O Garoto do Bosque - Jen Minkman

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O Garoto do Bosque Jen Minkman Traduzido por Juliana Pellicer Ruza


“O Garoto do Bosque” Escrito por Jen Minkman Copyright © 2014 Jen Minkman Todos os direitos reservados Distribuído por Babelcube, Inc. www.babelcube.com Traduzido por Juliana Pellicer Ruza Editado por Gabriela Rebello Design da capa © 2014 Jen Minkman & Clarissa Yeo “Babelcube Books” e “Babelcube” são marcas comerciais da Babelcube Inc.


Índice Analítico Página do Título Página dos Direitos Autorais Sumário 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. Agradecimentos Sua classificação e suas recomendações diretas farão a diferença Procurando outras ótimas leituras?


Sumรกrio 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15.


1. Um jogo de luzes iluminava um mar de rostos e multidões de corpos em movimento. O ar no salão da escola estava vibrante com a batida crescente da trance music que estourava nos alto-falantes. Às onze horas da noite, a temperatura dentro do prédio era sufocante, apesar de já ser tarde e das janelas estarem abertas. Julia Kandolf estava em pé no canto da pista de dança, seus olhos examinando a multidão que pulava com as batidas da música. Ela não conseguia encontrar seus amigos. Aonde será que Gaby tinha ido? E onde estava Axel? - Oi, Julia. - A voz a despertou. Ela sabia de quem era. O coração de Julia acelerou quando, virando, seu olhar parou no garoto à sua frente. Michael. Seu característico sorriso atrevido a fez piscar timidamente para ele. - Este vestido que você está usando é muito bonito - ele continuou quando ela não respondeu e apenas o ficou encarando, ligeiramente boquiaberta. Ele analisou a menina, vestida com uma fantasia medieval que havia alugado para a festa. Julia, nervosa, engoliu seco. - Sua fantasia também é muito legal - ela finalmente respondeu, deixando seu olhar percorrer o corpo dele. Ele estava perfeitamente vestido com uma roupa sexy de Napoleão. - Quer dançar? - Ele colocou o copo de cerveja em uma mesa e estendeu a mão para ela de forma cortês. - S-sim, claro! - ela gaguejou, seu estômago dando um salto. Juntos, eles caminharam pela multidão. Pelo canto do olho, Julia finalmente avistou Gaby, do outro lado do salão, acenando encorajadoramente para ela e fazendo um sinal de positivo com as mãos, antes de tirar sua dentadura plástica de vampiro para devorar algumas bolachas da mesa de aperitivos. Julia deu uma risadinha nervosa e seguiu Michael, que a puxava para a pista de dança. - Estranho, não? Nosso último ano finalmente acabando. - Ele olhou para ela pensativamente. Quero dizer, nós passamos uma verdadeira era nesta escola. Crescemos aqui. E agora, aqui estamos nós, celebrando nossa formatura. - - Julia sentiu os braços dele ao redor de sua cintura e a mão em sua lombar, quando ele a puxou para mais perto. - Hum, sim. - Um rubor alcançou a face dela. - Realmente é ótimo todos terem passado nas provas, mas agora nós vamos todos para universidades diferentes. Isso é meio triste, sabe. Pode ser que nunca mais nos vejamos de novo. - Bem, nunca diga nunca - Michael comentou alegremente -, não se esqueça daqueles encontros maravilhosos que eles sempre organizam aqui. - Sim. Acho que você está certo. - Julia ergueu os olhos para ele, mordendo os lábios. - Eu não me importaria de ver você antes disso, de qualquer forma. - Ela suspirou quase inaudivelmente. Ah, droga. Ela tinha dito isso em voz alta? Ou o mais alto a que se atreveu, afinal. Ela olhou para ele insegura, mostrando, em seu rosto, um olhar de surpresa. - Eu? - ele perguntou, agarrando mais forte a mão dela. - Por quê? Ela engoliu seco. Seu coração estava martelando como louco, apesar da conversa encorajadora que teve com Gaby e as três taças de vinho que ela havia colocado pra dentro mais cedo naquela noite. - Eu, é... - ela começou, sua voz falhando. No salão mal iluminado, ela viu um sorriso se formando nos lábios de Michael. Aquele sorriso tão familiar, provocante, meio zombeteiro que a


deixava tímida em sua presença nos últimos dois anos – que havia até mesmo a perseguido em sonho. Ele baixou o rosto mais próximo ao dela. - Entendo o que você diz. Eu não quero tirar meus olhos de você esta noite, também - ele murmurou, sua mão percorrendo o braço dela, acariciando a pele sensível do seu pescoço. Julia parou de respirar quando ele chegou ainda mais perto e pressionou os lábios contra os dela, sedutoramente. Seus braços puxaram o tronco dela em direção ao seu peito. Ele se inclinou e a beijou novamente, dessa vez de um jeito mais profundo. Ela não conseguia acreditar que isso fosse verdade. Ele a estava beijando. Ele a estava beijando de verdade! Isso não era um devaneio – Michael a tinha nos braços. Julia se fundiu a ele. Quando ele a soltou e perguntou se ela queria outra bebida, ela estava trêmula de pura emoção. Ostentando um sorriso de júbilo, ela ficou parada no canto da pista de dança, examinando a multidão, em busca de Gaby. Sua melhor amiga acenou para ela do outro lado do salão e estava agora mostrando dois sinais de positivo com as mãos. O rosto de Julia se abriu em um sorriso mais bobo ainda. Na hora em que Michael voltou, com uma cerveja em cada mão, seu pulso tinha diminuído a níveis aceitáveis novamente. Isso fez com que a mão dela estivesse firme o suficiente para rapidamente salvar seu número na agenda de contatos, quando ele a entregou o BlackBerry.


2. A luz do sol e as folhas verdes. Essas foram as primeiras coisas que ela viu quando abriu os olhos e espiou o céu através das pálpebras semicerradas. Julia ficou parada, plenamente consciente de tudo à sua volta – o som das folhas, o grosso tronco da árvore contra as costas dela. O carvalho parecia firme, confiável e um bom apoio, a força de vida centenária no tronco era como uma extensão da energia que corria em sua própria medula espinhal. Ela era parte de algo maior – um sonho que abrangia toda a floresta que se espalhava ao seu redor. De vez em quando ela sentia uma grande vontade de vir aqui para descansar, ou “meditar”, como a mãe dela costumava falar em tom de brincadeira. Julia adorava se aventurar pelos bosques vizinhos ao pequeno subúrbio de Salzburg, onde morava. As pessoas a chamavam de maluca por conta disso, mas e daí? Este ponto sob o antigo carvalho era um verdadeiro amigo sempre que ela se sentia miserável. Este foi o lugar para onde ela veio quando seu avô faleceu. Aqui foi onde ela caiu no choro quando seus pais anunciaram o divórcio e seu pai avisou que estava se mudando para Innsbruck. Mas este era também o lugar para onde ela vinha quando queria escrever poemas ou letras de músicas, ou cantar bem alto sem ser perturbada, ou sonhar acordada com o garoto que havia roubado seu coração dois anos antes e que nunca o devolvera. Julia abriu mais os olhos e deixou escapar um suspiro pesado. Dessa vez a pacífica atmosfera da floresta não era suficiente para acalmá-la. Ela estava esperando por algo. Ela parou, sentindo os batimentos que emanavam do tronco, então se ergueu e pegou a bolsa. Seu coração começou a bater mais rápido enquanto ela remexia no bolso frontal da sua bolsa-carteiro para pegar seu telefone. Nada. Nenhuma mensagem nova. Com um suspiro torturado, ela se deixou cair novamente contra a árvore, sua mente se demorando no garoto que ela não conseguia tirar da cabeça. O lindo rosto de Michael Kolbe. Seus radiantes olhos verdes. O sorriso provocante em seus lábios. Os lábios dele na sua boca trêmula. Ela tomou fôlego quando o seu telefone abruptamente tocou em sua mão. “Gaby” apareceu iluminando a tela, o telefone tocando um ringtone de “Friday I’m in Love”, do The Cure. A floresta pareceu despertar de um salto também, um passarinho saiu voando, piando indignado. Julia não conseguia parar de rir, seguindo o passarinho em seu voo com o olhar. - Oi, Gaby - ela atendeu ao telefone, animada. - Oi! Onde você está? - sua melhor amiga perguntou. - Eu te liguei em casa, mas sua mãe disse que você não estava. - Ah, estou na floresta. - Ah sim, dando uns amassos no Sr. Carvalho, não é? - Gaby a conhecia bem demais. Desde quando elas aprenderam a expressão abraçadores de árvores na aula de inglês no ano anterior, ela vinha provocando Julia e sua “doentia fascinação por carvalhos” – palavras de Gaby, não dela. - Não é você que é a vidente. - Julia respondeu com um sorriso. - E não, nós ainda não nos abraçamos hoje. Eu prefiro esperar um abraço do Michael, se é que ele vai retornar as minhas mensagens. - Ela se encolheu, recuando ao tom amargo de sua própria voz. Gaby respirou do outro lado da linha: - Por que você não vem à cidade? Você não vai se animar sentada aí conversando com árvores,


sentindo pena de si mesma porque o Idiota Kolbe não tem sido tão comunicativo quanto você esperava que fosse. Eu te vejo em meia hora no Mozartplatz, ok? - Meia hora! Está louca? Eu vou ter que voar para pegar o próximo ônibus! - Você arrebentou em educação física este ano. - Gaby disse implacável. - Você vai conseguir. E se você chegar a tempo, eu te compro duas Sachertorte do Tomaselli’s. Os carboidratos vão iluminar o seu dia. - Está certo, está certo. - Julia cedeu. - Eu te vejo daqui a pouco. - Ela desligou e se virou para abraçar a árvore atrás de si por um segundo. Apesar do que tinha dito para Gaby, ela não podia sair sem fazer isso. Era o seu ritual. - Obrigada por sua ajuda - ela sussurrou, dando um beijo leve na casca do carvalho. Seu cabelo estava dançando no vento quando saiu da linha das árvores, pendurando a alça de sua bolsa em um ombro e correndo para o ponto de ônibus. As portas estavam quase fechando. - Grüss Gott - Julia soluçou sem fôlego quando forçou a porta do ônibus para abrir novamente. Ao entrar, mostrou seu cartão de viagem ao motorista e se dirigiu ao assento no fundo do ônibus – seu lugar habitual. Assim que o subúrbio de Birkensiedlung desaparecera de vista, ela desenterrou seu MP3 player da bolsa para ouvir um pouco de Enya. Talvez isso a ajudaria a relaxar. Depois de alguns minutos olhando pela janela, Julia percebeu que tinha, mais uma vez, pego seu celular, seu dedão acariciando timidamente o teclado. Claro, não havia mal nenhum em mandar uma mensagem a Michael, mas ela já havia enviado uma há dois dias. E há três dias. E há uma semana. Ela era tão fracassada. Por que ela não podia ter esperado pacientemente? Talvez ele estivesse fora da cidade e se esqueceu de levar o celular. Talvez ele o tenha desligado, ou talvez ele tenha perdido o carregador. Se ele um dia voltasse a ligar o celular, imediatamente acharia que ela era a Garota Perseguidora Obsessiva. Ela franziu o cenho e guardou o celular novamente, encostando-se ao banco do ônibus. A observação de Gaby sobre o Idiota Kolbe não a deixava descansar. Claro, sua melhor amiga xingava todo mundo constantemente. Ela provavelmente estava brincando, mas mesmo assim... Ela tinha meio que dado a entender que Michael estava brincando com ela. Por que ela ainda ouvia Gaby? Sua amiga não sabia. E que coisa feia, Julia, não confiar mais no garoto que havia roubado seu coração: Michael, cujos beijos tinham sabor de paixão e fogo. Michael, que tinha sussurrado a ela o quanto era bonita quando a deitou em sua cama. Ela fechou os olhos e mordeu o lábio, sentindo seu rosto queimar. Ok... Talvez ela tenha deixado alguns detalhes de lado quando conversou com Gaby. Tudo aquilo era muito especial para ela sair divulgando por aí. Muito precioso. Enquanto isso, o ônibus estava viajando ao longo do rio Salzach, encostando na parada de ônibus próxima à ponte que levava à Cidade Velha. O rio estava lento: junho tinha sido um mês excepcionalmente seco na Áustria. Enquanto “The Memory of Trees” começava a ecoar em seus fones de ouvido, Julia desceu do ônibus e cruzou o rio. Não levou muito e ela chegou ao Mozartplatz na hora em que havia combinado com Gaby. Seu olhar percorreu a praça, mas ela não viu a amiga em lugar algum. Porém, ela viu outro rosto familiar: seu primo Axel estava acabando de sair da livraria da esquina carregando uma sacola de plástico lotada de livros. - Ax! - ela gritou, acenando para chamar sua atenção. - Oi, Julia! - Ele caminhou em direção a ela, seus cachos loiros dançando na brisa. - Como vai a vida? - Cheia de surpresas, aparentemente. O que você está fazendo aqui? Não era para você ter


viajado para Londres na noite passada? - Era. - Axel respondeu com uma cara amarrada, empurrando para cima os óculos que escorregavam pelo seu nariz. - Mas Florian teve um caso grave de gastroenterite, então nós adiamos a viagem. Tio Helmut comprou nossas passagens e levou a tia Verena para um breve descanso na cidade. - Pobre Florian. - E pobre de mim também. Eu estava literalmente colocando a minha mala no compartimento superior quando ele cancelou. Aquele canalha. - Sim, eu aposto que ele estava esperando uma recuperação milagrosa. Nosso eterno otimista ela rolou os olhos. - Rá. Eu o chamaria de ingênuo. Julia riu. - Claro. Do que o chamaríamos – um otimista com experiência de vida? - Nossa, Jules. Você quer que eu saia gritando? - Axel sorriu. - Sarcasmo machuca, sabia? - Desculpe. Por que você não vai ao O’Malley’s hoje à noite? Pode ser mais fácil conversar com você com uma bebida na mão. Axel sorriu. - Eu até te compro uma. Vejo você às dez? Naquele momento, uma voz soou do outro lado da praça. - Jules! Oi! - Uma Gaby desgrenhada corria em direção a eles, o cabelo tingido de preto todo enrolado e o delineador ainda mais esfumado que o normal. Ela os alcançou e estendeu uma unha esmaltada de roxo a Axel. - Oi, Efeito Axe! - Oi pra você, Gaby Gloom- ele devolveu. - Estava chorando de novo? Sua maquiagem está por todo o seu rosto, sabia? - Bah. Essa piada está ficando velha, mas dessa vez você está certo. Eu realmente estava chorando. Eu comi um hot-dog com um molho picante de curry e estava um pouco picante demais para o meu gosto. - Você foi comer? - Julia perguntou desanimada. - Pensei que você quisesse comer tortas no Tomaselli’s! - Ei, seus pais não te alimentam em casa? - Axel interveio. - Estou menstruada - Gaby o encarou. - Ok, não está mais aqui quem falou. - Axel decidiu, afastando-se. - Vejo você hoje à noite! disse à Julia antes de ir embora. - Esse seu primo é bem estranho - Gaby concluiu, encarando seu vulto em retirada -, mas engraçado. - Ela deu seu maior sorriso a Julia. - Desculpe o atraso. Eu compro duas tortas para você, para compensar. - Obrigada! Vou adorar. Eu meio que me esqueci de almoçar, na verdade. As duas garotas entraram no Tomaselli’s e foram direto para uma mesa perto da janela. Julia pegou o celular e olhou para a tela pela enésima vez naquele dia. Ainda nada. - Então me diga: o que aconteceu depois da festa de formatura? - Gaby perguntou, flagrando Julia dando uma olhada em seu celular. Ela deu uma palmada na mão da amiga sobre a mesa. - Eu quero saber tudo. Julia mordeu o lábio. Depois da festa de formatura, Gaby tinha ido para uma viagem a Paris com seus pais e a irmã, então a melhor amiga não estava atualizada sobre todos seus medos e preocupações.


Tudo havia começado no baile: o Baile de Máscaras de formatura que ela havia sofrido por meses. Ela havia reservado um traje medieval maravilhoso em uma loja de aluguel com semanas de antecedência para que pudesse passar uma impressão impecável a Michael com sua fantasia. Tinha sido a oportunidade perfeita para conseguir prender finalmente o olhar dele, apagando seus dois anos de invisibilidade anterior. Depois do verão, ele se mudaria para Graz para ir para a faculdade e ela nunca mais o veria. A festa seria a sua última chance. Tinha sido um alívio enorme quando Michael aparecera sozinho naquela noite. E as coisas que aconteceram entre eles tinham ficado na mente dela desde então. Gaby praticamente babava sobre o seu bolo enquanto Julia contava a ela sobre Michael a convidando para dançar. - É, eu sei! Eu vi vocês dois. Quando ele começou a te beijar, eu achei que era hora de deixar vocês dois sozinhos e brincar de vampiro em algum outro lugar. - Obrigada. - Julia sorriu fracamente, cutucando seu bolo com o garfo de sobremesa. - De qualquer maneira... Então, você salvou o seu número de telefone nos contatos dele... - Gaby a incentivou a continuar. - O que aconteceu depois disso? - Bom, nós passamos o resto da noite juntos. Ele me beijou uma última vez sob as estrelas no pátio da escola antes de eu pegar o ônibus para casa. No dia seguinte, ele me ligou convidando para ir jantar e assistir a um filme na casa dele. Julia lentamente ficou vermelha quando Gaby a olhou inquisidoramente. - Hum. Os pais dele estavam em casa? – sussurrou a amiga. Michael vinha de uma família rica. Seus pais gastavam mais tempo no trabalho do que em casa. - Não - ela murmurou de volta. Gaby ficou em silêncio por um momento. - Aha. - Ela inclinou a cabeça com um sorriso, encarando a amiga com expectativa. Julia mordeu o lábio, seu rosto em chamas. - Foi tão maravilhoso quando aconteceu. - Ela suspirou, olhando para as suas mãos. - Tão lindo. Foi como eu sempre imaginei. Quando ela olhou para a amiga, as lágrimas estavam se formando em seus olhos. - Então por que você está chorando? - Gaby perguntou, em choque. - Querida, o que aconteceu? - Nada. - Julia fungou desoladamente. - É esse o ponto. Nós nos despedimos na manhã seguinte e ele disse que nos veríamos em breve. - E você não teve nenhuma notícia dele depois disso? Julia fez que não. - Bem, o que você falou para ele naquela noite? - Só... Só o que eu sentia por ele. O que eu venho sentindo por ele pelos últimos dois anos. De como ele era especial para mim e como eu queria falar que estava apaixonada antes que ele se mudasse. - E o que ele disse sobre isso? Julia parou por um minuto, olhando para Gaby com uma dúvida crescente. - Ele disse... Que ele nunca tinha notado que eu gostava tanto dele. Que eu deveria ter falado para ele antes... Que eu não tinha motivos para ser tão tímida e insegura, porque eu era uma garota linda ela repetia as palavras dele pausadamente. Ele a havia acariciado em todos os lugares, despindo-a vagarosamente à luz das velas do seu quarto. As mesmas velas tinham transformado os dois em sombras erráticas e imprevisíveis na parede.


Tinha sido um sonho, e agora ela estava abruptamente sendo despertada. Michael não tinha dito uma única palavra sobre o que sentia por ela. Ele apenas disse que nunca havia notado sua admiração silenciosa. Ela sentiu o estômago embrulhar. - Ele não disse nada coisa sobre a sua, hã, “dança entre os lençóis”? – Gaby perguntou incrédula. - Ele disse que teve uma ótima noite – Julia sussurrou. - Bem, dã! – Gaby enfiou o garfo no bolo ferozmente, como se estivesse enterrando uma estaca no coração de alguém. – Nenhuma surpresa até agora. Jesus, que completo idiota. Gaba-se ao ouvir você professar amor eterno por ele, marca um encontro secreto para poder ir para a cama com você e depois nunca mais liga de volta. Se algum dia eu colocar as minhas mãos nele... Julia gelou por dentro. Ela fechou os olhos, juntando as mãos sobre a sua boca para conter o choro, as lágrimas rolando por suas bochechas. Ela sentiu os braços de Gaby em volta dela, consolando-a. – Olhe, sinto muito se eu estava sendo direta demais. – Gaby secou as lágrimas de Julia, - Eu não tenho um filtro. Mas eu estou apenas dando a minha opinião sincera, já que sou sua melhor amiga. Se as coisas realmente aconteceram da forma como você descreveu, temo que ele esteja brincando com você. Gaby sentou-se no descanso de braço da cadeira de Julia, abraçando-a com os dois braços. – Você queria que ele soubesse como você se sentia. Se ele não pode respeitar isso, é problema dele, não seu. Você não fez nada de errado. – Seus cabelos pretos ao lado do loiro platinado de Julia eram a fotografia de um triste cenário preto e branco. Uma garçonete empurrando um carrinho de doces virou na direção delas. – Está tudo bem? – perguntou ela, um pouco perplexa. - Claro – Gaby respondeu – Não estamos chorando por causa dos doces. Eles estão maravilhosos. - Julia riu, apesar das lágrimas. – Argh – ela resmungou, esfregando o rosto – Sou trouxa e ingênua. Eu estava tão apaixonada pelo Michael. Por que eu não vi que isso aconteceria? Gaby deu de ombros. – O amor é cego. É assim mesmo. - Talvez eu devesse ligar para ele. Perguntar por que ele nunca respondeu minhas mensagens. Quem sabe ele tenha um bom motivo. - Sim. Aposto que os dedões dele caíram. – Gaby acenou solenemente com a cabeça e Julia riu. – Mas, sério, ligue para ele. Quanto mais cedo você souber o que está acontecendo, melhor. Gaby falou sobre as curtas férias em Paris. Foi bom ouvir as histórias bobas e divertidas da amiga, mas Julia não conseguia afastar totalmente a nuvem negra que pairava sobre a sua cabeça. Quando elas deixaram o café e Julia teve que caminhar de volta para o ponto de ônibus sozinha, seus sentimentos de angústia voltaram com força total. Pegando o celular da bolsa e olhando para ele em dúvida, ela se encostou na parede do ponto de ônibus. Não era melhor adiar a ligação para o Michael mais um dia? Ela o daria uma chance de responder às suas mensagens de texto. Talvez Gaby estivesse errada, no final das contas. Será que ela não poderia dar a ele o benefício da dúvida, por mais um tempo? Um som familiar ao longe interrompeu os pensamentos de Julia. Seu coração parou por um momento – ela teria reconhecido o escapamento barulhento da moto Honda de Michael em qualquer lugar. Sempre que ele encostava no pátio da escola com sua preciosidade, ela estava por perto para assisti-lo timidamente pelos cantos. Seu estômago apertou quando ela olhou para cima, rapidamente escondendo o telefone.


Ele se aproximou do ponto de ônibus, desligou o motor e estacionou a moto contra a mesma parede que ela estava usando para se apoiar. Seu cabelo castanho tinha um brilho dourado à luz do sol. Michael ainda não a tinha visto, mas quando ela foi hesitantemente em sua direção para que ele a visse, seu lindo rosto se fechou impacientemente por um instante, e o largo sorriso que ele mostrou no segundo seguinte, nem mesmo chegou aos seus olhos. - Julia! – ele exclamou um pouco animado demais - Grüss Gott. Voltando da cidade? - Sim, Gaby me convidou para tomar um chá com bolos na doceria. – ela engoliu seco antes de continuar - E você, o que tem feito? - Ah, você sabe, por aí – ele respondeu sem hesitar – Fiquei com a minha tia e o meu tio em Hallein por alguns dias. Saí para dançar com meus primos. Nada de especial. – ele brincava com as chaves, sorrateiramente olhando por sobre os ombros dela, para o beco estreito que levava à Cidade Velha. Julia piscou para afastar as lágrimas, seu último lampejo de esperança desapareceu. Tudo parecia tão diferente da manhã em que eles se despediram. Era como se ela estivesse conversando com um estranho, com alguém que ela não tinha nada em comum – ou com quem não tinha compartilhado nada. – Por que você não me ligou de volta? – ela perguntou tranquila, mas determinada. Michael suspirou, colocando uma mão quente em seu ombro, de forma condescendente. – Olha, eu achei que você fosse ficar feliz com a nossa noite juntos. – ele parecia genuinamente confuso. – Quero dizer, você me disse o quanto me queria. O quanto você havia desejado ficar comigo antes que eu me mudasse para Gaz. Eu não me importaria de sair com você de novo algum dia, mas eu tenho estado ocupado. Perdi alguma coisa? Ela deu um passo para trás. Aquilo era aterrorizante, Michael fez parecer que havia feito um favor a ela. Ele tinha sido generoso o suficiente de se encontrar com ela porque ela o admirava e ele tinha se divertido. Aquilo era tudo. Ele nunca a tinha levado a sério. Todos os sons da rua se esvaneceram, deixando ela e Michael no meio de uma silenciosa e árida planície onde ela não conseguia mais mentir para si mesma ou fingir que o tinha entendido mal. - Você me disse que nos falaríamos em breve. – ela se encolheu quando ouviu o quanto tinha soado melancólica e pegajosa. – Isso foi há uma semana. - Eu estava fora da cidade – ele respondeu secamente – São as férias de verão. Por que eu ficaria em Salzburg o tempo todo? Você não vai a lugar nenhum neste verão? Julia fechou os olhos, mordendo os lábios e tentando não chorar. Verão. Ela tentou desesperadamente afastar as imagens dos dois – fantasias que ela tinha criado nos dias depois do encontro deles. Um verão em Salzburg com Michael, que visitaria o bosque com ela, para que ela o mostrasse os locais que considerava especiais. Noites cheias de beijos e abraços sob as estrelas. Doces palavras que ele sussurraria ao seu ouvido. - Não, vou ficar aqui – ela disse suavemente. - Que pena – ele respondeu sem rodeios – Ah, bem, talvez eu encontre você em algum lugar depois. Tenho que ir agora antes que a loja de música feche, ok? – ele se inclinou e lhe deu um beijo sem significado na bochecha. - Ok, a gente se vê – ela gaguejou às suas costas. Ele nem estava escutando mais. Um dos amigos de Michael veio do beco e batendo entusiasmado nas costas dele, o arrastou para a Cidade Velha de Salzburg. E então ele se foi. Julia encostou-se de novo contra a parede, respirando profundamente. Claro que ela deveria estar aliviada de finalmente saber onde estava pisando, depois de uma semana


estressante, mas ela não estava. Francamente, ela não conseguia sentir nada. Ela entrou no ônibus de forma automática, ocupando seu assento habitual no fundo. A realidade era dura. Ela não significava nada para ele. Por dois anos ela tinha ficado olhando cegamente para alguém que não a enxergava. Desta vez, a realidade a atingiu bem no fundo. Julia fechou os olhos e tentou segurar as lágrimas, mas a reação indiferente dele às suas palavras era dolorosa demais para esquecer. A forma como ele olhava para ela, impaciente, enquanto ela, ansiosa, falava com ele. A forma como ele olhava para ela na escola todos esses anos, até que ela fosse a presa fácil da festa. Que cretino. Quem ele pensava que era?! No momento em que o ônibus chegou ao final da linha, a tristeza de Julia tinha se transformado em raiva. Ao invés de ir para casa, ela correu para dentro do bosque e foi direto para seu lugar de meditação, tentando superar a raiva que a consumia por dentro. Quando ela finalmente se afundou contra o velho carvalho no bosque, lágrimas quentes corriam por seu rosto. - Sua idiota. – ela soluçou. – Sua vaca estúpida. Ela estava principalmente com raiva dela mesma agora. Como ela pôde ter sido tão ingênua? Já era hora de começar a agir. Julia limpou as lágrimas dos olhos, resoluta. Hora de dizer adeus a tudo o que ela havia sonhado para os dois, pois ela, obviamente, estava sonhando em vão. Os sonhos não se tornam realidade. A vida não é um conto de fadas. Era hora de crescer. - Aí está você! – a Sra. Gunther falou da cozinha quando Julia chegou em casa naquela noite. – Você está atrasada, mocinha. Eu não tinha ideia se você jantaria conosco. Pensei que talvez você fosse jantar na casa da Gaby. - Desculpe, mamãe. - Julia foi para a cozinha para abraçá-la. – Eu deveria ter ligado, mas aconteceu tanta coisa e eu me distraí. O que tem para comer? - Macarrão. – sua mãe balançou a cabeça com doçura. – E eu fiz um pouco de salada. - Salada de atum – Anne disse com desdém – Não gosto de atum. - Você muda seus gostos culinários toda semana. – Julia revirou os olhos. – Como é que a mamãe poderia acompanhar essas mudanças? - Anne deu de ombros. – Eu vou fazer uma lista – ela respondeu pretensiosamente, tentando parecer tão venerável quanto possível do alto dos seus dez anos. Julia sorriu maliciosamente para a irmã e de repente Anne explodiu em risadas. – Não olhe assim para mim! Eu só sou exigente com o que como. A vovó sempre diz isso. - Nós vamos visitar a vovó neste final de semana, então talvez você devesse me dar essa lista logo. – a mãe a repreendeu com uma risada. – Para eu poder deixar a pobre saber de quais comidas ela deve manter distância quando estiver cozinhando para nós. - elas se sentaram à mesa. Julia amava a família da qual fazia parte. Apesar de, às vezes, sentir falta do pai, era muito melhor para sua mãe que ele morasse em outro lugar. O clima tenso que havia rondado a casa nos anos que precederam o divórcio haviam finalmente ficado para trás. A sua mãe havia começado uma vida nova e melhor. A avó de Julia morava em Eichet, um vilarejo próximo aos subúrbios de Birkensiedlung. Sua avó materna era como uma segunda mãe. O avô de Julia havia falecido há alguns anos, deixando a sua esposa sozinha. Quando ele ainda era vivo, Julia visitava os avós todas as tardes de domingo para tocar para eles. Ela adorava o antigo piano deles. Em casa, ela tinha apenas um teclado para praticar. Ela usava seu Yamaha para compor músicas em seu quarto, incluindo a música que ela havia composto para o exame final de educação musical, e secretamente, ela a tinha escrito pensando em


Michael. Ele nunca ficava longe dos seus pensamentos quando ela estava compondo. Todas as vezes que ela acrescentava uma nova melodia, ela se imaginava tocando em frente a uma audiência de estudantes no grande auditório da escola. Em suas fantasias, um Michael arrebatado sempre estava na primeira fila, contemplando-a, admirado. Na realidade, ele nunca havia estado ali. Julia mastigou um pouco de salada de atum, tentando afastas a lembrança do rosto bonito e dos olhos verdes de Michael. Ela tinha que parar de pensar nele. Ele não era bonito de jeito nenhum. Ele era um idiota, um canalha que usava garotas inocentes como a um lenço descartável e ela tinha sido cega de não reconhecer quem ele realmente era. - Julia! – a voz de sua mãe a tirou de seu discurso interior. – Você... Você está chorando, querida? Assustada, ela olhou para cima, limpando algumas lágrimas que rolavam por seu rosto. Anne olhou boquiaberta para ela do outro lado da mesa. Sorrindo fracamente, Julia esfregou as bochechas mais uma vez. – Desculpe. É que... Eu estou me sentindo um pouco perdida. A escola acabou, todo mundo está indo embora, minha vida nunca mais vai ser a mesma... Parece ser o fim de tudo. – ela mentiu. - Bem, Gaby não vai a lugar algum, vai? – a Sra. Gunther colocou a mão amorosamente no braço da filha. – Ela vai estar aqui com você. E Axel e Florian? Eles vão para a Universidade de Salzburg também. Seus outros amigos ainda vão estar por perto, não vão? Julia sorriu. Sua mãe era doce e, o mais importante, ela estava certa. As pessoas que realmente se importavam com ela estariam ao seu lado. Provavelmente, a vida dela ficaria bem melhor agora que ela não estaria apenas pensando em Michael. Até aquele momento, ela nem tinha prestado atenção em nenhum dos outros garotos legais da sua cidade. Hora de se abrir para novas possibilidades e parar de ficar sentindo pena de si mesma. Naquela noite, quando Julia saiu do quarto depois de vestir novos jeans e uma camiseta, ela estava totalmente preparada para fazer sua vida dar uma guinada de cento e oitenta graus. Era uma linda noite e ela ia aproveitar a companhia dos seus amigos no O’Malley’s, o barzinho favorito deles. - Julia – Anne chamou do quarto ao lado – Você lê uma história para mim? – a irmã tentou soar como uma criancinha de propósito. Nos últimos tempos, Anne dizia que já era crescida demais para que lessem para ela, mas também dizia que Julia era muito boa para ler contos de fadas. - Estou indo! – com um sorriso, Julia entrou no quarto. Ela se sentou na beirada da cama, passando os dedos pelos cabelos de Anne. Sua irmãzinha estava chupando o dedo de brincadeira, agarrando um brinquedinho com um braço e piscando os cílios para Julia enquanto a empurrava o livro de histórias sobre a floresta encantada. - O Príncipe das Árvores – Julia disse com entonação, abrindo o livro no capítulo quatro. Ela nem mesmo tinha que olhar, ela já sabia de cor. Sua avó sempre lia histórias daquele livro e quando Anne nasceu, a avó lhe dera o livro de presente: "É sua vez de ler contos de fadas para a sua irmãzinha." – ela dissera. O livro de histórias era repleto de lendas austríacas, contos de fadas e tradições de tempos antigos. Uma parte era, ainda, dedicada ao folclore anterior ao Cristianismo – páginas cheias de descrições de criaturas das trevas que vinham dos Alpes e viviam nas florestas e montanhas. O Krampus era o espírito selvagem que ensinava os rapazes a sobreviverem por si mesmos. Só depois que a Igreja estabelecera suas regras na Áustria é que o Krampus foi considerado um monstro do mal, que levava crianças desobedientes para a sua casa na noite anterior ao dia de São Nicolau.


Além disso, o livro também trazia contos de fadas modernos. O capítulo quatro, sobre o Príncipe da Floresta, sempre fora o preferido de Julia e Anne gostava dele da mesma forma. Em sua melhor voz de contadora de histórias, Julia recontou a fábula do jovem príncipe que se apaixonou por uma fada que vivia na floresta. A fada, que também era princesa, se sentava no galho de sua árvore preferida sempre que precisava descansar de tanto voar. Anne olhou por sobre o seu ombro para ver as belas ilustrações do livro. Quando Julia alcançou o fim da história, Anne engatinhou para o seu colo e jogou os braços ao redor de sua irmã mais velha: – Sabe, eu não tenho tanta vontade assim de crescer – ela confessou em voz baixa. - Por que não, querida? – Julia acariciou o cabelo loiro escuro de Anne. Sua irmã também iria para uma nova escola depois do verão, ela tinha acabado a educação infantil. Anne encolheu os ombros pequenos. – Você também é grande agora e não parece tão feliz quanto era antes. Algumas vezes é como se você não acreditasse mais em contos de fadas. Julia mordeu o lábio, controlando-se para não fazer uma observação mordaz. Qual a necessidade de dizer a Anne que os contos de fadas não se tornavam realidade? Não era preciso incomodar uma garotinha com a sua amargura. – Você está certa, eu não estou me sentindo muito feliz agora. Eu tive que enfrentar uns lobos maus ultimamente. - Ah, na floresta, você quer dizer? – Anne perguntou, meio brincando, olhando para Julia com seus grandes olhos azuis. Julia não pôde deixar de sorrir. – Não, na floresta não. Nas ruas escuras da Selvagem Salzburg. Anne riu. – Você tem certeza que quer sair hoje à noite, ainda? - Claro. Axel e Gaby vão me defender se encontrarmos mais lobos ou monstros Krampus. - Mas Axel usa óculos. – Anne se opôs, como se a péssima visão do primo o desqualificasse para o posto de defensor confiável. - Mas a Gaby não. - Verdade. – Anne acenou solenemente. Sempre que a melhor amiga de Julia aparecia em casa, Anne se sentia um pouco intimidada por Gaby e suas roupas pretas. Aparentemente, ser uma gótica a fazia uma boa protetora, no conceito de sua irmã. - Então vou indo. – Julia se levantou. – Vejo você amanhã de manhã. - Não fique fora até tarde – Anne disse, repentinamente soando maternal demais para sua idade. Julia riu. – Não vou. – ela desceu as escadas correndo, quase trombando com a mãe, que saía da cozinha. - Você está com a chave de casa? – a Sra. Gunther perguntou – Eu vou me deitar mais cedo esta noite, então vou trancar a porta antes de você chegar. - Estou. E com meu cartão do ônibus, minha carteira, o celular, o spray de pimenta e o meu melhor humor. Julia deu um beijo na testa da mãe e saiu pela porta assobiando. Ainda cantarolando, ela caminhou pela rua e para o Birkenstrasse, que levava ao ponto de ônibus. O ônibus ainda não estava lá, então ela se sentou no banco, sob a área coberta. A meia lua iluminava o céu, as árvores da floresta do outro lado do ponto de ônibus sussurravam misteriosamente à brisa do verão. Por apenas um momento, ela se lembrou do conto de fadas que havia acabado de ler para Anne. Quase de modo inaudível ela murmurou: - Oi, meu príncipe. Como vai você?


Não seria fantástico voar por aí com asas de fada, olhando para a Terra do lado de cima? Ela se sentaria sobre a copa de uma árvore e assistiria o mundo acontecer, esperando até que o caos e a loucura da humanidade passassem e a era dos espíritos da natureza começasse na Terra. Ela terminaria amando um lindo e misterioso eremita que moraria em uma casa no meio da floresta, escrevendo poemas sobre as árvores, as flores e seu amor por ela todos os dias. Nos anos passados, ela tinha observado Michael por horas a fio durante as tediosas aulas de matemática e física que ela tinha que assistir. Ela tinha tirado o melhor proveito dessas aulas assistindo Michael, que se sentava duas fileiras na frente dela, para o lado esquerdo. Algumas vezes, ele desenhava no caderno enquanto o Sr. Brunner se esforçava para explicar outra equação de segundo grau, e ela sempre se perguntou o que é que ele estava desenhando. Um dia, Michael tinha acidentalmente deixado o caderno em sua carteira e ela espiou para ver o que ele havia desenhado. As últimas páginas estavam cheias de desenhos de árvores e flores e aquilo a tinha deixado feliz. Talvez ela tenha dado muita importância para aquilo. À distância, ela podia ver às luzes do ônibus se aproximando. Julia pegou seu cartão de viagens dentro da bolsa para mostrar ao motorista. Quando ela estava embarcando, o telefone em seu bolso tocou. - Oi, Axel! – ela respondeu – E aí? - Já chegou? - Não, acabei de entrar no ônibus. Vou estar lá em uns vinte minutos. - Eu chego em meia hora. Florian também vai, ele disse que está se sentindo melhor. - Ótimo! Vejo vocês dois daqui a pouco. Julia desligou e fuçou dentro da bolsa para procurar o seu MP3. O ônibus foi se enchendo aos poucos. A cada parada mais adolescentes entravam, todos eles vestidos para a noitada na cidade. Ela sorriu – era uma boa ideia sair de sua crise e ficar com os amigos no barzinho a noite toda. Mais cedo ou mais tarde, ela inevitavelmente esbarraria em Michael novamente, mas pelo menos ela não o encontraria sozinha. - Ok, quem quer cerveja? – Tamara perguntou, deslizando do seu banco. A irmã de Gaby buscaria a próxima rodada. Ela bateu no assento de couro e cutucou Julia. – Você pode sentar no meu banco, você merece um lugar. Floria e Axel olharam curiosos para Julia. Eles haviam acabado de entrar e haviam perdido toda a conversa entre Julia, Gaby e Tamara sobre o terrível encontro de Julia e Michael naquela tarde. - Eu mereço uma cerveja - pediu Florian – Depois de sobreviver a esta terrível gastroenterite que me fez comer de canudinho a semana inteira, eu tomaria algo bem gostoso. - É, parece que você está totalmente preparado para beber. - Axel sorriu. – Só não vá vomitar em cima de mim, ok? Gaby se juntou à sua irmã para ajudar com as bebidas e Florian se sentou no banco ao lado de Julia. – Então o que aconteceu? Por que você está merecendo um banco? - Ah, é só bobagem. Homens. - Quer falar sobre isso? – disse Axel – Que homem partiu o seu coração? - Michael Kolbe - Julia murmurou, não se sentindo muito acessível. - Kolbe? Aquele super idiota? – Florian exclamou. - Ei, você pode falar mais baixo? – Julia o calou, inquieta – Metade das pessoas neste bar celebra cada passo dele. Em uma voz suave ela contou mais uma vez a versão resumida do seu encontro com Michael para


os garotos, seus rostos ultrajados quando ela terminou. - Ele só ataca as inocentes – Florian disse, com desprezo. - Nossa, valeu! – apesar das palavras sem tato de Florian, Julia não pôde deixar de abrir um sorriso. Ele não era diplomático, mas, na realidade, também estava certo. - Talvez devêssemos colocar a foto do Michael em um alvo – sugeriu Axel – Para que pudéssemos jogar dardos na sua cara estúpida a noite inteira. - Que ideia esplêndida para um jogo - Florian concordou – Nós vamos chamá-lo de "Mate o Kolbe". Vai que pega. Podemos começar uma tradição aqui no O’Malley’s. Gaby e Tamara voltaram com uma bandeja cheia de bebidas, propondo um brinde ao começo das férias de verão. – Um brinde à esperança de que todas as pessoas que nos magoaram no passado morram. - Gaby desejou, vingativamente, lançando um sorriso malvado para Julia. Julia sorriu de volta, batendo o copo contra o de Gaby. Como esperado, foi bom ter saído de casa. Ela se sentia mais forte na companhia de seus amigos. Além disso, ela estava mais do que feliz de não ter encontrado com Michael quando eles saíram do bar às onze. - Vamos sair para fazer compras em breve – Gaby disse, abraçando Julia ao se despedir. – Ou ficar juntas no Jardim Mirabell o dia todo para ver os garotos. Vou tirar você dessa. Eu prometo. - Obrigada. – Julia abraçou a amiga de volta. Era o começo de uma nova vida cheia de oportunidades e ela faria de tudo para que fosse linda.


3. - Vou correndo para a casa da vovó! – Julia gritou do corredor, enquanto colocava seus tênis de corrida. – Eu vejo vocês duas lá, ok? - Eu vou esperar na porta de entrada, com uma medalha de ouro e um coral cantando o hino nacional - a Sra. Gunther brincou com a filha, esticando o pescoço através da porta da cozinha – Divirta-se. Julia passeou pela estrada que levava à floresta, acelerando assim que ficou sob a copa das árvores. Era uma bela manhã de sábado e a floresta estava calma e pacífica. Tudo o que ela podia ouvir eram os sons costumeiros da natureza e as batidas firmes de seu coração. Era por isso que ela gostava de correr ali: no silêncio, as suas preocupações sempre desapareciam. Para ela, era como meditação. Julia deixou a trilha principal e correu fora da pista por alguns momentos para que pudesse parar ao pé de seu carvalho. Sua respiração diminuiu quando se encostou no tronco da árvore, abrindo a garrafa de água que estava dentro de sua pequena mochila. Algumas roupas limpas estavam guardadas perto de sua garrafa para que ela pudesse se trocar, na casa de sua avó, depois da corrida. E por último, mas não menos importante, estava seu último boletim. A sua avó ainda não tinha visto suas notas finais. Todas as suas notas eram boas, mas Julia estava mais feliz com os resultados finais em Educação Musical. Ela havia ficado com a nota mais alta do ano para aquela eletiva, pela música que ela havia composto. Se ao menos Michael soubesse que ela havia escrito para ele... Ele provavelmente choraria de tanto rir. Suavemente, ela cantarolou a melodia para si mesma, sentindo-se incrivelmente só por alguns segundos, enquanto descansava a cabeça contra a casca rachada do tronco da árvore. Acima de sua cabeça, as folhas balançavam com o vento que repentinamente começou a soprar, como se a floresta estivesse cantando de volta para ela. Em algum lugar distante, um pássaro piava. Depois de alguns minutos pensativa, Julia decidiu que o descanso havia acabado. Ela ficou de pé e esticou as pernas, guardando a garrafa de água. Os músculos das suas pernas estavam quentes e tensos após o alongamento. Correndo levemente, ela cortou caminho por entre as árvores para continuar ao longo da estrada de terra, que atravessava o bosque, alcançando o fim da floresta próximo a Eichet, depois de quinze minutos. A estrada principal que levava ao vilarejo estava deserta. Julia ficou no meio, seus tênis batendo no asfalto como um pacífico mantra. No calor da manhã de fim de junho, ela podia sentir o suor escorrer por sua pele, o vigor correndo pelo seu corpo. Era exatamente disso que ela precisava. Correr sempre a revitalizava quando gastava muita energia nas preocupações do dia-a-dia e, ultimamente, as pessoas estavam sugando demais as suas energias. Michael dizendo a ela: Nos vemos em breve. A voz de seu pai e as palavras: Eu venho visitar vocês, meninas, sempre que puder. As pessoas prometendo coisas a ela, tudo da boca para fora. Sua melhor amiga, Gaby, era um bálsamo, nesse sentido. Sempre honesta, não fazia rodeios. Quando Julia e Gaby se conheceram, no colégio, Gaby já tinha o hábito de vestir roupas estranhas, carregando uma bolsa preta, decorada com figuras do Placebo e Nirvana, como mochila, apesar das repreensões dos professores. - Não me importo de sentar perto de você. – Gaby declarou à uma tímida Julia no primeiro dia de aula. Ela arremessou a mochila esfarrapada para baixo do assento ao lado de Julia. – Você é a única


pessoa de verdade por aqui. - Como... Como é que você sabe? – Julia perguntou, um pouco surpresa. - Seus olhos me dizem que você não é muito fã de pessoas. Então, você não se preocupa em mentir para elas também. Você não é uma fraude. Julia imediatamente se sentiu protegida pelo comportamento rebelde e extravagante de Gaby na classe. Mais tarde, Gaby a dissera que se sentia segura perto de Julia porque ela exalava muita paz e tranquilidade. Os pais de Gaby eram pessoas falantes e extrovertidas, que não tinham muito tempo para ficar com as suas filhas. Tamara tinha se adaptado, fazendo o papel da boa filha mais velha, que nunca fora um fardo para os pais, e Gaby havia firmado o pé e decidido se vestir como as estrelas do rock que ela adorava e seus pais detestavam. Apesar disse, Tamara e Gaby se davam muito bem. Julia virou a rua de sua avó e a viu esperando por ela no jardim em frente à casa. - Mais rápido, Julia – gritou ela – O chá está esfriando! Sua mãe e sua irmã tinham vindo de bicicleta e estavam na sala, com chá e fatias de bolo de gengibre. Julia beijou a avó na bochecha quando entrou, tirando os tênis no corredor. - Só vou me refrescar – ela disse, ofegante, subindo as escadas de dois em dois degraus. A água do chuveiro esquentou rapidamente, ela apenas levou dez minutos para se lavar e voltar para o andar de baixo para tomar seu chá e comer bolo. - Planos para o verão? – a avó perguntou, curiosa – Você tem três meses de folga, afinal. Julia deu de ombros. – Não sei. Arrumar um emprego, eu acho. Sua mãe não tinha dinheiro para levar Anne e ela a nenhum lugar especial. Julia tinha considerado passar as férias em Salzburg, mas agora que o verão havia chegado, os três meses pela frente pareciam intermináveis. As aulas na faculdade teriam início apenas no começo de outubro, deixando-a com tempo suficiente para conseguir um trabalho de verão para guardar algum dinheiro, mas francamente, ela não estava muito animada com a ideia. No ano passado, pegar encomendas em uma fábrica de roupas cheia de mofo a tinha deixado completamente maluca depois de duas semanas. - Axel me disse que estava planejando uma viagem a Londres – disse a avó – Ele não foi semana passada? Julia balançou a cabeça. – Florian ficou doente, então eles adiaram. - Por que você não se junta a eles? Isso talvez possa te animar. Julia olhou para as próprias mãos, sentindo-se descoberta. Sua avó parecia ter um sexto sentido para essas coisas. Se ela parecia ter algum tipo de problema, a avó sempre sabia de imediato. – Estou bem, obrigada – ela respondeu, sem querer preocupar Anne e a mãe. Ela rapidamente procurou pelo boletim dentro da bolsa. – Aqui, veja só as minhas notas. A avó riu. Julia não podia deixar de sorrir também. Isso era uma besteira. Ela parecia querer provar que a sua vida era ótima pelas suas médias no boletim. - Julia teve a nota mais alta em Educação Musical – Anne cantarolou, sorrindo com orgulho para a irmã – Ela tocou uma música de sua própria autoria. - Por que você não toca para a sua avó mais tarde? – sugeriu a mãe. Ótimo. Ela temia isso: ter que tocar a famosa música que a lembrava daquela pessoa em particular que ela queria esquecer. – Sim, eu toco. Deixe-me tomar o chá primeiro – ela resmungou. Quando Julia correu para o quintal, depois de terminar o seu chá e a sua relutante performance musical, a sua avó a seguiu, alcançando-a no caminho ao longo dos rododendros.


- Minha doce Julia, o que está acontecendo com você? – ela perguntou gentilmente. Julia suspirou profundamente. – Não é nada, de verdade. Eu só... Tenho que esquecer algumas coisas que eu deveria ter deixado pra lá há muito tempo – ela se afundou no banco entre dois grandes arbustos. - Então, qual o nome dele? – a velha senhora perguntou, depois de alguns segundos em silêncio. - Michael – Julia sussurrou, sua voz presa na garganta. - Você escreveu aquela música para ele? - Vovó, você realmente é uma vidente – Julia exclamou, ofendida. Sua avó lhe deu um sorriso torto, quase malicioso, e então pareceu séria novamente. – Ele a inspirou e isso é lindo. Isso sempre vai ser seu. O amor que você sentiu por ele não está perdido. Você aprenderá a dá-lo a outra pessoa, assim que você deixar a memória dele para trás. - Dar a outra pessoa? Não sei se consigo. Tudo pareceu tão intenso que me deixou seca. Mesmo que agora eu saiba que ele não merece o meu amor. Julia ficou em silêncio, seus olhos fixos na bola de vidro verde escura presa em uma haste, perto do arbusto de rododendros. No vidro convexo da esfera, ela parecia um alien, uma estranha, uma versão distorcida de si mesma, olhando de um distante mundo pintado de verde. Que bom seria desaparecer dentro de uma bolha de sonhos como aquela. Ela fechou os olhos e lutou contra novas lágrimas. Aquilo era ridículo, ela deveria se animar. A avó havia dito coisas tão doces e sábias a ela. Ainda assim, ela não pôde evitar o choro quando a avó também se sentou no banco e colocou um braço ao redor dos seus ombros. – Você tem que se permitir o luto pelas coisas que perdeu, garotinha. Mas, por favor, lembre-se de celebrar as coisas que você ainda tem. A avó estava certa, ela ainda tinha todos os poemas que havia escrito em seu diário enquanto estava sob o seu carvalho, sonhando com Michael. Ela ainda tinha a sua música, a assombrosa melodia que ela havia tocado durante a cerimônia de formatura, diante de uma plateia encantada. Sua mãe havia ficado emocionada quando levou um buquê de flores para Julia no palco, logo depois da apresentação. Esses eram momentos que ela manteria em seu coração por um longo tempo. Naquela tarde, a música de Julia encheu os cômodos da confortável casa em Eichet, pela primeira vez. Na sua mente, ela sempre a chamava de música de Michael, mas não mais. Ela havia mudado de ideia: era hora de mandar embora todos os sonhos que ela tivera sobre os dois e abrir espaço para coisas novas. - Venha, Jules, vai ser maravilhoso – a vozinha de Gaby soou do outro lado da linha. O final de semana havia acabado. Julia estava ocupada buscando anúncios de emprego no jornal local. Ela pensou que ter um emprego de verão seria uma boa ideia, ela poderia guardar algum dinheiro para viajar de férias com a Gaby. Até agora, porém, ela estava se sentindo meio entediada com a página de classificados: todos os empregos anunciados no Salzburger Fenster eram ruins, o melhor que ela havia selecionado naquele dia havia sido uma agência de modelos procurando por garotas loiras que usassem 36. Com um gemido de frustração, Julia riscou o anúncio com o marcador vermelho. - Então, quanto é o ingresso? – ela perguntou, tentando parecer mais animada do que se sentia. Gaby estava repentinamente convencida de que elas precisavam ir ver uma banda cover dos Siouxsie and the Banshees que tocaria no Shamrock naquela noite. - Nada, sua boba – Gaby bradou ao telefone – É uma banda cover. E eles estão fazendo um show na segunda-feira à noite. Preciso dizer mais alguma coisa? Quem em seu juízo perfeito pagaria por isso?


