com os seus longos cabelos apanhados num coque, vestida com uma camisola e umas calças largas, confortáveis. Michael, pelo contrário, estava com muito mau aspecto. Tinha a camisola rasgada num ombro, mas continuava, pelo menos há dois anos, a vesti-la. Há várias semanas atrás, ajudara um amigo a pintar o apartamento e as suas calças de ganga ainda conservavam as manchas de tinta. E tinha os olhos inchados e vermelhos. – Tínhamos uma regra que nos obrigava a respeitar o espaço de trabalho do outro – recordou-lhe. – Oh, não sejas resmungão! Além disso, tu nunca me informaste do teu horário de trabalho. Pelo que consegui ver durante estas duas semanas, esta hora é
demasiado cedo para ti. – Estava, agora mesmo, a começar um episódio novo. – A sério? – aproximou-se por trás, inclinando-se sobre o seu ombro. – Meu Deus, não sabia que isto te levava tanto tempo! – Porque não voltas para os teus colares? – E agora és mal-educado comigo, quando vinha convidar-te para me acompanhares à cidade! – subiu as mangas da camisola e sentou-se num canto da secretária. Nem ela própria sabia muito bem porque estava a ser tão simpática com ele. Talvez fosse porque o colar de esmeraldas estava quase acabado, o qual, além disso, ultrapassara todas as suas expectativas. Ou porque, durante aquelas duas últimas semanas, chegara a apreciar a companhia de Michael. «Um pouco», corrigiu-se. Também não era preciso deitar foguetes... Michael semicerrou os olhos, olhando para ela com uma expressão desconfiada. – Para fazer o quê? – Queria fazer os recados a Sweeney. E pensei que talvez te apetecesse sair um bocado. Apetecia-lhe. Desde que chegara, não vira outra coisa a não ser aquela casa e os arredores. Voltou a olhar para a página que estava a escrever. – Quanto tempo pensas estar fora? – Duas ou três horas, não sei. Sabes que se leva uma hora a chegar. Sentiu-se tentado. Tempo livre e uma mudança de ares. Mas a página a meio continuava ali, desafiadora. – Não posso. Tenho de acabar isto. – Como queiras – Pandora levantou-se da secretária, um pouco surpreendida com a desilusão que sentia. Mas disse imediatamente a si própria que era uma estupidez. Adorava conduzir sozinha, com o rádio bem alto. – Não te canses muito. Michael começou a resmungar algo atrás de si. Depois, ao ver que tinha a tigela de frutos secos vazia, pediu-lhe: – Pandora, podias trazer-me um quilo de pistácios? Parou diante da porta, arqueando um sobrolho. – Pistácios? – Sim, pistácios – esfregou o queixo, louco para lhe pedir alguns maços de tabaco. Um cigarro... uma passa... Pandora olhou para a tigela vazia e esteve prestes a sorrir. – Sim, acho que posso. – E o New York Times, por favor. – Queres fazer uma lista? – perguntou-lhe, arqueando os sobrolhos.
– Podes ser um pouco amável? Da próxima vez que Sweeney precisar de alguma coisa, vou eu. Pandora reflectiu por um momento. – Está bem, parece-me justo. Os pistácios e o jornal. – E algumas canetas! – gritou Michael quando ela já estava de saída. Ela bateu a porta com força. Decorreram perto de duas horas até Michael decidir se merecia outra chávena de café. O argumento estava a sair tal como planeara. Os fãs de Logan’s Run vibrariam de prazer. Michael gostava de escrever para o pequeno ecrã. Gostava de saber que as suas histórias chegavam a milhões de pessoas todas as semanas e que, durante uma hora, conseguiam identificar-se com as personagens que ele criara. Logan era a sua personagem preferida. Adorava o seu heroísmo desobediente, para contrariar, o seu sentido de humor, os seus defeitos. Dotara o seu protagonista daquelas características porque achava que os verdadeiros heróis eram exactamente assim. Os índices de audiência e o correio electrónico que recebia confirmavam-lhe que acertara. O seu livro acerca de Logan conquistara o aplauso da crítica e ganhara vários prémios, simultaneamente com a peça de teatro de um só acto que escrevera. Mas a sua obra só chegara a alguns milhares de pessoas, a maior parte nova-iorquinos. Logan’s Run , por sua vez, via-se em vários estados do país. Todas as semanas. Desligou a máquina de escrever. Desde o início que soubera que se daria bem a trabalhar em Folley. Já o fizera antes, mas não durante tanto tempo seguido. O que não esperara era que chegaria a trabalhar tão bem, tão depressa ou com tanto gosto. E também não esperara chegar a dar-se tão bem com Pandora. Discutiam, naturalmente, mas, pelo menos, não se matavam um ao outro. E também não eram grandes discussões. Gostava muito de jogar às cartas com ela, embora fosse apenas devido à satisfação que lhe dava surpreendê-la ao utilizar artimanhas. O que também não podia negar era a estranha atracção que sentia por ela. Aquilo não fazia parte do argumento. Até ao momento, fora capaz de a ignorar, de a controlar ou de a reprimir. Mas havia vezes... Havia vezes, pensou enquanto se levantava da secretária, em que teria gostado de lhe fechar aquela boca deliciosa de uma forma muito mais agradável. Com um beijo. Só para saber o que sentia. Afinal de contas, a curiosidade pelas pessoas fazia parte do seu trabalho. Ela também não era imune. Tinha a certeza disso desde o primeiro dia, quando tinham saído juntos do atelier dela, em direcção à casa. Vira-o no seu rosto, ouvira-o na sua voz. Nunca sentira por outra mulher o que sentia por Pandora McVie. Sempre se sentira à vontade com as mulheres. Gostava de tudo nelas: da
sua feminilidade, da sua força característica, da sua resistência, das suas fraquezas, do seu estilo. Talvez fosse por isso que tinha tanto sucesso nas suas relações, por muito breves que fossem. Se começasse a cortejar uma mulher, era porque estava interessado nela, na sua pessoa, e não apenas no resultado final. A verdade era que estava interessado em Pandora, mas nunca lhe passara pela cabeça cortejá-la. Surpreendera-se, mais de uma vez, a pensar em seduzi-la. Porque cortejar uma mulher, como é claro, era algo completamente diferente de a seduzir. De qualquer forma, não tinha muita certeza de que uma tentativa semelhante valesse a pena com ela. Se numa noite, se lembrasse de a convidar para um jantar romântico, à luz das velas, ou para um passeio ao luar... ou para uma noite louca de paixão... ela responder-lhe-ia com um comentário sarcástico. Tinha a certeza disso. O que, indevidamente, dispararia uma resposta semelhante da sua parte. E começariam tudo outra vez, como sempre. De qualquer forma, não queria uma relação amorosa com Pandora. Era simples curiosidade. Na verdade, não eram assim tão diferentes. Ela podia insistir que não tinham nada em comum, mas o velho Jolley estava certo. Ambos tinham um temperamento impetuoso, eram entusiastas nas suas opiniões e muito zelosos das suas respectivas profissões. Ele fechava-se durante horas no seu escritório, com a sua máquina de escrever, e ela com as suas ferramentas, no seu atelier. Interrompeu as suas reflexões quando viu, pela janela, que a porta do atelier estava aberta. Era estranho que tivesse voltado tão cedo. A garagem ficava no outro extremo da casa, portanto poderia não ter ouvido o carro, mas supostamente teria tido de passar antes pelo seu escritório para lhe deixar a sua encomenda. Já se dispunha a virar-se, encolhendo os ombros, quando viu alguém sair da casa do jardim. Vestia chapéu e casaco, e seguramente não era Pandora. Aquela figura caminhava depressa e olhava de um lado para o outro, como se receasse ser descoberta. Sem hesitar, Michael saiu a correr do escritório e desceu as escadas. Esteve quase a ponto de chocar com Charles no hall. – Pandora já voltou? – Não, senhor. Disse-me que ia à cidade fazer algumas compras. Não há razão para se preocupar... Mas Michael já corria para a porta. Um vento frio açoitou-o ao sair. Não havia ninguém nos jardins. Não era de surpreender, pensou enquanto abrandava o passo. A primeira fila de árvores do bosque era muito densa e estava sulcada por múltiplos caminhos que se perdiam na densidade. Seria algum rapaz, a rondar? Fosse quem fosse, não seria de admirar se lhe tivesse roubado metade das pedras preciosas. Era bem feito! Mas mudou de ideias
assim que viu o estado do atelier. Havia caixas no chão com pedras, contas e rolos de fio espalhados por todo o lado. A ordem habitual daquela sala transformara-se no caos absoluto. O chão estava cheio de ferramentas pequenas enroladas em fios de prata e ouro. Inclinou-se para apanhar uma esmeralda. Era óbvio que fora um ladrão. – Oh, meu Deus...! – exclamou naquele instante Pandora, aparecendo, de repente, atrás de si. Quando Michael se virou, viu-a de pé na soleira, rígida e pálida. Praguejou entredentes, desejando ter tido algum tempo para a preparar. – Calma! – exclamou, pegando-lhe no braço. Mas ela afastou-o, entrando na sala. De início ficou muda, incrédula. Até que veio a fúria: – Como pudeste...? No momento em que se virou para ele, já não estava pálida, mas vermelha de raiva. Como estava desprevenido, ela esteve quase a acertar-lhe com o primeiro murro. Michael ouviu o assobio do ar quando o punho passou ao lado da sua cabeça. Apressou-se a segurar-lhe nos braços antes que tentasse novamente. – Hei, espera aí! Pandora não esperou. Atirando-se sobre ele, empurrou-o contra a parede. O pouco que restava nas prateleiras caiu no chão. Depois de vários segundos e alguns murros, Michael conseguiu imobilizar-lhe as mãos atrás das costas. – Pára! Tens o direito de estar zangada, mas a bater-me não vais conseguir nada. – Eu sabia que eras baixo e mesquinho – resmungou entredentes, – mas nunca imaginei que chegasses a fazer algo do género... – Podes acreditar no que quiseres – sentiu-a estremecer enquanto se esforçava por recuperar o controlo. – Pandora – disse-lhe com tom suave, – eu não sou o culpado disto. Olha para mim! – abanou-a pelos ombros. – Porque haveria de fazer isto? – Diz-me tu – fulminou-o com o olhar. A paciência não era um dos pontos fortes de Michael, mas tentou outra vez. – Pandora, ouve-me! Utiliza o teu bom-senso e ouve-me. Eu cheguei aqui vários minutos antes de ti. Da minha janela, vi alguém a sair daqui e desci para vir ver o que se passava. Quando cheguei, deparei-me com isto. Detestava chorar, mas estava prestes a fazê-lo. Era melhor odiá-lo a chorar. – Larga-me! Michael pensou que talvez conseguisse controlar melhor a sua fúria do que o seu desespero. Largou-a e recuou um passo. – Só se tinham passado alguns minutos desde que tinha visto alguém sair daqui
– explicou-lhe. – Nessa altura já devia ter entrado no bosque. Pandora tentou pensar, sobrepor-se à raiva que lhe toldava o cérebro. – Vai-te embora! – exclamou com um tom calmo forçado. – Tenho de arrumar isto tudo e ver o que me falta. Aquela rejeição magoou-o. Recordando a sua própria reacção quando ela entrara naquela mesma manhã no seu escritório, não teve outro remédio senão aguentar. – Se quiseres posso telefonar à polícia, apesar de ainda não sabermos se te roubaram alguma coisa – abriu a mão direita e mostrou-lhe a esmeralda que apanhara antes do chão. – Embora não perceba como é que um ladrão pode ter desprezado uma esmeralda como esta... Pandora arrebatou-lha bruscamente. O seu coração batia muito depressa quando se aproximou da sua mesa de trabalho. Aquilo era o que restava do colar em que estivera a trabalhar durante as duas últimas semanas. Os fios estavam partidos, as esmeraldas arrancadas. O intruso utilizara as suas próprias pinças para o destruir. Apanhando as peças partidas, esforçou-se para não gritar. – Era isto, não era? – Michael apanhou o desenho do chão. Era um esboço em papel, uma verdadeira maravilha. – Estavas quase a acabá-lo. – Deixa-me sozinha – e baixou-se para apanhar as pedras e as contas do chão. – Pandora – como o ignorou, agarrou-a pelos ombros e abanou-a suavemente. – Bolas, Pandora! Eu quero ajudar-te... Mas ela lançou-lhe um olhar carregado de frieza. – Já fizeste o suficiente, Michael. Agora, deixa-me em paz. – Está bem, como queiras – largou-a e saiu rapidamente da sala. Estava furioso, frustrado. A caminho de casa, parou e praguejou entredentes, ansiando por um cigarro. Ela não tinha o direito de o acusar. E, no entanto, a culpa que sentia era quase tão grande como se tivesse sido ele o autor da destruição no seu atelier. Com as mãos nos bolsos, virou-se para olhar para a casa do jardim e resmungou. Ela acreditara mesmo que fora ele a fazer-lhe aquilo. Que era capaz de um acto tão cruel, tão absurdo. Tentara falar com ela, acalmá-la... mas nada. Desprezara a sua ajuda. Merecia que a deixassem sozinha. Estava quase a voltar para a casa quando, quase contrariado, voltou para trás. Ao abrir novamente a porta do alpendre, o caos continuava como antes, mas Pandora estava sentada no chão, ao lado da sua mesa de trabalho, a soluçar em silêncio. A sua primeira reacção foi assustar-se com aquelas lágrimas e surpreender-se pelo facto de ela não as disfarçar. Sem pronunciar uma única palavra, aproximouse por trás e passou-lhe um braço pelas costas. Sentiu-a ficar tensa. Era normal, já
o esperara. – Disse-te para te ires embora. – Eu sei. Mas porque haveria de te dar ouvidos? – acariciou-lhe o cabelo. Sentiu vontade de se aninhar no seu colo e chorar durante horas. – Não quero que estejas aqui. – Eu sei. Finge que sou outra pessoa – encostou-a ao seu peito. – Só estou a chorar porque estou furiosa – explicou, enterrando a cara na sua camisa. – Claro! – beijou-lhe o cabelo. – Continua furiosa durante mais um bocado. Já estou habituado. Pandora tentou convencer-se de que se tratava de uma reacção normal, fruto da comoção e da dor, mas a verdade é que acalmou nos seus braços. Os soluços sucederam-se. Esteve assim durante vários minutos, até acabar de desabafar. Com o rosto já seco de lágrimas, continuou encostada a ele. Sentia-se segura, mas não queria analisar aquela sensação. Depois da fúria, veio a vergonha. Fora terrivelmente injusta com ele. Mas, mesmo assim, ele voltara para a consolar. Quem diria que ele fosse tão paciente, tão carinhoso? – Desculpa, Michael. – É indiferente. – Não, estou a falar a sério. Tens de me perdoar – quando levantou a cabeça, roçou-lhe na face com os lábios. Aquilo surpreendeu ambos. Aquele tipo de contacto era mais adequado entre amigos... ou entre amantes. – Quando entrei aqui, não conseguia pensar. Eu... – interrompeu-se por um instante, fascinada com os seus olhos. Como é que nunca reparara antes como eram bonitos? – Eu preciso de arrumar isto... – Sim – deslizou um dedo pela sua face. Era suave. Incrivelmente suave. Mais do que alguma vez imaginara. – Precisamos os dois. Pandora pensou em como encaixava bem no seu ombro. Como se fossem feitos um para o outro. – Não consigo pensar. – Não? – os lábios dela estavam apenas a alguns centímetros dos seus. – Pois, então, não vamos pensar os dois durante um momento. Quando a beijou, Pandora não fez qualquer tentativa para se afastar. Aceitou aquele beijo com a mesma curiosidade que instigava Michael. Não foi uma explosão de prazer, nem de espanto, mas um teste, uma comparação. Algo que esperavam há muito tempo, sabendo que aconteceria mais cedo ou mais tarde. Sabia deliciosamente bem. Quando deslizou a língua dentro da sua boca, esta foi ao seu encontro, brincalhona. Sentiu um nó no estômago. Ardente de desejo, enterrou os dedos no seu cabelo.
Pandora pensou que Michael era tão misterioso e, ao mesmo tempo, tão atrevido como sempre imaginara. As suas mãos eram firmes, a sua boca, decidida. Houvera vezes em que se interrogara sobre o que sentiria ao beijá-lo, mas sempre reprimira aqueles pensamentos, aquela tentação. Michael Donahue era um homem perigoso. Desde que eram crianças, sempre a atraíra e repelira ao mesmo tempo. Naquele preciso instante, enquanto o beijava, compreendia porquê. Ele era diferente. O toque áspero da sua barba não a desgostou tanto como esperara. Na verdade, excitava-a. De início, sentiu-se à vontade, segura, como se tivesse feito aquilo a vida inteira. Mas depois, quando Michael lhe mordiscou delicadamente o lábio, teve a sensação de estar a andar num terreno desconhecido, inexplorado. Por fim, afastaram-se ao mesmo tempo. – Bom – Pandora tentou recuperar a compostura, entrelaçando as mãos sobre o colo. «Age com naturalidade», ordenou a si própria, com o coração a bater acelerado. Não podia fazer nada que desse alento à sua brincadeira, à sua diversão. – Era de prever que isto ia acontecer. – Sim – olhou para ela atentamente, curioso e, ao mesmo tempo, levemente perturbado, inquieto. Quando viu que ela torcia nervosamente as mãos, sentiu uma pontada perversa de satisfação. – Embora não fosse exactamente o que estava à espera. – Na vida, nunca nada é o que se espera – «demasiadas surpresas para um só dia», decidiu enquanto se levantava, um pouco trémula. Mas cometeu o erro de olhar à sua volta e esteve quase a cair desmaiada no chão, novamente impressionada com o estado lamentável do seu atelier. – Pandora... – Não, não te preocupes – abanou a cabeça. – Não vou cair outra vez – concentrando-se em respirar com normalidade, acrescentou: – Parece que tinhas razão em relação à fechadura. Acho que devo agradecer-te por não mo teres mandado à cara. Michael apanhou as esmeraldas que estavam espalhadas em cima da mesa. – Não sou um perito, prima, mas eu diria que estas pedras valem uns quantos milhares de dólares. – É verdade. E por isso nenhum ladrão teria deixado de as levar – baixando-se, apanhou um punhado de pedras do chão, entre as quais havia alguns diamantes. – Ou a estas. – Eu aposto que, depois de as inventariares, não faltará nenhuma. Quem quer que tenha feito isto, não quis arriscar-se a ser acusado de mais nada, para além de invasão de propriedade privada e vandalismo. Irritada, Pandora sentou-se na mesa.
– Achas que foi alguém da minha família. – Disseram que não duraríamos muito – recordou-lhe, enfiando as mãos nos bolsos. – Nós também não acreditávamos que fôssemos capazes de aguentar seis meses juntos. Mas o facto é que estamos juntos há duas semanas sem nenhum contratempo. Talvez isso tenha posto alguém nervoso, pelo menos o suficiente para querer provocar-nos um problema. Porque... qual foi a tua primeira reacção quando viste isto? Pandora passou uma mão pelo cabelo. – Deitei as culpas para cima de ti. Exactamente o que havia de querer algum dos nossos parentes. Bolas, detesto ser tão previsível! – Gozaste com eles, lembras-te? – Biff! – aventurou ela. – Este tipo de jogadas mesquinhas é muito ao estilo dele. – Eu só votaria em Biff se faltassem algumas pedras – repôs Michael, pensativo. – Ele nunca seria capaz de resistir a uma tentação destas. – Pois é – pensou no seu tio Carlson. Não, aquele acto parecia demasiado violento para o seu estilo. E Ginger teria ficado demasiado fascinada com as pedras para fazer mais alguma coisa para além de admirá-las. – Bom, não me parece que vá ser muito difícil descobrir qual deles foi. De qualquer forma, conseguiram atrasar duas semanas o meu trabalho – baixou o olhar para o colar destruído. – E já nunca será como antes. – Às vezes é melhor assim. – Tenho de começar tudo outra vez. E tenho de começar a trabalhar já. Diz a Sweeney que hoje não vou almoçar. – Eu ajudo-te a arrumar isto. – Não, a sério, Michael. Obrigada, mas preciso de me manter ocupada. E de estar sozinha. Não gostava, mas compreendia perfeitamente. – Está bem. Vemo-nos à hora de jantar. – Michael... Parou na soleira, virando-se para olhar para ela. – Talvez o tio Jolley tivesse razão. – Sobre o quê? – inquiriu ele. – Talvez tenhas... uma ou duas qualidades muito positivas. – O tio Jolley tinha sempre razão – sorriu-lhe. – Por isso é que ainda continua a controlar a situação à distância. Pandora esperou que ele se fosse embora, fechando a porta atrás de si. Realmente!, pensou. O seu tio continuava a controlar a situação... do outro lado. – Mas aviso-te para não te armares em casamenteiro comigo – murmurou. –
Vou continuar livre, solteira e sem compromissos. Mete isso na cabeça de uma vez. Não era supersticiosa, mas por um instante acreditou ter ouvido a gargalhada sonora do seu tio, a escarnecer dela. Arregaçou as mangas e pôs mãos à obra.
Quatro
Depois de um inventário longo e maçador, Pandora descobriu que não faltava nada. Não fazia sentido telefonar à polícia. Se lhes telefonasse, os agentes revistariam a sala e dar-lhe-iam um sermão por ainda não ter instalado uma boa fechadura. Além disso, no caso de o intruso ter sido um membro da família, uma investigação oficial conferiria ao sucedido uma importância excessiva, assim como uma publicidade indesejável. Já imaginava os títulos dos jornais: «Família digladia-se pelo testamento de um excêntrico». Não podia consenti-lo. Se um dos membros da sua família estivesse a espiá-la, Pandora desejava que pensasse exactamente que não estava a dar qualquer importância ao sucedido. O que não era verdade, como é óbvio. Por uma questão de orgulho, não queria que esse alguém descobrisse o quanto aquilo a afectara. E por puro pragmatismo, também não queria que esse alguém soubesse que tinha os olhos bem abertos. Porque não desistiria enquanto não descobrisse quem era. Michael não insistira para que telefonasse à polícia, uma vez que se encontrava numa situação parecida com a sua. Até àquele momento, conseguira manter a sua carreira completamente afastada da sua vida privada e familiar. A nível profissional era conhecido como Michael Donahue, o prestigiado escritor e argumentista, e não como o parente de Jolley McVie, o multimilionário. E queria que continuasse a ser assim. Durante o jantar daquele dia, mantiveram a conversa afastada do assunto da destruição do atelier. E do que acontecera entre eles, quando Michael voltara e a surpreendera a chorar. Depois de dois copos de vinho e de um frango estufado excelente, Pandora sentia-se muito mais optimista. Teria sido muito pior se o intruso tivesse levado as pedras ou as ferramentas. Isso teria significado uma viagem a Manhattan e dias, talvez semanas, de atraso. O pior de tudo era que alguém tivesse estado a espiá-la. Porque tinham de o ter feito. Não havia outra forma de se explicar que a invasão tivesse coincidido exactamente com a sua viagem à cidade. – Pergunto-me se os Saunderson passarão o Inverno na casa deles... – comentou Pandora. – Os vizinhos do outro lado da lagoa? – Michael também se lembrara que o intruso poderia tê-los espiado a partir daquela casa. Havia certos pontos naquela
propriedade de onde, com uns binóculos, se conseguia facilmente controlar Folley. – Costumam passar muito tempo na Europa, não é? – Hum... – Pandora brincou com os restos no seu prato. – Ele trabalha numa cadeia de hotéis. Viajam com muita frequência. – Nunca alugaram a casa? – Que eu saiba, não. Tenho a impressão de que mesmo quando viajam deixam sempre lá alguns empregados. Agora que penso nisso, há alguns meses atrás estavam cá – a lembrança fê-la sorrir. – O tio Jolley e eu fomos pescar à lagoa e Saunderson esteve prestes a surpreender-nos. Se não nos tivéssemos refugiado na cabana... – interrompeu-se de repente, enquanto uma ideia ganhava forma na sua mente. – A cabana! – pronunciou Michael. – Aquele barracão velho que Jolley costumava usar como cabana de caça? Tinha-me esquecido dela. Pandora encolheu os ombros, fingindo uma expressão de indiferença. Mas o seu cérebro estava a trabalhar depressa. – Como tínhamos pescado imensas trutas, comemos até nos fartarmos e enviámos o resto para Saunderson. Nem sequer nos mandou um bilhete a agradecer. – Que mal-educado! – Bom, descobri que a minha avó trabalhou numa pousada em Chelsea. Queres mais vinho? – Não, obrigado – pensou que seria melhor manter-se desperto se pretendia pôr em prática o projecto em que estava a pensar. – Serve-te tu. Mas Pandora voltou a pousar a garrafa. – Acho que não vou beber mais. Estou um pouco cansada. – É normal – pensou que lhe convinha que se deitasse cedo. Quanto antes, melhor. – O que tu precisas é de uma boa noite de sono. – Deves ter razão. Acho que dispenso o café e vou tomar um bom banho quente – bocejou. – E tu? Vais ficar a trabalhar até tarde? – Não. Começo amanhã bem cedo. – Bom, então... – levantou-se. Tinha uma hora. Esse tempo chegaria para ir e voltar, – vou para cima. Boa noite, Michael. – Boa noite – decidiu que, assim que a visse desligar a luz do quarto, se poria a caminho. Pandora permaneceu sentada no quarto, às escuras, durante quinze minutos, a ouvir. A única coisa que tinha de fazer era sair sem que a vissem. O resto seria fácil. Abriu a porta devagar, contendo o fôlego, e aguçou a audição. Nem um
único som. «É agora ou nunca», decidiu enquanto vestia o casaco. Nos bolsos grandes guardou uma lanterna, duas caixas de fósforos e uma pequena laca em spray para o cabelo, que lhe serviria de defesa se surgisse algum problema. Saiu sigilosamente para o corredor e começou a descer as escadas muito devagar, colada à parede. Sentia a excitação da aventura a circular pelas suas veias. Não tivera nenhuma desde a morte do seu tio. Enquanto saía por uma das portas laterais, pensou em como Jolley teria apreciado aquele momento. A lua era apenas uma rodela fina de prata, mas o céu estava cheio de estrelas. E o ar era limpo. Depois de lançar um olhar rápido para a janela de Michael, encaminhou-se para o bosque. A luz das estrelas não lhe serviria ali. Embora os ramos estivessem despidos de folhas, eram suficientemente entrelaçados e retorcidos para lhe ocultarem o céu. Tirou a lanterna para encontrar o caminho. Não se apressou. Se se apressasse muito, a aventura acabaria num instante... Concentrou-se em ouvir os sons: a brisa que agitava os leitos de folhas secas, os sons de animais escondidos... Uma raposa, um guaxinim? Não tinha a certeza. Gostava dos cheiros: a pinheiro, a terra húmida, à geada que se formava na madrugada. Quando viu que o caminho se bifurcava, virou à esquerda. A cabana já não ficava muito longe. Parou uma vez, convencida de ter ouvido alguma coisa a mexer-se à sua frente, a alguns metros. Algo demasiado grande para ser uma raposa. Por um instante, sentiu uma pontada de medo ao pensar nos ursos e nos linces que abundavam na região. Mas uma coisa era especular e outra coisa, muito diferente, era enfrentar um perigo real. Não havia nada. Fora falso alarme. Abanando a cabeça, continuou a andar. Pensou no que faria se chegasse à cabana e descobrisse que não estava deserta. E se descobrisse que um dos seus queridos parentes se instalara lá? Imaginou o seu tio Carlson a ler o Wall Street Journal à frente da lareira. Ou a sua tia Patience a limpar o pó da mesa de carvalho. Aquilo era quase ridículo. Quase, até que se lembrou do estado em que encontrara o seu atelier. Franziu o sobrolho. Se estivesse alguém lá... teria de responder diante dela. De repente, a figura sombria da cabana surgiu diante dela. Estava como era suposto estar: deserta, desolada, fantasmagórica. Manteve a lanterna baixa, enquanto se aproximava do alpendre e esteve quase a dar um grito quando uma das tábuas dos degraus rangeu sob os seus pés. Depois, lenta e sigilosamente, abriu o trinco. A porta abriu-se com um chiado. Contou até dez antes de dar o passo seguinte e entrar. Quando um braço se fechou à volta do seu pescoço, largou a lanterna, que rolou pelo chão. Tentando respirar para gritar, levou uma mão ao bolso, à procura
do spray. Depois, virando-se, encontrou-se cara a cara com Michael. Tinha um punho levantado, prestes a espetá-lo no seu rosto, enquanto ela, por sua vez, lhe apontava o spray. Ambos ficaram paralisados. – Bolas! – Michael baixou o braço. – O que estás aqui a fazer? – E tu? – perguntou-lhe. – E o que pretendias, agarrando-me assim? Podias terme partido a lanterna. – E o nariz! Puxando o cabelo para trás, concentrou-se em procurar a sua lanterna. Não queria que visse como lhe tremiam as mãos. – Não é suposto perguntar-se nada antes de se bater em alguém? – Tu seguiste-me. Pandora olhou divertida para ele. – Isso era o que tu querias! Só queria ver se havia alguém a rondar por aqui. Não fazia a mínima ideia que te fosses intrometer... – Intrometer-me? – focou-lhe a cara com a sua lanterna, obrigando-a a tapar os olhos. – E o que terias feito se houvesse realmente alguém a rondar? – Posso tomar conta de mim sozinha – levantou o queixo. – Claro! – baixou o olhar para o spray que ainda tinha na mão. – O que tens aí? Pandora desatou a rir-se. O tio Jolley também se teria rido. – Laca para o cabelo. Para te borrifar os olhos com ela. Michael soltou uma gargalhada. Nem ele próprio conseguiria escrever uma cena tão hilariante. – Acho que devo ficar contente por não me teres atacado. – Bom, já que estamos aqui... Porque não damos uma vista de olhos? – Era o que estava a fazer quando te ouvi a aproximar. Parece que esteve aqui alguém bastante confortavelmente – para lho provar focou a lareira com a sua lanterna. As brasas ainda ardiam. – Meu Deus! – Pandora começou a examinar a cabana, depois de recuperar a sua lanterna. A última vez que estivera ali, a cadeira de baloiço estava ao lado da janela. Jolley sentara-se nela para vigiar Saunderson enquanto comiam. Naquele momento, a cadeira de baloiço encontrava-se diante da lareira. – Um vagabundo, talvez. Observando-a, Michael assentiu. – Talvez. – Embora não se possa ter a certeza. Achas que voltará? – Não sei – aparentemente nada estava fora do seu sítio. Estava tudo demasiado limpo. Era suposto o chão ter uma camada fina de pó. – Talvez já tenha feito o mal todo que pretendia fazer.