Julia riu. - Está bem. Pergunta idiota, eu acho. Mas, eu pensei que você quisesse sair para jantar com o pessoal hoje à noite. - Ainda quero. Podemos fazer as duas coisas. A banda não vai começar antes das dez. Então, você não pode dizer não. - Estou começando a entender isso. Axel e Florian também vão? - Ah, eu vou convencê-los a se juntarem a nós quando eu os vir hoje à tarde. Eles haviam combinado de se encontrar na casa de Florian. Ele morava em uma mansão ao longo do rio Salzach e seu terraço era quase tão grande quanto seu espaçoso quarto no segundo andar. No verão, a turma de amigos deles ficava lá fora, no terraço, ouvindo discos antigos, bebendo cerveja e fumando um baseado de vez em quando. Florian sempre punha uma escada apoiada na fachada da casa para que as pessoas pudessem subir sem ter que atravessar a casa e incomodar seus pais. Esta manhã, Julia havia comprado latas de cerveja e garrafas de refrigerante para que Florian pudesse preparar algumas bebidas para eles. - Tudo bem, Gaby, pode contar comigo. Vejo você mais tarde! Enquanto ela colocava o celular na bolsa, seu olhar recaiu sobre um pequeno anúncio da livraria do centro da cidade. Höllrigl estava procurando por assistentes de vendas. Aquilo pareceu algo que ela poderia gostar, quem sabe ela poderia até mesmo receber um desconto de funcionário para comprar livros. Ela era uma leitora voraz, assim como Axel. Ele provavelmente dançaria de felicidade se ela arrumasse um emprego ali e vendesse livros para ele a um preço mais baixo. Quando Julia saiu de seu quarto, Anne estava deitada no sofá do corredor, lendo o familiar livro de histórias. Obviamente, a irmã estava se tornando a terceira leitora voraz da família. - Você não quer ir lá para fora? – ela perguntou a Anne, que logo se sentou. – Você pode ler lá no quintal também, não pode? - Ah, eu vou lá fora em um minuto. Vou me encontrar com Sabine para irmos ao bosque. Queremos construir uma casa na árvore. Julia ergueu a sobrancelha, duvidando. - Hmmm, Sabine tem algum irmão habilidoso ou coisa parecida? – a nova amiga e vizinha de Anne tinha apenas nove anos. Certamente as duas garotinhas não podiam construir uma casa na árvore sem alguma ajuda. Anne deu uma risadinha. - Não. Na verdade, ele é meio desastrado. Mas, ele é fofo! Devo apresentá-lo a você? - Não, não precisa, sua casamenteira. – Julia virou-se e desceu as escadas correndo. Fofo ou não, no momento, ela não estava precisando de garotos em sua vida, apesar de Gaby insistir que ela precisava se distrair. Dez minutos depois, ela estava no ônibus, com seu iPod ligado, Loreena McKennitt tocando uma suave harpa durante a viagem para a cidade. Loreena era o seu antídoto contra o punk alto a que seria submetida mais tarde naquela noite. Na realidade, ela nunca havia ouvido nada de Siouxsie and the Banshees antes, mas se a impressão que os grandes pôsteres que Gaby tinha da banda passavam se confirmassem, ela tinha quase certeza de que seus tímpanos teriam uma dolorosa experiência naquela noite. Depois de trinta minutos de viagem, Julia saiu do ônibus e caminhou um pequeno trecho até a casa de Flo. O tempo estava adorável e o castelo branco de Salzburg na montanha, com vista para a cidade, brilhava à luz do sol. Ela olhou para a fortaleza saudosamente. Talvez ela pegasse o caminho mais longo colina acima novamente um dia desses e compraria uma generosa fatia de bolo


na lanchonete do castelo. Fazia tempo que ela não fazia isso. A última vez havia sido quando Gaby a acompanhara, e a amiga havia sofrido de dores musculares nas panturrilhas por vários dias depois da aventura, aquela fracote. Julia manteve um ritmo acelerado e logo chegou à velha casa verde-claro em Imbergstrasse que pertencia à família de Florian. A escada estava esperando por ela, encostada na fachada da casa. Ela podia ouvir Bob Dylan cantando nos velhos alto-falantes no terraço do segundo andar. Alguns anos atrás, Florian descobrira os anos sessenta e passou a saquear a coleção inteira de vinis dos seus pais. - Paz, cara – Axel a cumprimentou quando a cabeça de Julia apareceu acima do corrimão do terraço. Ele fez um sinal de paz com dois dedos da mão e sorriu para ela, seus olhos parcialmente escondidos por um par de óculos verdes em formato de estrela. - Dê uma chance a ela – Julia gritou de volta, caminhando para a área de estar, onde Axel, Florian e Tamara estavam esparramados no grande sofá, bebendo e cantando junto com a música “I Want You” de Dylan. – Onde está a Gaby? - Ela está pegando alguns folhetos no bar onde aquela banda cover vai tocar esta noite – respondeu Tamara – Se nós os entregarmos, cada um terá direito a uma bebida grátis. - Essa banda está me parecendo desesperada por atenção. – Julia riu e colocou a sacola de garrafas perto de Florian. – Olha só o que eu trouxe. Agora você pode me fazer um Radler. - Será uma honra, senhorita Julia – Florian disse, com um sorriso insinuante. Axel se levantou para colocar o próximo disco na mesa giratória e deixou a voz frágil e sobrenatural de Marc Bolan inundar o terraço. Julia suspirou satisfeita, encostando-se no sofá para olhar o céu azul brilhante sem nenhuma nuvem à vista. A tarde estava um paraíso. - Oi, oi, oi! – Gaby gritou quando apareceu, repentinamente, no topo da escada, acenando entusiasmada com a mão cheia de panfletos do Shamrock. – Olha só o que eu consegui. Canecas de Guinness grátis, para todos, esta noite. – ela se afundou no sofá ao lado de Julia, dando um largo sorriso para a amiga. – Como foi seu final de semana, meu bem? - Foi legal. Visitei a minha avó em Eichet ontem. – ela olhou para os panfletos que Gaby havia espalhado sobre a mesa. – Estou feliz que o show é no Shamrock – ela acrescentou em voz baixa. Michael jogava dardos com os amigos no O’Malley’s, o outro bar irlandês da cidade, toda segundafeira à noite. Gaby concordou com a cabeça, um sorriso simpático nos lábios. – Então, quando é que vocês finalmente vão para Londres? – ela se dirigiu aos garotos enquanto colocava cerveja para si. - Na verdade, não tenho a mínima ideia. – Florian deu de ombros. – Nós temos que fazer todas as reservas novamente. Acho que vai ficar mais caro desta vez. Os bilhetes que nós tínhamos foram reservados com meses de antecedência. - Ah, vamos lá. – Axel arqueou uma sobrancelha. – A Ryanair é quase de graça. Ei, por que as garotas não nos acompanham na viagem também? Gaby olhou de Tamara para Julia, acenando vagarosamente. – Sim, por que não, não é mesmo? – ela repetiu - Nós temos todo o tempo do mundo. E não vai nos quebrar, se nós arranjarmos um voo barato. - Nós estávamos planejando ficar em um albergue da juventude – Florian disse – Eles não são tão caros. - Bom, eu acho que essa é uma excelente ideia! – Julia exclamou – Eu ia arrumar uma entrevista de emprego na livraria para conseguir alguma grana extra. Se der certo, vou ter dinheiro para ir para Londres no meio de agosto.


Todos sorriram. - Então, está combinado – decidiu Tamara – Eu proponho um brinde aos nossos planos de viagem! Quando Florian se levantou para virar o disco, ele voltou com um saquinho pequeno de maconha. – É hora de relaxar – ele anunciou. - O que... Você vai ao rodízio de comida chinesa chapado? – Tamara exclamou em choque – Só pra você saber, eu não vou ficar no mesmo lugar que você se você agir como um idiota. - Ele age como um idiota o tempo todo - Axel comentou, esquivando-se do soco que Florian dirigiu a ele. Axel entrou e pegou os folhetos e guias turísticos de Londres que ainda estavam na mesa de Florian. Logo, todo mundo estava absorvido pelas informações, fazendo planos para uma viagem de quatro dias à capital inglesa. - É muito legal todos nós irmos a Londres – Julia murmurou para Gaby – E eu posso focar no trabalho nas semanas que antecederem a viagem. Se eu conseguir o emprego, é claro. Gaby colocou os braços ao redor dela em um abraço doce. - Você vai conseguir. Foi feito para você, sua leitora compulsiva. Além disso, vai te manter longe das ruas e você não vai mais correr o risco de tropeçar em certas pessoas. Julia concordou. Ela havia se sentido vazia quando passou pela Cidade Velha naquele dia, uma certa falta de sentido que não podia ser preenchida. Era como se estivesse andando pelas ruas de uma cidade desconhecida como um borrão, mantendo as mesmas aparências, mas sentindo-se vazia e fria por dentro. Ela não mais poderia ter esperanças de se encontrar com Michael. Gaby estava certa: ela deveria se esconder por um tempo. E onde encontrar esconderijo melhor que a livraria, sua Valhala pessoal? Naquela noite, todos caminharam juntos pelas ruas estreitas e pelos becos de Salzburg até Rudolfskai, ao longo do rio. A porta para o Shamrock estava escancarada, uma multidão de roqueiros reunida do lado de fora, segurando suas cervejas e fumando cigarros. - Por que você não me dá os panfletos? - Axel disse a Gaby – Eu vou buscar bebidas para todos. - Ei, obrigada – respondeu Gaby – Acho que vou ser a gótica egoísta e fumar um cigarro só para mim. Axel riu e tentou dar um tapinha amigável em sua cabeça, mas ela se esquivou para o lado com agilidade. Eles decidiram esperar do lado de fora. A banda estava claramente passando o som. Vez ou outra, os alto-falantes cuspiam algum feedback acústico quando algum dos membros da banda aumentava muito o fader no mixer. Julia examinou a multidão e sentiu seu coração parar de bater quando viu dois dos amigos de Michael saindo pela porta da frente. Tamara a cutucou. - Você está bem? Parece que você viu um fantasma. Gaby seguiu o olhar de Julia e revirou os olhos. - Mas, que sorte. Ah, bem, sabemos que aqueles dois vieram aqui sem ele. Michael está provavelmente jogando dardos completamente sozinho no O’Malley’s. Ele é a última pessoa que eu esperaria que aparecesse em um show como este. Julia soltou um suspiro trêmulo. Gaby possivelmente estava certa, mas ela não conseguia relaxar. Quando Axel apareceu com uma bandeja de cervejas anunciando que a banda estava prestes a começar, todos se arrastaram para dentro do bar. O salão estava cheio e escuro, o que era uma


benção. Mesmo se Michael tivesse decidido vir, ele não seria capaz de vê-la de nenhuma maneira. Quando os holofotes se acenderam e inundaram o palco com brilhantes luzes coloridas, a música alta imediatamente explodiu pelos alto-falantes. Julia se encolheu, ela estava próxima à caixa de som do lado esquerdo. - Caramba! – Gaby gritou no seu ouvido direito – Eles estão tocando Cities in Dust! Eu amo essa música. Enquanto isso, Florian estava encarando o palco com os olhos vidrados. Julia olhou para o baixista que ele estava claramente analisando. O cara usava uma regata preta e um moicano pintado de preto e roxo. - Caramba! – ele repetiu as palavras de Gaby – O que é aquilo? Acho que estou apaixonado. Julia riu. Aquele era o Florian, ele dizia o que pensava. Ela cambaleou um pouco para longe do alto-falante. Mesmo a música sendo tocada no último volume, não era tão ruim. Na verdade, ela estava até gostando. Ela tinha pretendido apenas animar Gaby ao acompanhá-la, mas a banda era melhor que o esperado. - Isso é muito legal – ela disse a Gaby quando outra música começou em um volume mais baixo. Gaby sorriu para Julia, seus olhos pintados de preto cheios de euforia. - É, você acha? - Sim, demais. Obrigada por me trazer. Depois de um set de seis músicas, a banda anunciou o intervalo. As luzes se acenderam e Axel cutucou Florian. - Você vem? Nós temos que pegar algumas bebidas no bar. - Claro – Florian concordou, antes de repentinamente congelar. – Não, espere – ele assobiou – Aquele baixista fofo está vindo diretamente até nós. Julia se virou para ver o garoto alto, de moicano, descendo do palco e indo em direção a eles. - Estou morrendo de sede – lamentou Axel. - Não se preocupe, eu sei fazer respiração boca-a-boca. Espere um pouco. O baixista parecia cortar caminho entre a multidão, o mar de pessoas se dividindo enquanto ele passava, como se pudessem perceber que ele era um homem com uma missão. Os seus olhos nunca deixaram os de Florian, que estava começando a parecer um tomate sofrendo de parada cardíaca. Julia podia quase ouvi-lo engolir quando o lindo músico parou bem em frente a ele. - Ei – o baixista disse em uma voz suave, mas resoluta – Você vem sempre aqui? Florian piscou. Ele estava sem palavras. Axel visivelmente se encolheu ao ouvir a cantada barata, mas veio ao auxílio de Florian ao pegá-lo em seu ombro e responder por ele. - Sim, ele vem. Na verdade, aposto que ele vai estar aqui toda semana a partir de agora. - Bom saber – o baixista sorriu preguiçosamente para Florian. - Você... Você gostaria de beber alguma coisa? – Florian conseguiu dizer finalmente. - Claro, eu tomaria uma cerveja. – o punk acenou, estendendo a mão. - Por falar nisso, meu nome é Moritz. Florian apertou a mão de Moritz. - Florian. Então, hã, vou pegar uma cerveja para você – gaguejou. - Agora você corre – disse Axel, indignado quando ambos saíram em direção ao bar, deixando Moritz com as três garotas. Julia riu, olhando para a Tamara e Gaby como quem dissesse: “O que diabos está acontecendo?” - Muito legal a banda de vocês. – Gaby começou a conversa. – Vocês vão tocar mais vezes aqui? - Espero que sim. Vamos ver o resultado deste show. Se vocês quiserem que a gente volte, por


favorzinho, digam ao dono do bar, para que ele nos chame novamente. - De onde vocês são? – Julia perguntou curiosa. Moritz falava um alemão padrão, sem nenhum sotaque austríaco, mas ela percebia uma certa diferença em sua voz. - Ah, meu pai é inglês. Eu vivi em Londres, mas quando eu tinha dez anos, nós nos mudamos para Cologne por um tempo e agora moramos aqui. - Londres? – Tamara perguntou – Engraçado, vamos fazer uma viagem para lá no mês que vem. Talvez você possa nos dar algumas dicas. Florian e Axel logo estavam de volta, o primeiro equilibrando duas cervejas e um copo de refrigerante em uma bandeja. Julia ergueu as sobrancelhas para Axel. – Ele por acaso expulsou as pessoas da fila? Vocês foram muito rápidos. - Parece que Florian pode furar filas muito bem quando surge a necessidade. Enquanto isso, Moritz estava conversando animadamente sobre os melhores albergues da juventude no centro de Londres com os demais. Na hora em que Moritz teve que voltar ao palco, Florian já tinha conseguido o seu número de telefone. - Não posso acreditar que isso está acontecendo comigo! – ele se entusiasmou, lançando outro olhar ardente às costas musculosas de Moritz, enquanto ele desaparecia no meio da plateia. – Eu o vi, ele me viu, nós nos encaramos e pronto! - Não é melhor você ir devagar? – Julia tentou acalmá-lo. – Você nem o conhece ainda. - Ainda não, mas eu vou conhecer. Nada vai me impedir de comprar créditos para os próximos cem anos, amanhã cedinho. Inesperadamente, Julia sentiu uma pontada de inveja. Por que era tudo tão simples para Florian? Por que ele tinha a sorte grande de conhecer um cara lindo, gostoso, assim tão facilmente, e que genuinamente parecia gostar dele? O resto do show passou como um borrão. Os espectadores se juntaram, do lado de fora, depois que a música acabou e Julia foi até Moritz, Florian e Gaby, que fumavam fora do bar. - Vou para casa – ela anunciou – Estou exausta. - Tudo bem. – Gaby deu um tapinha de leve nas costas dela. – Você se divertiu, pelo menos? - Sim, eu adorei a música! E eu não estou dizendo isso só porque Moritz está perto. – ela sorriu para a nova paquera de Florian. Ele sorriu de volta. - Por que você não pega meu MP3 emprestado? – Gaby puxou o aparelho de seu bolso canguru. – Assim você pode ouvir algumas das músicas na volta para casa. Mas, vou querer o seu emprestado também. - Tem certeza que você não vai chorar de saudades de seus rocks e músicas góticas sinistras? – Axel perguntou, com um sorriso brincalhão. Gaby balançou a cabeça. - Não. Eu gosto de Enya. Além disso, eu não quero estragar meu delineador de novo, nem parecer um lixo. - Bem, desde que você não cheire a lixo. - Cale a boca! – Gaby empurrou Axel. Julia se despediu de todos e entrou no próximo ônibus disponível que passou pelo bar. Quando ela entrou, as primeiras gotas de chuva de uma tempestade de verão começaram a bater no teto do ônibus. A chuva não parou na terça e na quarta. Longas chuvas de verão atingiram a cidade de Salzburg, mas não adiantaram nada para aliviar o calor. Depois da chuva, as altas temperaturas estavam ainda mais opressivas. Tufos de nuvens se penduravam entre os picos dos montes, como uma neblina


misteriosa de outro mundo. Julia ficou no jardim, sentindo o cheiro no ar. Ela queria correr no bosque, mas ainda estava muito calor. Na realidade, ela preferiria correr na chuva. Talvez ela devesse esperar por isso. - Você está olhando para as nuvens? – Anne perguntou, aparecendo perto dela com o livro de histórias debaixo do braço. - Não, estou chamando-as. Eu quero correr na chuva. Anne se sentou no banco sob o toldo. - Eu trabalhei na nossa casa na árvore com Sabine. Veja, é assim que queremos que fique. – ela apontou uma figura do palácio na árvore que pertencia às fadas do livro. - Uau! É um projeto ambicioso. Tem certeza que vai conseguir? - Espere até ver, irmãzona. Você vai se surpreender. Thorsten disse que vem nos ajudar também. Sabe, o irmão de Sabine. - Ah, aquele garoto de quem você parece gostar muito. Anne bufou. - Eu não gosto dele. Eu achei que ele talvez fizesse seu tipo. Naquele momento, Axel saiu de dentro da casa. Ele havia chegado com a sua velha scooter para almoçar com elas e pegar alguns livros emprestado. - Estou indo. Ei, Jules, você ainda vai ter aquela entrevista de emprego em Höllrigl? - Vou lá amanhã à tarde. Liguei para eles ontem, mas o gerente não vai estar lá até amanhã. - Bom, me avise dos benefícios para funcionários, ok? Eu vou passar e pegá-los enquanto você estiver no caixa. Um leitor voraz está sempre com fome. - Uma tênia também – Anne completou distraidamente, sua cabeça no livro de histórias. Axel segurou uma risada. - Não é que você é uma Wikipedia? – ele sorriu orgulhoso para ela. – Venha aqui, sua vermezinha, quer que eu leia uma história para você? – ele se sentou no banco próximo a Anne. Enquanto Anne ouvia "O Príncipe das Árvores", mais uma vez, Julia entrou para colocar sua roupa de corrida e pegar o iPod de Gaby. Quando ela voltou, estava chovendo como ela havia desejado. Nuvens escuras de tempestade estavam se juntando no céu. Axel fez uma careta quando colocou o capacete e deu partida em sua scooter. - Esperando pelo melhor – ele disse, olhando para o céu. - Isto é o melhor! – Julia acenou para ele antes de sair correndo, colocando os fones de ouvido antes de desacelerar no final da rua. Ela correu em direção à floresta, em um ritmo calmo. As árvores, levadas pelo vento, assobiavam e regavam sua cabeça com pingos d’água. Ainda não estava chovendo forte, mas o som da água caindo e batendo nas copas das árvores causava um agradável arrepio em seu corpo. Ela fez o caminho em direção ao seu carvalho especial e se sentou por um minuto contra ele, alongando as panturrilhas e olhando para os galhos se balançando em direção ao céu, buscando a luz e fugindo da gravidade da Terra sempre presente. O dossel dos galhos da árvore a impediam de se molhar. Julia desligou a Nina Hagen do MP3 emprestado e fechou os olhos, descansando a cabeça contra o carvalho. Vez ou outra, ela ouvia o barulho dos trovões à distância. Muito suave, muito ao longe. Quando a chuva começou a cair mais forte, Julia ficou de pé e correu de volta para a trilha da floresta, na direção de Eichet. Ela queria fazer uma visita surpresa à avó e tomar um chá com ela. Depois de vinte minutos, ela chegou no limite da floresta e correu pela rua de asfalto em um ritmo constante. Neste meio tempo, a chuva tinha ensopado todas as suas roupas, mas isso não a incomodava. A temperatura externa ainda era agradável.


Julia correu para a porta da frente da casa da avó e tocou a campainha com o dedo molhado e escorregadio. O som de A Little Night Music, de Mozart, ecoava pela casa. Julia foi para frente da casa, sob o toldo, para se abrigar da chuva e torcer o cabelo molhado. - Olá? – ela chamou pela janela da cozinha, que estava entreaberta. – Vovó? Está em casa? Nada. Ela olhou pelo vidro canelado da porta da frente, vendo os contornos de um porta guardachuva vazio no corredor. Aparentemente, sua avó também tinha se aventurado na chuva. Talvez elas se desencontraram. Desapontada, Julia se virou e caminhou para o jardim da frente. No final da rua, ela viu Sabine caminhando em sua direção, ao lado de um garoto alto, com cerca de vinte anos, carregando um guarda-chuva vermelho. Julia acenou para eles e esperou que a alcançassem. - Oi Julia – disse Sabine, animadamente – Você não trouxe um guarda-chuva? Julia riu. - Durante a corrida? Não é uma boa ideia. Seus olhos se desviaram para o rapaz ao lado de Sabine, que a estava observando com um leve sorriso. Ele lhe chamou a atenção e estendeu a mão. - Thorsten Ebner – ele se apresentou – Sou irmão de Sabine. - Muito prazer. Sou Julia Kandolf, irmã de Anne. – ela sorriu de volta. O garoto tinha olhos azuis amigáveis e um sorriso atraente. Seu cabelo preto cacheado aparecia sob o capuz do seu casaco de chuva. - Uau, você é uma garota bem atlética para sair em um aguaceiro como este – ele comentou. - Ah, não é tão ruim – Julia respondeu e um raio azul dividiu o céu e o trovão rugiu bem acima de suas cabeças. No momento seguinte, as nuvens pareciam explodir, a chuva caia como uma cortina impenetrável sobre a sua cabeça encharcada. - O que... – ela fulminou as nuvens com o olhar. Thorsten desatou a rir e Julia começou a falar, imitando um tom de censura. – Sabe, isso é tudo culpa sua. Você não tinha que ter usado a palavra aguaceiro. Foi isso que estragou tudo. - Ah, é mesmo? Você está me culpando? Não é a melhor forma de fazer amizade. Sabe de uma coisa, eu vou voltar feliz pelo meu caminho sem usar as palavras “luz do sol”. – ele sorriu maliciosamente. - Thor, podemos ir para o ponto de ônibus, por favor? – Sabine pediu melancolicamente, agarrando a manga da blusa do irmão com os punhos brancos de tanto apertar. – Tenho medo de tempestades. - Claro que sim – Thor disse, com um sorriso tranquilizador. Ele olhou de volta para Julia. – Eu não acho que aquela segunda palavra ajudou em nada. Você nos acompanha sob o guarda-chuva? Julia balançou a cabeça. - Vou correr de volta. Vou ficar bem, sob as árvores da floresta. Falo com vocês depois! - Tem certeza? – Thorsten parecia confuso. - Sim, absoluta! Não se preocupe. – ela rapidamente se virou e correu na direção do bosque, suas meias fazendo barulhos por estarem molhadas dentro dos seus tênis. Ela passou pelo ponto de ônibus, hesitou por um momento, então continuou pela estrada. Ela preferia caminhar. Claro que não havia trazido o cartão do ônibus e ela não estava com vontade de pedir dinheiro emprestado a um garoto que ela havia conhecido há um minuto, sem falar em sentar ao seu lado toda molhada e enlameada. Um meio sorriso se fez em seu rosto quando entrou novamente na floresta. Anne estava certa dessa vez: Thorsten era realmente fofo. Ela queria causar uma boa impressão. O fato de ele ser o vizinho realmente a animou.


Sob as árvores estava quente, escuro e úmido. As folhas assobiavam com o vento enquanto a chuva ainda caía, relâmpagos iluminavam a floresta de vez em quando. Os sapatos de Julia deixavam profundas pegadas no solo lamacento, que a fizera escorregar e quase perder o equilíbrio duas vezes. Julia parou, ofegante. Apoiando-se contra uma grossa castanheira, ela balbuciou um palavrão e esfregou o tornozelo. Droga, ela quase o torcera devido à lama escorregadia. Que ideia estúpida sair para correr nesse tempo terrível. Ela deveria ter pego o ônibus. A essa hora, ela já estaria em casa, no sofá, com roupas secas, tomando um chocolate quente em sua caneca favorita. Ao invés disso, lá estava ela: ensopada, meio trêmula e com um pouco de medo da trovoada. Na opressiva escuridão da tempestade, as árvores pareciam rodeá-la como um exército hostil, suas sombras elevando-se sobre ela. De fato, a floresta parecia como se estivesse prestes a expelir um Krampus malvado a qualquer momento. Aquela seria uma boa hora para encontrar uma criatura mítica da floresta com uma varinha mágica para transportá-la para casa, mas infelizmente, isso não iria acontecer. Julia bateu nos bolsos de suas calças de corrida, procurando pelo iPod de Gaby. A música talvez espantasse os seus pensamentos obscuros. Ela ligou o aparelho e vagarosamente correu na semiescuridão, quando os primeiros tons soturnos de “A Forest”, do The Cure, encheram seus ouvidos. Não era a música mais animada que se poderia imaginar, mas o fato de que era a primeira música a tocar no modo aleatório era muito mais do que uma coincidência para ela simplesmente pulá-la. Julia secou os pingos de chuva das suas bochechas e marchou obstinadamente adiante. O ritmo da música a impulsionou e a fez correr mais rápido, seu coração batendo violentamente em seu peito, expulsando um medo indeterminado. O cantor zumbia em seus ouvidos: “Estou perdido na floresta, sozinho, estou correndo em direção ao nada, de novo, de novo, de novo.” As suas mãos se apertaram e seus olhos se estreitaram contra a chuva que caía do céu. Apenas mais alguns minutos e ela estaria em casa. E então, algo chamou a sua atenção. Ela congelou. À luz de brilhantes relâmpagos que incendiavam a floresta como um fogo frio, ela viu que havia alguém deitado no chão. A mancha negra de uma pessoa à beira do caminho. Uma moto ao seu lado, bem no meio da trilha da floresta. Julia estagnou, com a respiração entrecortada. Com dedos trêmulos e escorregadios, ela tateou o aparelho para desligar a música. Ela havia chegado ao seu carvalho favorito, o local de repente parecendo sinistro na escuridão. Sua garganta secou quando ela olhou para a figura inconsciente na trilha da floresta. Passo a passo, ela se arrastou até à frente. Seus olhos seguiram a trilha que os pneus da motocicleta tinham feito no solo lamacento. O coração de Julia parou de bater quando ela chegou ainda mais perto e reconheceu a moto Honda. Não, aquilo não poderia estar acontecendo. Ela se apressou nos últimos metros que a separavam do garoto no chão. Julia caiu de joelhos ao lado do corpo sem vida, seu estômago se enchendo de medo quando ela percebeu que o lado direito do rosto dele estava coberto de sangue. Talvez ele tenha batido a cabeça em uma pedra pontiaguda. A lesão em sua cabeça parecia muito, muito grave. - Michael? – ela sussurrou suavemente, colocando a mão trêmula em sua testa. - Você consegue me ouvir? Ele ficou imóvel, seus lábios quase azuis, na luz macabra da tempestade de trovões que brilhavam, vez ou outra. Ele parecia tão sem vida... Tão vulnerável. Por apenas um momento, ela se esqueceu completamente da forma horrível com que ele a havia tratado. Ela havia desejado que toda sorte de coisas terríveis acontecessem com ele, mas não aquilo. - Michael. – ela chorou, sua voz falhando. – Por favor, por favor, acorde. Seu coração parou de bater quando ele repentinamente inspirou fundo. Ela pegou a sua mão.


Vagarosamente, ele abriu os olhos verdes como as folhas da floresta sob as quais ele estava, suas pupilas dilatadas e negras como a traiçoeira escuridão que o havia feito escorregar e cair naquele tempo feio. - Julia – ele sussurrou em uma voz suave, mas clara. Ela engoliu seco. Por que ele parecia tão diferente? Ele pronunciou o seu nome com tanta emoção que ela poderia quase acreditar que ele a estava vendo pela primeira vez. Ela piscou, incrédula. - Vou pedir ajuda – ela conseguiu gaguejar antes que os seus olhos se fechassem novamente, fazendo-o dar um leve sorriso. Vinte minutos depois, uma ambulância, com luzes azuis piscando, girou no terreno acidentado do bosque. Julia assistiu, como se estivesse em um transe, os paramédicos colocarem Michael na maca. - Você pode nos dizer como fazemos para encontrar a família dele? – um dos paramédicos a perguntou. - Hã, sim – Julia gaguejou, puxando o telefone novamente para encontrar o número de telefone da casa da família Kolbe. – Por que? Ele ainda está inconsciente? O paramédico balançou a cabeça. - Não, ele pode falar. – ele olhou para a ambulância com uma careta de preocupação. – Mas, ele parece ter perdido a memória.


4. - Isso é i-na-cre-di-tá-vel - Gaby disse, absolutamente chocada. Ela havia ouvido toda a história de Julia sobre o acidente de Michael sem interrupção. – E você, entre todas as pessoas, encontrá-lo! Quero dizer, quão bizarro é isso? Elas estavam sentadas no quarto de Julia, com as cortinas fechadas e uma música new age tocando ao fundo. Ainda estava chovendo lá fora. - Ele estava mais morto do que vivo – Julia murmurou, encarando o pôster de O Senhor dos Anéis na parede, sem sequer enxergá-lo. – Aquela lesão na cabeça dele... Tive pesadelos com ela a noite passada. - Você acha que ele vai se recuperar completamente? Você disse que ele teve amnésia? - Foi o que o paramédico disse. – Julia deu de ombros. Ela estava tentando soar despreocupada, mas na realidade, o diagnóstico do paramédico havia deixado sua mente girando desde o dia anterior. O pessoal do hospital só tinha conseguido entrar em contato com os pais de Michael porque ela tinha sido obcecada pelo filho deles. Hosnestamente falando, ela não tinha o telefone de mais nenhum outro colega de classe na agenda. Michael tinha perdido a memória e ele não conseguia nem mesmo lembrar o telefone de casa ou quem eram seus pais, muito menos o seu sobrenome. Então por que é que ele ainda lembrava o nome dela? - Julia – ele havia sussurrado em uma voz fraca. Será que ela tinha sido mais importante para ele do que ele havia deixado parecer antes? O seu olhar tinha sido de alegria e reconhecimento. Será que ele a tinha reconhecido, sendo que nem sabia mais quem ele mesmo era? - Sabe, eu tenho um pouco de vergonha de ter dito aquele dia no bar que, por mim, ele poderia cair morto. – Gaby admitiu, brincando com os anéis em sua mão direita. – Você se lembra? Julia fez que sim com a cabeça. - Sim, ele quase caiu morto, mesmo. Aquele paramédico disse que ele era um filho da mãe sortudo por sobreviver a um acidente como aquele. A pancada na cabeça foi devastadora, por isso a amnésia e tudo o mais. - Bom, eu fico feliz. Eu não falei sério quando disse aquilo, claro. - Não, claro que não! Ah, bem, tudo o que sabemos é que o Michael vai esquecer de seus maus caminhos para sempre, então ele poderá começar uma nova vida – Julia disse animada, mas ela sabia que estava pedindo demais. Havia muitas perguntas sem respostas sobre a situação, que a incomodavam. - Vocês querem almoçar, garotas? – a mãe de Julia gritou da escada. – Estou fazendo panquecas. - Estamos indo – Julia gritou de volta. - Ótimo. – Gaby deu um tapinha em sua barriga. – Estou morrendo de fome. Não tomei nem café da manhã ainda. - Vou ter que sair depois do almoço – Julia anunciou enquanto desciam as escadas. – Vou fazer uma entrevista de emprego na livraria. - Oh, que legal! Mantenha-me informada. Elas invadiram a cozinha e sentaram-se à mesa. Anne estava olhando pela janela com uma cara ruim. - Olha que tempo feio – lamentou ela – Desse jeito nós não vamos terminar aquela casa na árvore nunca. - Peraí, um pouco de chuva não vai assustar você, vai? – Gaby provocou a garotinha.


- Por que você não recruta o Thorsten pra fazer todo o trabalho sujo? – Julia acrescentou com uma piscadinha. Anne olhou de lado. - Você o encontrou outro dia, não é? A Sabine me contou. - Sim, encontrei. – Julia enfiou um pedaço grande de panqueca dentro da boca. A irmãzinha a estava assistindo como um falcão, e ela não conseguiu evitar corar um pouco. Anne gritou: – Eu sabia – disse triunfante – Eu sabia que você ia gostar dele! Gaby fulminou Julia do outro lado da mesa. – Ei! Por que eu não sou a primeira a saber disso? – ela questionou – Quem diabos é esse tal de Thorsten? - É o irmão da minha melhor amiga – Anne respondeu, mais rápida que Julia. – A família deles acabou de mudar para cá. E ele é muito fofo. – ela olhou de lado para a irmã. – Ele também falou da Julia para a Sabine. Julia ficou ainda mais vermelha. - Hã, ah – ela gaguejou, afobada demais para parecer indiferente. – É mesmo? Anne deu um sorriso largo que competia com o sorriso do Gato que Ri, de tanto entusiasmo. – Sim, é mesmo. – ela fez que sim com a cabeça, gabando-se. Gaby chutou as canelas de Julia debaixo da mesa. - Não me esconda nada, garota. Eu quero mais informações, imediatamente. - Sim, sua Alteza Gabriella, você as terá. Depois do almoço, Julia e Gaby estavam caminhando para o ponto de ônibus sem conversar, quando Julia tentou quebrar o silêncio. – Algo está me incomodando – ela murmurou, cautelosamente. - Desembucha – Gaby disse. - Quando eu encontrei o Michael, ele abriu os olhos e disse o meu nome, mas fora isso, ele não se lembrava de mais nada. Não é estranho ele ainda lembrar o meu nome? Quero dizer, ele tem amnésia. Gaby mordeu o lábio. - Por favor, Jules, não começa. Ele a reconheceu antes de voltar a ficar inconsciente. E daí? Isso não significa nada. - Mas... – Julia murmurou. - Olha, eu sei o que você quer, ok? Você quer acreditar que ele tem sentimentos mais intensos por você do que ele estava demonstrando antes do acidente. Mas, sério, você não quer passar por isso. Ele tirou a sua virgindade e nem se importou em ligar para você depois disso, e só por isso, ele deveria estar na sua lista negra para sempre. O Michael não te merece e você não merece ter seu coração despedaçado por ele de novo. Ligeiramente sem fôlego depois de seu discurso, Gaby pegou a mão de Julia. - Olha, apenas esqueça-o – ela implorou. Julia suspirou. - Ok. Tudo bem. Você está certa. Eu só achei isso estranho. - Estranho, mas é a verdade. E agora, próximo tópico: Thorsten. Quem é ele? Como ele é? E quando você vai vê-lo novamente? Julia não podia deixar de rir. - Ele é irmão da Sabine e eles moram do outro lado da rua. Ele tem cabelos pretos e olhos azuis. Agora quanto a quando vou vê-lo novamente, eu não faço ideia. Eu só conversei com ele por alguns


minutos. - Então, faça o favor de fazer esses minutos virarem horas da próxima vez. – Gaby piscou. Julia olhou para cima. - Ah, o ônibus está chegando! Vamos correr. As duas garotas começaram a correr para pegar o ônibus para a cidade. Ofegantes e rindo, elas embarcaram e caminharam até o fundo do ônibus. - Posso pegar meu MP3 de volta? – Julia pediu, assim que elas sentaram. Estupidamente, ela não teve mais vontade de ouvir as músicas de Gaby desde o acidente de Michael. As músicas no aparelho de sua amiga a lembravam daquele estranho momento em que encontrou o corpo quase sem vida do garoto no bosque. Ela não conseguia esquecer. Gaby podia argumentar o quanto quisesse, mas os poucos segundos em que Michael havia olhado para ela, com aquele olhar incomum, mas intenso em seus olhos verdes, estavam grudados em sua memória. - Te vejo no O’Malley’s à noite – Gaby disse quando se levantou para trocar de ônibus. – Quero saber da sua entrevista! Boa sorte, querida. Julia acenou para ela quando o ônibus partiu novamente. Eles iam se encontrar no O’Malley’s naquela noite. Florian havia prometido levar Moritz também. O tom jubiloso estava evidente na voz dele: ele estava nas nuvens por causa do seu novo amor. Julia sorriu levemente quando ela pensou na noite no Shamrock. Ela estava feliz por Flo. Provavelmente, não demoraria muito para que ele sugerisse levar o novo namorado para a viagem a Londres também. Moritz havia passado a sua infância inteira na capital inglesa afinal, então ele seria o guia turístico perfeito. Julia foi tirada de seus pensamentos quando o telefone dela vibrou brevemente em seu bolso. Provavelmente alguma outra mensagem de alguém da turma. Ela pegou o telefone, mas parou de respirar quando ela viu a notificação na tela: “1 nova mensagem. Michael.” As palavras pularam em sua direção, fazendo seu coração acelerar a um ritmo perigoso. Graças a Deus, Gaby não estava ali para testemunhar sua reação: ela provavelmente teria dado outro sermão sobre ela ter que esquecê-lo. Com dedos trêmulos, ela clicou no ícone da mensagem: “Ei, Julia :) passa daqui dps? bjs Mick” Julia ficou pasma com o “bjs” no final da mensagem. Provavelmente não significava nada. Nadinha. Ele só queria agradecê-la por tê-lo salvo de uma morte prematura no meio do bosque. Nada para se alarmar. Talvez a sua mãe quisesse dar a ela uma cesta de frutas, ou seu pai quisesse conhecê-la depois do terrível acidente. Com um suspiro frustrado, ela levantou os olhos da tela, pensando em uma resposta razoável para a mensagem, quando percebeu que o ônibus havia chegado em seu ponto. As portas já estavam quase se fechando novamente. - Espere! – ela gritou para a frente do ônibus, prendendo a bolsa dela no ombro. – Preciso descer aqui! – ela viu a careta irritada do motorista no espelho retrovisor quando bloqueou o sensor com o pé, fazendo as portas se abrirem novamente. Corada, ela saiu e se sentou no ponto de ônibus. “vc vai estar em casa às 3?” Ela digitou depois de pensar muito, sem colocar o seu nome ou “bjs” de propósito. Melhor parecer distante por enquanto. Ela estava quase se levantando quando seu celular tocou em sua mão. Ah, Senhor, ele estava ligando para ela. Julia engoliu seco. A vibração do aparelho parecia zumbir por todo seu corpo. Vez


após vez, ele zumbia em sua mão como um exame de abelhas raivosas. A garota que estava sentada perto dela olhou para o lado, confusa. - Você não vai atender? – ela perguntou. - Não. Acho que ainda não estou preparada para isso. A garota riu. - Deixa cair no correio de voz. Talvez ele deixe um recado. Julia abafou uma risada nervosa. - Boa ideia. Ela se levantou apressadamente. Se não andasse logo, estaria atrasada para sua entrevista de emprego, tudo por ficar remoendo a mensagem de Michael e seu convite. Murmurando um palavrão, ela cruzou para o outro lado da ponte que levava à Cidade Velha. Por que, por que ela não tinha seguido o conselho de Gaby? Ela deveria ter ignorado o convite. Por que era tão difícil abandonar a obsessão por ele? Ele a tinha tratado como lixo. Ela não tinha respeito por si mesma? Ainda mentalmente se punindo, cortou caminho por becos estreitos para chegar à praça principal, cruzando-a em alta velocidade para chegar em frente à livraria às duas horas. Do lado de fora, Julia viu um homem de bigode enchendo uma estante de livros com títulos em promoção. Ela momentaneamente se curvou para pegar fôlego, então se dirigiu a ele. - Com licença. – ela limpou a garganta. – Estou aqui para o emprego. O senhor Haider está me esperando às duas horas. O homem se virou. - Julia Kandolf? – ele perguntou, estendendo a mão alegremente para ela. – Sou Martin Haider, o gerente. Vamos ao meu escritório. Julia entrou na livraria e seguiu seu possível futuro chefe para um escritório no segundo andar. Ela havia trazido o currículo, o qual o senhor Haider olhou enquanto ela tomava um gole do irrecusável “café de entrevista de emprego”. Vez ou outra, ele perguntava alguma coisa para ela. Ela gostou dele: ele tinha senso de humor e não perguntava as mesmas coisas de sempre, às quais ela já estava acostumada. - Qual o seu autor favorito? – ele queria saber, entregando uma segunda xícara de café que ela não se atreveu a recusar. Julia sorriu. - Stefan Zweig. Ele consegue transformar uma pequena parte da vida em algo grandioso. Ele faz você pensar duas vezes sobre coisas comuns. Martin acenou entusiasmadamente, colocando a sua assinatura no formulário que estava preenchendo, como se a sua resposta tivesse fechado o negócio. Ele estendeu a mão novamente. - Bem-vinda à equipe! Você pode começar depois de amanhã? - Claro! – ela sorriu para ele. – Muito obrigada. - De nada. Fico feliz por tê-la conosco. Um de nossos colegas passará as orientações a você. – Martin deslizou o formulário pela mesa. – Você pode preencher com os seus dados e assinar aqui, por favor? Assim que Julia deixou a livraria, ela pegou o telefone para mandar uma mensagem a Gaby sobre a bem-sucedida entrevista de emprego. “1 nova mensagem. Correio de voz.” O display a avisou, impassível. Com dedos nervosamente trêmulos, fechou a notificação e começou a digitar uma mensagem para a amiga. Depois de enviá-la, respirou fundo e ligou para o correio de voz.


- Oi, Julia. – a voz profunda e sexy de Michael se derreteu em seus ouvidos. – Claro que eu vou estar em casa às três. Venha e tome um chá comigo! Te vejo mais tarde. Ótima jogada. Julia ficou vermelha como um pimentão. Em menos de vinte minutos, ela estaria tomando chá com a sua obsessão do colegial e ignorando todos os avisos de Gaby. Michael muito provavelmente estaria sozinho em casa, porque seus pais trabalhavam o dia todo. Relutantemente, ela saiu da praça, perguntando-se, em desespero, onde foi que as coisas deram errado. Ela estava praticamente pronta para partir para outra quando se tornou a salvadora de Michael na floresta. Por que ela estava tão impressionada com o fato de que ele havia murmurado o seu nome quando o encontrou? E daí? Quando Julia tocou a campainha da grande casa em Giselakai, às cinco para as três, toda a coragem a abandonou. Ela não tinha a mínima ideia do que estava fazendo ali. Apenas para ser educada, ela escutaria Michael expressar sua gratidão e sairia dali o mais rápido possível. - Grüss Gott – ela gaguejou surpresa quando uma mulher cinquentona abriu a porta. Ela tinha os mesmos olhos verdes de Michael. Julia pensou tê-la reconhecido da cerimônia de formatura na escola. – O... O Michael está em casa? - Ele está esperando por você. – a mulher estendeu a mão. – Eu gostaria de agradecê-la pessoalmente, Julia. Sem você, as coisas poderiam ter acabado de um jeito bem diferente. - Não há de que. Ela não conseguiu evitar um tom de desapontamento aparecer em sua voz. Então aquela era a razão pela qual Michael a tinha convidado. Sua mãe gostaria de agradecê-la, apenas isso. Julia não ficaria na companhia apenas de Michael e ele provavelmente não estava contando que ela ficasse por muito tempo. - Por que você não vai vê-lo lá em cima? – a mãe de Michael convidou com um gesto. – Ele está no quarto dele. E ele está bem melhor. A amnésia passou. Julia piscou para ela. - Ele... Ele recuperou a memória? Então por que é que ele queria vê-la? Ele se lembrava de todas as coisas, inclusive a parte sobre ela ser totalmente insignificante para ele. A mulher sorriu radiante. - Sim! Não é maravilhoso? Milagroso até para os médicos. A felicidade que irradiava do rosto dela infelizmente não era o suficiente para fazer Julia se sentir igualmente animada. Ela se arrastou escada acima até o segundo andar, o coração martelando nervosamente. Na última vez que ela havia subido aquelas escadas, a mão dele tinha acariciado os seus lábios, a boca dele fazendo uma trilha quente pelo seu pescoço. Rindo e embriagada de amor, ela tropeçou no degrau mais alto e ele a segurou em seus braços fortes. Seus olhos ficaram embaçados. Ela apenas percebeu que estava chorando quando se olhou no comprido espelho da parede ao lado do quarto de Michael. Ela fungou, frustrada, procurando em sua bolsa por um lenço para secar as lágrimas. Claro, ela não deveria se importar com o que Michael pensava sobre ela, mas a sua indiferença à opinião dele não significava que ela deveria entrar chorando. Ela era muito orgulhosa para isso. Quando, enfim, abriu a porta do quarto, ela se esforçou para manter uma expressão impassível. - Oi – disse ela suavemente. Michael estava sentado na beirada de sua cama com uma bandagem ao redor de sua cabeça. Ele ergueu os olhos para ela e seu coração parou de bater por um instante. Mais uma vez, ela teve a


sensação de que ele estava a olhando de um jeito novo. Como se ele realmente a visse. - Julia – respondeu, de modo igualmente suave. Ele disse o seu nome com uma alegria óbvia em sua voz, e ela não conseguiu evitar esboçar um sorriso nos lábios. Ele se levantou e deu um passo em sua direção, seus olhos nunca deixando os dela. – É muito bom ver você. Ela rapidamente desviou o olhar, olhando para os seus pés no carpete, totalmente confusa. No chão, sob a cama dele, ela viu um exemplar de Chess Novel de Stefan Zweig. Próximo a ele, estava a caixa do álbum Watermark, da Enya. Só então ela percebeu que a sua música favorita estava tocando. Era como se estivesse entrando em seu próprio quarto, como se Michael pudesse ler sua mente e quisesse fazê-la se sentir em casa. De repente, lembrou-se de ter assistido, com a avó, a um programa de TV sobre experiências de quase-morte. Eram entrevistas com pessoas que tinham tido um encontro com a morte, mas que voltaram à vida e, daquele momento em diante, eram capazes de sentir e ver as coisas que as pessoas normais não podiam. Será que era algo assim que estava acontecendo com Michael? - É bom estar aqui - ela respondeu, com um tom quase de pergunta. Era mesmo? Michael colocou a mão em seu ombro. Quando ergueu os olhos de volta para ele, ela viu algo em seu olhar que não conseguia identificar direito, uma espécie de melancolia estava escondida em seu olhar; um tipo que Julia nunca tinha visto antes. - Isso deve ser difícil para você - ele falou em voz baixa, apontando à sua volta. - Você não tem boas lembranças deste quarto. - seus lábios formaram um sorriso amargo. - Ou de mim. Ela sentiu uma punhalada em seu coração. Por que ele achava necessário trazer à tona a forma como as coisas tinham acontecido entre eles? Se ele lamentava a forma como a tratara, poderia simplesmente pedir desculpas. - Por que você me convidou? - ela deixou escapar, olhando para ele com curiosidade. O olhar de Michael se acendeu suavemente, um sorriso se espalhando por seu rosto. Não um sorriso provocador, nem um sorriso zombeteiro: era o sorriso mais genuíno que ela havia visto em seu rosto. Ele parecia encantado, arrebatado como uma criança vendo a neve pela primeira vez. - Porque eu queria ver você – ele disse, chegando mais perto e pegando a mão dela. – Eu estava dormindo, você me despertou novamente. Julia fechou os olhos desanimada. Claro que ele era grato a ela por resgatá-lo do sono eterno. Era tudo gratidão. Ele provavelmente era orgulhoso demais para pedir verdadeiras desculpas. Talvez ela estivesse ansiosa demais por acreditar que ele pudesse ter mudado. - Tenho que ir. – ela cuidadosamente tirou sua mão do alcance dele. - Já? Você acabou de chegar. Ela deu de ombros e não respondeu. Michael suspirou audivelmente. - Fique só mais um pouco – ele disse, com voz rouca. Sério, qual era o problema dele? Ele parecia tão diferente do seu jeito normal. Cheio de um desejo que ela não havia ouvido em sua voz antes, ainda que ela tenha desejado ouvir aquilo com todo seu coração. - Estou indo. – ela se manteve determinada, apesar de seus pedidos. – Obrigada. Ele a olhou, mudo por um momento. – Pelo quê? – ele perguntou, parecendo confuso. Julia corou. - Pelo seu agradecimento. – ela mordeu o lábio. Ele balançou a cabeça.


– Você está me agradecendo por eu ter te agradecido? – ele disse, um evidente tom de provocação em sua voz. - Hã, sim. – ela riu de si mesma, dando de ombros novamente. Ele segurou uma risada, um brilho divertido em seus olhos. Julia sentiu seus joelhos cederem, sua determinação se derretendo como um picolé no Saara. Ela tinha que fugir dele naquele instante. Gaby a mataria se soubesse daquilo. Ela se afastou em direção à porta, repetindo internamente o mantra “lista negra, lista negra”. - Você não quer um chá? – Michael apontou para a chaleira e duas xícaras na mesinha ao lado de sua cama. - Eu realmente tenho que ir – Julia respondeu, afastando-se mais alguns passos. – Axel está esperando por mim... Sua voz ficou presa em sua garganta quando Michael eliminou a distância entre eles em dois grandes passos e colocou as duas mãos em seus ombros, seu olhar penetrando o dela. Julia parou de respirar quando ele se inclinou em direção a ela e a beijou suavemente na testa, seu corpo tão perto que ela teve vontade de se encostar. - Te vejo em breve – prometeu ele. O que foi aquilo? Seus membros ficaram frios. Michael dissera exatamente as mesmas palavras que tinha dito na manhã seguinte em que haviam dormido juntos. A manhã seguinte na qual ele não havia se importado em ligar de volta para ela. Segurando o choro, Julia o afastou. Ela não queria que ele visse suas lágrimas. Como ele ousava invadir a vida dela novamente, depois de abandoná-la de modo tão insensível alguns dias atrás? - Adeus. – ela engasgou, antes de sair porta a fora e descer as escadas correndo. Sem olhar para trás, ela abriu a porta da frente e correu por Giselakai. Michael teria o nobre trabalho de explicar para sua mãe porque ela estava fugindo. Aquela era a última vez que ela colocaria os pés naquele lugar. Era muito perigoso ficar perto de Michael porque ele ainda tinha acesso ao seu coração. Quando se acomodou no banco do ponto de ônibus, Julia notou que duas novas mensagens havia chegado em seu telefone. Ela abriu as duas: ‘parabéns pelo trabalho na livraria, garota!! bjs Gaby’ ‘não queria te machucar. desculpe. bj mick.’ Ela olhou para a segunda mensagem com os olhos avermelhados, olhando a hora em que ele havia enviado a mensagem. Tinha sido logo depois de sair correndo pela porta. Então ele parecia mesmo se importar com os seus sentimentos. Mas por que agora? Julia suspirou resolutamente, colocando o celular de lado. Se ao menos ela pudesse colocar de lado os sentimentos que tinha por Michael da mesma forma resoluta, a sua vida seria bem mais fácil. Naquela noite, Julia entrou no bar usando um novo vestido de verão. O mau tempo do dia anterior tinha ido embora. Era uma abafada noite de verão e toda a juventude de Salzburg, que ainda estava na cidade, parecia ter se encontrado no O’Malley’s. Julia podia quase se sentir despreocupada, não fosse pelo fato de que a visita a Michael ainda a estava incomodando. - Ei, pessoal! – ela chamou entusiasmadamente, caminhando para a mesa onde Axel, Florian e Moritz estavam sentados. – As garotas ainda não chegaram? - Foram buscar algumas bebidas para a gente. – Axel sorriu. Julia ergueu uma sobrancelha. - Entendi. Cavalheirismo já era. Florian revirou os olhos.