– Bolas! Pensei que ia surpreendê-lo. – E depois? – quis saber Michael. – Borrifavas-lhe os olhos com essa laca? Virou-se para ele, fulminando-o com o olhar. – Por acaso tu tinhas um plano melhor? – Acho que lhe teria dificultado um pouco mais as coisas. De repente, Pandora esboçou um sorriso malicioso. – De qualquer forma, parece que ambos perdemos uma oportunidade de exercer a força bruta. Bom, tu escreves histórias de detectives, não é? Não devíamos começar a procurar alguma pista? – Esqueci-me da lupa de Sherlock Holmes. – Talvez o tipo tenha deixado alguma coisa aqui... – murmurou, concentrandose em revistar novamente a cabana. – Uma etiqueta com o nome dele? – Qualquer coisa, qualquer coisa – ajoelhou-se para ver debaixo do beliche. – Cá está! – esticando uma mão, apanhou algo do chão. – O que é? – perguntou Michael atrás de si, antes que se endireitasse. – Um sapato – pronunciou com uma expressão nostálgica. – Era do tio Jolley. Parecia triste, perdida, vulnerável. – Eu também tenho saudades dele. Ficou sentada um momento, com o sapato no seu colo. – Sabes uma coisa? Às vezes parece que o consigo sentir. Como se estivesse ao virar da esquina ou no quarto ao lado, prestes a aparecer de repente, para me pregar uma das suas partidas. Soltando uma gargalhada, Michael acariciou-lhe carinhosamente as costas. – Percebo o que queres dizer. – Bom – recuperando-se rapidamente, levantou-se. – Vou dar uma vista de olhos aos armários. – Avisa-me se encontrares uma bolacha. Sabes que ainda continuo com a síndrome do tabaco. – Devias mascar pastilha elástica – abriu um armário e iluminou o interior. Havia latas de manteiga de amendoim e caviar russo, dois dos mantimentos preferidos de Jolley. Depois descobriu um frasco de molho picante e uma lata grande de cocktail de frutas, recordando que, aos noventa e três anos, o seu tio tinha o apetite de um adolescente. De repente, tirou uma lata do fundo e levantoua com um gesto triunfal. – Cá está! – Outra vez? – Atum! – anunciou, exultante. – É uma lata de atum. – E então? – O tio Jolley detestava atum.
– É verdade... – pronunciou lentamente Michael. – E não ia ter uma coisa aqui da qual não gostava. – Exactamente! – Parabéns, Sherlock! E agora, qual dos nossos suspeitos é adepto do atum? – Estás incomodado porque eu encontrei uma pista e tu não. – É só uma pista – assinalou Michael, um pouco incomodado por ter sido ultrapassado por uma amadora, – se é que se pode fazer alguma coisa com ela... – Se és tão pessimista, porque vieste aqui? – Esperava encontrar alguém – inquieto, começou a passear pela cabana. – E, até agora, a única coisa que fizemos foi confirmar que alguém esteve cá e se foi embora. Pandora largou a lata de atum, indignada. – Ou seja, uma perda de tempo, não é? – Não devias ter-me seguido. – Eu não te segui – replicou. – E mais, não me admirava nada que tu me tivesses seguido a mim. – Oh, claro! Por isso é que eu cheguei primeiro, não foi? – Agora que falas nisso... se estavas a pensar vir aqui esta noite, porque não me disseste nada? Michael deu um passo na direcção dela. Quando se aproximava demasiado, como naquele momento, sentia algo semelhante a uma comichão na pele. – Pois, pela mesma razão pela qual tu também não me disseste nada. Eu não confio em ti, prima. E tu também não confias em mim. – Pelo menos, estamos de acordo em alguma coisa – ia passar ao seu lado, quando ele a segurou por um braço. Com desprezo, olhou para ele de alto a baixo. – Acho que devias perder esse hábito, Michael. – Dizem que quando se perde um hábito, ganha-se outro. – A sério? – inquiriu com o mesmo tom de frieza, mas ardendo por dentro. – És mais fácil de agarrar do que eu pensava, Pandora. – Não tenhas tanta certeza – retrocedeu um passo. Tentou convencer-se de que não era um movimento de retirada, mas puramente ofensivo. Mas ele seguiu-a, sem a largar. – Há mulheres que têm problemas com a atracção física. Custa-lhes reconhecêla. A fúria que ardeu nos seus olhos pareceu-lhe tão sedutora como a paixão que vislumbrara neles naquela tarde. – Outra vez o teu ego dominador. Essa técnica talvez funcione bem com as tuas modelos e as tuas bailarinas, mas... – Pois! A minha vida sexual sempre te fascinou, não foi? – replicou Michael,
satisfeito ao ver a sua expressão de frustração. – Digamos que sim. Mas trata-se do mesmo tipo de fascínio, e de pasmo, que qualquer pessoa sentiria pela vida sexual dos mamíferos mais primitivos – irritava-lhe que o seu coração estivesse a bater tão depressa. E não era de fúria. Era demasiado sincera para se enganar a si própria. – Já é muito tarde. Vais ter de me dar licença. – Eu nunca te perguntei pela tua vida sexual – quando Pandora retrocedeu outro passo, encurralou-a contra um canto. Viu que enfiava uma mão no bolso onde guardava o spray. – Deixa-me adivinhar... Preferes um intelectual que filosofa sobre o sexo em vez de agir... – Maldito presunçoso, arrogante... Mas Michael acalmou-a da forma que sempre sonhara. Com os lábios. Daquela vez não foi um beijo de comparação, mas foi ardente, apaixonado, próximo do desespero. Pandora não quis analisar os seus sentimentos. Em vez disso, aceitou resignada a experiência. A boca de Michael era quente, firme e exibia a mesma confiança viril que tanto a indignara em ocasiões anteriores. Agora, no entanto, era diferente. Era rude, insistente. Exigia, esperava e dava com uma falta de inibição assustadora, quase animal. Esperara que o rejeitasse, que o esbofeteasse até. Mas a sua reacção instantânea e complacente deixara-o aturdido de desejo. Se Pandora soubesse o quanto o afectara... Gabar-se-ia disso? Mas não pensaria nisso agora. Nem nisso, nem em nada. A cabana estava fria e escura. Cheirava a fumo, a pó, a fechado; um cenário que estava muito longe de ser romântico. O vento assobiava pelas frestas das janelas. Nenhum dos dois notou. Nem sequer quando se afastaram. Michael tremia por dentro. Essa era outra coisa sobre a qual reflectiria depois. Pelo menos, tinha a satisfação de ver que ela também não estava muito calma. Parecia inquieta, emocionada, aflita... – O que estavas a dizer? – perguntou-lhe com um sorriso. Teve vontade de lhe bater. E de o beijar sem parar até lhe tirar aquele sorriso da cara. Com certeza esperara que caísse rendida aos seus pés, como, decerto, fariam todas as mulheres. Esperara que suspirasse, sorrisse e se rendesse para gozar assim de mais uma vitória. Mas, em vez disso, exclamou: – Imbecil! – Eu adoro que sejas tão directa. – Regra número sete: nada de contacto físico – pronunciou Pandora, lançandolhe um olhar assassino. – Nada de contacto físico – conveio Michael enquanto ela se dirigia para a porta, – a não ser que ambas as partes o apreciem.
E saiu, batendo a porta com força, deixando-o com o sorriso nos lábios. Quando duas pessoas se dedicavam, cada uma aos seus respectivos projectos, conseguiam viver sob o mesmo tecto durante dias a ver-se apenas ocasionalmente. Sobretudo se o tecto fosse imenso e as pessoas em questão especialmente teimosas. Pandora e Michael só se encontravam às refeições. Não era por cortesia, nem por consideração para com o outro. Não! Era simplesmente porque estavam demasiado ocupados para se provocarem mutuamente. Em separado, no entanto, cada um se sentia presunçosamente satisfeito depois de decorrido o primeiro mês. Decorrido um, já só restavam cinco. Quando entraram no segundo mês, Michael teve de passar um dia em Nova Iorque, para resolver um problema que surgira com um dos seus argumentos. Partiu mal-humorado, a resmungar. Pandora, por sua vez, dispôs-se a desfrutar do prazer da sua ausência. Durante várias horas não teria de partilhar Folley com ninguém. Poderia fazer tudo o que lhe apetecesse sem ter de se preocupar que alguém pudesse bisbilhotar o seu trabalho ou fizesse qualquer comentário sarcástico. Seria simplesmente maravilhoso. Depois do jantar, foi à janela para ver se o seu carro já chegara. Não era porque sentisse a falta dele, como é óbvio, mas, de alguma forma, habituara-se a viver com outra pessoa naquela casa. Não seria essa uma das razões pelas quais não quisera viver com ninguém antes? Detestava ter de depender de alguém. E a dependência, reflectiu, era algo natural quando se partilhava o mesmo espaço com alguém. Embora esse alguém fosse uma cobra de duas pernas, como era o seu caso. Portanto, esperou à janela. Muito tempo depois de Charles e Sweeney se terem ido deitar, continuou à espera. Não estava preocupada, naturalmente, e também não se sentia sozinha. Apenas inquieta. Disse para si que não se deitaria porque, na verdade, não estava cansada. Passeando pelo primeiro andar, entrou no escritório de Jolley. «Sala de jogos» teria sido um nome muito mais apropriado. Acendeu a televisão enorme e começou a ver um programa qualquer. Não porque estivesse interessada, mas apenas para se sentir acompanhada... Depois passou perto de uma hora a jogar nas duas máquinas de flippers. Também havia um jogo antigo de vídeo que simulava um ataque contra o planeta Zarbo. Devido à falta de prática, não conseguiu evitar que o planeta rebentasse três vezes antes de desistir. Finalmente, voltou a deitar-se no sofá enorme em frente à televisão. Apenas para descansar, não para esperar Michael... Não sentiu quando Michael entrou na sala. Tivera um dia muito difícil, com engarrafamento incluído no caminho de volta. Pensara passar aquela noite na
cidade, o mais inteligente que poderia ter feito. Mas a verdade era que inventara, pelo menos, meia dúzia de desculpas para se convencer de que tinha de voltar, em vez de aceitar o convite da sua assistente de produção, uma linda morena de olhos castanhos. A sua primeira intenção fora subir para o seu quarto, deitar-se na cama e dormir até ao meio-dia, mas vira as luzes e ouvira o barulho da televisão. E ali estava Pandora, a inveterada crítica do pequeno ecrã, deitada num sofá diante daquele aparelho enorme, à uma da madrugada. E, pelo que via, estava a gostar. Não era um programa mau, pensou, reconhecendo a série. Na verdade, ele escrevera alguns argumentos para os primeiros episódios. Continuou a observá-la. E esperou até ao primeiro intervalo. – Olá! Sobressaltada, quase caiu do sofá. Sentou-se, franziu o sobrolho e procurou uma justificação plausível para o seu comportamento. – Não conseguia dormir – disse, o que era verdade. Mas não acrescentou que era porque ele não estava em casa. – Acho que a televisão foi feita para as pessoas que têm insónia. Valium para o cérebro. Michael sentou-se ao seu lado, suspirando, e colocou os pés em cima da mesa. Estava contente por estar de volta. – Como correram as coisas em Nova Iorque? – Não correram muito mal. Depois de várias horas a discutir com o produtor, o argumento mantém-se intacto. Parecia cansado. Terrivelmente cansado, pensou Pandora ao ver como se descalçava. Soltou um resmungo de assentimento. – Não percebo como as pessoas se podem chatear tanto por causa de programas tão estúpidos. – Estúpidos, dizes tu? – Estas séries são sempre iguais. Acontece um crime e, no fim, os bons perseguem os maus. Acho demasiado simplista. – Não sabes o quanto te agradeço o comentário. Vou comunicá-lo ao meu produtor na próxima reunião. – A sério, Michael, acho que devias levar as coisas com mais calma, sobretudo tendo em conta que já fazes estas coisas há anos. – Já ouviste falar de ego e de paranóia? Pandora sorriu. – Um pouco. – Bom, pois multiplica isso pelo temperamento artístico, os índices de audiência e o crescimento do orçamento televisivo. Desde há quatro anos que as coisas não se fazem com calma. E se Logan’s Run durar mais quatro, continuarão
da mesma forma. Este negócio é assim. Pandora encolheu os ombros. – Pois parece-me uma forma muito absurda de viver. – A quem o dizes – repôs Michael e adormeceu. Deixou-o dormir durante cerca de vinte minutos, enquanto continuava a ver a série. Quando acabou, levantou-se para desligar a televisão e diminuir a intensidade das luzes. Num impulso, afastou-lhe uma madeixa de cabelo da testa. Pensou em ir-se embora e deixá-lo ali. Parecia estar muito confortável. Mas, no dia seguinte, provavelmente acordaria com o pescoço dorido. – Michael. – Hum? – Vamos para a cama. – Estava a ver que nunca mais pedias – murmurou, estendendo os braços para ela, como um sonâmbulo. Divertida, abanou-o suavemente pelos ombros. – Anda, primo. Eu ajudo-te a subir para o teu quarto. – O produtor é um idiota! – resmungou, enquanto ela o obrigava a levantar-se. – Com certeza. E agora, vê se és capaz de pôr um pé à frente do outro. Assim. Muito bem. – Não parou de criticar o meu argumento. – Que descarado! Agora vêm aí os degraus. – Dizia que queria mais impacto emocional na segunda parte – murmurou, enquanto subia com os olhos fechados. – Ele não sabe nada de impacto emocional! – Obviamente, trata-se de um verdadeiro atrasado mental – com muita dificuldade conseguiu arrastá-lo até ao quarto. Era mais pesado do que parecia. – Já cá estamos – com um último esforço, deitou-o na cama. – Então, não estás melhor aqui? – sem o despir, colocou-lhe uma manta em cima. – Não vais despir-me as calças? – Nem pensar! – Desmancha-prazeres! – Se a estas horas te ajudasse a despir, provavelmente teria pesadelos. – Sabes perfeitamente que estás louca por mim. – Michael, estás a delirar. Amanhã, peço a Charles para que te traga o pequeno-almoço. – Nada disso! – endireitando-se, sorriu-lhe. – Ouve, porque não te deitas comigo? – inquiriu, sonolento. – Oferecia-te a experiência mais agradável da tua vida.
Pandora inclinou-se para ele, cada vez mais perto, até que a sua boca ficou a apenas alguns centímetros da dele. Até que os seus fôlegos se misturaram intimamente. – Nunca! – respondeu, a sorrir. Michael encolheu os ombros, bocejou e voltou a deitar-se. – Como queiras. Às escuras, Pandora permaneceu de pé durante um momento, com as mãos nas ancas. Pelo menos, não levara a mal a sua recusa. Com a cabeça bem levantada, saiu do quarto... certificando-se de bater a porta com bastante força.
Cinco
Pandora conseguiu acabar o colar de esmeraldas. E achou-o perfeito. Aquela apreciação agradou-lhe extremamente, já que ela própria era a sua maior crítica. Olhou à sua volta, em busca de inspiração. Colocara tanto da sua pessoa naquela peça, toda a sua concentração, toda a sua capacidade emotiva, todo o seu talento... Não fizera um único esboço para o seu próximo projecto. Inquieta, desejosa de trabalhar, pegou no seu bloco de esboços e começou a desenhar. Talvez fizesse uns brincos. Algo atrevido, faustoso, colorido. Queria uma mudança depois do trabalho fino e elegante a que dedicara tanto tempo. Círculos e triângulos, pensou. Algo geométrico e moderno. Nada romântico, como o colar. «Romântico», repetiu. Efectivamente, estivera a trabalhar numa peça romântica, talvez porque estivera prestes a fazer uma figura ridícula lamentável com Michael. Os seus sentimentos ficavam sempre reflectidos na sua obra, e a sua obra era elegante, feminina e romântica. Fazia sentido, decidiu, satisfeita. A partir daquele momento, no entanto, trabalharia em algo forte, descarado, arrogante. E com isso resolveria o problema. Embora, primeiro que nada, aquilo não devesse ter constituído um problema. Cerrando os dentes, mudou de página e começou um desenho novo. Os seus sentimentos por Michael tinham sido sempre muito precisos. Intolerância. «Se um tipo se mostra intolerante contigo, é estúpido sentires atracção por ele», pensou aborrecida. Mas não se tratava, de forma alguma, de uma atracção real. Era mais uma espécie de... curiosidade rebuscada. Sim, curiosidade. A palavra satisfazia-a completamente. Sentia uma curiosidade natural pela sexualidade de um homem que conhecia desde a infância. Uma curiosidade, deste modo natural, por descobrir o que é que Michael Donahue tinha para atrair aquelas modelos e bailarinas todas. E descobrira. Sabia fazer com que uma mulher se sentisse absolutamente feminina, disposta, ansiosa. Era algo que jamais lhe acontecera e que também nunca procurara. Pandora encarava-o como um talento, uma habilidade. Algo que desenvolvera com meticulosidade artística. Ela, decididamente, não pensava fazer parte da sua multidão de admiradoras. Se Michael descobrisse, ou simplesmente suspeitasse, que ela sentira o mesmo que o resto das outras mulheres, regozijar-se-ia durante um mês inteiro. E não ia dar-lhe esse prazer. Não! Embora pudesse, não desejava integrar a sua legião de mulheres. Agora
que a sua curiosidade fora satisfeita, ultrapassariam os cinco meses que faltavam estar juntos sem grandes... complicações. Mas quando deu por a si a dar os últimos retoques a um esboço do rosto de Michael, ficou consternada. Conseguira capturar a expressão do seu sobrolho arrogante, a sensualidade da sua boca. Arrancou a folha, fez uma bola com ela e atirou-a para o cesto de papéis. Deixara a mente vaguear, fora só isso. Pegou novamente no lápis, mas, sem se aperceber, começou outra vez a desenhá-lo. «A arte é a arte», disse para si para se justificar enquanto fazia um esboço novo da cara de Michael. Não estava a produzir grande coisa. Sentado diante da sua secretária, Michael esteve a escrever como um louco durante cinco minutos. Depois ficou com o olhar perdido durante outros quinze minutos. Aquilo não era característico dele. Quando trabalhava, fazia-o a sério, de seguida, sem se distrair. Recostando-se na cadeira, pegou numa caneta e começou a rabiscar num papel. Apesar do que diziam as estatísticas, não deveria ter deixado de fumar. Era isso que o deixava tão inquieto, tão irritável. Levantou-se da secretária para se aproximar da janela, para olhar para o atelier de Pandora. A casa estava coberta de uma camada fina de neve. Não se via nada pelas janelas. Era isso que o deixava tão nervoso. Pandora não era, nem pouco mais ou menos, a mulher que esperara. Era muito mais doce, mais carinhosa. Mais quente. Era divertido falar com ela. Até nas discussões. Era activa, estimulante. Não era fácil admitir que estava a apreciar imenso a sua companhia. As semanas que estavam a partilhar em Folley tinhamse passado a voar. E se recusara o convite sugestivo da sua assistente de produção fora porque... porque, reconheceu com um suspiro profundo, quisera passar a noite com uma mulher na qual, até ao momento, não parara de pensar. Mas... o que iria fazer com aquela atracção indesejada e inesperada que sentia por uma mulher que preferia praticar boxe com ele a passear sob o luar? As mulheres românticas tinham-no atraído sempre porque ele próprio era um romântico inveterado. Adorava a luz das velas, a música calma, os passeios longos e solitários. Michael cortejava as mulheres à moda antiga, porque se sentia à vontade com esse estilo. O que não impedia que fosse, sempre fora, um feminista acérrimo. O romantismo e a política eram mundos separados. Não tinha qualquer problema em desprezar a discriminação sexual e, ao mesmo tempo, desdobrar-se em galanteios. Desejava-a. Era inútil fingir o contrário. Quando desejava alguma coisa, fazia tudo para a conseguir. E Pandora era um desafio interessante, pensou com um
sorriso. Sempre pensara que ela seria uma personagem fantástica, ideal para qualquer um dos seus argumentos. Teve uma ideia fantástica: faria um argumento com ela. Os dois protagonistas, homem e mulher, partilhariam uma casa. Sentiam-se atraídos, mas ambos resistiam a reconhecer essa atracção. Ele era inteligente, encantador, com uma tremenda força de vontade. Acaso não deixara de fumar há cinco semanas, três dias e catorze horas? Ela era teimosa e decidida, ciosa da sua independência. A pouco e pouco, o galã ia conseguindo arrasar as suas defesas... Endireitou-se na sua cadeira e sorriu. Com aquele argumento, podia fazer o argumento de uma peça de teatro. Podia e faria. Pôs mãos à obra. Durante as duas horas seguintes, trabalhou sem descanso. Quando ouviu baterem à porta, resmungou. – Desculpe, senhor Donahue... – Sim, Charles? – inquiriu, acabando de escrever uma frase. – Há um telegrama para si. – Um telegrama? – franzindo o sobrolho, virou-se na cadeira. Se surgisse algum problema em Nova Iorque, como costumava acontecer, a forma mais rápida de o resolver seria por telefone. – Obrigado – pegou no telegrama, sem abri-lo. – Pandora ainda está no atelier? – Sim, senhor. Sweeney está um pouco zangada porque a menina McVie não almoçou. Tenciona servir o jantar daqui a uma hora. Espero que encaixe no seu plano de trabalho... – Já vou – não queria desagradar Sweeney. – Obrigado, senhor e... se me permite o comentário, aprecio deveras a sua série. O episódio desta semana foi particularmente excitante. – Obrigado, Charles. – O senhor McVie costumava vê-la todas as semanas comigo. Nunca perdíamos um episódio. – Provavelmente, Logan’s Run nunca teria sido a mesma sem Jolley – reflectiu Michael em voz alta. – Sinto imenso falta dele. – Todos nós. A casa está tão silenciosa... Mas eu... – interrompeu-se de repente, corado. – Continue, Charles. – Bom, eu gostava que soubesse que tanto Sweeney como eu estamos encantados de continuar ao seu serviço, da menina McVie e dele. Ficámos tão contentes quando o senhor McVie vos deixou a casa. Com os outros... Bom, teria sido muito diferente. Sweeney e eu tínhamos pensado demitir-nos se o senhor McVie tivesse deixado a mansão a qualquer um dos outros herdeiros – entrelaçou as suas mãos ossudas. – Deseja mais alguma coisa antes do jantar, senhor?
– Não, Charles. Muito obrigado. Com o telegrama na mão, observou-o enquanto saía. O mordomo idoso conhecia-o desde que era um menino. Era curioso o quanto aquela casa e as pessoas que a habitavam tinham influenciado a sua vida. Charles servira-lhe o seu primeiro uísque, no dia em que fizera dezoito anos; se não com aprovação, pelo menos com uma digna deferência. Pandora, por seu lado, durante a sua adolescência fora tanto a sua perdição como a sua fantasia. E, aparentemente, isso não mudara muito desde então. E Jolley. Jolley fora o seu pai, o seu avô, o seu amigo. Tudo ao mesmo tempo. Jolley fora Jolley, e Michael não pudera ser mais sincero quando confessara a Charles que sentia muito a falta dele. Pensando noutras coisas, abriu o envelope do telegrama. A tua mãe gravemente doente. Os médicos dão poucas esperanças. Prepara tudo para vires imediatamente para Palm Springs. L.J. Keyser. Michael ficou a olhar fixamente para o papel. Não podia ser, a sua mãe nunca ficara doente. Para ela, a doença era como uma espécie de descortesia social, uma indelicadeza imperdoável. Depois de um momento de estupefacção combinado com incredulidade, pegou no telefone. Quando, quinze minutos depois, Pandora passou à frente do seu quarto, surpreendeu-o a fazer a mala. Encostando-se à ombreira da porta, arqueou um sobrolho. – Vais a algum lado? – A Palm Springs – respondeu, enquanto guardava a sua bolsa de produtos de higiene. – A sério? – cruzou os braços. – Vais à procura de um clima mais ensolarado? – Trata-se da minha mãe. O marido dela mandou-me um telegrama. Pandora abandonou imediatamente o seu tom sarcástico e entrou no quarto. – Está doente? – O telegrama que recebi não é muito explícito, mas não prevê nada de bom. – Oh, Michael, lamento... Posso fazer alguma coisa? Telefonar para o aeroporto? – Já telefonei. Tenho um voo dentro de poucas horas. Vou ter de fazer, pelo menos, uma meia dúzia de escalas, mas não há outro remédio. – Levo-te ao aeroporto, se quiseres... – Não. Obrigado, de qualquer forma – passando uma mão pelo cabelo, virouse para ela. Parecia muito preocupada, embora soubesse que só vira a sua mãe uma vez, há cerca de quinze anos atrás. – Pandora, a viagem vai ser longa. E não
sei se... – interrompeu-se, ainda incapaz de imaginar a sua mãe gravemente doente. – Não sei se vou conseguir voltar a tempo... não em quarenta e oito horas. – Não quero que penses nisso – abanou a cabeça. – Eu telefono a Fitzhugh e explico-lhe. Talvez possa fazer alguma coisa em relação a isso. Afinal de contas, é uma emergência. E se não puder, pois, já está. Isso não é importante. Michael tinha consciência de que estava prestes a dar um passo que poderia tirar milhões de dólares das mãos de Pandora. Milhões de dólares e a casa que tanto amava. Comovido, aproximou-se e pôs-lhe as mãos sobre os ombros. Era tão bela... Esquecera-se como uma mulher tão forte e corajosa como ela podia ser frágil. – Desculpa, Pandora. Se houvesse qualquer outra forma de... – Michael, eu disse-te que não queria o dinheiro. E falava a sério. Observou-a durante um momento. Sim, a força estava ali. A força, a bondade e uma generosidade natural, enternecedora. – Eu sei – murmurou. – Quanto ao resto, logo vemos. E agora vai-te embora, antes que percas o avião – acompanhou-o até ao corredor. – Telefona-me quando puderes, para me dizeres como está a tua mãe. Michael assentiu. Quando já se dispunha a descer as escadas, parou de repente. Pousou a mala no chão, voltou para trás e puxou-a para si. Foi um beijo longo e impetuoso. Largou-a com a mesma brusquidão com que a abraçara. – Até logo. – Sim – engoliu em seco, emocionada. – Até logo. E ficou quieta, paralisada, até o ouvir fechar a porta da frente. Pandora dispôs de muito tempo para pensar naquele beijo, durante o jantar solitário daquela noite e durante o tempo que dedicou a ler, diante do calor da lareira da sala. Tinha a sensação de que houvera mais paixão concentrada naquele beijo, naquele instante passageiro, do que a que conhecera durante a sua vida toda, em qualquer uma das relações que tivera. Seria porque sempre fizera tudo para submeter a sua paixão à sua vontade ou ao seu trabalho? Talvez fosse porque a situação de Michael lhe tocara na compaixão, na piedade. De qualquer forma, estava sozinha, pela segunda vez, naquela casa enorme. E, para seu espanto, também se sentia sozinha. Tinha de admitir: depois de viver há pouco mais de um mês com Michael, dependia demasiado da sua companhia. Gostava de se sentar à frente dele durante as refeições, até de discutir com ele. Gostava sobretudo da forma como se zangava, como rebentava quando criticava o trabalho dele... «Pura maldade?», perguntou a
si própria com um suspiro. Talvez fosse, mas a vida era tão enfadonha sem um pouco de atrito, de confronto... E, nesse aspecto, nenhum adversário conseguia ser tão satisfatório como Michael Donahue. Pensou quando voltaria a vê-lo. E se alguma vez chegariam a esquecer aquele Inverno. Se as condições do testamento fossem violadas, já não haveria razão para que continuassem a viver juntos. Na verdade, nem sequer teriam o direito de ficar em Folley. Ambos voltariam para Nova Iorque e cada um retomaria a sua própria vida. Não queria perder Folley. Aquela casa albergava tantas lembranças e tão importantes para ela. E também não queria perder Michael. Ou melhor, a sua companhia, apressou-se a corrigir-se. Uma companhia que fora muito mais satisfatória do que esperara de início. Se deixasse de ter aquele desafio diário, a vida seria terrivelmente simples, aborrecida. E dado que Michael era quem acrescentava aquela faísca aos seus dias, nada seria mais natural que sentir a falta dele... Com um suspiro, fechou o livro e decidiu deitar-se cedo. Mas, no preciso momento em que ia desligar o candeeiro, faltou a luz. Ficou às escuras, iluminada unicamente pelo fogo da lareira. Era estranho, pensou enquanto carregava, em vão, no interruptor. O candeeiro do corredor também não funcionava. A luz que deixara ali acesa também se apagara, juntamente com a das escadas. Devia tratar-se de uma falha geral. Embora não houvesse nenhuma tempestade. A energia eléctrica de Folley era cortada regularmente durante os nevões e as tempestades, mas o gerador da mansão repunha-a numa questão de minutos. Pandora esperou, mas a casa continuou às escuras. Dirigia-se para a sala, para procurar uma vela, quando se lembrou de uma coisa: a mansão não só era iluminada, mas também era aquecida com electricidade. Se a electricidade não voltasse rapidamente, a casa arrefeceria de forma dramática. E, com duas pessoas de mais de setenta anos a viver nela, o risco era demasiado grande. Encontrou três velas na sala e acendeu-as. Não fazia sentido acordar Charles. Provavelmente, fundira-se algum fusível. Com uma vela, caminhou pelo corredor que levava à cave. Se bem se lembrava, a cave estava cheia de lembranças do tio Jolley, brinquedos e objectos que fora acumulando com o tempo. Era lá que estava o contador da electricidade. Lembrava-se de o ter visto ali, quando uma vez estivera a ajudar o seu tio a guardar o seu equipamento fotográfico. Com uma mão na maçaneta, tentou convencer-se de que aquela sala era igual a qualquer outra. Mesmo assim, respirou fundo várias vezes antes de entrar. Às escuras, impunha respeito. Os degraus rangeram. Era de esperar. As escadas eram tão estreitas como
íngremes. A luz da vela dançava insegura sobre as caixas que o seu tio amontoara ali. Sabia que os ratos eram apreciadores de lugares escuros e húmidos e, uma vez que não tinha qualquer afeição por ratos, certificou-se de que não havia nenhum a correr pelo chão antes de descer. Havia uma parede coberta de prateleiras de garrafas até ao tecto. Com um suspiro de alívio, descobriu a caixa dos fusíveis. Depois de colocar a vela em cima de uma pilha de caixas, abriu a porta metálica. Não havia um único fusível lá dentro. – O que raios significa isto? – murmurou. Precisamente quando se inclinava para a examinar de mais perto, bateu em alguma coisa com o pé, fazendo-a rolar pelo chão. Conteve um grito, assustada, reprimindo a vontade de fugir. Contendo o fôlego, pegou na vela e baixou-se. Aos seus pés havia dezenas de fusíveis. Apanhou um deles. A cave tinha bastantes ratos, mas nenhum seria suficientemente hábil para arroncar todos os fusíveis de uma caixa. Um calafrio percorreu-lhe as costas enquanto os apanhava. Tentou pensar que aquela sabotagem não era tão destrutiva como a que sofrera no seu atelier. Colocou-os no seu devido lugar o mais depressa que conseguiu. Quem quer que tivesse feito aquilo, não lhe causara mais que um pequeno incómodo. Uma pequena perda de tempo, mais nada. Quando acabou, virou-se para as escadas, subiu-as a correr e soltou um suspiro de alívio. Um suspiro certamente prematuro, já que a porta que deixara cuidadosamente aberta estava agora fechada. Durante alguns segundos, recusouse a acreditar no que estava a ver. Girou a maçaneta várias vezes, em vão. Depois esqueceu-se de tudo, excepto do medo de ter ficado fechada ali. Bateu à porta, gritou, suplicou... até que se deixou cair, a soluçar, no primeiro degrau. Ninguém a ouviria. Charles e Sweeney dormiam no outro lado da casa. Durante cerca de cinco minutos, cedeu ao medo e à autocomiseração. Estava sozinha, completamente sozinha, fechada numa cave escura onde ninguém conseguiria ouvi-la até à manhã seguinte. Estava a começar a ter frio. A vela acabaria por se apagar e ficaria sem luz. Aquilo era o pior de tudo: não ter luz. «Luz», pensou de repente, recriminando-se por ter sido tão estúpida, enquanto limpava as lágrimas. Por acaso não voltara a colocar os fusíveis no lugar? Endireitando-se, apalpou o interruptor que havia ao lado da porta. Nada! Contendo um grito, levantou a vela. A caixa fora donificada. Afinal de contas, não fora uma sabotagem nada estúpida, fora bastante eficaz. Engolindo o nó de pânico que tinha na garganta, tentou pensar. Quando descobrisse o seu parente que fora responsável por aquilo... Mas teria tempo para isso mais tarde. O que tinha de fazer naquele momento era pensar, encontrar uma saída. Estava a tremer e tentou convencer-se de que era
de fúria. Às vezes era preciso mentir a si própria. Mantendo a vela bem levantada, obrigou-se a descer novamente os degraus. A cave era duas vezes maior do que o seu apartamento de Nova Iorque. Com o chão de cimento e as paredes de pedra. Decidiu não pensar nas aranhas e nos outros insectos que deviam entrar pelas frestas. Lentamente, com calma, concentrou-se em procurar uma saída. Não havia portas. Aquilo parecia um túmulo. Soltou um grito quando uma teia de aranha lhe tocou na cara. Mais irritada consigo mesma do que assustada, afastou-a com um gesto de asco. «Alguém vai pagar por isto», pensou enquanto continuava o seu percurso. Foi então que descobriu uma janela, muito estreita, um metro acima da sua cabeça. Embora fosse apenas uma janelinha, quase desmaiou de alívio. Depois de colocar a vela em cima de uma prateleira, começou a empilhar caixas, contra a parede. Só parou quando acabou. Sem fôlego, a suar, encostou-se às suas escadas improvisadas. Agora, só precisava de subir. Com a vela numa mão, utilizou a outra para se levantar. As caixas ressentiramse com o seu peso, balançando-se levemente. Por um instante, pensou que, se caísse, poderia ficar deitada em cima do chão frio de cimento, com algum osso partido, até à manhã seguinte. Tentando continuar a escalar, recusou-se a pensar em alguma coisa. Quando conseguiu alcançar a janela, descobriu que não conseguia abrir o pequeno trinco enferrujado. Praguejando e rezando ao mesmo tempo, voltou a colocar a vela em cima de uma caixa e tentou abrir com as duas mãos. Quando sentiu que o fecho se mexia, tentou novamente. Lamentou não ter agarrado em nenhuma ferramenta antes de subir. Estava já a pensar em descer para ir buscar uma ferramenta, quando cometeu o erro de olhar para trás. Dali de cima, a pilha de caixas oferecia um aspecto ainda mais instável. Virando-se para a janelinha, puxou o trinco com toda a sua força. Ao fazê-lo, fez as caixas tremerem e a vela caiu no chão. Felizmente, a chama extinguiu-se ao tocar no cimento, sem provocar nenhum incêndio. Pandora esteve prestes a seguir o mesmo caminho, mas conseguiu manter o equilíbrio, completamente às escuras. «Não vou cair», prometeu a si mesma, enquanto se agarrava ao parapeito da janela com as duas mãos. Abriu a janela às cegas e começou a sair. A primeira baforada de frio deixou-a praticamente congelada. Quando conseguiu colocar os ombros de fora, parou para respirar fundo várias vezes. Muito perto, quase ao seu lado, ouviu o canto breve de um passarinho. Nunca ouvira nada tão belo. Agarrando-se a uma hera, conseguiu puxar o corpo até à rua. Já deitada sobre a relva, conseguiu ouvir o estrondo da pilha de caixas a cair. Enregelada, magoada e exausta, levantou o olhar para as estrelas.
Depois, quando se recuperou o suficiente, levantou-se para contornar o terraço da ala este. Queria vingança, mas antes precisava de um bom banho quente. Depois de três escalas e dois transbordos de avião, Michael chegou a Palm Springs. Nada mudara, pelo que conseguira ver. Geralmente, nunca queria ir àquele sítio pequeno e elitista. Mas, naquele momento, ao imaginar a sua mãe doente, sentia-se invadido pela culpa. Raramente a via. Naturalmente, ela também não estava muito interessada em vê-lo. Mesmo assim, continuava a ser a sua mãe. Nunca tinham chegado a encaixar muito bem, mas jamais o deixara desamparado. Ou, pelo menos, sempre contratara pessoas para tomarem conta dele. Abriu caminho entre a multidão e chamou um táxi. Depois de indicar a morada ao condutor, recostou-se no banco e olhou para o seu relógio. Mesmo com as horas que ganhara, provavelmente já teria acabado o horário de visitas. A primeira coisa a fazer, no entanto, era saber em que hospital estava internada a sua mãe. Se tivesse feito as coisas bem, teria telefonado antes para saber. Se o marido da sua mãe não estivesse em casa, um dos empregados poderia dizer-lhe. Talvez não estivesse tão mal como parecia no telegrama. Afinal, a sua mãe ainda era jovem. Por razões profissionais fora obrigado a viver na Califórnia durante longas temporadas, mas preferia Los Angeles a Palm Springs. Lá, pelo menos, havia alguma acção, algum movimento. No entanto, acima de tudo preferia Nova Iorque; o seu modo de vida encaixava perfeitamente no seu ritmo trepidante. Pensou em Pandora. Ambos viviam em Nova Iorque e nunca se tinham encontrado ali, mas a dezenas de quilómetros a norte, em Folley. A cidade conseguia engolir as pessoas. Ou escondê-las. Esse era outro aspecto da mesma que Michael apreciava. Costumava usar a cidade, com frequência, para se esconder... de quê? Da sua educação, do seu ambiente? Da sua recorrente falta de fé na natureza humana? Era em Folley onde se sentia melhor, mas em Nova Iorque sentia-se mais seguro. Ali podia perder-se no anonimato, se assim o desejasse. E havia vezes em que não desejava mais nada. Michael escrevia sobre heróis e sobre a justiça, sobre pessoas, por vezes duras, rudes, mas sempre humanas. Escrevia, à sua maneira, sobre valores e direitos básicos, tão simples como fundamentais. Fora criado rodeado pela hipocrisia e pelos falsos brilhos da riqueza, com valores igualmente precários e instáveis. E afastara-se daquele mundo, para começar outra vez por sua própria conta e risco. Nova Iorque ajudara-o nesse compromisso, porque na cidade grande a diferença de origens desaparecia. Ao
ponto, reflectiu, de ele raramente se lembrar da sua. O táxi entrou no caminho íngreme, ladeado por palmeiras altas, que levava à grande mansão branca que se erguia no alto. – Espere aqui, por favor – disse ao taxista antes de sair. Subiu os degraus do alpendre. O mordomo que lhe abriu a porta era novo. A sua mãe tinha por hábito mudar regularmente de funcionários, antes que, conforme ela dizia, o tratamento se tornasse demasiado familiar. – Sou Michael Donahue, o filho da senhora Keyser. O mordomo reparou na sua camisola velha e no seu rosto por barbear. – Boa tarde, senhor. Está alguém à sua espera? – Onde está a minha mãe? Quero ir directamente para o hospital. – Esta tarde, a sua mãe não está, senhor Donahue. Se fizer o favor de esperar, verei se o senhor Keyser está disponível. Nauseado, como sempre, com tantas formalidades, entrou sem esperar que o convidassem. – Eu sei que ela não está. Quero vê-la ainda esta noite. Como se chama o hospital? – Que hospital, senhor Donahue? – Jackson, o que raios está ali a fazer aquele táxi? – perguntou Lawrence Keyser, descendo as escadas. Tinha um charuto numa mão e um copo de brandy na outra. – Muito bem, Lawrence... – pronunciou Michael, cada vez mais irritado. – Parece que estás muito confortável nesta casa. Onde está a minha mãe? – Meu Deus! Matthew... – Michael. – Michael, é claro. Jackson, por favor, paga e dispensa o taxista do senhor Donavan... – Não, obrigado, Jackson – Michael levantou uma mão. Em qualquer outra circunstância, ter-se-ia rido perante aquele segundo equívoco do seu padrasto com o seu nome. – Vou usá-lo para ir para o hospital. – Como queiras. Veronica ficará encantada por te ver, embora não soubéssemos que vinhas. Quanto tempo ficarás na cidade? – O tempo que for necessário. Saí assim que recebi o telegrama. Não me disseste o nome do hospital. Dado que estás em casa e perfeitamente relaxado, pelo que vejo – acrescentou com tom irónico, – devo presumir que o estado da minha mãe melhorou? – O estado da tua mãe? – Keyser soltou uma gargalhada. – Bom, não sei se ela utilizaria essa expressão, mas podes perguntar-lhe tu próprio. – Com certeza. Onde é que ela está?
– A jogar bridge com os Bradley. Chega, mais ou menos, daqui a uma hora. Queres um brandy? – A jogar bridge! – com grande rapidez, colocou-se diante do seu padrasto e agarrou-o pelas lapelas. – O que raios queres dizer com isso de que está a jogar bridge? – Eu não suporto aquele jogo – repôs Keyser, admirado, – mas sabes que Veronica adora. – Mas tu não me enviaste um telegrama sobre a minha mãe? – Um telegrama? Não preciso de te enviar um telegrama para te avisar de um jogo de bridge, rapaz. – A minha mãe não está doente? – Está forte como um cavalo, embora eu jamais utilizasse esta comparação à frente dela. Praguejando entredentes, Michael virou-se em direcção à porta. – Alguém vai pagar muito caro por isto tudo. – Para onde vais? – Vou voltar para Nova Iorque – disse sem se virar para olhar para ele, enquanto descia os degraus do alpendre. – Queres que dê algum recado à tua mãe? – Sim – parou com uma mão na porta do táxi. – Que fico contente por ela estar bem. E que espero que tenha ganhado o jogo. Keyser ficou a olhar até perder o táxi de vista. – Que rapaz tão estranho! – exclamou para o mordomo. – Se eu te dissesse que ele escreve argumentos para a televisão...
Seis
Pandora acordou às sete da manhã, quando Michael se deitou na sua cama. O colchão deu um salto. Enterrando a cabeça na almofada, fechou os olhos. – Maldito seja aquele tipo... – balbuciou. Pandora endireitou-se, assustada. Ao lembrar-se de que estava nua, tapou-se com os lençóis. – Michael! Era suposto estares na Califórnia. O que raios estás a fazer na minha cama? – A adoptar a posição horizontal, pela primeira vez em vinte e quatro horas. – Bom, pois fá-lo na tua própria cama! – ordenou-lhe, mas teve pena ao ver o seu rosto consumido pela tensão e a fadiga. – A tua mãe – agarrou-lhe numa mão. – Oh, Michael...! A tua mãe está...? – A jogar bridge. Atravessei o país inteiro para descobrir que a minha mãe estava a jogar calmamente às cartas e a beber xerez. – Então está melhor? – Sempre esteve. O telegrama era uma brincadeira de mau gosto, uma farsa – bocejou, espreguiçando-se. – Meu Deus, que noite... – Quer dizer que...? O miserável... – Sim. Estive a pensar em várias formas de vingança durante a viagem de regresso. Talvez o nosso amigo, o tipo que te destruiu o colar, tenha achado que agora era a minha vez. Agora já estamos empatados. – Enganas-te – replicou Pandora, encostando-se à cabeceira da cama e segurando o lençol debaixo dos braços. – Ontem à noite, enquanto tu estavas de viagem, eu fiquei fechada na cave. – Fechada? Como? Pandora contou-lhe, então, tudo o que acontecera desde que faltara a luz. – Trepaste as caixas? Para chegares àquela janelinha? Mas são mais de dois metros! – Sim. Já me tinha apercebido. – Podias ter partido o pescoço – recriminou-a, sisudo. – Pois, mas não parti. Só rasguei as minhas calças preferidas e fiz alguns arranhões. Michael estava furioso. Jurou a si próprio que, chegado o momento, vingar-seia com juros. – Talvez devêssemos telefonar à polícia.
– Para quê? Não podemos provar nada. Nem sequer saberíamos quem acusar. – Tenho uma regra nova – decidiu Michael. – Vamos ficar juntos. Nenhum dos dois deixará a casa de noite sem o outro. Pelo menos, enquanto não descobrirmos a identidade do nosso amigo. Pandora ia protestar, mas depois lembrou-se de como se sentira assustada... e da solidão que sentira, antes de ter ficado fechada na cave. – Está bem. Sabes uma coisa? Se tivesse de arriscar um responsável para esta última jogada... votaria no tio Carlson. Afinal de contas, ele conhece esta casa melhor do que os outros, uma vez que já viveu aqui. – Está bem, mas é só uma hipótese – Michael levantou o olhar para o tecto. – Vejamos... Biff passou aqui um Verão quando éramos crianças. – É verdade – Pandora também olhou para o tecto. O espelho do outro lado do quarto reflectia as suas imagens, muito juntos, anca contra anca. – Tinha-me esquecido disso. Ele detestava esta casa. – Nunca teve sentido de humor. – É verdade. Se bem me lembro, ele não gostava nada de ti. – Provavelmente, porque lhe pus um olho negro – repôs Michael. – Não sabia. Porque fizeste isso? – Lembras-te das rãs que encontraste na tua cómoda? Pandora fez uma expressão de asco. – Como poderia esquecer? Foi uma atitude muito imatura da tua parte. – Não fui eu, foi Biff. – Biff? – estupefacta, virou-se para ele. – Quer dizer que foi aquele canalha que colocou aquelas rãs na gaveta da minha roupa interior? – de repente, sorriu. – E tu bateste-lhe por causa disso? – Não era muito difícil. – Porque não contestaste quando eu te acusei? – Era muito mais agradável bater em Biff. De qualquer forma, ele conhece bastante bem esta casa. E acho que se começássemos a puxar pela cabeça, chegaríamos à conclusão de que a maior parte dos nossos parentes já esteve aqui, nem que fosse só por alguns dias. Também não é preciso ser-se muito astuto para se encontrar a caixa dos fusíveis. Pensa bem, Pandora. Eles são sete e cada um tem uma razão de peso para desejar que quebremos as cláusulas do testamento. Estão em jogo cento e cinquenta milhões de dólares. – Outra razão para eu não desejar esse dinheiro – reflectiu Pandora. – Até agora, só cometeram um crime de vandalismo e provocaram-nos alguns incómodos irritantes, mas bolas, Michael...! Quero que paguem por isso. Num gesto inconsciente, Michael passou-lhe um braço pelos ombros nus. E noutro gesto inconsciente, Pandora encostou-se a ele. Uma fragrância deliciosa
impregnava a sua pele. – Lembras-te da cara que Carlson fez quando o notário leu o testamento e descobriu que só lhe calhara a colecção de truques de magia do tio Jolley? – Sim. E a Biff, três caixas de fósforos – Pandora riu-se. – Jolley ainda deve estar a rir-se. – Bem podes dizê-lo. – Estás a pisar-me os lençóis com os sapatos – disse-lhe ela. – Desculpa – e descalçou-se rapidamente. – Não era isso que eu queria dizer. Não queres ir para o teu quarto? – Não. A tua cama é mais confortável do que a minha. Dormes sempre nua? – Não. – Então, estou com sorte – virando-se para ela, beijou-lhe o arranhão que tinha no ombro. – Dói-te? – Um pouco. – Coitadinha! E pensar que sempre achei que tinhas a pele dura. – E tenho. – É muito suave – interrompeu-se para lhe acariciar o braço. – Muito suave. Tens mais algum arranhão? – percorreu-lhe a curva do pescoço com os lábios, reparando no seu estremecimento rápido e involuntário. – Já teria reparado. – É que eu sou muito observador – puxou-a para si. Estava cansado e aturdido, como consequência do jet lag, mas não se esquecera de que a desejava, com loucura. – Porque não me deixas procurar – deslizou um dedo pela dobra do lençol, muito perto dos seus seios. Pandora conteve um gemido, incrivelmente excitada com aquele contacto mínimo. Não podia demonstrar-lhe... o quê? Aquilo era apenas uma ilusão. Não era real. Michael estava com ela unicamente por causa das condições do testamento do seu tio. Mas porque lhe custava tanto ter isso em mente? Tinha o seu rosto muito perto do dele, preenchendo o seu campo de visão. Conseguia ver perfeitamente todos os pormenores em que tentara não reparar nos últimos anos. A orla cinzenta dos seus olhos. O nariz recto e aristocrático. O desenho delicado dos seus lábios. – Michael... – sabia que ele estava a entranhar-se no seu pensamento. «Sê prática», ordenou a si própria. «Sê realista». – Michael, ainda faltam cinco meses... – Boa observação – precisava do seu calor. Talvez tivesse chegado o momento de se arriscar. Baixou a cabeça e começou a mordiscar-lhe suavemente os lábios. – Porquê desperdiçá-los? Pandora permitiu-se desfrutar das suas carícias. «Só por um momento»,
prometeu a si própria. O seu contacto era fascinantemente quente. A noite fora longa, fria, assombrosa. Por muito que detestasse admiti-lo, necessitara dele. E agora, enquanto o sol entrava pela janela, tinha-o ao seu lado. Perto, seguro, reconfortante. Então, foi ao encontro dos seus lábios. Michael não tencionara entrar no seu quarto. Simplesmente, sentira-se atraído, arrastado; quisera deitar-se ao seu lado e falar com ela. Nem a paixão, nem o desejo o tinham levado àquilo. Fora uma necessidade básica de se sentir confortável... com ela. Quando Pandora se aninhara contra ele, despenteada, sonolenta, fora absolutamente natural sentir aquele desejo. Quanto a ela, a paixão não ardia descontrolada, mas com uma espécie de serenidade. Mas depois de uma carícia, e mais outra, tudo mudou e o sabor do momento melhorou, intensificando-se. Ansiava ceder àquela necessidade, àquele desejo. Sabia que se o fizesse, já nada voltaria a ser como antes. A mudança seria imprevisível, de modo que tentou resistir. – Michael... – deixou que os seus dedos se entretivessem com o seu cabelo durante mais alguns segundos. – Isto não é nada inteligente. Ignorando-a, beijou-lhe os olhos fechados. – Pois eu acho que é a coisa mais inteligente que qualquer um dos dois fez em anos. – Michael, a situação já é bastante complicada por si só. Se nos tornarmos amantes e as coisas não correrem bem... como poderemos continuar juntos? Temos um compromisso com o tio Jolley. – Aquele testamento não tem nada a ver com o facto de tu e eu estarmos nesta cama. Pandora sabia que tinha de fazer um último esforço para resistir. Era agora ou nunca. – Mas tem tudo a ver com o facto de estarmos nesta casa. Se dormirmos juntos e a nossa relação mudar, teremos de lidar com todos os problemas e complicações que isso nos possa causar. – Diz-me alguns. – Não me faças rir, Michael. – Não era essa a minha intenção – gostava da forma como olhava para ele: recostada na almofada, com os cabelos espalhados como uma cascata de fogo, levemente corada. – Desejo-te, Pandora. Não há nada engraçado nisso. Dentro de si, deu-lhe razão. Mas sabia que não falava a sério. Não podia falar a sério, por muito que ela quisesse acreditar. – Não nos podemos tornar amantes, sem mais nem menos. Se formos falar sobre isso...
– Eu não quero falar sobre isso – beijou-a outra vez. – Não estamos a tratar de uma fusão de empresas, Pandora. Estamos a fazer amor. – Exactamente! – teve de lutar contra uma verdadeira avalanche de desejo. «Sê prática», pensou novamente. Precisava de se agarrar àquele pensamento. – É como se fôssemos sócios num negócio. Pior ainda, somos sócios num negócio familiar, pelo menos durante os próximos meses. Se mudarmos isso agora... – Precisas sempre de tantas garantias? – interrompeu-a. – É preciso analisar as coisas, a partir de todos os pontos de vista – replicou, um pouco irritada. – É uma questão de bom-senso. – Por acaso é preciso preencher um formulário para te tornares minha amante? – Não sejas parvo, Michael. – Prefiro ser parvo a ter o teu bom-senso – fulminou-a com o olhar, impaciente. – Tu nunca tiveste bom-senso! – exclamou ela. – Porque se tivesses, porque haverias de te exibir por aí com cada loira de busto generoso que encontras pelo caminho? Nem sequer tens a decência de ser discreto. – Está bem, já que falas nisso... – sentou-se na cama. A doçura desaparecera do olhar de Pandora. Naquele momento, estava a deitar fogo pelos olhos. – Não te esqueças das morenas, nem das ruivas. Não se esquecera. E prometeu a si mesma que nunca o esqueceria. – Não quero falar disso. – Foste tu que puxaste o assunto. Estive com mulheres. Sou culpado. E gostei de estar com elas. – Não precisas de me dizer isso. – E não me pus a falar com nenhuma delas antes de fazermos amor. Há mulheres que preferem o prazer recíproco. E o romantismo. – Romantismo, dizes tu? – Pandora arqueou os sobrolhos. – Eu não lhe chamaria assim. – Tu não reconhecerias o romantismo nem que te batessem com ele na cabeça. Achas «discreto» ter amantes e fingir que não os tens? Reclamar fidelidade cega a uma pessoa enquanto te dedicas a outra? O que tu chamas discrição, eu chamo hipocrisia. Não me envergonho de nenhuma das mulheres que conheci, nem na cama, nem fora dela. – Não me interessa aquilo de que possas envergonhar-te, ou não. Eu não vou ser a tua próxima diversão. Guarda os teus ardores para as tuas modelos, bailarinas e coristas. Não tenho intenção de me perder nessa multidão. – Estás a elogiar-me, prima. – Há outra palavra para esses teus interesses. – Vê se percebes uma coisa! – olhou-a directamente nos olhos. – Nunca fiz amor com nenhuma mulher de quem não gostasse e que não respeitasse – e
levantou-se bruscamente, deixando-a sozinha na cama. E furiosa. – Parece-me que o respeito é uma coisa que tu ofereces por aí com uma generosidade suspeita. – Não – replicou, virando-se para olhar para ela. – Mas também não submeto as pessoas a um exame antes de o dar. Uma guerra fria podia não ser tão estimulante como uma batalha ardente, mas era igualmente destrutiva. Durante dias, Pandora e Michael andaram a esquivar-se e a atacar-se subtilmente. Se um deles fazia um comentário sarcástico, o outro respondia de forma igual. Nenhum deles recorria a um ataque aberto, frontal. E tudo isso sob o olhar irónico e recriminatório dos dois empregados. – Estupidez! – murmurou Sweeney, enquanto preparava duas tartes de maçã. – Pura estupidez! – era uma mulher rosada, forte, robusta. Era o contrário de Charles. Tinha enterrado dois maridos e trabalhava há anos como cozinheira. A sua cozinha estava sempre limpa e arrumada. – Meninos malcriados, é o que eles são. Meninos malcriados que precisam de uma boa tareia. – Faltam quatro meses – indicou Charles com tom pesaroso. Estava sentado à mesa da cozinha, a beber chá. – Não vão conseguir. – Sim! Vão conseguir, sim. São muito teimosos, mas isso não chega. – O senhor queria que ficassem com a casa. E desde que eles fiquem com ela, nós não a perderemos. – O que raios faremos nós neste casarão enorme quando os dois voltarem para a cidade? Com que frequência virá algum deles a esta casa, agora que o tio deles já não existe? O senhor desejava que ficassem com a casa, é verdade. Mas também queria que eles ficassem juntos. Esta casa precisa de uma família. – Pois devias tê-los ouvido ao pequeno-almoço – comentou Charles, bebendo um gole de chá. – Isso não quer dizer nada. Eu vi com os meus próprios olhos a forma como se olhavam. Só precisam de um empurrãozinho. E vamos dá-lo. – Já não temos idade para andar a empurrar as pessoas. Sweeney virou-se para ele, com as mãos nas ancas. – Acabaste de me dar uma ideia. Ultimamente, tens andado a sentir-te muito mal... – Já passou. Esta semana sinto-me muito melhor e... – Ultimamente, tens andado a sentir-te muito mal e tens tido muitos achaques, percebes? – insistiu, carrancuda. – Olha, Pandora vem aí! – informou-o ao dirigirse para a janela. – Ainda bem que hoje se dignou a comer. Parece um pouco pálida.
Nevara durante a noite. Flocos grandes e espessos tinham solidificado no chão e nos ramos das árvores. Pandora atravessava o jardim em direcção à casa, satisfeita consigo própria. Os brincos tinham ficado tão bem que até desenhara um colar a condizer. Se mantivesse aquele ritmo, no Natal teria um catálogo vasto. Quando abriu a porta da cozinha, estava faminta. E de bom humor. – Se não te sentires melhor, dentro de um dia ou dois, eu... – estava Sweeney a dizer a Charles, antes de se virar para Pandora, aparentemente surpreendida de a ver. – Oh! Não sabia que era tão tarde. Já está na hora do almoço e eu ainda estou a fazer as tartes. – Tartes de maçã? – Pandora aproximou-se, a sorrir. Mas Sweeney notou, satisfeita, que já estava a olhar para Charles com uma expressão preocupada. – Venha, lave as mãos no lava-loiça e sente-se à mesa. Assim o fez. Aproveitando o barulho da água, perguntou à cozinheira, em voz baixa: – Charles não está bem? – Este tempo tão frio é um problema para ele. Embora, provavelmente, o problema seja a idade – levou uma mão aos rins, com uma expressão de dor. – Acho que nós os dois já não somos os mesmos. Achaques e mais achaques – suspirou. – É o peso da idade. – Ora, que tolice! – replicou Pandora. Continuou a lavar as mãos, preocupada. Pensou que deveria estar mais atenta a Charles. – O problema é que se esforçam demasiado. – E agora com o Natal... – interrompeu-se Sweeney. – Bom, decorar a casa dá muito trabalho, mas é muito gratificante. Esta tarde, Charles e eu traremos as caixas do sótão. – Nem pensar! – Pandora fechou a torneira e agarrou numa toalha. – Eu trarei as caixas dos enfeites. – Não, menina McVie, Sweeney e eu traremos as caixas – interveio Charles. – Já disse que não! Michael e eu traremos tudo esta tarde e acabou-se a conversa. Vou avisá-lo que o almoço já está pronto. Sweeney esperou que saísse antes de esboçar um sorriso triunfal. Pandora bateu duas vezes à porta do escritório de Michael, antes de entrar. Continuava a escrever. Colocou-se à frente da sua secretária, cruzando os braços. – Preciso de falar contigo. – Volta mais tarde. Agora estou ocupado. – É importante – recordando a voz cansada de Sweeney, engoliu a sua fúria. Teve de cerrar os dentes, mas por fim disse: – Por favor. Surpreendido, Michael parou a meio de uma frase.
– O que é? Alguém da família voltou a sabotar-nos? – Não, não é isso. Michael, temos de decorar a casa para o Natal. Ficou a olhar por um momento, praguejou entredentes e começou novamente a trabalhar. – Neste momento, tenho um menino de doze anos que foi raptado e pedem um milhão de dólares pelo resgate dele. Isto, sim, é importante! – Michael, importas-te de deixar o teu mundo de fantasia por um minuto? Isto é a sério. – E isto, também. Pergunta ao meu produtor. – Michael! – antes que ele pudesse evitá-lo, arrancou-lhe a folha da máquina de escrever. – Trata-se de Sweeney e de Charles. – O que se passa com eles? – arrebatou-lhe a folha. – Charles está muito fraco e tenho a certeza de que Sweeney também não está bem. Pareceu-me, não sei... velha. – É o que ela é. Achas que devíamos chamar um médico? – Não, ficariam zangados – contornou a secretária, disfarçadamente. Na verdade, estava a tentar ler parte do que escrevera. – Preferia estar atenta durante alguns dias e certificar-me de que não se esforçam. E é aqui que entra a parte da decoração de Natal. – Já imaginava. Olha, se quiseres decorar a casa, decora. Mas hoje não tenho tempo para isso. – Eu também não – cruzou os braços. – Mas Sweeney e Charles estão empenhados em decorar a casa. E se não quisermos vê-los a subir e a descer as escadas do sótão, teremos de ser nós a fazê-lo. – Faltam três semanas para o Natal. – Eu sei – repôs. – Mas isto é importante para eles. É a tradição. – Está bem, está bem – sentindo-se encurralado, Michael levantou-se da secretária. – Vamos lá. Vamos despachar isso. – Depois do almoço – e saiu, satisfeita por ter levado a sua avante. Três quartos de hora depois, Michael e ela abriam a porta do sótão, uma divisão suficientemente grande para albergar uma família numerosa. – Oh! Tinha-me esquecido como este lugar é maravilhoso – entusiasmada, agarrou-lhe na mão e puxou-o. – Olha para esta mesa! Não é horrível? Realmente, era! Antiga, decorada com cornucópias e cupidos, ficara relegada para um canto. – E a gaiola feita com paus de gelado. O tio Jolley dizia que tinha demorado seis meses a acabá-la. Depois não teve coragem de colocar um pássaro lá dentro. – Fico contente pelo pássaro – murmurou Michael. – Polainas! – tirou algumas de uma caixa. – Já viste?