- Axel está apenas brincando. Tam e Gaby ainda não chegaram. Vamos pegar algumas bebidas? – ele cutucou o moicano roxo de Moritz. Florian e seu novo namorado foram em direção ao bar de mãos dadas e sorrindo melosamente um para o outro. - Então, como você está? – Axel perguntou seriamente quando ela pegou o banco ao seu lado. Julia tinha conversado com ele pelo Facebook depois do acidente e contou ao primo tudo sobre a sua operação de resgate no bosque, mas eles ainda não haviam conversado sobre como a situação a havia afetado. - Estou bem. – ela deu de ombros. – O que eu posso dizer? Mundo pequeno. - Mundo estranho – Axel complementou, com uma careta. – Quero dizer, você, de todas as pessoas, vir ao socorro dele. Além disso, Kolbe está agindo de um jeito muito estranho. Na verdade, não poderia ser mais estranho. Julia olhou atentamente para ele. - O que... O que você quer dizer? – ela gaguejou, seguindo o olhar de Axel em direção ao bar. Ela sentiu seu estômago revirar quando viu uma cabeça conhecida, com cabelos castanho-claros. – O que? Ele está aqui?! - Como você pode ver – Axel respondeu secamente. – E como eu disse, ele está agindo muito estranho. Muito bonzinho. Julia travou sua mandíbula, olhando consternada para Michael. Ok, isso era absurdo. Por que é que Michael simplesmente não sumia da sua vida para sempre? O que é que ele estava fazendo ali tão cedo depois de um acidente quase fatal? Ontem mesmo, ele estava sangrando em seu colo. Ele deveria ir com calma, ficar em casa e ir para a cama logo depois de Vila Sésamo. Ela teve que se conter para não ir até ele e dar alguns bons conselhos médicos não solicitados. - Quando eu cheguei aqui meia hora atrás, ele estava jogando dardos com dois amigos – Axel continuou, aparentemente ignorando o turbilhão no interior dela. – Ele disse oi, então me perguntou se podia comprar uma bebida para mim e se eu queria me juntar a eles. Sério, eu me senti em The Twilight Zone. Eu fiquei conversando com eles até uns cinco minutos atrás quando Florian e Moritz finalmente chegaram. - Ah. Achei que ele ficava apenas com os caras legais. Axel sorriu. - É, eu concordo. Quero dizer, eu me amo do jeito que sou, mas eu posso ver que ler, consertar computadores e construir aeroplanos pode não ser considerado legal por Sua Alteza Kolbe... – ele apontou um dedo a Michael. – Até agora, pelo menos. - Bem, como ele te pareceu? – Julia perguntou em um sussurro. – Ele te disse alguma coisa? Axel fez uma careta para a bolacha de chope que ele estava picotando em suas mãos. – Sim, claro, nós conversamos. Sabe, isso pode parecer estranho, mas eu tive a nítida sensação de que ele estava diferente. – ele olhou para a prima. – Você acha que a pancada na cabeça fez alguma coisa com ele? Julia prendeu a respiração. Então Axel também havia notado? Michael realmente estava agindo de modo estranho. O que é que aquilo tudo significava? Naquele momento, Florian e Moritz voltaram para a mesa, e para aumentar o seu espanto, viu Michael vindo atrás deles, fazendo contato visual com ela. E então ele estava na mesa deles. - Ei, você – ele disse, encostando os braços na madeira da mesa do bar, seus dedos encostando nos seus. – E aí? Ela orou a Deus para que ele não mencionasse a sua visita naquela tarde, porque isso significava


que ela teria muito o que explicar aos garotos, sem mencionar a Gaby se ela ficasse sabendo daquilo. - Estou bem – ela respondeu, evitando o seu olhar. Ela tinha medo de ficar vermelha se olhasse nos olhos dele por muito tempo. Michael estava realmente muito bonito naquela noite. Ele tinha aquele característico sorriso irresistível nos lábios e seus olhos pareciam gentis e amigáveis. Quando Julia finalmente ousou levantar o olhar, ele pegou em sua mão. - Você quer jogar dardos comigo? – ele perguntou. Julia sentiu a pele de sua mão esquentar sob os dedos dele. – Eu não sei jogar dardos. – ela chiou. Ele sorriu. - Então eu vou te ensinar. Ela balançou a cabeça com fervor. - Não, eu estou falando sério. Eu não posso jogar. Eu sou um desastre. Você poderia ser o próprio Phil Taylor e, mesmo assim, não conseguiria me ensinar. - Eu posso afirmar isso. – Axel concordou. – A última vez que eu joguei dardos com a Julia, um dos dardos dela acabou no meu sapato e não no alvo. - Já que você já escapou por pouco da morte essa semana, eu não arriscaria. – Florian adicionou com uma piscadela. - É, falando nisso, como está a sua cabeça? – Axel perguntou com curiosidade. – Você está autorizado a sair novamente? O médico está de acordo com isso? Michael fez que sim. - Sim. A ferida está quase curada. Lá no hospital, disseram que foi um milagre. É por isso que eles me deram alta essa manhã. No silêncio que se seguiu, o grupo todo olhou boquiaberto para ele, sem acreditar. Axel limpou a garganta, como se estivesse prestes a falar mais alguma coisa, quando Michael se virou e avançou em direção ao alvo. – Vou voltar ao meu jogo – ele disse, parecendo repentinamente apressado. Ele olhou de lado para Julia. – Você tem certeza de que não quer me acompanhar? Ela balançou a cabeça. Axel, Florian e Moritz o assistiram ir em direção ao outro lado do bar, ainda com os queixos caídos. - Quase curado? – Julia repetiu. – Isso é impossível. Eu sei como estava. - O que me deixa mais perplexo do que a ferida na cabeça praticamente curada, é o seu jeitinho de bom moço – disse Florian, atordoado – Imagine a minha surpresa quando ele apareceu do meu lado no bar e puxou um assunto, do nada! Ele ainda me parabenizou pelo novo namorado! Kolbe, o entusiasta dos gays! - Ah. Ele realmente odeia os gays tanto assim? Florian nunca havia lhe dito nada. Ela estava começando a descobrir todo tipo de coisas sobre Michael e não estava gostando nem um pouco. Então, novamente, ele parecia ter um novo lado, de repente. - Bom, ele nunca me ameaçou ou me assediou descaradamente. – Florian deu de ombros. – Ele simplesmente dava uns olhares desdenhosos depois que havia ficado óbvio que eu estava jogando no outro time. Você sabe, com seu jeito normalmente condescendente. - Pelo que eu vi, ele parece ser um cara legal – Moritz contestou – Ele não me parece uma pessoa nem um pouco arrogante. - Eu sei! É disso que eu estou falando – Florian exclamou – Ele está diferente. Ele mudou. – pensativamente, ele tomou um gole de sua cerveja e pegou um punhado de amendoins salgados na


tigela que haviam trazido. - O que você acha que aconteceu com ele? – Axel perguntou, pensativo. - Quem sabe? – Julia murmurou – Ele teve uma experiência de quase-morte. Isso deve ter causado algo nele. Os olhos de Florian se abriram em repentina surpresa. - Jules, é isso. – ele bateu na mesa com o punho cheio de amendoim. – Ele chegou às portas do céu. - A-hã. Você acha? – Axel bufou. - Sim. E ele se encontrou com São Pedro ou outra pessoa. E esse santo disse que ele só poderia continuar sua vida na terra se ele a melhorasse. Axel sorriu. - Claro, Flo. Deve ser isso! Ele foi chantageado por um apóstolo. Deus, eu não posso acreditar que eu não pensei nisso. Julia riu, mas tentou parar quando viu o olhar ofendido no rosto de Florian. Ela não deveria rir dele por sua teoria. Na verdade, ela teria pensado em algo mais ou menos na mesma linha; Axel só fez aquilo parecer engraçado. - Há muitas histórias de pessoas que voltaram dos mortos. – Moritz apoiou o namorado. – Eles dizem que viram parentes mortos, ou algum tipo de luz brilhante, pacífica. O que quer que seja que esse Michael encontrou, deve tê-lo mudado. Todo mundo estava ponderando suas palavras quando a porta do bar se abriu e Gaby e Tamara entraram correndo. - Queridos! – Gaby gritou, desfilando em direção a eles com Tamara em seu rastro. – Vocês começaram a beber sem nós? Que vergonha. Axel se levantou do seu banco. - Deixe-me provar que o cavalheirismo não morreu – ele disse, piscando para Julia. – O que vocês duas gostariam de beber? – ele perguntou às duas garotas. Enquanto Axel saía para buscar bebidas, Gaby e sua irmã se apertaram entre Florian e Julia. - Não acredito nesse calor! – Gaby bufou. Ela estava vestindo um top listrado de preto e cinza e um enorme pentagrama roxo pendurado em uma corrente ao redor do seu pescoço para combinar. – Primeiro cai uma chuva suficiente para fazer Noé trazer a arca novamente e agora é como se a Áustria tivesse sido realojada para os trópicos, do dia para a noite. - Fique feliz - Florian disse – Você está trabalhando na escola de equitação nesse verão, certo? Nada diz "esse trabalho de temporada é uma droga" melhor do que ter que trabalhar ao ar livre com chuvas o dia inteiro. - Eu gosto do sol, é claro. Mas não tanto assim. - Mas então, como vai você? – Tamara se voltou para Moritz. – Mais algum show esta semana? Os olhos de Moritz começaram a brilhar. - Na verdade, eu estava mesmo querendo contar a todos vocês. Nossa banda foi convidada para tocar em um clube em Camden Town daqui a um mês. - Que fica em Londres – Florian explicou. - Maravilha! – Gaby e Tamara exclamaram ao mesmo tempo. - É por isso que eu pensei que poderia ser uma boa ideia ir para Londres na mesma semana – Florian continuou, avaliando as reações deles. – Assim, podemos ver Moritz e a banda tocarem, que tal? - Claro que sim – Julia disse entusiasmada, olhando para os rostos de seus amigos. – Ele tem que


ter seus maiores apoiadores com ele. E em retribuição à nossa presença, ele pode ser nosso guia em Londres. - Estaremos lá. – Gaby acenou. – Nem precisa falar. Moritz parecia genuinamente feliz com um largo sorriso em seu rosto, que parecia uma criança, apesar do moicano e dos piercings. Axel voltou trazendo duas bebidas, apertando-se entre Gaby e Tamara enquanto colocava as cervejas sobre a mesa. - Aqui está, garotas. - Quanto estamos te devendo? – Gaby perguntou, procurando por sua carteira dentro da bolsa. - Um beijo sincero, querida. O que mais? – Axel piscou lascivamente. - Parece um bom negócio para mim. – Gaby se aproximou e beijou o rosto de Axel. – Por sinal, nós temos que te contar os novos planos para Londres. – ela tagarelava sem parar. – Moritz está prestes a fazer história na Inglaterra. Ouça isso. Conforme Gaby, Florian e Tamara atualizavam Axel sobre os detalhes do salto para a fama de Moritz no mês seguinte, Julia observava seu primo sobre a borda do seu copo de cerveja. Ela poderia estar enganada, mas tinha quase certeza de que ele tinha ficado ligeiramente vermelho quando Gaby o beijara há pouco. O esboço de um sorriso cruzou seu rosto. Ela nunca havia pensado naquilo. - Como é que é? – Gaby repentinamente bradou olhando em direção ao alvo, seu olhos arregalados. – Meus olhos estão me enganando? É o Michael? Ele não deveria estar no hospital? Julia gemeu internamente. De novo não. Ela estava farta das histórias sobre a maravilhosa recuperação de Michael. Além disso, ela não queria estar sujeita ao olhar inquisidor de Gaby quando Axel e Florian contassem que ele a havia convidado para jogar dardos. Se ela começasse a corar, Gaby acabaria com ela. - Vou para o banheiro – ela anunciou abruptamente, caminhando por entre a multidão do O’Malley’s sem olhar para trás. Ela olhava sempre em frente, para se assegurar que não cruzaria o olhar com um certo alguém quando passasse pela área dos jogos. Quando Julia saiu do banheiro, Gaby estava esperando por ela na porta. – Desculpe ter falado nele – ela se desculpou, parecendo sentida. – Axel me disse que você já conversou com Michael e o quanto ele a deixou nervosa. - Bem, nervosa... – ela deu de ombros. - E não é de se surpreender. Quero dizer, sério, o que ele está fazendo aqui? Ele não deveria estar na cama com algum remédio na veia? Parece que nada aconteceu com ele. Boa jogada, por sinal, recusar o convite para jogar dardos. Aquele cretino. - Sim, pensei que fosse melhor evitá-lo. – Julia sentiu seu rosto esquentar. Não porque Gaby a tinha elogiado, mas porque ela estava mentindo descaradamente. Ela não queria evitar Michael. Ela queria saber o que estava acontecendo com ele, o que o havia mudado, mas ao mesmo tempo, sua voz interior concordava plenamente com Gaby. Fazendo uma careta, ela seguiu Gaby e se juntou ao grupo. Quando Michael deixou o bar com seus amigos, cerca de dez minutos depois, ele a olhou por sobre os ombros e chamou sua atenção, sorrindo-lhe calorosamente. Julia mordeu o lábio e desviou o olhar, sem sorrir de volta. - Muito bem. – Gaby murmurou próximo a ela. – Ignore-o. Ele fez o mesmo com você. - Então vamos ao Shamrock da próxima vez? – Julia perguntou. Assim, ela poderia pelo menos evitar de se encontrar com Michael com todos os seus amigos por perto. Florian acenou vigorosamente.


- Boa ideia. Estou te falando, esse lugar é bom para nossas vidas amorosas. Aposto que você vai conhecer alguém para ser o seu cavaleiro lá também, donzela Jules. Gaby a cutucou. - Talvez você devesse convidar Thorsten para ir conosco – ela sugeriu, erguendo as sobrancelhas. - Quem é Thorsten? – o resto do grupo perguntou em uníssono. Julia revirou os olhos. - Deus, obrigada – ela resmungou. Gaby deu um largo sorriso a ela. - De nada. É hora de mudar os ares, querida. Na manhã seguinte, Julia acordou com o som de uma música que invadia as finas paredes do seu quarto. Aparentemente, Anne estava assistindo o seu DVD do Senhor dos Anéis pela milionésima vez e no último volume. Ela bocejou, pegando o celular em cima do criado-mudo para olhar as horas: oito e meia. Cedo demais para ser acordada em um dia de férias. Sua irmãzinha estava arriscando a própria vida. Ainda lenta de sono, Julia se levantou e se arrastou para fora para bater na porta do quarto de Anne. - Ei! – ela gritou – Será que os hobbits podem cantar um pouco mais baixo? Algumas pessoas estão tentando dormir, sabe? Ela ouviu Anne caminhando ruidosamente pelo quarto. A porta se abriu, mostrando a sua irmãzinha com o sorriso mais adorável possível. - Quer assistir comigo? – ela pediu, seus olhos brilhando. – Eu peguei leite e cookies para nós lá em baixo. Julia segurou o sorriso. - Por que não? Estou acordada mesmo. – ela queria parecer mal humorada, mas percebeu que não conseguiria. Era ela quem acordava antes de qualquer um esperando pela irmã lá em baixo com cookies e leite, para assistirem desenhos, quando o pai delas ainda estava em casa. O fato de que Anne queria fazer a mesma coisa, a fez se emocionar um pouco. Julia se sentou na cama e assistiu Anne colocar um copo de leite para ela. Ela aceitou o leite e um prato de cookies, escorregando para a esquerda para que Anne pudesse se sentar ao seu lado. Sua irmã tinha pausado o DVD. Legolas estava congelado na tela, apertando os olhos para olhar para o horizonte e fazer uma de suas observações óbvias de capitão dos elfos. - Jules – Anne murmurou, próximo a ela, mastigando um cookie. – Você acha que o príncipe das árvores também pode ter cabelos loiros e compridos? Os olhos de Julia se voltaram do lindo Legolas na TV para os olhos questionadores de Anne. - Claro. É um conto de fadas e você o imagina como quiser. Se o seu príncipe tem cabelo comprido e loiro, a história se adapta. – ela cutucou Anne. – Essa é a graça de sonhar. - Não é melhor quando um sonho se torna realidade? – Anne perguntou timidamente. Julia ficou em silêncio, mordendo o lábio. Ela não sabia o que dizer. - Algumas vezes, eu sonho que o papai volta a morar com a gente – Anne continuou, ainda mais baixo, pegando a bainha de seu pijama. Julia engoliu seco. - Querida, é melhor se ele não voltar. – ela acariciou o cabelo loiro escuro da irmã. – A mamãe está muito mais feliz sem ele. Eles brigavam o tempo inteiro. - A mamãe está brava com ele – Anne sussurrou – Porque ele nunca vem nos ver. Eu ouvi ela


conversando com a vovó. Julia puxou Anne para um abraço. - A raiva dela vai passar um dia. Ela vai entender que nós não precisamos mais dele. Ela está nos criando e nós a amamos muito. Um esboço de sorriso cruzou o rosto de Anne. - Isso foi o que a vovó também disse. Julia riu. - A vovó não é uma mulher muito esperta? Anne se sentou e olhou pensativa para o elfo na TV. - Ainda assim, eu acho que os contos de fadas podem virar realidade. Você acha que o príncipe poderia ter olhos azuis também? Julia franziu a testa diante da expressão sonhadora da irmã. De repente, ficou claro para ela. Seria possível que a sua irmãzinha estava secretamente apaixonada por Thorsten, o novo vizinho lindo, e por seus olhos azuis brilhantes? - Sim, definitivamente ele pode. – ela entrou na brincadeira. – Longos cabelos loiros e olhos azuis. É o seu conto de fadas e você tem os direitos de ilustração. – ela piscou. Anne concordou satisfeita. - O príncipe nunca vai revelar o seu verdadeiro nome – ela declarou, de forma pedante – Ele permanecerá um mistério para os adultos ao redor dele, porque eles não podem vê-lo como ele realmente é. Julia sorriu. - Talvez você devesse escrever um livro – ela sugeriu. Percebendo que ela estava levando a ideia a sério, continuou. – Sério, você deveria mesmo. Você tem talento. Você tem uma forma maravilhosa de se expressar, Anne. Ela abraçou a irmã de novo, bem apertado, até que Anne começasse a gritar e espernear. Quando a mãe delas acordou, uma hora depois e desceu para preparar o café da manhã para elas, Julia estava bem mais animada como há muito tempo não se sentia. - Vou correr até a vovó – ela anunciou na mesa do café da manhã, enfiando um enorme pedaço de omelete na boca. – Quer que eu leve algo para ela? - Não, não precisa. Vou passar lá esta noite também – respondeu a Sra. Gunther – Vou trabalhar no turno da tarde, então eu vou visitá-la depois e cozinhar para ela. Espero que você possa fazer o jantar para você e para Anne. A mãe de Julia trabalhava como gerente de loja em um supermercado em Eichet. - Claro, vou pensar em algo. – Julia deu uma piscadela conspiratória para Anne, que significava “pizza e sorvete!”. A irmã lhe devolveu um sorriso largo e bobo. - Posso ir brincar com a Sabine esta tarde, mamãe? – Anne perguntou. - Claro. Na verdade, você vai ter que ficar na casa da Sabine. Alguém tem que tomar conta de você não é? Eu já combinei com a mãe dela. Depois do café da manhã, Julia pegou seu caminho. Era um dia gostoso e ensolarado, mas fortes ventos estavam soprando na floresta. Depois de dez minutos, ela estava tremendo com a brisa fria e decidiu fazer um intervalo, se enrolando perto do seu carvalho e secando o suor que lhe escorria pela sobrancelha. Não era apenas o frio que a estava fazendo estremecer: algo parecia diferente na floresta. As folhas sobre a sua cabeça sussurravam sem parar, mas mesmo assim havia um certo silêncio na floresta que ela não conseguia explicar. Era quase como se a floresta estivesse segurando a respiração, esperando por algo.


Julia encostou sua cabeça no enorme tronco da árvore, ouvindo o sangue correndo por suas orelhas. - Oi, Sr. Carvalho – ela disse baixinho, colocando a sua mão nas raízes sob seus pés. Nada aconteceu. O estranho silêncio estava agora por toda a parte, já que as folhas das árvores haviam parado de farfalhar. O carvalho não a respondeu. Julia não pôde deixar de revirar os olhos para si mesma. Por que ela estava sendo tão ridícula? Ela não tinha decidido dizer adeus aos contos de fadas com os quais tinha se rodeado para afastar a realidade? E ali estava ela, pensando que podia se comunicar com uma árvore. Estava claro que ela estava maluca. Com uma careta em seu rosto, Julia se levantou novamente. O bosque não estava trazendo a paz que esperava. Naquela manhã, a energia havia se dissipado. Saiu correndo, ainda se sentindo confusa. Até agora, ela tinha sempre conseguido desacelerar e parar de pensar nos problemas naquele lugar, mas naquele dia tinha sido diferente. O bosque parecia mudado ou talvez era ela que estava diferente. Ela não sabia. Sem fôlego, ela chegou na casa da avó. A velha senhora estava no jardim da frente, podando a sebe e assobiando uma canção. Acenou para a avó, que caminhou até encontrá-la no portão. - Você está mancando. – ela percebeu. – Está sem prática? - Não. – Julia bufou indignada. – Nada de errado com minha resistência. Eu só... Me esforcei demais. Eu estava tentando eliminar um pouco do stress. – ela se afundou no banco do lado de fora e tirou a bolsa das costas. - Então você conseguiu se livrar dos seus fantasmas? – a avó colocou os podões de lado e foi para dentro buscar algo para beber, deixando Julia pensar na resposta à sua pergunta por um minuto. - Um fantasma voltou – ela admitiu, quando a avó se sentou ao seu lado com dois copos de água, que ela bebeu com voracidade. - Aquele garoto – a avó afirmou. Julia não respondeu. - Sua mãe me disse que você salvou um colega de classe no bosque – a avó continuou – Ele é o Michael? - Sim e não – Julia exclamou sem pensar. A avó olhou para ela curiosa. – Sim, era Michael Kolbe na floresta e, não, ele não é mais o Michael. Quanto mais ela dizia, mais ela sentia que era verdade. - O que você acha disso? – a avó perguntou com calma. Se ela estava surpresa, não estava transparecendo. Julia suspirou profundamente. - Não posso explicar, mas posso sentir. Eu sei. Ele está mudado por causa daquele acidente. Mas ainda assim, eu sei que eu deveria tomar cuidado. Gaby está no meu pé o tempo todo. Ela acha que eu devo ficar longe dele e, francamente, eu não posso discordar dela. - Deixe acontecer – a avó disse suavemente – Fique longe dele, mas deixe-o vir até você, se ele realmente quiser. Como eles dizem hoje em dia? Sua vizinhança, suas regras. Julia bufou. - Vovó, pare. Eu nem sei quais são as regras. Acredite, eu quero ser toda forte e independente, mas por esse garoto eu sou capaz de torcer tanto as regras a ponto delas ficarem parecendo um pretzel. E isso está me irritando. Eu não quero mais que ele cause esse efeito em mim. - Ele só pode causar esse efeito em você se você quiser – a velha senhora disse, imperturbável. Julia estava quase apertando os dentes, frustrada, porque a avó estava certa. Ela queria. Ela ainda


queria. - Então... Vou tomar um banho – ela disse quebrando o silêncio. Ela se levantou e se arrastou para cima. Conforme a água quente caía em sua cabeça, Julia pensava nas palavras da avó. Claro que a avó estava certa, ela tinha que deixar as coisas acontecerem e seguir o seu coração. O senso comum a dizia que deveria ficar longe de Michael, mas seu coração ganhava da lógica e da razão. Algo estava acontecendo com ele e ela queria descobrir o que era. Depois que voltou para o andar de baixo, Julia tocou algumas canções no piano enquanto a avó limpava a cozinha. Depois, as duas pegaram os podões e atacaram os arbustos no quintal. Às duas em ponto, elas foram ao supermercado. Julia estava encarregada da tarefa de levar o carrinho "de velha" pela calçada, era assim que a sua avó tinha apelidado o antigo carrinho estampado que ela usava para fazer compras. - A que horas sua mãe chega? – a avó perguntou. - Não sei. Ela disse que depois do trabalho. - Eu vou perguntar a ela. A velha senhora caminhou até o fundo da loja, onde uma porta vermelha dava acesso à área de armazenamento e ao escritório. Julia parou perto de umas caixas de tangerina, examinando a seleção de frutas e vegetais em busca de mangas frescas. Distraidamente, ela pegou três tangerinas da caixa à sua frente, olhando para elas indecisa. Ela não queria tangerinas, mas parecia que as mangas tinham acabado. Uma leve tosse a despertou de seus pensamentos. - Posso ajudá-la com alguma coisa? – perguntou uma voz familiar. Julia olhou diretamente para os olhos azuis de Thorsten. Ele estava em pé ao seu lado, em um uniforme do supermercado, um sorriso animado enfeitando o seu rosto. - Hã, oi – ela murmurou – Eu não fazia ideia que você trabalhava aqui. - Desde ontem. Sabine me disse que a sua mãe trabalhava aqui, então eu pensei que poderia dar certo. - Bem, deu certo. – Julia riu. – Está gostando? - É legal! Os olhos dele pararam nas três tangerinas que ela ainda estava segurando. – Eu estava observando você há algum tempo. Estava esperando você começar a fazer malabarismo com elas. Ele sorriu divertidamente e Julia começou a rir. - Ah, e você queria me ajudar com isso? – ela perguntou, fingindo perplexidade – Talvez você devesse deixar esse emprego e se juntar ao circo. Thorsten pareceu desapontado. - Por favor, não me provoque pelo meu nariz vermelho e meus pés moles. Machuca, sabia? Eu esperava mais de você. - Não, você não me entendeu. Não estou te provocando! É bom saber seus pontos fortes, não é? - É verdade, é verdade. – seu olhar recaiu no carrinho de compras. – Bonito carrinho – ele continuou com uma piscadinha. – Você sempre traz isso ao supermercado? - Estou aqui com a minha avó, ok? – Julia retorquiu defensivamente, olhando brava para ele. - Eu sei. – ele devolveu um meio sorriso. – Eu vi vocês duas entrando. Julia mordeu o lábio, repentinamente se perguntando por quanto tempo Thorsten a estivera observando. Ele se virou para pegar algumas pimentas esmagadas de um caixote de vegetais, parando


por um momento. - Então, você tem planos para o final de semana? – ele perguntou, rearranjando os pepinos, sem motivo aparente. Ele não olhou para ela e Julia percebeu que ele parecia um pouco nervoso. Seu estômago deu uma reviravolta e ela se virou para guardar as tangerinas e esconder suas bochechas vermelhas de vista. - Sim, vou trabalhar. Começo na livraria amanhã. É bem legal. Enquanto isso, ela estava pensando na sugestão de Gaby. Ela poderia convidar Thorsten para acompanhá-la ao Shamrock amanhã à noite, com certeza. Ele se adaptaria muito bem em seu círculo de amigos, mas ela se sentia um pouco culpada por convidá-lo apenas para esquecer Michael. Ele era muito legal para aquilo. Por outro lado, que mal faria apresentá-lo a novas pessoas? Ele tinha acabado de se mudar, afinal de contas. - Você já fez amigos da nossa idade aqui em Salzburg? – ela perguntou, se ajeitando. Thorsten balançou a cabeça, olhando para ela com expectativa. - Bem, se você estiver a fim, você pode vir comigo ao bar Shamrock amanhã à noite e conhecer os meus amigos. Sair um pouco. - Claro que eu estou a fim – ele respondeu entusiasmadamente – Onde é o Shamrock? Enquanto Julia dizia a ele qual ônibus pegar para chegar ao bar, ela viu, pelo canto dos olhos, sua avó dirigindo-se a eles. Ela teve o cuidado de não interromper a conversa. - Ok, eu te vejo amanhã então – Thorsten disse, depois de salvar o seu número nos contatos dele. - Sim, até amanhã! Bom trabalho! – Julia acenou enquanto ele saía para encher algumas prateleiras no corredor dos cereais. - Quem era aquele? – a pergunta inevitável e curiosa da avó. - Thorsten. Ele é o irmão de Sabine, sabe? A nova melhor amiga da Anne. A avó concordou pensativamente. - Entendo. – ela olhou em direção ao corredor dos cereais. – E ele? Ele vai ser o seu novo melhor amigo? Julia ficou vermelho. - Meu Deus, vovó, não sei. Só quero entender... Não consigo esquecer o Michael... Não acho que eu estou pronta para... Ele é legal. Nossa, quanta coerência! Ela suspirou, frustrada. - Bom, ele certamente gosta de você – a avó disse causalmente, caminhando para o caixa com seu carrinho de compras. - Hã? Por que você diz isso? É o seu sexto sentido de novo? - Ora, por favor, não é preciso poderes psíquicos para ver isso. Os olhos dele dizem tudo. Julia não respondeu. Os olhos dele? Ela havia pensado que os olhos de Michael haviam lhe dito algo também, mas isso não a havia ajudado em nada. - Que seja. - Por que o mau humor? É só uma observação. Ignore se quiser. Julia começou a rir. - Desculpe, vovó. Esqueça. Julia e a avó passaram o resto da tarde cuidando do jardim, tomando chá e jogando cartas. - É melhor eu ir para casa – Julia murmurou quando a avó colocou um coringa pela terceira vez em um jogo de Mau. A velha senhora piscou. - Ha! Eu te pus pra correr. Julia fez biquinho, fingindo desapontamento, então se levantou e foi ao banheiro colocar as


roupas de corrida. Ela abraçou a avó no corredor. - Te vejo no domingo. Estaremos aqui para o chá. A brisa balançava seu cabelo enquanto corria em um ritmo calmo. Na floresta, os galhos das árvores balançavam de um lado para o outro como as ondas selvagens do mar. Julia respirava fundo. O sentimento familiar de serenidade tinha retornado ao bosque, como se a atmosfera estranha e opressiva da manhã tivesse sido afastada para fora pelo vento que soprava. Ela podia sentir. A sua mente estava vazia quando ela saiu da trilha da floresta e cortou pelo meio do mato para chegar ao carvalho. Talvez ela pudesse relaxar no "seu" lugar desta vez. Julia fez uma careta, porém, quando deu a volta em um grupo de árvores e viu uma figura solitária sentada com as costas apoiadas no tronco. Mancando suavemente, ela levou um susto, sentindo um familiar bolo se formando em seu estômago. Ela reconhecia aquela pessoa. O que diabos ele estava fazendo ali? Vagarosamente, ela se aproximou do carvalho. Michael não parecia notá-la, ele estava sentado imóvel com os olhos fechados, descansando as mãos nos joelhos. Aos poucos, aquele cara a estava deixando louca. Desde que havia decidido evitar Michael, ela vivia tropeçando nele em cada esquina. Claro que não era razoável culpá-lo por sua inquietação, mas a incomodava encontrá-lo ali. Não fazia sentido. Aquele era o seu lugar de meditação e ele não deveria estar ali. Bem quando ela estava prestes a se virar e silenciosamente voltar para a floresta, Michael abriu os olhos. - Julia – disse ele, virando a cabeça e olhando diretamente para ela, como se tivesse sentido que ela estava ali. - Oi – ela respondeu rapidamente, um leve tremor em seu corpo. Como ele sabia? Ele sorriu e o vento mexeu as folhas da árvore onde ele estava se apoiando. Julia caminhou contrariada em sua direção. Ela não podia simplesmente sair agora. Afinal de contas, ele a havia cumprimentado educadamente. - O que você está fazendo aqui? – ela perguntou, um pouco mordaz. Michael se levantou, passando a mão pelos cabelos. - Pensando – ele respondeu baixinho, depois olhou em volta. – Foi aqui que aconteceu. Julia olhou seu rosto sério, repentinamente se sentindo envergonhada por ter odiado tanto a sua presença ali. Ele tinha todo o direito de visitar o local onde quase havia encontrado a morte. Era obviamente apenas uma coincidência por aquele também ser o seu lugar especial. - Você não tem péssimas lembranças associadas à floresta? – ela perguntou com cuidado. Michael sorriu largamente e balançou a cabeça. - Eu me sinto em casa aqui – respondeu ele – Mais do que... Em casa. Michael pensou em sua mansão linda e cara e em seus pais ricos, porém ausentes a maior parte do tempo. Um repentino sentimento de pena a tomou. - Sinto muito – ela murmurou. Ele deu de ombros. - Eu não. Este é um belo lugar para se sentir em casa. – ele pegou a mão dela como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. – E você vem muito aqui – ele continuou, mostrando alegria no olhar. - Venho. – Julia encarou as suas mãos nas dele. Como ele sabia daquilo? Ela não havia contado a Michael muita coisa sobre si mesma nas horas que havia passado a sós com ele. Eles estiveram mais ocupados dando uns amassos do que conversando. Julia sentiu-se corar quando ergueu os olhos e notou a proximidade dos dois. Ele estava mais


perto do que ela pensava. A sua mão estava ficando quente na dele. - Eu... Eu me sinto em paz aqui – ela gaguejou timidamente, dando um passo para trás e soltando a mão dele. – Eu venho aqui para clarear a minha mente. - Mas aposto que você vem aqui para se inspirar também. Julia concordou em silêncio. - Escrever poemas, essas coisas - ela finalmente murmurou. - Compor? Ela concordou novamente. - Você toca piano, certo? – ele calmamente colocou as duas mãos nos bolsos da calça jeans. – Você deveria ir lá em casa de novo. Aquele piano enorme está só acumulando poeira na sala. Minha mãe nunca tem tempo para tocar. Julia olhou para ele surpresa. - Eu? Tocar em um Steinway? – ela gaguejou perplexa. Michael chegou mais perto. Julia sentiu o carvalho contra as suas costas. Ela apoiou a cabeça e ergueu os olhos para ele. Vagarosamente, um sorriso torto apareceu em seu rosto. - Sim – ele respondeu calmamente – Você. Tocando aquele Steinway. Ele estava perto demais para ela se sentir confortável. Por que seu coração traiçoeiro ainda batia forte quando ele estava assim tão perto? Ela sabia muito bem que tipo de pessoa ele era... Ou tinha sido, pelo menos. - Eu não sei. – ela se protegeu. – Vou pensar no assunto. - Você deveria. O convite está de pé. Aquele piano vai se sentir solitário até que você decida agraciá-lo com um recital. Julia engoliu seco. - Então, eu preciso ir andando... – ela apontou vagamente em direção à estrada, andando na ponta dos pés como se Michael a fosse parar. – Tenho que cozinhar. - Qual o cardápio? - Pizza. – ela deu de ombros. – Aliás, eu sei fazer comidas apropriadas. Mas, estou com preguiça hoje porque tenho que cuidar da minha irmã. Ah, ela queria dar um soco em si mesma por aquilo: pedir desculpas por comer fast food! O que ele tem a ver com isso? Por que ela se importava? - Ei, cuidado com as palavras. Pizza é comida apropriada. Não deixe os italianos te ouvirem. Meu avô materno é italiano. Eu amo pizza. - Amy’s Kitchen não é necessariamente italiano – Julia contestou. - Não, mas com certeza é saborosa. – ele lançou um olhar divertido a ela. – É minha pizzaria favorita, na verdade. Ah, meu Deus. Ela estava muito perto de convidar Michael para jantar, e era bem óbvio que ele estava pretendendo isso, dando indiretas enormes. - Sim, a minha também. Não vejo a hora. – ela cuidadosamente deu alguns passos para trás. – Então, é, eu te vejo por aí. - Espero que sim – disse ele. Julia rapidamente saiu, antes que pudesse começar a corar novamente, ou – oh, que horror – mudar de ideia em um momento de insanidade e convidá-lo para jantar. Em uma velocidade alucinante, ela correu pelo meio da floresta, como se o diabo a estivesse perseguindo. Quando ela chegou em casa toda suada e sem fôlego, chamou Gaby para assistir a um filme depois que Anne fosse dormir. Ela precisava de um apoio. Fazendo uma careta, enfiou duas pizzas de


cogumelo no forno. Anne estava sentada na cozinha lendo um gibi do Pato Donald. - Está acontecendo alguma coisa? – ela perguntou, observando a forma irritada com que Julia bateu a porta do forno. - Não. - Vou considerar isso como um sim. Julia não conseguiu evitar uma risada. - Não é nada em particular, Annie. Estou só nervosa porque amanhã é o meu primeiro dia de trabalho. Elas comeram suas pizzas e tomaram sorvete enquanto assistiam a Toy Story. Quando anoiteceu, Anne foi para a cama e Gaby apareceu na porta de entrada com três sacos enormes de pipoca e um DVD. - Quantos filmes nós vamos ver esta noite? – Julia olhou para a intimidadora quantidade de comida que a amiga havia trazido. - Ou você convidou mais gente? Gaby balançou a caixinha do DVD na frente dela. - Vai ser um sessão e tanto, Jules. Esse filme dura horas, e além disso, Axel me disse que temos que ficar concentradas e provavelmente vamos precisar pausar de vez em quando para filosofar sobre ele. - Oh-oh. Axel te emprestou um filme para geeks. Gaby concordou entusiasmada. - Sim, Florian e Moritz estavam falando sobre o nome da banda de Moritz na noite passada, certo? - “Esperando o chute?” - Exatamente. E então Axel disse que Moritz e os amigos dele devem ter assistido aquele filme "A Origem" porque essa expressão foi usada no filme. Então, ele me ligou hoje para falar que tinha gravado o filme para mim, porque eu tinha ficado toda curiosa. De repente, Julia se lembrou da pequena chama que havia notado entre Gaby e seu primo. - Bem, Ax está de parabéns por introduzi-la ao mundo geek. - O que? Eu? Sem chance. Eu adoro meu jeito dark, alternativo. Julia analisou a expressão perturbada de Gaby. Será que ela deveria perguntar o que a melhor amiga achava de Axel? Aquilo talvez fosse muito direto. Ela não queria arruinar as coisas entre Axel e Gaby, antes que elas tivessem a chance de florescerem. Talvez ela tivesse que dar um jeito de fazer a amiga se abrir, confessando ela própria seus sentimentos. - Eu chamei o Thorsten para sair hoje – ela disse, lançando um sorriso sensual. Gaby gritou. - Mentira! Verdade? Sério? Quando vocês vão sair? - Bem, amanhã. Ele vai com a gente ao Shamrock. - Muito bem, diva! – Gaby deu um tapa no ombro de Julia. – Estou muito orgulhosa de você! Quando você o convidou? - Ah, eu o encontrei no supermercado em Eichet. Ele trabalha lá agora. - Bom, bom. Suponho que agora você vai sair para fazer compras para sua mãe toda semana, estou certa? Julia sorriu. Thorsten era um cara fofo e ele iria se dar bem com os amigos dela. Aquele era o caminho certo a seguir. Ela convenientemente se esquecera de mencionar seu nada casual encontro com Michael na floresta.


- No domingo nós vamos comprar as passagens para Londres. – Gaby se jogou no sofá. – Vamos nos assegurar que poderemos ver Moritz tocar. Ele vai viajar alguns dias antes de nós. Flo disse para nos encontrarmos todos na casa dele, para imprimir os cartões de embarque. - Estou muito animada! Quando nós vamos? - Terceira semana de agosto. – Gaby apontou para os avisos de direitos autorais que apareciam na televisão. – Axel é muito esperto, não é? Ele copiou até o aviso contra cópias de DVDs. - Sim, meu primo é nosso Einsten particular. – Julia sorriu. Não faria mal nenhum a Axel se ela o elogiasse um pouco. – Isso sem falar que é um amigo dedicado. Ele deve ter feito de tudo para gravar esse DVD tão rápido para que você pudesse ter no dia seguinte. - Sim. Ele é o máximo. – Gaby acenou, alcançando a garrafa de refrigerante em cima da mesa. – Quer beber? Julia riu. Não importa o quanto Gaby era falante, ela não tinha conseguido esconder o leve rubor em seu rosto. - Bem, pelo menos faça um sanduíche para levar! – a mãe de Julia gritou da cozinha na manhã seguinte, enquanto sua filha estava correndo pela casa, em pânico, tentando sair a tempo para seu primeiro dia de trabalho. – Você precisa de um café da manhã, não é? - Não tenho tempo! Tinha que ter saído há cinco minutos. – Julia rapidamente colocou um casaco enquanto tentava amarrar os tênis. Decidida, a mãe de Julia pegou um dos sanduíches de Anne e colocou em um zip-loc. - Ei – Anne exclamou, parecendo ofendida. – Meu sanduíche de manteiga de amendoim! - Eu vou fazer outro para você – prometeu a Sra. Gunther – Agora fique quieta. - Obrigada, mãe. – Julia pegou o café da manhã para viagem. – Desculpe, Anne! Vejo vocês à noite! Com o coração batendo ansioso, ela correu para o ponto de ônibus. Por que ela tinha desligado o despertador justo hoje? Ela só podia esperar que o trânsito estivesse tranquilo na manhã de sábado, senão o ônibus definitivamente se atrasaria. Ela não queria causar uma má impressão chegando atrasada para trabalhar no primeiro dia. Muita mancada, diria Gaby. Uma vez que estava no ônibus, ela se acalmou. Nada de trânsito e todos os sinais estavam verdes. Julia se encostou no assento e colocou os fones de ouvido enquanto mastigava o sanduíche. Depois de vinte minutos, ela saiu e apressadamente cruzou a ponte que levava à Cidade Velha, parando em frente à loja exatamente às oito e meia. Martin estava destrancando a porta quando ela apareceu. - Olá, Sr. Haider – Julia chamou. Martin se virou. - Ora, mas se não é a Julia! Feliz em te ver. A loja só abre às nove, mas eu queria fazer uma rápida apresentação a você e pedir para preencher mais dois formulários. Afinal de contas, preciso saber para onde transferir seu generoso salário. – ele piscou. Julia riu. Ela estava começando a gostar do seu novo chefe. - Vamos esperar que seja. Vou para Londres em agosto. - Você vai? Ótima escolha. É uma cidade magnífica. Como está seu inglês? Razoável? Conversando amigavelmente, eles caminharam até a parte de trás da loja, onde subiram as escadas até o escritório onde Julia havia feito a entrevista de emprego. Depois de preencher os seus dados bancários, Martin a acompanhou à sala de descanso no final do corredor. - Aqui fica a cozinha onde todos os membros da equipe comem entre uma e duas da tarde, quando a loja fecha para o almoço. Por falar nisso, hoje nós fechamos às cinco. Horário de sábado. Outro lance de escadas acima levava ao estoque e aos banheiros. O chefe de Julia entrou na sala


para pegar uma camiseta preta, com a marca da loja, que ela colocou por cima da blusinha que estava usando. Assim que voltaram para o andar de baixo, Martin mostrou as categorias de livros que estavam no primeiro e no segundo andar de Höllrigl, e Julia sentiu que já estava mais ou menos pronta para começar. - Por que você não pega um café? – ele sugeriu – A loja abre em alguns minutos, e vou pedir para um de nossos colegas apresentá-la ao resto da equipe e explicar a você como funciona o caixa para que você possa operá-lo à tarde. Tudo bem? - Parece legal. – Julia não conseguia parar de sorrir como uma idiota enquanto olhava em volta todos os livros da loja. Aquele era um sonho realizado: ela estava em seu momento “biblioteca de A Bela e a Fera”. Martin havia dito que ela tinha direito a um bom desconto em todas as compras da loja. Axel ia pular de alegria quando ela contasse a novidade para ele. Assobiando animadamente, subiu as escadas novamente para pegar um pouco de chá. Quando voltou, Höllrigl estava aberta e ela encontrou outra garota com a camiseta da loja que subia as escadas. - Oi – a garota disse, estendendo a mão. – Você deve ser a garota nova. Julia apertou a mão da garota. - Julia. A garota nova – ela disse formalmente. - Donna – a garota respondeu – A garota antiga. Ambas começaram a rir. - Estou indo para o caixa – Julia disse – Preciso de algumas lições antes de ser jogada aos lobos. Falo com você depois? - Claro! – Donna sorriu para ela e continuou subindo as escadas. Julia cantarolava alegremente consigo mesma enquanto se dirigia para a frente da loja. Ela tinha muita sorte de ter encontrado aquele emprego! O trabalho parecia simples o suficiente, o chefe era um cara legal, seus colegas eram amigáveis e o pagamento não era nada ruim, sem contar o desconto que Martin a havia prometido. O que mais ela poderia querer? - Ah, aí está você. – Martin apareceu detrás de uma pilha de livros mais vendidos. – Por favor, venha comigo. Julia o seguiu para o caixa, olhando para a direita e para a esquerda, para seus outros colegas. - Kolbe! – seu novíssimo chefe exclamou em direção à entrada. – Venha me ajudar, por favor! Julia ficou paralisada. Ela estava ficando surda ou Martin tinha acabado de dizer... Seu coração batia absurdamente rápido quando seus olhos fitaram a porta da frente. - Ele vai te ajudar no caixa. – a voz de Martin parecia vir de muito longe. Ele a deixou ali, plantada no mesmo lugar. Julia tentou sair de sua paralisia e tropeçou mais alguns passos em direção ao balcão. Perdeu o fôlego quando viu uma pessoa muito familiar caminhando em sua direção. Ela engoliu seco. Mas certamente não podia ser. Ah Deus, não. Não, não, não. Isso não estava acontecendo. E então, ela não conseguia olhar para nenhum outro lugar senão diretamente para dois olhos verdes como a floresta.


5. - O que é que você está fazendo aqui? – Julia olhou para ele alarmada. - Eu trabalho aqui – ele respondeu inabalável, um meio sorriso aparecendo em seus lábios. - Desde quando? Simplesmente não era possível que ela, em sua infalível perseguição, tivesse deixado passar aquilo: Michael trabalhando na mesma livraria em que ela havia sido entrevistada dois dias atrás. - Desde a semana passada. Seu jeito presunçoso rapidamente transformou sua perplexidade inicial em uma fúria enorme. - Por que? – ela perguntou irritada. Ele ergueu uma sobrancelha. - Para ganhar um dinheiro extra? – ele disse aquilo como se fosse a coisa mais óbvia. - Mas por que aqui? Michael começou a rir. - Por que você está me fazendo esse interrogatório? -Você por acaso está me seguindo? – ela resmungou, o coração traiçoeiramente pulando em seu peito por um momento, enquanto considerava aquela possibilidade. - Bem, desculpe por te desapontar, mas eu acho que é o contrário. Primeiro você aparece no bar onde eu sempre vou com os meus amigos, depois decide correr perto do local onde eu sofri um acidente quase fatal e agora você vem trabalhar no mesmo lugar onde eu trabalho há uma semana. O que você acha disso tudo? Bolas, ele estava certo. Julia resistiu à vontade de bater o pé como uma garotinha. - Em seus sonhos, seu canalha arrogante – ela murmurou – Todo mundo diz que eu deveria ficar longe de você. No silêncio que se seguiu, ela podia ouvir seu coração batendo em sua garganta. - Posso imaginar – Michael disse tão baixo que ela não tinha certeza que ele havia dito aquilo até ver seu olhar. Era um olhar de vergonha. - Olha, eu sinto muito. Não quis parecer tão má. – O rosto de Julia esquentou de vergonha. – Não que eu não possa trabalhar com você. Não vai ser um problema. Michael ainda a olhava, sua boca tinha um leve sorriso. - Sinto muito que ele a tenha machucado dessa forma. Mais uma vez, ele estava falando tão baixo que ela não tinha certeza se tinha ouvido direito. Julia piscou, confusa. Sobre quem ele estava falando? Sobre ele mesmo? - Ok, por que não faço o que o Sr. Haider me pediu? – Michael abruptamente voltou para o jeito profissional. Aparentemente, ele tinha visto o chefe. Ele foi em direção ao caixa e acenou para que Julia se juntasse a ele. – Falando nisso, você pode chamá-lo de Martin. Não fique tímida por isso, ele insiste. Ele diz que se sente um avô se o chamamos de senhor. Com os joelhos trêmulos, Julia ficou ao lado de Michael e ouviu suas explicações sobre passar as compras dos clientes, digitar os códigos dos livros com preço normal ou preço com desconto e completar as vendas. Seu olhar estava no rosto de Michael e não nos botões sob as mãos dele. Ele parecia tão relaxado e calmo. Tão lindo. Ela simplesmente não conseguia esquecer aquele último beijo que ele havia dado nela naquela manhã, no dia seguinte. Ela queria saber se ele realmente tinha mudado. Ela queria


poder senti-lo perto novamente. Ela queria... Ah, ela tinha que parar de fazer aquilo consigo mesma! Ele nunca nem mesmo havia dito que sentia muito. Na verdade, ele estava agindo como se nada tivesse acontecido. E aqui estava ela, sonhando acordada em arrastá-lo para trás da primeira pilha de livros para dar uns amassos nele longe da vista de todos, enquanto ela tinha que estar prestando atenção. Seus pensamentos lascivos a transformariam em uma desastrada, incompetente, bem no primeiro dia de trabalho. Ela venderia livros novos com noventa por cento de desconto por acidente, e Martin a mandaria embora na hora. - Você acha que vai ficar tudo bem? – Michael interrompeu sua conversa interior, olhando de lado para ela. - Sim, eu vou dar conta. Rapidamente, ela foi para longe, determinada a pedir ajuda para Donna mais tarde, para não se dar gloriosamente mal. Ela não olhou para trás de propósito, subindo as escadas correndo para desempacotar a entrega do dia como Martin havia pedido. “Gaby... 3 chances para adivinhar quem trabalha aqui tbm. :$” – ela enviou a mensagem de texto para Gaby assim que entrou no estoque. Ela não conseguia evitar, ela tinha que dividir com alguém. “Thorsten??” – o telefone tocou um minuto depois. “não... Kolbe” “o idiota tá te seguindo?!” – Gaby perguntou em uma mensagem. “não tem como. ele tava aqui antes. isso não é bom p/ minha img...” “peraí. já falo c/ vc. bj” Com um suspiro profundo, Julia deixou o telefone de lado e tentou se concentrar em sua tarefa. Depois de dez minutos, Donna entrou com um garoto e uma garota que com certeza eram irmãos. Ela os apresentou a Julia. Quando ela se sentou para tomar um café no refeitório, lá pelas onze horas com Marco e Silke, os gêmeos, Michael não estava em nenhum lugar, felizmente. - Vocês já ficaram no caixa? – ela perguntou. Marco fez que sim. - Sim, é bem simples. O Michael não te explicou de manhã? Julia deu de ombros. - Sim, mas eu não estava prestando atenção. Desculpe. Silke começou a rir. - Ele é uma bela distração, não é? - Por que você diz isso? – Julia corou. - Ah, por favor, você acha que eu não vi você o admirando, garota. O garoto é o máximo. – ela deu um tapinha na mão de Julia. - Mas não surta. Estou namorando, o Michael é todo seu. - Pfff. Tá bom. – Julia bufou sarcasticamente. Silke e Marco olharam para ela curiosos, fazendo-a resmungar consigo mesma. Por que ela não ficava de boca fechada, para variar? - Saímos algumas vezes – ela explicou com sarcasmo – E então ele decidiu ser frio e ignorar meus telefonemas e, desde então, eu fico tropeçando nele, quando tudo o que eu mais quero é esquecer esse canalha. Fim de papo. - Ah, um daqueles caras. – Silke inclinou a cabeça, surpresa. – Eu nunca iria imaginar que ele era desse tipo. Seu irmão gêmeo concordou com a cabeça. – Sim, estou confuso. Ele parece ser um cara muito legal.


Julia bufou com desdém. - Bem, por que você não o convida para sair? Talvez tenha mais sorte do que eu. Marco riu. - Sem chance. Primeiro, eu não gosto de garotos e segundo, ele ainda gosta de você. Ele te encara, sabe? Julia engoliu seco, seu rosto ficando vermelho. Bem naquele instante, a porta da sala de descanso se abriu e Michael entrou na sala junto com Donna. Todos ficaram em silêncio. - Hora de uma bebida. – Michael olhou para os três e hesitou. – Hã... Estou interrompendo alguma coisa? – ele parecia verdadeiramente inseguro. - Não, claro que não. – Silke se apressou em dizer. – Estávamos só fofocando sobre o Martin, então paramos de falar porque pensamos que fosse ele. Ela piscou para Julia, que intencionalmente ignorou Michael e pegou outro cookie do pote. Ela repentinamente teve vontade de fugir dali. - Vou ao banheiro. – ela se ergueu abruptamente. – Você me ajuda com o caixa mais tarde? – ela murmurou para Silke, antes de sair correndo da sala e subir as escadas correndo para os sanitários. Com um longo e sofrido suspiro, Julia bateu a porta e se sentou no vaso sanitário, correndo a mão pelos cabelos, frustrada. Ok, então Marco também tinha reparado na fascinação de Michael por ela. Ela não podia mais negar o interesse dele. Mas por que isso havia se manifestado depois que ela o salvara na floresta? Ela ainda não entendia. Talvez ele sentisse que tinha que fazer a coisa certa entre eles. Seria por isso que ele queria que fossem amigos? Sinto muito que ele a tenha magoado tanto. As palavras que ele havia dito mais cedo naquela manhã surgiram em sua mente. Ela provavelmente tinha entendido errado, ou talvez a pancada na cabeça dele tenha feito mais danos do que as pessoas imaginavam. Quem falava de si mesmo daquele jeito? Ele estava sofrendo de desassociação? Uma coisa era certa: ficar trancada no banheiro não resolveria seu turbilhão interior. Julia deixou o banheiro e correu para o andar de baixo. Ela ficou feliz em ver que Silke já tinha voltado para assumir o caixa. Desta vez, ela prestaria mais atenção durante a explicação. As coisas não estavam tão ruins, ela disse a si mesma. Tudo o que ela tinha que fazer era acabar o dia. Amanhã a loja estaria fechada e a noite, ela poderia avaliar o dia de hoje com Gaby e o resto dos seus amigos. Ela iria conseguir. Quando o intervalo do almoço chegou, Julia se assegurou de estar conversando animadamente com Donna e Silke, quando Michael chegou. Marco o seguiu, ambos sentados em uma mesa próxima à máquina de café, onde Martin se juntou a eles poucos minutos depois. - Planos para hoje à noite? – Silke perguntou a Julia. - Sim, vamos ao Shamrock. Eu e meus amigos do colégio, quero dizer. Ah, e meu novo vizinho. Eu o convidei para sair ontem. - Isso aí, mulher forte e independente. Ele é gostoso? - É sim. – Julia não conseguiu evitar o sorriso bobo. Silke e Donna começaram a assobiar e rir. Os outros três na mesa ao lado olharam e Julia sentiu o olhar de Michael em sua direção. Ela esperava que ele não tivesse ouvido o motivo de tanta animação. Apesar que, claro, ela não deveria realmente se importar se Michael sabia ou não da existência de Thorsten, o vizinho gostoso. Na verdade, seria bom se ele percebesse que ela havia seguido em frente. - Vou mantê-las informadas. – ela cortou a conversa, deixando que Donna e Silke fizessem seus próprios planos para o final de semana. - Se você quiser, por favor, venha para nosso churrasco de aniversário no domingo – Silke disse


– Marco e eu vamos fazer dezoito anos amanhã, mas nossos pais não estarão lá para nos dar os parabéns pela maioridade, eles ainda estão de férias. Então, para compensar suas péssimas habilidades como pais, eles disseram que nós poderíamos dar uma grande festa no jardim. Nós temos carne suficiente para alimentar um orfanato, então não hesite em levar algum amigo. Thorsten, por exemplo. – ela cutucou Julia conspiratoriamente. Julia sorriu. - Obrigada pelo convite. Eu não tenho ideia se Thorsten vai me acompanhar, mas eu devo levar algum dos meus outros amigos, se você estiver de acordo. - Claro. Desde que não sejam vegetarianos. Quanto mais carnívoros, melhor! Silke e Julia trocaram telefones e depois do almoço, Julia desceu para as últimas poucas horas de trabalho do dia. Cerca de quatro horas da tarde, Martin a pediu para levar alguns pedidos e desencaixotá-los no estoque. Sentindo-se grata por poder deixar o caixa por uns instantes, Julia subiu as escadas para o terceiro piso segurando uma caixa grande de livros. Assim que chegou, colocou a caixa no chão para abrir a porta. Para sua surpresa, a luz já estava acesa, e seu coração acelerou quando ela viu Michael em pé no canto, pegando algumas enciclopédias na prateleira de cima. - Ah, oi – ela murmurou – Tenho que colocar alguns livros na prateleira. – ela apontou para a caixa. - E eu tenho um cliente lá embaixo que nunca ouviu falar da Wikipedia. – Michael a mostrou os pesados volumes. Julia sorriu. - Ah, bem, melhor para o Martin. Senão ele nunca vai se livrar dessas coisas. Ele sorriu de volta. - Quem sabe ele não coloca algumas em nossas cestas de Natal? - Já estou esperando por isso. Na verdade, eu acho bem chique ter uma enciclopédia em casa. Parece tão nostálgico, sabe? Reminiscências da infância da minha mãe, quando a internet só era usada pela CIA e não por meros mortais como nós. - Sério? A internet foi desenvolvida pela CIA? - Hã, não sei mesmo. Axel sabe muito sobre esse tipo de coisa. Você deveria perguntar a ele. – Julia tossiu tímida, repentinamente se perguntando o porquê de ter puxado assunto com ele. E por que ela escolheu um tema do qual não sabia nada? - Eu vou. – ele passou por ela sem desviar o olhar e então olhou fixamente para a porta. Ela podia ver a hesitação dele. - Então que tal tocar o grande piano da minha mãe algum dia depois desse final de semana? – os seus olhos fitaram os dela. Julia desviou o olhar e olhou firme para o chão. - Não sei ainda. Eu trabalho quase todos os dias, então provavelmente não vou ter tempo. - Apenas considere a oferta – ele disse baixo – Vou voltar lá para baixo. Ela só ousou erguer os olhos quando ele saiu. Com um suspiro profundo de frustração, ela arrastou a caixa cheia de livros para a prateleira onde eles ficariam e começou a desembrulhá-los. Quando ela já estava quase acabando, Donna apareceu com mais três pacotes que Martin queria que fossem desembrulhados e guardados. Quando terminaram, faltava um minuto para as cinco. - Liberdade! – Donna gritou em uma voz potente, erguendo um braço em uma imitação de Coração Valente. – Vejo você na festa de aniversário da Silke amanhã? - Acho que sim. – Julia acenou. – Boa noite!


Ela entrou na cozinha para pegar a bolsa no armário. Todo mundo já tinha ido e quando ela chegou ao andar de baixo, Martin era o único que estava ali. - Marco e Silke já foram? – Julia perguntou, secretamente querendo saber outra coisa. - Sim, Donna e você foram as últimas dos moicanos. - Ok. – Ela tentou não se sentir vazia por Michael ter saído sem se despedir. – Vejo você na segunda. Bom final de semana! No ônibus, indo para casa, ela ligou para Gaby para convidá-la para jantar em sua casa. - Preciso desabafar e você pode ser minha ouvinte. O dia inteiro pisando em ovos. Meus nervos estão em frangalhos. O que foi que eu fiz para merecer trabalhar na mesma loja que o Sr. Cafajeste? - Eu estarei lá – prometeu Gaby – Ainda estou enchendo a cara de doces no Tomaselli’s com Tamara e Axel. Que horas vocês vão jantar? - Depende da minha mãe. Venha quando estiver pronta. Julia desligou e olhou pela janela. Quando ela estava prestes a guardar o telefone, ele apitou duas vezes, indicando duas novas mensagens de texto. ‘vou t ver essa noite? ;) bj mick’ ‘q hr vms nos encontrar hj? até+, thorsten’ Ela deu uma risadinha nervosa. Nossa, então de repente era super popular. Ela olhou para a carinha piscando na mensagem de Michael com as bochechas queimando. Que inferno! Ele a estava provocando com o fato de que ela parecia estar seguindo-o por toda parte. Ele provavelmente presumiu que ela apareceria no O’Malley’s naquela noite, porque ela normalmente ia lá aos sábados. - Não, você não vai me ver essa noite, seu megalomaníaco iludido – ela murmurou – Não estarei lá, e não vou te contar onde eu vou estar. Ela enviou uma mensagem de texto para Thorsten dizendo que ele poderia se encontrar com ela e Gaby na casa dela antes de irem ao Shamrock. Dessa forma, eles poderiam pegar o ônibus juntos em Birkensiedlung. ‘blz, te vejo lá :)’ – ela recebeu, alguns minutos depois. Só quando ela saiu do ônibus percebeu que o convite a Thorsten foi meio inoportuno, pelo fato de ela querer sentar e conversar com Gaby sobre como lidar com Michael como colega de trabalho. Insistir em falar sobre o cara que a havia brutalmente despachado e ainda tinha, de algum modo, algum poder em relação a ela certamente daria a Thorsten a impressão de que ele nem deveria se atrever a tomar alguma atitude. Ela não tinha certeza qual mensagem ela queria transmitir. Será que ela estava secretamente desejando que ele desse em cima dela, ou ela estava só procurando uma distração? Com uma careta, ela abriu a porta da frente. O cheiro de batata frita invadia o corredor, fazendoa salivar. Ela olhou para dentro da cozinha. - Oi, mãe! Você se importa se Gaby e Thorsten vierem jantar aqui antes de sairmos? - Por mim, tudo bem. Mas você vai ter que ir de bicicleta para o supermercado e pegar mais algumas sobremesas. Se ninguém me avisa que tenho que cozinhar para os amigos no jantar, não tenho como prever. Julia sorriu. - Pode deixar. - Ah, e lembre-se de passar na Sabine na volta. Anne ainda está na casa da vizinha e eu quero que ela venha jantar em casa. Julia pegou uma nota de dez euros na bolsa da mãe e saiu para pegar a bicicleta no galpão. Assobiando animadamente, ela se dirigiu a Eichet na brisa lânguida da noite de verão. Depois de


fazer as compras, Julia decidiu pegar o caminho da floresta de volta para casa. As sacolas penduradas no guidão farfalhavam devido aos solavancos na estrada. Julia diminuiu a velocidade. Na luz alaranjada do crepúsculo, que atravessava as copas das árvores, ela avistou seu lugar. O carvalho estava ali, silencioso ao pôr-do-sol. Ela desceu da bicicleta e a encostou na árvore. - Oi, senhor Carvalho – Julia sussurrou. Ela pressionou a sua bochecha contra sua casca, abraçando o tronco da árvore com os dois braços. De alguma forma ela ainda sentia que algo havia mudado naquele lugar, e quando ela olhou para cima, viu folhas amarelas nos galhos. Aquilo era muito incomum para aquela época do ano. Será que a sua árvore estava doente? Isso explicaria porque ela se sentia tão diferente em relação a esse lugar ultimamente. Talvez algo realmente tivesse mudado. Afinal, as árvores tinham que morrer um dia. Ela suspirou devagar, afastando-se da árvore e pegando a bicicleta para voltar para casa. Repentinamente, ela estava inexplicavelmente brava com o mundo por ficar mudando, sem que ela tivesse como fazê-lo parar. - Anne? Sabine? – Enquanto ela passava a bicicleta pelo portão do jardim dos vizinhos, Julia olhou em volta. – Vocês estão aí, meninas? O pai de Sabine saiu. - Grüss Gott. Você veio buscar a sua irmã? Elas ainda estão no bosque, eu acho. Elas falaram que estão construindo uma casa na árvore? Julia fez que sim. - Elas não estão ficando meio obcecadas com isso? É quase hora do jantar. - Bem, Sabine está com relógio, mas talvez elas perderam a noção do tempo. - Acabei de vir de bicicleta da floresta, na verdade, mas eu não as vi em nenhum lugar. Onde fica essa casa na árvore? - Não tenho a mínima ideia. Elas disseram que só tenho permissão de ir até lá e olhar depois que estiver pronta. – explicou o pai de Sabine. Naquele momento, Julia ouviu risadas ao longe. Anne e Sabine apareceram descendo de bicicleta a rua que dava para a casa dela. - Você não está um pouco atrasada? – ela virou-se para a irmã quando Anne entrou no jardim. – A mamãe está esperando por você. Anne parecia chateada. - Desculpe. Eu pensei que conseguiria chegar antes do jantar. - Ah, bem, você está aqui agora. Vamos correr. Gaby e Thorsten vão jantar conosco também. Os olhos de Anne se iluminaram quando ela mencionou o nome de Thorsten. Julia segurou uma risada. Então ela estava certa sobre a paixonite da irmã pelo irmão de Sabine. É por isso que ela queria dar olhos azuis ao príncipe da história. Sorrindo, ela colocou a mão nos ombros de Anne, levando-a para sentar-se à mesa de jantar. - Olá! – Gaby gritou, entrando na casa cinco minutos depois de Julia e Anne chegarem. – Sou eu! - Percebi! – Julia gritou de volta, rapidamente se levantando da mesa e levando Gaby para a sala de estar próxima à cozinha. – Vamos conversar um minuto – ela sussurrou. - Hã, por que? Não vamos comer? - Vamos. Só quero dizer que eu também convidei Thorsten para jantar. - Uau, isso aí, garota! Estou orgulhosa de você por ser tão pra frente! - Sim, obrigada. O único problema é que não vamos poder falar sobre o Michael perto dele.


- Tem razão. – Gaby largou a bolsa dela sobre o sofá e inclinou a cabeça para Julia inquisidoramente. – Então, o que está acontecendo, Jules? Algo a está incomodando, eu sei. Você ainda gosta do Michael? Você pode falar para a titia Gaby, ok? - Ela colocou a mão no ombro de Julia. Julia balançou a cabeça. - Não ‘ainda’. Estou me apaixonando de novo. – sua voz estava tão baixa que Gaby teve que se inclinar para ouvir. - O que você quer dizer? - Bem, eu entendo agora que eu nunca realmente o conheci na escola. Eu nunca o vi como realmente era. Eu inventei minha própria história na qual ele era um cara maravilhoso, que iluminava tudo por onde passava. Mas agora... Ele está tão diferente. Gaby a olhou pensativa. - Você acha que ele quer uma segunda chance porque você o salvou no bosque? - Talvez. - Mas isso significa que ele mudou de verdade? Ou ele só está se sentindo culpado? - Não tenho a mínima ideia. - Você quer dar uma segunda chance a ele? Julia fez uma careta, olhando para o chão. - Ok, eu sei que isso é estupidez. Gaby franziu os lábios e deu de ombros. - Não acho que você esteja sendo estúpida. Eu entendo, é sério. Desculpe ter feito uma tempestade quando você disse que o Michael ainda mexia com você. Tudo o que eu quero é que você tenha cuidado, mas o que está te impedindo? Saia mais algumas vezes com o Thorsten, veja se ele não é uma escolha melhor e, enquanto isso, passe um tempo com o Michael no trabalho, para conhecê-lo de verdade. Depois de tudo o que você me contou, eu ainda acho que ele é um babaca, mas, ei, é a sua vida. Não vou me meter. Julia expirou. - Obrigada Gaby. É um grande alívio, na verdade. Eu estava com medo de tocar nesse assunto de novo porque você ficou histérica da outra vez. - Eu entendo. – Gaby sorriu maliciosamente. – Eu posso ser bem intimidadora. Naquele momento, a campainha tocou e Gaby empurrou Julia de brincadeira. - Acho que é a sua segunda opção que acabou de chegar. Julia riu e caminhou até a porta da frente. Quando ela a abriu, olhou diretamente para os olhos azuis e brilhantes de Thorsten. Ela engoliu seco. Cara, ele era gostoso. Ela era doida se não prestasse um pouco mais de atenção nele. Ele era maravilhoso, interessado, disponível e era vizinho. Se havia um Deus, Ele agora estava batendo a cabeça na parede frustrado com sua falta de vontade. - Ei, bom te ver. – ela o cumprimentou um pouco nervosa. – Gaby já está aqui, é a minha melhor amiga. Gaby apareceu no corredor e se apresentou. Os três entraram na cozinha e logo conversavam sobre a escola, as férias e seus cursos na faculdade. - Vou estudar Sociologia na Universidade de Salzburg – Thorsten disse – Eu fiz o primeiro ano em Graz, mas pedi transferência e felizmente deu tudo certo. Julia congelou por alguns segundos quando ouviu o nome da cidade para onde Michael se mudaria depois do verão. Era bom demais pra ser verdade: Michael estava se mudando de Salzburg, mas Thorsten havia vindo para cá para tomar o lugar dele. Parecia quase a troca de guarda do


palácio. - Sociologia parece interessante – Gaby murmurou enquanto mastigava uma batata. – Eu pensei em fazer esse curso também. Mas decidi por psicologia no fim das contas. - Assim como Axel – Anne disse, distraidamente. Ela tinha acabado de comer e estava colorindo o desenho de um unicórnio, concentrada, com a ponta da língua um pouco para fora. Julia olhou de lado para Gaby e flagrou a amiga ficando um pouco vermelha. - Sim, nós não conseguimos nos largar. – Gaby colocou uma mão sobre o coração, fingindo uma paixonite. Ela tomou um gole enorme de refrigerante muito rápido e quase se engasgou. – Falando nisso, que horas nós vamos? Julia riu. - Oito e meia? – ela sugeriu, chacoalhando a cabeça quase imperceptivelmente. Como é que ela pôde ter deixado passar despercebido o que estava acontecendo entre seu primo e a sua melhor amiga? De repente, era dolorosamente claro. Ela teria tempo de interrogar Gaby mais tarde. Depois do jantar, Julia e Gaby foram para o andar de cima para trocar de roupa e fazer a maquiagem, enquanto Anne sequestrou Thorsten e o levou para a sala de estar para assistir Robin Hood com ela. - Eles estão buscando mais inspiração para a casa da árvore – Julia explicou, em frente à cômoda. – Thorsten está ajudando Sabine e Anne a construírem uma na floresta. - Sério? Uau, ele é tão maravilhoso que merece uma capa com um T enorme bordado. Quero dizer, olha o quanto ele está sendo o doce irmão mais velho com Anne. – Gaby piscou para ela. - Sim, sim. Mas pare com isso, ok? Você parece um comercial de Thorsten. Não sou cega. Eu posso ver que o cara da casa ao lado é um partidão. - Bem, se você não ficar com ele, eu talvez possa chegar e agarrar o cara no seu lugar. - Não, não, você não vai fazer isso. Você... – Julia parou no meio da frase. Gaby estava obviamente interessada em Axel, mas claro que ela não deveria implicar com aquilo. Gaby piscou para ela, como um cervo pego em uma armadilha. - Eu... O que? Julia deixou o rímel de lado. - Nada. Esquece. A amiga colocou as mãos ao lado do corpo e virou a cabeça de lado. - Nã-nã, não tão rápido. O que é que você ia dizer? - Só que Thorsten não faz o seu tipo – Julia murmurou – Eu espero. - Rá! Você acha que todo esse rímel está obstruindo a minha visão, irmã? Mesmo um morcego cego pode ver que ele é maravilhoso – Gaby zombou, desfilando em direção ao espelho de corpo inteiro no canto. Julia deixou escapar um suspiro. Ela teria que esperar até que Gaby trouxesse o assunto de Axel à tona por si mesma. Naquela noite, Julia falou sobre o novo emprego com os amigos. Ela rapidamente pulou a parte onde Michael se tornara seu colega de trabalho e ao invés disso, destacou as vantagens do trabalho e seus colegas legais. - Eu fui convidada para a festa de aniversário de uma das garotas, na verdade. – ela sorriu. – Todos estão sendo legais e amigáveis. - Se ao menos tivéssemos esse mesmo ambiente na escola de equitação – Gaby murmurou – Eu e Tamara estamos prontas para matar aqueles cabeças-de-vento sem sal, que não param de falar de cavalos, pôneis e tudo o que tem a ver com isso.


Axel começou a rir. - Bem, vocês não ficam falando sobre cavalos? - Hã, não. - Mas vocês gostam dessas coisas equestres, não? Gaby deixou escapar um longo suspiro. - Tem diferença, Efeito Axe, uma clara distinção entre eles e eu. Você pode gostar de andar a cavalo como uma atividade externa, porque isso é legal, ou você pode viver dentro de um sonho colorido e doce onde cavalos são seus melhores amigos, que você pode se comunicar telepaticamente, e você ainda tem pôsteres do Meu Pequeno Pônei no seu quarto e secretamente sonha com um cavaleiro em um cavalo branco galopando em sua vida. Florian deu uma cotovelada nas costas do amigo. – Esquece o cavalo branco, cara. – ele riu. - Ela acha idiota. No silêncio que se seguiu, tanto Gaby quanto Axel ficaram roxos como beterrabas. - Quem quer outra bebida? – Tamara cantarolou, esforçando-se para dissipar a tensão palpável. - Ah, eu quero – Thorsten respondeu, alegremente alheio à mancada de Florian. Ele se levantou de sua cadeira. – Espere, vou te ajudar. Você vai querer mais uma? – ele perguntou a Julia. - Sim, claro! Quero uma cerveja pequena de trigo – ela respondeu rapidamente. Assim que Thorsten e Tamara estavam longe o suficiente para não ouvir, Florian começou a rir e cutucar Julia maliciosamente. - Bem, Júlio Cesar, eu acho que temos um candidato à altura. Seu vizinho é fofo e está totalmente a fim de você. Muito bem! - Muito bem o quê? Eu ainda não fiz nada. - Bem, você o chamou para sair, não chamou? - Sim, é verdade. – Julia passou um braço ao redor de Gaby. – Gaby me disse para tomar a iniciativa. Ela tem um bom olho para candidatos. Jantamos na minha casa antes de vir para cá. Axel, Florian e Moritz jogavam conversa fora, enquanto Julia sentia os ombros de Gaby relaxarem um pouco. Ela não conseguia acreditar em como Florian era um fofoqueiro atrapalhado às vezes. Será que Axel tinha admitido a Florian o que sentia por Gaby ou seu melhor amigo apenas tinha dado um palpite certeiro? De qualquer maneira, ela esperava que as coisas não fossem por água abaixo agora. Felizmente, todos pensaram melhor e não mencionaram mais nada sobre Gaby e Axel pelo resto da noite. Axel conversava com os garotos, enquanto Gaby estava mais ou menos escondida atrás de sua irmã e de Julia. Foi só quando o bar estava prestes a fechar e eles estavam todos se levantando para ir para casa que Axel se aproximou de Gaby novamente. Ele caminhou até ela e colocou uma mão em seu ombro. - Posso te dar uma carona para casa? – ele perguntou, com um meio sorriso. Os olhos de Gaby se arregalaram. - Eu, é... Vim de ônibus, então... - Eu vim de moto. - Mas... Eu prometi para Tamara que iríamos para casa juntas. - Na verdade, eu ainda não vou para casa. – Tamara apareceu ao seu lado. – Acabei de mandar uma mensagem para Anna e Gretchen e nós vamos àquela balada nova juntas. Faz tempo que eu não as vejo. Gaby olhou para Tamara de uma forma que claramente demonstrava seu desejo de estrangulá-la. - Ah. Certo. Ok. – ela se virou para encarar Axel novamente e mordeu o lábio, nervosa. – Bem,


então tudo bem. Axel não disse nada. Apenas sorriu largamente e correu para buscar a sua moto. Julia havia escutado toda a conversa com um sorriso malicioso. - Então... – ela deixou escapar. – Vejo você amanhã na festa de Silke? Gaby fez que sim, seu rosto ainda perturbado. - Sim, estarei na sua casa às cinco. E então, você vai para casa com Thorsten? Agora foi a vez de Julia se sentir perturbada. - Acho que sim. Pegamos o mesmo ônibus. Naquele exato momento, Axel chegou e estacionou a sua moto no meio-fio próximo ao bar. Ele olhou para Gaby com expectativa. - Está pronta? - Prontíssima. Julia assistiu Gaby subir na garupa da moto de Axel, seus braços estranhamente ao redor da cintura dele, como se ela tivesse medo de que ele quebrasse. Ela se despediu dos outros e saiu em direção ao ponto de ônibus, com Thorsten ao seu lado. - Eu me diverti muito esta noite – ele disse – Foi muito legal da sua parte me convidar. - Imagine. Eu sei que é difícil fazer amizades no meio do verão. Mas você terá muitos amigos em outubro, quando a faculdade começar. - Ah, não sei. Eu duvido que vou conhecer pessoas tão legais assim – seu vizinho respondeu suavemente. Julia encarou seus tênis. - É, obrigada. – ela não tinha certeza se ele estava falando sobre ela ou sobre a turma, e ela não perguntaria. Eles se sentaram um ao lado do outro no ônibus, dividindo os fones do MP3 player de Julia. Vez ou outra, Julia apontava alguma paisagem pela janela ou Thorsten perguntava algo sobre a música em seu aparelho, mas fora isso, ficaram em silêncio. Eles continuaram assim enquanto caminhavam do ponto de ônibus para a rua deles. O silêncio entre eles tinha ficado muito pesado quando chegaram em frente ao portão de Julia. Thorsten passou a mão quente em seu braço e ela engoliu seco quando ele se aproximou, se inclinando em sua direção. - Você ficaria chateada se eu a beijasse agora? – ele sussurrou. Julia ergueu os olhos timidamente. - N-não, claro que não. Chateada não. Apenas... Não acho que você deveria fazer isso. Não seria justo. Ele a olhou com sinceridade. - Você não gosta de mim assim? Ela corou. - Gosto. Mas algo aconteceu recentemente entre eu e um cara por quem eu fui apaixonada por muito tempo e eu ainda não consegui esquecer. Na verdade, eu ainda não o esqueci. Não tem nada a ver com você. Thorsten sorriu gentilmente, acariciando sua bochecha. - Ok. Devidamente anotado. Eu entendo. Tome seu tempo. Eu posso ser apenas um bom amigo, ok? Julia sorriu. - Obrigada – ela disse timidamente – E desculpe por dar tantos sinais errados.


- Sem problemas. – ele deu um beijo em sua bochecha. – Enquanto você os der, há esperança, certo? Ele se virou e atravessou a rua, enquanto Julia deixava escapar um suspiro. Quando a porta de Thorsten se fechou, ela abriu o portão e entrou. Que noite.


6. - Eu quero os detalhes sórdidos - Gaby exigiu quando pisou no quintal na tarde de domingo, seus olhos brilhando com excitação. Julia havia acabado de voltar de uma visita à casa da avó, e estava enrolada no banco em frente à sua casa, absorta em um mangá da Sailor Moon. Ela deixou o livro de lado, sem pressa, enquanto Gaby se sentava ao seu lado. - Você quer, né? Bem, eu também. Você. Meu próprio primo. Noite passada. Desembucha. A melhor amiga abruptamente se calou, encarando uma pedra próxima ao seu pé direito, como se fosse o objeto mais fascinante de toda Salzburg. - O que você quer dizer? – ela replicou – Não há o que dizer. Ele só me deixou em casa de moto. Quero dizer, ele mora no mesmo bairro. Ah, vamos. Você não acha que tem algo entre nós, não é? – ela ergueu os olhos com cautela, quase suplicante. - Hmmm. - E você e Thorsten? Julia limpou a garganta. - O que você quer dizer? Não há nada a dizer. Ele apenas me deixou em casa, quando voltamos a pé do ponto de ônibus. Quero dizer, ele mora na mesma rua que eu. Gaby gemeu, frustrada. - Ah, por favor, não aja assim. - Não aja como? - Como se nada tivesse acontecido! Não me diga que ele nem mesmo tentou. – Gaby começou a sorrir descaradamente, quando Julia não pôde evitar corar. – Rá! Eu sabia! Então conte. - Ele me perguntou se... Se eu ia ficar chateada se ele me beijasse. E eu acabei confessando a ele que ainda não esqueci o Michael e que não seria certo. - Ok. Você foi corajosa. Mas, também é uma pena. – Gaby suspirou. - Bem, não é como se tudo estivesse arruinado entre nós, ou algo do tipo. Ele disse que se divertiu muito. – Julia ainda se lembrava do olhar de Thorsten: não derrotado, mas cheio de paciência e uma esperança silenciosa. - Parece que ainda há uma esperança – Gaby concluiu – Então, que horas Silke está nos aguardando? Julia teve que se segurar para não mencionar Axel novamente, ela apenas afastaria a amiga ao fazer aquilo. - A partir das seis. Vamos pegar o ônibus das vinte para as seis? Quando Julia e Gaby chegaram ao portão da grande casa de campo de Silke e Marco, o local todo já cheirava a churrasco. Julia empurrou o portão que levava ao vasto gramado, entrando hesitante. Ela não conhecia nenhum dos convidados que estavam sentados no gramado e ficou feliz ao ver Donna ao lado da porta do jardim, tomando uma latinha de cerveja. Gaby seguiu Julia e olhou ao redor maravilhada. - Uau, eles tem um jardim tão lindo! A mãe de Silke deve ser uma jardineira e tanto, para mantêlo sem mato, assim. Neste momento, Silke os avistou no caminho. Ela estava segurando uma vasilha de salada de batata em uma mão e apertou as mão de Julia com a outra. - Ei, que bom que vocês vieram! Porque não me seguem até o pátio, vou te mostrar a mesa dos comes e bebes. – ela olhou para Gaby curiosamente. – Oi, eu sou a Silke. E você não é Thorsten. Gaby começou a rir.


- Não, desculpe. Julia havia prometido trazê-lo ao invés de mim? Conversando, elas andaram pelo caminho de cascalhos até o pátio, onde a festa estava a todo vapor. Uma multidão estava ao redor da churrasqueira. Silke pegou o presente que Julia havia levado e o colocou em uma mesa junto com os outros. Julia notou que as portas do pátio se abriam para uma grande sala de estar com um lindo piano branco, enorme, no canto. - Você toca? – ela perguntou a Silke, apontando o instrumento. - Não. Marco e o meu pai, sim. Se você quiser tocar algo, por favor, não se acanhe. - Ah, legal! Não precisa falar duas vezes. Claro que ela poderia ter ido até à casa de Michael para tocar o piano dele a qualquer momento, mas isso seria uma péssima ideia. Além disso, tocar algumas músicas para um grupo de pessoas que ela mal conhecia e com as quais não se importava tanto, era, decididamente, um obstáculo a menos. Julia entrou, sentou-se ao piano e começou a tocar uma das canções de Enya. - Maravilhoso – Gaby murmurou, caminhando na ponta dos pés por trás dela. Ela sempre ficava maravilhada com as performances de Julia ao piano, já que ela mesma não tocara mais do que três notas em seu gravador, antes de tê-lo jogado pela janela. A música de Julia ao piano flutuava para fora e logo atraiu mais pessoas para o pátio. Quando ela tocou as últimas notas de Watermark, Donna começou a aplaudir fervorosamente, e Marco sorriu para Julia, encorajadoramente. - Vá em frente, toque outra – ele disse – Você é muito boa. Julia hesitou por um segundo, então começou a tocar a música que havia escrito para Michael. Ela não olhou para a plateia, mas o silêncio que invadiu o pátio dizia que ela havia cativado seus ouvintes. Ela se perdeu em sua música. Ela havia derramado todo seu coração ao escrevê-la, expressando algo que nunca conseguiria fazer por palavras. De repente, ela ouviu Gaby arfar atrás de si. Distraidamente, Julia ergueu o olhar para examinar a multidão em busca da razão da preocupação de sua amiga. Seu coração parou quando ela olhou diretamente para dentro de dois familiares olhos verdes, suas mãos quase se atrapalhando com as teclas ao chegar no refrão da música. O que ele estava fazendo ali? Ah, sim. Era o aniversário de Marco também e ele tinha provavelmente convidado Michael. Ela nem mesmo havia pensado naquilo. Julia rapidamente olhou de volta ao teclado, tentando continuar seu recital imperturbavelmente, mas ela estava plenamente consciente de que seus olhos estavam nela. Na realidade, ela queria que ele a olhasse. Ela queria que ele absorvesse cada nota que ela estava tocando. E repentinamente, ela se percebeu desejando que ele de alguma forma ouvisse que essa música havia sido para ele. Apenas quando a música havia acabado é que Julia arriscou erguer os olhos. Uma punhalada de desapontamento a atingiu, Michael havia desaparecido da plateia ao redor do piano, que aplaudia animadamente. - Obrigada – Julia disse timidamente, se levantando. Gaby agarrou sua mão e a arrastou para fora, antes mesmo que os aplausos acabassem. - Você viu aquilo? – ela sussurrou rapidamente, como se estivesse prestes a contar à Julia que um rinoceronte havia caído dentro de uma fonte. - Eu vi o quê? - Michael. A forma como ele olhava para você. Julia piscou, confusa.


- O que você quer dizer? Ele parecia atormentado, talvez? Ele nem se importou em ouvir toda a música. Gaby balançou a cabeça. - Não acho que ele poderia. Ele... Jules, ele estava te encarando tão intensamente. Tão concentrado no que você estava tocando. E então... Olha, eu sei que isso parece ridículo, mas eu juro, ele começou a chorar. Ele estava chorando, e é por isso que ele saiu. Ele foi tocado bem no íntimo. Julia ficou boquiaberta e não disse nada à amiga por um segundo. - Não estava. - Estava. – Gaby abriu uma lata de cerveja e deu alguns goles generosos. Julia pegou uma lata de cerveja para ela, distraidamente girando-a em suas mãos. - Não posso acreditar que estou dizendo isso, mas eu acho que você deve dar outra chance a ele – Gaby continuou – O rosto dele, a forma como ele olhava. Havia muita emoção. Só... Eu não sei. Julia mordeu o lábio. - Então, onde ele está agora? - Não tenho ideia. Ele vai voltar. Você quer falar com ele? - Não sei. – Julia engoliu metade da sua lata de cerveja antes de olhar ansiosamente ao redor. Silke e Donna estavam caminhando em direção a elas. - Você estava ótima! – Donna exclamou a Julia. – Quem escreveu aquela música? - Fui eu. - Mentira! Sério? Você deveria gravá-la um dia. Eu a compraria no iTunes na hora. Silke concordava veementemente com a cabeça. - Vou te fazer presença constante nas minhas festas. A plateia amou seu pequeno espetáculo. As quatro garotas se sentaram nas cadeiras de plástico ao redor da fonte. Michael não estava em parte alguma. - Que pingente é esse que você está usando? – Gaby perguntou curiosa, apontando para pequena bolinha de plástico colorida que estava pendurada numa corrente ao redor do pescoço de Silke. – Tem contas dentro dessa bola? - Não. São sementes de sorveira secas. A sorveira é a minha árvore de proteção celta. Todo mundo tem uma árvore de proteção associada ao seu dia de aniversário, de acordo com o sistema anual druida de treze meses. - Tem um a mais. – Donna observou secamente. Silke riu. - Eles usam um calendário lunar, por isso treze meses. É por isso que a astrologia deles é diferente também. O interesse de Julia foi despertado. - Que árvore é a minha? Meu aniversário é no começo de março. - O freixo. A árvore feiticeira. Você é uma sonhadora criativa com uma tendência a fugir do mundo real. E você se comunica com a natureza. Gaby riu. - Esses druidas conhecem mesmo a Julia. E eu? Começo de abril? - A amieira. A pioneira. Você não se importa com a opinião das outras pessoas e segue seu próprio caminho, mesmo cercada de muitos amigos. - Isso é muito louco – Gaby murmurou – E assustador. Eu realmente sou assim. Você tem algum livro que possa me emprestar? Você me fez virar fã dos druidas. Julia se lembrava do dia do aniversário de Michael.


- Qual é a árvore de três de julho? – ela disparou sem pensar. Gaby a deu uma cotovelada nas costelas. - Ah, esta é muito boa – Silke respondeu com um sorriso – Na realidade é a árvore a partir da qual os druidas começaram a ser chamados assim: o carvalho. Repentinamente, Julia teve um flashback de Michael deitado sob a árvore no bosque, sua cabeça sobre uma poça de sangue. O seu olhar quando acordou e a reconheceu. Aquilo a fez arrepiar. Ela não conseguia dizer porque aquilo era estranho, mas era. Era bizarro. - Não consigo enxergar qual a relação entre o carvalho e os druidas – Donna disse com uma careta. - O nome celta para carvalho é duir. É a palavra de onde o nome deles deriva. E tanto é assim, que a palavra também quer dizer porta, uma vez que eles acreditavam que o carvalho era a porta entre esta e a outra realidade. Os druidas meditavam sob o carvalho para se comunicar com seres sobrenaturais – Silke falava, claramente gostando do que fazia. – O carvalho é um símbolo para a longevidade e representa o poder do relâmpago. Julia encarou Silke, surpresa. - Relâmpago? – mais uma vez ela não conseguia parar de pensar na tempestade que estava acontecendo quando ela encontrou Michael. - Sim. Carvalhos são geralmente atingidos por relâmpagos. O carvalho liga os poderes vivificantes do raio e os poderes nutritivos da terra, abrindo um vórtice temporário ou um portal para o outro mundo, no dia do Solstício de Verão. - Ei, o jantar está servido, alta sacerdotisa! – Marco sorriu quando se aproximou do pequeno grupo, empurrando a irmã de forma brincalhona. – Eu posso ver onde essa conversa vai dar. Você quer eu pegue sua capa com capuz e sua equipe? Silke deu um tapa no ombro dele. - Você não entende. Julia também não entendia, mas ela sentia como se estivesse prestes a descobrir algo. Todas as coisas que Silke mencionava, em relação ao horóscopo de Michael, não poderiam ser coincidência. Assim que ela chegasse em casa, ligaria o computador e procuraria no Google por alguma coisa sobre o sistema de crenças celtas e os ditos poderes do carvalho. Uma nova fornada de hambúrgueres e pães foi colocado na mesa. - Você pode me fazer um com muito catchup? – Julia pediu a Gaby – Eu preciso realmente usar o banheiro. Já volto. Ela correu para dentro, passando pelo piano e marchando até o corredor, onde ela felizmente encontrou a porta do banheiro em um instante. Depois que acabou de usá-lo, ela pegou o celular e escreveu para si mesma uma nota sobre o que Silke havia dito, antes que ela esquecesse dos detalhes importantes. Mais tarde seria a hora de caçar mais informações. Perdida em pensamentos, Julia caminhou até a cozinha para lavar as mãos, mas parou bruscamente quando viu Michael sentado na mesa da cozinha. Ele estava de costas para ela, mas se virou quando ela deu um passo para trás. - Oi – ele disse baixo. Julia ficou parada quando ele se levantou e caminhou para perto dela. - Oi – ela respondeu, quando se lembrou de como usar novamente sua voz. Ele parecia normal e relaxado. Certamente, este cara que estava sempre tão confortável consigo mesmo, não poderia ter chorado com sua música. Gaby devia estar vendo coisas. - Você tocou lindamente – ele disse naquele instante, como se estivesse lendo a mente dele. – Que música era aquela?


- Era minha. Ele concordou, um sorriso se espalhando por seu lindo rosto. - Eu ouvi. Repentinamente, algo dentro dela se abriu. Ele estava fazendo de novo: falando com ela como se ele a conhecesse há anos. Usando aquele tom confiante que sugeria que eles tinham uma história inteira juntos. Mas eles não tinham. E era culpa dele. - Eu escrevi para você. Você também pode ouvir isso? – ela disse, zombando cruelmente – Aposto que você está se perguntando como e por quê. Como eu pude ser tão tediosamente estúpida a ponto de escrever uma música para você e por que eu me apaixonei por um cara como você que despedaça meu coração, pisoteia os pedacinhos e esquece de mim na primeira oportunidade? Um silêncio pairou na cozinha. O rosto de Michael havia ficado pálido. - Julia – ele murmurou, o choque evidente em seus olhos. Ela balançou a cabeça, suas mãos tremendo. - Pare com isso – ela disse ríspida – Pare de me confundir desse jeito. Pare de me dar toda essa atenção que você não achava que eu merecia antes. Por que você está fazendo isso? Por quê? Sua respiração parou quando ele deu mais um passo à frente, pegando-a em seus braços sem dizer nada. Seu corpo era quente e seus braços ao seu redor eram protetores e estranhamente, toda sua raiva se dissipou. Seu coração desacelerou mesmo com a proximidade dos dois. Ele exalava uma calma que ela nunca havia sentido nele antes. Na verdade, ela nunca havia sentido esse tipo de influência de ninguém antes. Era assim que ela sempre tinha imaginado como seria estar nos braços dele, mas ela nunca havia sentido aquilo. Ela havia sentido a emoção da paixão entre eles algumas semanas atrás. Mas agora, ela se sentia cuidada em seus braços. - Não seja idiota – ela disparou, apesar do que sentia. – Me deixe ir, Michael. Isto é constrangedor. Suas bochechas coraram. Os braços dele escorregaram soltando-a e ele deu um passo para trás, um olhar triste em seu rosto. - Não posso deixá-la ir – ele disse baixo – Por favor, não me peça isso. Antes que Julia pudesse responder sua declaração confusa, ele se virou e foi em direção ao jardim. Timidamente, ela olhava para a sua figura que diminuía no horizonte. O que, em nome de Deus, estava acontecendo com ele. Aliás, o que estava acontecendo com ela? A forma como ela havia rastejado para os braços dele, como se Michael a tivesse confortado daquela forma muitas vezes antes e então, seu súbito estalo, dizendo-o para se afastar. Julia podia literalmente se dar um soco. Ela estava se tornando a rainha dos sinais confusos: primeiro ao lidar com Thorsten e agora com Michael. E a cobertura do grande bolo do constrangimento era que ela deixou escapar que havia escrito aquela música para ele. Ótimo! Excelente! Com um suspiro irritado ela se virou e caminhou para fora, onde Gaby estava esperando por ela com um enorme ponto de interrogação em seu olhar. - Onde é que você se meteu, mulher? Eu estava quase chamando a polícia. Aqui está: seu hambúrguer frio. – ela empurrou o prato na direção de Julia. - É, eu sei. Desculpe. Eu encontrei o Michael na cozinha. Nós meio que brigamos e depois ele tentou me beijar e fazer as pazes, ou algo assim. - Por que vocês estavam brigando? - Nada em particular. Não quero falar sobre isso. – Julia olhou para o outro lado do gramado, onde Marco e Michael estavam conversando com um outro cara que ela não conhecia. – Eu fui falar


que eu escrevi aquela música pra ele – ela murmurou, apesar de tudo. Gaby olhou para ela pensativa. - Sabe de uma coisa? Para mim, parecia que ele já sabia disso. Sabe, por causa do jeito que ele ficou enquanto você tocava. Talvez seja por isso que ele estava chorando, porque ele foi tocado pela forma como você gostava dele... Ou ainda gosta. Não sei. Julia balançou a cabeça. - Não faz sentido. Ele não tinha como saber disso. Você é a única pessoa que sabia que eu escrevi aquela música para ele. Gaby a lançou um olhar bravo. - Faz sentido sim. Algo muito estranho está acontecendo com Michael. Eu posso sentir. E sim, eu sei que você já tentou me dizer isso alguns dias atrás e eu não quis ouvir, mas eu não conseguia acreditar. Desculpe. - Sem problema. Eu entendo. - E por falar nisso, você notou que o horóscopo celta do Michael tem vários elementos relacionados ao acidente dele? – Gaby continuou, sussurrando – Sabe, o relâmpago, o carvalho... - Notei, e estava pensando em pesquisar mais sobre isso esta noite. Apesar de não saber se eu deveria, depois de toda aquela cena na cozinha. - Claro que você deveria. Você está curiosa, admita. Quer que eu te ajude? - Sim, quero. – Julia sorriu para a amiga. – Obrigada. Depois do jantar, elas deixaram a festa para ir à casa de Florian. Julia não queria gastar nenhum minuto além do necessário perto de Michael. E ela teria que evitá-lo no trabalho amanhã, também. - Vou pagar tudo adiantado – disse Tamara. Todos estavam reunidos em volta do computador de Florian para preencher os detalhes para as passagens aéreas. Com um largo sorriso, ela mostrou o cartão de crédito. – Por favor, me reembolsem assim que possível. - Que tipo de quarto vamos reservar em Londres? – Florian perguntou – Será que reservamos aqueles quartos com oito camas? - Você não pode estar falando sério – Gaby disse fingindo desdém – E nós vamos ter que ouvir você roncando a noite inteira? - É, ou então você conversando em seus sonhos melosos – Tamara cantarolou – Ah, sim, Moritz, assim, não pare... As garotas começaram a rir e Florian ergueu o queixo desafiadoramente. - Ótimo, façam como quiserem. Vocês se acomodem. Eu e o Axel vamos ficar juntos. - Onde Moritz e a banda vão ficar? – Axel quis saber. - Ah, em algum lugar mais luxuoso. Definitivamente fora do nosso pobre orçamento. Florian se levantou e abriu as portas duplas que davam para o terraço no telhado, enquanto Tamara finalizava as reservas deles e imprimia os cartões de embarque. - Vocês vão ficar para tomar alguma coisa? – ele perguntou. - Claro – Axel respondeu. Ele se levantou e lançou um rápido olhar para Gaby, com quem ainda não tinha falado diretamente, desde que ela e Julia chegaram. – Posso pegar algo para você, Srta. Melancólica? Gaby ergueu o olhar, despertando. - Ah, sim... Eu gostaria de uma cerveja, por favor. Obrigada. Julia riu. O simples fato de Gaby não ter ficado mal-humorada com o uso daquele apelido por Axel era prova suficiente de que algo estava acontecendo entre aqueles dois. - Por que você não pega uma para mim também, já que vai até lá? – ela gritou para o primo.


Enquanto isso, Gaby havia se instalado no computador. Ela abriu o Google e digitou "carvalhos druidas" na barra de pesquisa. Quando Julia sentou no descanso de braço e olhou por cima dos ombros dela, sua amiga havia acabado de clicar em um link chamado “Árvore Mágica”. - Uau – Gaby exalou – Você está vendo? Os carvalhos podem viver até dois mil anos de idade! E eles realmente atraem raios, de alguma forma. Olhe aqui: o mitológico Homem Verde inglês é um deus da floresta com um rosto formado por folhas de carvalho. – ela apontou à imagem na tela. - Venham aqui fora, suas nerds – Axel disse enquanto caminhava até elas com as bebidas. – Essa história de ficar em frente ao computador vai acabar com as vistas de vocês. - Isso é formidável, vindo de você. – Gaby disparou, levantando-se e pegando o copo de cerveja que Axel a entregara. – Você praticamente mora no computador. Ela foi ficando cada vez mais vermelha quando Axel passou um braço ao redor de seu corpo e respondeu: - Ainda assim, não é motivo para seguir meu mau exemplo. Venha, vamos lá para fora. Eu vou tirar você de perto desse aparelho do mal e te salvar. Julia viu o olhar de Gaby e não pode deixar de sorrir por seu rosto corado. Ela despertou quando seu celular vibrou em seu bolso. Um olhar na tela mostrou que, pelo menos, não era Michael. Era a sua mãe. - Oi, mãe. Tudo bem? - Oi querida. Que horas você vai voltar para casa? - Umas nove, eu acho. Por que? – a sua mãe parecia um pouco ansiosa. - Ah, não é nada. Seu pai acabou de ligar e Anne estava no quarto comigo quando começamos a discutir no telefone. Ela saiu. Eu acho que ela foi para o bosque porque a bicicleta dela sumiu. - Eu vou chegar aí daqui a pouco. Não se preocupe. – Julia desligou, suspirando. Anne não lidava com conflitos muito bem, e era ainda pior quando acontecia entre sua mãe e o pai ausente. Ela estava chateada, sem dúvida, então ela havia corrido para a floresta para espairecer. A esse respeito, Anne era parecida com ela. Sua mãe estava provavelmente se sentindo culpada naquele momento. - Vou dar uma saidinha – ela anunciou aos amigos no terraço. – Vou ter que ir ajudar a minha mãe. - Quer que eu vá com você? – Gaby perguntou. - Sim! – a atenção de Julia foi atraída pelo site que Gaby havia descoberto. Ela queria explorá-lo quando estivesse em casa. – Você vai dormir lá? - Boa ideia! Já faz um tempo desde a última noite do pijama. Na luz do sol que lentamente se afundava no horizonte, Julia caminhou até a beirada do terraço e olhou para o rio Salzach lá embaixo, que passava pela casa. Atrás de si, ela ouviu Tamara e Florian rindo alto e Axel animadamente contando alguma de suas piadas. Ela tentou imaginar Michael no meio do seu círculo de amigos e depois o substituiu por Thorsten. Claro, era um exercício sem sentido. Ela sabia muito bem que Thorsten se encaixaria perfeitamente ali. E ainda assim, de alguma forma, ela não conseguia se convencer a fazer essa escolha. Gaby se juntou a ela no parapeito. - Vamos? – ela perguntou. - Sim, vamos. Eu quero chegar em casa antes de escurecer. - Tamara acabou de se oferecer para nos deixar lá de carro, para podermos passar antes na minha casa e eu pegar algumas roupas para poder ir trabalhar na escola de equitação amanhã. Você sabe, calças que não vou me importar de ficarem sujas de cocô de cavalo. - Pobrezinha. Ah, bem, eu imagino o que deva ser pior: cocô de cavalo ou Michael. – Julia


revirou os olhos. – Falando nele, vamos ver o que mais conseguimos encontrar sobre os celtas e seus horóscopos de árvores esta noite. Gabi riu. - Muito provavelmente vamos descobrir que todas as pessoas com carvalhos em seus horóscopos são idiotas arrogantes. Quinze minutos depois, Tamara encostou em frente à casa de Julia. Quando Julia saiu do carro, ela viu a mãe em pé no portão, olhando para a rua em ambas as direções. O rosto da Sra. Gunther se iluminou quando viu sua filha mais velha. - Oi, querida. Fiquei feliz que você chegou cedo em casa. Anne ainda não voltou e ela não está na casa de Sabine também. O tom grave e preocupado na voz de sua mãe não passou despercebido por Julia. Ela trocou um olhar com Gaby. - Nós vamos procurá-la na floresta – a amiga disse, decidida – Vamos, vamos de bicicleta. Elas caminharam para o galpão e pegaram as duas bicicletas estacionadas ali. Julia não conseguia tirar a careta de seu rosto enquanto dirigia para os limites da floresta. - Eu vou ter uma conversa séria com a Anne – ela disse, severamente – Ela não pode fazer isso. Ela não pode simplesmente sair de casa e ficar fora por horas e deixar a minha mãe doente de preocupação. Minha mãe já se sente uma péssima mãe, porque não consegue fazer o meu pai aparecer por aqui com mais frequência. Ela não precisa de mais essa. Quando elas chegaram ao limite da floresta, as garotas desceram das bicicletas. Julia hesitantemente olhou para o caminho da floresta, que corria entre as árvores. Não demoraria muito para que o bosque estivesse totalmente escuro. Será que a Anne realmente se aventuraria por ali completamente sozinha? Ela não conseguia imaginar aquilo; sua irmã era muito medrosa. - Será que devemos gritar por ela? – Gaby sugeriu, parecendo um pouco perdida. Julia concordou. - Anne! – ela gritou com todas as suas forças. – Onde você está? - Anne! – Gaby gritou em outra direção. – Venha para casa! Para o grande alívio de Julia, não levou mais do que um minuto para que uma pequena figura humana dirigindo uma bicicleta aparecesse em uma curva da estrada. Ela cutucou Gaby. - Lá está ela. Assim que Anne parou em frente a elas, Julia passou os braços ao redor da sua irmãzinha. Repentinamente, ela não conseguiu ficar mais brava. Tudo o que ela sentiu foi uma imensa gratidão por Anne estar lá. - O que aconteceu? – ela perguntou gentilmente, acariciando o cabelo macio de Anne. - Eles estavam brigando de novo – Anne respondeu baixinho – Eu não queria ouvir aquilo. - A mamãe está triste. Você não devia ter ficado fora tanto tempo. - Eu sei. Desculpe. Eu não sabia o que fazer. - Bem, estamos felizes que você está aqui – Gaby disse docemente, colocando uma mão sobre o ombro da garotinha. Elas voltaram a subir em suas bicicletas. - Então, para onde você foi? – Julia perguntou curiosa. Anne permaneceu quieta por um instante. - Não vou falar – ela respondeu resoluta, dirigindo para longe de Gaby e Julia. Julia olhou para as costas de Anne, piscando espantada. Aquela era uma reação estranha. Anne poderia ter dito apenas um “por aí”, se quisesse ter soado vaga, mas ela não disse. Talvez ela tivesse


um lugar especial na floresta que não queria que ninguém soubesse, assim como ela. Julia suspirou. Seu próprio lugar especial havia perdido muito de seu brilho: o acidente de Michael havia acontecido próximo ao carvalho, e além disso, sua árvore de abraçar vinha parecendo moribunda. Estava provavelmente doente, ou talvez, havia sido fortemente atingida por um raio na tempestade, como no mito druida. Seus pensamentos voltaram para as histórias de Silke e a informação que Gaby havia encontrado online. Era hora de fazer umas pesquisas quando chegassem em casa. Sua mãe puxou Anne para dentro, com um misto de alívio, indignação e mimos. Gaby e Julia pegaram salgadinhos e refrigerante do armário e desapareceram para o andar de cima, para colocar o colchão extra no quarto de Julia e ligar o laptop. - As detetives do Google estão prontas – Gaby declarou, clicando duas vezes sobre o ícone do Firefox. Não demorou muito para que ela encontrasse novamente o site que haviam visto mais cedo. Elas continuaram a ler, cativadas pelas muitas histórias que o website trazia. Havia informação sobre os velhos carvalhos no mundo, o significado do carvalho nas diferentes culturas, além de um longo parágrafo sobre os druidas e suas técnicas de meditação. Os olhos de Julia se arregalaram quando ela chegou a uma informação familiar. - Ei, veja, isso é o que a Silke nos contou. – ela apontou para a tela e leu em voz alta. – O carvalho conecta o fogo cósmico do raio com os poderes da terra. Além disso, o poder desta árvore abre um portal para os poderes sobrenaturais no dia do Solstício de Verão. - Solstício – Gaby murmurou, rolando para baixo. – Que é em... Deixe-me procurar. Ah, aqui está. Julia ficou boquiaberta diante da tela. Ela não conseguia dizer uma palavra. Incrédula, ela encarou a tabela dos feriados celtas na tela. O solstício de verão era no dia 21 de junho. O dia do acidente de Michael.