– E este chapéu... – Pandora encontrou um chapéu redondo enorme. – Era da tia Katie. Quem me dera tê-la conhecido. O meu pai dizia que era tão divertida como o tio Jolley. Michael viu como Pandora colocava o chapéu. – E o que me dizes disto? – mostrou-lhe um chapéu de coco, preto. – Fica-te muito bem – comentou ela, a rir-se. – Só te falta uma bengala e um colarinho branco para fazeres de Charlot. Estás a ver? – aproximou-o de um grande espelho de pé e olharam-se divertidos. – Que casal tão elegante! O chapéu assenta-te que nem uma luva – virou-se para ela para lho inclinar um pouco. – Sobretudo com o cabelo solto. Sabes uma coisa? Sempre gostei de te ver com o cabelo comprido. Embora me lembre de te ver com ele curto, o que te dava um ar de inocência muito atraente... – Tinha quinze anos. – Pois! E vinhas das ilhas Canárias, com as pernas mais bonitas e bronzeadas que já tinha visto em toda a minha vida. Quase me engasguei com a comida quando te vi entrar na sala. – Tu já andavas na universidade e tinhas uma cheerleader pendurada no braço. – As tuas pernas eram melhores – Michael sorriu. Pandora lembrava-se perfeitamente daquela visita. Mas surpreendia-a, e agradava-lhe, que ele também se lembrasse. – Surpreende-me que tivesses reparado nelas. Ou que ainda te lembres. – Já te disse que sou muito observador. Pandora assentiu. Sabia que estavam a andar em terreno perigoso... – Bom, é melhor começarmos a tirar as decorações. Sweeney disse-me que as caixas estão no fundo, à esquerda – sem esperar por ele, deu meia volta e começou a procurá-las. – Oh, meu Deus! – parou ao ver o monte de caixas: vinte, talvez vinte e cinco. – Achas que devíamos contratar alguém? – Arregaça as mangas. Uma hora depois, cansados e suados, pousaram as últimas caixas na sala. Ignorando o pó das suas calças, Pandora deixou-se cair na cadeira mais próxima. – O mais divertido vai ser voltar a arrumá-las depois do Ano Novo. – Não me digas nada. Pandora ajoelhou-se no chão e abriu a primeira caixa. Experimentaram as luzes, desenrolaram as fitas e começaram a pendurá-las. Quando acabaram a sala, o hall e as escadas, contemplaram a sua obra. A fita, branca e prateada, serpenteava todo o corrimão. – Ficou óptimo! – decidiu Pandora. – Como é óbvio, Sweeney e Charles vão querer decorar os quartos dos empregados, e essa caixa inteira de lâmpadas irá
para a sala de jantar, mas para começar não está nada mal. – Para começar, estás tu a dizer? – Michael sentou-se nas escadas. – Isto não é um concurso, prima. – Estas coisas têm de ser bem-feitas. E agora, a árvore. Vamos buscá-la. – Queres ir agora à cidade? – Claro que não! – já estava a tirar os casacos do armário do hall. – Vamos buscá-la ao bosque. – Tens intenção de cortá-la? Não contes comigo. – Nem penses nisso! Detesto que as pessoas cortem as árvores e depois as deitem fora, depois de o Natal acabar. O bosque está cheio de pequenos abetos, muito bonitos. Tiramos um da terra e voltamos a plantá-lo quando acabar a época. – És assim tão hábil com a pá? – Não sejas desmancha-prazeres – atirou-lhe o casaco e vestiu o seu. – Vai fazer-nos bem respirar um pouco de ar fresco depois de termos estado metidos neste sótão. Quando acabarmos, podemos beber rum quente. Quando saíram foram à garagem. Michael pegou em duas pás e entregou-lhe uma, que aceitou sem pestanejar, e entraram no bosque. – Eu adoro isto – confessou-lhe ela, com a pá ao ombro. – Este silêncio, este sossego... Sabes uma coisa? Às vezes, acho que preferia viver aqui e ir de vez em quando à cidade, e não ao contrário. Michael pensara o mesmo, mas surpreendeu-se ao ouvi-lo vindo dela. – Sempre pensei que gostasses do barulho e da agitação da cidade. – E gosto. Mas também gosto disto. O que achas deste? – parou à frente de um abeto pequeno. – Não, o tronco está muito torto – continuou a andar. – Além disso, pergunto-me se não seria mais interessante passar, de vez em quando, uma semana na cidade, sabendo que se tem um lugar como Folley para onde se voltar. Acho que trabalharia melhor aqui. Este serve. – É muito alto. É melhor levarmos um mais pequeno. Mas isso não representaria um impedimento para a tua vida social? – O quê? – observou a árvore e não pôde deixar de concordar com ele. – Ah! A minha vida social não é uma prioridade, o meu trabalho sim. De qualquer forma, aqui também poderia distrair-me. Michael imaginou-a a passar fins-de-semana com intelectuais extravagantes que lessem Keats em voz alta. – Este sim, pode servir-nos – Pandora parou à frente de outro abeto. – Caberá perfeitamente na sala. – Então, mãos à obra! – enfiou a pá na neve. No momento em que estava a baixar-se, Pandora atirou-lhe uma pá cheia de neve para a cara.
– Oh, desculpa! – sorriu, maliciosa. – Acho que apontei mal – e começou a cantarolar enquanto trabalhava. Michael não ripostou, provavelmente porque tivera a mesma ideia e ela adiantara-se-lhe. Quinze minutos depois acabaram de escavar o buraco. – Já está! – ofegando, Pandora apoiou-se sobre a pá. – A satisfação de um trabalho bem feito. – Agora só temos de o levar para casa, plantá-lo e... Bolas! Precisamos de alguma coisa para envolver as raízes e a terra agarrada. Na garagem havia sacos... Olharam-se à espera que algum reagisse. – Está bem, eu vou – ofereceu-se Michael. – Mas depois vais ter de varrer a terra que cair no chão da sala. – Negócio fechado. Satisfeita, Pandora virou-se para observar um passarinho, quando sentiu uma bola de neve na sua nuca. – Oh, desculpa! – Michael sorriu. – Apontei mal – e partiu calmamente para a garagem, a assobiar. Pandora esperou até o perder de vista, antes de se ajoelhar na neve e começar a fazer bolas. Calculou que, quando Michael voltasse, teria uma boa quantidade em cada bolso. Levou o seu tempo a fazer cada bola. De repente, ouviu um barulho atrás de si. Já tinha uma bola na mão e virou-se pronta para a atirar. Mas não havia ninguém. Semicerrando os olhos, esperou. Detectou um movimento entre as árvores. Provavelmente Michael teria dado a volta com a intenção de a surpreender. Viu que o passarinho voara, como se alguma presença o tivesse assustado. – Não sejas covarde. Vá, sai daí! – Olá! – cumprimentou-a Michael, aparecendo de repente, atrás de si. Pandora virou-se com tanta rapidez que escorregou e bateu com o rabo no chão. A sorrir, ele deixou cair o saco sobre o seu colo. – Mas não estavas...? – interrompeu-se e olhou novamente por cima do seu ombro. – Deste a volta? – Não, mas a julgar pelo teu monte de bolas, devia tê-lo feito. Queres guerra? – Era só uma táctica defensiva – mentiu. – Pareceu-me ouvir-te antes. Era capaz de jurar que havia alguém atrás daquelas árvores. – Pois eu vim directamente da garagem, em linha recta. Estás a dizer que viste alguma coisa ali? – olhou também naquela direcção. – Michael, se isto for alguma brincadeira... – Não – interrompeu-a, ajudando-a a levantar-se. – Vamos dar uma olhadela. Pandora não lhe largou a mão enquanto entravam no meio das árvores.
– Talvez estivesse um pouco nervosa... – Ou à espera que eu aparecesse por detrás. – Isso também. Deve ter sido um coelho. – Um coelho com os pés muito grandes – murmurou Michael, enquanto examinava as pegadas. Destacavam-se claramente na neve. – Embora os coelhos não usem botas. – Portanto, continuamos a ter companhia. Estava a começar a pensar que se tinham dado por vencidos – apesar do seu tom ligeiro, estava inquieta. – Talvez tenha chegado a altura de falar com Fitzhugh. – Talvez. Mas entretanto... – o som de um motor interrompeu-o. Começou a correr muito depressa, seguido de Pandora. Cinco minutos depois chegaram, ofegantes e a suar, a um caminho florestal onde se destacavam nitidamente as marcas dos pneus de um veículo. – Parecem de um todo-o-terreno. Praguejando entredentes, enfiou as mãos nos bolsos. Se tivesse voltado antes da garagem talvez tivesse conseguido apanhar aquele intruso. Ou, pelo menos, ter visto quem era. – Seja quem for, está a perder o tempo dele – resmungou Pandora, a suspirar. – Eu não gosto nada que me espiem – frustrado, observou as marcas que se dirigiam para a estrada principal. – E não vou andar a jogar ao gato e ao rato durante os próximos quatro meses. – O que vamos fazer? – Vamos contar a Fitzhugh que temos intrusos a incomodar-nos. E que decidimos utilizar a velha espingarda de Jolley. – Michael! Talvez sejam um problema, mas continuam a ser nossos parentes. Não podes disparar contra eles... – Prefiro disparar contra um parente meu do que contra um desconhecido – replicou, encolhendo os ombros. – E tenho a certeza de que, se estivessem na nossa situação, não hesitariam, nem um segundo, em apertar o gatilho. – Eu não gosto nada disso. As armas trazem sempre problemas. – Tens alguma ideia melhor? – Vamos comprar um cão. Um cão de guarda grande. – Fantástico! Soltamos o cão para que crave os dentes nalgum dos nossos parentes preferidos. Isso vai ser melhor que levar um tiro. – Michael! – Mas a primeira coisa a fazer é telefonar a Fitzhugh. – E seguir os seus conselhos? – quis saber Pandora. – Claro! Se nos agradarem. Ia protestar, mas depois desatou a rir-se. Aquilo tudo parecia tão ridículo e absurdo como os argumentos que Michael escrevia para a televisão.
– Parece-me razoåvel. E agora, vamos levar o abeto para casa.
Sete
– Eu sei que é véspera de Natal, Darla – Michael levantou a sua chávena de café e reparou que estava vazia. E a cafeteira também. Suspirou. O problema daquela mansão era ser preciso percorrer um quilómetro até à cozinha para fazer uma cafeteira. – E também sei que vai ser uma festa fantástica, mas não posso ir. Aquilo não era totalmente verdade, pensou Michael enquanto Darla lhe dizia como a festa iria ser maravilhosa. Toda a gente iria. Aquilo significava uma festa com os convidados apertados e muita bebida. Bem podia ir até à cidade e beber alguns copos com os seus amigos. Ia muito adiantado no seu plano de trabalho. Tanto que até podia tirar uma semana livre. Mas a verdade era que não queria sair dali. – Obrigado e cumprimenta toda a gente por mim. Está bem, querida, talvez no Ano Novo, se conseguir. Obrigado, está bem. Sim, sim. Adeus. Desligou o telefone, aliviado. Darla conseguia ser muito divertida, mas não estava habituado a uma mulher que fosse tão insistente, sobretudo uma com quem saía apenas de vez em quando. E a verdade era que o seu interesse por ele tinha demasiado a ver com a influência que ele podia exercer sobre alguns agentes famosos de casting. Não a condenava, de forma alguma. Darla tinha talento e ambição, uma mistura fundamental para se triunfar no pequeno ecrã. Depois das férias telefonaria a alguns conhecidos seus, para ver o que se podia fazer... Da soleira, Pandora observava Michael. «Darla», repetia para si. Sempre imaginara que as amantes dele teriam nomes como Darla, Robin ou Candy. Mulheres bonitas, sofisticadas e, de preferência, sem nada na cabeça. – A popularidade é tão enfadonha... não é, querido? Michael virou-se na sua poltrona. – E ouvir atrás das portas é tão feio... Pandora encolheu os ombros, sem entrar. – Se quisesses intimidade, terias fechado a porta – arqueou um sobrolho. – De qualquer forma, não me interessam as tuas conversas. Só vim para poupar Charles de ter de subir as escadas. Tens uma encomenda lá em baixo. – Obrigado – não se incomodou em disfarçar o seu divertimento ao ouvir o seu tom. Conhecendo Pandora como conhecia, sabia que estivera a ouvir a sua conversa até à última palavra. – E eu que pensava que estas eram as tuas horas sagradas de trabalho... – Alguns de nós programam o seu trabalho tão bem que podem dar-se ao luxo
de tirar algum tempo livre durante esta época. Mas não, não vamos discutir agora – levantou uma mão, adiantando-se à sua resposta. – Afinal de contas, amanhã é Natal e já estamos há três semanas em paz e tranquilidade sem que nenhum parente nosso nos tenha incomodado. Proponho-te uma trégua – acrescentou, a sorrir. – Porquê? – Digamos que sou uma adepta da época natalícia. Além disso, fico contente por não termos sido obrigados a comprar um cão de guarda feroz ou uma caixa de cartuchos para a espingarda do tio Jolley. – Por enquanto – recordou-lhe Michael. – A ideia de Fitzhugh de avisar a polícia local sobre a presença de intrusos na propriedade, assim como de espalhar o rumor de que está em curso uma investigação oficial, talvez esteja a resultar apenas provisoriamente. Ou talvez os nossos parentes tenham feito uma pequena pausa. De qualquer forma, eu não vou relaxar. – Sim. Preferes partir o nariz de alguém a resolver as coisas da forma mais calma possível. Não importa. Eu pretendo passar o Natal sem pensar uma única vez na minha família – interrompeu-se, brincando com o colar de ouro e ametistas que tinha ao pescoço. – Deduzo que Darla tenha ficado muito decepcionada... – Ela há-de recuperar. Podes ficar descansada. Pandora torcia o colar sem parar. Era o tipo de atitude nervosa que Michael nunca teria esperado dela. – Michael, sabes que não precisas de ficar. Por mim, podes passar esta época, calmamente, em Nova Iorque. – Regra número oito – recordou-lhe. – Estamos juntos nisto e tu própria já recusaste, pelo menos, meia dúzia de convites. – A escolha foi minha – voltou a brincar com o colar. – Não quero que te sintas obrigado a... – A escolha é minha – interrompeu-a. – Ou será que, de repente, decidiste que sou um tipo cavalheiresco e desinteressado? – Claro que não! – exclamou, mas imediatamente esboçou um sorriso. – Prefiro pensar que és demasiado preguiçoso para ir até à cidade. Michael abanou a cabeça, também a sorrir. – Não tenho qualquer dúvida. Arqueou um sobrolho ao ver que se demorava a sair, como se quisesse dizerlhe alguma coisa e não se atrevesse. – Michael... reagirias de forma detestável se... se te dissesse que fico contente que fiques? – Talvez. – Então não to direi – e, sem dizer mais nada, saiu.
«Que mulher contraditória!», pensou Michael. Estava quase louco por ela. Não conseguia imaginar duas pessoas com menos inclinação para a coexistência pacífica e ainda menos para a harmonia. E no entanto... e no entanto estava a um passo de ficar louco por ela. Consciente de que já não conseguiria continuar a trabalhar, levantou-se da sua secretária e seguiu-a escada abaixo. Encontrou-a na sala, a mexer e a remexer nas prendas que havia debaixo da árvore. – Tenho a certeza de que já as observaste de todos os ângulos. – Todos! – não se virou. Se o tivesse feito, talvez se tivesse apercebido de como ela estava contente por ele ter descido. – A única que não consigo encontrar é a tua. – E quem te disse que eu tenho uma prenda para ti? – perguntou-lhe, sorridente. – Se não tivesses, seria uma falta de educação imperdoável. – Com certeza! – baixou-se para ver as prendas. – Quem é Boris? – levantou uma pequena caixa, embrulhada num papel prateado e com um laço vermelho. – Um violoncelista russo. É um admirador dos... meus botões de punho de ouro. – Não duvido. E Roger? – Roger Madison. Michael ficou de boca aberta, mas apenas por um instante. – O batedor de basebol dos Yankees? – Exactamente. Talvez já tenhas reparado na pulseira de prata que usa na mão direita. Fi-la em Março passado. Diz que lhe dá sorte quando bate, ou algo do género – apontou para uma caixa azul e dourada. – Costuma ser muito generoso. – Entendo. Não me parece que tenhas recebido muitas prendas de mulheres. – Achas? Contigo é ao contrário, não é? Quem é Chichi? – inquiriu, lendo o cartão de uma caixa com um grande laço cor-de-rosa. – É bióloga marinha. – Interessante. E imagino que Magda seja bibliotecária. – Advogada de uma empresa muito conhecida – explicou com tom indiferente, como se não quisesse dar-lhe importância. – Hum... Bom, quem te enviou este, obviamente é muito tímida – levantou uma garrafa grande de champanhe, com um laço vermelho brilhante. No cartão lia-se «Boas Festas, Michael», sem mais nada. Michael observou o presente com uma expressão aprovadora. – Alguém que não quer exibir a sua generosidade. – E tu? – olhou para ele, inclinando a cabeça. – Estás a pensar partilhá-la? – Com quem?
– Já devia ter imaginado – pegou numa caixa de bombons, que tinha o seu nome. – Só por causa disso, vou comer esta caixa de bombons importados sozinha. – Como sabes que são bombons? – Henri oferece-me sempre bombons – sorriu. – Importados? – Da Suíça. – Pensando bem, acho que vou partilhar. – Vou pôr o champanhe no frigorífico... Várias horas depois, Pandora ligou as luzes da árvore de Natal. Tal como Michael, não sentia falta alguma das festas barulhentas e elegantes da cidade. Era ali que queria estar. Só precisara de algumas semanas para se aperceber de que não estava tão ligada ao ritmo da cidade como pensava. Folley era o seu lar. E não fora sempre? Não, já não pensava em voltar para Manhattan na Primavera. Mas como seria viver sozinha naquela mansão enorme? Michael não ficaria ali. Naturalmente, daí a alguns meses ele possuiria metade da casa, mas a sua vida, incluindo a sua vida social, estava na cidade. E ela ficaria zangada consigo própria devido à tristeza que a sua partida lhe provocaria. Mas porque haveria de ficar?, interrogou-se enquanto se levantava para atiçar o fogo da lareira. Não podiam continuar a viver juntos indefinidamente. Mais cedo ou mais tarde, teria de lhe comunicar a sua decisão de ficar ali. E, ao fazê-lo, deveria explicá-la a si mesma. Não seria fácil. Durante aquele tempo todo, talvez tivesse discutido diariamente com Michael, mas ao longo daquelas semanas a sua vida adquirira mais energia e interesse. E era isso que lamentava, e detestava, perder. Não conseguira resistir à sua atracção. Michael não era o seu tipo, nem ela era o dele. Ele preferia um tipo de mulher mais exótica, mais sofisticada: actrizes, bailarinas, modelos... Ela, por outro lado, preferia homens mais intelectuais. Homens que conseguissem passar horas a falar de escritores franceses ou apreciar peças de teatro inovadoras e extravagantes. A maior parte deles não teria sabido dizer se Logan’s Run era um programa de televisão ou um restaurante no Soho. O facto de sentir um certo desejo primário por Michael não deveria preocupá-la muito. Não valia a pena fazer uma tempestade num copo de água, pensou enquanto arrumava o atiçador. De repente, um cãozinho branco, ainda bebé, entrou na sala. Era lindo! A ladrar como um louco, deitou-se no tapete e começou a rolar sobre si mesmo, a brincar. Pandora levantou-se para o acariciar e recebeu como recompensa uma
lambidela carinhosa na cara. – De onde é que tu saíste? – perguntou, a rir-se. Viu que havia um cartão pendurado no laço vermelho que tinha ao pescoço. Dizia: Chamo-me Bruno e sou um cão de guarda feroz, disposto a defender a minha dona. – Com que então Bruno, eh? – a rir-se novamente, acariciou-lhe as orelhas compridas. – És muito feroz, tu? – Gosta especialmente de atacar parentes descontentes – disse Michael, enquanto entrava a empurrar um carrinho com o champanhe. – Está treinado para perseguir qualquer um que use um fato Armani. – Eu acrescentaria uns sapatos italianos. – Está bem. Incrivelmente comovida com aquele gesto, continuou a acariciar o cãozinho. Não sabia como agradecer-lhe. – Não é nada feio – murmurou. – Foi o que me disseram. – Onde o arranjaste? – No canil – sem parar de olhar para ela, tirou a prata do champanhe. – Quando, na semana passada, fui à cidade e te deixei abandonada no supermercado. – E eu que pensava que tinhas ido comprar revistas pornográficas! – Vejo que a minha reputação me precede. De qualquer forma, fui ao canil e dei uma vista de olhos. Bruno mordeu outro cão... numa zona sensível, com a intenção de dar nas vistas. Depois sorriu-me com uma falta de dignidade que me desarmou. Soube então que era o escolhido. Naquele preciso momento, saltou a rolha e o champanhe jorrou, caindo um pouco no chão. Bruno saltou do colo de Pandora e começou a lambê-lo avidamente. – Talvez as suas maneiras deixem um pouco a desejar... mas tem um gosto excelente – levantou-se, esperando que Michael servisse os dois copos. – Bolas! Tiveste um gesto maravilhoso... – De nada – sorriu, estendendo-lhe o copo. – Facilitas-me muito mais as coisas quando és mal-educado e intolerável. – Faço o que posso – brindou com ela. – Quando és tão carinhoso... custa-me muito evitar fazer... alguma estupidez. Michael parou com o copo a meio caminho dos lábios.
– Como por exemplo? – Como esta. Largou o seu copo, depois tirou-lhe o dele e colocou-o em cima da mesa. Olhando-o nos olhos, rodeou-lhe o pescoço com os braços. Por último, com uma lentidão deliciosa, acariciou-lhe os lábios com os seus. Michael apoiou as mãos sobre os seus ombros, sem a pressionar. Talvez ambos tivessem chegado, finalmente, à conclusão de que a pressão e a insistência não levavam a nada. Quando Pandora dava, ou se entregava, fazia-o de livre vontade e não como consequência de alguma sedução. Não era submissão o que ele desejava. Nem o que procurava. Com ela, encontrava o que nunca procurara. O seu cheiro envolvia-o, enchendo-o de desejo. Pandora não resistiu às suas carícias. Tinha a sensação de que já o fizera antes, a vida inteira. Já estava na altura de o reconhecer. As perguntas viriam depois. Afastou-se, sorrindo-lhe. – Sabes uma coisa? Quando te beijo, não te vejo como meu primo. – A sério? – mordiscou-lhe delicadamente o lábio inferior. Tinha uma boca incrivelmente excitante. – E como me vês? – Ainda não percebi bem. – Então talvez devêssemos tratar nisso – ela afastou-o suavemente de si, notando a sua resistência. – Dado que tu quebraste a tradição ao entregares-me a minha prenda antes do tempo, eu farei o mesmo – dirigiu-se para a árvore e pegou numa caixa quadrada e espalmada. – Feliz Natal, Michael! Sentou-se no braço de uma poltrona para a abrir, enquanto Pandora pegava no seu copo de champanhe. Bebeu um gole pequeno, observando, um pouco nervosa, a sua reacção. – Não é uma prenda tão original como um cão de guarda – comentou, encolhendo os ombros, quando Michael rasgou o papel e não disse nada. Ficou a olhar para o desenho do seu tio sem saber o que dizer. A moldura fora feita por ela: era de prata, profusamente decorada, muito ao gosto de Jolley. Mas fora o desenho o que o deixara sem fala. Ela apanhara a postura e a expressão do seu tio como melhor se lembrava dele. De pé, um pouco despenteado, esboçando um sorriso de orelha a orelha. Notava-se que aquele desenho fora feito com carinho, talento e humor: as qualidades que Jolley sempre mais admirara. Quando levantou o olhar, Pandora continuava à espera da sua reacção, nervosa. – É o melhor presente que já recebi na minha vida. – A sério?
– A sério – estendeu uma mão para ela. A sorrir, voltou a admirar o desenho. – É ele! – É como me lembro dele – entrelaçou os dedos com os dele. Naquele preciso instante teve a inequívoca sensação de que era o próprio Jolley quem os unia, quem os aproximava um do outro. Quase não podia acreditar. – Pensei que tu também haverias de te lembrar dele assim. A moldura é muito extravagante. – Como Jolley teria gostado – observou-a com mais atenção. A prata, com os seus relevos de espirais e voltas, tinha um brilho apagado. Em qualquer loja de antiguidades teria passado por uma relíquia de família. – Não sabia que fazias este tipo de coisas. – De vez em quando. As lojas encomendam-me – de repente, olhou à sua volta. – Hei, onde se meteu Bruno? – Provavelmente, escondeu-se atrás da árvore, para comer as prendas. Durante a sua breve estadia na garagem comeu alguns sapatos de golfe. – Vamos ter de acabar com isso – Pandora levantou-se para ir buscá-lo. – Sabes uma coisa? Não fazia ideia de que desenhavas tão bem – recostou-se na poltrona, observando novamente o desenho. – Porque não te dedicas a pintar? – Porque não te dedicas a escrever um grande clássico da história da literatura? – Porque gosto do que faço. – Eu também – uma vez que o cãozinho não estava atrás da árvore, começou a procurá-lo debaixo dos móveis. – Embora tenha havido muitos pintores que, ocasionalmente, se tenham dedicado ao desenho de jóias. Dalí, por exemplo. Acho que... Michael! Michael baixou o copo antes de o levar aos lábios e apressou-se a juntar-se a ela. Estava ajoelhada ao lado do sofá. – O que se passa? – perguntou, até que ele próprio viu. O cãozinho jazia no chão, debaixo do sofá. Tinha os olhos fechados e a respiração acelerada. Quando Pandora se inclinou sobre ele, soltou um gemido e tentou levantar-se. – Oh, Michael, está doente! Temos de o levar a um veterinário. – Não chegaríamos à cidade antes da meia-noite. E a essa hora, sendo véspera de Natal, não encontraríamos um único veterinário aberto – pousou suavemente uma mão sobre a barriga do cãozinho, que gemeu novamente. – Talvez consigamos falar com algum pelo telefone. – Achas que pode ter sido alguma coisa que ele tenha comido? – Sweeney esteve a controlar a dieta dele como uma mãe – viu que Bruno se resignava a permanecer deitado, exausto. – Talvez alguma coisa que tenha bebido... – Aquele bocadinho de champanhe não pode ter-lhe feito assim tão mal – pronunciou Pandora enquanto o acariciava, cheia de pena. Quando viu que o
cãozinho parecia dormir calmamente, relaxou um pouco. – Charles não vai gostar nada que tenha vomitado no tapete. Talvez devesse... Interrompeu-se quando Michael lhe agarrou num braço. – Quanto champanhe bebeste? – Só um gole... – de repente, abriu muito os olhos. – O champanhe... achas que tinha alguma coisa...? – Acho que sou um estúpido por não ter suspeitado antes daquela prenda misteriosa – pegou-lhe no queixo. – Só um gole. Tens a certeza? Como te sentes? – Bem – respondeu. – Olha para o meu copo. Ainda está cheio. Achas... achas que está envenenado? – É o que vamos descobrir. – Mas Michael, a garrafa estava por abrir – abanou a cabeça. – Como é possível...? – Na minha primeira temporada de Logan’s Run utilizei um truque parecido. O assassino envenenava uma garrafa de champanhe, introduzindo cianeto pela rolha com uma agulha hipodérmica. – Fantasia – pronunciou Pandora, reprimindo um estremecimento. – Pura fantasia. – Até descobrirmos outra coisa, vamos ter de investigar esta hipótese. Vamos enviar a garrafa para os Laboratórios Sanfield, em Nova Iorque, para a analisarem. – Está bem, acho que é o que devemos fazer – engoliu em seco, nervosa. – Conheces alguém que trabalhe lá? – Os Laboratórios Sanfield são nossos – recordou-lhe, baixando o olhar para o cãozinho. Adormecera profundamente. – Ou, pelo menos, serão daqui a alguns meses. – Michael, se o champanhe foi envenenado... – tentou imaginar, mas não conseguia. – Se o champanhe foi envenenado... – repetiu. – Isto já não é nenhum jogo. Michael pensou no que poderia ter acontecido se o tivessem bebido. – Não. Já não é um jogo. – Mas não faz sentido – endireitou-se, tentando acalmar-se. – Posso entender o vandalismo ou os problemas que possam causar-nos, mas não posso atribuir isto a alguém da família. Provavelmente, estamos a exagerar. Talvez Bruno tenha comido alguma coisa do chão e... – Antes de me ter sido entregue ontem, pedi para que fosse vacinado – explicou com um tom calmo que desmentia o brilho dos seus olhos. – Tinha uma saúde excelente, Pandora, até ter lambido o champanhe que caiu quando abri a garrafa.
– Está bem. Mandamos analisar o champanhe. Até sabermos os resultados, não podemos fazer nada. Entretanto, não quero pensar nisso. – E vais fechar os olhos a isto? – Não – pegou em Bruno ao colo, que se aninhou contra o seu peito, a gemer. – Mas até a tua hipótese ser provada, recuso-me a pensar que um membro da minha família tenha tentado matar-me. Vou fazer qualquer coisa quente para ele beber e depois vou levá-lo para cima. Não vou tirar os olhos de cima dele a noite toda. – Está bem – repôs, aflito com uma mistura de frustração e fúria. Muito depois da meia-noite, como não conseguia dormir nem trabalhar, Michael foi ao quarto de Pandora. Deixara a lareira acesa. Lá fora estava a nevar copiosamente. Ali estava ela, enrolada na cama enorme, com a manta até ao queixo. Deitado em cima do tapete, em frente à lareira, o cãozinho dormia tranquilamente. Tinha ao lado um prato com algo que parecia chá e Pandora tapara-o com um xaile grande. Michael ajoelhou-se à frente dele. – Coitadinho! – murmurou. – Acho que está melhor. Levantando o olhar, viu o fogo da lareira reflectido nos olhos de Pandora. Estava despenteada. Os seus ombros nus apareciam por cima da manta. Era bonita, desejável, excitante. Pensou que estava a perder o juízo. Pandora não encaixava na sua ideia de beleza, no seu estilo de mulher. Voltou a olhar para o cão. – O que ele precisa é de dormir. O fogo está a apagar-se – desejoso de se ocupar com alguma coisa, procurou um tronco e atirou-o para as brasas. – Obrigada. Não consegues dormir? – Não. – Eu também não – permaneceram sentados em silêncio; ela na cama e ele sobre o tapete. O fogo crepitava suavemente. De repente, Pandora abraçou-se aos joelhos. – Michael, tenho medo. Não foi uma confissão fácil. Sabia que lhe custara dizê-lo. – Podemos sair daqui – declarou ele com tom pausado, depois de atiçar o fogo. – Amanhã podemos ir a Nova Iorque e ficar lá. Esquecermos este assunto todo e apreciar o Natal. Pandora não disse nada durante um momento, mas observou-o atentamente. Tinha o rosto virado para o fogo, de modo que não conseguia vê-lo bem. – É isso que queres fazer?