7. - É quase como se ele tivesse trazido algo de volta com ele, quando recobrou a consciência. – Julia estava sentada na cama, mastigando algumas batatas. - Algo? – Gaby disparou. Julia ficou paralisada. Ela pareceria lunática, mas ela simplesmente tinha que tirar aquilo da cabeça. - Sim. Algo de outro mundo. Um estranho tipo de energia. Parece que há algum tipo de força sobrenatural o transformando por dentro. Talvez seja por isso que ele sobreviveu ao acidente. Gaby olhou para ela, pensativa. - Então toda aquela saga celta sobre o carvalho e a força do relâmpago poderia realmente ser verdade? - Não faço a mínima ideia. – Julia encarou a tela de seu laptop, agora desligado. – Eu sei que os druidas eram tidos em alta conta em tempos antigos, então eles não podem ter sido totalmente loucos. Mas isso certamente parece uma loucura, eu admito. - Loucura com L maiúsculo. – Gaby concordou. – Algo estranho está acontecendo com Michael, entretanto. Até eu posso ver isso. Julia respirou fundo. - O mais estúpido é que eu quero que ele me note, enquanto ao mesmo tempo eu não suporto o fato de que ele está falando tão docemente comigo, fingindo que somos amiguinhos, como se nada tivesse acontecido. Quero dizer, que nada faz sentido. Ele nem mesmo se desculpou. Ela se recordou da estranha conversa na livraria. O que foi que Michael havia dito a ela? "Sinto muito que ele a tenha machucado desta forma." Ele estava falando de seu antigo ser cafajeste? Ela não conseguia entende-lo. Naquela noite, Julia sonhou com a livraria. Michael ficava aparecendo onde quer que ela fosse, apesar de todas as suas tentativas de evitá-lo, e Thorsten estava lá também, querendo comprar uma velha enciclopédia a qualquer custo. Quando o despertador a acordou, ela sentia tudo, menos descanso. Era como se ela já tivesse trabalhado a noite inteira. Ainda meio sonolenta, ela se arrastou para o banheiro para um banho rápido e caminhou de volta para o quarto para acordar Gaby. A porta para o quarto de Anne estava entreaberta e quando ela olhou para dentro, Julia viu Anne sentada em sua escrivaninha, escrevendo algo em seu diário. Ela empurrou a porta para entrar e dar um rápido abraço em sua irmã. A cabeça de Anne se ergueu e ela rapidamente fechou o seu diário. - Você não sabe bater? – ela disse, asperamente. - Como é que é? – Julia olhou boquiaberta para a irmã. – Por que a formalidade, tão de repente? Será que eu devo marcar uma reunião da próxima vez? Anne puxou o diário em sua direção e o apertou ao peito como se ele contivesse uma pilha de notas de cem euros. - Desculpe – ela murmurou – Você me assustou. Eu estava distraída escrevendo. - Ah, isso é muito bom! Você vai escrever uma história? Anne deu de ombros. - Talvez. Mas você só está autorizada a ler quando estiver pronta. Julia riu. - Sim, sim, eu sei como é. Igual à sua casa na árvore, não é? Você está testando minha paciência,


garotinha. Anne tinha um olhar estranho. - Sim, exatamente desse jeito. Desculpe. – ela abriu a gaveta de sua escrivaninha e empurrou o diário para dentro. – Vamos tomar café da manhã? - Hmm. – Julia murmurou. Anne estava se comportando de um jeito esquisito há algum tempo, ou talvez ela estivesse apenas tendo dificuldades para se adaptar. Sua irmãzinha estava crescendo depressa e começando a desenvolver uma forte personalidade. Ela provavelmente ficaria ainda mais teimosa quando chegasse à puberdade. Gaby estava acordada quando Julia entrou no quarto. - Ei – ela disse – Você dormiu direito? Ficou rolando pra lá e pra cá a noite inteira. - Sim, dormi bem. Mas sonhei bastante. - Você disse o nome do Michael algumas vezes. - Oh. – Julia fez uma careta. – Sim, devo ter falado, mesmo. Ele me persegue tanto que não me deixa em paz nem em sonho. Gaby começou a rir. - E você acha isso ruim? – ela piscou exageradamente. - Claro que eu acho isso ruim! Eu quero saber o que está acontecendo com ele antes que eu possa me alegrar com o fato de que ele está me visitando em sonho. Quando elas desceram e foram para a cozinha, a mãe de Julia havia acabado de colocar um prato com torradas e uma grande vasilha de ovos mexidos na mesa. - Mãe, você é demais. – Julia agradeceu. – Estamos famintas. Gaby e Julia começaram a devorar seu café-da-manhã. Anne estava empoleirada na ponta do banco da cozinha lendo um exemplar antigo de Harry Potter enquanto comia uma banana. - A mamãe vai me levar ao cinema depois de café-da-manhã – ela anunciou alegremente – Ela vai trabalhar no turno da tarde. Julia lançou um olhar questionador à mãe, que tinha cara de quem queria fazer as pazes. Anne talvez ainda estivesse chateada pela briga de ontem. Talvez ela estivesse escrevendo sobre isso em seu diário. Depois do café da manhã, as duas garotas caminharam até o ponto de ônibus. Elas tomaram o mesmo ônibus na primeira parte da viagem, mas depois de algumas paradas, Gaby teve que mudar, para chegar à escola de equitação. - Mantenha-me informada sobre o desenvolvimento no trabalho, ok? – ela sorriu maliciosamente. – Quero saber como o Michael vai se comportar com você hoje. Julia revirou os olhos. - Pode deixar. Divirta-se tirando estrume dos estábulos. Seu estômago começou a revirar de um jeito estranho quando o ônibus se aproximou da Cidade Velha. Julia desceu e caminhou hesitante para a livraria. Na entrada da Höllrigl, Donna, Silke e Marco já estavam esperando a loja abrir. Nenhum sinal de Michael e Julia suspirou aliviada. Ela secretamente esperava que ele não aparecesse naquele dia. Talvez estivesse doente, ou talvez ele tivesse decidido pedir demissão. - Olá – Julia cumprimentou os colegas – O Martin ainda não abriu a loja? Silke balançou a cabeça. - Ele acabou de ligar para o Marco para nos avisar que se atrasará. E bem, ninguém vai sair quebrando as portas para entrar e comprar livros na segunda-feira de manhã, de qualquer forma. Depois de dez minutos, Martin e Michael viraram a esquina. Julia gemeu internamente. Então ele


vinha sim trabalhar hoje. - Desculpe – Martin disse, ofegante – Não estou dando um exemplo muito bom. Porém, é bom ver que pelo menos vocês todos chegaram na hora, como deveriam. Marco tossiu alto e apontou um quase imperceptível dedo a Michael. - Exceto alguns. – Martin acrescentou sorrindo. Ele destrancou a porta e eles entraram, um de cada vez. Não demorou muito para Martin dar uma tarefa matinal a cada um. Julia foi designada para o estoque, com uma lista de títulos que seu chefe queria que ela colocasse em promoção naquela semana. Era uma tarefa que ela podia fazer sozinha, o que a deixava agradecida. Parecia que ela teria uma manhã tranquila. Cantarolando uma melodia feliz, Julia andou pelos corredores verificando as prateleiras em busca dos títulos que Martin queria que ela selecionasse. A lista continha algumas coletâneas de poemas que eram para serem vendidas com cinquenta por cento de desconto, o que era uma boa notícia para ela: ela colocaria alguns de lado para que pudesse comprá-los antes que os clientes normais da Höllrigl tivessem a chance de pegar. Julia estava ocupada classificando uma pilha de romances quando ouviu uma leve batida na porta. Quando ela se abriu, Michael estava em pé na soleira, sorrindo para ela. - Martin quer saber se você precisa de alguma ajuda – ele disse. Ela rapidamente balançou a cabeça. - Não, estou bem – ela respondeu secamente. Imperturbável, ele entrou no estoque. - Bem, está meio tranquilo lá embaixo no momento. Por que não te ajudo um pouco? Se eu ler os títulos da lista, você pode procurá-los e pegá-los da prateleira. Vai ser bem mais rápido. Suprimindo um grunhido, Julia ficou de pé. Manhã tranquila? Que nada! Agora ela ficaria constantemente preocupada com o fato de ele estar no mesmo ambiente, esperando que ele não puxasse o assunto do encontro estranho na festa. Eles deveriam ter chamado aquele dia de segundafeira da taxação mental. Michael se sentou no banquinho perto da porta, pegando a lista do chão, no caminho. - Herman Hesse, The Song of Life – ele disse em voz alta. Julia rapidamente se dirigiu à seção da letra H e procurou pelo título que Michael a havia dado. Ele leu vários outros e ela os procurou da mesma forma, sem trocar uma só palavra com ele ou mesmo olhar em sua direção. Quando ela se virou porque ele ficou em silêncio por alguns instantes, ela viu que ele havia colocado a lista de lado e estava olhando a pilha de livros que ela havia separado para si. - Estes são meus. – ela disparou involuntariamente, como se ele estivesse tentando roubá-los dela. Michael Kolbe lendo poemas para se divertir? De jeito nenhum. - Rainer Maria Rilke – ele disse, olhando fascinado para o livro em suas mãos. – Não o conheço. – ele a entregou a coletânea de poemas. – Ei, por que você não pega esses poemas para ler para mim? Aposto que você é boa nisso. Julia ergueu uma sobrancelha. - Pensei que você tivesse vindo até aqui para me ajudar para que trabalhássemos mais rápido. Ele deu um sorriso torto e seu coração perdeu o compasso. - Ah, vamos. Viva um pouco. Um pequeno intervalo não fará mal. Ela bufou nervosa e se sentou no chão ao lado do banco em que Michael estava sentado. Folheando as páginas ela escolheu um poema aleatório e acabou lendo o vigésimo quinto Soneto a


Orfeu. Mas a ti, que eu conhecia, a ti quero agora Como a uma flor de que nem sei o nome, Lembrar mais uma vez pra te mostrar aos outros, Roubada, bela amiga do invencível grito. Ela leu com uma voz que sumia a cada estrofe. Julia sentiu o calor subir às suas bochechas. De alguma forma, aquele poema parecia que era sobre eles. Ela o havia amado como uma flor sem nome, porque ela não tinha ideia de quem ele havia sido. Ela estava procurando lembrar da sua imagem, se apegar a uma memória de um cara romântico e misterioso que nem mesmo era real. E claro, ele havia quase sido roubado muito cedo, além da descrição da “bela amiga do invencível grito” parecia se adequar perfeitamente a ele. Que ironia do destino a havia feito ler aquele poema para ele, dentre todos os sonetos no maldito livro? E então, ele colocou uma mão em seu ombro. Ela ergueu os olhos, como um cervo preso em uma armadilha, sua face queimando quando os olhos dele encararam os dela, avaliando seus pensamentos. - Sobre o que é este poema? – ele disse em uma voz obscura. Ah, não. Michael estava entendendo tudo. Ele podia sentir que esse poema a lembrava dele. Ele devia saber que a estava deixando nervosa e que ela não tinha mais certeza se conseguiria resistir aos seus encantos. - Eu... Eu não sei – ela gaguejou – Não sou especialista em Rilke. Ele balançou a cabeça. - Quero dizer, o que esse poema significa para você – ele murmurou. Julia engoliu seco quando ele foi em sua direção e a energia no local se transformou. Ficar ali seria muito perigoso; ela tinha que sair imediatamente. - Eu, é, não tenho certeza – Julia disse, fechando o livro abruptamente. – Hã, me desculpe, eu preciso beber algo. Minha garganta está seca. Ela se levantou apressadamente, atirando-se porta afora sem esperar resposta. Com o coração martelando, ela cruzou correndo até a sala de descanso. Os passos de Michael ecoavam atrás dela. Ofegante, ela fechou a porta e encostou no balcão da cozinha no canto direito, as mãos trêmulas. Mas então, a porta se abriu novamente. Julia foi para longe de Michael, que estava indo em sua direção. - Vá embora – ela disse entre dentes. Ele parou em frente a ela, seus olhos pedindo algo para o qual ela não tinha resposta. Sem palavras, ele ergueu uma mão e gentilmente acariciou o seu braço. - Estou falando sério – Julia disse com a voz rouca – Me deixe em paz. Ele chegou ainda mais perto se inclinando em sua direção, seu corpo a empurrando para o balcão. Sua respiração se acelerou quando Michael usou sua outra mão para acariciar suas costas, descansando os dedos logo acima do cóccix. - Não posso – ele respondeu parecendo desesperado. Ele a havia dito a mesma coisa na festa ontem, e ainda era algo estúpido e inexplicável. - Por que não? Michael respirou fundo, encarando-a a alguns centímetros de distância. - Porque estou apaixonado por você – ele disse firme, mas em voz baixa. Aquilo era loucura. Ele realmente pensava que ela cairia na mesma armadilha duas vezes? Julia balançou a cabeça, inexpressiva. - Eu... Eu não acredito em você – ela sussurrou de modo quase inaudível, as lágrimas se


acumulando em seus olhos. Ela tinha que dizer aquilo a ele, porque ela tinha que se proteger, mas queria muito acreditar nele. Michael pegou seu rosto com as duas mãos, limpando uma lágrima solitária que corria por sua bochecha. - Desculpe – ele murmurou. E então a beijou. Muito, muito suavemente, ele beijou seus lábios. Era um carinho tão inseguro que mal poderia ser considerado um beijo, mas o corpo de Julia implorava pela diferença: ela respondia ao seu toque como a gasolina responde à chama. A sua mente estava tentando ser sensata, mas o seu corpo, definitivamente não. Um rubor iluminou sua face quando ela avidamente o beijou de volta. Quando ela o ouviu gemer suavemente, ficou ainda mais animada. Tudo parecia perfeito. Aquele sim era o beijo que ela sempre imaginou nos dias em que havia fantasiado com Michael. Ela colocou os braços ao redor do corpo dele e o puxou para mais perto. Senti-lo tão perto era muito bom. Quando ele a apertou e retribuiu seus beijos ardentes com a mesma paixão, Julia não teve escolha a não ser acreditar que ele estava falando a verdade. Por mais confuso que estivesse, ele estava realmente apaixonado por ela. Aquilo era real. Ela podia sentir pelas batidas de seu coração, a forma como suas mãos quentes e gentis a acariciavam, a tensão entre os dois. Ela nunca havia se sentido assim antes, nem mesmo durante aquela noite na casa dele. A respiração de Michael estava entrecortada quando ele finalmente se afastou. Ele tocou sua face e sorriu. - Tenho algo para você – ele disse com a voz baixa, puxando um papel dobrado do bolso da sua calça. Julia o pegou, olhando-o sem entender. - O que é isso? - Eu escrevi para você. Ontem à noite. – Michael timidamente olhou para o chão. – É um poema. - Para mim? – Julia o encarou boquiaberta. Em qual universo paralelo um cara como Michael escreveria um poema para ela? Aquilo só podia ser um sonho. Ela não havia acordado e Gaby logo a bateria na cara com o travesseiro, para tirá-la do País das Maravilhas. - Espero que você me dê a honra de lê-lo. Eu nunca escrevi nada parecido antes. O tremor inseguro em sua voz fez o coração de Julia derreter. Se aquilo não fosse um sonho, então, definitivamente era um sonho realizado. - Claro que vou ler – ela disse apressadamente. – Só estou... Sem palavras. Honestamente, eu não sei o que dizer. Pelos anjos do céu, ele a havia beijado, pedido desculpas e escrito um poema para ela. Não havia palavras que pudessem descrever aquilo. A conversa particular deles foi interrompida por Martin que chamava por Michael do vão da escada. - Kolbe! Você pode descer aqui! Há clientes que precisam de sua ajuda. Michael deu um passo para trás e abriu a porta. - Já estou indo! – ele disse de volta, enquanto sorria maliciosamente para ela. Julia sorriu de volta, encorajando-o. - Vai – ela disse – Vai fazer seu trabalho. E obrigada. Conversamos mais tarde. A porta se fechou. Com os dedos trêmulos, ela desdobrou a folha, resistindo à vontade de começar a ler imediatamente. Primeiro, foi até a chaleira elétrica, para fazer um chá para si. Enquanto seu saquinho de chá verde estava mergulhado em uma caneca de água quente, ela olhou de


lado para o poema sobre a mesa, seus pensamentos voltando para o beijo. Julia gentilmente apertou os lábios e repentinamente desejou que Michael não tivesse sido chamado lá para baixo. Ela não teria se importado de beijá-lo mais um pouco. Mesmo não tendo ideia do que havia provocado a sua mudança de personalidade, uma coisa era absolutamente certa: os sentimentos dele eram verdadeiros. Ela não tinha mais dúvidas. Quando o chá ficou pronto, Julia sentou-se à mesa da cozinha e deu um pequeno gole na bebida antes de pegar a folha para ler o poema que Michael a havia escrito. No fundo Quase timidamente Em uma voz suave e fina Eu te chamo Você pode me ouvir? Eu toco o dourado alvorecer No ciclo da vida Eu sou o anjo que te acompanha Minha criança, minha estrela Minha luz, meu amor Você me faz ver Você pode me ouvir? As lágrimas se acumulavam em seus olhos. Ele havia escrito um poema maravilhoso. Ele a fazia sentir como se tivesse estado com ela pelas incontáveis horas que passava na floresta, lendo sua mente enquanto ela sonhava e cantava e escrevia seus próprios poemas. Suas palavras eram tão profundas e místicas. Ela tinha que contar para a melhor amiga. Imediatamente. Quando Silke invadiu a sala, Julia rapidamente guardou o poema. - Ei, o que você está fazendo? Já está fazendo um intervalo? - a colega perguntou, surpresa. - Hã, sim. Eu estava morrendo de sede, sabe? – Julia ergueu a caneca, explicativamente. – De qualquer forma, já estou de saída. Tenho umas coisas para terminar. - Desculpe! Não queria expulsar você daqui – Silke falou, enquanto Julia voltava para o estoque. Além de terminar a sua tarefa, ela ainda tinha que pegar a bolsa na sala, porque seu celular estava lá. Gaby tinha que ouvir as novidades. "PRECISO falar c/ vc. M me bjou e me escreveu um poema!! Vc tem um tempo hj à noite? bj" Demorou apenas um minuto para a resposta chegar. "Q??? Temos q conversar AGORA! Te vejo dps do trabalho." Julia guardou o celular, seu coração martelando no peito. Ela não conseguia afastar o sentimento de antecipação que percorria seu corpo. Apenas mais duas horas até o almoço. Será que Michael falaria com ela e, se sim, o que ele falaria? O que ela falaria? - Ei, sua eremita! – Donna enfiou a cabeça para dentro da sala ao meio-dia e meia. – Você vem? É hora do intervalo. Julia se virou com dificuldade. Seus joelhos estavam doloridos de tanto se arrastar pelo chão procurando por um livro na seção R. - Sim, já vou – ela respondeu, apesar de não estar com muita fome. Seu estômago estava muito ansioso para aquilo. Caminhando lentamente atrás de Donna, ela entrou na sala de descanso, apertando sua marmita contra o corpo. Lá dentro, Marco, Michael e Martin haviam ocupado a mesa perto da cafeteira. Silke estava colocando um pouco de suco no balcão e se virou quando as garotas entraram.


- O que vocês me dizem de fazermos uma mesa para nós? – ela riu. – Eu acho que o contato entre homens e mulheres não é encorajado nesta livraria. – ela apontou para a mesa dos homens. Julia mordeu o lábio. Se Silke soubesse o quanto as coisas haviam ficado íntimas entre alguns funcionários há pouquíssimo tempo... - Talvez você esteja tirando as conclusões erradas. – ela comentou – Particularmente, eu acredito que apenas as pessoas com nome que comece com M é que podem sentar naquela mesa. Donna começou a rir. - Garota, você deve ter pirado lá dentro daquela sala de estoque, escolhendo livros a manhã inteira. Você está classificando as pessoas por letras, pelo amor de Deus! Rindo e conversando, as garotas se sentaram na outra mesa. Julia olhou de relance para Michael, que a seguiu com o olhar. Ela lhe deu um meio sorriso hesitante, que o fez sorrir largamente de volta. Forçando-se a parar de rir como uma boba, ela logo se sentou para comer seu rocambole de queijo. Seu apetite havia voltado de repente. Donna e Silke estavam conversando sem parar e ela comentava algo, vez ou outra. Quando Julia se levantou para pegar mais um copo de suco, Michael foi até a geladeira e parou ao seu lado. - Quer me acompanhar lá fora? – ele murmurou, mostrando um maço de cigarros. Julia olhou nervosamente para ele. - Hã, sim, claro. – ela gaguejou. Ela não era verdadeiramente uma fumante, mas faria uma exceção para ter a chance de tê-lo só para ela por alguns minutos. Ela colocou o copo na pia e seguiu Michael porta afora, ignorando Donna e Silke, que a encaravam inquiridoramente. Com os joelhos trêmulos, ela desceu as escadas e foi em direção ao fundo da loja. Michael abriu a porta que dava para a pequena área que era usada para carga e descarga. Julia hesitou quando ele a ofereceu o maço. - Na verdade, eu não fumo. – ela estava envergonhada de confessar. – Eu fumei aquele dia na sua casa, mas eu não estava, bem... – ela parou, procurando as palavras. – Eu não estava sendo eu mesma – ela finalmente falou. Agora que havia dito aquilo em voz alta, ela percebia que era verdade. Ela havia fingido ser outra pessoa naquela noite, apenas para atender às expectativas dele. Michael guardou os cigarros no bolso da camisa. - Para ser sincero, eu também não estou mais muito a fim de fumar. – ele deu de ombros. – Desde o acidente. – ele passou um braço ao redor dela. – Só queria falar com você. Julia descansou o corpo contra o dele, fechando os olhos e curtindo o momento. - Eu adorei o poema – ela murmurou – Muito obrigada. Ele ergueu o queixo dela e examinou seu rosto. - Você gostou mesmo? Você está... Sendo você mesma agora? Julia corou. Parando para pensar, a forma como havia tentado desesperadamente agraadá-lo no passado era horrível. - Sim, eu gostei – ela sussurrou. Ele sorriu docemente para ela. - Fico feliz em ouvir isso – murmurou, abaixando a cabeça para beijá-la carinhosamente. Julia passou os braços ao redor de seu pescoço e retribuiu o beijo, seu coração batendo furiosamente enquanto as mãos dele passeavam pelo seu corpo, antes de pararem em sua cintura e a puxarem para mais perto. Quando ele a tocava, era como se o corpo dela estivesse em paz e à mercê


de uma tempestade, tudo ao mesmo tempo. Ele a acalmava e a confortava, mas ele também a deixava eufórica. Ela estava prestes a implorar por mais beijos quando ele se soltou de seu abraço e deu um passo para trás. - Acho que temos que voltar lá para cima – ele disse, ligeiramente sem fôlego. - Uma pena – Julia rebateu. Michael pegou em sua mão. - Amanhã eu vou apenas trabalhar de manhã – ele disse, com uma esperança evidente em sua voz. – E você? Talvez a gente possa sair à tarde. Ir ao parque ou alguma outra coisa. O tempo está bom. Julia repassou seu horário mentalmente. - Vou pedir ao Martin para mudar a minha folga de quinta para amanhã – respondeu, sorrindo para ele. Ela podia jurar que seu coração explodiria de alegria e amor. Ele a havia chamado para sair! E daquela vez, ele realmente queria ir a algum lugar e não apenas ficar em seu quarto, para ver até que ponto as coisas iriam com ela. Michael sorriu alegremente. - Espero que ele diga sim – ele disse, com um brilho verdadeiro no olhar, dando a impressão de que era a primeira vez que a estava convidando para sair. O fato de que ele a havia dispensado depois daquele primeiro encontro parecia uma memória distante, mas não completamente apagada da mente de Julia: uma pequena pontada de insegurança atravessou o seu coração. Ela ainda não entendia aquela mudança súbita de comportamento, mas não era uma ideia muito boa trazer à tona o assunto naquele momento. Ela perguntaria a ele depois que tivessem passado mais tempo juntos. Ou ela nem perguntaria. Era também perfeitamente possível que ele nem houvesse notado sua própria mudança de caráter depois de ter batido a cabeça e naquele caso, ela teria que ficar de boca fechada para sempre. Ela teria que se ocupar de conhecer o novo Michael e não se preocupar com o antigo. Quando o relógio bateu cinco horas, Julia deixou a livraria animada. Tudo havia acontecido da forma que ela tinha desejado: Martin concordara com a tarde de folga no dia seguinte, e ainda, havia conseguido comprar os livros de poemas com descontos. Seu chefe a havia dado sessenta por cento de desconto, ao invés de cinquenta. Agora, ela poderia ler mais poemas para Michael quando eles fossem ao parque juntos. Ela não estava mais com vergonha daquilo. Donna estava esperando no ponto de ônibus e laçou um olhar alegre para Julia quando a colega se sentou ao seu lado. - Então, hora de esclarecer as coisas. Onde você e o Michael foram na hora do almoço? - Lá fora. Fumar. - Claro. Não acredito. Mas eu aposto que as coisas devem ter ficado bem quentes entre vocês. – Donna lhe deu uma cotovelada. Julia riu nervosa. - Está bem, você está certa. Está rolando algo entre nós. De novo. - Parece bom. É por isso que você implorou ao Martin para trocar sua folga? - É. Vamos ao parque amanhã. – ela sorriu animada. – Eu ainda não consigo acreditar. Donna revirou os olhos. - Vai haver material censurado, não vai? Romance no trabalho. Mamma mia! Não me faça desviar o olhar cada vez que eu entrar no estoque e vocês estiverem fumando. - Vamos manter a censura livre, eu prometo. Naquele momento, o ônibus de Julia chegou ao ponto. Ela acenou para Donna antes de embarcar. Como seu MP3 estava sem bateria, se distraiu lendo o poema de Michael várias e várias vezes e


acabou por decorá-lo pouco antes de chegar em Birkensiedlung. A vizinhança estava calma e tranquila, muito diferente do burburinho da cidade depois de mais um dia de trabalho. Os pássaros estavam cantando nas árvores que contornavam a rua pela qual Julia caminhava para chegar em casa. Quando ela chegou em sua rua, Julia desacelerou o passo, uma música de violão estava vindo do quintal da família Ebner. Curiosa, ela enfiou a cabeça pela cerca viva que circundava o gramado deles e viu Thorsten sentado ali. Ele estava tocando uma linda melodia em um violão clássico. Julia o ouviu, prendendo a respiração e se arrependeu por ter chegado tão perto quando ele ergueu a cabeça, parando de tocar imediatamente. - Desculpe interrompê-lo – ela disse, culpada. Thorsten sorriu. - Você não está interrompendo. Só não estou acostumado com plateia. – ele deu de ombros. - Vou embora, ok? – Julia murmurou, mas ele balançou a cabeça. - Não, não está ok. Eu não seria bobo. Venha, sente ao meu lado. Talvez você possa cantar algo. Eu ainda não tenho nenhuma letra para acompanhar a minha música. - ele gesticulou para que ela se sentasse. Julia abriu o portão hesitante. Ela havia entendido direito? Thorsten tinha mesmo escrito aquela melodia? Aquilo era incrível. Ultimamente, ela vivia tropeçando em caras lindos e criativos que pareciam gostar dela. - Eu normalmente não escrevo letras para as minhas músicas, para ser sincera. – Julia admitiu ao se sentar. – Eu normalmente só toco músicas instrumentais no piano. Entretanto, quando Thorsten recomeçou a tocar sua música, ela sentiu a inspiração borbulhar. O poema de Michael ainda estava em sua mente, e sem pensar, ela começou a cantá-lo, incorporando as palavras na melodia de Thorsten. Tudo o que ela sentia por Michael se afinava na música e soava maravilhoso, combinando com o delicado dedilhar de Thorsten. Julia o olhou furtivamente, surpresa. Ela nunca tinha pensado que fazer música com alguém seria tão simples. Quando ela cantou a última estrofe e a música acabou, olhou para ele. Thorsten a encarava atentamente. - Isso ficou realmente lindo – ele disse, com a voz entrecortada. Ele colocou o violão de lado e se inclinou para ela. – Você é realmente linda – ele murmurou suavemente. Por um momento, os dois ficaram parados. O coração de Julia veio até a boca quando a mão de Thorsten tocou seu pescoço e ele se aproximou ainda mais. Algo em seu estômago se remexeu. Ela sabia o que ele estava prestes a fazer, mas não podia se mover, não podia falar não para ele. Ou será que ela não queria falar não? Ela não teve tempo de pensar sobre aquilo. Os lábios quentes de Thorsten atingiram os seus. Julia involuntariamente fechou os olhos e sentiu o calor irradiar da pele dele para a sua. O hálito dele soprava suavemente por entre seus lábios entreabertos e seus dedos estavam enrolados nos cabelos dela, acariciando sua nuca. Ele a beijou de novo, suavemente e depois de um jeito mais apaixonado, deixando o gosto dele em sua boca. E então, ele vagarosamente a soltou e olhou dentro dos seus olhos, a alguns centímetros de seu rosto. - Não pude resistir – ele sussurrou – Você estava cantando tão lindamente e parecia tão inocente e doce. Você estava angelical. Julia devolveu o olhar, seu rosto queimando de vergonha. Ela tinha parecido inocente e doce porque tinha cantado as palavras de Michael. Porque estava apaixonada por ele. E ainda assim, ela havia deixado Thorsten a beijar, sem fazer qualquer objeção. Ela não havia feito nada para impedi-


lo. O que diabos ela estava pensando? O silêncio estava ficando incômodo. Ela tinha que dizer algo a ele. - Eu... Não me importo – ela gaguejou, vacilando. – Não, não é verdade. Eu me importo sim. Quero dizer... Um sorriso divertido puxou o canto dos lábios dele. - Como? O que você quer dizer? Ela mordeu o lábio. - Eu devia ter impedido você. - Sim, ok. Acho que você falhou. – Thorsten riu maliciosamente. Julia corou ainda mais, e engoliu seco. - Eu te beijei de volta? – ela sussurrou quase inaudivelmente. Os olhos azuis de Thorsten a encararam e no silêncio que se seguiu, ela podia ouvir o sangue correndo em suas veias e sentir as mãos dele ainda segurando as suas. - Para mim, pareceu que sim – ele respondeu em uma voz baixa e séria. - Desculpe. – ela gaguejou. – Eu não deveria. Eu não queria que isso tivesse acontecido. - Você ainda está apaixonada por ele? – Thorsten perguntou, transparecendo dor em sua voz. Julia olhou incomodada para as suas mãos segurando as dele. - Vou sair com ele amanhã. Desculpe. Eu honestamente não sei o que está havendo comigo. Bem, estou dando os sinais errados. E eu não deveria estar fazendo isso. Eu... Ela parou de falar quando Thorsten tocou sua bochecha com uma mão. - Está tudo bem. Eu a peguei meio desprevenida, acho. Apenas me deixe ser seu amigo, ok? – ele beijou a sua testa e se levantou. – Divirta-se amanhã. Thorsten pegou o seu violão e entrou em casa apressado. Julia se xingou mentalmente. Ela estava sendo uma vaca! Era óbvio que ela o havia magoado, mesmo ele dizendo que ainda queria ser seu amigo. Agora que ela estava saindo de novo com o Michael, talvez fosse melhor evitá-lo por um tempo. Mas como ela faria aquilo, se ele morava do outro lado da rua? Sentindo-se farta, ela se levantou e se arrastou para fora do jardim. Claro, Gaby chegaria a qualquer minuto para ouvir tudo sobre Michael. Ela não tinha certeza sobre como incluiria esse episódio no resumo do seu dia cheio de novidades, mesmo Gaby tendo recomendado que ela saísse com os dois caras para decidir de qual ela gostava mais. - Cheguei – ela disse, quando entrou em casa. Nenhuma resposta. A sua mãe ainda estava trabalhando, e Anne provavelmente estaria na casa da avó ou com Sabine. Julia foi para o andar de cima para tirar o colchão de seu quarto e escrever em seu diário. Depois de colocar o colchão de volta no armário do corredor, ela sentou-se em sua escrivaninha, abriu a gaveta e pegou o álbum de fotos que ela usava como álbum de recortes, livro de poemas e diário. Ela queria grudar o poema de Michael ali. A canção que ela havia escrito com Thorsten estava tocando em sua mente. O olhar de Julia desviou-se para fora e parou na casa do outro lado da rua. Thorsten estava saindo do galpão com uma pilha de pranchas de madeira nos braços, que ele colocou em um carrinho puxado por sua bicicleta, conforme as instruções de Sabine. Ela sorriu. Então ele estava ajudando as garotas com o projeto de construção no bosque novamente. Talvez ela devesse pedir a ele maiores informações sobre a casa na árvore, para que ela pudesse ter alguma ideia sobre quando Anne a concluiria. Enquanto Sabine estava ocupada prendendo o trailer em sua bicicleta, Thorsten ergueu os olhos para a janela de seu quarto. Era como se ele tivesse sentido o seu olhar sobre ele. Ele acenou com


um sorriso amigável. Julia acenou vagamente de volta. Seus olhos azuis claros não a reprovavam e ainda assim ela se sentia mal. Pelo canto do olho, ela pôde ver Gaby virando a esquina. Rapidamente, ela saiu da janela e desceu apressada, para que pudesse arrastar a amiga para dentro de casa antes que ela engatasse uma longa conversa com Thorsten. Enquanto ela caminhava em direção à porta da frente, ouviu Gaby gritando algo para Thorsten, que ainda estava ajudando sua irmãzinha. Ela abriu a porta de uma vez e agarrou o braço de Gaby. - Ei, Gaby. Entra aqui. Gaby riu. - Morrendo de vontade de contar as novidades, não é? – ela entrou e abraçou a amiga. – Vamos para a cozinha, Afrodite, para você nos fazer um chá, abrir um pacote de cookies e me contar tudo de A a Z que aconteceu hoje. Vermelha, Julia contou para a melhor amiga tudo o que havia acontecido na livraria. Depois, ela declamou o poema de Michael de cabeça. - Que lindo. – Gaby suspirou. – Então você tem um encontro amanhã. Nossa Jules, parece um sonho. - É, parece mesmo. Algumas vezes parece que estou sonhando. Tudo ainda parece muito surreal. – ela encarou a caneca em suas mãos, limpando a garganta antes de continuar. – Ah, e eu também cantei uma música hoje. Com o Thorsten. Gaby ergueu uma sobrancelha. - Por quê? É aniversário de alguém? Julia tossiu nervosamente. - Não, ele estava tocando uma música no violão quando eu passei pela casa dele e já que estava compondo a música, perguntou se eu queria me juntar a ele e ajudar com a letra. E no final, ele ficou tão tocado pela minha performance que me beijou. Sua amiga arregalou os olhos. - Como é que é? Sério? E o que você fez? - Eu acho que eu retribuí o beijo. – Julia gaguejou com o rosto corado. – Eu não queria, mas todo o gesto foi tão... Tão genuíno. Um sorriso dividiu o rosto de Gaby enquanto ela pegava mais um cookie de chocolate do prato. - Nossa! Eu estava certa em chamar você de Afrodite! Sério, Jules, beijar dois caras no mesmo dia? - Olha, não estou pensando em fazer disso um hábito. Vou sair com Michael amanhã e eu falei isso para o Thorsten também. Eu não quero que ele fique com a impressão errada. Naquele momento elas ouviram barulho de chaves na porta da frente. - Olá! – a mãe de Julia anunciou sua chegada. – Estou em casa. – ela colocou a cabeça para dentro da cozinha. - Servus, Gaby. Você vai ficar para jantar? Gaby balançou a cabeça. - Não, eu... Vou sair para jantar com Axel esta noite. Ele me perguntou se eu queria conhecer o novo restaurante mexicano da cidade e ele não conhece ninguém que goste de comida apimentada, jalapeño e essas coisas... Então ele me convidou... E eu não tinha nada melhor para fazer, então eu pensei, e daí, sabe? E além disso, eles tem uma tal promoção de inauguração que você ganha duas entradas pelo preço de uma, então é por isso que ele quis me chamar, também. - Certo. – a Sra. Gunther concordou lentamente com a cabeça, parecendo ligeiramente


desnorteada. Ela desapareceu no corredor, deixando as duas garotas para trás em um silêncio constrangedor. Gaby encarou a mesa, um rubor em suas bochechas, até que Julia começou a rir. - Bem, obrigada pela claríssima explicação. O que você vai fazer em seguida, ler o cardápio completo? Gaby ficou ainda mais vermelha. - Ah, por favor. Você me entende, não é? Eu não queria te passar a impressão errada. - Ah. Que impressão errada seria essa? - Bem, você pensar que é um encontro, ou alguma coisa assim – Gaby murmurou. - Não, porque você sair com Axel seria uma coisa muito idiota. - Não! Não é isso que eu quis dizer. Mas ele é seu primo, sabe. E um bom amigo. – Gaby pegou outro cookie do prato e começou a comer como se a sua vida dependesse daquilo. Julia riu. - Não vá estragar seu apetite. Afinal, você ainda tem um cardápio inteiro para experimentar. Gaby a olhou ameaçadoramente. - Pare de me assediar! Eu só estou... - Nervosa? Tensa? Feliz? Animada? - Deixa pra lá. Eu nunca mais te conto nada. Elas se entreolharam por um momento e então, explodiram em risadas. Na hora em que a mãe de Julia voltou para a cozinha, a atmosfera estava bem mais leve. Gaby tinha até mesmo prometido a Julia que mandaria uma mensagem no dia seguinte e a contaria como havia sido o jantar mexicano. Depois do chá, Julia levou Gaby até a porta. - Você pode pedir para Anne vir para casa? – sua mãe gritou para elas. – Ela provavelmente ainda está com os vizinhos do outro lado da rua. - Acho que não – Julia disse de volta. – Acredito que Sabine e Anne estão ocupadas no bosque novamente. Antes da Gaby chegar, eu vi Thorsten juntando umas pilhas enormes de madeira que colocariam o The Home Depot no chinelo. - Bem, vá descobrir. Vamos jantar daqui a alguns minutos. Thorsten deve saber onde as garotas estão. Arrastando os pés, Julia atravessou a rua para fazer o que a mãe havia pedido. Agora ela teria que falar com o Thorsten de novo. Ignorá-lo havia se tornado uma tarefa impossível. Para seu alívio, ela viu Sabine descendo de sua bicicleta e desenganchando o carrinho agora vazio no jardim. - Oi, Sabine – ela disse – A Anne está com você? A garota balançou a cabeça. - Acabei de deixar algumas madeiras no lugar onde estamos construindo a nossa casa na árvore, mas ela já não estava mais lá. Ela não foi para casa? - Não. – Julia fez uma careta, desanimada. Era muito legal que Anne gostasse da natureza e de ficar sozinha, mas era irresponsabilidade sumir daquela forma. Ela estava provavelmente tentando se inspirar para escrever o livro, mas aquilo certamente deixaria a mãe nervosa novamente. Julia pegou o celular. Anne deveria estar com o celular também, então era bom tentar ligar para ela. Depois de três toques, o telefone caiu na caixa postal, mas não demorou para Anne ligar de volta. - Olá. – a vozinha de Anne ecoou pelo alto-falante. – Estou indo para casa agora. - Onde a senhorita está?


- Ah, nenhum lugar especial. Eu estava fazendo alguns rascunhos para minhas histórias. Logo estarei aí. Depois de dez minutos, Anne apareceu de bicicleta no jardim. Julia estava esperando por ela na porta. - Que bom que você estava com seu telefone – ela disse severamente – Você não deve fazer mais isso! Ficar fora tanto tempo, sem dizer a ninguém onde você estava. Anne deu de ombros. - Eu não preciso falar a ninguém aonde eu vou. - O que é que você quer dizer com isso? - Nada não – sua irmã murmurou. Anne empurrou Julia para o lado e atravessou o corredor acelerada. Julia lançou um olhar bravo a ela. Ela não conseguia acreditar no que tinha ouvido. Claro, Sabine e Anne queriam manter a casa em segredo e apenas mostrar às famílias quando estivesse totalmente concluída, mas aquilo não fazia sentido. De agora em diante ela se certificaria de que Anne a dissesse exatamente onde estava indo, ou suas viagens ao bosque chegariam ao fim. A mãe delas estava cheia de trabalho e não ficava mais de olho em Anne, sua irmãzinha podia fazer praticamente tudo o que quisesse. Quando ela era pequena, ela não podia nem sonhar em fazer coisas como aquelas. Claro, o pai ainda estava lá para dividir as responsabilidades. Em geral, o filho mais novo da família é conhecido por poder fazer mais que os outros, mas ainda assim. Aquilo não parecia certo para ela. Com um suspiro pesado, Julia foi para a cozinha preparar o jantar. Era a sua vez naquela noite.


8. Na manhã seguinte, Julia chegou à livraria cedo demais, mas Michael havia conseguido superá-la: ele já estava esperando na porta. - Bom dia! – ela ergueu uma mão cautelosamente, cumprimentando-o. Será que ele esperava que ela o beijasse, ou ainda era muito cedo? Será que ela faria papel de boba, se fizesse aquilo? – Nossa, você chegou cedo hoje. Michael deu de ombros. - Sim, eu acordei cedo e não consegui voltar a dormir mais. Eu estava inquieto. – ele sorriu para ela. – Você ficou na minha mente o tempo inteiro. - Ah. – Julia sorriu de volta timidamente. – Você também ficou na minha cabeça. A noite inteira. Perdida em seus pensamentos, ela havia conseguido queimar duas panelas de arroz até que a sua mãe a expulsou da cozinha. O sorriso dele se alargou. - Sério? Julia concordou. - Sim. Então, você decidiu o que quer fazer esta tarde? Michael balançou a cabeça. - Não, ainda não. Só decidi o que eu quero fazer agora. – ele passou um braço ao redor dos ombros dela e a puxou para mais perto – Isto. – ele acrescentou, piscando os seus olhos verde e beijando os lábios dela. Julia fechou os olhos e passou os braços ao redor da cintura dele, beijando-o como se não houvesse amanhã. Quem se importava se os colegas os pegassem se agarrando? Ela havia esperado pelo toque dele desde a tarde do dia anterior. - Podemos ir para a floresta depois do trabalho? – ela murmurou contra os lábios dele entre beijos. – Eu gostaria disso. Michael deu um passo para trás. - Poderíamos – ele respondeu. Julia virou a cabeça de lado. Ele não parecia tão animado. Ele viu sua confusão e suspirou. - Sabe, eu estava a fim de curtir a cidade e o parque com você. Eu quero... Deixar o acidente de lado. Ficar longe do bosque por um tempo. - Claro! – Julia concordou, compreensiva. – Então vamos ao parque. Vamos fazer um piquenique? - Parece legal. Vamos preparar a cesta na minha casa. Enquanto eu faço os sanduíches, você pode aproveitar para tocar o piano, porque você havia prometido que faria isso algum dia. - Eu vou. E eu escrevi uma música ontem usando o seu poema como letra. Talvez ela devesse contar a Michael sobre Thorsten e a sessão de improviso do dia anterior no gramado do jardim dele. De alguma forma, parecia a coisa certa a se fazer. Mas de novo, era melhor deixar o beijo inesperado fora da sua confissão. Aquilo seria excessivamente honesto. - O garoto do outro lado da rua estava tocando violão no jardim e me convidou a me juntar a ele e contribuir com a letra. Então eu usei seu poema. Quem sabe, posso conseguir tocá-la no piano. Michael sorriu para ela. - Isso seria maravilhoso. Estou feliz que você tenha gostado tanto assim.


Naquele momento Martin apareceu com alguns pôsteres enrolados embaixo do braço. - Uau! Posso chamá-los de madrugadores? – ele os cumprimentou. – Vocês podem me dar a honra de ajudar a colocar esses pôsteres de promoção na vitrine? Não demorou muito para que o resto da equipe chegasse à loja. Donna se esgueirou escada acima, onde Julia estava precariamente se equilibrando, tentando afixar um banner no parapeito sobre o balcão do caixa. - Oi, Julia. – ela chamou. – Então, quais são os planos para a tarde? - Cai fora. – Julia chiou. – Se eu olhar para baixo, vai me dar vertigem. Ela ouviu a risada alta de Donna. - Ainda bem que o Michael não tem medo de altura. Ele está olhando você fazer isso aí em cima há um tempão. Mordida de curiosidade, Julia arriscou olhar para baixo para ver o que Donna estava dizendo. Michael estava próximo ao caixa contemplando as pernas dela, parecendo arrebatado quando ela piscou e balançou a cabeça incrédula. A boca de Donna se contorceu quando ela olhou de lado para Michael. - Por que vocês não me deixam em paz? – Julia gritou indignada, segurando o degrau de cima da escada em um aperto mortal. Apesar de suas palavras, ela lançou um olhar divertido a Michael. Ela passaria a tarde toda com aquele garoto lindo e maravilhoso, que estava apaixonado por ela e que não conseguia tirar os olhos dela. Repentinamente ela percebeu o quanto era sortuda. Suas pernas pareciam de borracha quando ele a lançou um sorriso cativante. Para sua felicidade, Martin a mandou ao estoque para buscar alguns livros. A oportunidade perfeita para mandar uma mensagem a Gaby sobre os planos para aquele dia e verificar se a amiga havia enviado alguma mensagem sobre o encontro da noite passada com Axel. Ela havia. ‘o jantar foi legal! Axel = fofo:$. Jules, o q vc acha q ele pensa de mim?’ Julia engoliu seco, balançando a cabeça incrédula. ‘vc sabe o q Axel acha de vc ;) ñ pergunte por perguntar. Mick e eu vamos p/ o parque e vamos fazer um piquenique na casa dele. To nervosa. bjs.’ Claro, ninguém mais estaria na casa de Michael à tarde, mas de alguma forma, Julia estava certa de que não seria um repeteco daquela outra vez em que ela havia estado na casa vazia de Michael. Ela ainda não conseguia entender a bizarra mudança de personalidade, mas aquilo havia mudado o seu mundo completamente. Como é que ela podia ter se apaixonado por ele antes? Talvez não tivesse sido amor. Talvez ela ainda o admirasse e admirasse a confiança que ele exalava no colégio. Ele tinha sido tão lindo, desejável e completamente fora do seu alcance, mas agora tudo estava mudado. Ele estava se esforçando para conhecê-la melhor. Ela despertou quando Silke entrou no estoque. - Hora de confessar – disse, sem rodeios. – O que está acontecendo entre você e o Michael? Não ache que eu não percebi todos os olhares entre vocês. Julia se sentiu corar e deu de ombros timidamente. - Ele me chamou para sair, e eu disse sim. - Bem, isso não te incomoda? – Silke cruzou os braços. – Quero dizer, não foi legal a forma que ele a dispensou antes. Silke não podia estar mais certa, mas como é que ela poderia explicar a razão das coisas estarem diferentes, se nem ela entendia o que estava acontecendo.


- Ele... Ele mudou – ela arriscou. – Quero dizer, de verdade. Ele está totalmente diferente. Silke concordou conscientemente. - Sim, eu te entendo. Quando ele caminhou para dentro da loja no primeiro dia, ele era um exibido. E ainda assim, ele não me enganou. Eu achava que, lá no fundo, ele era um inseguro. Mas, ele não está mais usando a máscara da falsa autoconfiança, se é que você me entende. - Quem sabe? Talvez a máscara tenha caído depois do acidente. – Julia sorriu. - Sim. Você pode estar certa. Você pesquisou sobre pessoas que passam por mudanças de caráter por causa de traumas na cabeça? Ela não havia, mas na realidade, não parecia improvável. Silke tinha lhe dado a explicação perfeita para a mudança de comportamento de Michael. Filosofar sobre os celtas, solstício de verão e raios era mais o estilo dela, mas uma contusão causar mudança de comportamento era muito mais lógico. - O médico dele provavelmente o alertou quanto aos efeitos de curto prazo. – Julia se esquivou da pergunta. – Vou perguntar pra ele, qualquer dia. E então, quer que eu a ajude com isso? – ela apontou para pilha de livros aos pés de Silke. O resto da manhã transcorreu sem mais novidades. Julia ficou no estoque e Michael ficou no caixa. Quando a loja fechou para o almoço, Julia e Michael saíram para Höllrigl, e caminharam para a casa de Michael em Giselakai. - O tempo está ótimo – ele disse, olhando em volta com um enorme sorriso no rosto. – Perfeito para vadiar no parque. - Bem, podemos fazer algum exercício leve. – Julia propôs. – Você não tem raquetes de pinguepongue na sua casa? - Acho que sim. Você realmente gosta de esportes, não? - Sempre me dá energia. - Engraçado. É isso que eu sempre achei um charme em você. Você pode ser quieta e introvertida quando está escrevendo ou compondo, mas ao mesmo tempo, você pode ser tão cheia de energia quando pratica esporte. Julia se sentiu iluminar como uma lâmpada. Michael falava dela como se ela fosse a pessoa mais fascinante da Terra. Ela caminhou para mais perto dele e pegou sua mão. Foi só depois que cruzaram a ponte para a rua dele que ela se perguntou como é que ele sabia tanto sobre ela. Será que ele havia prestado mais atenção nela na escola do que ela imaginava? - Há algo que você não goste de jeito nenhum como recheio de sanduíche? – Michael perguntou, assim que eles entraram, arrastando-a para a cozinha. Quando ele abriu a geladeira, Julia observou a quantidade de comidas diferentes que a família Kolbe estocava. Sua pequena família era bem simples e pobre, comparada a esta. Será que ela se sentiria confortável ao leva-lo a casa dela e o apresentar à sua mãe? Ela pegou, distraída, um abacate da fruteira sobre a mesa da cozinha. - Não sou exigente com a alimentação. Eu gosto de todos os tipos de comida – ela murmurou. Um sorriso se espalhou pelo rosto dele. - Inclusive isso? – ele apontou para o abacate. – Que tal rolinhos com massa de trigo, alface, frango e abacate? Ela concordou levemente com a cabeça. Quando Michael foi até ela e colocou os braços ao seu redor, Julia descansou a cabeça nos ombros dele e suspirou profundamente. - Apenas terei que me acostumar com as coisas no seu mundo – ela sussurrou. – Desculpe por ser tão esquisita.


Ele beijou sua testa. - Você não está sendo esquisita. E eu também tenho que me acostumar com esta situação. Julia olhou confusa para ele. - Você? - Sim. A estar apaixonado, quero dizer. O rosto dela ficou rosa de alegria. Ele fez parecer que nunca tinha se apaixonado antes. E pelo que ela sabia, era verdade. Ele sempre estava saindo com alguma garota na escola, mas nunca havia ficado firme com nenhuma delas por muito tempo. Aquilo parecia ser mais sério para ele e ela queria, do fundo do coração, abrir a porta de sua vida para que ele entrasse, mesmo estando insegura sobre algumas coisas. - Você gostaria de ir à minha casa amanhã? – ela disparou. – Depois do trabalho? Ele sorriu carinhosamente em sua direção. - Claro que sim. Eu estou secretamente desejando que você faça pizza. - Pizza da Amy’s Kitchen? - Sim, por favor. Você sabe como me sinto sobre Amy e suas pizzas. Os dois começaram a rir. Julia expirou, sentindo-se mais relaxada. - Vamos começar a fazer esses sanduíches, não é? - Não, não é. Eu vou fazer. Você prometeu que tocaria o piano. – Michael enxotou Julia da cozinha, apesar dos seus protestos, acompanhando-a até o Steinway no canto da enorme sala de estar. Ele abriu a tampa do teclado e puxou o banquinho para ela. – Aqui está. Divirta-se. Sorrindo timidamente, Julia se sentou, soltando a respiração de uma só vez enquanto Michael voltava para a cozinha. Pelo menos ele não havia ficado por ali. Assim ela teria a mente livre para descobrir como tocar a música de Thorsten no piano. Cantarolando a melodia para si mesma, ela tentou algumas escalas no teclado antes de escolher um tom adequado para a sua voz. Quando Michael voltou para a sala de estar depois de dez minutos, carregando uma cesta de piquenique cheia de comida e bebida, ela estava cantando a melodia de Thorsten com o seu poema, na verdade, do Michael. Ele parou perto do piano e a contemplou, completamente hipnotizado. Quando a música acabou, Julia olhou para cima, tímida. - Estou feliz que você ainda esteja aqui – ela disse, encabulada. Michael a olhou, confuso. - Por que eu não estaria aqui? - Você fugiu enquanto eu tocava, na festa dos gêmeos. Ele parecia envergonhado. - Desculpe, eu estava... – ele vacilou e no silêncio que cresceu entre eles, Julia se lembrou de quão intensamente ele a havia encarado enquanto ela estava tocando sua própria música. O quanto Gaby havia frisado que ele estava com lágrimas nos olhos. E de repente, ela não se importava nem um pouco com o motivo que havia feito Michael mudar tanto. Se era graças ao raio, ao trauma ou a poderes sobrenaturais, ele era uma pessoa por quem ela poderia muito bem se apaixonar. Ela se levantou do banco e impulsivamente o tomou nos braços. - Não importa. – ela suspirou. – Eu fiquei feliz que você estava lá para ouvir o começo. - Claro que eu estava ouvindo – ele respondeu baixinho – Era a música que você escreveu. Para o exame. Ela olhou boquiaberta para ele. Então ele tinha ido ao auditório da escola durante o seu exame de educação musical. Seus nervos desgastados provavelmente a haviam impedido de vê-lo na plateia. Um sentimento aconchegante a invadiu quando ela ergueu os olhos para ele. Ela sempre havia se


sentido invisível, mas agora parecia que ele a havia notado, no final das contas. - Então, vamos? – ela sugeriu, inclinando a cabeça em direção à cesta de piquenique. Michael colocou um braço ao redor dela. - Vamos. Eles escolheram um lugar sob uma grande castanheira e passaram a tarde toda deitados na grama, conversando, se beijando, se abraçando e lendo poemas das novas coletâneas de Julia. Michael tinha pegado as raquetes de badminton, mas estava ventando demais para jogar. Michael foi o primeiro a jogar a toalha. - Isso é muito mais difícil do que parece! – ele bufou, depois de jogar por cinco minutos com o vento soprando contra ele. – Eu pensei que esse jogo era fácil. Sabe, por causa da peteca ser tão leve. - Por isso é que você não precisava ter batido nela com tanta força. – Julia riu. – Pobrezinho. – ela limpou o suor de sua testa, inclinando-se contra a castanheira, seguida por Michael. A brisa tocava as folhas sobre as suas cabeças. - Sabe, a cena do seu acidente no bosque sempre foi muito especial para mim. – ela tomou a mão dele. – Aquele carvalho próximo ao local onde você caiu com sua moto... Ele costumava ser meu refúgio. Eu me abrigava sob os galhos daquela árvore. Não da chuva, mas da vida. Era minha árvore de abraçar. Michael apertou a mão dela. - Por que está falando no passado? – ele perguntou. – Você se sente diferente sobre esse lugar agora? Julia deu de ombros discretamente. - Acho que a minha árvore está doente. As folhas parecem um pouco amareladas. Além disso, eu não tenho vontade de sair correndo para o bosque toda vez que eu me sinto triste. Eu só... – ela mordeu o lábio e pausou por um segundo. – Eu quero viver uma vida de verdade, e não mais me perder em todo tipo de fantasia. Michael a olhou de lado e, por apenas um momento, ele parecia melancólico. - As fantasias podem ser uma parte da realidade – ele contestou. – Elas fazem a vida mais bonita, não fazem? Julia balançou a cabeça. - Claro que pode. Mas não é isso que eu quis dizer. - O que é que você quer dizer, então? - Bem, por exemplo, eu olhei para você de um jeito bem diferente, por estar me escondendo atrás das minhas fantasias. Michael não disse nada, o olhar curioso em seus olhos a implorava para continuar. Ela respirou fundo. - Você sabe o que é isso? Por dois anos, eu acreditei que estava apaixonada por você. Na minha mente, eu o escalei como o personagem principal em um tipo de conto de fadas mágico. Mas era só isso: não era por você que eu estava apaixonada. Você era apenas um personagem na minha peça de teatro. Enquanto as palavras saíam de sua boca, ela tremia. Ela estava realmente contando tudo aquilo para ele? Era corajosa o suficiente para revelar suas emoções daquela maneira? Parecia. Fazer toda aquela exposição deveria assustá-la, mas não. Na verdade, parecia a coisa certa a fazer. - Eu não tinha ideia de quem você era – ela concluiu timidamente. – E quando eu percebi que você não era o Príncipe Encantado que eu imaginava que você fosse, eu culpei você por isso.