Michael pensou em Jolley e depois em Pandora. – Claro! – respondeu, tirando-lhe importância, com cada músculo do seu corpo tenso. – Tenho de pensar em mim. – Para alguém que ganha a vida a inventar histórias de ficção, mentes muito mal – esperou que se virasse para ela. – Tu não queres voltar. O que tu queres é juntar os teus parentes todos e dar-lhes uma boa tareia. – Estás a imaginar-me a bater na tia Patience? – Bom, talvez com algumas excepções – admitiu Pandora. – Mas a última coisa que queres é abdicar disto. – Está bem, reconheço – levantou-se para começar a andar de um lado para o outro do quarto, com as mãos enfiadas nos bolsos. – E tu? No início, não querias ter nada a ver com este maldito assunto. Fui eu que te convenci. Sinto-me responsável. Pela primeira vez, em várias horas, Pandora sentiu que recuperava o seu sentido de humor. – Detesto afectar o teu ego, Michael, mas tu não me convenceste a fazer nada. Sou completamente responsável por mim própria e não quero desistir – e acrescentou, antes que ele pudesse responder alguma coisa: – Disse-te que não queria o dinheiro e era verdade. Também te disse que precisava dele, mas isso não era completamente verdade. Mas, acima de tudo, está o meu orgulho. Estou assustada, sim, mas não quero desistir. Oh! Pára de andar de um lado para o outro e vem sentar-te aqui! – ordenou-lhe num tom impaciente, fazendo-o sorrir. Michael sentou-se na cama, obediente. – Está melhor assim? – perguntou-lhe. – Sim. Estou acordada há horas, a pensar nisto tudo. E descobri algumas coisas. Um dia chamaste-me altiva e elitista, e talvez, em certo sentido, tivesses razão. Nunca pensei muito no dinheiro. Não me permitia fazê-lo. Quando o tio Jolley deserdou os meus parentes, considerei-o uma espécie de brincadeira bastante forte. Achei que se zangariam e resmungariam um pouco, mas mais nada. Afinal de contas, era apenas dinheiro e todos tinham algum, e alguns bastante. – Nunca ouviste falar de avareza e sede de poder? – Exactamente. É disso que se trata. Simplesmente, não pensei, não me ocorreu. Até que ponto posso dizer que conheço aquela gente toda? Aborrecemme ou irritam-me, de vez em quando, mas nunca pensei neles como pessoas – quando levou uma mão ao cabelo, a manta escorregou-lhe até à cintura. – Ginger deve ter a mesma idade do que eu e não temos uma única coisa em comum. E, provavelmente, poderia cruzar-me na rua com a esposa de Biff sem a reconhecer. – Eu nem consigo lembrar-me do nome dela – apontou Michael.
– Era aí que eu queria chegar. Na verdade, não os conhecemos. A família, em grupo, é só fachada. Em separado, pelo contrário... Quem são e o que são capazes de chegar a fazer? Comecei a reflectir seriamente sobre isso. Isto não é nenhum jogo. – Claro que não. – Quero lutar e resistir, mas não sei como. – A melhor forma é ficando aqui. E talvez também... – pegou-lhe numa mão, – fazendo um pouco de guerra psicológica. – Como assim? – O que achas se enviássemos a cada um dos nossos parentes uma bela garrafa de champanhe? Pandora sorriu. – Uma de litro e meio. – Naturalmente. Seria interessante ver como reagem. – Talvez tenha subestimado a tua imaginação – interrompeu-se quando ele enrolou um dedo num dos seus caracóis. – Acho que devíamos dormir um pouco. – Acho que sim – acariciou-lhe um ombro. – Eu não estou muito cansada. – Podíamos jogar canasta. – Podíamos – mas não resistiu quando Michael lhe deslizou as alças da camisa de dormir. – Ou bridge. – Também. – Ou... – a decisão era dela, e ambos sabiam disso, – ou podíamos acabar aquele jogo que estávamos a jogar antes, na sala... – Boa ideia. Se bem me lembro, tínhamos ficado... aqui – e beijou-a nos lábios. Lentamente, Pandora rodeou-lhe o pescoço com os braços. Talvez fosse por se conhecerem bem ou por terem esperado uma eternidade. O facto é que não se apressaram. O desejo, num primeiro instante, foi agradável, fácil de satisfazer com uma carícia, um sabor, um cheiro. Michael concentrou-se em explorar a sua pele, centímetro a centímetro, com os dedos, com os lábios. Mostrou-se mais generosa do que imaginara, menos inibida, mais aberta. Acariciava-o com igual curiosidade. Dava e recebia ao mesmo tempo. Quando se afastou para olhar para ela, tinha os olhos cravados nele, toldados pelo desejo e com um brilho de prazer. Finalmente, estavam juntos, pensou Michael enquanto enterrava o rosto no seu cabelo. Prestes a tornarem-se amantes. As mãos de Pandora não tremeram quando lhe despiu a camisola pela cabeça, antes de deslizar os dedos pelo seu peito firme. O seu coração, no entanto, batia descontrolado. Evitara, recusara aquele momento. E agora estava a aceitá-lo, apesar das consequências.
Com o batimento cardíaco a ecoar nos seus ouvidos, Michael foi descendo cada vez mais nas suas carícias, memorizando o seu corpo. A pouco e pouco, o prazer foi-se transformando numa necessidade dolorosa. Tinham chegado a um ponto em que já não sabiam o que cada um estava a fazer ao outro. Pandora acariciava-o com frenesi, desesperada. Aquilo era a paixão, a ânsia lancinante pela qual homens e mulheres suspiravam. Era algo que jamais procurara, mas que encontrara com Michael. Foi o que pensou enquanto o seu corpo estremecia de prazer. Prazer e dor, desejos e medos misturados. A sua mente transbordava de sensações, tal como a sua pele: ardor e luz, êxtase e terror. Aquela vulnerabilidade percorria a sua alma, deixando o seu corpo tenso. Nunca ninguém conseguira destruir as suas defesas com tanta facilidade, sem esforço algum da sua parte. Desesperada, sem fôlego, beijou-o mais uma vez na boca. Rolaram na cama. Nada parecia ser suficiente. Enquanto ela tentava tirar-lhe as calças de ganga, Michael excitava-a cada vez mais. Quisera aquela loucura, por si próprio e por ela. E, naquele momento, podia sentir a sua força, extravasando descontroladamente. Pandora envolveu as pernas à volta da sua cintura. Quando se fundiu nela, olharam-se maravilhados. Era incrível. Chegara a casa. O corpo de cada um era a casa, o lar do outro. Estavam deitados, enrolados nas mantas, enquanto o fogo da lareira continuava a crepitar. Conheciam-se demasiado bem para falarem sobre o que acabara de acontecer. Portanto, continuaram calados enquanto as respirações se acalmavam e os corações voltavam à normalidade. – Feliz Natal! – murmurou Michael, aconchegando-a. Com um som entre um suspiro e uma gargalhada, Pandora aninhou-se contra o seu peito.
Oito
Saíram de Folley ao amanhecer, no dia a seguir ao Natal. O sol produzia reflexos na neve, derretendo-a. Depois de uma curta discussão, combinaram que Pandora conduziria na viagem de ida para a cidade e Michael na volta. Só falaram quando chegaram à auto-estrada. – E se não nos deixarem entrar? – Porque não haveriam de deixar? – Michael remexeu-se no banco. Preferia ser sempre ele a conduzir. Pela primeira vez, impacientou-se ao pensar nos quilómetros que separavam Folley de Nova Iorque. – Ainda não somos donos da empresa. – É apenas uma formalidade. – És sempre tão arrogante! – E tu vês sempre o lado negativo das coisas. – Alguém tem de o fazer... – Ouve! – ia tecer algum tipo de comentário crítico quando notou a tensão com que ela estava a agarrar no volante. Ele próprio estava nervoso e os nervos não tinham nada a ver com o champanhe envenenado. Como podia ter previsto que acordaria ao lado dela, no dia de Natal? E a sentir-se tão comprometido. Tão responsável. E tão excitado... – Ouve! – começou novamente, já com um tom mais ligeiro. – Talvez ainda não sejamos os donos daqueles laboratórios, nem de mais nada neste preciso momento, mas continuamos a ser parentes do tio Jolley. Porque haveria um técnico do laboratório de recusar-se a fazer uma pequena análise? – Descobriremos quando chegarmos lá – continuou a conduzir durante vários quilómetros sem abrir a boca. – Michael, que diferença faz essa análise? – Digamos que tenho uma certa curiosidade – respondeu, irónico. – Eu gostava de saber se alguém tentou envenenar-me. – Mesmo assim, continuaremos sem saber quem foi. – Essa será a segunda fase. Vamos convidar a família toda para ir a Folley e depois cravamos cada um deles com perguntas, à vez. – Agora estás a levar isto para a brincadeira... – Não, na verdade, já tinha pensado nisto. Só que acho que a altura não é a mais adequada – esperou vários minutos. Reparou que continuava a agarrar com força no volante. – Pandora, porque não me dizes o que te preocupa? – Nada – «e tudo», pensou. Não fora capaz de formular um único pensamento
coerente durante vinte e quatro horas. – Nada? – Nada, para além de me interrogar se alguém quererá matar-me! – exclamou. – Não achas suficiente? – Foi por isso que te escondeste no teu quarto, ontem, o dia inteiro? – Não estava a esconder-me. Estava a cuidar de Bruno. E sentia-me cansada. – Mal comeste o peru enorme que Sweeney nos preparou. – Eu não gosto particularmente de peru. – Já jantei noutros Natais contigo – recordou-lhe. – E comeste como um cavalo. – Que simpático da tua parte. Digamos que não estava com vontade. – Porque te desagrada tanto o que aconteceu entre nós na outra noite? – a sua reacção magoava-o. E muito. Mas isso não significava que tivesse de o expressar no seu tom de voz. – Isso é absurdo! – desagrado? Não fora capaz de pensar noutra coisa. O que a assustava terrivelmente. – Dormimos juntos – pronunciou, encolhendo os ombros. – Acho que ambos sabíamos que isso acabaria por acontecer, mais tarde ou mais cedo. Michael pensara exactamente o mesmo. Perdera a conta ao número de vezes que o pensara. Mesmo assim, não conseguia acreditar nela. – É só isso? – O que esperavas? – não podia deixar que o seu bom-senso fosse abalroado por uma atracção que não a levaria a lado nenhum, a nada. Ou levaria? – Michael, não faz sentido sobrevalorizar o que aconteceu, dar-lhe uma proporção maior... – E qual é a proporção certa, na tua opinião? Pandora sentiu-se sufocada. Desligou o aquecimento e concentrou-se na estrada. – Somos os dois adultos. – E? – Bolas, Michael! Não me faças ser mais explícita. – Sim. Sê mais explícita. – Somos os dois adultos – repetiu. O nervosismo deu lugar à fúria. – E temos necessidades normais de adultos. Dormindo juntos, satisfizemos essas necessidades. – Muito prático! – Ah, sim? Claro, eu sou uma pessoa prática – de repente, teve vontade de soluçar. – É prático ter todo o tipo de fantasias ou expectativas com um homem que gosta de muitas mulheres, não é? – levantou o tom de voz. – Ou imaginar-me
envolvida emocionalmente com um homem com o qual passei uma única noite. Ou fantasiar com o que não passou de uma noite de desejo básico e primário. – Estaciona na berma da estrada. – Não. – Estaciona na berma da estrada, Pandora, ou eu faço-o por ti. Cerrou os dentes, avaliando as suas hipóteses. Havia demasiado trânsito na estrada para se arriscar a que Michael se apoderasse do volante. Travando progressivamente, estacionou na berma. Michael desligou o motor e pegou-lhe nos ombros, puxando-a para si. Antes que ela pudesse fazer alguma coisa para o evitar, beijou-a nos lábios. Ardor, fogo e paixão pareceram fundir-se numa única sensação. Não parou de a abraçar, enquanto os carros continuavam a circular ao seu lado, fazendo tremer as janelas. Aquela mulher irritava-o, excitava-o... e torturava-o. Largou-a tão bruscamente como a agarrara. Sem fôlego, com uma expressão de fúria, Pandora ligou novamente o motor. – Imbecil! – Vá lá, pelo menos concordamos nalguma coisa. A viagem até à cidade era longa. E consumidos por aquele silêncio tenso e incómodo, era ainda mais. Quando entraram em Manhattan, Pandora viu-se obrigada a seguir as indicações de Michael para chegarem ao laboratório. – Como sabias onde era? – perguntou-lhe depois de deixarem o carro no parque de estacionamento. – Ontem procurei a morada nas pastas de Jolley – respondeu Michael, dirigindo-se para a entrada com a caixa da garrafa de champanhe debaixo do braço. Com o casaco aberto, ao contrário de Pandora, parecia imune ao frio. Empurrou a porta giratória e entraram no hall do edifício enorme. – Olha! Somos os donos disto tudo. – De tudo? – inquiriu Pandora, estupefacta. – Dos setenta e dois andares, no total. Voltou a reflectir sobre a complexidade daquela herança. Quantas empresas existiriam naquele arranha-céus? Quantas pessoas trabalhariam ali? Como poderia suportar aquela responsabilidade? – E o que é suposto fazermos com setenta e dois andares no centro da cidade? – Temos aqui gente suficiente para o decidir por nós – Michael indicou os seus nomes ao empregado que estava dentro do elevador. Subiram rapidamente para o quadragésimo andar. – Contabilistas, advogados, administradores. Só temos de contratar as pessoas que chefiam quem trabalha para nós.
– Que alívio! – repôs, irónica. – Se estás preocupada, pensa em Jolley. O facto de possuir uma fortuna não o impedia de desfrutar dela. Na verdade, administrava o negócio dele como se fosse uma espécie de passatempo. Vê as coisas desta forma: não tens de saber como funciona um carro para o conduzires. Só tens de conduzir com atenção e seguir as indicações. Se Jolley não confiasse em nós, não nos teria entregado as chaves. – E tu já sabes a quem tens de entregar isso? – perguntou-lhe, apontando para a caixa com a garrafa. – Parece que o responsável é um tal Silas Lockworth. – Estás bem informado. – Espero que sirva para alguma coisa. Quando o elevador parou, saíram na recepção dos Laboratórios Sanfield. Duas plantas enormes ladeavam as portas de vidro que se abriram automaticamente. – Bom dia! – cumprimentou-os a recepcionista, sorridente. – Em que posso ajudá-los? – Gostaríamos de falar com o senhor Lockworth – explicou Michael. – O senhor Lockworth está numa reunião. Se me indicarem os vossos nomes, talvez o assistente dele possa ajudar-vos. – Sou Michael Donahue. E ela, Pandora McVie. – McVie? – inquiriu a recepcionista, arqueando os sobrolhos. – Sim. Maximillian McVie era o nosso tio. – Tenho a certeza de que o senhor Lockworth vos teria recebido pessoalmente se soubesse que vinham cá. Por favor, sentem-se. Vou chamá-lo agora mesmo. Demorou apenas cinco minutos. O homem que entrou na recepção não encaixava com a imagem que Pandora tinha de um técnico de laboratório ou de um cientista. Era alto e esbelto, de compleição atlética. Muito bronzeado, usava o cabelo loiro penteado para trás. – Senhora McVie – avançou para ela, com a mão estendida. – Senhor Donahue, sou Silas Lockworth. O seu tio era muito meu amigo. – Obrigado. Peço desculpa por termos aparecido sem avisar. – Não há problema, a sério – o seu sorriso parecia sincero. – Nós nunca sabíamos quando Jolley ia aparecer, de repente, por aqui. Vamos para o meu escritório. Conduziu-os pelo corredor. O escritório de Lockworth foi uma surpresa: parecia o do presidente de uma empresa. Até tinha um aquário redondo, embutido numa parede. – Desejam um café? Um chá? – Não, obrigada – respondeu Pandora. – Não queremos roubar-lhe muito tempo...
– É um prazer! Jolley falava muito de vocês – indicou-lhe uma cadeira. – Sem dúvida, eram os seus parentes preferidos. – O sentimento era recíproco – repôs ela. – Ainda assim, deduzo que não tenham vindo passear – Lockworth inclinou-se sobre a sua secretária. – Em que posso ajudá-los? – Temos uma coisa que gostaríamos de analisar – começou Michael. – Com a máxima rapidez e discrição. – Entendo. Tentarei ajudar-vos. De que se trata? Michael abriu a caixa e tirou a garrafa de champanhe. – Precisamos de um relatório do laboratório sobre o conteúdo desta garrafa. Um relatório confidencial. Para ainda hoje. Lockworth leu o rótulo. – 1972. Um bom ano. Têm intenção de plantar vinha? – Não exactamente. Queremos saber que tipo de substância contém esta garrafa, para além de champanhe. – Têm alguma suspeita? – inquiriu, disfarçando a sua surpresa. – Se não tivéssemos, não teríamos vindo. – Está bem. Eu próprio me encarregarei de a analisar. Olhando sisuda para Michael, recriminando as suas maneiras rudes, Pandora levantou-se. – Agradecemos-lhe imenso, senhor Lockworth – apertou-lhe a mão. – Os resultados dessa análise são muito importantes para Michael e para mim. – Não têm de quê. Temos uma cafetaria para os funcionários. Eu acompanhovos. Poderão esperar lá. – Não precisavas de ser tão rude – recriminou-o Pandora, enquanto se sentava a uma mesa e olhava para um menu surpreendentemente variado. – Não fui rude. – É claro que foste. O senhor Lockworth estava a esforçar-se para ser amável e tu mostraste-te ressentido. Acho que vou comer uma salada de frutos do mar. – Eu não me mostrei ressentido, mas precavido. Ou por acaso tu terias contado tudo a um desconhecido? Pandora sorriu à empregada, que apareceu naquele preciso momento. – Salada de frutos do mar e café. – São dois – disse-lhe Michael. – E peru guisado. – Não, não teria contado tudo – disse-lhe Pandora, retomando a discussão. – No entanto, somos obrigados a confiar minimamente nele. Quanto tempo achas que vai demorar?
– Não sei. Não sou cientista. – E também não gostas dos cientistas, pois não? – Aquele tipo parece-me mais um executivo – Michael bebeu um gole de café. – Pergunto-me se Carlson ou qualquer um dos outros terá alguma ligação a estes laboratórios. Pandora baixou a sua chávena, atónita. – Não me tinha lembrado disso. – Se bem me lembro, Jolley pôs a Tristar Corporation em nome de Morgan há vinte e cinco anos. Lembro-me de ter ouvido os meus pais a falarem disso. – A Tristar, estás tu a dizer? – Plásticos. Sei que dividiu pequenas fatias do bolo aqui e ali. Uma vez, disseme que queria dar uma oportunidade a alguns parentes, antes de os apagar da lista. Depois de reflectir durante alguns segundos, voltou a levantar a sua chávena. – Está bem, se ele entregou algumas acções aqui e ali... que diferença pode fazer? – Não sei até que ponto devíamos confiar em Lockworth. – Ter-te-ias sentido melhor se fosse um tipo baixo e gordo, com uns óculos grossíssimos? – Talvez. – Estás a ver? – Pandora sorriu. – Estás com ciúmes porque ele é muito bonito. O teu peru vem aí. Comeram calmamente. Uma hora e meia depois, já estavam inquietos e nervosos. Quando viram Lockworth chegar, soltaram um suspiro de alívio. – Graças a Deus, finalmente...! – exclamou Pandora. Lockworth colocou um papel em cima da mesa e devolveu a caixa a Michael. – Pensei que quisessem uma cópia – sentou-se e pediu um café. – Apesar da linguagem técnica. Pandora franziu o sobrolho ao ler os estranhos e complicados termos técnicos. – O que quer dizer isto? – Eu também me perguntei – tirou um maço de cigarros. – É um pesticida. – Um pesticida? – repetiu Michael. – Portanto, o champanhe estava envenenado. – Tecnicamente, sim. Embora em quantidade apenas suficiente para vos provocar dores de estômago durante alguns dias. Presumo que nenhum dos dois as terá tido... – Não – Pandora levantou o olhar do relatório. – O meu cãozinho, pelo contrário, sim. – Quando abrimos a garrafa, entornou-se um pouco no chão e o cão lambeu-o. A seguir, ficou doente.
– Tiveram sorte. Embora ache curioso que tenham chegado à conclusão de que o champanhe estava envenenado pelo facto do cão ter ficado doente. – E ainda bem que o fizemos – Michael dobrou o relatório e enfiou-o no bolso. – Peço desculpa pelo meu primo – apressou-se Pandora a desculpá-lo. – As maneiras dele deixam muito a desejar. Agradecemos-lhe que se tenha dado a tanto trabalho, senhor Lockworth. Receio que não nos seja possível explicarmonos neste momento, mas garanto-lhe que tínhamos uma boa razão para suspeitar do champanhe. – Entendo. Se precisarem de um relatório mais completo, digam-me. Jolley era uma pessoa muito importante na minha vida. Considerá-lo-ia uma espécie de favor para ele. Michael levantou-se. – Peço-lhe desculpa pela minha brusquidão – estendeu-lhe a mão. – Eu também me inquietaria se alguém se lembrasse de deitar pesticida no meu champanhe. Insisto: avisem-me se precisarem de alguma coisa. – E então? – inquiriu Pandora quando voltaram a ficar sozinhos. – O que vamos fazer agora? – Proponho uma visita à garrafeira mais próxima. Temos de comprar algumas prendas. Enviaram a cada um dos seus parentes uma garrafa do mesmo champanhe que tinham recebido. Michael assinou os cartões com uma frase simples: «Um bom gesto merece outro». Quando saíram da loja soprava um vento gelado. Pandora apressou-se a calçar as luvas. – Um gesto muito caro. – Considera-o um investimento – repôs Michael. Não era o dinheiro o que a incomodava, mas a aparente futilidade da atitude. – Achas que vai servir de alguma coisa? – A maioria das garrafas será bem recebida. Mas apenas uma será interpretada como uma declaração deve ser. Como uma ameaça. – Uma ameaça vazia – replicou Pandora. – Porque não estaremos lá para ver a reacção da pessoa em questão. – Estás a pensar como uma amadora. Michael já estava a atravessar a rua quando Pandora o agarrou pelo braço. – O que queres dizer com isso? – Que quando uma amadora prega uma partida, quer estar sempre presente. Ignorando as pessoas que passavam apressadas ao seu lado, Pandora ficou onde estava. – Desde quando envenenar alguém é uma partida? – A vingança tem as suas regras.
– Oh, entendo! E tu és um especialista, não és? O semáforo mudou para verde e vários condutores apitaram as suas buzinas, impacientes. Cerrando os dentes, Michael levou-a para o passeio. – Talvez seja. Basta-me saber que alguém receberá a garrafa e ficará muito nervoso. Esse alguém saberá que estamos decididos a armarmo-nos em difíceis. O teu problema é que não gostas de libertar os teus sentimentos durante o tempo suficiente para saboreares uma vingança. – Deixa os meus sentimentos em paz. – É essa a ideia, não é? – repôs e recomeçou a andar. Com três passos, Pandora pôs-se ao seu lado. – Tu não estás aborrecido com o que Lockworth te disse, ou porque alguém te envenenou o champanhe, ou porque temos pontos de vista diferentes a respeito da vingança. Não! Tu estás zangado porque eu defini a nossa relação em termos estritamente práticos. – Está bem – continuou a andar. Impaciente, teve de parar quando ela voltou a agarrá-lo pelo braço. – E queres resolver isto aqui, no meio da rua? – O que eu quero é que tu não embirres comigo só porque eu pus fim à nossa relação, antes que tu tivesses a oportunidade de o fazer. – Eu? – agarrou-a pelos ombros. – Eu nem tive a oportunidade de me recuperar do que se passou antes de tu resolveres tudo! Eu desejava-te. Bolas! Eu ainda te desejo. Sabe-se lá porquê. – Bom, eu também te desejo. E também não me agrada. – Isso deixa-nos empatados, não? – E o que vamos fazer em relação a isso? Michael conseguia ver nos seus olhos um brilho de fúria misturado com confusão. Um deles tinha de dar o primeiro passo. Decidiu que seria ele. Pegando-lhe na mão, continuou a andar. – Onde vamos? – Ao Plaza. – Ao Hotel Plaza? Porquê? – Vamos pedir um quarto, trancar a porta e fazer amor durante as próximas vinte e quatro horas. Depois disso, decidimos o que vamos fazer. Havia vezes, pensou Pandora, em que o melhor era aproveitar a oportunidade. – Não temos bagagem. – Exacto. A minha reputação vai-se ressentir. Pandora soltou uma gargalhada. Quando entraram no hall elegante, o calor que se sentia estimulou novamente os seus nervos. Convenceu-se de que aquilo era simplesmente um impulso. E um impulso jamais devia condicionar uma decisão importante. No entanto, Michael
parecia ter o poder de mudar tudo, de a obrigar a comportar-se contra a sua maneira de ser ou contra as suas convicções. No momento em que Pandora se preparava para se ir embora, ele segurou-a pelo pulso. – Covarde! – exclamou. Escolhera a palavra certa. Tinha a certeza de que ficaria. E assim foi. Segundos depois subiam no elevador. Michael trazia no bolso as chaves do quarto. – A recepcionista suspeitou – queixou-se Pandora. – Um quarto só para uma noite e sem bagagem... – E então? Imagina que somos dois desconhecidos. Acabámos de nos conhecer. Não temos nenhuma lembrança de infância, nem somos parentes – saíram do elevador e caminharam pelo corredor. Uma vez diante da porta, introduziu a chave. – Ninguém se importa com o trabalho do outro, nem tem opiniões formadas sobre a sua pessoa. – Isso é para simplificar as coisas? Michael deixou-a entrar. – Já vamos descobrir. Mas, no preciso instante em que a porta se fechou atrás de si, abraçou-a. Acabaram-se as perguntas. E ela foi ao seu encontro. Desejava-o. Encontraram-se num frenesi de paixão, de necessidade, de desejos. Esqueceram-se do que sabiam e do que pensavam para se perderem no presente. Sobretudos, casacos, tudo foi caindo no chão. Seguiram-se camisolas e camisas. Na própria soleira da porta, deitaram-se sobre o tapete. – Maldito Inverno! – resmungou Michael enquanto tentava tirar-lhe as botas. A rir-se, Pandora tentava, por sua vez, descalçá-lo também. E soltou um gemido quando ele começou a acariciar-lhe os seios com os lábios. Não se concederam nenhuma pausa. Aquilo nada teve a ver com o que tinham experimentado na primeira vez. Era novo. Os dedos de Michael delineavam a sua pele como nunca tinham feito antes. O seu coração jamais batera tão depressa, tinha a certeza disso. Queria mais, queria tudo. Desesperada, enchia de beijos ávidos o seu rosto, o seu pescoço, o seu peito. O seu corpo todo. Estava descontrolada, fora de si. Nunca pudera imaginar que um homem pudesse dar-lhe tanto prazer. Estremecida, arqueou-se sob o seu corpo, quente e disposta, oferecendo-se por inteiro. Mas Michael parecia ter outros planos e continuou a excitá-la. Aquela sensação de absoluta vulnerabilidade era nova para ela. Naquele momento, terlhe-ia entregado tudo, aceitaria tudo o que lhe pedisse. Mas não lhe pedia nada. Dava-lhe.
Era como se estivesse a nadar no cimo de uma onda enorme e caísse para voltar a subir. «Dá-me prazer!», gritava a sua mente. Mais. Outra vez. Ainda mais. Até que, finalmente, entrou dentro dela, reunindo-se, fundindo-se com o seu ser. E descobriu que, incrivelmente, podia haver mais. Ficaram onde estavam, deitados sobre o tapete, entre uma confusão de roupa. Gradualmente, Pandora foi voltando à realidade. Sentia o cabelo de Michael a acariciar-lhe a face. E o batimento do seu coração, ainda acelerado, a ecoar contra o seu seio. Pensou em como acontecera tudo tão depressa. Ou será que se tinham passado horas? Só tinha a certeza de uma coisa: nunca sentira nada assim. Ou não se permitira senti-lo, corrigiu-se. Era tão estranho o que podia acontecer a uma mulher que deixava escapar a sua paixão... Porque, antes que pudesse voltar a fechar a tampa, outras coisas também podiam fugir. Inclusive o amor. Conteve a vontade de lhe acariciar o cabelo e deixou cair a mão sobre o tapete. Não podia permitir-se amar ninguém, nem sequer por um breve período de tempo. O amor era tão exigente como generoso. E nem sempre se dava e recebia em partes iguais. Michael não era um homem feito para o amor, para o compromisso. Não seguiria as regras. Tomou uma decisão. Seria a sua amante, mas não o amaria. Não arriscaria o seu coração. O que Michael e ela tinham era um simples acordo: algo básico, nada complicado. E um acordo, pensou, era algo muito mais prático do que um romance... – Já resolveste tudo? – O que queres dizer com isso? – Se já decidiste as condições da nossa relação – levantando a cabeça, olhou para ela. Não sorria, mas Pandora suspeitou que estava a brincar com ela. – Não sei de que estás a falar. – Quase consigo ouvir a tua cabeça a trabalhar. E ver o que estás a pensar. Incomodada porque sabia que provavelmente era verdade, arqueou um sobrolho. – Eu pensei que tínhamos acabado de nos conhecer. – Eu tenho poderes mentais. Neste preciso momento estás a pensar... – interrompeu-se para lhe mordiscar suavemente o lábio inferior. – Estás a pensar que tem de haver uma maneira de manter a nossa relação dentro de um esquema prático. Estás a perguntar-te como conseguirás manter uma distância emocional mínima quando dormirmos juntos. Porque decidiste não dar qualquer tipo de
romantismo a qualquer acordo que possa existir entre nós... – deslizou uma mão ao longo da anca dela, fazendo-a estremecer. – Muito bem, tens razão. Mas já que és tão esperto, deduzo que compreendas que isso tudo é uma questão de bom-senso. – Eu gosto mais quando te excitas e perdes o sentido da realidade, ou qualquer outro... Mas lembra-te... – beijou-a antes que pudesse responder – que não podemos estar sempre na cama. Eu não acredito nos acordos práticos, Pandora. Nem na distância emocional entre amantes. – Tens uma grande experiência nesse aspecto, não é? – É verdade – sentou-se, puxando-a para si. – E digo-te uma coisa. Podes reprimir as tuas emoções à vontade. Podes utilizar o termo mais prático e prosaico do mundo para a nossa relação. Podes franzir o nariz e desprezar os jantares românticos à luz das velas. Isso não vai fazer nenhuma diferença – obrigou-a a olhar para ele. – Vou conquistar-te, prima. Vou conquistar-te até não conseguires pensar em mais nada, nem em mais ninguém a não ser em mim. Se acordares a meio da noite e eu não estiver ao teu lado, ansiarás pela minha companhia com todas as tuas forças. E quando não te tocar, sempre que não te tocar, desejarás as minhas carícias. Sentiu um calafrio. Sabia que tinha razão. E sabia também, tal como ele, que resistiria até ao final. – És prepotente, egocêntrico e simplório! – É verdade. E tu és teimosa e obstinada! Neste momento só posso ter a certeza de uma coisa: só um de nós ganhará. Sentados na confusão da roupa, olharam-se fixamente. – Outro jogo? – murmurou Pandora. – Talvez. Talvez seja o único jogo – e dito aquilo, levantou-se e pegou-a ao colo. – Michael, não preciso que me pegues... – Claro que precisas. Levou-a para o quarto. Pandora quis resistir, mas, finalmente, desistiu. E pensou que talvez só daquela vez... pudesse relaxar nos seus braços.