Michael corou, envergonhado. - Desculpe – ele murmurou. – Eu sei que ele... Eu... Deve ter sido doloroso para você. Ela chegou mais perto, suas mãos escorregando para o peito dele. - Está tudo bem – ela murmurou. Naquele momento, os últimos resquícios de raiva e insegurança desapareceram. Ela não o culpava mais. – Essa situação toda é nova para mim. Para ser totalmente honesta, eu estou apaixonada por você pela primeira vez. Você torna isso muito fácil. Você se tornou mais gentil, mais amigável. Por causa do acidente. Ou, eu não sei... Ela vacilou. As íris dele estavam mais verde do que antes, um olhar cheio de entusiasmo pela vida, algo que ela nunca tinha visto em todos aqueles anos. E, repentinamente, ela estava certa de que não estava conversando com Michael. Ela estava sentada ali conversando com outra pessoa. Não era ele. Mas aquilo não fazia sentido. Por que ela estava tendo pensamentos tão estranhos? Era ruim o suficiente que ela havia meio que atribuído sua atual personalidade agradável a um acidente com consequências quase fatais. Se ela compartilhasse aquela ideia maluca, ele provavelmente pensaria que ela havia ficado louca. Michael interrompeu seus pensamentos, puxando-a para um abraço, beijando-a suavemente. - Você não faz ideia do quanto suas palavras significam para mim – ele sussurrou contra os lábios dela. Ela o beijou de volta, confusa. - Sério? - ela murmurou. Ele concordou com a cabeça. - Você me despertou, Julia. – ele fechou os olhos. – Do sono que chamamos de morte. A forma como ele descreveu fez parecer como se ela o tivesse salvado de uma morte prematura: ela o havia acordado para que ele pudesse ser mais ele mesmo. Quem é que poderia ter adivinhado que Michael pudesse ser tão poético sobre a vida? - Onde você quer me encontrar amanhã? – ele perguntou, enquanto caminhavam para a saída do parque, antes da hora do jantar. Julia não trabalhava as quartas, mas Michael estaria ocupado o dia inteiro. - Você pode estar na minha casa às seis? – Julia perguntou. – Você pode pegar o ônibus as cinco e descer no último ponto, você me liga e eu posso me encontrar com você lá. - Parece bom para mim. Eu não sei o caminho para a sua casa ainda, então... – Michael a abraçou pela última vez, sussurrando em seu ouvido - Eu vou sentir sua falta esta noite. - Eu também. Divirta-se na casa dos seus tios. – Michael iria jantar com eles e com os pais. Ele havia convidado Julia para se juntar a eles, mas ela ainda não estava preparada para conhecer a sua família, então ela havia recusado. Assim que ela conseguia mais ver Michael, Julia se sentou no ponto de ônibus, do lado oposto ao parque. O ônibus chegaria em breve. Seu celular mostrava uma chamada não atendida de Gaby, então ela ligou de volta, mas a chamada caiu na caixa postal. Um sorriso feliz se espalhou pelo seu rosto quando ela desligou e olhou para a tela de seu celular: seu novo papel de parede era uma foto de Michael. Ela deveria ir para a casa da avó mais tarde, para contar tudo o que havia acontecido em sua vida desde a última vez em que haviam conversado. Quando entrou no ônibus, seu telefone recebeu uma mensagem. ‘você pode ir buscar a Anne em eichet? Saio às 9!’ – sua mãe. Bem, aquela era uma bela coincidência. Ela poderia conversar com a avó mais cedo do que pensava. Ela esquentaria algumas sobras quando chegasse em casa e pegaria o ônibus ao vilarejo


próximo para buscar a irmã e contar à avó sobre o novo namorado. Assim que Julia terminou de enviar a resposta para a sua mãe, Gaby retornou a chamada. - Oi Jules. – ela cantarolou. – Axel nos convidou para ir a casa dele assistir um filme. Você está livre? Julia riu. - Você tem certeza que Axel quis convidar nós duas? – ela provocou. - Claro! – Gaby retorquiu com desdém. – Você honestamente acha que eu estou pedindo para você ir junto porque tenho medo de ir sozinha? - Nem em sonho. - Ha-ha, muito engraçado. Então, você vem? - Que filme vamos assistir? - Um daqueles bem assustadores, ele disse. Você sabe, algum remake de filme de terror asiático. - Ah sim, faz sentido. Ele está provavelmente esperando que você segure a mão dele. Ou que corra para os braços dele quando estiver com medo. Julia desembarcou do ônibus e pacientemente ouviu Gaby retrucar os seus comentários. - A que horas ele está nos esperando? – ela interrompeu antes que a amiga recomeçasse a falar, indignada. - Oito e meia. - Ok, eu vou. Amanhã eu não trabalho, mesmo. - Legal! – Gaby parecia inconfundivelmente aliviada. – Eu te vejo lá! Julia desligou com um sorriso largo. Ela virou a esquina para a sua rua e seu estômago roncou quando sentiu o cheiro de salsichas assadas no ar. Alguém na rua havia acendido a churrasqueira. O trilho da fumaça que subia para o céu parecia estar vindo do quintal do vizinho. - Ei garota da casa ao lado. – uma voz familiar a chamou. Thorsten apareceu no portão, acenando para ela com um pregador na mão. – Está com fome? Julia concordou, hesitante. - Um pouco. – ela admitiu. - Bem, você gostaria de nos acompanhar no jantar? Sabine foi para a piscina com o meu pai, então estamos só eu e a minha mãe. Seu coração parou de bater por um instante. Ela deveria dizer não, afinal ela havia prometido a si mesma ficar longe de Thorsten. Por outro lado, que mal havia em se juntar a ele por alguns momentos? A mãe dele estaria ali como companhia. Além disso, aquela seria a oportunidade perfeita para contar a ele sobre a tarde romântica com Michael, para que ficasse claro para ele a sua posição. Era besteira ir para casa esquentar comida no micro-ondas quando ela podia comer comida fresca e passar um tempo agradável com os vizinhos. - Eu adoraria – ela respondeu – Espera aí. Eu vou só guardar a minha bolsa e já volto. Julia foi para dentro e caminhou até o seu quarto para colocar a bolsa em sua escrivaninha e rapidamente pentear os cabelos. Ela se olhou no espelho. Uau, ela parecia muito apaixonada. Seus olhos brilhavam e as bochechas estavam iluminadas. No dia seguinte, sua mãe conheceria Michael. Ela teria que ser cuidadosa. Seria uma má ideia mencionar que ela já havia saído com ele e uma ideia pior ainda revelar que já haviam dormido juntos. Sua mãe ainda tinha a ilusão de que a filha havia ficado na casa de Florian naquela noite, porque tinham ido a uma festa. Julia se dirigiu ao corredor e viu que a porta do quarto de Anne estava aberta. Sua irmãzinha não havia fechado a janela direito. O vento havia feito alguns de seus desenhos caírem da escrivaninha.


Eles estavam caídos, bagunçando todo o quarto. Julia rapidamente entrou para pegá-los e colocá-lo de volta na mesa. Os desenhos eram incríveis. Anne havia feito dois desenhos das árvores da floresta e um retrato de um garoto com os cabelos loiros e compridos, como Legolas, e olhos azuis como Thorsten. Anne estava envolvida em seu conto de fadas, aquilo estava bem claro. Julia se segurou para não olhar os outros cadernos que estavam sobre a escrivaninha. Ela colocou os desenhos sobre a cadeira de Anne, fechou a janela e saiu do quarto. Quando ela chegou no jardim da família Ebner, a mãe de Thorsten estava sentada na varanda, tomando uma taça de vinho. - Então você é a irmã de Anne – ela disse, agradavelmente. – Prazer em conhecê-la. Julia pegou outra cadeira e aceitou uma lata de Coca que a Sra. Ebner a entregou. - Obrigada pelo convite. - Claro! É ótimo finalmente poder conhecê-la pessoalmente! Thorsten me falou muito sobre você. Você não é a garota que gosta de correr enquanto chove torrencialmente? Julia riu. - Bem, posso ver que causei uma boa impressão em você. Thorsten entrou na varanda com um prato de salsichas, pegando as últimas palavras dela. - Eu disse à minha mãe que te admiro muito. – ele riu de um jeito brincalhão. Julia corou. - Disse, é? Thorsten a encarou. - É – ele simplesmente respondeu, sério. Rapidamente, ela desviou o olhar, quase engasgando com o enorme gole de Coca-Cola que havia dado. Por que ele ainda conseguia deixá-la nervosa? Talvez não houvesse sido uma boa ideia, no fim das contas. - Enfim, estou morrendo de fome. – ela anunciou no silêncio que havia pairado. – Eu não sei por que. Quero dizer, eu estava fazendo um piquenique com Michael a tarde toda no parque, então eu deveria estar satisfeita. Thorsten sorriu. - Você se divertiu? – ele perguntou, serenamente. Julia fez uma careta. Mesmo ele não aparentando ciúmes, era óbvio que sua observação o havia atingido. - Sim, nos divertimos – ela respondeu – Ele vem jantar aqui em casa amanhã à noite. Enquanto saboreava a comida, Julia contou mais um pouco sobre a tarde no parque e o novo emprego na livraria. Ela se sentia verdadeiramente confortável perto de Thorsten e sua mãe. Quando se levantou por volta de sete horas, para buscar Anne, ela estava quase arrependida de ter que sair. - Mais uma vez, obrigada por me convidar – ela disse, quando Thorsten a acompanhou até o portão. – Adorei conhecer sua mãe. Ele olhou para ela e inesperadamente pegou sua mão. - Foi bom ver você tão radiante e feliz – ele disse seriamente – Esse tal Michael é um cara sortudo. Antes que ela tivesse tempo de reagir, ele se inclinou e beijou sua bochecha, depois se virou e caminhou de volta para a mesa. No caminho para o ponto de ônibus, Julia sentiu uma dorzinha de cabeça se instalando. Poderia ser por ter ficado debaixo do sol o dia inteiro, mas também poderia ser por tudo o que havia


acontecido hoje. Na hora em que ela tocou a campainha da casa da sua avó, a dor ainda não havia passado. Havia apenas piorado. - Minha doce garota, parece que você passou pelo moedor. – a avó exclamou, quando abriu a porta. – Você precisa de algo para essa dor de cabeça? Claro, a avó vidente sabia exatamente o que havia de errado no momento em que pôs os olhos nela. - Um paracetamol seria bom. – Julia gemeu. – Ou alguma outra coisa para eu melhorar. Ainda vou sair hoje à noite. A avó a olhou, incrédula. - Tem certeza? Se eu fosse você, dormiria cedo esta noite. Anne apareceu no corredor, segurando um picolé meio mordido. - Estamos indo agora? Eu ainda quero ir ao bosque quando nós voltarmos. - Não, você vai ficar em casa até a mamãe voltar – Julia disse firmemente. - Mas... – a irmã começou. - Sem mas. Você pode ir amanhã. Aquelas árvores não vão a lugar algum. Anne a lançou um olhar raivoso e saiu batendo os pés, indignada. Julia suspirou, encostando-se na avó quando a velha senhora colocou uma mão em seu ombro. - Não ceda, Julia. Anne está chegando na puberdade e tem um gênio bem forte. – a avó fez uma careta. – Posso sentir que tem algo a incomodando. - Sim, esta também é a minha impressão. Ela está fugindo de coisas que a desagradam ultimamente, fugindo para a floresta sozinha, escrevendo muito em seu diário. Eu acho que ela está sentindo cada vez mais falta do papai. A avó concordou. - Talvez devêssemos conversar sobre isso. Por que você não vem jantar aqui amanhã? Farei suas panquecas favoritas. Julia mordeu o lábio. - Não posso. É... Michael vai jantar lá em casa amanhã. - É mesmo? – a avó a olhou curiosa. - Sim. Ele está trabalhando na livraria também. Ele me disse... Bem, ele está apaixonado por mim. - Que bom para você, minha querida! – a avó lhe deu um sorriso iluminado. – Então não foi tão complicado quanto você havia pensado, no fim das contas. Na realidade, era complicado, mas ela não tinha energia e o tempo necessário para explicar tudo para a avó. Julia esfregou a testa com uma expressão dolorosa em seu rosto. A avó abriu a primeira gaveta do armário do corredor e pegou uma cartela de paracetamol. - Fique aqui, vou pegar um pouco de água. A avó entrou na cozinha e logo retornou com copo e Anne em seu encalço. - Você vai sair esta noite? – Anne quis saber. Julia fez um som evasivo. - Só vou à casa do Axel por algumas horas. Mas, acho que vou ficar em casa se essa dor de cabeça não passar. - Hmm – Anne murmurou, parecendo descontente pelo fato de que a irmã não sairia. Julia fez uma careta. Ela estaria planejando escapar para o bosque sem ninguém por perto para prestar atenção? Talvez fosse melhor que ela ficasse em casa, ela não deixaria Anne se safar. - Devo pedir ao Ignaz para levar vocês para casa? – a avó perguntou. – Vai ser mais rápido que o


ônibus. - Sim, por favor. – Julia suspirou. O vizinho da avó normalmente as ajudava fazendo as vezes de táxi, e ela não podia esperar para chegar em casa e se deitar. Um pouco mais tarde, Julia estava afundada no assento traseiro do Volvo antigo de Ignaz. Anne estava no banco do passageiro, conversando animadamente com o vizinho da avó. Seu mau humor parecia ter desaparecido. Ela não havia mencionado o bosque novamente, mas Julia estava determinada a não perder Anne de vista. Além disso, ela não queria mais sair, o paracetamol ainda não tinha melhorado a dor. - Ei, olhe, Sabine está fazendo um churrasco. – Anne exclamou, animada, quando Ignaz as deixou na porta de casa. – Vamos lá falar um oi? - Vá em frente – Julia disse – Eu estava lá antes de ir te buscar. Por que você não vai e pergunta se eles têm algumas salsichas para você, enquanto eu ligo para a Gaby para cancelar o passeio? Enquanto Anne se enfiava no quintal dos vizinhos, Julia se arrastou para dentro de casa. - Ei, Gaby – ela disse quando a amiga atendeu ao telefone. – Estou morrendo de dor de cabeça. Não vou conseguir ir hoje à noite. Houve uma pausa do outro lado da linha. - Mas... – Gaby começou, sua voz soando um pouco falha. – Já estou a caminho! - Bem, ótimo. Diga oi para o Axel por mim. Tenho certeza que vocês vão se divertir. - Mas ele convidou nós duas. Por favor, não me deixa na mão. Talvez ele não queira ver só a mim. Julia riu. - Não seja idiota. Por que ele não ia querer ver só você? Ele te chamou para jantar, pelo amor de Deus. Só você. - Ver um filme é algo completamente diferente. – Gaby insistiu. - Ah, tenha dó! Não posso lidar com isso agora. Minha cabeça está explodindo e você não está ajudando. Você é bem crescidinha e tenho certeza que vai sobreviver esta noite sem mim. Gaby engoliu ruidosamente. - Bem, então ok. Falo com você depois. - Me liga. – Julia desligou e caiu na cama. Talvez a dor de cabeça fosse uma bênção disfarçada: aquilo daria a Axel a oportunidade de ter Gaby só para ele. Ela só podia desejar que ele usasse bem aquela excelente oportunidade. Se a sua melhor amiga e seu primo fossem ficar tão nervosos um com o outro por mais tempo, ela ficaria completamente louca. Julia se arrastou para fora da cama e olhou pela janela. Anne estava sentada no quintal dos vizinhos comendo um cachorro quente. Bom, ela estava sendo cuidada. A mãe delas estaria em casa em menos de meia hora, então ela poderia dormir na mesma hora que Anne. O dia, por mais que tivesse sido maravilhoso, a tinha deixado esgotada. Assim que começou a cochilar, a voz da irmã a despertou de seu sono. - Ei, você entrou no meu quarto? Julia se sentou na cama, piscando para Anne, que segurava uma pilha de papel em uma mão. A sua irmãzinha parecia chateada. - Oh. Sim. Eu entrei. Eu peguei alguns desenhos seus do chão. O vento derrubou da sua mesa. Por quê? Anne mordeu o lábio e deu de ombros. - Nada. Eu só achei que você tinha olhado escondido. - Por que eu faria isso?


Anne não respondeu a pergunta. Ao invés disso, ela apertou os desenhos em seu peito. - Você não pode vê-los – ela disse, nervosa – Eles são secretos. As palavras de sua irmã a atingiram mais do que ela gostaria de admitir. Talvez os momentos de dividir histórias e contos de fadas com Anne, sobre a floresta tão próxima a casa delas, haviam acabado e eram coisas do passado. Anne queria guardar suas histórias para si agora. - Bem, eu não vi nada avassalador – ela respondeu, sorrindo fracamente. – Guarde-os melhor no futuro. Naquele momento, Julia ouviu a porta da frente se fechando, lá embaixo. - Cheguei! – a mãe delas gritou. - Vou lá dizer um oi – Anne disse, saindo do quarto, ainda apertando seus desenhos. Julia decidiu vestir o pijama e deitar na cama. Ela estava arrebentada. Na hora em que a mãe entrou para dizer oi, ela estava quase pegando no sono novamente. - Oi mãe – ela respondeu sonolenta – O Michael vem jantar aqui amanhã. A Sra. Gunther inclinou a cabeça. - Michael Kolbe? Aquele garoto do bosque? - Sim, ele mesmo. Ele trabalha comigo. - Ah. – sua mãe a olhava com expectativa, um sorriso brotando em seus lábios. Lentamente o rosto de Julia corou. - Nós... Nós saímos hoje. – ela gaguejou. – Fomos ao parque. E foi legal. E então eu pensei que seria legal convidá-lo para jantar. - Se você for cozinhar. – A mãe piscou. – Que tal uma pizza? Vou visitar a tia Verena durante o dia, então não vou ter tempo de preparar nada, mas você não trabalha amanhã, não é? Julia sorriu. - Deixe por minha conta. - Bem, por que você não faz seu sono de beleza agora? Você tem um dia muito agitado pela frente. – sua mãe a beijou na testa e caminhou para fora do quarto, cantarolando uma melodia feliz. Com um leve sorriso ainda nos lábios, Julia apagou o abajur e caiu no sono em alguns segundos.


9. Ela estava caminhando na floresta. As árvores ao seu redor eram gigantes, agigantando-se sobre ela, e apenas por um momento, Julia sentiu que havia encolhido. Em algum lugar ao longe, uma música ecoava pelo bosque. - Você o viu? – as árvores sussurravam para ela, suas vozes antigas parecendo as folhas balançando com a brisa. - Quem? – ela perguntou sem abrir a boca. - O garoto do bosque – as árvores responderam. - Quem? Michael? - Seu coração desejava estar com você. A música ficou mais alta. Um gemido escapou da garganta de Julia quando ela lentamente despertou e percebeu que seu telefone estava tocando. Tateando ao redor com seus olhos embaçados, ela encontrou sua bolsa sob a cama e fuçou dentro dela para encontrar o celular e atendê-lo. - Oi, Flo. – ela murmurou. – Obrigada por me acordar. - Oh, me desculpe! – Florian guinchou. – Achei que você já estaria acordada. Já são onze horas, sabia? - Sério? – Julia se sentou direito na cama, esfregando os olhos para espantar o sono. – Jesus, eu dormi a manhã inteira. E eu fui dormir as nove ontem! Que estranho. - Bem, aposto que você está bem descansada então. Você quer me acompanhar esta tarde, no ensaio da banda do Moritz? Vou ser a Yoko dele, pela primeira vez. - Parece ótimo! A que horas vocês vão? - Umas quatro. - Ah, hã, não. Não vai dar pra mim, de verdade. Michael vem jantar aqui esta noite. Florian começou a rir. - Ah, sim! Axel me disse. Você saiu com ele ontem, não é? - Sim, e foi maravilhoso. - Estou muito feliz por você – Florian disse, carinhosamente – Aparentemente, aquela pancada na cabeça fez maravilhas às habilidades sociais dele. - É, fez mesmo. E não me pergunte o motivo, porque eu não estou fazendo mais perguntas, também. Estou tão feliz, que não ligo mais. - Bem, aproveite o restante do seu dia, Julius. Eu vou ligar para o pessoal. Axel deve ir comigo. Você sabe se Gaby e Tamara estão trabalhando hoje? - Não tenho a mínima ideia. Vamos combinar de juntar todo mundo alguma noite desta semana, ok? Diga oi ao Moritz por mim. Julia desligou. As imagens do sonho ainda estavam rodando em sua mente. As árvores conversando com ela, dizendo-a que Michael a desejava... Seria possível que os espíritos da floresta realmente soubessem o que ele sentia por ela? Será que essa havia sido a forma que encontraram para avisá-la? Ela não podia deixar de pensar que o sonho tinha sido um aviso. Havia sido tão real, mesmo contendo tantos elementos estranhos. Naquele momento, sua mãe abriu a porta do quarto. - Ei, dorminhoca! Finalmente voltou para o mundo dos vivos? Tem alguns pães frescos lá em baixo, se você quiser.


- Ótimo, mãe. Obrigada! - De nada. Tenho que ir agora, mas eu estarei de volta às cinco. Anne vai brincar com Sabine, então a casa é toda sua. Por que você não aproveita e põe a mesa com nossa toalha de veludo e alguns candelabros, querida? - Você é tão engraçada, ha-ha. – Julia resmungou, mas ainda se levantou para dar um rápido abraço na mãe. – Vou pegar leve hoje. Divirta-se na tia Verena. Depois que sua mãe foi embora, Julia revirou o guarda-roupa, até encontrar um vestido leve de verão e chinelos. Ainda de pijama, ela foi até o banheiro e tomou um banho. Anne estava em seu quarto, escutando a trilha sonora de o Senhor dos Anéis no último volume. Ela estava provavelmente escrevendo ou desenhando, novamente. Assim que Julia saiu do box com a toalha enrolada em seu corpo, ela ouviu o telefone de Anne tocar no quarto ao lado. Sua irmã desligou a música e atendeu ao telefone aos sussurros. Estranho. - Era a mamãe que estava ligando? – ela perguntou, quando encontrou Anne no corredor. - Não, era uma das minhas colegas de classe. Ela perguntou se eu queria ir nadar com ela. - Pensei que você tinha combinado de ir brincar com a Sabine hoje. Anne encarou o chão. - Ainda não sei se vou nadar. - Ah, bem, você não tem que escolher, tem? Você pode ir nadar com a Sabine e a outra garota. - Eu não sei. – Anne repetiu, parecendo vencida. Julia impulsivamente passou o braço ao redor dos ombros magros da irmã. - O que está acontecendo, Annie? Você está triste? Anne deu de ombros. - Sim e não. Novamente evasiva. Julia suspirou. - Sabe, por que não tomamos café da manhã juntas? Talvez você queira conversar sobre isso comendo um pratão de rocamboles. Ok? - Tudo bem. Em silêncio, elas desceram as escadas. Só quando Julia colocou dois pratos de comida na mesa da cozinha Anne abriu a boca novamente. - Quem é esse garoto que vem jantar hoje à noite? – ela perguntou calmamente. - Michael? É um colega. Anne a olhou atenta. - Você está apaixonada por ele? Julia corou. - Você me pegou. – ela brincou. – Sim, eu gosto muito dele. - Como você sabe que está apaixonada por alguém? Ou quando alguém está apaixonado por você? – Anne continuou. Julia pensou em sua resposta. - Quando você está apaixonada por alguém, você pensa nessa pessoa o dia inteiro. Você deseja passar cada minuto do dia com ele ou ela. E quando alguém está apaixonado por você, frequentemente tenta ficar perto de você tanto quanto possível. E diz coisas legais e bonitinhas para você, é claro – ela respondeu com um sorriso. Sua irmã mordeu o lábio. - Esta é a razão pela qual eu gosto de ir tanto à floresta ultimamente. – ela murmurou baixinho. - Você está apaixonada?


- Quando eu vou para o bosque... Para aquele lugar sobre o qual não quero te contar... O Príncipe da Floresta está lá também. Julia sorriu indulgentemente. - Você quer dizer, o príncipe que está te ajudando a construir a casa na árvore? – Que sorte de Thorsten! A vizinha errada estava apaixonada por ele. Anne negou com a cabeça. - Eu o ajudo, ele não me ajuda. E não é bem uma casa na árvore, mas sim uma entrada para o palácio dele. - Ah, como um portal? – Julia fez uma careta. Esta história estava ficando cada vez mais esquisita, Anne aparentemente estava usando elementos de seu conto de fadas para falar sobre a vida real. Repentinamente, tudo aquilo pareceu errado. Não parecia mais um faz de conta inocente. A vovó estava certa. Algo sério estava acontecendo para Anne ter essa necessidade de fugir para dentro de contos de fadas daquela maneira. Anne balançou a cabeça mais uma vez. - Não, não um portal. Um túnel. Mas eu não posso te contar onde é. – sua voz ficou mais baixa. – Ninguém pode saber onde é. Ambas ficaram em silêncio por um momento, um arrepio percorrendo a espinha de Julia enquanto ela encarava a irmã. Havia algo profundamente errado com o olhar de Anne e ela não parecia estar gostando do mistério de sua história. Anne estava profundamente amedrontada. E aquilo atingiu Julia como um soco no estômago. - Por que não? – Julia continua, cuidadosamente. Ela não queria que Anne se esquivasse novamente, e por isso ela deveria ir com calma e não disparar todas as perguntas que estavam passando por sua cabeça de uma vez. - Porque... É um mistério. Assim como o príncipe permanece um mistério para os adultos no mundo real. Eles não o enxergam como ele realmente é. - E você vê? Anne corou. - Sim, mas ele me disse que eu não deveria falar sobre ele. Ou sobre o lugar onde ele está construindo as coisas. Ele ficaria furioso. O estômago de Julia revirou. Ela não tinha ideia do que estava acontecendo, mas todos os nervos de seu corpo estavam dizendo a ela que algo estava seriamente errado com Anne. Era quase como se ela não pudesse mais separar a realidade da ficção. Como ela deveria lidar com aquilo? Ela não podia fazer aquilo sozinha. Era melhor ligar para a mãe imediatamente. Ela afastou a cadeira e se levantou. - Anne, eu gostaria muito de discutir isso com a mamãe. Você parece muito assustada e eu quero te ajudar, mas eu não sei como. Por que você não espera aqui enquanto eu ligo para ela? Julia correu para fora da cozinha e subiu as escadas depressa, para pegar o celular e ligar para sua mãe. Felizmente, a mãe atendeu no segundo toque. - Oi, querida. O que foi? - Mãe. – ouvir a voz da mãe repentinamente fez os olhos dela se encherem de lágrimas. – Algo estranho está acontecendo com a Anne. - O que você quer dizer? – a mãe gritou, alarmada. – Ela está doente? - Não, não é isso. Pelo menos, eu acho que não. É só que ela está contando um monte de histórias


absurdas sobre o que ela tem feito na floresta ultimamente. Você sabe que ela está construindo uma casa na árvore com Sabine, não sabe? E que ela não queria nos contar onde estão construindo? Eu também sei que ela está escrevendo um conto de fadas. É a versão dela do Príncipe da Floresta, e agora ela está me dizendo que o príncipe disse para ela ficar de boca calada sobre o local da casa na árvore. Ela está sofrendo com uma paixonite por Thorsten e provavelmente o escalou para o papel de príncipe e herói em sua mente, mas isso está me assustando de verdade. É muito bizarro, não sei o que pensar. - Bem, será que ela não inventou uma história para você? Vocês contam histórias uma para outra o tempo inteiro, não? - Não, mãe. – Julia engoliu seco. – Ela está com medo. Tipo, muito assustada. Eu pude ver nos olhos dela. Ela disse que algo terrível aconteceria se ela falasse sobre o assunto. Ela disse que o príncipe ficaria raivoso com ela se ela contasse. Sua mãe ficou calada do outro lado da linha. - Eu conheço as viagens de fantasia de Anne, mas você está certa: isso não faz sentido. – ela admitiu afinal. – Se eu não a conhecesse bem, eu diria que ela usou alguma droga que causou algum tipo de psicose. Julia riu nervosamente. - Acho que ela é nova demais para isso. - Bem, é apenas um palpite. – a mãe parou por alguns segundos. – Quão bem você conhece esse Thorsten? - Não muito bem, mas ele parece legal. - Você sabe se ele fuma maconha? A boca de Julia ficou seca. Ela não fazia ideia, mas era completamente improvável. Fechando os olhos, ela tentou imaginar Thorsten segurando um baseado enquanto tocava guitarra em algum lugar deserto da floresta, assistindo as duas garotas trabalharem. - Você está querendo dizer que Thorsten ofereceu um baseado para a minha irmãzinha enquanto eles estavam construindo a tal cabana na floresta? – ela perguntou, sua cabeça girando. - Só estou pensando em voz alta – a Sra. Gunther respondeu. – Talvez ele não tenha ideia de que tipo de efeito essa coisa tenha em cérebros jovens. E quem sabe, ele pode ter até mesmo dito para Anne e Sabine para manter o local em segredo por enquanto. Se Anne estiver sendo drogada, essas palavras podem ter se tornado uma ameaça na mente dela. Com as pernas bambas, Julia tropeçou para trás, desabando sobre a poltrona no canto de seu quarto. - Não posso acreditar. Não posso conceber algo como isso. O que raios ele estava pensando? – sua mãe estava certa, era isso que deveria estar acontecendo. Thorsten tinha involuntariamente assustado sua irmã ao dizer que a casa na árvore devia ser um segredo e ele deve até mesmo tê-la deixado dar uma tragada em seu cigarro enquanto eles estavam trabalhando no bosque. Ele provavelmente não havia tido a intenção de causar dano, mas infelizmente, ele havia prejudicado Anne, de alguma forma. - Você quer que eu vá para casa? – a mãe dela perguntou. - Não, eu não acho que isso seja necessário. Anne provavelmente vai para a piscina com Sabine agora, então ela vai ficar bem. Mas fique tranquila que eu vou conversar com Thorsten hoje. Ele está encrencado. Julia finalizou a chamada e saiu ruidosamente do quarto, com uma expressão sombria. Não importava o quanto o vizinho fosse doce e legal, ele havia conseguido irritá-la de verdade. Ele


deveria ter ficado longe de sua irmãzinha. - Anne? – ela colocou a cabeça para dentro da porta da cozinha. – Vou de bicicleta para Eichet fazer compras. Você vai para os vizinhos? Anne se levantou e passou os dois braços ao redor da cintura de Julia. - O que a mamãe disse? – ela sussurrou. - Ela disse que não é para você ficar assustada. O príncipe não pode te causar mal – Julia disse suavemente, decidindo manter a brincadeira por enquanto. – E da próxima vez que você o encontrar e achar que ele está te assustando, você deve dizer a ele que você não quer mais vê-lo. - Ok. – Anne apertou a bochecha no ombro de Julia. – Eu vou fazer isso. Alguns minutos depois, Julia empurrava a sua bicicleta para fora do quintal e deixava Anne na casa dos vizinhos, do outro lado da rua. Sabine e a mãe estavam em casa e receberam Anne com os rostos sorridentes, e Julia teve a certeza que a irmã se divertiria naquele dia. Enquanto isso, Thorsten ia se dar bem mal, no que dependesse dela. Julia estava determinada em falar com ele, e se aquilo significasse que ela teria que perturbar a paz do supermercado local, ela não se deixaria abater. E daí se ele estivesse trabalhando e não tivesse tempo para ela? Ela estava queimando de raiva e a sua viagem frenética de bicicleta para Eichet não havia colaborado para diminuí-la. Quando ela finalmente encostou a bicicleta no muro e correu para dentro da loja, quase derrubou um carrinho que bloqueava parcialmente a entrada. Com o rosto corado de raiva, ela abordou a primeira assistente que encontrou para perguntar onde Thorsten estava. - Oh, ele acabou de ir para o fundo pegar algo no barracão – a garota respondeu. - Obrigada. – Julia saiu pela porta que dava para o barracão. Felizmente, ela sabia o caminho ao redor do supermercado, porque a mãe dela também trabalhava ali. Não demorou muito para que ela avistasse Thorsten. Sem perdê-lo de vista, ela se aproximou dele e parou bem em sua frente, com os braços cruzados. - Preciso falar com você – ela disse friamente. Ele a lançou um olhar confuso. - Hã, claro – ele disse, colocando no chão a caixa que estava carregando. – O que aconteceu? - Você precisa parar de falar coisas estranhas para Anne. – Julia explodiu. – Você não pode dizer que você vai ficar bravo com ela se ela revelar o local onde vocês estão construindo aquela casa na árvore. Ela está muito assustada, ok? E eu e a minha mãe não ficaríamos surpresas de saber que você está fumando um baseado no bosque enquanto trabalha na tal construção. Anne está contando as histórias mais malucas sobre isso. Os olhos de Thorsten se arregalaram, um olhar de profunda incompreensão em seu rosto. - Desculpe, mas do que raios você está falando? - Estou falando de Anne. - Sim, eu entendi isso. Eu não entendi o resto. Para ser honesto, eu estou achando que quem está parecendo maluca é você. Julia pegou fôlego e examinou Thorsten. Ele parecia genuinamente perplexo. Ele provavelmente não poderia imaginar que teria tamanho impacto em Anne e sua imaginação fértil. - Ok, posso ver que minhas histórias parecem desconexas, mas o que eu quero dizer é que minha irmã tem um carinho muito especial por você e o que você diz para ela a influencia mais do que você possa imaginar. Thorsten soltou um suspiro, balançando a cabeça. - Olhe, eu acho que você está brigando com a pessoa errada. Eu não ajudei Anne e Sabine no bosque. Bem, eu fiz alguns desenhos para elas, para que elas tivessem as plantas, e eu ajudei a


transportar madeira, mas foi só isso. Como é que eu poderia ajudar as garotas todos os dias? Estou trabalhando, não? Tenho feito turnos quatro vezes por semana. No silêncio que se seguiu, Julia deu alguns passos hesitantes para trás conforme absorvia, lentamente, as palavras de Thorsten. Ele não havia ajudado as garotas. Ele nem mesmo havia se juntado a elas nas idas à floresta. Então de onde é que Anne havia tirado aquela história maluca dela? - Tem certeza de que nunca usou drogas na presença de Anne? – ela pressionou, mas podia ouvir sua voz falhar. - Ok, é o seguinte. – Thorsten rebateu. – Que tipo de pessoa você acha que eu sou, hein? Eu não uso drogas, e mesmo que eu usasse, com certeza nunca me ocorreria fumar maconha na frente da minha irmãzinha e da melhor amiga dela! O que é que te dá o direito de chegar aqui e me acusar de todo tipo de coisas horríveis? - Desculpe. – Julia sussurrou, com o rosto corado de vergonha. Thorsten estava absolutamente certo. Ela havia se preparado para acusá-lo como um maconheiro irresponsável, para ter uma explicação para a história esquisita de Anne. Julia secou as lágrimas que brotaram em seus olhos, soltando a respiração, trêmula. Agora que ela havia descoberto que Thorsten não era o idiota drogado que ela o havia acusado de ser, ela estava sem ideia, exceto o pensamento de que Anne estava perdendo a cabeça. Será que a sua irmãzinha estava ficando louca? - Ei, não chore. – Thorsten parecia alarmado. Ele colocou a mão em seu ombro. – Desculpe ter gritado com você, eu não quis te chatear. Mas então, do que exatamente Anne está com medo? - Eu... Eu não sei. – Julia gaguejou, confusa. – Eu não consigo entender. Thorsten a puxou para perto, seu braço ao redor de sua cintura. - Acho que você deveria ir para casa e conversar com Anne de novo – ele disse, sério. – Crianças dessa idade podem ter uma imaginação muito fértil. Talvez, fértil demais. Se você acha que algo está realmente errado com ela, eu aposto que a sua mãe poderia pedir a opinião de um especialista. - Eu vou – Julia respondeu timidamente – Eu sinto muito mesmo. - Desculpas aceitas – ele disse suavemente – Você só está preocupada com Anne, então vamos esquecer que isso aconteceu. – ele beijou sua testa e a soltou. – Por que você não passa lá em casa e pergunta para a minha mãe se ela sabe o que elas tem feito na floresta esses dias? Ela deve saber. Ei, eu saio às três hoje, então eu vou até lá, ver se você está melhor esta tarde, ok? Julia concordou. - Obrigada. Vou gostar muito. Ainda se sentindo enganada, ela se viu parada ao lado de sua bicicleta, desorientada, após sair do supermercado. Quando finalmente se moveu, Julia foi até a casa de sua avó, no piloto automático. Sua avó estava no jardim em frente a casa, regando as plantas. Ela acenou quando viu a neta aparecer na estrada. - Que bom que você veio me visitar hoje, antes que Michael tome toda a sua atenção esta noite – ela disse, com um sorriso de orelha a orelha, mas seu rosto ficou sério quando ela olhou Julia mais de perto. – Qual o problema? Você parece preocupada. Quando a avó veio em sua direção e a puxou para um abraço, Julia desabou a chorar. Sem perguntar mais nada, a avó a levou para dentro até a cozinha, onde ela silenciosa e calmamente colocou uma xícara de chá para cada uma delas. Ela empurrou o pote de biscoitos sobre a mesa e Julia pegou um de chocolate, comendo, sem prestar atenção ao sabor. Todo seu corpo parecia fraco e ela tomou um pouco do chá para se sentir aquecida e diminuir sua tontura.


- Vovó. – ela começou, com a voz fraca. – Você não disse que achava que algo estava acontecendo com Anne aquele dia? A velha senhora olhou para ela, examinando-a. - Eu tive uma certa sensação de que algo estava errado, sim. Aconteceu alguma coisa? Julia fez que sim e calmamente contou para a avó o que Anne a havia contado naquela manhã. Como ela parecia realmente acreditar no conto de fadas que ela mesma havia inventado. O quanto ela estava assustada. - Ah, meu Deus. – a avó parecia chocada. – Você está certa em se preocupar com isso. Sei que Anne gosta de contos de fadas, assim como você, mas não faz sentido que ela fuja para dentro de uma história da qual ela esteja com medo. - Será que ela inventou esse conto de fadas para se proteger de algo que ela está com medo? A avó ficou em silêncio por um momento. – Você disse que ela mencionou que ela não estava autorizada a falar sobre isso. Ela disse que era um segredo? - Sim. – Julia prendeu a respiração. - Isso me lembra do comportamento estranho de uma amiga que eu tinha quando eu era uma garotinha. – a avó encarou a xícara de chá em suas mãos. – Ela costumava gostar de inventar todo tipo de histórias fantásticas, mas eu sempre achei que ela era meio ansiosa e reservada. Algumas vezes, ela mencionava um segredo que ela não podia contar a ninguém. Depois de certo tempo, nós descobrimos que o pai batia nela com frequência. Ele pode ter feito outras coisas com ela também. Eu sempre achei que ela nutria uma grande tristeza. Um arrepio percorreu a coluna de Julia. - Você acha que Anne está sendo abusada por alguém próximo a ela? Alguém que conhecemos? - Eu não sei. É uma possibilidade. - Mas quem? Quem poderia ser? Freneticamente, ela percorreu uma lista mental das pessoas com quem Anne lidava diariamente: pessoas na vizinhança, na escola, nas aulas de música... A avó colocou uma mão em seu braço. - Se eu fosse você, discutiria esse assunto com a sua mãe esta tarde e envolveria a Anne também. Ela poderia falar com o médico ou talvez com alguém no Conselho da Criança. Não há necessidade de suspeitar de todas as pessoas que venham à mente. Afinal, você não quer fazer falsas acusações. Certamente, não em um caso como este. A confrontação com Thorsten voltou em sua mente como um flash e Julia fez uma careta. Sua avó estava certa, ela não queria ir por aquele caminho novamente. - Vou para casa. – ela decidiu. – E eu vou ligar para a mamãe para pedir que ela volte para casa mais cedo, para conversarmos com Anne juntas. - Boa sorte – a avó disse – Eu ligo para vocês duas esta noite. Mergulhada em pensamentos, Julia foi com a bicicleta para casa. O sol estava brilhando e as aves estavam cantando, mas era como se uma sombra inquieta pairasse sobre ela. Pensar sobre a visita de Michael naquela noite não ajudava em nada, ela estava preocupada demais com Anne. Ela nunca havia ficado tão assustada em toda a sua vida. Depois de colocar a bicicleta de volta no abrigo, Julia atravessou a rua para visitar os vizinhos. Thorsten havia sugerido uma conversa com a mãe dele, então aquilo era o que ela faria primeiro. Possivelmente, a Sra. Ebner teria notado algo peculiar no comportamento de Anne também. Sabine e a mãe estavam sentadas no gramado brincando com um jogo de cartas. Julia congelou, o


pânico brotando em seu peito. Onde estava a sua irmã? - Ei, Julia - Sabine a cumprimentou. – Anne acabou de ir. Ela disse que ia ver a avó. - A vovó? – Julia sentiu o sangue desaparecer de seu rosto. Se fosse verdade, ela teria cruzado com Anne no caminho de volta de Eichet... A não ser que a sua irmã tivesse decidido ir de bicicleta pelo bosque. - Vejo vocês depois. – ela murmurou, correndo de volta para casa para pegar a bicicleta novamente. A toda velocidade, Julia correu para o bosque, ficando sem fôlego ao chegar à trilha principal da floresta. Deste ponto em diante, ela teria que ir mais devagar, em razão da estrada esburacada, mas ela tentava usar aquilo em seu favor, olhando febrilmente para todos os lados na esperança de encontrar Anne em algum lugar. Quando a estrada acabou e as árvores ficaram mais escassas, Julia parou e encarou cegamente céu azul, olhando por entre as castanheiras no fim da trilha. Ela se sentia enjoada, o medo injetando uma dose de adrenalina em suas veias. A tensão que atravessava seu corpo enfraquecia seus músculos. Anne não estava em lugar algum. Ela não acreditava nem por um segundo que sua irmãzinha havia decidido visitar a avó hoje. Ela desejava voltar à floresta desde a noite anterior, então ela havia escapado sorrateiramente, desaparecendo no meio do bosque. Julia tateou os dois bolsos da calça procurando por seu celular, até que se lembrou de que ele estava em casa. Nada de ligar para Anne ou para sua avó. Desesperada, ela se virou lentamente, olhando para todas as direções. Ela parou a bicicleta contra uma árvore e em um último esforço para encontrar Anne sem ajuda, Julia começou a correr ao longo do limite da floresta. Talvez ela descobrisse Anne vagando em algum lugar se ela fosse para o norte, onde a floresta ficava mais escura e mais densa. - Isso é loucura. – ela murmurou para si mesma, depois de andar por cinco minutos sem encontrar qualquer sinal de sua irmã. Não fazia sentido gastar uma tarde frustrada andando em círculos como uma idiota. Assim que decidiu se virar e voltar para sua bicicleta, Julia viu alguém caminhando entre as árvores, para o norte. A figura estava ainda muito longe, mas era definitivamente algum andarilho caminhando pelo bosque. Ele poderia ter visto Anne em algum lugar. Julia fechou os olhos e tentou acalmar a sua respiração. Ela teria que esperar aqui e perguntar para a pessoa, quando ela emergisse da floresta. Quando o tal andarilho se aproximou, ela viu que era um garoto não muito mais velho que ela. Seu coração parou quando ele se aproximou ainda mais. A luz do sol atingiu seu cabelo longo e loiro. Dois olhos azuis brilhantes encararam os dela. Ele emergiu das árvores e Julia começou a tremer. Ela estava encarando a face angelical de Legolas com os olhos azuis de Thorsten. Ele era o Príncipe da Floresta. O garoto que Anne havia desenhado em seus cadernos, os desenhos que Julia não deveria ter visto.


10. - Grüss Gott. – o garoto a cumprimentou educadamente. Julia engoliu. - Olá. – sua voz soava estridente, mas o garoto não pareceu notar. Ele passou por ela e continuou caminhando, desviando-se para a direita, para chegar até a estrada que levava a Eichet. Julia hesitou por um segundo, então começou a segui-lo a certa distância, o suor escorrendo pelas palmas de suas mãos. Ela esperava que ele não olhasse para trás. Anne havia encontrado aquele garoto na floresta. Aquele mesmo garoto. Ela tinha certeza. E aquela era a chance que ela tinha de descobrir onde ele vivia e dizer a ele que deixasse Anne em paz. E se ele tivesse dado drogas para Anne? E se ele tivesse até mesmo abusado dela? Julia tentou afastar as lágrimas. Com um nó em seu estômago, ela seguiu o garoto até que ele entrou em uma casa isolada em um dos bairros mais ricos de Eichet, à uma pequena distância das demais casas daquela rua tranquila. Julia parou indecisa, atrás de uma árvore grossa próxima à casa do garoto, seus olhos fixos na porta de entrada. Como assim? Ela tinha certeza de que aquele garoto havia feito algo errado ou ela estava prestes a abordar outra pessoa inocente com um monte de acusações sinistras e fazer papel de idiota pela segunda vez no dia? Fazendo uma careta, Julia suspirou e se virou, depois de memorizar o nome da rua e o número da casa. Ela começou a correr de volta para o lugar onde havia deixado a sua bicicleta. Talvez ela estivesse fazendo uma tempestade em copo d’água. Talvez Anne já estivesse de volta quando ela chegasse em casa. E se não, ela ligaria em seu celular e diria para vir imediatamente para casa. Ela ligaria para a mãe também. Tudo ficaria bem. Quando Julia virou para sua rua, a Sra. Ebner saiu de sua casa e atravessou a rua para interrompê-la. - Julia – ela disse, com o rosto preocupado. – O que está acontecendo? Você encontrou a Anne? - Não, não encontrei. – Julia colocou a bicicleta contra a cerca. – Vou ligar para ela agora. E para minha mãe também. - Desculpe por tê-la deixado sair sozinha. Eu me sinto tão mal agora. Eu não pensei que haveria problema em deixar Anne ir para a casa da avó, mas então Sabine me disse... – a voz dela sumiu. - O que? – Julia esperou ansiosa a resposta da vizinha. - Sabine diz que Anne tem o costume de ir sozinha para o bosque ultimamente. E ela não tem ideia do que Anne está fazendo lá. Algumas vezes sua irmã recebia mensagens de texto e ia embora logo em seguida, sem dizer a Sabine de quem era, mas mencionava que ia trabalhar em sua história. - Ah, meu Deus. – Julia se inclinou sobre a cerca, suas pernas tremendo. – E ela só disse isso para você agora? - Sim, porque Anne vivia dizendo que era um segredo. Sabine não queria trair a confiança dela. – o rosto da Sra. Ebner estava pálido. – Eu acho que você deveria ligar para a polícia. Há algo estranho nessa história toda, se você quer saber. - Vou fazer alguns telefonemas. – Julia foi para dentro e correu escada acima para pegar o seu celular e checar se havia novas mensagens. Nenhuma mensagem de texto ou chamadas perdidas. Ela ligou para Anne e a ligação chamou várias vezes antes de cair na caixa postal. - Anne, você tem que voltar para casa imediatamente – ela disse, séria – E por favor, me ligue de volta quando receber esta mensagem. – ela desligou e ligou para a avó.


- Alô. - Vovó, é a Julia. A Anne está com você? - Não, ela não está. Julia, o que está acontecendo? Você conversou com ela? Julia respirou fundo. - Não, eu não tive chance. Ela não estava aqui quando eu voltei. Vou ligar para a mamãe agora, ok? – sua voz falhou. - Faça isso. Me conte o que aconteceu, querida. - Pode deixar, vovó. Julia desligou e ligou para o celular de sua mãe. Nenhuma resposta. Ela não queria simplesmente deixar um recado, então ela ligou para o telefone fixo. Felizmente, o tio Helmut atendeu depois de dois toques. - Olá. É a Julia. A mamãe ainda está com você e a tia Verena? - Sim, elas estão tomando café na varanda. Você quer que eu a chame? - Por favor. Enquanto Julia esperava por sua mãe, ela se levantou e caminhou até o quarto da irmã. Atropeladamente, ela abriu os armários e gavetas para procurar os desenhos e o diário de Anne. Ela possivelmente encontraria alguma pista ali. - Oi, querida. Você falou com o Thorsten? – a mãe disse, interrompendo sua busca. - Falei, mas ele não sabe de nada. Mãe... Anne sumiu. Ela mentiu para os Ebner sobre ir visitar a vovó e saiu para a floresta sozinha. Eu acho... – Julia respirou fundo, o choro escapando de sua garganta. - Espere! – a mãe gritou. – O que aconteceu? Por que você está tão chateada? Com muita dificuldade, Julia contou para a mãe o que Thorsten e a avó haviam dito e o cara misterioso que ela havia encontrado enquanto procurava por Anne no bosque. - Ok. Estou indo para casa agora mesmo – a Sra. Gunther disse, sua voz trêmula. – Mas primeiro eu vou ligar para a polícia. Eles devem chegar aí mais rápido do que eu, mas você pode se adiantar e conversar com eles. Diga-lhes exatamente a mesma história que você me contou. Eu estarei aí o mais rápido que puder. Julia desligou. Naquele período, ela conseguiu encontrar uma grande pilha de desenhos que Anne havia feito. Ela olhou, sem enxergar, aos outros retratos que ela havia feito do garoto loiro do bosque. Havia mais três além do desenho que ela já havia visto e a semelhança era chocante. Ela tinha que entregá-los aos policiais, como prova. A gaveta da escrivaninha de Anne continha o diário dela. Ele estava trancado com um cadeado frágil, que não parecia difícil de abrir. Julia pegou o diário e o levou para baixo, para pegar uma pequena chave de fenda na caixa de ferramentas. Depois de três tentativas, ela conseguiu arrombá-lo. Julia se sentou pesadamente na mesa da cozinha, com o livro em sua frente. Quando ela abriu o diário, a caligrafia infantil de Anne a encarava nas páginas. Julia limpou uma lágrima solitária, apertando os punhos. A polícia tinha que encontrar sua irmã, e talvez ela descobriria algumas pistas nesse diário que pudessem ajudá-los na tarefa. Rapidamente, ela folheou as páginas até que algo na margem chamou sua atenção. Era uma linha inteira de corações, ligados por uma linha elegante, que parecia um ramo. Os corações estavam pintados de verde com caneta hidrográfica. O coração de Julia acelerou quando ela começou a ler a página decorada do diário. “Eu e Sabine começamos nosso trabalho na casa da árvore, e quando ela foi para casa, eu fiquei para trás, para caminhar um pouco mais para dentro da floresta. E algo aconteceu ali. Era como um sonho! Havia um lindo garoto ali, sentado em um tronco de árvore. Ele começou a


conversar comigo e me disse que também me achava bonita! Ele disse que eu parecia uma princesa. Mas eu não posso contar a ninguém que eu o vi ali. Eu acho que ele pode ser o Príncipe da Floresta! Será que ele é real?” “Então hoje, eu perguntei se ele era o príncipe do bosque e ele disse que eu havia acertado. Não posso acreditar! Ele diz que o portal para o palácio dele está em algum lugar na floresta e que é por isso que eu não posso contar a ninguém sobre ele ou sobre os nossos encontros. Ele está tentando esconder a entrada para a Terra Encantada para que ninguém mais possa achar. Antes de eu voltar para casa, ele dançou comigo e até me beijou, assim como nos livros de história. Estou tão apaixonada!!!” “Ele me deu alguns cogumelos hoje. Ele disse que se eu os comesse, eu poderia ver as fadas que moravam do outro lado do portal, por alguns segundos. Foi muito estranho. Primeiro eu vi todos os tipos de coisas lindas e maravilhosas, mas depois eu quis vomitar. Acho que é porque eu tinha que voltar para o mundo dos humanos.” “Eu sentei no colo dele, com os braços dele ao redor do meu corpo e eu comi outro daqueles cogumelos encantados. Parecia que eu estava flutuando. Ele disse que ele me faria a princesa dele, quando voltasse para seu palácio. Todos os dias ele diz que sou linda!! Ele é meu príncipe encantado.” “Ele estava bravo comigo. Eu mostrei um desenho que eu fiz do rosto dele, mas ele o rasgou. E então ele gritou comigo, dizendo que eu não podia nunca contar a ninguém sobre ele ou sobre a entrada no reino dele, porque algo terrível aconteceria se eu fizesse isso. Eu estava planejando contar para a Julia sobre ele, mas agora eu estou assustada. Por que ele estava tão bravo? Ele não está mais apaixonado por mim?” O estômago de Julia revirou quando ela empurrou o diário na mesa e se recostou na cadeira. Aquilo era muito pervertido e errado de todas as maneiras, e ela não conseguia parar de tremer. Então era mesmo aquele garoto loiro que ela encontrou no bosque. Aquele pedófilo doente havia tocado Anne. Ele a havia segurado em seus braços, a beijado, dado cogumelos para ela comer. Ele havia mentido para ela para que pudesse se tornar o príncipe do conto de fadas dela. E ela, Julia, tinha inocentemente contado a Anne naquela mesma manhã que o príncipe não a podia machucar nem a forçar a vê-lo, se ela não quisesse. E repentinamente, ela se lembrou do telefonema que Anne havia recebido enquanto ela estava no banho. Talvez não havia sido uma de suas colegas, afinal. Talvez havia sido aquele garoto, dizendo a ela para ir se encontrar com ele na floresta. Então era por isso que Anne tinha parecido tão ansiosa e insegura. Julia despertou quando a campainha tocou. Lutando contra as lágrimas, ela se levantou para deixar os policiais entrarem. Ela tinha que ser coerente em seu interrogatório. O diário podia ser usado como prova também, então havia sido uma boa coisa encontrá-lo. Mas não era a polícia. Quando ela abriu a porta, Thorsten estava parado ali. - O-oi. – ela gaguejou. – Você não ia trabalhar até às três? Ele entrou na casa. - Eu saí um pouco mais cedo. Estava preocupado com você. – ele a lançou um olhar questionador. – E com razão. Você está horrível. Você já falou com a Anne? Ouvir o nome da irmã era demais. Julia caiu no choro. - Não. – ela lamentou. – Anne sumiu. Desapareceu. E eu estou com tanto medo que esse tal garoto a tenha machucado, - Espera aí. Que garoto?


- O garoto do bosque. – Julia sussurrou. – O garoto que ela desenhou. O garoto de quem ela fala no diário. – ela foi em direção à cozinha, com as pernas bambas, e mostrou a Thorsten o diário e os desenhos, contando a história sobre ter encontrado esse garoto misterioso, parecido com o Legolas, na floresta, os desenhos que Anne havia feito e as histórias assustadoras que ela havia contado. - A polícia está a caminho e eu tenho certeza de que vão apreender o garoto para interrogatório. – Thorsten a assegurou, com o rosto sombrio. – Ele pensará duas vezes antes de incomodar Anne novamente. Eu não acho que ele irá machucá-la, ele não ousaria. Ele sabe que ela fez desenhos dele, afinal. - Espero que você esteja certo – Julia respondeu, abatida. Ela pegou o celular: ainda nenhuma mensagem. – Mas, Thorsten, e se ela não voltar? O que eu vou fazer? - Vamos dar um tempo. – Thorsten passou o braço ao redor dela, balançando-a para frente e para trás, gentilmente, quando ela começou a chorar novamente. – Se acalme. Alguns minutos mais tarde, a porta da frente abriu e a Sra. Gunther entrou com três policiais a seguindo. Ela olhou para a filha mais velha ansiosa. - Anne ainda está desaparecida? Julia olhou para a mãe. Era hora de contar as outras coisas que ela havia descoberto, mas ela nem sabia por onde começar. Por sorte, Thorsten tomou a iniciativa e mostrou à polícia o diário e os desenhos, contando a eles tudo que Julia lhe havia contado. Ele também deu o endereço do garoto misterioso dos desenhos. - Vamos até lá verificar. – o detetive que comandava a equipe prometeu. – Acho que vou providenciar um mandado de busca imediatamente. Se ele estiver mantendo aquela garotinha presa dentro da casa ou em algum lugar próximo, nós a encontraremos. - Podemos ir? – Julia perguntou timidamente. O detetive balançou a cabeça. - Você não vai querer, acredite. Não vai ser algo bom de ver. Volto assim que puder. A polícia foi embora e a Sra. Gunther desabou no banco da cozinha ao lado de Julia e Thorsten. - Eu deveria ter dado mais atenção a ela. – ela murmurou vagamente. – Eu deveria ter ficado mais em casa. Eu não devia ter permitido que ela perambulasse tanto por aí, sozinha. O coração de Julia se despedaçou quando ela viu a mãe se culpando. Reconhecidamente, ela havia pensado as mesmas coisas, alguns dias antes, mas não era culpa de sua mãe o que estava acontecendo. Além disso, o que ela poderia ter feito diferente, de qualquer maneira? Ela era uma mãe solteira, com duas filhas. - Não faça isso, mãe. – ela sussurrou, puxando-a para mais perto. – Não seja tão dura consigo mesma. Como é que nós poderíamos saber o que estava acontecendo naquela floresta? - Desculpe – a mãe respondeu, um choro desesperado em sua voz. Thorsten se levantou. - Vou perguntar para a Sabine o que ela sabe, mais uma vez – ele disse, determinado – Talvez as perguntas certas vão fazê-la se lembrar de algo mais. Minha mãe disse que ela sabia mais sobre os passeios de Anne na floresta. Julia ergueu os olhos. - Você vai voltar? – de repente, ela precisava desesperadamente do seu apoio. Ele dava a força que ela precisava para acreditar em um final feliz. Ele concordou. - Eu volto logo. – prometeu. A Sra. Gunther ficou de pé em um salto e começou a andar pela cozinha, doentiamente esfregando


todas as bancadas com uma esponja. - Não posso simplesmente ficar sentada. – ela explicou, quando Julia a encarou. – Vou enlouquecer se ficar pensando demais. Julia sorriu fracamente, deixou a cozinha e se sentou no último degrau da escada agarrando o seu celular. A primeira coisa que ela fez foi ligar para Axel para contar sobre os acontecimentos daquele dia. - O que? – ele exclamou, incrédulo. – Eu estarei aí assim que possível. Estávamos indo para o ensaio da banda do Moritz. De qualquer forma, já estamos dentro do ônibus. - Nós? - Sim, eu e Gaby. Estaremos aí em um instante, ok? Quando a campainha tocou, Julia e a mãe quase tropeçaram no caminho para a porta da frente, mas não era a polícia. Thorsten estava ali, ao lado de Sabine. A garota ansiosamente olhava para elas. - Eu não sabia que ela estava fazendo coisas perigosas – a pequena vizinha disse com a voz entrecortada - Ela sempre parecia tão feliz quando voltava da floresta. E ela disse que eu não podia contar o segredo dela para ninguém. A Sra. Gunther colocou uma mão na cabeça de Sabine, consolando-a. - Não havia nada que você pudesse fazer, querida. Por que não nos conta agora? Diga tudo o que você sabe sobre Anne e aonde ela sempre ia. - Bem, ela dizia que se eu algum dia encontrasse alguma porta na floresta, que eu não deveria atravessá-la, porque isso chatearia o Príncipe da Floresta. - Uma porta? – Julia pensou no portal sobre o qual Anne havia escrito em seu diário. - Sim, foi o que ela disse. Eu achei estranho. Você vê portas em casas, e não existem casas na floresta. Eu pensei que ela estivesse apenas me contando alguma parte da história dela. Eu sabia que ela estava escrevendo e desenhando coisas para isso. - Seria possível haver alguma cabana abandonada em algum lugar da floresta? – Thorsten sugeriu. - Não faço ideia – Julia respondeu – Nunca encontrei nada do tipo, mas também, eu sempre sigo as trilhas quando vou correr ou andar de bicicleta. - Talvez devêssemos ir procurar por ela. – Sabine olhou os adultos ao seu redor, seus lábios tremendo. Thorsten concordou. - Nós vamos, mas sem você. Não quero saber de perder mais nenhuma garotinha naquela floresta hoje. Sabine insistiu com o irmão, mas sem sucesso. Ela o seguiu emburrada porta afora. Não demorou muito para que Axel e Gaby aparecessem na porta da frente. Gaby correu para a amiga e a abraçou forte, enquanto Julia sem dizer nada enterrou o rosto no cabelo escuro de Gaby. - Ah, meu Deus, Gaby, esse dia inteiro parece um pesadelo. – ela fungou, quase inaudível. Axel abraçou a tia, e eles todos ficaram em silêncio por alguns segundos. Então Julia se afastou, levando Gaby e Axel para a cozinha para mostrar os desenhos e o diário. Enquanto isso, a mãe fez chá para todos. - Aquele maldito doente! – Axel disparou, jogando o diário na mesa ao acabar de ler. – Sabe de uma coisa? Eu espero que a polícia o prenda pelos próximos trinta anos. Pessoas desse tipo não deveriam poder sair de lá nunca mais. – ele ficou em silêncio, o rosto branco como papel. Gaby gentilmente pegou a sua mão e deu uns tapinhas encorajadores, o que fez Axel se jogar em seus


braços com um sorriso fraco em sua direção. Julia observou seus dois amigos do outro lado da mesa e sentiu um esboço de um sorriso cruzar seu rosto. Parecia que o filme da noite anterior havia sido bom para Gaby e Axel. Quando a campainha tocou novamente, era o Detetive Spitzer, que havia visitado a casa do garoto em Eichet, seguido por Thorsten. O senhor entrou na cozinha, o rosto sério. - E então? – a Sra. Gunther ergueu o olhar, aflita. - Não encontramos Anne. – ele pegou uma cadeira e se sentou pesadamente. – Fizemos uma busca pela casa, mas não pudemos encontrar nada suspeito, ou nada de mais, de qualquer forma. Encontramos, sim, alguns cogumelos mágicos no quarto do garoto. O nome dele é Andreas Mittelmayer. Nós o levamos em custódia para interrogatório na delegacia. Eu os manterei informados e ligarei mais tarde. – O policial tomou um pouco do chá que Julia o havia entregado e então continuou em voz baixa. – Isto posto, achamos outros itens na casa que levantaram suspeitas. Diferentes tipos de clorofórmio... Mas, a Sra. Mittelmayer é veterinária, então ela precisa de narcóticos para seu trabalho algumas vezes. Além disso, não se pode usar clorofórmio para drogar alguém sem saber. Esta é uma lenda urbana. Quando o detetive Spitzer saiu, os cinco ficaram sentados na mesa da cozinha, catatônicos. Anne não estava na casa de Andreas. Então, onde é que ela estava? Seria possível que ela ainda estivesse vagando pela floresta? - Vamos procurar por ela. – Thorsten explodiu. – Por Anne, ou por aquela porta misteriosa que ela estava falando... Qualquer coisa. Temos que tomar uma atitude. - Vou ligar para a vovó e para a tia Verena. – a mãe de Julia anunciou. Ela pegou a mão de Julia no caminho. – Não fique fora muito tempo, ok? E por favor, leve o seu telefone com você. Julia concordou. Ela e Thorsten pegaram suas bicicletas, enquanto Gaby e Axel pegaram emprestado a da Sra. Gunther para irem juntos. Gaby se sentou na garupa e segurou firme em Axel, que estava pedalando. Julia parou de pedalar por um instante quando se lembrou de seu encontro com Michael. Ele iria até a sua casa naquela noite. Não seria melhor cancelar o jantar deles? Ainda assim, ela queria vê-lo. Ela queria que ele a consolasse, da mesma forma que Thorsten havia feito mais cedo naquele dia. E pelo que ela sabia, eles encontrariam Anne na floresta agora, e esse pesadelo estaria acabado antes mesmo de ele aparecer. Quando eles chegaram à floresta, seguiram a trilha principal por um instante, até que Thorsten desceu de sua bicicleta. - Vamos deixar as bicicletas aqui e ir andando. – ele apontou para uma área escura cheia de árvores que bloqueavam a visão deles. – Sabine me disse onde podemos ver a casa na árvore que elas estavam construindo, podemos usar aquele local como ponto de encontro e cada um vai em uma direção fazer a busca. - Boa ideia. – Axel concordou. – O local que Anne usava para se encontrar com aquele sinistro não deve ser muito longe de lá. Um momento mais tarde eles encontraram a cabana e se espalharam. Thorsten foi para a direção oeste, Julia para o norte e Gaby e Axel para o leste. Eles vinham do sul, onde estavam todas as trilhas de ciclistas e bicicletas, então não precisavam olhar ali. Todos estavam com relógio ou carregando um celular, para que pudessem ficar atentos à hora. Os quatro tinham concordado em caminhar por meia hora e então voltar, para que pudessem estar de volta à casa na árvore em uma hora. Julia foi a primeira a voltar para o ponto de encontro, depois de ir para o norte, sem encontrar


nada. Ela havia andado a um certo ritmo e havia corrido na última parte do trajeto, então ela não estava surpresa por não ter ninguém ali ainda. Secando o suor de sua sobrancelha, ela se sentou em um toco de árvore e verificou o celular. Talvez houvesse notícias dos outros membros da equipe de busca. Ela tinha duas novas mensagens. A primeira era de Michael. “estarei aí às 4:30, o martin vai me liberar mais cedo :) Te vejo mais tarde!! bj” A segunda era de Gaby. “Jules, achei um grampo de cabelo que parece um da Anne. Marquei o lugar e estou voltando agora. Tem que ligar pra polícia!” O estômago de Julia revirou. Então Anne tinha mesmo se aventurado para dentro da floresta. Graças a Deus, Gaby e Axel haviam encontrado algo. Pelo menos a polícia teria uma ideia melhor de onde procurar a irmã agora. “querido Michael, está acontecendo muita coisa aqui e nada boa... minha irmãzinha está desaparecida, provavelmente foi sequestrada. Por favor, venha para cá o quanto antes. Vou te pegar no ponto de ônibus. Bj. Julia.” Ela enviou a resposta rapidamente de volta, antes de ligar para Gaby. A amiga atendeu no primeiro toque. - Oi Jules. – ela ofegou. – Estaremos aí daqui cinco minutos. Esse grampo... É um daqueles corde-rosa da Hello Kitty. O Axel tem certeza de que é do conjunto que ele deu para ela de Natal. - Bom saber que vocês encontraram alguma coisa que leve a ela. – Julia disse, séria. – Estou esperando vocês. Quando ela desligou, viu Thorsten se aproximando. Ele estava balançando a cabeça, indicando que não havia encontrado nada. - Gaby e Axel encontraram algo – ela gritou para ele. Ele acelerou o passo e se sentou ao seu lado no toco de árvore. - Mesmo? O que eles acharam? - Um grampo de cabelo, de um conjuntinho que Anne usa muito. Eu só não lembro se ela estava usando grampos esta manhã. - Bem, nós devemos ligar para o detetive. Quem sabe aquele tal Andreas pode ter confessado algo. Não demorou muito para que Gaby e Axel voltassem para a cabana. Axel entregou o grampo de cabelo para Julia, sem falar nada. Ela o reconheceu imediatamente. - Sim, é dela. Oh, Deus. - Nós desenhamos um mapa de como caminhamos para chegar àquele lugar – Gaby disse, mostrando algumas indicações rabiscadas no verso de um recibo de loja. - Vamos para casa. – Julia se levantou. – Temos que avisar a polícia. Os quatro voltaram de bicicleta o mais rápido que conseguiram. A Sra. Gunther estava no jardim, conversando com a Sra. Ebner quando eles chegaram. Seu rosto ficou branco como papel quando Julia a mostrou o grampo de cabelo. - Oh, não. – ela sussurrou, em choque. – O que... Onde vocês o encontraram? - No meio da floresta – Axel respondeu – Mas não vimos nenhum sinal da Anne. A mãe de Julia caiu no choro, parecendo completamente esgotada. Toda sua energia havia se acabado. - Você deve levá-la para dentro. – A Sra. Ebner sugeriu à Julia e Axel. – Sua avó está na sala, ao


lado do telefone, para o caso de a polícia ligar novamente. Gaby e Thorsten seguiram os outros para dentro. - Oi, vovó. – Axel cumprimentou a senhora, desanimado. – Por que você não estica as pernas e deixa Julia vigiar o telefone? Ela precisa ligar para a delegacia. As mãos de Julia tremiam enquanto ela digitava os números. - Olá, eu estou ligando para falar sobre Anne Kandolf, a... A garota desaparecida. – ela gaguejou. – Posso falar com o Detetive Spitzer, por favor? Quando foi colocada na espera, seu celular apitou. Era uma mensagem de texto de Michael. - Ah, droga, ele já está no ponto de ônibus. – ela murmurou, mostrando a mensagem a Gaby. – Você poderia, por favor, ir buscá-lo? Ele não sabe direito onde eu moro, e eu prometi que ia encontrar com ele lá. - Considere isso feito. – a melhor amiga sorriu fracamente e deixou a sala. Naquele momento, a música do outro lado da linha foi interrompida e o detetive atendeu ao telefone. - Spitzer. – a voz dele ecoou. - Detetive? Aqui é Julia Kandolf. Eu acabei de ir até o bosque com meus amigos e nós encontramos um grampo de cabelo que pertence a Anne. Nós achamos que ela o perdeu quando encontrou Andreas Mittelmayer. Eu só não lembro se ela estava usando ele essa manhã. É possível que ela tenha perdido há alguns dias, também. O detetive Spitzer suspirou. - Eu estava mesmo prestes a ligar para você e sua mãe. As coisas não parecem boas. Andreas Mittelmayer não nos disse nada. Ele afirma categoricamente que nunca viu Anne na vida. Não pudemos encontrar um traço sequer da presença de Anne em sua casa. Ninguém na vizinhança se lembra de ver os dois juntos. O telefone de Andreas não tem o dela nos contatos, nem tem nenhuma chamada ou mensagem de texto feitas ou enviadas ao celular de Anne, então, não há prova nenhuma de que ele tenha entrado em contato com ela por telefone. E, claro, o celular de sua irmã não está em nenhum lugar, então, não podemos usá-lo como prova. Julia engoliu seco. - Então, o que você está dizendo? - Estou dizendo que não temos o direito de mantê-lo em custódia. Eu não posso manter uma pessoa presa apenas por conta do diário de uma criança e alguns desenhos. – o detetive Spitzer abaixou a voz. – Olhe, eu vou mantê-lo aqui hoje à noite. Oficialmente, eu só posso enviar policiais para buscar uma criança desaparecida depois de vinte e quatro horas, porque a maioria das vezes as crianças que saem de casa voltam antes desse período e nossa ajuda não é mais necessária. Eu não posso fazer nada por vocês no momento, mas isso será diferente amanhã à tarde. Infelizmente, Andreas Mittelmayer será solto na primeira hora da manhã. - Você não pode estar falando sério! – Julia exclamou. – Ele pode machucá-la antes que vocês possam encontrá-la! – Todos na sala encaravam Julia, os rostos em choque. - Eu entendo a sua preocupação. Infelizmente, eu não posso mudar a lei. Na verdade, eu já estou flexibilizando as regras ao mantê-lo trancado até de manhã. Eu normalmente nem consideraria fazer isso, mas como diz respeito a uma garotinha, estou fazendo o meu melhor para ajudá-las. E vou ser franco com você, eu não confio naquele garoto, nem por um segundo, mas eu não posso basear as minhas decisões em um sentimento. Eu tenho que me apoiar na lei. - Bem, você poderia pelo menos mandar algum de seus policiais para averiguar a casa de Andreas, quando ele for libertado? – Julia propôs, desesperada.


- Não posso. Sem provas, não temos motivos para mantê-lo sob vigilância. Mas, você está livre para ficar de olho nele por sua conta. Eu não a impedirei. Julia murmurou um obrigada ao detetive, que prometeu ligar na tarde do dia seguinte, antes de lentamente colocar o telefone no gancho. Thorsten caminhou até ela e colocou a mão em seu ombro. - Então, o que ele disse? Julia estoicamente contou a todos o que o detetive havia dito. Sua mãe e a avó ficaram ainda mais pálidas do que já estavam. Axel apertou os punhos. - Inacreditável. Bem, ninguém vai me impedir de patrulhar a casa daquele doente pedófilo dia e noite. – ele resmungou. - Conte comigo – Thorsten disse – Não posso acreditar que eles vão soltá-lo. - Eles são obrigados a isso. – a Sra. Gunther murmurou, categoricamente. – Você é inocente até que se prove o contrário. A polícia não pode simplesmente sair por aí, prendendo qualquer um que seja acusado de um crime. – ela piscou, forçou a cadeira para trás e marchou para dentro da cozinha. Julia se virou para a avó. - Ela já ligou para o papai? A avó balançou a cabeça. - Ainda não. Ela queria esperar pelo retorno da polícia. Eu posso ligar para ele se você quiser. Naquele instante, a porta se abriu e Gaby entrou com Michael. - O que aconteceu? – ela perguntou, preocupada, olhando para as faces pálidas na sala. Michael imediatamente correu para Julia e a abraçou carinhosamente. - Eu sinto muito, muito mesmo. – ele murmurou. – A Gaby me contou tudo. - A polícia não vai ir atrás dela até amanhã. – Julia chorou, não mais podendo segurar as lágrimas, agora que Michael estava ali para consolá-la. – Eles não conseguiram tirar nada daquele cara. E ele estará livre amanhã de manhã. Os olhos de Gaby se arregalaram. - Eles vão esperar até amanhã? Como assim? Mas eles sabem que Anne não fugiu de casa. - Não, eles não sabem – Axel respondeu – Ela saiu de casa porque quis. Ela inventou uma desculpa para ir até a floresta. Ninguém a forçou. Detesto ter que admitir, mas estamos ferrados. - Não, não estamos – Thorsten disse, acaloradamente – Nós podemos voltar para a floresta. Nós podemos procurar por Anne. Michael ergueu o olhar, encarando Thorsten. - Você acha que ela ainda está lá? - Bem, onde mais ela poderia estar? Quando a polícia procurou na casa de Andreas, não conseguiram encontrar nada. - Então por que nós não a vimos andando por ali quando procuramos na floresta, mais cedo? – Gaby devolveu. Thorsten ficou em silêncio. - Ela poderia estar... Caída em algum lugar – ele disse, finalmente, um olhar incômodo em seu rosto. Julia estremeceu. - O que você quer dizer? - Não pense no pior. Ele pode tê-la sedado e a escondido em algum lugar. - Atrás de uma porta. – Gaby murmurou pensativa. – Algum lugar atrás da tal porta que nós ainda


não encontramos, o tal portal sobre o qual ela escreveu. Michael levantou-se, resoluto e olhou para Axel e Gaby. - Vocês podem me levar até o local onde encontraram o prendedor de cabelo? Se ela realmente estiver por ali, nós a encontraremos. Todos olharam surpresos para ele. Ele parecia determinado, tanto que nem parecia considerar a possibilidade de não serem bem sucedidos. Julia fez uma careta para ele, confusa, mas não comentou nada. Era maravilhoso que ele se oferecesse para ajudar imediatamente, agora que a polícia havia provado ser meio inútil até o dia seguinte. Quando ela se levantou, notou o quanto seu corpo inteiro estava fraco, depois de sua conversa desanimadora com o detetive Spitzer. Michael pegou sua mão, apertando-a encorajadoramente. - Eu vou te ajudar. – ele sussurrou. – Anne vai voltar. Dez minutos depois, um grupo de sete pessoas havia se organizado para entrar novamente na floresta. A mãe de Julia, a mãe de Thorsten e Michael agora faziam parte da equipe de busca também. A avó de Julia ficaria em casa para esperar Anne ali, para o caso de ela finalmente aparecer. - Vamos – Axel disse, liderando o grupo com Gaby ao seu lado. Julia os seguiu, acompanhada da mãe. Atrás dela, ela podia ouvir Thorsten e Michael conversando. - Que direção vocês tomaram quando foram procurar por ela mais cedo? – Michael quis saber. - Axel e Gaby foram para o leste – Thorsten respondeu – E eles foram bem longe para dentro da floresta. E a Julia disse que eles chegaram até uma parte sem nenhuma trilha. - Certo – Michael interrompeu. – As pessoas normalmente não vão até lá. Julia aguçou os ouvidos. Quanto tempo Michael realmente havia passado naquela floresta? Ele parecia conhecer cada pedacinho dela. Ela não conseguia deixar de pensar na pessoa que ele tinha sido antes, na escola e durante as aulas, e não se lembrava daquela simpatia pela natureza. Então como é que ele sabia todas aquelas coisas? Algo não se encaixava. Ela virou a cabeça para olhar para ele. Michael ainda conversava com Thorsten, mas de algum modo havia percebido seu olhar. Ele olhou de volta para ela, sorrindo encorajadoramente. Seu sorriso doce e verdadeiro a fortaleceu, e por apenas um momento, Julia pôde esquecer todas as perguntas girando em sua mente. Michael estava ali, ao seu lado, para cuidar e ajudar. Ele estava apaixonado por ela. O que poderia estar errado naquilo? Ela estava se preocupando demais. Ela olhou para frente outra vez. Sua mãe colocou uma mão em suas costas, esfregando seu ombro. - Ele parece um cara legal – ela disse com um pequeno sorriso. – Desculpe não poder estar mais feliz por você neste momento. Julia mordeu o lábio. - Oh, mãe. – ela segurou o braço da mãe e decidiu não dizer mais nada. Depois de quarenta minutos de caminhada, eles chegaram ao lugar onde o grampo de cabelo foi encontrado. Gaby e Axel olharam em volta, indecisos. - Então... Este é o lugar. – Axel afirmou, lançando um olhar questionador a Michael. Ele é que havia pedido para ser levado até lá afinal. Michael concordou. Ele deu alguns passos lentos para frente, acariciando o braço de Julia ao passar. Seus passos foram para a esquerda, para longe do grupo, e ele parou ao lado de um jovem carvalho. E então, ele fechou os olhos. Ninguém disse nada quando ele se agachou, colocando as mãos no solo, ao redor da árvore. Um arrepio percorreu o corpo de Julia, quando ela percebeu o que ele estava fazendo. Aquilo lembrava a forma como ela normalmente se sentava sob o carvalho dela. Como se ela estivesse, de algum modo,


se conectando com as raízes subterrâneas. Como se ela pudesse sentir o que a árvore estava sentindo. Michael estava fazendo exatamente a mesma coisa naquele momento, era evidente. Ele estava conversando com a floresta. Abruptamente, Michael ficou de pé. - Aqui – ele disse suavemente, adentrando a floresta sem hesitar, com o resto do grupo atrás dele. Julia o alcançou. - Como você sabe... – ela gaguejou. – Você sabe se... - Ela ainda está viva – ele disse, deslizando sua mão na dela, como havia feito milhares de vezes antes. – Não se preocupe. Apesar de suas palavras, Julia não conseguia afastar sua ansiedade crescente conforme eles caminhavam, entrando mais e mais na floresta. Quando Michael finalmente parou, eles estavam em uma pequena clareira próxima a alguns pinheiros e os alicerces de uma cabana velha em ruínas. - Olha aquilo. – Thorsten exclamou surpreso. – Então realmente havia uma casa aqui antes. – ele olhou em volta. – Mas nenhum sinal de porta. - Ela está bem perto – Michael disse suavemente, erguendo o olhar ao céu e inclinando a cabeça, como se estivesse ouvindo atentamente algo. – ela está debaixo da terra. A mãe de Julia prendeu a respiração. - O que? Mas você disse que ela ainda estava viva! Ele concordou. - Sim. Ela não está morta. - Um buraco ou uma vala. – Gaby murmurou distraidamente, cutucando Axel. – Você está vendo sinais de escavação em algum lugar? Axel, Gaby, Thorsten e a Sra. Ebner começaram a andar ao redor das ruínas da casa, procurando por pistas ou traços de escavação. Julia não saiu do lado de sua mãe. A Sra. Gunther parecia em choque, as lágrimas escorrendo por seu rosto, apesar das garantias de Michael. Ela assistiu o resto do grupo andando. Michael não havia se juntado a eles; ele estava inclinado contra um dos pinheiros e parecia a milhas de distância. Julia o encarou e repentinamente ela percebeu o quanto ele estava diferente do resto deles naquele momento. Ele a lembrava um vidente que ela havia visto uma vez na televisão, um homem que tinha o hábito de ajudar a polícia a encontrar as pessoas desaparecidas. Por que Michael tinha tanta certeza de que eles encontrariam Anne ali? Tinha que ter alguma coisa a ver com o acidente e a pancada na cabeça que ele havia sofrido. Ele devia ter ganhado algum tipo de sexto sentido. Enquanto ela o assistia, ele se afastava da árvore, seus passos cambaleantes, como se fosse algum tipo de sonâmbulo. Michael se dirigiu a uma área do lado esquerdo dos pinheiros: um pedaço de solo coberto com arbustos espinhentos. Julia o seguiu com o olhar, seu coração parando de bater quando seu pé bateu na terra e não fez o som que ela esperava. Parecia vazio, como se uma cavidade estivesse escondida sob os arbustos. Os outros também haviam acompanhado o que Michael estava fazendo, Axel e Thorsten correndo até ele. - Que som foi aquele? – Axel gritou, agachando-se para olhar mais de perto. - Aqui não é terra firme. – Thorsten murmurou. – Há madeira aqui embaixo. Ou pelo menos é o que parece. Ele cavou em meio aos arbustos, xingando quando os espinhos perfuraram suas mãos. Um dos galhos ficou preso na manga de seu casaco e quando ele deu um passo para trás, conseguiu arrancar o arbusto inteiro, com raiz e tudo, rasgando a terra.


- Mentira! – Gaby exclamou. – Esses arbustos são falsos. Eles foram colocados aqui por alguém recentemente. - A terra em volta deles está pisada. – Axel concordou. Julia correu até o local onde Michael havia feito sua descoberta, sua mãe e a Sra. Ebner atrás dela. Enquanto isso, os garotos se ocuparam em arrancar os outros arbustos espinhentos. Não demorou muito até eles desenterrarem um tipo de escotilha feita de pranchas de madeira escuras. Um silêncio tomou conta deles, Julia fixando seus olhos na escotilha enquanto lutava contra as lágrimas. Andreas tinha feito aquilo para esconder sua irmã? Como Anne poderia ser enterrada sob essas tábuas e ainda estar viva? - Temos que erguê-la – Axel disse tenso, olhando ao redor. – Podemos usar um galho resistente como alavanca, não acham? Julia olhou em volta e avistou um galho fino e firme, sob um dos pinheiros. Ela o arrastou para a escotilha. Gaby trouxe outro galho com um formato parecido e, juntas, elas o moveram sob as extremidades da escotilha. Michael e Axel usaram seu peso para se apoiar nos galhos e forçar a tampa para cima, enquanto Thorsten tentava erguê-la mais, passando as duas mãos sob as pranchas, assim que surgiu um pequeno vão. Quando a escura escotilha de madeira finalmente foi aberta, toda a terra sobre ela caiu com um farfalhar, os últimos galhos com espinhos caindo para o lado. A mandíbula de Julia despencou quando ela colocou os olhos em um lance íngreme de escadas escondidas sob a escotilha. Os degraus de pedra levavam a uma estreita porta subterrânea.


11. - Então havia mesmo uma porta no meio da floresta. – Gaby murmurou, distraidamente. Ela havia ido em direção à melhor amiga para colocar um braço ao redor dos seus ombros. Axel deu um passo hesitante em direção às escadas, olhando o ferrolho na entrada. - Você acha que aquela porta pode ser aberta? – ele se perguntou em voz alta. - Espera – Thorsten disse – Não devemos ligar para a polícia? Nós podemos atrapalhar as prova, se arrombarmos a porta e entrarmos por nossa conta. Vocês sabem... Impressões digitais ou algo do tipo. Todos pareciam esperar os demais. - Deixe-me – a Sra. Gunther falou, finalmente. Aparentemente calma, ela enrolou a echarpe de seda ao redor da mão direita e caminhou até a maçaneta enferrujada, mordendo o lábio quando a porta se abriu para fora, com um rangido ameaçador. Julia desceu correndo as escadas, de uma só vez. - Anne? – ela gritou, entrando no quarto escuro por trás da porta do porão, seguindo sua mãe. Ela não podia ver nada. Atrás dela, Axel se arrastou escada abaixo, segurando uma pequena lanterna que ele sempre carregava em seu molho de chaves. - Ah, meu Deus. – a Sra. Gunther engasgou. Na luz fraca da lanterna de Axel, eles viram Anne deitada no chão. Ela não dava sinais de vida. Suas mãos e pés estavam amarrados com uma corda. Julia sufocou um grito e, dormente, deu um passo para o lado quando Gaby e Axel correram para frente para cortar as cordas com o canivete de Gaby. E então, ela sentiu uma mão gentil em seu ombro. - Tudo vai ficar bem. – Michael sussurrou em seu ouvido. – Ela só está inconsciente. Um choro subiu em sua garganta. Julia se virou e apertou o rosto no peito de Michael. Ele beijou suas bochechas e a segurou forte até que ela parasse de tremer. Quando ela olhou para cima, seus olhos pousaram em Thorsten e sua mãe, ainda no topo da escada, ansiosamente apertando a mão um do outro. - Ela está bem. – ela conseguiu dizer. – Ainda está viva. Naquele meio tempo, Axel havia levantado sua priminha, alinhando-a em seus braços enquanto subia as escadas. O rosto de Anne parecia mortalmente branco, mas sua respiração estava regular. - Você estava certo. Ela foi sedada – ele disse a Thorsten – Esse sono não é normal. - Quanto tempo você acha que ela ficou aqui desse jeito? – Gaby perguntou, um certo pânico em sua voz. – Clorofórmio não consegue deixar as pessoas apagadas por tanto tempo, consegue? - Consegue, se for usado em grande quantidade – Thorsten disse – Mas uma dosagem alta poderia fazer Anne entrar em coma. Temos que ligar para uma ambulância imediatamente. – ele pegou o celular e ligou para o 112. Julia estava imensamente grata pela sensatez e iniciativa de Thorsten. Os outros, inclusive ela, pareciam muito chocados para fazer alguma coisa. Seu olhar parou em Michael, ainda parado próximo a ela nas escadas. Ela não fazia ideia de como é que ele havia conseguido encontrar a sua irmã, mas seria eternamente devedora a ele, por causa daquilo. Com um suspiro profundo, ela se aproximou e passou os braços ao redor dele outra vez. - Obrigada. – ela sussurrou. – Você salvou a vida dela. - Eles estão a caminho – Thorsten disse, enquanto guardava o telefone. – Vamos ter que carregá-


la até o limite da floresta. - Sem problemas. Axel e eu podemos nos revezar para carregá-la. – Michael ofereceu. - Eu a carrego no primeiro trecho. – Axel concordou. A Sra. Gunther alcançou Michael quando o grupo começou a ir em direção ao limite da floresta. - Como você sabia? – ela perguntou baixo, sua voz aterrorizada, seus olhos cheios de espanto. Julia aguçou os ouvidos, sua mãe estava perguntando a Michael a mesma coisa que ela estava morrendo de vontade de saber. Michael balançou a cabeça, ficando em silêncio um bom tempo. - Instinto. – ele finalmente respondeu. – Eu... Eu não posso explicar. Desculpe. Julia apertou sua mão. - Tudo bem. Mesmo. Só estamos muito felizes. Quando eles se aproximaram dos limites da floresta, as luzes azuis da ambulância podiam ser vistas por entre as árvores. Dois paramédicos ergueram Anne dos braços de Michael e cuidadosamente a colocaram em uma maca dentro da ambulância, prendendo a garotinha a um monitor. A mãe de Julia se virou e falou para a filha mais velha: - Vou com eles. Você pode voltar com eles e dar a notícia à vovó? Assim que eu souber de mais alguma coisa, eu ligo para você. Um grupo taciturno assistia no ponto de ônibus enquanto a ambulância ia embora. Apesar de todos estarem felizes que Anne havia sido encontrada, não era nem um pouco certo que ela estava fora de perigo. Thorsten estava certo sobre a sedação com clorofórmio. - Estaremos em casa – a Sra. Ebner disse quando todos voltaram para sua rua. – Se houver novidades do hospital, por favor, nos avisem. Julia abraçou os dois vizinhos. - Obrigada por toda a sua ajuda. – ela murmurou quando abraçou Thorsten. – Você foi um ótimo amigo hoje. Desculpe por eu ter desconfiado de você antes. Ele sorriu. - Tudo bem, sem problemas. – ele a soltou e murmurou - Falando nisso, Michael é um cara muito legal. É um saco, mas eu não consigo odiá-lo. Ela sorriu de volta. - É muito gentil você dizer isso. - Ah, bem, este sou eu. – ele piscou. – Doce como mel, e sempre elogiando meus adversários. Eu só não faço ideia de como ele conseguiu encontrar Anne tão facilmente. - É, nem eu. – Julia murmurou. Ela encarou Thorsten enquanto ele entrava em casa, antes de se virar, mergulhada em pensamentos. Seus amigos já tinham ido para a sala e quando ela entrou, viu Axel e a avó abraçados no sofá, a avó chorando aliviada. - Graças a Deus, ela está viva – ela disse, com a voz trêmula. Julia se sentou para abraçar a senhora também. Assim que todos haviam tomado chá e comido biscoitos, na cozinha, Gaby deu um tapinha no ombro de Julia. - Tudo bem se eu ligar para a Tamara? Ela foi junto com o Florian para ver o ensaio da banda do Moritz, mas ela estava morrendo de preocupação quando eu contei o que estava acontecendo. Eu não conversei com ela desde que vim para cá. - Sim, claro. Eles podem vir para cá se quiserem. - Tudo bem se eu pedir pizza para todos? – Michael perguntou – Não sei de vocês, mas eu estou


faminto. E eu não acho que ninguém aqui esteja a fim de cozinhar no momento. - Ótima ideia. – Julia sorriu para ele. Enquanto Gaby e Michael estavam fazendo seus telefonemas, Julia foi ajudar a avó a fazer mais chá na cozinha. - Ele é um garoto especial, o seu Michael – a avó disse enquanto lavava algumas xícaras na pia. – Esse brilho no olhar quando ele olha para as pessoas, é como se ele visse mais do que nós vemos. Julia se virou, colocando alguns saquinhos de chá na mesa. - Você acha que ele tem o mesmo dom que você? Sabe, esse sexto sentido ou a intuição muito boa? A avó concordou. - Parece que sim. De que outra forma ele poderia ter feito o que fez hoje? - Não sei. Sorte? - Vamos, Julia. Você não acredita nisso. - Não, não mesmo. – Julia levantou a chaleira do fogão. – Ele só... Sabe as coisas. Especialmente sobre mim. O tipo de música que eu gosto. O que eu gosto de fazer no meu tempo livre. Ele até sabe as músicas que eu escrevi. Sabe, essas coisas que eu nunca contei a ele. - E isso te incomoda? - Não! Bem, às vezes, talvez. Quero dizer, eu quero saber como ele faz isso, mas ao mesmo tempo, eu não me importo. Ele está tão apaixonado por mim. O que importa se ele tem um jeito de saber as coisas que não deveria? A avó concordou lentamente com a cabeça. - Bem, se você quer entendê-lo, por que não pergunta a ele? Julia corou. - Porque eu não quero assustá-lo. Talvez eu tenha medo de que ele acorde um dia e seja como o antigo Michael outra vez... O Michael que nunca teve olhos para mim. - Minha doce criança, claro que não. Isso não faz sentido. Por que é que isso aconteceria? - Nossa, eu não sei. O que é que fez ele perceber que estava apaixonado por mim, afinal? Eu poderia simplesmente perguntar isso a ele. - Bem, de qualquer forma, não machuca perguntar a ele aquilo que você quer saber. Se eu fosse você, tiraria isso do caminho, se está te incomodando. Claro que a avó estava totalmente certa. Na maior parte do tempo, Julia tentava esquecer o quão estranha era toda aquela situação com Michael, mas mais cedo ou mais tarde, ela teria que voltar a mesmas perguntas. Perguntas às quais ela nunca teria a resposta, se ficasse com a boca fechada. Quando o entregador da pizza chegou com a comida, Florian, Moritz e Tamara invadiram o corredor, logo em seguida, puxando Julia para um enorme abraço grupal. - Obrigada por virem – Julia disse baixinho, em meio aos amigos. – Ainda estamos esperando por notícias do hospital. - Pedi algumas porções extras, se necessário. – Michael comentou, piscando para Florian, que ergueu o olhar para analisar as pizzas. Moritz deu uma cotovelada no namorado. - Você está transbordando nessas calças, seu guloso. Você só pensa em comida? Florian riu. - Desculpe. – ele se desculpou com Julia. - Sem problemas. – ela deu de ombros. – Como Michael disse, tem para todos. Vamos para a sala.


Tamara foi a primeira a entrar, seu olhar pousando em Gaby sentada no sofá de mãos dadas com Axel. Ela abriu a boca para dizer algo, mas pensou melhor quando a irmã a lançou um olhar ameaçador. Sorrindo de orelha a orelha, Tamara se afundou no sofá, ao lado do novo casal e colocou um pouco de refrigerante para si. Julia se sentou no outro sofá, se acomodando ao lado de Michael, quando ele a entregou um prato com uma grande fatia de pizza. - Eu sei que você está sem fome, mas acho que você deve comer um pouco – ele disse – Você vai se sentir melhor. Ela concordou, sem dizer nada, mastigando a pizza de salame, obediente. Quando seu telefone de repente tocou, colocou o prato de lado e pegou o celular sobre a mesa. Era sua mãe. Suas mãos tremiam de nervoso quando ela atendeu. - Oi, sou eu. - Oi, querida! – a Sra. Gunther respondeu animada. – Anne está acordada. Ela ainda está muito fraca, mas ela pode falar e o médico disse que ela está fora de perigo. Ela vai se recuperar completamente. O detetive Spitzer acabou de sair, gravou o depoimento dela. Ela vai poder testemunhar contra o Andreas Mittelmayer. - Sério? Isso é ótimo! – Julia exclamou, olhando para os amigos, aliviada. – Então eles vão mantê-lo preso? Vocês vão voltar para casa hoje? - Não, ainda é muito cedo. O médico quer que Anne fique em observação esta noite. Eu posso dormir ao lado dela na enfermaria, então também vou passar a noite aqui. - Ótimo! Isso é ótimo, você pode ficar perto dela. Vou para o hospital amanhã bem cedinho. Vou ligar para o trabalho e avisar. - Vou esperar você, querida. Posso falar com a vovó, um minuto? Julia entregou o telefone para a avó com um sorriso no rosto e então contou aos amigos tudo o que a mãe havia acabado de dizer. - Então ela está acordada! – Axel disse – Boa notícia. Isso significa que o sequestrador dela não poderá mais mentir sobre isso. Tamara se arrepiou. - Não consigo nem imaginar o que poderia ter acontecido se vocês não a tivessem encontrado a tempo. – ela olhou hesitante para Julia. – Ele... Ela foi... Ele a tocou, enquanto ela estava sedada? - Não sei. – Julia tentou não imaginar a situação. – Vou saber de tudo amanhã no hospital. O mais importante é que agora ela está segura e acordada. Quando chegar a hora falaremos no assunto. - Podemos visitar Anne no hospital? – perguntou Florian. - Vocês podem, amanhã, mas eu não acho que ela vá ficar muito tempo lá. Eles só quiseram mantê-la esta noite para observação. Julia soltou a respiração antes de se sentar novamente ao lado de Michael para comer o resto da pizza, seu apetite havia finalmente voltado. Michael passou um braço ao redor de seus ombros. - Você deveria ir até os vizinhos e contar as boas notícias a Thorsten e a mãe dele também – ele disse. Julia concordou se sentindo corar levemente. Por que Michael, de todas as pessoas, tinha que ter tanta consideração com o garoto da casa da frente? Thorsten e Michael pareciam gostar genuinamente um do outro. Imagina se eles ficassem amigos? Aquilo seria estranho. Para não dizer problemático. Ela pegou o telefone que estava sobre a mesa. - Vou mandar uma mensagem de texto. – ela murmurou. – Não estou a fim de sair agora.


Depois do jantar, a avó voltou para Eichet. No dia seguinte, ela se juntaria a Julia para uma visita no hospital, e, quem sabe, trariam Anne e a Sra. Gunther de volta para casa na hora do almoço. A avó havia combinado com o vizinho dela para levá-las de carro. - E aí, Gabyzinha? – Tamara disse para a irmã enquanto estavam empilhando os pratos vazios. – Vamos para casa também? Eu mal posso esperar para poder ouvir os acontecimentos recentes na sua vida amorosa. Gaby corou instantaneamente. - Não seja boba. Sua irmã riu. - Ah, vamos lá. Eu fui forçada a ouvir você tentando mencionar Axel sem levantar suspeitas, em todas as conversas que tivemos essa semana. Bem, adivinha só: agora você pode ser suspeita sobre Axel! Não é maravilhoso? Axel apareceu por trás delas. - Eu ouvi direito? Você ficou falando de mim para a sua irmã? – ele provocou Gaby. - Bem, sim – Gaby respondeu, desajeitada, ficando ainda mais vermelha. – Você acha que isso é idiota? - Não – ele disse, dando um sorriso tímido. – Eu acho que é meio fofo. Gaby resmungou. - Eu não sou fofa, tá? – ela disse, desafiando-o, tentando fazer cara de brava. Axel a puxou para seus braços. - Não, claro que você não é. Desculpe. – e então ele a beijou, impedindo o que quer que Gaby fosse dizer em seguida. Ela ficou em silêncio e encostou-se a ele. Julia só conseguia sorrir como uma boba diante da cena que se desenrolava diante dela. Sua melhor amiga havia finalmente sucumbido ao verdadeiro amor – ela nunca havia visto Gaby tão caidinha por alguém. - Vocês todos precisam de carona? – Moritz perguntou, seu rosto hesitante. – Não sei se vai caber todo mundo. - Ela vai no colo de Axel. – Tamara apontou para a irmã. Moritz começou a rir. - Ok, então está resolvido. – ele se virou para Julia. – Ei, é uma pena eu ter vindo aqui em uma circunstância como essa, mas obrigada pela hospitalidade. Um a um, seus amigos foram embora, até que Julia se viu parada no corredor, com apenas Michael de companhia. De repente, ela não sabia que atitude tomar. Não havia sido parte de nenhum plano ficar sozinha com ele em uma casa vazia à noite. A única vez que isso havia acontecido antes tinha sido na casa dele, naquela outra noite. Abruptamente, ela deu um passo para longe dele. - Você gostaria de outra bebida? – ela disparou. – Ou você estava indo para casa, também? Clássico. Ela havia soado como se estivesse desesperada para que ele fosse embora. Julia se encolheu. Michael a encarou. - Você está nervosa – ele declarou – Você quer que eu vá embora? A avó estava certa: ele realmente via mais do que as outras pessoas. - N-não, não exatamente. – ela gaguejou. – Claro que você não precisa ir. Ele deu um passo para perto dela, puxando-a para seu peito. - Então você quer que eu fique? – ele perguntou suavemente.


Ela mordeu o lábio. - Não exatamente. – ela sussurrou mais uma vez. – Ou talvez... Deus, eu não sei. Ele sorriu e beijou sua testa. - Por que você não me diz o que está pensando? – ele disse, sério. – Seja honesta comigo. Por favor, Julia. Me incomoda que você tenha medo de ser você mesma perto de mim. - Não estou com medo. – ela protestou. – Só estou... Não quero... Que as coisas sejam como na primeira vez em que ficamos sozinhos. – seu rosto corou quando ela se ouviu dizendo aquilo. Um olhar magoado passou pelo rosto de Michael. - Você acha que eu só quero ficar aqui para transar com você? Julia enrijeceu-se, dando de ombros desdenhosamente. - Não. Claro que não. Mas... Bem. É possível, não é? Eu não sei. Desculpe. Todos os seus pensamentos se misturavam e ela ergueu o olhar para ele, seus olhos queimando com mais lágrimas. Droga. Aquela era a última coisa que ela precisava agora: outra enxurrada de lágrimas. Balançando a cabeça incrédulo, Michael a abraçou apertado. Em seus braços, ela não conseguia evitar chorar mais. Ao mesmo tempo, ela se acalmava com o abraço dele. - Por favor, não se preocupe tanto. – ele murmurou baixinho em meio aos cabelos dela. – A única razão pela qual eu quero ficar aqui é porque eu não quero deixá-la completamente sozinha depois de um dia horrível como este. Só isso. Você pode confiar em mim. – suas últimas palavras pareciam quase desesperadas. Estava claro o quanto ela o havia magoado. - Eu sei – Julia respondeu, séria. – Eu confio. Eu confio em você, sei que posso confiar. É que é tão estranho isso tudo. - Estranho. – ele repetiu. Seu coração acelerou. - Sim. Você estar tão diferente, quero dizer. A forma como você olha para mim, tão diferente depois do acidente. – finalmente ela havia dito o que a estava incomodando. Ela estava curiosa para ouvir a resposta dele. Michael concordou pensativo, encarando o horizonte, como se ele estivesse procurando as palavras certas a dizer. - Eu te entendo – ele disse finalmente – Julia... Eu não sou mais a mesma pessoa. Ela o puxou para a sala de estar, sentando-o no sofá antes de ocupar um lugar ao seu lado. - Então, por que não? – ela insistiu. Ele limpou a garganta. - Quando eu acordei, na floresta, eu vi você. Tudo ao meu redor parecia muito intenso. Eu nunca havia experimentado o mundo de um modo tão apaixonado como agora. Cores, aromas, música. Tudo está diferente, eu posso fazer mais, eu posso ver mais. Eu sinto mais. Julia silenciosamente absorveu suas palavras. A história de Michael a lembrava de um filme antigo que ela havia visto alguns anos antes, com o John Travolta. Ele havia sido atingido por um raio ou um OVNI, ela não conseguia se lembrar com certeza, e isso o havia feito desenvolver habilidades especiais. Poderia ser algo do tipo, o que aconteceu com Michael? Seria esta a razão pela qual ele havia mudado tanto? - Você renasceu. – ela sussurrou. - Algo assim. – ele segurou as mãos dela. – Eu sei que eu te machuquei antes, mas eu não vou fazer isso novamente. Você não podia confiar nele, mas pode confiar em mim. Ele a beijou. Julia se aninhou em seu abraço, sentiu o calor das mãos dele em seu corpo, sentiu o


amor que ele sentia por ela percorrer o corpo dela. Parecia completamente natural procurar abrigo nele, como se ele tivesse sido o refúgio dela por anos. Quando ele a ergueu nos braços e a carregou para cima, em direção aos quartos, entretanto, ela sentiu um frio na barriga. Assim que chegaram ao andar de cima, ele afastou a boca da dela, olhando para os dois lados no corredor. - Então, hã... Onde é o seu quarto? – ele perguntou com um sorriso inocente, parecendo genuinamente ingênuo, fazendo Julia explodir em uma risada. Ela sentiu a ansiedade deixar o seu corpo. - Por que você não me coloca no chão e eu te mostro? – ela sugeriu com um sorriso. Seu quarto estava aberto. Michael a seguiu hesitante, olhando ao seu redor, maravilhado, como se ele estivesse entrando em uma catedral majestosa. Seus olhos passaram pelos pôsteres de parques naturais e cachoeiras na parede, pelas luzinhas coloridas que ela havia pendurado na parede e no teto do lado esquerdo, por suas prateleiras lotadas de livros e pelo teclado o lado da sua escrivaninha antes de finalmente pousarem nela. - Sim, este é o seu quarto – ele simplesmente disse. Com um sorriso, ele se sentou na poltrona do lado direito. – Não tem TV? Julia riu. - Não. Você acha que essa cadeira deveria vir com uma TV? - Não, na verdade, não. É uma cadeira de leitura, não acha? - A minha TV, na realidade, está com a Anne, no quarto dela. Eu nunca assisti muito. E ela quer assistir os DVDs dela, então... Julia caminhou até a sua estante para pegar o livro de histórias da avó, sobre o Príncipe da Floresta. Infelizmente, tudo o que ele a fazia sentir, agora, era que seus sonhos haviam se despedaçado para sempre. Aquele livro havia causado muitos danos. Sem ele, Anne poderia nunca ter se apaixonado pelas histórias de reinos mágicos e portas secretas de Andreas Mittelmayer. Abruptamente, ela se sentiu doente de culpa. Ela deveria ter lido para Anne histórias do Manual Contra o Abuso Infantil, não aqueles contos de fadas inúteis. - O que é isso? – Michael perguntou, levantando-se da cadeira e caminhando até ela. Julia colocou o livro de volta com um suspiro profundo. - Nada. Ele esfregou o braço dela. - Esse é o conto de fadas que a Anne estava acreditando? Ela corou com vergonha. - Repetido para ela várias e várias vezes, pela irmã mais velha, que deveria ter pensado duas vezes antes de fazer isso – ela respondeu, amargamente. - Não se culpe. - Mas eu sou culpada. - Você está sendo injusta consigo mesma. – Michael insistiu – Ela tem uma imaginação fértil, assim como você. Você não teria como saber que isso aconteceria. - É verdade, mas eu deveria ter sonhando sozinha, ao invés de infectar a minha irmã com todas as minhas fantasias. Ele ficou em silêncio por um momento. - Você ainda gosta de sonhar? – ele perguntou a ela curioso. Julia se sentou em sua cama. - Sim, claro que eu gosto. Quero dizer, eu estou tentando ser uma garota responsável e adulta,


mas eu falho miseravelmente. Uma noite dessas, eu até sonhei que a floresta era mágica. No sonho, as árvores estavam conversando comigo. Elas estavam procurando por você. Michael a encarou. - Estavam? Por quê? - Não faço ideia. Meu celular tocou e me acordou. – Julia o observou atentamente. De alguma forma, ele parecia chocado por ela sonhar algo relacionado a ele. Aquilo era tão estranho assim? - Você sonha comigo? – ela quis saber. Ele se sentou ao seu lado. - Sim, muito. – ele admitiu, suas bochechas um pouco rosadas. – Eu escrevi aquele poema por causa de um sonho que eu tive com você. O coração de Julia estava martelando contra suas costelas quando ela se inclinou para pegar o poema debaixo da cama. - Olhe, eu o coloquei aqui – ela disse baixinho, suas mãos suando quando ela o abriu. Ela nunca havia mostrado aquele livro para ninguém, nem mesmo para Gaby. Michael o pegou. Ele encarou o seu poema, admirando claramente o trabalho manual dela, tanto que por um momento, ela se sentiu uma verdadeira princesa da floresta, sentada ao lado de seu súdito real. - É assim que eu queria que seus sonhos fossem. – ele gentilmente murmurou. – Isso é lindo, Julia. Espero que você nunca pare de sonhar. Ela se aninhou a ele, tocada por suas palavras. - Obrigada. Você é muito doce comigo. – ela fechou os olhos e segurou um bocejo. Ele a beijou na bochecha. - Você quer ir dormir agora? Julia ergueu o olhar para o relógio acima da porta. Nove e meia. Nada perto de sua hora de dormir, mas era provavelmente uma boa ideia dormir um pouco mais. - Sim, talvez eu deva – ela respondeu. - Você tem alguns cobertores para mim? Vou dormir no sofá lá embaixo. - Não, não tenho. – Julia pegou a mão dele. Só agora ela percebia o quanto não queria ficar sozinha. – Você pode dormir aqui. – Michael olhou para a cama de solteiro, piscando nervosamente. - Com você? Bem, eu não sei... Eu, hã... - Temos um colchão extra. – ela interrompeu as divagações dele. – Podemos colocá-lo no meu quarto. - Ah. – ele passou a mão pelos cabelos. – Ok. Eu acho que posso fazer isso. – ele a lançou um olhar arrependido, corando um pouco. – Desculpe. Eu prometi ser um cavalheiro, mas eu teria muita dificuldade com isso, se dormíssemos na mesma cama. Julia corou. - Teria é? - Hã, sim. Óbvio. – ele deu de ombros e desviou o olhar. – Então, ok. Deixe-me pegar esse colchão extra. Onde vocês o guardam? Julia mordeu o lábio para impedir uma risada alta. Ela havia envergonhado Michael e nunca em um milhão de anos ela teria pensado que aquilo seria possível. - No armário do corredor – ela respondeu, levantando para ajudá-lo a carregar o colchão até o quarto. Alguns minutos depois, eles estavam cada um em sua cama, no quarto dela, iluminados apenas pelas luzinhas no canto. Na fraca penumbra, Michael a olhava, enrolado em sua cama improvisada. - Boa noite – ele disse, com um sorriso. – Você está segura comigo. Se você tiver algum


pesadelo, você pode me acordar, ok? - Eu farei isso. – Julia puxou os cobertores até o queixo. – Vou ficar bem, afinal. Eu estou mais calma. Graças a você. - Eu me sinto bem quando estou com você. – Michael se levantou para desligar a luzinha no canto. Não estava muito escuro lá fora, ainda. Na penumbra do anoitecer, Julia o observou caminhar até a cama dele e se arrastar para debaixo das cobertas. - Meu coração desejava estar com você. – ele sussurrou suavemente. – E agora eu te encontrei. Julia suspirou, satisfeita, fechando os olhos. As palavras de Michael pareciam familiares. Ele havia dito aquilo para ela antes? Ela não conseguia se lembrar, mas não era importante. Lentamente, ela se sentiu embarcar para um sono profundo e sem sonhos. Na manhã seguinte, a avó de Julia chegou às nove horas em ponto. Ignaz, seu vizinho, buzinou várias vezes para alertar Julia de sua chegada. - Esse idiota está tentando fazer a rua inteira ir conosco para o hospital? – Julia murmurou. Rapidamente, ela entregou uma caneca de café quente para Michael e correu para a porta. – Não acabei de tomar café da manhã ainda. – ela gritou para a avó, que estava saindo do carro. – Por que vocês não entram um minuto? Ignaz e a avó seguiram Julia até a cozinha. Eles olharam inquisidoramente para Michael, que corou levemente sob o olhar perscrutador da avó. - Bom dia. – ele murmurou. – Desculpe, estamos atrasados. Eu não consegui acordar. Julia bateu na porta do quarto de hóspedes umas três vezes, mas eu dormi de novo. A avó levantou uma sobrancelha e se segurou para não fazer um comentário. Julia tentou ao máximo não rir. Pobre Michael. Ele estava tentando não envergonhá-la diante da avó, que claramente não estava acreditando em uma palavra. - Umas quatro vezes. – ela completou, acenando vigorosamente, antes de cutucar a avó de lado, quando ela começou a sorrir maliciosamente. - Eu não me importaria em tomar um pouco de café, na verdade. – Ignaz disparou, olhando para a cafeteira na bancada da cozinha. No final, eles saíram para o hospital às nove e dez, deixando Michael no ponto de ônibus, antes de virarem para a estrada principal que ia para a cidade. Ignaz as deixou na entrada principal, virando-se para o estacionamento. Julia entrou no hospital junto com a avó, o cheiro de antisséptico e alvejante a atingindo fortemente. Ela odiava aquele odor, associando-o com doença, dor e morte, a morte de seu avô. Ela não havia voltado ali desde que ele havia falecido, e ela esperava que aquela fosse a última vez. A Sra. Gunther estava esperando por eles na recepção. Os círculos negros ao redor dos seus olhos faziam sua pele parecer ainda mais pálida do que estava, mas seu sorriso iluminava todo seu rosto. - Estou tão feliz que vocês estão aqui – ela disse, animada. – Anne ficou perguntando por vocês a manhã inteira. Ela dormiu bem à noite. - Você não, estou certa? – a avó esfregou as bochechas pálidas da filha. – Você parece quebrada. - Eu não consegui dormir. – A Sra. Gunther balançou a cabeça como se estivesse tentando espantar imagens de um pesadelo. – Eu fiquei pensando sobre o que poderia ter acontecido a Anne. Em como esse Andreas deve ter tocado nela, deflorando-a. - Ele foi um verme – Julia disse secamente – Ele era lindíssimo, mas tinha um olhar morto. Era como se alguma coisa dentro dele estivesse podre.