Nove
Janeiro era um mês de vento e neve. Um mês de canalizações congeladas e rebentadas, de caldeiras sobrecarregadas e de motores de carro afogados. Pandora adorava. Os vidros do seu atelier ficavam cobertos de geada e a temperatura no interior permanecia ligeiramente fresca, apesar do aquecimento. Trabalhava até os seus dedos ficarem dormentes, desfrutando de cada momento. Durante aquele mês, a estrada que levava a Folley costumava ficar bloqueada com frequência. Pandora não se importava de não poder sair: aquilo queria dizer que também ninguém podia entrar. A despensa e o frigorífico estavam cheios. Tinham tudo o que precisavam. Os dias eram curtos e produtivos, as noites longas e relaxantes. Desde o incidente do champanhe, aquele estava a ser um Inverno tranquilo, sem problemas. Embora «tranquilo», reflectiu naquele instante, não fosse exactamente o termo mais adequado. Com movimentos rápidos e hábeis, continuou a limar a pulseira grossa de cobre. Não surgira nenhum problema vindo do exterior, mas... se havia coisa em que Michael Donahue era especialista, era precisamente em causar problemas. Fora isso que tentara fazer ao deixar-lhe um ramo de violetas na almofada? Quando o interrogara acerca delas, limitara-se a responder-lhe, sorridente, que as violetas não tinham espinhos. Que tipo de resposta era aquela?, perguntou-se enquanto examinava a pulseira com a lupa, satisfeita com o seu trabalho. Depois, também houvera aquela vez em que saíra da casa de banho para encontrar o seu quarto iluminado por dezenas de velas. Quando lhe perguntara se houvera alguma falha de electricidade, Michael arrastara-a para a cama, a rir-se às gargalhadas. Fazia coisas como pegar-lhe na mão durante o jantar ou sussurrar-lhe palavras carinhosas ao amanhecer, quando ainda estava meio a dormir. Uma vez fora ter com ela ao duche e acalmara os seus protestos ensaboando-a até ao último centímetro do seu corpo. Estava certa. Michael Donahue não seguia as regras. E ele também estava certo. Estava a conquistá-la. Começou a polir a pulseira. Durante as duas últimas semanas fizera outras seis. Pulseiras grandes e grossas, algumas com pedras engastadas de cores brilhantes. Eram peças que encaixavam perfeitamente com o seu humor. Aprendera a confiar na sua intuição e esta dizia-lhe que se venderiam mais depressa do que o tempo que levara a fazê-las.
Uma vez acabada, experimentou a pulseira. Sabia que seria profusamente imitada, mas também sabia que a peça original se distinguiria de qualquer imitação. Não, a arte nunca mentia, mas e ela? Podia ter a certeza de que os seus sentimentos eram tão sinceros e genuínos como as suas obras? Um sentimento podia ser imitado, podia ser fraudulento. Quantas vezes fingira durante as últimas semanas? Não fingira sentir, sentira. Era uma mulher que sempre se orgulhara da sua sinceridade. A verdade e a independência eram os seus valores mais sagrados. Mas mentira várias vezes a si própria, o que constituía a pior forma de engano. Já estava na altura de acabar com aquilo. Na altura de enfrentar a verdade dos seus sentimentos, nem que fosse apenas no espaço íntimo da sua mente e do seu coração. Há quanto tempo estava apaixonada por Michael? Semanas? Meses? Anos? Não podia responder àquela pergunta porque, provavelmente, nunca poderia ter a certeza. Mas tinha a certeza do sentimento. Amava-o. Sabia-o porque amara muito poucas pessoas, e sempre profundamente, sem limites. Talvez fosse aquele o seu maior problema. Amar ilimitadamente Michael não seria como uma espécie de suicídio? Era melhor enfrentar aquilo. Por muito estúpido que fosse, amava-o. Que opções tinha? Podia dizer-lhe. E Michael regozijar-se-ia, antes de passar à sua próxima conquista. Porque Pandora não era estúpida ao ponto de pensar que ele estaria interessado numa relação a longo prazo. Ela também não, como é óbvio, pensou enquanto começava a guardar as suas ferramentas. Outra opção seria resolver tudo de uma vez e fugir. O que os seus parentes não tinham sido capazes de alcançar com a sua malícia e perversidade, ela faria com o seu próprio coração. Podia entrar no seu carro, dirigir-se para o aeroporto e apanhar um avião para um lado qualquer. Mas, então, não seria apenas uma covarde, mas também uma traidora. Não, não falharia dessa forma ao seu tio Jolley. Não fugiria. De modo que só restava uma última opção: continuar como até então. Ficaria com Michael, dormiria com Michael, partilharia tudo com Michael... excepto o que escondia no seu coração. Aproveitaria os dois meses que faltavam estar juntos e preparar-se-ia para suportar uma separação sem arrependimentos, nem recriminações. Conquistara-a, admitiu. Amava-o por isso. E odiava-o pela mesma razão. Irritada consigo mesma, fechou o atelier e saiu para o jardim. – Vem aí – pronunciou Sweeney, à janela da cozinha. Estava satisfeita, já tinha um plano novo para a Primavera. – Não vai resultar – murmurou Charles, pessimista como sempre. – Claro que vai. Vamos juntar aqueles dois miúdos para o próprio bem deles.
– Estamos a intrometer-nos na vida deles. Não temos nada a ver com o assunto. – Lá estás tu outra vez com o mesmo! Claro que temos a ver com o assunto. Quem porá os pés neste casarão enorme vazio, para além de nós, se eles se forem embora? E agora agarra nesse leque e dá-me um pouco de ar. Encolhe os ombros e faz ar de fraco. – Mas eu estou fraco! – murmurou Charles, mas agarrou no leque. Quando Pandora entrou na cozinha, viu Sweeney caída numa cadeira, com os olhos fechados, e Charles a abanar-lhe o rosto. – Meu Deus, o que se passou? Desmaiou, Charles? Chame Michael – pediu, inclinando-se sobre a mulher. – Sweeney, sou Pandora, o que é que te dói? Contendo um suspiro de satisfação, a cozinheira pestanejou várias vezes. – Oh, não se preocupe comigo... É só um dos meus mal-estares. De vez em quando, o meu coração fica assim... – Vou chamar um médico. Pandora apenas tinha dado um passo quando Sweeney a agarrou por um braço com uma força que a surpreendeu. – Não há necessidade – pronunciou, simulando um tom de cansaço. – Fui ao médico há uns meses e ele disse-me que era normal que eu sofresse deste tipo de achaques... – Não acredito – replicou Pandora. – Trabalha demasiado e tem de se controlar. – O que se passa, Sweeney? – perguntou Michael, entrando de repente e ajoelhando-se ao seu lado. – Veja a confusão que armei... – de certa forma, estava a começar a arrepender-se da sua representação. – É só um mal-estar, a sério. O médico disseme que teria de me habituar. Que era apenas um achaque, mais nada – fez um gesto a Charles com os olhos, recordando-lhe que era a sua vez. – Tu sabes o que ele te disse. – Charles, não... – Tens de ficar em repouso durante dois ou três dias. Satisfeita por ele ter-se lembrado tão bem da sua deixa, Sweeney fingiu soprar de desgosto. – Tolices! Daqui a pouco estou óptima. Tenho de cozinhar... – Não vai fazer nada – declarou Michael com tom autoritário, levantando-a suavemente. – Vai-se deitar agora mesmo. – E quem tratará de tudo? Não quero que Charles me encha a cozinha de micróbios. Michael já estava prestes a tirar Sweeney da cozinha quando Charles se
lembrou da sua intervenção seguinte. Tossiu várias vezes, levando uma mão à boca e desculpando-se. – Estão a ver? – contendo um sorriso, encostou a cabeça ao ombro de Michael. – Não vou deitar-me e deixar que me infectem a cozinha. – Há quanto tempo está com essa tosse? – perguntou-lhe Pandora. Ao ver que respondia muito vagamente, interrompeu-o: – Já chega! Os dois para a cama. Michael e eu tratamos de tudo. Vou fazer-vos um chá. Michael, trata de Charles. Eu trato de Sweeney. Meia hora depois, a cozinheira já os tinha onde queria. Juntos. – Bom, conseguimos deitá-los sem grandes problemas – satisfeita, Pandora serviu-se de uma chávena de chá. – Acho que tudo o que precisam é de alguns dias de descanso e de alguns mimos. Queres chá? – Não, obrigado. Teremos de os vigiar de perto para que não se levantem. Vamos fazê-lo por turnos. – Hum... – abriu o frigorífico, observando o seu conteúdo. – O que há para comer? Sabes cozinhar? – Claro! Mal, mas sei. O rolo de carne é a minha especialidade. E tu? – Eu – Pandora abriu uma caixa de plástico, esperançada. – Bom, sei preparar um bife e uns ovos mexidos. Tudo o resto já é arriscado. – A vida não é nada sem risco – Michael também foi ao frigorífico. – Aqui só há metade de uma tarte de maçã. – Isto não chega para uma refeição. – Para mim, chega – tirou-a do frigorífico e foi buscar uma colher. Uma vez sentado à mesa, perguntou-lhe: – Queres uma fatia? A sua primeira intenção foi recusar, mas depois mudou de ideias. Foi buscar um prato ao armário. – O que fazemos para os doentes? – inquiriu enquanto se servia de uma fatia de tarte. – Sopa. Nada melhor que uma boa sopa quente. Embora o mais importante fosse deixá-los descansar um momento. Assentindo com a cabeça, Pandora sentou-se à frente dele. – Michael... – andava há dias a tentar encontrar uma forma de abordar aquele assunto e aquela ocasião parecia-lhe a mais adequada. – Estive a pensar que... Bom, daqui a dois meses, o prazo estabelecido pelo tio Jolley chega ao fim. Quando Fitzhugh nos escreveu na semana passada, disse-nos que os advogados do tio Carlson tinham-lhe desaconselhado a impugnação do testamento. – E? – Então a casa, juntamente com tudo o resto, será minha e tua, em partes iguais.
– Sim. – Porque estás a sorrir? – Porque gosto de olhar para ti. É muito relaxante sentar-me aqui, na cozinha, e olhar para ti. – Preferia que não me dissesses essas coisas – baixou o olhar para o seu prato. – Bom, o facto é que possuiremos esta casa, mas já não continuaremos a viver juntos. Sweeney e Charles ficarão aqui, sozinhos. E isso preocupa-me. Acho que não deveriam ficar sozinhos. – Concordo. Alguma ideia? – Já te tinha dito que estava a pensar em mudar-me para cá, embora não permanentemente – tendo perdido o apetite, bebeu um gole de chá. – Agora acho que vou mudar-me definitivamente para Folley. – Por causa de Charles e Sweeney? – Apenas em parte. Eu sempre considerei Folley como o meu lar, mas só agora tomei consciência de até que ponto continua a ser. Preciso de o fazer, por mim. Na verdade, eu nunca tive um verdadeiro lar – levantou a cabeça, olhando-o nos olhos. – Mas os teus pais... – São maravilhosos – interrompeu-o, apressada. – E adoro-os. Mas... – como podia explicar-lhe? E no entanto, precisava de o fazer. – Nós nunca tivemos uma cozinha assim, um lugar para onde pudesse voltar sempre, sabendo que continuaria a ser o mesmo. Mesmo que mudasse a pintura e o papel da parede, continuaria a ser o mesmo. Eu sei que parece estúpido – remexeu-se na sua cadeira, inquieta. – Tu não compreendes. – Talvez compreenda – pegou-lhe numa mão antes que pudesse retirá-la. – De qualquer forma, gostaria de o compreender. – Quero um lar – declarou, terminante. – E Folley foi-o para mim. Quero ficar aqui depois de o prazo expirar. – Porque estás a contar-me isto tudo, Pandora? Pensou que tinha demasiadas razões para o fazer. Optou pela mais inofensiva: – Daqui a dois meses, esta casa pertencerá tanto a ti como a mim. Mas segundo as condições do testamento... Michael praguejou entredentes e largou-lhe a mão. Levantando-se, enfiou as mãos nos bolsos e aproximou-se da janela. Por um instante, apenas por um instante, chegara a pensar que lhe diria mais alguma coisa. Que estaria disposta a dar-lhe alguma coisa. Esperara durante tanto tempo... Acreditara sentir algo no seu tom de voz, algo terno e generoso. Embora talvez tivesse simplesmente imaginado, de tanta vontade que tivera de o ouvir. – O que queres? A minha permissão?
– Não sei... Acho que queria que compreendesses – respondeu, confusa. – E que aceitasses. – Pois muito bem. – Não precisas de ser tão rude. Afinal de contas, tu não tinhas um plano para usar esta casa de forma regular. – Não, não tinha nenhum plano – murmurou. – Mas talvez já esteja na altura de o fazer. – Não queria incomodar-te... Virou-se lentamente. – Não – sorriu. – Tenho a certeza de que não. Quando querias incomodar-me intencionalmente, eu apercebia-se sempre. – Incomodava-te assim tanto que eu ficasse a viver aqui? – inquiriu, admirada. Surpreendeu-o que se aproximasse dele, estendendo-lhe a mão. Aquelas atitudes não eram habituais em Pandora. – Não. Porque haveria de me incomodar? – Metade da casa será tua. – Podíamos fazer um risco para a dividir ao meio. – Isso seria horrível. Eu podia comprar a tua parte. – Não. Disse-o com um tom tão brusco, que Pandora arqueou os sobrolhos, espantada. – Era só uma proposta. – Esquece – replicou e concentrou-se em preparar a sopa para Sweeney e Charles. – Michael... – com um suspiro, abraçou-o pela cintura. Sentiu-o ficar tenso. – Tenho a sensação de que só estraguei as coisas... – Talvez a culpa seja dos dois – virou-se para lhe pegar no rosto com ambas as mãos. – Pandora... – poderia confessar-lhe que lhe era impossível pensar em partir dali, ou que ela o abandonasse? Compreendê-lo-ia se lhe dissesse que ansiava continuar a viver com ela? Como encararia o facto de que estava apaixonado por ela há anos e que só agora começara a aceitá-lo? Deu-lhe um beijo na testa. – Vamos fazer a sopa. Durante os dias seguintes, descobriram que conseguiam trabalhar juntos. Com muitas discussões, mas juntos. Faziam as refeições, arrumavam e limpavam o pó, enquanto os empregados repousavam na cama ou no sofá, bebendo calmamente o seu chá. Havia vezes em que Charles e Sweeney sentiam a consciência pesada. Mas sentiam-se aliviados quando ouviam o eco das gargalhadas deles pela casa toda.
Michael tinha consciência de que nunca se sentira tão satisfeito, tão feliz. Adorava estar em casa, algo para o qual nunca tivera tempo, nem vontade. Escrevia durante horas, fechado no seu escritório. Depois interrompia o trabalho e voltava à realidade, simbolizada pelo cheiro a comida ou a móveis acabados de envernizar. Tinha um lar, para além de uma mulher, e estava decidido a conserválos. Depois, ao fim da tarde, acendia a lareira da sala. Depois do jantar bebiam café ali e passavam a noite a ler ou a jogar às cartas. Um dia, acabava de acender a lareira quando Bruno entrou a correr na sala e chocou contra uma mesa, deitando ao chão a decoração de Natal. – Vamos ter de te mandar para uma escola de boas maneiras – comentou Michael, enquanto se levantava para apanhar a decoração. Embora só estivesse ali há um mês, Bruno já tinha o dobro do tamanho. Depois de levantar a mesa, viu que o cão estava a cheirar alguma coisa debaixo do sofá. – O que encontraste agora? Por aquela altura, Bruno já ganhara a fama de ladrão talentoso. No dia anterior, tinham dado pela falta de várias costeletas de porco. – Muito bem, diabinho! Se o que estiver aí for o frango desta noite, aviso-te que vais passar a noite fechado na garagem – colocando-se de joelhos, espreitou para debaixo do sofá. Não era o frango o que tinha entre os dentes, mas um sapato seu. – Bolas! – esticou a mão, mas o animal manteve-se fora do seu alcance, sem parar de roer o sapato. – Esse sapato vale cinco vezes o teu preço. Devolve-me isso. Deitando-se no chão, colocou-se debaixo do sofá, até à cintura. Bruno limitouse a chegar-se para um lado, apreciando o jogo. – Oh, que lindo! – exclamou Pandora, ao entrar na sala. – Estás a brincar com o cão, Michael, ou a limpar o pó debaixo do sofá? – Vou fazer um tapete com ele. – Meu Deus, querido! Estou a ver que estás um bocadinho aborrecido, esta manhã. Bruno, anda cá, querido... Levando o sapato entre os dentes como se fosse um troféu, o animal aproximou-se dela. – Que inteligente da tua parte, ensiná-lo a levar-te os sapatos... Endireitando-se, Michael tirou-lhe o sapato. Estava molhado e cheio de marcas de dentes. – É o segundo sapato que me estraga. Nem sequer teve a decência de comer o mesmo par. E ainda por cima, ainda não encontrei aquela camisola que me tirou. – Não devias deixar a tua roupa espalhada pelo chão – repôs Pandora. – E aquela camisola estava tão velha... Com certeza, Bruno pensou que era um pano.
– Na verdade, nunca come nada teu. – É verdade! – sorriu. Michael olhou atentamente para ela. – Posso saber porque estás tão contente? – Esta tarde telefonaram-me. – E? – Era Jacob Morison. – O produtor? – O produtor – confirmou Pandora. Tentara conter-se, mas transbordava entusiasmo. – Vai fazer um filme novo. Com Jessica Wainright como protagonista. Jessica Wainright era a grande dama do teatro e do ecrã. Brilhante e excêntrica, a sua carreira abraçara duas gerações. – Está reformada. Há cinco anos que não faz nenhum filme. – Pois agora vai fazer um. Realizado por Billy Mitchell. Michael inclinou a cabeça, observando o seu rosto. – Meu Deus! Parece que a coisa é a sério. – Fará o papel de uma condessa meio louca, que vive como uma eremita, e que volta à realidade devido à visita da sua neta. Cass Barkley está prestes a aceitar o papel. – Há material para vários Óscares. E agora... vais dizer-me para que te telefonou Morison? – Wainwright é uma admiradora do meu trabalho. Quer que eu desenhe todas as jóias que aparecerão no filme. Todas! – sem conseguir conter-se, deu uma volta sobre si mesma, a rir-se. – Morison disse-me que a única forma de a convencer a voltar era prometendo-lhe o melhor, até ao último dos seus caprichos... E ela quer-me a mim! Michael deu-lhe um abraço de parabéns. E Bruno começou a dar saltos à sua volta, ladrando. – Vamos comemorar com champanhe! Mas, de repente, Pandora ficou séria. – Sinto-me uma idiota. – Porquê? – Porque sempre tinha pensado que estava... Bom, além da admiração das estrelas de cinema e daquele tipo de gente... Afinal de contas, sou uma profissional e enquanto estava a falar com Morison pensei que esta era uma grande oportunidade para a minha carreira. Mas depois, quando desliguei... Só consegui pensar que era Jessica Wainright! Uma produção de Morison! Senti-me tão parva como uma fã de quinze anos...
– O que demonstra que não és tão elitista como achas que és – interrompeu-a com um beijo. – Estou orgulhoso de ti. Aquilo confundiu-a. Toda a sua alegria foi eclipsada, superada, por aquela simples frase. Nunca ninguém, excepto Jolley, se sentira orgulhoso dela. Os seus pais tinham-na encorajado para fazer tudo o que quisesse. Mas aquilo era diferente. O orgulho ia mais além do afecto. – A sério? – É claro! – Mas tu nunca tiveste uma grande opinião acerca do meu trabalho. – Não, isso não é verdade. Não sou cego, Pandora. Existem coisas no teu trabalho que eu gosto mais que outras, mas no geral, no conjunto, esbanjas talento e imaginação. – Isso é bom! – suspirou. – Hoje é um dia muito especial. Sempre pensei que dissesses que eu «brincava com contas», como costumavas dizer, porque, no fundo, não querias enfrentar-me com um trabalho a sério... – Apenas porque assim conseguia zangar-te, pôr-te furiosa. E ficas linda quando te zangas. Pandora reflectiu por um momento e soltou um suspiro. – Acho que agora é a ocasião mais adequada para te dizer isto. – Dizer-me o quê? – Eu vi a transmissão dos prémios Emmy, sempre que te nomearam. – O quê? – perguntou, a rir-se. – Sempre – repetiu, corada. – Eu gostava que ganhasses. E... – interrompeu-se, aclarando a voz. – E cheguei a ver uns quantos episódios do Logan’s Run. Disse-o como se estivesse a confessar um pecado mortal. – Porquê? – O tio Jolley estava sempre a falar da tua série. Portanto, quis vê-la, para poder julgá-la por mim própria. Obviamente, foi apenas uma questão de curiosidade intelectual. – Obviamente. E? – Bom, dentro do género... Michael começou a torcer-lhe uma orelha. – Lamento ter de utilizar estes métodos. De outra forma receio que não me digas a verdade – Está bem, eu digo... – pronunciou, a rir-se. – É boa! – gritou quando ele continuou a apertar. – Eu gostei. – Porquê? – Michael, estás a magoar-me! – Tenho outras formas de fazer-te falar.
– Eu gostei porque as personagens são muito naturais, o argumento imaginativo e inteligente. E, além disso... tem estilo. Largou-a para lhe dar um beijo sonante nos lábios. – Mas aviso-te de uma coisa – acrescentou ela. – Se contares a alguém, nego tudo. – Será o nosso pequeno segredo – beijou-a novamente. Abraçou-o, contente. Quando o seu coração acelerava, conseguia senti-lo a bater contra o seu. Quando algum gemido escapava dos seus lábios, saboreava-o com a língua. Quando a necessidade aflorava, via-a nos seus olhos. Beijou-o, dando rédea solta ao seu desejo. Sabia que aquilo teria consequências. Mas não o aceitara já? Sofreria e, de facto, preparara-se para aquela dor. Não podia impedir o que aconteceria no fim daquelas semanas, mas podia controlar o que aconteceria naquela noite, e talvez na do dia seguinte. Isso teria de lhe bastar. Michael estava espantado. Pandora mostrara-se frequentemente apaixonada, veemente até. Mas jamais sentira tanta emoção nos seus beijos. Puxou-a docemente para si, deixando-a entregar-se. Fizeram amor sem pressa, com uma intensidade insólita. Enquanto caía a noite, entregaram-se meticulosamente um ao outro. Embora fossem amantes há semanas, pela primeira vez a sua paixão adquirira a forma de amor. A sala estava silenciosa, na penumbra. Sem o procurar, Pandora acabara de encontrar o amor nos braços de Michael. No instante em que tinham atingido o orgasmo juntos, sentira que o seu sentido férreo de independência se quebrara para o deixar entrar. Não se seguira depois uma sensação de fraqueza, tal como esperara, mas outra muito diferente: de prazer, de realização, de prazer absoluto. Continuavam abraçados, a dormitar, quando o telefone tocou. Contrariado, Michael levantou o auscultador. – Sim? – Queria falar com Michael Donahue, por favor. – Sim, sou eu. – Michael, fala Penny. Esfregou os olhos, tentando recordar-se. Penny: a jovem loira que vivia no apartamento ao lado do seu. Queria ser modelo. Lembrava-se vagamente de lhe ter deixado o número de telefone de Folley, para o caso de receber algum correio importante. – Michael, lamento ter de te contar isto. Já chamei a polícia. Estão a caminho. – A polícia? – inquiriu, sentando-se na cama. – O que aconteceu? – Assaltaram-te. – O quê? Quando?
– Não tenho a certeza. Cheguei há pouco a casa e vi que a tua porta não estava completamente fechada. Pensei que talvez tivesses voltado e bati à porta. Ao empurrá-la um pouco, vi que estava tudo uma confusão. A seguir chamei a polícia. Disseram-me para te avisar e não entrar até eles chegarem. – Obrigado – dezenas de perguntas sem resposta assaltaram a sua mente. – Vou tentar estar aí esta noite. – Está bem. Ah, Michael! Lamento. – Até logo. – Michael? – inquiriu Pandora assim que desligou o auscultador. – Alguém entrou no meu apartamento. – Oh, não! – sabia que aquela paz não podia durar. – Achas que foi...? – Não sei – passou uma mão pelo cabelo. – Talvez. Ou talvez, simplesmente, tenha sido alguém que se tenha apercebido de que já estou há muito tempo fora de casa. – Tens de ir. Assentindo, deu-lhe a mão. – Vem comigo. – Michael, um de nós tem de ficar aqui com Sweeney e Charles. – Não vou deixar-te sozinha. – Tens de ir – insistiu. – Se tiver sido alguém da família, talvez consigas encontrar uma forma de o provar. – De qualquer forma, tens de ir lá. Não te preocupes comigo. – Sim. Como da última vez que saí daqui. Lembras-te? – Tenho Bruno. Não olhes assim para mim. Talvez não seja muito feroz, mas sabe ladrar. Fecharei bem todas as portas e janelas. – Não é o suficiente – abanou a cabeça. – Está bem, telefono à polícia. Têm o relatório de Fitzhugh sobre a invasão da casa. Explico-lhes que vou ficar sozinha à noite e peço-lhes para estarem atentos. – Assim é melhor. Mas se se tratar de uma armadilha... – Então, desta vez estaremos preparados. Michael hesitava. No entanto, acabou por aceitar. – Vou telefonar à polícia.
Dez
Quando Michael se foi embora, Pandora correu o pesado ferrolho da porta principal. Embora tivessem demorado quase uma hora, alegrava-se que ele tivesse insistido tanto em verificar todas as portas e janelas da mansão. Agora estava bem segura, trancada a sete chaves. Embora também demasiado silenciosa... Para dominar a sua apreensão, foi à cozinha. Havia duas pessoas idosas na casa que dependiam dela. E tinham de comer. Além disso, cozinhar iria distraí-la. Ligou o rádio e sintonizou uma estação de música country. Depois pegou num dos livros de receitas de Sweeney. Já começara a cozinhar quando o telefone tocou. Depois de limpar as mãos, atendeu-o. – Estou? – Pandora McVie? – Sim. – Ouça com atenção. Não tenho muito tempo. Você está em perigo. Sozinha, não está a salvo nessa casa. – O quê? Quem é você? – Ouça-me. Se está sozinha é porque alguém assim o quis. Alguém pensa entrar em sua casa esta noite. – Alguém? – aguçou os ouvidos. Não sentia maldade naquela voz estranha, mas medo. Não sabia se era de homem ou de mulher, mas estava a tremer. – Se o que pretende é assustar-me... – O que pretendo é avisá-la. Quando descobri... – a voz pareceu hesitar. – Não deviam ter-lhe enviado o champanhe. Eu não gosto do que está a acontecer, mas... Ninguém se ia magoar, percebe? Mas tenho medo do que possa acontecer agora... Pandora sentiu um nó no estômago. Já era noite cerrada. E estava sozinha numa mansão enorme, com dois idosos doentes a seu cargo... – Se é verdade que tem medo, ajude-me. Ajude-me a acabar com isto tudo. – Já estou a arriscar tudo ao avisá-la. Você não compreende. Saia daí, vá-se embora de casa. «Era uma armadilha», pensou Pandora. Uma armadilha para a tirar de casa. – Não vou a lado nenhum. Se quer ajudar-me, diga-me de quem devo proteger-me. – Saia de casa – repetiu a voz antes que a comunicação caísse.
Pandora ficou paralisada, com o auscultador na mão. O azeite da frigideira começara a ferver. Com o olhar cravado nas janelas, desligou o telefone. Era um truque, uma artimanha para a fazer sair de casa, na esperança de que se assustasse o suficiente para ir para a rua. Mas não se deixaria amedrontar por uma chamada anónima. Além disso, Michael já telefonara à polícia. Sabiam que estava sozinha em casa. Ao primeiro sinal de perigo, só teria de lhes telefonar. Ainda lhe tremiam as mãos, mas obrigou-se a continuar a cozinhar. Colocou o frango na frigideira, provou as batatas e decidiu beber um copo de vinho enquanto trabalhava. Estava a servir-se do vinho quando Bruno entrou a correr e começou a dar saltos à sua volta. – Bruno – baixou-se para o acariciar. – Fico contente por estares aqui, comigo – murmurou. Depois de lhe dar algumas lambidelas na cara, dirigiu-se à porta e começou a ladrar. – Agora? Queres sair agora? Não podias esperar até a manhã? Voltou a correr para Pandora, deu uma volta em torno das suas pernas e aproximou-se novamente da porta das traseiras. Teve de o fazer três vezes até ela se dar por vencida. Tentou convencer-se de que o telefonema não passara de uma partida, e bastante má. Além disso, pensou enquanto abria o ferrolho, não lhe faria nada mal dar uma olhadela lá fora... Quando abriu a porta, Bruno saiu a correr. Pandora ficou na soleira, a tentar distinguir alguma coisa na escuridão. Atrás de si só se ouvia a música do rádio e o chiado da frigideira. Não havia nada. O bosque estava silencioso, como sempre. Suspirando, dispôs-se a chamar o cão. Foi então que reparou num movimento entre as árvores. Uma sombra afastou-se lentamente do bosque, ganhando forma progressivamente. Uma forma humana. Antes que Pandora pudesse reagir, Bruno começou a correr para ela, a ladrar. – Não, Bruno! Volta! – sem pensar duas vezes, vestiu o casaco. Teve a prudência, no entanto, de agarrar num tacho pequeno antes de sair atrás do cão. – Bruno! Já estava na primeira fila de árvores, no encalço deles. Pandora continuou a correr para o bosque. Quem estivera a espiá-la, escapulira-se ao ver o animal. Pensando que não era nenhuma covarde, parou para olhar à sua volta, ouvindo com atenção. De início, não ouviu nada. Mas depois, à sua direita, ouviu os latidos de Bruno e o barulho de passos apressados. – Agarra-o, Bruno! – gritou, recomeçando a correr.
Mudava de direcção guiando-se pelos latidos, cada vez mais próximos. Com a pressa, tropeçou num tronco. A cuspir neve e a praguejar entredentes, tentou levantar-se. Mas Bruno apareceu novamente e atirou-a ao chão. – A mim não...! – exclamou, deitada de costas. – Bolas, Bruno! – interrompeuse quando o cão ficou tenso e começou a resmungar. Levantou o olhar e viu uma sombra entre as árvores. Embora tivesse as mãos dormentes do frio, agarrou com força no tacho e levantou-se. Tentando controlar o seu medo, preparou-se para se defender. Bateria naquele desconhecido, fosse ou não um dos seus parentes. Mas tremiamlhe os joelhos. Bruno começou a correr na direcção da sombra e ela levantou o tacho. – O que raios está a acontecer aqui? – Michael! – largou o tacho. Aliviada, atirou-se para os seus braços e cobriulhe a cara de beijos. – Oh, Michael! Estou tão contente por te ver... – Sim. Pois não parecias tão contente há uns segundos atrás, quando estavas a agitar aquele tacho... acabaste a laca? – Bolas! Pregaste-me um susto de morte! Devias estar a caminho de Nova Iorque, não a espreitar no bosque. – E tu devias estar dentro de casa. – Era onde estaria se Bruno não tivesse pressentido a tua presença. Porquê? O que estavas a fazer? – Estava já a quinze quilómetros daqui e não conseguia livrar-me de um mau pressentimento. Isto parecia-me demasiado fácil... Portanto, decidi parar numa bomba de gasolina e telefonar à minha vizinha para a avisar de que não iria lá hoje. – Mas o teu apartamento... – Também falei com a polícia e dei-lhes uma lista dos meus objectos pessoais. Dentro de um dia ou dois iremos juntos a Nova Iorque. Não podia deixar-te sozinha. – Meu Deus! Vou começar a achar que, afinal de contas, és um homem atencioso – beijou-o. – Isso explica porque não estás em Nova Iorque, mas... porque andavas a espreitar entre as árvores? – Foi um pressentimento – baixou-se para apanhar o tacho. – Pois, da próxima vez que tiveres um pressentimento, não fiques na orla do bosque, a espiar a casa. – Não era eu – explicou Michael, repentinamente sério, enquanto lhe pegava no braço e a levava de volta para a mansão. Queria-a lá dentro, segura e protegida de todos os perigos. – Eu vi-te.
– Não sei quem tu viste. Mas se não tivesses deixado sair o cão, a esta hora ambos saberíamos. Decidi dar uma vista de olhos pelas redondezas e descobri algumas pistas. Segui-as. Perdiam-se no bosque – deu uma olhadela por cima do seu ombro, tenso. – Tinha-me aproximado, por detrás, do intruso quando Bruno o alertou – praguejou entredentes, batendo no tacho com o punho. – Estava a ganhar-lhe terreno, mas, de repente, o cão enrolou-se nas minhas pernas e caí na neve. Entretanto, tu já estavas a chamar Bruno aos gritos. E o tipo teve tempo suficiente para desaparecer. Pandora também praguejou, dando um pontapé na neve. – Se me tivesses contado o que se estava a passar, poderíamos ter feito alguma coisa juntos. – Eu não sabia o que se estava a passar até à última hora. De qualquer forma, tínhamos combinado que ficarias dentro da casa. – O cão tinha de sair – murmurou Pandora. – E depois houve aquele telefonema – acrescentou, a suspirar. – Alguém telefonou para me avisar. – Quem? – Não sei. Parecia uma voz de mulher, mas... não tenho a certeza. Michael agarrou-a por um braço, assustado. – Ameaçou-te? – Não, não foi uma ameaça. Quem quer que tenha sido, parecia estar a par da situação e não estava muito contente a respeito. Isso era evidente. Disse-me que havia alguém prestes a entrar em Folley e que eu devia sair de lá. – Sim. E, como é claro, tu reagiste, correndo para o bosque armada com um tacho. Porque não telefonaste à polícia? – Porque pensei que fosse outra partida e porque me zanguei. Sim, de início assustei-me, mas depois fiquei indignada. Eu não gosto de intimidações. Quando saí e vi alguém entre as árvores, fiquei com vontade de o agarrar e... – Admirável! Mas também estúpido. – Pois, mas tu estavas a fazer a mesma coisa. – Não é a mesma coisa. És inteligente, tens cérebro, talento. E muita coragem. Mas não és exactamente uma lutadora de boxe. Bom, chega de discussões. Vamos para casa. Vou telefonar à polícia e contar-lhe tudo. – Mas o que pode a polícia fazer? – Logo vemos. – Está bem, talvez tenhas razão. A verdade é que, até ao momento, não adiantámos muito desde que isto tudo começou. – Não é isso que me preocupa. E se eu não tivesse voltado esta noite? E se aquele tipo te tivesse surpreendido sozinha em casa? – pegou-lhe nas mãos, levando-as aos lábios. – És demasiado importante para mim. Não vou deixar que
nada de mal te aconteça. Aflita pela sensação de prazer que lhe provocaram aquelas palavras, tentou afastar-se. – Posso muito bem tomar conta de mim sozinha... – Talvez – repôs a sorrir, sem a largar. – Mas não terás a oportunidade de o descobrir. Vamos para casa. Estou faminto. – Típico! – comentou Pandora, forçando um tom ligeiro. – Estás sempre a pensar no teu estômago. Oh, meu Deus, o frango! – libertando-se, começou a correr para a casa. – Hei, não estou assim tão faminto...! – correu atrás dela. – Deixei o fogão ligado! – explicou sem parar. Mas, ao contrário dos seus receios, o frango não se queimara. Sweeney salvara-o a tempo. – Sweeney! – exclamou, entrando com Michael na cozinha. – O que está a fazer levantada? – O meu trabalho – sorriu, olhando-os de soslaio. Pelo que podia ver, os seus planos estavam a sair na perfeição. Presumiu que Pandora e Michael tinham decidido sair para apanhar um pouco de ar fresco enquanto faziam o jantar. E que, como jovens que eram, se tinham despistado. – Devia estar deitada – recordou-lhe Pandora. – Ora! Estou farta de estar na cama – os dias de ócio tinham-na aborrecido até ao desespero. Valia a pena, no entanto, vê-la nos braços de Michael. – Sinto-me óptima, a sério. Era incrível. Tinha as faces rosadas, os olhos brilhantes. E não parava de trabalhar. – Tem de continuar a ter calma. Nada de trabalho árduo. – Michael e eu encarregamo-nos das limpezas – deu-lhe umas palmadinhas no ombro. – Nós gostamos de o fazer, a sério. Devida à insistência de Michael e Pandora, jantaram os quatro na cozinha. Charles, sentado ao lado de Sweeney, não sabia muito bem quando devia tossir e quando não. Decidiram ocultar-lhes a visita do desconhecido: uma notícia daquelas seria demasiado forte para dois idosos convalescentes. Acabado o jantar, mandaram-nos deitar e ficaram a lavar a loiça. Eram quase nove horas quando se juntaram na sala para beberem um brandy. Michael acabara de telefonar à polícia. – Estão aqui daqui a pouco. – Sabes uma coisa? Ainda me incomoda ter de falar deste assunto com desconhecidos. Afinal de contas, para além do facto de alguém ter invadido a nossa propriedade, o resto são especulações.
– Deixaremos as especulações para a polícia. – O teu Logan faz sempre as coisas à maneira dele, não faz? – Pandora sorriu. – Pois uma certa pessoa disse-me, uma vez, que não passava de simples ficção – disse-lhe. – Descobri que não gosto que te intrometas no argumento. – Bom, a verdade é que parece que desenvolveste uma típica síndrome de protecção em relação às mulheres, Michael. Isso não combina contigo. – Talvez não. Mas as coisas mudam quando se trata da minha mulher. Olhou-o, arqueando os sobrolhos. Era ridículo que um simples pronome possessivo lhe suscitasse semelhante sensação de prazer. – Tu disseste, a tua mulher? – Sim – começou a acariciar-lhe a nuca. – Algum problema? O seu coração batia acelerado. Pensou que talvez estivesse a falar a sério... mas apenas naquele momento. Passados alguns meses, quando voltasse para o seu mundo, para a sua gente, voltaria a vê-la como sempre vira: a sua prima teimosa e irritante. – Não tenho a certeza. – Pensa nisso – sugeriu-lhe antes de a beijar nos lábios. – Depois continuamos esta conversa. Bateram à porta. Deixando-a corada de desejo, foi abrir. Quando voltou, Pandora estava calmamente sentada numa poltrona de costas altas, em frente à lareira. – Tenente Randall, apresento-lhe Pandora McVie. – Como está? – cumprimentou-a, tirando as luvas. Calvo e um pouco obeso, tinha um aspecto afável, bonacheirão. – Que noite tão desagradável! – comentou, sentando-se diante do fogo. – Aceita um café? – Adoraria – respondeu, lançando-lhe um olhar carregado de gratidão. – Por favor, sente-se. Volto já. Pandora levou algum tempo a preparar a bandeja. Estava nervosa. Nunca falara com um agente da polícia sobre qualquer assunto minimamente complexo, para além de uma multa de estacionamento. Agora, no entanto, estava prestes a falar com o tenente acerca da sua família e da sua relação com Michael. A sua relação com Michael, pensou enquanto colocava o açúcar na bandeja. Por isso se escondera na cozinha. Ainda não fora capaz de superar a sensação que experimentara quando lhe chamara sua mulher. «És uma miúda!», recriminou-se. Era absolutamente absurdo ficar tão embevecida apenas porque um homem a olhara com um brilho de paixão nos olhos. Mas eram os olhos de Michael... Dobrou os guardanapos em triângulos. Não queria ser a mulher de ninguém.
Era uma mulher adulta, independente e auto-suficiente. Só que estava apaixonada. Suspirando, pegou na bandeja e dirigiu-se para a sala. – Leite e açúcar, tenente? – inquiriu, enquanto colocava a bandeja sobre a mesa. – Obrigado. Uma boa dose dos dois. O senhor Donahue esteve a pôr-me ao corrente da situação. Parece que sofreram alguns incómodos. – Efectivamente. – Não vou dar-lhes um sermão – disse-lhes, lançando-lhes um olhar severo. – Mas deviam ter avisado a polícia quando ocorreu o primeiro incidente. Um acto de vandalismo é crime. – Esperávamos que, ignorando-o, evitaríamos que se repetisse – Pandora levou a chávena aos lábios. – Foi um erro. – Preciso de levar a garrafa de champanhe – voltou a olhar para eles com uma expressão reprovadora. – Embora já a tenham analisado, repetiremos a análise nos nossos laboratórios. – Vou buscá-la – Michael levantou-se, deixando-os sozinhos. – Menina McVie, pelo que o seu primo me contou, as condições do testamento que o seu tio fez são... digamos que muito pouco convencionais. – Com efeito. – Também me disse que foi ele quem a convenceu a aceitá-las. – Isso é uma fantasia de Michael, tenente – bebeu um gole de café. – Estou a fazer exactamente o que eu decidi fazer. Randall assentiu. – Partilha com o senhor Donahue a ideia de que todos estes incidentes estão relacionados e que um dos seus parentes é responsável pelos mesmos? – Nisso, não posso discordar. – Tem algum motivo para suspeitar de alguém em especial? – Não. Não somos uma família muito unida. A verdade é que não conheço nenhum deles muito bem. – Excepto o senhor Donahue. – Exacto. Michael e eu visitávamos com frequência o nosso tio, e víamo-nos aqui, em Folley. – Aqui tem o champanhe, tenente – Michael regressou à sala, entregando-lhe a caixa. – E o relatório dos Laboratórios Sanfield. – O advogado do seu tio... – Randall leu as notas que tirara. – O senhor Fitzhugh informou-nos da invasão que aconteceu há várias semanas. Temos um carro de patrulha para esta zona, mas presumo que queiram contar com vigilância permanente. – Preferíamos, naturalmente.
– Falarei com Fitzhugh. Também vou precisar de uma lista dos parentes que figuram no testamento. Pandora franziu o sobrolho. Entre Michael e ela tentaram responder o melhor que conseguiram às perguntas do tenente. Quando acabaram, disse-lhe, como que se desculpando: – Eu disse-lhe que não tínhamos muitas pistas. – O advogado facultar-me-á mais pormenores – repôs Randall enquanto se levantava. – Procederemos à investigação com a maior discrição possível. Se acontecer alguma coisa, telefonem-me. Um dos nossos homens ficará encarregue de vigiar a zona. – Obrigado, tenente – Michael ajudou-o a vestir o casaco. – Já pensaram em instalar um sistema de alarme? – Não. – Pois, pensem nisso – aconselhou enquanto saía. – Levámos um belo sermão – murmurou Pandora quando ficaram sozinhos. Michael interrogou-se se na galeria de personagens de Logan’s Run haveria espaço para um polícia excêntrico e roliço. – Parece que sim. Raios! Estive quase a apanhar aquele tipo... teria adorado apanhá-lo. Prefiro as lutas cara a cara, em campo aberto. – É melhor encararmos isto como um jogo de xadrez, mais do que um combate de boxe – levantou-se para o abraçar pela cintura, encostando a face ao seu ombro. – Nunca tive paciência para o xadrez. – Então teremos de deixar o assunto nas mãos da polícia. Sabes uma coisa, Michael? Estive a pensar no que poderia ter-nos acontecido esta noite – abraçouo com força. – Não quero que te aconteça nada. – Porquê? – levantou-lhe o queixo com um dedo. – Porque... – olhou-o nos olhos, sentindo que o coração se derretia no peito. Mas não faria uma figura ridícula. Não estava disposta a arriscar o seu orgulho. – Porque então teria de lavar a loiça sozinha. Michael sorriu. Não se caracterizava pela sua paciência, mas poderia esperar. Mais tarde ou mais cedo, sabia que acabaria por pronunciar as palavras que tanto ansiava por ouvir. – Mais alguma razão? – Se fosses ferido, não poderias trabalhar. E teria de aguentar o teu mau feitio. – Tenta outra vez – insistiu, beijando-lhe as pálpebras com infinita ternura. – Preocupo-me contigo – abriu os olhos. – Algum problema? – inquiriu, desafiadora. – De modo algum – daquela vez o seu beijo não foi terno, nem paciente. –
Acho que o único problema vem de ti. – Afinal de contas és meu parente, não és? Forçosamente, tenho de me preocupar com o que possa acontecer contigo... Michael soltou uma gargalhada e mordiscou-lhe o lóbulo da orelha. – Não tentes escapar-te... – Eu nunca me escapo – replicou, indignada. – Lembra-te disto. A nossa ligação familiar é afastada. Esta... – puxou-a para si, beijando-a novamente. – Esta não é. – Não sei o que queres de mim – sussurrou. – Que estranho! Da forma como és esperta... – Não brinques, Michael. – Não estou a brincar – afastou-a levemente, acariciando-lhe os ombros. – Não vou explicar-te tudo, Pandora. Não vou facilitar-te a vida. Tens de estar disposta a admitir que ambos queremos o mesmo. E acabarás por o fazer. – Estás a ser muito arrogante – avisou-o ela. – Confiante, queres tu dizer – tinha de o ser; de contrário, corria o risco de cair de joelhos aos seus pés, suplicante. E fá-lo-ia, mas só quando tivesse acabado a última das suas restrições. – Amo-te. – Eu sei – repôs. – Sim – entrelaçou os dedos com os seus. – E acho que tu também me amas.
Onze
O Inverno chegou com toda a sua força. Chegou uma altura em que Pandora teve de abrir caminho entre a neve com uma pá, entre a casa e o atelier. Quase agradecia o esforço físico. O Inverno era uma estação silenciosa, com demasiadas horas para pensar. Durante aquele tempo chegara a conclusões um tanto incómodas. Sabia que nunca voltaria a ser a mesma. A súbita convicção de que a sua saúde, a sua vida até, estivera em perigo, mudara radicalmente a sua perspectiva, sobretudo o seu ponto de vista. Fizera-a dar valor a coisas simples, que sempre encarara como garantidas. Acordar numa cama quente, ver cair a neve diante do fogo da lareira. Aprendera que, na vida, cada segundo era fundamental. Renunciara ao seu apartamento na cidade. Em vez de viver sozinha, contaria com a companhia e responsabilidade de tomar conta de Sweeney e Charles. Embora há anos atrás se tivesse comprometido a responsabilizar-se unicamente pela sua arte e por si mesma, tomara aquela decisão sem qualquer hesitação. Pensou em Michael. Passadas algumas semanas, a sua relação teria acabado. O longo Inverno que tinham partilhado ocuparia os seus pensamentos durante todos os Invernos vindouros. Enquanto se preparava para a sua nova vida, prometeu a si própria que não se arrependeria de nada. Mas não conseguiria evitar ter desejos, nostalgia. As coisas já estavam a mudar. A polícia aparecera. Tudo o que era valioso no seu atelier tinha de ser guardado a sete chaves e tinham-se acabado os passeios solitários pelos bosques. Percorrer Folley todos os dia, verificando as portas e as janelas, transformara-se numa espécie de ritual. Frequentemente, quando voltava para casa do atelier, via Michael a vigiar pela janela. Sabia que estava à espera que acontecesse alguma coisa. E sabia também que, de alguma forma, o desejava. A inactividade estava a afectá-lo demasiado. Desde que tinham ido a Nova Iorque, para ver a destruição que alguém causara no seu apartamento, Michael mostrara-se distante, com uma espécie de inquietação constante a vibrar por debaixo, como uma corrente subterrânea. Embora ambos compreendessem a necessidade da polícia patrulhar os arredores, sentiam-na como uma intromissão, uma intrusão nas suas vidas. Não estavam muito optimistas em relação à investigação policial. Todos os seus parentes tinham um álibi para cada um dos incidentes ocorridos. Desde que a polícia interviera no caso, nada de estranho voltara a acontecer. Tinham-se
acabado os telefonemas anónimos, as sombras entre as árvores, os telegramas falsos. Mas a situação familiar também piorara. Pandora fora obrigada a aguentar um telefonema indignado de Carlson, a protestar energicamente. Quase imediatamente, recebera uma carta incoerente de Ginger, a argumentar que a casa estava enfeitiçada. Michael tivera uma conversa breve e lancinante com Morgan. E Biff, no seu estilo habitual, enviara-lhes um telegrama sucinto: Polícias e ladrões? Parece que os dois estão a divertir-se muito. De Hank não tinham recebido nenhuma notícia. O laboratório da polícia confirmara a análise do champanhe. Randall continuava a trabalhar com tanta meticulosidade como discrição. De modo que, continuavam exactamente como há semanas atrás: À espera. Andando pelo caminho que Pandora escavara na neve, Michael perguntou-se como conseguia permanecer tão tranquila quando ele estava tão inquieto. Tinham-lhe chegado alguns dias para que se apercebesse de que o pior era, efectivamente, que não acontecesse nada. Esperar que a outra pessoa desse o primeiro passo era uma forma refinada de tortura. Enquanto Pandora não estivesse completamente a salvo, não conseguiria relaxar. Parando em frente ao atelier, virou-se para contemplar a mansão. Parecia a imagem de um conto de fadas. Sempre lhe encantara. E não tinha muita certeza de como Pandora encararia a sua decisão de continuar nela, quando expirasse o prazo imposto pelo testamento. O seu último argumento da temporada já estava pronto. Poderia, como já fizera antes, tirar algumas semanas livres no princípio da Primavera e ir para alguma praia de sonho. Um lugar onde pudesse pescar e desfrutar. Sabia, no entanto, que não iria a lado nenhum. Durante os últimos dias estivera a pensar num argumento para um filme. A ideia já lhe ocorrera antes, mas houvera sempre alguma coisa que o impedira de a concretizar. Sabia que poderia escrevê-lo ali, com Pandora a trabalhar por perto. Mas estava à espera. À espera que acontecesse alguma coisa, à espera que a pessoa que tentara intimidá-los finalmente aparecesse. E, acima de tudo, estava à espera de Pandora. Enquanto não lhe concedesse a sua confiança, enquanto não lhe entregasse abertamente o seu coração, teria de continuar à espera. Fechou e abriu os punhos várias vezes. Precisava de acção, de movimento. Rodou a maçaneta e alegrou-se por Pandora ter cumprido a sua promessa, trancando-se à chave no atelier. – Pandora? – bateu à porta. Abriu a porta com uma broca na mão.
– Estou desarmado – anunciou, divertido, levantando as mãos num gesto de rendição. – E eu estou ocupada – mas sorriu, com um brilho de prazer nos olhos. – Eu sei. Estou a interromper as tuas horas de trabalho, mas tenho uma boa desculpa. Sweeney encarregou-me de fazer algumas compras e insistiu para que me acompanhasses. Estas foram as palavras dela: «aquela rapariga passa demasiado tempo fechada naquele buraco. Precisa de apanhar um pouco de sol». – Ela disse mesmo isso? – a ideia de uma ida à cidade atraía-a. Não seria má ideia falar com o joalheiro. Começava a pensar que o seu trabalho deveria difundir-se mais, além das grandes cidades. – Acho que vou ter de lhe agradar, mas primeiro tenho de acabar uma peça. – Não tenho pressa. – Está bem. Meia hora, então – deu meia volta e regressou para a sua mesa de trabalho. Minutos depois, como não ouviu o ruído da porta, virou-se e viu Michael a examinar as suas ferramentas. – Michael... – murmurou com um tom de exasperação. – Continua, demora o tempo que precisares. – Não tens mais nada que fazer? – Absolutamente nada. Relaxa. Imagina que sou um aprendiz. O que é aquela coisa? – Aquela coisa é um brinco. Um efeito cascata feito com fio de cobre e alguns apliques de prata que restaram de uma pulseira. – És sempre tão prática! E aquele esboço de uma pulseira? É muito exótica! – É suposto ser – repôs Pandora. – Jessica Wainright vai usá-la no filme. Será o presente de um antigo amante, um príncipe turco. – Muito apropriado – observou atentamente o desenho. Depois reparou numa grosa de metal com acabamento numa ponta curva, em aço. – Meu Deus! Esta ferramenta poderia ser uma arma mortífera. – Desculpa? – Num dos meus argumentos, quero dizer. – Deixa as minhas ferramentas em paz e não as impliques nas tuas histórias – tirou-lhe a grosa das mãos. – Queres almoçar na cidade? – perguntou-lhe, enquanto vestia o casaco. – Ia perguntar-te o mesmo. – Eu fui mais rápida – saíram do atelier e ela fechou a porta à chave. – A neve está a começar a derreter. – Sim. Dentro de poucas semanas, as cinco dúzias de bolbos que Jolley plantou começarão a florescer.
– Narcisos – murmurou Pandora. Parecia impossível, mas a Primavera estava a aproximar-se. – Afinal, o Inverno não me pareceu assim tão longo. – A mim, também não – passou-lhe um braço pelos ombros. – Nunca imaginei que estes seis meses pudessem passar tão depressa. Estava convencido de que nos matávamos um ao outro antes do fim do tempo. – Bom, ainda falta um mês – repôs Pandora, soltando uma gargalhada. – Mas agora temos de nos portar bem. O tenente Randall tem-nos vigiados – recordou-lhe. – Então receio que já tenhamos desperdiçado a nossa oportunidade – virou-se para lhe colocar os braços à voltar do pescoço. – Houve vezes em que teria gostado de te espetar algum instrumento cortante, como aquela grosa... – O sentimento é recíproco – beijou-a nos lábios. – Hei, olha para aquilo! – exclamou Sweeney a Charles, assomada à janela da cozinha. – Disse-te que resultava. Daqui a algumas semanas estou a fazer o bolo de casamento. Enquanto Charles se juntava a Sweeney à janela, Pandora baixou-se para apanhar um bocado de neve e atirá-lo à cara de Michael. Para evitar represálias, correu para a garagem. Um segundo depois uma bola de neve bateu na porta. – Falhaste, primo! – abriu a porta e entrou apressadamente para o carro. Satisfeita, acomodou-se no banco. Michael nunca se atreveria a sujar de neve os seus tapetes imaculados. Mas quando se sentou ao volante, deitou-lhe um monte de neve em cima da cabeça. Pandora continuava a queixar-se quando ele ligou o motor. – Sou melhor nas distâncias curtas. Limpou a cara. Por muito que se esforçasse, era incapaz de se indignar. – Qualquer um teria pensado que um homem com um carro tão caro seria um pouco mais cuidadoso com ele. – Depende para que queiras o carro. Eu comprei-o porque consome pouca gasolina. E porque as ruivas ficam muito bem nele. – E as loiras, e as morenas... – As ruivas – corrigiu-a, enrolando sensualmente um dedo numa madeixa do seu cabelo. – Prefiro-as às outras. Novamente, arrancou-lhe um sorriso. E continuava a sorrir quando começaram a descida pela estrada íngreme da montanha. De repente, Michael fez uma curva com demasiada velocidade, fazendo chiar os pneus. Pandora olhou assustada para ele. – Michael, se estás a tentar impressionar-me com as tuas habilidades como
condutor, aviso-te de que não está a resultar... Mas o problema era outro: o pedal do travão não funcionava. Agarrando no volante com uma mão, puxou o travão de mão. Nada. – Não temos travões – explicou, olhando para o velocímetro. Iam a noventa quilómetros por hora. Os pneus voltaram a chiar na curva seguinte e chegaram a roçar no rail de protecção. Pandora observou a estrada serpenteante que se desenrolava diante deles. Sentia a vista nublada por um momento. No início da curva seguinte, um sinal de trânsito mandava reduzir a velocidade para quarenta quilómetros por hora e Michael ia a cem. Pandora fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, viu que se dirigiam directamente contra uma valeta cheia de neve e soltou um grito. Michael deu uma guinada brusca no volante e passaram a roçar na neve, sem sair da estrada. – Só temos uma oportunidade – resmungou. – Entrar no desvio que leva à velha estalagem. Fica logo depois daquela curva – não podia afastar os olhos da estrada para olhar para ela. Tinha os dedos cravados no volante. – Agarra-te com força! Pandora achou que ia morrer. Ouviu o chiado das rodas quando Michael dava novamente uma guinada no volante. O carro balançou, prestes a virar-se. Viu que passavam quase a roçar nas árvores enquanto entravam junto à berma da estrada. Por um instante, pareceu que os pneus se agarravam ao chão de cascalho, mas a curva era demasiado fechada e a velocidade demasiado elevada. Fora de controlo, o carro começou a capotar em direcção às árvores. – Amo-te! – sussurrou, agarrando-se a Michael, antes que tudo ficasse negro. Michael recuperou, a pouco e pouco, a consciência. Sentia dor e, de início, não percebeu porquê. Ouviu um barulho. Finalmente, virou a cabeça e viu um menino que olhava para ele com os olhos muito abertos, do outro lado da janela. – Senhor, eh, senhor... sente-se bem? Desorientado, conseguiu abrir a porta. – Procure ajuda – pediu-lhe, esforçando-se por se recuperar. Teve de respirar fundo várias vezes, enquanto o rapaz desaparecia a correr no bosque. – Pandora... – o medo decepou a bruma do seu atordoamento. Imediatamente, inclinou-se sobre ela. Tremia-lhe a mão enquanto tentava sentir-lhe a pulsação, mas sentiu. Tinha um corte na testa e o sangue corria-lhe pela cara. Apertou-lhe a ferida com os dedos, enquanto abria o porta-luvas para tirar a sua caixa de primeiros socorros. Conseguiu parar a hemorragia e estava a confirmar se não tinha nenhum osso
partido quando a ouviu gemer. – Calma, calma! – sussurrou-lhe. – Não te mexas – quando abriu os olhos, viu que tinha o olhar vidrado, perdido. Embalando-lhe o rosto entre as mãos, continuou a sussurrar-lhe palavras tranquilizadoras. – Os travões... – Sim. Mas escapámos com vida. Confusa, olhou à sua volta. O carro parara a um passo de uma árvore. Felizmente, a neve acumulada travara-os. – Estamos... Estás bem? – perguntou-lhe, chorosa, embalando-lhe também a cara. – Sim, parece que sim... – Estou fantástico – disse, irónico. Doía-lhe terrivelmente a cabeça, mas estava vivo. – Não, não te mexas. Ainda não sabemos se tens alguma lesão séria. Um menino encontrou-nos. E foi à procura de ajuda. – A única coisa que me dói é a cabeça. Oh, meu Deus! Tens sangue nas mãos... – Não é meu. É teu. Fizeste um pequeno corte na testa, nada de grave. Levou uma mão trémula à ligadura. A ferida doía-lhe, mas conseguia aguentar. Se lhe doía, era sinal que estava viva. – Pensei que estava morta – fechou os olhos. – Que tínhamos morrido os dois. – Estamos bem – ouviram a sirena da ambulância, a aproximar-se cada vez mais. – Sabes o que isto foi, não sabes? – Sim. Uma tentativa de assassinato. O tenente Randall encontrou Michael no hall da unidade de urgências. – Parece que tiveram problemas – sentou-se no banco, ao seu lado. – Acha? Randall apontou para o pulso que tinha ligado. – É grave? – Não. Só alguns arranhões e uma forte dor de cabeça. Da última vez que o vi, o meu carro parecia um acordeão. – Vamos tratar de o apanhar. O que aconteceu? – Alguém nos sabotou os travões. – Sim. Quando foi a última vez que usou o carro? – quis saber o tenente, tirando notas. – Há cerca de dez dias – cansado, esfregou as têmporas. – Quando fui a Nova Iorque para falar com a polícia sobre o que aconteceu no meu apartamento. – Onde guarda o carro? – Na garagem.
– Trancado? – A garagem? – inquiriu sem parar de olhar para o corredor por onde desaparecera Pandora. – Não. Há uns anos atrás, o meu tio instalou uma daquelas fechaduras por controlo remoto, mas depois decidiu retirá-la. O carro de Pandora está lá – lembrou-se de repente. – Se também o tiverem... – Vamos verificar. A menina McVie estava consigo? – Sim, neste momento estão a observá-la – pela primeira vez em várias semanas, sentiu uma vontade tremenda de acender um cigarro. Baixou o olhar para as suas mãos e lembrou-se do sangue de Pandora. – Quando encontrar o responsável por isto... – Não me diga nada que eu possa usar contra si depois – avisou-o Randall. – E deixe a polícia fazer o seu trabalho, senhor Donahue. – Alguém está a jogar um jogo perigoso, mortal, com a pessoa mais importante no mundo para mim – repôs, olhando fixamente para ele. – Se você estivesse no meu lugar, contentar-se-ia esperando calmamente? Randall esboçou um leve sorriso. – Sabe uma coisa, Donahue? Nunca perco um episódio da sua série. É óptima! E alguns dos meus casos parecem-se extraordinariamente com os que você inventa. O problema é que as coisas não funcionam da mesma forma na realidade. Ah, aí vem a menina! Michael levantou-se como uma mola. – Eu estou bem – disse-lhe, adiantando-se à sua pergunta. – Não completamente – rematou o jovem médico que a acompanhava. – A menina McVie tem um traumatismo craniano. – Deu-me alguns pontos na cabeça e agora quer manter-me prisioneira – sorrindo, agradecida ao médico, deu o braço a Michael. – Vamos para casa. – Um momento – Michael virou-se para o médico. – Quer mantê-la no hospital? – Qualquer paciente que sofre um traumatismo craniano deve passar por um exame rotineiro. A menina McVie devia passar a noite aqui e... – Não vou ficar no hospital por causa de uma simples pancada na cabeça. Oh, boa tarde, tenente! – Menina, McVie... Levantando o queixo, virou-se novamente para o médico. – Seguirei o seu conselho. Descansarei e farei repouso. Ao primeiro sinal de náusea ou enjoo, virei para cá. Terá de se contentar com isso. Longe de se sentir satisfeito, o médico disse a Michael: – Como é óbvio, não posso obrigá-la a ficar – e a seguir dirigiu-se a Pandora. – De qualquer forma, quero vê-la daqui a uma semana. E tem de repousar durante
vinte e quatro horas. Na cama! – É o que vou fazer – apertou-lhe a mão. – Foi muito amável. – Uma semana – repetiu antes de dar meia volta e desaparecer pelo corredor. – Qualquer um perceberia... – murmurou Michael, – que queria manter-te aqui para passar a noite toda a olhar para ti. – Claro! Estou fantástica com a cara cheia de sangue e um buraco na cabeça. – Não duvides – beijou-a numa face, aproveitando para lhe olhar para a ferida. Os pontos, limpos e pequenos, desapareciam sob a linha do cabelo. Eram seis. – Vamos para casa para que possa começar a mimar-te, o quanto antes. – Eu levo-vos – ofereceu-se Randall. – Assim posso dar uma vista de olhos, de passagem. Sweeney deitou Pandora, cinco minutos depois de a ver entrar pela porta. Se tivesse tido forças, teria resistido, mas resignou-se a comer uma sopa quente e a deixar-se mimar. Depois tentou manter-se acordada. Armada com o seu caderno de esboços e um lápis, entreteve-se a desenhar. E quando se cansou, começou a pensar. Tinham tentado assassiná-los. Tentara convencer-se antes de que a sua vida estava ameaçada, mas de alguma forma a ideia parecera-lhe distante, remota. Quem teria ansiado tanto a fortuna de Jolley para matar por ela? Um tio, uma tia, um primo? Lentamente, de cor, dedicou-se a desenhar os seus parentes. Talvez, dessa forma, conseguisse descobrir alguma coisa que estivesse enterrada no seu subconsciente... Quando Michael entrou, viu os desenhos alinhados em cima do edredão. – Parece uma galeria de monstros. Tinha vindo directamente da garagem, onde Randall e ele tinham encontrado o líquido dos travões derramado sobre o chão de cimento. Não todo. O autor da sabotagem deixara-lhes líquido suficiente para que o carro trabalhasse normalmente durante os primeiros quilómetros. E o mesmo acontecera com o carro de Pandora. – O que vês nestes desenhos? – perguntou-lhe ela. – Que tens um talento enorme e que devias dedicar-te à pintura. – Refiro-me às caras. Não há nada nos rostos deles. Não há vivacidade, nem brilho, nada que me indique que são capazes de matar. – Qualquer um é capaz de matar. Oh, sim! – insistiu ao ver que se dispunha a protestar. – Qualquer um. Basta que o móbil encaixe com a personagem, as circunstâncias, a sua necessidade. Quando uma pessoa se sente ameaçada, mata. Muitas vezes é só questão de as suas vidas, ou as dos seus entes queridos, se
encontrarem ameaçadas. – Isto é completamente diferente. – Não – sentou-se na cama. – A diferença é apenas de grau. Há gente que mata porque o seu lar ou as suas posses se encontram ameaçadas. Ou por um desejo de poder ou de riqueza, posto em perigo. – Portanto, qualquer pessoa, por muito convencional ou anódina que seja, pode matar para satisfazer esse desejo. – Um deles tentou – Michael apontou para os desenhos. – A tia Patience, por exemplo, com o seu rosto bochechudo e a sua miopia. – Não podes pensar realmente que... – Professa por Morgan um amor incondicional, quase obsessivo. Nunca se casou. Porquê? Porque sempre se dedicou a cuidar do seu irmão – levantou outro desenho. – Ou o próprio Morgan. Brusco, mal-educado, inculto. Para ele, Jolley não passava de um louco incómodo. – E para os outros, também. – Exacto. Carlson, rígido e direito. O único filho vivo de Jolley. – Tentou impugnar o testamento. – Era lógico. Mesmo assim, sabia que o seu pai era muito ardiloso, talvez mais do que ninguém. E decidiu alcançar o seu objectivo de uma forma mais... directa? Quanto a Biff... – riu-se ao olhar para o desenho. Pandora desenhara-o exactamente como era. Egoísta, sempre a pensar em si mesmo. – Não o imagino a sujar as mãos até este ponto – repôs ela. – Nem por cento e cinquenta milhões de dólares? Eu, sim. E a pequena Ginger. Será realmente tão doce e tonta como parece? Ou Hank – viu que Pandora o desenhara a flectir os braços. – Contentar-se-ia com alguns milhares quando poderia ter milhões? – Não sei. A questão é exactamente essa – olhou para os desenhos. – Não sei nem sequer quando os tenho a todos à minha frente. – À tua frente, estás tu a dizer? – murmurou Michael. – Talvez seja essa a resposta. Acho que chegou o momento de organizarmos uma bela festa de família. – Uma festa? Não estás a pensar convidá-los para virem aqui. – É perfeito. – Não virão. – Oh, claro que virão! – já estava a imaginar tudo. – Podes contar com isso! Daqui a uma semana o médico vai ver-te novamente. Se ele confirmar que estás em perfeitas condições, começaremos a fazer o nosso jogo. Porque eles já jogaram muito connosco. – A jogar, estás tu a dizer?
– Uma semana – repetiu-lhe, embalando-lhe o rosto entre as mãos. – Estás um bocadinho pálida. – É normal, quando se tem um traumatismo craniano. Vais dar-me miminhos? – Isso é pouco – de repente, ficou sério. – Oh, Deus! Pensei que te tinha perdido... – Teríamos ficado um sem o outro se não tivesses controlado o carro tão bem – encostou-se ao seu peito. – Mas salvámo-nos – afastou-a para olhar fixamente para ela. – E agora... vamos falar do que me disseste antes de sairmos da estrada. – Não comecei a gritar? – Não. – Se critiquei a tua forma de conduzir, peço desculpa por isso. – Disseste que me amavas – viu que abria a boca com ar de verdadeira surpresa. – Tecnicamente, aquilo foi uma confissão à beira da morte. Pandora só se lembrava de se ter agarrado a ele nos últimos segundos, convencida de que iam morrer juntos. – Estava histérica. – A sério? Não parecias. – Michael, tu ouviste o médico. Não devo sofrer nenhum tipo de tensão. Se queres fazer alguma coisa útil, vai ver se há mais chá. – Tenho um remédio melhor para relaxares – deitou-se ao seu lado. Docemente, com infinita ternura, acariciou-lhe uma face com os lábios. – Quero que me digas aquilo outra vez, agora mesmo... – Michael... – Fica quieta. Vou cuidar de ti, muito bem – murmurou, embalando-a contra o seu peito. – E quando estiveres bem, cuidaremos um do outro. – Amanhã estarei óptima – declarou com voz sonolenta. – Com certeza que sim. Ainda não me respondeste. Estás apaixonada por mim, Pandora? Estava tão cansada, tão esgotada... Não conseguia resistir. – E se estiver? – olhou para ele. Michael estava a dar-lhe uma massagem deliciosa nas têmporas, aliviando-lhe a dor. – As pessoas apaixonam-se e desapaixonam-se constantemente... – As pessoas – baixou a cabeça para a beijar nos lábios. – Mas Pandora não, pois não? Isso incomoda-te, não é? Queria fulminá-lo com o olhar, mas não conseguia. Em vez disso, fechou os olhos. – Estou a fazer todos os possíveis para corrigir a situação. Apertou-a nos seus braços, satisfeito com o momento. Pandora amava-o. Tinha
tempo para fazer com que se habituasse à ideia. – Avisa-me quando conseguires – e acabou de a adormecer.
Doze
Michael examinava as manchas escuras no chão da garagem com uma espécie de fascínio sombrio. Esvaziar o líquido dos travões do carro da vítima era um truque muito batido, típico de qualquer série de televisão. E o mesmo poderia dizer-se do champanhe envenenado ou do telegrama falso. De repente, apercebeu-se. Na temporada passada, uma das protagonistas de Logan’s Run fora fechada numa adega, às escuras. Como não se apercebera antes? Cada uma das agressões que tinham sofrido poderia ter saído de qualquer um dos seus argumentos. Randall indicara-o subtilmente, em tom de brincadeira. Mas não tinha nada de engraçado. Praguejou entredentes. Deveria ter-se apercebido antes. Mas tratando-se de uma coisa acidental ou planeada, não ia deixar que gozassem com ele daquela forma. Copiaria o seu movimento seguinte de um clássico dos livros de mistério. Quando entrou em casa, levantou o telefone e concentrou-se em planear a sua jogada. Acabava de fazer a sua última chamada quando Pandora foi à procura dele. – Michael, tens de fazer alguma coisa com Sweeney. Encostou-se ao corrimão das escadas, a observá-la. Estava maravilhosa: descansada, saudável... e irritada. – Não devias estar a dormir a sesta? – A questão é exactamente essa. Não preciso de dormir a sesta. Já se passou uma semana desde o acidente. Fui ao médico e ele diz que estou bem. A questão é que se Sweeney continuar a cuidar assim de mim, de uma maneira tão exagerada... acho que vou ter uma recaída – colocou-se à frente dele, levantando o queixo. – E o que queres que faça? – Ela ouve-te. Não sei porquê, mas meteu na cabeça que és infalível. O senhor Donahue para aqui, o senhor Donahue para lá... – Não te preocupes. Durante os próximos dias, Sweeney vai estar demasiado ocupada para continuar a mimar-te. Vai ter de preparar o jantar da festa. – Que festa? – A que vamos dar para a próxima semana, para os nossos parentes. – O que andas a tramar? – desviou o olhar para o telefone, recordando-se que estivera a usá-lo antes. – Só estou a preparar o cenário adequado, prima. Sweeney vai ter de tirar a
melhor baixela de porcelana, embora duvide que tenhamos tempo de a usar. – Michael – não queria parecer uma covarde, mas o acidente ensinara-a a ser precavida. – Não podemos convidar os nossos parentes. Um deles tentou matarnos. – E falhou – pegou-lhe no queixo. – Não achas que vai tentar outra vez e mais outra? A polícia não pode patrulhar as redondezas por tempo indefinido. Vamos acabar com este assunto, de uma vez por todas. E desta vez será à minha maneira. – Não estou a gostar disto. – Pandora – sorriu-lhe. – Confia em mim. Segundos antes de aparecer o primeiro carro, Pandora tinha a certeza de que não compareceria ninguém. Discutira exaustivamente o plano com Michael, até acabar por o aceitar. Para a ocasião escolhera um elegante vestido preto, sem alças, com um vistoso colar de prata que ela própria desenhara e uns brincos a condizer. Se Michael queria um pouco de teatralidade... para quê discutir com ele. Conforme a hora do jantar foi-se aproximando, os seus nervos iniciais transformaram-se numa fria determinação. Quando Michael a viu no cimo da escada, ficou sem fala. – Perfeita! – comentou, deslumbrado. Pegou-lhe na mão. – Elegante e sexy. Hitchcock ter-te-ia transformado numa estrela. Nervosa? – Não tanto como pensava que estaria. Se isto não resultar... – As coisas não podem ficar piores do que já estão. Já sabes o que tens de fazer. – Ensaiámos meia dúzia de vezes. – Bom, parece que o nosso primeiro convidado acabou de chegar – murmurou ao ouvir o carro. Deu-lhe um beijo rápido. – Começa o teu papel. Meia hora depois, todos os que tinham estado presentes na leitura do testamento encontravam-se novamente na biblioteca, à excepção de Fitzhugh. Não pareciam mais relaxados que na primeira vez. Jolley observava-os do seu grande retrato a óleo. De vez em quando, Pandora olhava para ele como que à espera que lhe sorrisse ou lhe piscasse um olho. Carlson encontrava-se de pé, ao lado de uma estante, com a sua esposa. Tinha um ar contrariado e impaciente quando Pandora se aproximou. – Tio Carlson, fico muito contente por ter vindo. Não costumamos ver-nos muito. – Deixa-te de falsas simpatias – agitava o seu copo de uísque, nervoso, sem beber. – Se o que queres é convencer-me a retirar a impugnação àquele testamento absurdo, aviso-te que não vais conseguir.
– Não era essa a minha intenção. Fitzhugh garantiu-me que não tem a mínima possibilidade – esboçou um sorriso radiante. – Mas tenho de concordar consigo no absurdo do testamento, sobretudo na cláusula que me obrigava a conviver com Michael durante estes meses todos. Confesso-lhe, tio Carlson, que houve vezes em que pensei seriamente em desistir. Michael fez todos os possíveis por transformar este tempo todo num inferno. Uma vez, fingiu que a mãe dele estava doente e foi para a Califórnia. Quando dei por mim, tinha ficado trancada na cave. Brincadeira de miúdos – murmurou, lançando a Michael um olhar carregado de desgosto. Pelo canto do olho viu que Carlson bebia um gole de uísque, nervoso. – Mas, finalmente, o castigo está prestes a acabar – sorriu novamente. – E Michael vai abrir aquela garrafa de champanhe que esteve a guardar desde o Natal... Naquele instante, a esposa de Carlson deixou cair o seu copo em cima do tapete. – Meu Deus! – exclamou Pandora. – Quer que lhe traga outro? – Não, não é preciso – Carlson agarrou a sua mulher pelo braço. – Com licença! Enquanto se retiravam, Pandora tremeu de entusiasmo. Portanto fora Carlson... – Deixei de fumar há cerca de seis meses – estava Michael a dizer a Hank e à sua mulher. – Garanto-te que não vais arrepender-te – assentiu, aprovador. – És responsável pela tua própria saúde. – Ultimamente, tenho andado a pensar muito nisso – repôs Michael. – Mas viver com Pandora, durante os últimos seis meses, não me facilitou nada a vida. Transformou este Inverno num verdadeiro inferno. Fez com que alguém me enviasse um telegrama falso para que tivesse de ir à Califórnia, achando que a minha mãe estava doente. – Bom, se aguentaste seis meses sem fumar... – começou Megan, tentando voltar ao assunto da sua saúde. – É um milagre que tenha conseguido aguentá-la durante tanto tempo. Mas agora está tudo quase a acabar – sorriu a Hank. – Em vez de sumo de cenoura, vamos beber champanhe ao jantar. Tenho estado a guardar uma garrafa desde o Natal, à espera da ocasião certa... Viu que os dedos de Hank ficavam tensos em torno do seu copo e que Meg mudava de cor. – Nós não... – Hank virou-se para Meg. – Nós não bebemos álcool. – Oh, mas isto é diferente. Trata-se de uma comemoração – insistiu Michael com tom jovial. – Com licença – dirigiu-se para o bar para se servir de uma bebida, esperando que Pandora se aproximasse. – É Hank.
– Não – replicou ela num sussurro, servindo-se de um vermute. – É Carlson – seguindo o combinado, acrescentou em voz alta: – És um chato insuportável, Michael! Nem o maior tesouro à face da terra poderia compensar viver contigo. – E tu tens a mania que és uma intelectual! – brindou com o seu copo, irónico. – Estou a contar os dias que faltam, podes ter a certeza. Virando-se, Pandora foi ter com Ginger. – Juro-te que não sei como aguento aquele homem. – Pois, a mim sempre me pareceu muito interessante. – Isso é porque não tiveste de conviver com ele. Só estávamos aqui há uma semana quando entrou no meu atelier e o destruiu por completo. Depois tentou convencer-me de que fora um vagabundo. Franzindo o sobrolho, Ginger começou a retocar a maquilhagem. – Pois eu acho que ele nunca me faria nada parecido. Eu disse-lhe que... – interrompeu-se de repente, olhando para ela com um sorriso trémulo. – Que brincos tão bonitos! Michael, por sua vez, encheu-se de coragem para ouvir o que Morgan tinha a dizer-lhe a respeito dos mercados de valores. Quando teve uma oportunidade para intervir, aproveitou-a. – Quando estiver tudo resolvido, preciso que me ajudes. Estive a pensar em envolver-me mais activamente numa das empresas químicas de Jolley. Há muito dinheiro no negócio dos fertilizantes... e dos pesticidas – viu que Patience torcia as mãos, nervosa, olhando de esguelha para Morgan. Pandora, entretanto, tentava, em vão, arrancar informação a Ginger. Passados cinco minutos, desconfiada, confusa e com uma grande dor de cabeça, optou por desistir. Decidiu tentar com Biff. – Estás com bom aspecto – sorriu-lhe, depois de cumprimentar a sua mulher. – Tu, pelo contrário, estás um bocadinho pálida, prima. – Os últimos seis meses não foram exactamente umas férias – olhou de esguelha para Michael. – Não entendo como é que o tio Jolley gostava tanto dele. Além de ser um chato, tem um gosto perverso por brincadeiras de mau gosto. Um dia, lembrou-se de me fechar na cave. – Bom – Biff baixou o olhar para o seu copo, a sorrir, – tu sabes que Michael nunca teve a nossa classe. Pandora teve de morder a língua antes de assentir. – Sabes? Até me telefonou uma noite, a disfarçar a voz. Tentou assustar-me dizendo-me que alguém tinha a intenção de me matar. Biff arqueou os sobrolhos. Parecia realmente espantado. – Que estranho! – Bom, felizmente agora está quase a acabar. É verdade, gostaste do
champanhe que te enviei? – Champanhe? – apertou com força o seu copo. – Sim. A seguir ao Natal. – Oh, sim! – levantou novamente o seu copo, observando-a enquanto bebia. – Com que então, foste tu. – Lembrei-me da ideia quando alguém enviou a Michael uma garrafa como presente de Natal. Decidiu abri-la esta noite. Com licença, quero ver como vai o jantar... Trocou um olhar de cumplicidade com Michael enquanto saía da biblioteca. O cenário já estava preparado. Na cozinha, Sweeney estava a dar os últimos retoques à comida. – Se têm fome... – informou-a, – já só terão de esperar cerca de dez minutos. – Sweeney, temos de desligar já o quadro de electricidade. – Eu sei, eu sei. Já estou a acabar... Sweeney tinha instruções muito precisas: ao sinal de Pandora, descia à cave, desligava a electricidade e depois esperava exactamente um minuto antes de voltar a ligá-la. Mostrara-se céptica em relação ao plano de Michael, mas por fim decidira participar. Limpando as mãos ao avental, a cozinheira dirigiu-se para a adega enquanto Pandora regressava para a biblioteca. Michael colocara-se perto da secretária. Quando a viu entrar, fez-lhe um gesto discreto com a cabeça. Não precisou de olhar para ela para saber que ocupara a sua posição. – O jantar será servido dentro de dez minutos – anunciou Pandora com uma expressão radiante. – Temos tempo de sobra – pronunciou Michael. – Todos vocês devem estar a pensar por que razão vos convidámos para esta noite – levantou o seu copo, observando a fila de rostos. – Vou tirar-vos essa dúvida. Um de vocês é um assassino. Naquele preciso instante, apagou-se a luz e reinou o mais absoluto caos. Copos entornados, um grito de mulher, uma mesa derrubada. Quando a luz voltou, toda a gente ficou paralisada. Deitada no chão, perto da secretária, estava Pandora. Ao seu lado, havia um abre-cartas afiado e manchado de sangue. Michael apressouse a ir ter com ela, pegando nela ao colo, antes que qualquer um dos outros pudesse reagir. Em silêncio, tirou-a da sala. Decorreram vários minutos até que voltasse, sozinho. Olhando com raiva para cada um dos presentes, gritou: – Sim, um assassino... Está morta! – O que queres dizer com estar morta? – inquiriu Carlson, adiantando-se. – Que tipo de jogo é este? Vamos vê-la.
– Ninguém lhe vai tocar – Michael interpôs-se no seu caminho. – Ninguém tocará em nada, nem sairá desta sala até a polícia chegar. – A polícia? – pálido e assustado, Carlson olhou à sua volta. – Nós não queremos isso... Podemos resolver este assunto sem grandes complicações. Ela só deve ter desmaiado... – Este sangue é dela – replicou Michael, indicando o abre-cartas. – Não! – exclamou, de repente, Meg, abrindo caminho entre os outros. – Não era suposto ninguém ficar ferido... Só era preciso assustá-los... Hank! – atirou-se nos seus braços, enterrando o rosto no seu peito. – Era só uma brincadeira... – murmurou o seu marido. – O homicídio em primeiro grau não é nenhuma brincadeira. – Nós nunca... – olhou para Michael, consternado – assassinámos ninguém – conseguiu pronunciar, abraçado à sua esposa. – Tu também não querias brindar com champanhe, não era, Hank? – Eu queria pôr um ponto final nisto tudo – explicou Meg, a soluçar. – Eu até lhe telefonei para a avisar. Sabia que estávamos a agir mal, mas precisávamos do dinheiro. O ginásio estava a consumir o nosso dinheiro todo. Pensámos que se conseguíssemos que se zangassem um com o outro, quebrariam a cláusula do testamento. Mas era só isso. Hank e eu instalámo-nos na cabana de caça e esperámos. Depois, ele foi ao atelier de Pandora e destruiu-o. Se ela pensasse que tinhas sido tu... – Eu não tinha muitas esperanças – confessou Ginger naquele instante, chorosa. Já não conseguia conter-se. – Aquilo tudo parecia-me tão estúpido e, ao mesmo tempo, tão excitante que... Michael virou-se para olhar para a sua prima. – Portanto, tu também fizeste parte do plano. – Bom, na verdade não fiz nada. Mas quando a tia Patience me explicou... – Patience? – Morgan merecia receber a sua parte – a idosa torcia as mãos, nervosa, olhando para todo o lado para não ter de ver o abre-cartas ensanguentado. – Queríamos que um de vocês saísse da casa. Se conseguíssemos, as coisas voltariam ao seu curso normal e... – O telegrama – disse Morgan, com o seu charuto entre os dentes. – Nada de assassinatos – dirigiu-se então a Carlson. – Isso foi ideia tua. – Isso é absurdo! – replicou Carlson, limpando com um lenço o suor da testa. – Os advogados são uns incompetentes. Não foram capazes de fazer nada. Eu só estava a proteger os meus direitos. – Matando! – exclamou Michael. – Não sejas ridículo – o plano era tirar-vos da casa. Eu só... a fechei na cave.
Quando me falaram do champanhe, tive algumas dúvidas... mas, afinal de contas, as consequências não eram mortais. – Quem te propôs a ideia do champanhe? – era o que Michael tinha estado à espera. – Biff – apressou-se a responder Meg. – Biff planeou tudo, prometendo-nos que não haveria nenhum erro... – Muito bem, primo! Toda a gente nesta sala tem as mãos sujas – admitiu o referido, encolhendo os ombros. Depois levantou uma mão, olhando para ela. – Mas as minhas não estão sujas de sangue, estás a ver? Simplesmente, esperávamos que te fosses embora. Afinal de contas, não é nenhum segredo que não se suportavam um ao outro. – Então, tu organizaste tudo... – Michael deu um passo para ele. – E também há a sabotagem do meu carro. Biff voltou a encolher os ombros. No entanto, o suor corria-lhe pela cara. – Toda a gente nesta sala estava metida no assunto. Algum de vocês está disposto a entregar-se voluntariamente à polícia? – começou a recuar, respirando ofegante. – Acho que alguém ficou com medo e cometeu um assassinato. Mas não fui eu. Não encontrarás as minhas impressões digitais nesse abre-cartas... – Quando uma pessoa já tentou matar uma vez... – replicou calmamente Michael, – torna-se mais fácil provar a sua culpa. – Não conseguirás provar nada. Qualquer um de nós poderá ter esvaziado o líquido dos travões. Não consegues provar que fui eu. – Não preciso – agarrou-o pelas lapelas. – Acabaste de te acusar a ti próprio. Eu nunca disse que me tinham esvaziado o líquido dos travões. De repente, Pandora entrou na biblioteca. – Senhoras e senhores, temos companhia. Vestido com o seu melhor fato, Charles anunciou com tom solene: – O jantar está servido. Duas horas depois, Pandora e Michael faziam uma pequena festa privada na biblioteca. – Estava convencida de que o teu plano não ia resultar – confessou-lhe ela. – Quanto mais previsíveis são os movimentos, mais previsível é o desenlace. – O tenente Randall não parecia muito contente. – Queria fazer as coisas à sua maneira – encolheu os ombros. – Uma vez que já sabia que Biff tinha estado a visitar outros membros da família, achava que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por descobrir. – Fazes ideia de como é extremamente incómodo fazer de morta? – inquiriu,
esfregando o pescoço dorido. – Foste fantástica! – deu-lhe um beijo. – Uma verdadeira estrela. – O abre-cartas ensanguentado foi um grande efeito. – Já sabíamos que alguém tinha começado a assustar-se, devido ao telefonema de aviso que tinhas recebido. Foi Meg quem se fartou do plano. – Estive a pensar em investir no ginásio deles. – Não era mau. – O que achas que vai acontecer agora? – Oh, Carlson levará, mais ou menos, o mesmo que o resto, excepto Biff. Não teremos de nos preocupar com a impugnação do testamento. Quanto ao nosso querido primo... – Michael levantou o seu copo de champanhe, – terá de enfrentar acusações muito sérias, com pena de prisão incluída. Já só faltam duas semanas de convivência, querida prima... – E então tudo terá acabado. – Não – pegou-lhe numa mão. – Pelo contrário. Tudo terá apenas começado – tirando-lhe o copo da mão, fê-la recostar-se contra os almofadões. – Diz-me uma coisa... há quanto tempo estás apaixonada por mim? – Aviso-te que não vou alimentar o teu ego. – Está bem, eu começo. Acho que me apaixonei por ti no dia em que chegaste das ilhas Canárias. As tuas pernas deixaram-me impressionado. Nunca mais voltei a ser o mesmo. E agora, voltemos atrás... Disseste que me amavas, Pandora. – Estava sob coacção. – Porque não nos casamos aqui mesmo? – O quê? – Aqui mesmo, na biblioteca – olhou à sua volta. – Daria um bom efeito. – Não sei de que estás a falar... – É muito simples. Eu explico-te: tu amas-me e eu amo-te. – Não é assim tão simples – repôs Pandora. – Para ti, não passo de mais uma aventura. Quando voltares para as tuas bailarinas loiras e as tuas estrelas de peito generoso, tu... – Que bailarinas loiras? Não suporto bailarinas loiras. – Michael, com estas coisas não se brinca... – Espera um pouco. Compras um vestido branco, com véu e tudo. Mandamos chamar um padre. Haverá muitas flores. Será uma cerimónia muito tradicional. Depois disso, instalamo-nos em Folley e cada um continuará a fazer o seu trabalho. Daqui a um ano, talvez dois, daremos a Charles e a Sweeney um bebé para mimarem. Concordas? – A vida das pessoas não é como os argumentos de televisão, sabes?
– Estou louco por ti, Pandora! Olha para mim – pegou-lhe suavemente no queixo. – Como artista que és, é suposto saberes ver por debaixo da superfície das coisas. Isso devia ser fácil para ti. Não me acusaste sempre de ser um tipo superficial? – Estava enganada – queria acreditar nas suas palavras. Mas o seu coração já se adiantara. – Michael, se estiveres a brincar comigo, juro que te mato. – Os jogos acabaram. Amo-te. É tão simples quanto isso. – Simples? – se não estivesse tão surpreendida, teria começado a rir-se. – Exacto – beijou-a nos lábios. E com um único beijo, expressou-lhe tudo o que sentia. Pandora, emocionada, rodeou-lhe o pescoço com os braços. Talvez, afinal não fosse assim tão difícil... – Amo-te, Michael. – E vamos casar-nos. – Sabes uma coisa? Tenho a sensação de que, desde o início, ele sabia que isto ia acabar por acontecer – levantou o olhar para o retrato a óleo do tio Jolley. – Conhecia-nos tão bem... – É verdade. Acho que agora deve estar a rir-se às gargalhadas. Oxalá pudesse estar aqui para nos ver casados. – E quem te diz que não está? – entregou-lhe o copo e levantou o seu. – A Maximillian Jolley McVie. – Ao tio Jolley – brindou. – E a nós.
FIM