As três caminharam para os elevadores. - Ontem à noite, enquanto Anne dormia, eu fui até à delegacia – a mãe de Julia disse, baixo. – Eu queria olhá-lo nos olhos, o garoto que ousou tocar e raptar minha doce criança. Mas, uma vez que eu me aproximei daquela cela, eu não consegui entrar. Eu tinha permissão, mas algo me impediu. Ele não me viu, mas eu consegui vê-lo um instante. - Por que ele fez isso? – a avó perguntou, também em voz baixa. – Ele disse alguma coisa sobre seus motivos, na confissão? A Sra. Gunther suspirou. - O detetive Spitzer me disse que conversou com a mãe de Andreas. Ele não cresceu exatamente em uma família estável antes de se mudarem para Salzburg. Ela era casada com um homem que não só batia nela regularmente, mas também abusava de sua filha. Ela só descobriu depois que o abuso havia parado, mas foi o suficiente para que ela pedisse o divórcio. É por isso que ela se mudou para cá. - E ninguém pensou em mandar Andreas para um terapeuta, para que ele pudesse lidar com esse trauma todo da infância? – Julia perguntou, espantada. - Não, aparentemente não. A mãe dele enviou a filha para o serviço de Cuidados Infantis, e a inscreveu para aconselhamento. Agora que Andreas está na cadeia, parece provável que o garoto tenha sido vítima de abuso tanto quanto a irmã. - Isso deve explicar sua necessidade de escapar para um mundo de fantasia cheio de portais para reinos encantados – a avó disse – Ou o motivo de ele ter uma imagem tão distorcida da realidade. Era estranho, mas repentinamente, Julia podia quase sentir pena do garoto que havia abusado e enganado a sua irmã. Ele deveria ter escapado para um mundo de sonho para conseguir lidar com a sua vida, assim como ela havia feito com tanta frequência. A única diferença é que ela nunca havia prejudicado ninguém ao fazer aquilo. Muito provavelmente, ele nem sabia separar o certo do errado. - E então, ele vai procurar ajuda profissional agora? – ela perguntou timidamente. – Ou eles vão apenas sentenciá-lo a alguns anos de prisão sem qualquer acompanhamento? - Olha, você não precisa se preocupar com isso – a mãe respondeu, com a voz calma. – Deixe que a polícia cuide disso, querida. No momento em que elas entraram no quarto de Anne, Julia se sentia sobrecarregada pela história que a mãe tinha contado. O quarto era individual e sua irmã parecia muito frágil e vulnerável na grande cama do hospital, Julia não conseguiu evitar sair correndo e a puxar para um abraço caloroso. - Estou tão feliz que você ainda esteja viva. – ela sussurrou. Anne apertou o seu pequeno corpo contra o de Julia, um choro sufocado escapando de sua garganta. Elas ficaram agarradas uma à outra sem dizer nada, por um momento que pareceu durar uma eternidade. - Eu estava protegida – Anne disse finalmente, em um sussurro. - Protegida? Por quem? – Julia olhou para Anne perplexa. Anne sorriu. - Enquanto eu estava dormindo, eu podia ouvir vozes. Eu acho que elas estavam vindo da floresta. Elas me diziam que a ajuda estava chegando. Elas diziam que você ia me encontrar. É por isso que eu não fiquei assustada. Julia olhou por cima do ombro, mas a mãe e a avó ainda estavam conversando. Elas não haviam ouvido a história de Anne. - Você ouviu a voz de Michael também? – ela perguntou curiosa. Sua irmã balançou a cabeça.


- Bem, eu não sei como é a voz dele exatamente, mas não deve ter sido ele. Era um tipo diferente de voz. Eu acho que pertencia a uma pessoa que viveu na floresta por séculos. Alguém velho, mas a voz dele parecia jovem. Era a coisa mais estranha. Julia fez uma careta. Parecia que Anne ainda acreditava em seu conto de fadas sobre o Príncipe da Floresta e aquilo tinha que acabar. Era perigoso se apegar a fantasias idiotas por mais algum tempo. - O Príncipe da Floresta não existe, ok? – ela disparou. – É só um faz de contas, Anne. Os olhos de Anne se encheram de lágrimas. E então ela sorriu, parecendo velha, sábia e eterna. - Eu sei que aquele garoto não era ele. Eu sei disso agora. Mas eu estava protegida por algo na floresta, Jules. Eu senti amor ao meu redor. Julia decidiu deixar para lá. Anne parecia ter tido uma experiência de quase morte, incluindo todas as necessárias sensações de amor sem limites e vozes do além. A única coisa que estava faltando era uma luz no fim do túnel. Mas talvez algo de bom resultasse de toda a situação, como uma provação para Anne. Ela tinha quase morrido naquele buraco horrível. No elevador, a mãe havia contado a elas sobre como os fortes sedativos de Andreas quase haviam matado Anne. Graças a Deus, não havia sinais de abuso sexual! Graças a Julia, Andreas foi preso antes que tivesse a chance de cometê-lo. Era hora de começar a tentar tirar as coisas de sua cabeça. Com a sua mão carinhosamente acariciando a testa de Anne, Julia sussurrou: - Estou feliz que alguém a protegeu, querida. E agora você está a salvo conosco. A avó se juntou a ela ao lado da cama de hospital para dar à neta mais nova um abraço. - Você vai poder ir para casa hoje? – ela perguntou. - No final da tarde. – Anne concordou. – Eles querem me manter aqui por mais algumas horas para ver como eu estou, aquele médico disse. - Essa é uma excelente notícia. Enquanto Julia distraidamente ouvia a mãe, irmã e a avó conversarem, ela escreveu uma mensagem de texto sobre como Anne estava e enviou para todos os seus amigos, incluindo Thorsten. Ele a havia ajudado e apoiado tanto, antes mesmo dos outros chegarem a sua casa; ela não teria conseguido sem ele. Michael provavelmente leria a mensagem durante o intervalo para o café; ele estava trabalhando naquela manhã. Ela havia pedido para ele avisar o chefe o porquê de não ter ido trabalhar. Martin teria que escalar Julia em algum dos seus dias de folga para que ela pudesse cumprir com as suas horas de trabalho. “q bom saber q ela tá bem!! Vejo vc no flo mais tarde? Ele nos chamou para uma reuniãozinha no terraço! bjs” – Gaby respondeu depois de alguns minutos. “claro! Q hrs?” – ela respondeu. Não demorou muito para que outras mensagens começassem a chegar. Era hora de colocar o papo em dia com a sua amiga! Gaby e Axel eram um casal e elas ainda nem tinham tido tempo de conversar sobre aquilo. Ela sorriu. Agora que Anne finalmente estava bem, o verão parecia mais feliz. Ela tinha um namorado maravilhoso, Gaby tinha se acertado com seu primo, ela tinha um emprego legal, e eles todos iriam visitar a Inglaterra no mês que vem. “ei, vc tem q me contar td sobre Axel. ;)” – ela digitou para Gaby. “noite do pijama? Td mudo vai estar lá hj, escutando a conversa, e tal... Ou o Michael tomou o meu lugar? :P” Droga. A avó sabia que Michael havia dormido em sua casa. Sua mãe não ficaria nem um pouco


feliz se descobrisse. Se ao menos a avó ficasse calada. Nervosamente, ela olhou para a mãe e para a avó. Ela desejava que tivesse habilidades telepáticas para que pudesse implorar para a avó não contar nada para a mãe. - Você acha que o Ignaz poderia me deixar na livraria mais tarde? – ela perguntou. – Eu queria conversar com o Michael e me desculpar com o Martin sobre ter dado um bolo nele hoje. A avó sorriu para ela carinhosamente. - Claro. Você deve estar morrendo de vontade de contar a ele como as coisas acabaram. Eu imagino o que ele deva ter contado aos pais quando chegou em casa ontem à noite. Deve ter sido uma história e tanto, não acha? Julia olhou solenemente para a avó. Talvez a telepatia realmente existisse... Ou talvez, a avó estava apenas sendo sábia como sempre, tentando evitar causar problemas quando não havia a necessidade. - Obrigada. – ela murmurou humildemente. Anne tinha que descansar novamente, então as visitantes foram conduzidas para fora por uma enfermeira. Elas deixaram o hospital e encontraram Ignaz no estacionamento. Ele deixou Julia no começo da Cidade Velha, e prometeu voltar ao hospital mais tarde para levar Anne para casa, junto com sua mãe. Julia assobiou uma melodia alegre enquanto andava em direção à livraria. Talvez fosse uma boa ideia trabalhar por algumas horas, antes de ir visitar Florian. Ela se sentia animada e cheia de energia. Anne estaria em casa naquela noite, Gaby dormiria lá e elas poderiam colocar o papo em dia. Tudo havia terminado bem, graças a Michael. Julia pensou de novo nas palavras de sua avó: Michael via mais do que as outras pessoas. Será que ele havia contado aos seus pais? Ou seus outros amigos? Ela achava que não. Ele tinha mudado, e ela era a única que sabia o quanto. Não havia uma explicação real, mas não importava. As coisas eram como eram. E a forma como as coisas estavam tornava a vida maravilhosa.


12. - Estou indo! – Julia gritou na direção da cozinha. Ela estava no corredor, pulando em um pé só, tentando amarrar os sapatos de um pé e equilibrando uma mochila no ombro. - Até amanhã! – Anne e a mãe gritaram de volta. Julia teria amado tomar café da manhã com elas, mas ela havia perdido a hora e agora tinha que correr como louca para conseguir chegar ao trabalho na hora. Dois minutos atrás ela havia entrado na cozinha correndo e pego uma banana, perguntando indignada para a mãe por que ela não a havia despertado. - Porque você é que tem que colocar o seu próprio despertador para tocar? – sua mãe respondeu com um sorrisinho. – Você já tem dezoito anos, sabe? Em outras palavras, é uma adulta responsável. Você quer que eu a acorde para ir para a faculdade, depois que o verão acabar e que eu veja sua tarefa também? - Eu coloquei sim, o meu despertador para tocar. – Julia resmungou. O sarcasmo da mãe era muito para ela aquela hora da manhã. Os cadarços estavam amarrados. Ela correu pelo jardim e virou para a direita para chegar à estrada que levava para o ponto de ônibus. Infelizmente, suas corridas não eram mais como antes. Ela havia gradualmente perdido a forma desde que as coisas entre ela e Michael haviam ficado mais sérias. O tempo era curto: ela agora trabalhava quatro dias por semana, e em seu tempo livre, ela passava a maior parte do tempo com Michael. Alguns dias atrás, Gaby havia reclamado com ela, exigindo um retrato de Julia, “para que ela se lembrasse da aparência da amiga”. Felizmente, eles iam para Londres em breve, então aquela seria a oportunidade perfeita para passar um tempo com a amiga. Naquele meio tempo, Michael havia comprado uma passagem para acompanhá-los. Eles haviam concordado que os garotos ficariam todos em um quarto do albergue e que as garotas ficariam em outro. Tamara era agora a única do grupo que não tinha um parceiro e havia reclamado sobre a viagem ter se tornado um passeio de casais com apenas uma solteira triste junto. - Não chora – Gaby havia respondido com um sorriso malicioso. – Nós vamos te arrumar um inglês sexy e nem vamos nos importar se você quiser levá-lo para o nosso quarto. Julia virou a esquina e viu o ônibus acabando de fechar as suas portas. - Espere! – ela gritou, apesar de o motorista não ter condições de ouvi-la. Impulsionando os braços, ela correu ainda mais. Inesperadamente, a porta do ônibus se abriu e a cabeça de Thorsten apareceu sorrindo para ela. - Com pressa? – ele riu. – Eu disse ao motorista para esperar pela linda loira que estava tentando parar o ônibus com as próprias mãos. Sem fôlego, Julia subiu e acenou ao motorista, agradecida, seguindo Thorsten para se sentar em algum lugar no meio do ônibus. - Para onde você está indo tão cedo? – ela perguntou – Você não tem que pegar o outro ônibus para Eichet? - Não, hoje eu não trabalho. É hora de tomar conta de algumas coisas da universidade. Conseguir os documentos necessários, autenticar, você sabe como é. Julia concordou. Thorsten começaria seu segundo ano na Universidade de Salzburg depois do verão, o que significava uma preparação intensa. Graças a Deus, a sua mãe a havia ajudado com a sua inscrição, mesmo ela sendo supostamente uma adulta responsável agora. - E onde você está indo com uma bolsa pesada dessas? – Thorsten perguntou, olhando para a


bolsa lotada de Julia. – Você sempre carrega esse peso todo para o trabalho? Julia balançou a cabeça. - Essa é a minha mala para passar a noite. Vou dormir na casa do Michael hoje, depois do trabalho. Sabe como é. Ela corou um pouco quando disse essas palavras. Era a primeira vez que ela ia passar a noite na casa dele, desde o primeiro encontro. Na realidade, ela estava um pouco nervosa. Claro que ele tinha uma casa enorme, com pelo menos quatro quartos de hóspedes, mas ele também tinha uma cama king size em seu próprio quarto. Thorsten percebeu que ela havia corado. - Ah. Ok. – ele concordou, pausando por alguns segundos. – Bem, vocês estão juntos há mais de um mês, certo? Passar a noite lá é parte dessa coisa toda. – ele a cutucou de forma brincalhona, o que a fez corar ainda mais. Thorsten provavelmente estaria se perguntando por que aquilo era uma coisa tão importante para ela, afinal, ele era dois anos mais velho e havia sido calouro na Universidade de Graz no ano anterior. - É, você acha? – ela murmurou. Ele sorriu. - Não, só estou te provocando. Você tem que esperar o tempo que for necessário para esse tipo de coisa. Não se sinta forçada ou algo do tipo. Julia concordou, ficando em silêncio quando um grupo de crianças com mochilas coloridas subiu no ônibus, a mãe delas as empurrando para dentro, como uma galinha. Parecia uma festa de aniversário. Anne havia celebrado o aniversário dela alguns dias antes. O dia havia corrido razoavelmente bem, apesar de Anne ter ficado mais quieta e reservada do que o normal, perto de suas amigas. O acontecimento sinistro pelo qual tinha passado havia lhe causado um impacto indelével. A Sra. Gunther havia decidido marcar algumas sessões com um psiquiatra infantil duas vezes por semana, para minimizar os riscos de Anne ficar com algum trauma por questões não resolvidas, mais tarde. - Você ainda está feliz com ele? – Thorsten perguntou, de repente, sem mais nem menos. Ele tentou parecer despreocupado, mas não conseguiu. Julia se virou para o vizinho, surpresa. - Bem, sim, eu estou. Muito feliz – ela declarou – Eu sei que as pessoas ainda não entende como tudo se acertou entre a gente, mas... Thorsten havia ouvido de seu primo as histórias sobre Michael. Axel ainda tinha que se acostumar com a ideia de Julia e Michael juntos. Alguns dias antes, eles tinham todos se reunido no quintal de Julia, para comemorar o aniversário de Anne à noite, e Julia acidentalmente ouviu uma conversa entre Thorsten e Axel. O vizinho tinha perguntado ao seu primo algumas coisas da sua história com Michael e, sem dúvidas, Axel havia relatado a Thorsten como o seu namorado a tinha friamente dispensado da primeira vez, antes de repentinamente mudar de ideia. Axel não odiava Michael, mas também não tinha qualquer tipo de empatia por ele. - Se alguém machuca a minha família, demora um tempo para que essa pessoa ganhe a minha confiança novamente – ele havia confessado a Julia uma vez. – Mas, olhe, já que ele a faz feliz, você não me ouvirá reclamar. Thorsten soltou um suspiro infeliz. - Eu não tenho que entender. – ele murmurou, baixinho. – Eu posso ver o jeito que ele olha para você, e é isso o que importa. O passado está morto. E ele é um cara muito legal. – ele limpou a garganta. – Eu tenho ciúme. Ainda.


Julia tentou não olhar boquiaberta para ele. - Ah. O olhar dela se desviou para o mundo lá fora. As palavras de Thorsten a deixaram confusa. Ela não podia entender o porquê dele ainda gostar dela, já que ela estava claramente indisponível. Além disso, ele parecia o sonho dourado de qualquer garota de faculdade, e logo arrumaria uma namorada lá. E ainda assim, ele não parecia capaz de esquecê-la. Aquilo quase a fazia se sentir culpada, afinal durante certo período havia realmente rolado alguma coisa entre eles, e ela havia gostado daquilo por um tempo, antes de Michael voltar à cena mais uma vez. Ela despertou quando ele colocou a mão em seu braço. - Ei, você – ele disse, gentilmente – Eu não quero tornar as coisas difíceis. É só que você mexeu com alguma coisa em mim de um jeito que eu nunca havia sentido antes. É por isso que eu estou tendo tanta dificuldade em esquecer você. Ah, sim, e o fato de você morar do outro lado da rua também não tem ajudado muito. Seu tom seco fez Julia sorrir, mas, ao mesmo tempo, suas palavras a surpreenderam. Eram palavras tão doces, pareciam tão genuínas e simples. Por apenas um segundo, pensar em toda a saga de tentar chamar a atenção de Michael ardia um pouco: ele havia precisado de mais do que alguns dias para perceber que ela havia mexido com ele. Mas não, ela não deveria pensar naquilo. Ele havia se tornado uma pessoa completamente diferente depois do acidente no bosque, e ela já o havia perdoado por seu comportamento terrível há muito tempo. - Obrigada – ela disse, em um tom de voz ligeiramente entrecortado, sorrindo carinhosamente a Thorsten. – E me desculpe. Eu vou me mudar o mais rápido possível. Thorsten começou a rir. - Ah, por favor. Não será necessário. – ele inclinou a cabeça. – Ou você estava planejando alugar um quarto na cidade, quando começar a faculdade? Ela deu de ombros. - Não necessariamente. Eu moro perto. E eu gosto de morar em casa. É aconchegante. E barato, claro. - Bem, não vejo outra solução a não ser eu me mudar, então – ele respondeu – Quero dizer, eu sou podre de rico. E meus pais são absolutamente horríveis, então... Julia revirou os olhos. - Sarcasmo machuca. Você e minha mãe deveriam se juntar. Ela também é ótima nisso. Thorsten ergueu uma sobrancelha. - Como é que me juntar à sua mãe vai me ajudar a me encontrar menos com você? - Verdade. – Julia corou. – Não é uma ideia muito boa mesmo. - Ei, não é aqui que você tem que descer? – ele disse de repente, alarmado. Julia se levantou rapidamente quando percebeu que ele estava certo. O ônibus havia parado no ponto dela. - Ei, obrigada! Eu não estava prestando atenção. Ela pendurou a mochila em um ombro e acenou para o Thorsten antes de descer e pegar o caminho para a livraria. Seria um dia quente; o sol, impiedoso, já estava queimando e ainda nem eram nove horas da manhã. Julia podia sentir o suor se acumulando sob a alça da sua bolsa. Ela esperava que Martin colocasse a mesa da cozinha no pátio novamente, para que eles pudessem almoçar do lado de fora. Lá dentro, naquela temperatura, era um calor absoluto no segundo andar. - Servus. – ela cumprimentou Marco e Silke que estavam esperando nos degraus em frente à loja. – A loja ainda não abriu?


Silke balançou a cabeça. - Martin chegou há um minuto, mas ele está levando Michael de volta para o ponto de ônibus. Ele está se sentindo muito mal. - Como assim? Está falando sério? – Julia imediatamente pegou o celular dentro da bolsa para ver se Michael tinha ligado para ela. Ainda não. Ela mandou uma mensagem de texto imediatamente. “silke acabou de me contar que vc ta doente? Vou te ver assim q possível, ok? bjs” - Ei, você está pálida – Marco disse, preocupado – Você quer sair mais cedo hoje? Depois do almoço? Eu posso cobrir você, se quiser. - Você faria isso? Isso seria fantástico. – Julia lançou a ele um olhar grato. Marco era um salvador da pátria: ela sairia depois do almoço e iria à casa do Michael para cuidar dele até que ele melhorasse. Seus pais não estavam em casa porque sua mãe estava de férias e seu pai estava em uma de suas viagens de negócios. Quando Martin abriu a loja logo depois das nove, Marco perguntou se ele poderia pegar o turno de Julia. Martin não se importou. - Tenho certeza de que ele vai adorar a sua visita – ele disse a Julia – Ele estava se sentindo muito enjoado. Deve ter comido algo que fez mal. A manhã pareceu se arrastar, agora que Julia estava esperando ansiosamente pela hora do almoço. Quando a loja fechou, ao meio dia, ela mais uma vez agradeceu Marco do fundo do coração, antes de correr porta afora. Uma vez na rua, ela decidiu caminhar até a casa de Michael em Giselakai. Estava ainda mais quente, e uma viagem de ônibus seria desconfortável. Além disso, ela precisava se exercitar. Se ela escolhesse bem o caminho, poderia caminhar na sombra na maior parte do caminho. Grades sicômoros e castanheiras se alinhavam dos dois lados do caminho ao lado do rio, então a única parte ensolarada da caminhada seria sobre a ponte que ela teve que cruzar para chegar ao outro lado do Salzach. Felizmente, um vento suave estava soprando. Julia pendurou a bolsa em um ombro, tirou o cabelo do rosto e o puxou em um rabo de cavalo. Tudo ao seu redor parecia calmo. Barquinhos estavam flutuando rio abaixo, mas não havia embarcações maiores. O nível da água estava extremamente baixo devido à estiagem de julho. O tempo tinha sido quente e ensolarado em toda a Europa naquele verão, e ainda não havia acabado. Julia sorriu quando pensou em Londres: eles poderiam pegar os ônibus de dois andares para fazer o tour pela cidade, fazer coisas de turista e tirar fotos de todos os monumentos antes de descansar no Hyde Park à noite. Ela levou vinte minutos para chegar à casa de Michael. Quando ele abriu a porta da frente, Julia encarou seu rosto pálido. - Ai, meu Deus. Você realmente está horrível – ela exclamou. - Sempre bom ouvir isso – Michael respondeu, com um sorriso fraco. – Por favor, entre. - Você está com intoxicação alimentar? - Não faço ideia. – Michael a levou para a sala de estar e se afundou no sofá com um suspiro. – Eu não estou com vontade de comer nada, isso é fato. Eu só quero tomar um pouco de ar fresco. Julia se sentou ao seu lado. - Então você quer sair um pouco? Ele fez que sim com a cabeça. - Assim que eu melhorar um pouco, quero ir até a floresta atrás da sua casa. Caminhar um pouco sob as árvores, na sombra fresca. - Parece bom para mim. – Julia colocou um pouco de água para eles, da jarra que estava sobre a mesa. Ela mesma não ia à floresta já há algum tempo. Desde o rapto de Anne, ela havia tentado evitar


o bosque. Sempre que ela sentia vontade de correr, ela escolhia o caminho pavimentado para Eichet. Um pouco antes, ela havia decidido usar a trilha da floresta para se exercitar, mas as memórias de tudo o que havia acontecido ali ficavam voltando: o acidente de Michael, seu carvalho ficando doente e perdendo as folhas, os encontros secretos entre Anne e aquele canalha do Andreas. Ela nunca havia pensado que chegaria a considerar o bosque um lugar escuro e sinistro. Talvez fosse uma boa ideia ir até lá com o Michael e tentar reaver o senso de segurança que ela sempre teve, em meio às árvores antigas. Depois da hora do chá, Michael estava se sentindo bem para sair de casa novamente. Juntos, eles entraram no carro da mãe dele e dirigiram até Birkensiedlung. Michael estacionou o carro no mesmo lugar que a ambulância quando os paramédicos levaram Anne para o hospital. Julia pegou a mão de Michael e respirou fundo. O ar fresco a estava fazendo bem. Sobre as suas cabeças, as folhas nas copas das árvores sussurravam na brisa suave, e de repente, ela se lembrou de como era estar na floresta, antes que os eventos obscuros das semanas anteriores mudassem sua percepção sobre ela. Aquele lugar permanecia o mesmo. Era ela que havia mudado de dentro para fora. E era uma pena. Afinal, Michael a havia dito para continuar sonhando. Ele não precisava que ela mudasse ou virasse uma mulher crescida, responsável e pé no chão em um futuro próximo. - Venha, vamos lá – ele disse baixinho, caminhando pela trilha da floresta e seguindo para a direita, depois de alguns minutos. Ele deixou o caminho e a levou diretamente para a clareira onde seu carvalho estava silenciosamente esperando por eles: o lugar do acidente. Eles ficaram imóveis, encarando o carvalho. Mais folhas tinham se tornado amarelas desde a última vez em que Julia tinha estado ali. Quando é que os guardas florestais viriam e o cortariam? Eles geralmente cortavam as árvores enfraquecidas no outono, para manter o bosque saudável. Naquele ano, o trabalho seria agendado para quando ela estivesse na floresta. Julia engoliu em seco. O pensamento de não ter mais um santuário para buscar refúgio sempre que os tempos ficassem difíceis fazia sua garganta se apertar dolorosamente. Mas então, Michael apertou sua mão, como se pudesse sentir sua tristeza, e ela olhou de lado com um sorriso. Ela teria sim um santuário. Ela poderia se refugiar na presença dele. Ele estaria ao seu lado e tudo ficaria bem. Ele se virou e sorriu de volta. De alguma forma, ele sempre fazia aquilo quando ela o olhava de lado. Não era mais um motivo de espanto o fato de Michael parecer sentir quando ela o observava. Desde que ele contara sua experiência de vida ao acordar depois do acidente, ela presumiu que ele era apenas mais sensível do que a maioria das pessoas. Foi por isso que ele conseguiu encontrar Anne. A polícia havia voltado diversas vezes à casa de Andreas Mittelmayer, depois de prendê-lo. Embora Andreas houvesse confessado os crimes, ainda permanecia inexplicável o fato de que Michael soubera onde sua irmã havia sido escondida, mas o Detetive Spitzer pôs fim aos interrogatórios ao escrever algo no boletim policial sobre perfiladores, médiuns e pessoas com sexto sentido ajudarem a polícia algumas vezes. A voz de Michael a tirou de seu transe. - Você quer se sentar por um tempo? – ele perguntou, apontando para a árvore. Julia concordou. Ele provavelmente estava cansado depois de andar até lá, então ela se sentou ao seu lado, suas costas pressionadas contra o tronco firme da árvore, exatamente como as outras vezes. Michael pegou sua mão e um profundo sentimento de paz se espalhou pelo seu corpo. - É tão lindo aqui. – ele murmurou ao seu lado. – Tão quieto. Tão diferente da cidade. E ainda assim, eu amo a vida urbana. É grande e fantástica, cheia de pessoas e vida e amor. Tudo se move.


Sua voz havia assumido um tom que sugeria que ele não estava realmente conversando com ela. Ele estava pensando alto, e Julia olhou de lado para ver a expressão em seu rosto. - Você gosta de estar na cidade, certo? – ela perguntou. Ele concordou, pensativamente. - Eu sempre posso sentir você em meio a todas as pessoas dentro dela – ele respondeu – É como se você irradiasse seu amor por mim. Na tarde calma, Julia passou os braços ao redor da cintura dele e o beijou na bochecha. - Isso é muito fofo – ela sussurrou – Obrigado. Sentar sob as árvores e aproveitar a sombra fresca fez Michael gradualmente se sentir melhor. Quando eles finalmente deixaram a floresta, eram quase seis horas. - Vamos fazer o jantar – Michael disse, enquanto parava em frente à casa. - E depois do jantar, vamos ver um filme? – Julia sugeriu. - Vamos fazer isso. Por que você não escolhe um que você gosta? – Michael apontou as prateleiras, que preenchiam uma parede inteira na sala. Julia nunca havia visto tantos DVDs juntos em toda sua vida, nem mesmo em uma locadora. - Vou olhar em um minuto – ela disse – Eu não tenho que te ajudar na cozinha? - Não tem, não. Por que você não toca algo no piano? Isso, com certeza, vai me inspirar na cozinha. Ele se dirigiu à cozinha, deixando Julia ao lado do piano na sala de estar. Ela se sentou e passou os dedos suavemente sobre as teclas. Mesmo que ela estivesse de bom humor, começou a tocar uma melodia melancólica, para sua própria surpresa. Era algo que simplesmente vinha do nada e parecia que ela estava deixando algo precioso para trás enquanto tocava, embora não soubesse o que era. Quando ela estava acabando, Michael caminhou até ela. Ele acariciou seu ombro. - Isso foi lindo – ele disse, maravilhado – Você compôs? Julia sorriu. - Sim. Agora mesmo, na realidade. É como se alguém a sussurrasse para mim... Como se eu tivesse roubado esta canção do bosque. Ele pensou naquilo. - Você pode ter roubado. Talvez você seja mais aberta a certas influências que outras pessoas. Isso também explicaria porque você gostava de escrever seus poemas na floresta. Ele se sentou ao seu lado no banquinho do piano, passando um braço ao redor de sua cintura. - Você não tem que ficar de olho em suas panelas? – Julia riu quando ele começou a beijá-la por todo o rosto. – Nosso jantar não vai queimar? Ele balançou a cabeça. - A lasanha está no forno, então, ficará pronta sozinha. – Ele a beijou mais uma vez, buscando os seus lábios com a boca. O coração dela acelerou quando a mão dele deslizou para cima e para baixo nas suas costas, fazendo sua blusa se erguer um pouco. Sem fôlego, ela se deixou erguer por ele, que a levou até a coleção de DVDs. Eles finalmente decidiram assistir "A Lenda", um dos primeiros filmes do Tom Cruise. Julia havia visto o filme diversas vezes, mas Michael não. - Esse foi o primeiro filme que eu comprei em DVD – ela contou, entusiasmada, equilibrando dois pratos de lasanha e subindo as escadas. Julia havia sugerido que eles assistissem ao filme no quarto dele, porque ela não gostava muito da sala: era muito grande para o gosto dela. O quarto de Michael era bem mais aconchegante. Michael estava carregando a sua mala. Ele a largou ao lado da cama quando eles entraram. - Nossa, mulher. – ele a provocou. – O que é que tem nessa bolsa? Tijolos?


- Não. Livros, na verdade. – Julia se sentou, com as pernas cruzadas e abriu a mala. – São para você. Emprestados. Um a um ela os entregou a ele, que os aceitou quase que de forma reverente, passando a mão pelas lombadas dos livros favoritos dela. Zweig, Brecht, Kafka. - Se você gostar deles, eu aposto que poderá comprar para você lá na livraria, com desconto. – ela acrescentou, com um sorriso brincalhão. Michael deixou-se cair na cama e colocou a pilha de livros no criado mudo. - Você acha que o Martin nos dará descontos em dobro, se comprarmos os livros em conjunto? – ele beijou sua bochecha quando ela se juntou a ele em cima da cama. – Obrigado. Vou escolher um para ler amanhã. Agora vamos comer. Depois de rasparem os pratos de lasanha, os dois deitaram na cama virados para a televisão, que estava no canto. Michael ligou o aparelho. Enquanto isso, o céu do lado de fora havia quase escurecido completamente, então eles puxaram as cortinas. Estava aconchegante e seguro no quarto dele. Julia se aconchegou em Michael e fechou os olhos, desfrutando da intimidade que sentia por estar perto dele. Parecia tão diferente da primeira vez em que ela esteve em seu quarto, deitada em sua cama e dando uns amassos. Aquele momento parecia ter ficado séculos atrás. Ela apenas percebeu que havia dormido durante o filme quando Michael a acordou tocando suavemente em sua testa e beijando seus lábios. - Ei, Bela Adormecida. – ele riu, quando ela abriu os olhos. – Pensei que você tivesse dito que esse era seu filme favorito! Julia ergueu a cabeça e viu os créditos passando. - Ah, que pena. Eu perdi o final. – ela bocejou, então se virou para ele e o beijou de volta. A mão dele massageava seu pescoço e ombros, então escorregou por suas costas até o seu cóccix. Ela se aproximou ainda mais, deixando o calor dele a acalmar. A respiração dele se tornou pesada quando ele a beijou mais profundamente e a abraçou mais forte, sem soltá-la. Normalmente, quando eles se beijavam, eles estavam em algum lugar externo ou na casa dela. Agora, eles estavam na casa dele, e eles estavam sozinhos. Não havia necessidade de se afastarem. Julia gemeu, protestando, quando ele se afastou, finalmente, empurrando-a e olhando sério para ela. - Julia – ele disse com a voz entrecortada. Sem fôlego, ela o encarou. - Sim? - Devo... – os olhos dele foram até a porta e de volta para ela. – Devo arrumar sua cama no quarto de hóspedes? Ela lentamente soltou a respiração e pegou em seu rosto com a mão. - Não – ela respondeu firme. Uma luz se acendeu em seu olhar, mas ele ainda a olhava atentamente. - Tem certeza? – ele sussurrou perto da boca dela. - Sim. Absoluta. – ela corou, mas sua voz não hesitou. Era isso que ela queria. Era ele que ela queria e de verdade. Ele a puxou para perto e esfregou a sua bochecha na dela, e então sussurrou em seu ouvido. - Eu te amo. Era a primeira vez que ele dizia aquelas palavras. O corpo inteiro de Julia estava inflamado de amor, paixão e emoção. - Eu também te amo. – ela sussurrou de volta. – Você me deixa segura.


Depois disso, ela nĂŁo disse mais nada. Nada mais era necessĂĄrio ser dito naquela noite.


13. - Gente do céu, olha essa vista! – Florian exclamou animado, apontando de sua janela. Lá embaixo, o Tâmisa cortava a cidade como uma fita azul reluzente, o Big Ben e o Parlamento ladeando o rio como se fossem miniaturas. - É, ótimo. – Tamara brincou. Ela só descobriu que tinha medo de altura depois que eles já haviam embarcado no Ferris, então ela estava sentada no banco, no meio da cápsula, segurando apavorada a mão de Gaby. - É realmente ótimo. – Axel cantarolou. Ele estava em pé ao lado de Florian, filmando a vista com sua câmera. – Ok, então eles cobram os olhos da cara para subir no London Eye, mas vale cada centavo. Julia estava do lado oposto da bolha, ouvindo Michael, que apontava a ela todo tipo de paisagens. Ele já havia ido diversas vezes a Londres, então ele sabia onde encontrar os lugares mais famosos ali de cima. - Sorriam, pombinhos. – Florian os chamou, naquele instante. Eles olharam de lado e ele tirou uma foto deles com seu telefone. - Que tipo de pássaros? – Julia gritou de volta, com um sorriso perdido. - Pombinhos, é claro – Florian respondeu, com uma piscadela – Há vários deles aqui, não? Michael lançou um olhar ácido a ele. - Ha, ha, muito engraçado. – No dia anterior ele havia sido multado por um policial por alimentar os pombos na Trafalgar Square. – Como é que eu ia saber que não podemos alimentar os pássaros? Eles não carregam um cartaz por aí dizendo “Nós, pombos, somos a maior peste de Londres”, carregam? Julia passou os braços ao redor dele. - Bem, eu achei adorável que você quis alimentar os pombos. – ela sorriu. – Você parecia tão fofo com suas mãos cheias de migalhas de pão e aquele bando de pombos famintos ao seu redor. Ele riu. - É, se ao menos a polícia achasse o mesmo. - O que? Que você é fofo? – Axel disparou. Michael e Julia caíram na risada. Era o terceiro dia deles em Londres e eles estavam se divertindo bastante. Na noite anterior, eles foram ao show de Moritz. Naquele dia, eles estavam planejando fazer um piquenique em Hyde Park, à tarde. As garotas haviam ido ao Tesco naquela manhã para fazer compras e deixaram as aquisições no quarto delas. - Só espero que os ratos não toquem em nada – Gaby havia dito, sarcasticamente, já que o albergue da juventude não era o local mais limpo que eles conheciam. - Já chegamos? – Tamara perguntou queixosa, levantando-se com as pernas bambas, para arriscar olhar pela janela. – Oh, que bom. Quase. Mal posso esperar para descer desta coisa. Depois de mais alguns minutos, o grupo todo saiu da bolha e entrou na loja de souvenires do outro lado do London Eye. Gaby, Julia e Tamara caminhavam na frente, com os braços dados, e os garotos as seguiam. No começo da viagem, eles haviam solenemente jurado não deixar a viagem se tornar de casais e, até aquele momento, tudo havia corrido bem. Julia nem havia passado muito tempo com Michael, ele passava a maior parte do tempo com os garotos e dormia em um quarto diferente. Gaby e Axel também tinham um comportamento exemplar. Axel estava conversando animadamente com Michael quando eles entraram na loja. Ele parecia


finalmente ter superado o fato de que Michael inicialmente havia tratado sua prima de forma desrespeitosa. Julia olhou para os dois sorrindo. Axel devia estar feliz porque durante todo o verão, uma longa e jubilosa sequência de acontecimentos havia ocorrido, assim como ela havia um dia imaginado em seus sonhos. Contudo, no final do verão, Michael se mudaria para Graz. Ela temia aquele momento, ela sentiria muito a falta dele. - Ei, cara, você está bem? – ela de repente ouviu Axel gritando atrás dela. Julia se virou e viu Michael sentado em uma cadeira de dobrar próxima à entrada. Florian estava em pé ao lado dele, o abanando com um jornal e oferecendo uma garrafa de água. Ela rapidamente foi até ele. - Você está se sentindo mal por causa do calor? – ela perguntou, tocando em sua testa. Estava gelada, apesar da alta temperatura do dia. Michael balançou a cabeça. - Só estou meio tonto. – ele murmurou. – Só quero ficar sentado aqui um pouco. - Você acha que pode ser pelo passeio no Ferris? – Tamara se perguntou, em voz alta. - Possivelmente – Julia respondeu, distraída. Ela se agachou e ficou ao lado de Michael até que os outros tivessem pagado pelas compras no caixa. Seus acessos de tontura estavam começando a preocupá-la. Ele estava pálido igual quando precisou ir embora do trabalho uma semana antes, porque não estava se sentindo bem. O que estava acontecendo com ele? - Vou levar o Michael de volta para o hotel – ela disse, decidida, assim que eles haviam deixado a loja. – Vamos nos encontrar no Hyde Park no final da tarde, no gramado perto da estátua do Peter Pan. - Tem certeza? – Gaby perguntou. – Você não quer que a gente te acompanhe? - O que? E arruinar a última tarde em Londres? Nem pensar. Na manhã seguinte, eles pegariam o voo de volta para Salzburg e Julia sabia que Gaby estava morrendo de vontade de ir a algumas lojas góticas no Soho, que eles haviam visto no dia anterior. - Ok, como você quiser. – Axel deu um tapinha nas costas de Michael. – Vá com calma, cara. Nos vemos mais tarde. Os dedos de Julia apertaram a mão de Michael quando eles começaram a voltar para a estação de metrô. Ela esperava que houvesse algum ônibus do lado de fora da estação: levar Michael para o albergue em um trem subterrâneo, quente e lotado não parecia a melhor coisa agora. Aparentemente, ele estava pensando o mesmo, porque apontou para um táxi que esperava no ponto próximo à estação. - Venha, vamos de táxi – ele disse, cansado. - Você está louco? – Julia o encarou, boquiaberta. – Isso vai ficar uma fortuna. Você sabe qual a distância daqui até o albergue? Ele sorriu fracamente a ela. - Ah, bem. Você não está feliz que tem um namorado rico agora? Julia deu de ombros e não respondeu. Michael estava certo, ele poderia facilmente arcar com aquele gasto. Ela apenas ficava insegura sempre que ele esbanjava dinheiro daquela forma. Ele não estava tentando se exibir, mas ela simplesmente estava acostumada a um estilo de vida bem diferente. Ela soltou a respiração quando eles entraram no banco de trás do taxi. - Albergue Hyde Park, por favor – ela disse, com seu melhor sotaque britânico. O motorista acenou, ligou o taxímetro e deu partida. Depois de meia hora de corrida para o hotel, Michael pagou ao motorista uma quantia enorme de dinheiro, mas Julia estava verdadeiramente aliviada por eles chegarem tão rápido. Michael ainda estava muito pálido. Ele provavelmente gostaria de se deitar em seu quarto.


- Vamos subir? – ela sugeriu, enquanto o táxi desaparecia ao virar a esquina. Ele balançou a cabeça. - Quero ir ao parque. Sentar sob as árvores. Vai me fazer bem. Foi aquilo que ele havia feito da última vez, também. Havia funcionado perfeitamente bem na semana anterior, então por que não? - Ok. Só vou rapidinho lá em cima pegar algumas bebidas e o meu livro – ela disse – Já volto. Enquanto ela subia as escadas correndo – o albergue barato não tinha um elevador que funcionasse, e claro, seus quartos tinham que ser no quarto andar – ela pensou em qual livro pegar. Ela e Michael estavam lendo poemas de sua coletânea de Daniil Charms, antes de embarcarem alguns dias antes, então ela levaria aquele. - Certo, vamos – ela disse, o mais animadamente que pôde, quando saiu. Michael ainda parecia branco como lençol, mas ele provavelmente não se sentiria melhor se ela ficasse mexendo com ele o tempo todo. Era uma ideia melhor levá-lo para tomar um sol, como ele mesmo dizia, algumas vezes. Sempre que ela contava suas histórias para ele e não conseguia parar de falar e sorrir, ele a chamava de seu sol, assim como havia feito em seu poema. Ela sabia que era brega, mas ela não se importava – ela ainda estava muito apaixonada para considerar qualquer coisa relacionada a ela e Michael piegas. Enquanto eles andavam pelo caminho que levava para o parque e para o gramado onde haviam combinado de se encontrar com os demais, Julia assobiava uma melodia alegre. Depois de alguns minutos, Michael se desviou do caminho, puxando-a para uma grande e nodosa castanheira no meio do gramado. - Vamos nos sentar aqui? Na sombra? Os dois escolheram um local na sombra. Michael observava Julia com um sorriso enquanto ela procurava em sua bolsa pelas latas de refrigerante e sacos de batata frita. - Você vai ler para mim? – ele perguntou ansioso quando ela pegou o livro de Charms em seguida. Ela fez que sim. - Este é o plano! Por que você não se deita com os olhos fechados e com uma bebida por perto? Obedientemente, ele pegou uma lata e encostou-se ao tronco da castanheira, seus olhos fechados. Julia folheou o livro de novo. Ele havia pertencido ao seu avô, que sempre fora fascinado por literatura russa e deixou para ela a sua coleção de poesias traduzidas quando faleceu. Ela havia lido aquele livro inúmeras vezes, mas era a primeira vez que ela o estava compartilhando com alguém que ela gostava. Ela leu baixinho alguns dos seus favoritos. “Um romance”, “Petrov e Kamarov”, “Uma canção”. De vez em quando, ela espiava Michael para verificar se ele ainda estava acordado. Todas as vezes que ela fazia isso, ela via um leve sorriso em seus lábios. Ele ainda estava sentado com os olhos fechados, mas a cor havia retornado ao seu rosto. Depois de pouco tempo, ela virou para a última página e leu o último poema do livro. Um homem deixou sua casa Com um taco e um saco; Zarpou Pela estrada E nunca olhou para trás. Ele caminhou sempre para frente Ele caminhou sempre em linha reta


Nunca dormiu, Nunca bebeu, Nunca bebeu, dormiu ou comeu. No crepúsculo, ele entrou numa floresta Escura como a noite E desde Aquela vez Ele desapareceu para sempre. Mas se um dia você Cruzar com esse homem... Então por favor Nos avise O mais rápido possível. Com um suspiro, Julia fechou o livro. Mas quando ela ergueu os olhos, ele despertou. O sorriso havia desaparecido do rosto de Michael. Ele a olhava com pesar, tão solenemente, que ela não resistiu e foi se sentar em frente a ele. - O que está acontecendo? – ela murmurou, acariciando o rosto dele. Ele estendeu os braços para ela, e ela desapareceu em meio ao abraço dele. - Eu não quero ir embora – ele respondeu, quase inaudivelmente. Ela não entendeu. - Não quer ir embora de onde? De Londres? Ele balançou a cabeça, permanecendo em silêncio. Julia mordeu o lábio e encarou seus olhos. Ele deveria estar pensando em Graz também e no fato de eles se separarem em algumas semanas. Com um leve suspiro, ela colocou a cabeça no ombro dele. - Tudo vai ficar bem. – ela murmurou, colocando a mão em seu peito. – Eu te amo. Aos poucos, ela podia sentir o corpo dele relaxar contra o seu. - Eu também te amo – ele disse – Não sei por que estou chateado. Não se preocupe comigo. Nas horas que se seguiram, Michael gradativamente se recuperou da estranha fraqueza que o havia acometido naquela manhã. Na hora em que o resto do grupo chegou ao parque, Julia e Michael estavam jogando badminton usando um conjunto de raquetes que haviam pegado emprestado de uma família que estava sentada um pouco distante deles. - Olha só você! Comprou até morrer? – Julia perguntou, olhando as sacolas lotadas que Gaby estava carregando. Sua melhor amiga acenou. - Eu praticamente saqueei a loja. E gastei todo meu dinheiro, por sinal. Não tenho nem uma moedinha para comprar lanches no voo amanhã. - Ela comprou uma blusa muito legal. – Axel completou, piscando para Julia. – Por que não mostra a Julia? Gaby corou, puxando uma camiseta de dentro de uma das sacolas com um risinho nervoso. Era uma blusinha com caveiras, alfinetes e uma frase “Morro de amor pelo meu namorado”. - Uau, que romântico! – Julia elogiou a compra da amiga com um sorriso. - Aaaah, esquilos! - Tamara apontou um par de esquilos cinza, correndo pelos galhos da castanheira. – Vou dar comida para eles! - Não vai, não! – Michael disse. - Não vou, não? Por que não? Vou ser multada, como você?


- Não, mas você vai ser assediada por um bando de esquilos detestáveis. Eles estão por toda parte. Se você alimentar um, eles vão buscar todos os amigos e acabar com a sua comida. Moritz riu, maliciosamente. - Roubada por roedores. – ele cantarolou. – Você acha que a polícia vai acreditar em nós se formos denunciar uma coisa dessas? O grupo se sentou rindo e conversando, mas Axel olhou o horizonte e fazendo uma careta, apontou umas nuvens escuras de tempestade se acumulando a oeste. - Gente, aquilo está feio. Acho que vamos ser pegos por uma tempestade. Florian agarrou em seu braço e o puxou para baixo. - Senta aqui, senhor profeta do desastre. Vamos ficar bem. Vinte minutos depois, quando um relâmpago rasgou o céu escuro e as primeiras gotas de chuva começaram a cair, Axel lançou um olhar estoico ao amigo. - Profeta do desastre, né? – ele disse calmamente. - Dá um tempo. – Florian rebateu. Eles correram para dobrar as toalhas do piquenique e recolher a comida, quando a chuva começou a cair mais forte. Julia correu quando eles saíram da parte gramada do parque protegida por árvores, e foi a primeira a chegar ao hotel. Era bom saber que ela não estava completamente fora de forma. - Plano de piquenique no Hyde Park: falhou. – Gaby murmurou, entrando no saguão do hotel, com rímel por todo o rosto e mechas de cabelo preto pregadas no rosto. – Vamos nos sentar no lounge e comer ali? O lounge era a sala comum com computadores, um bar e uma enorme tela plana para os hóspedes se distraírem. Julia e seus amigos se acomodaram nos sofás fofos no canto. Assim que todos haviam se trocado, eles desembalaram a comida e colocaram na mesa, para o jantar. Florian estava conferindo a previsão do tempo em seu celular. - Ah, ótimo – ele disse, desanimado – Está sol e calor em Salzburg, gente. E aqui estamos nós, curtindo o bom clima inglês. - Bem, talvez nós devêssemos fazer nosso piquenique externo, lá em casa, amanhã – Julia respondeu – Então podemos celebrar o último dia da nossa viagem com um pouco de sol. - Parece ótimo – Moritz disse – Meu voo chega a Salzburg amanhã à tarde, então eu posso me juntar a vocês à noite. Julia se recostou, mentalmente fazendo uma lista de coisas que ela teria que comprar no supermercado depois que voltasse para casa. - Me lembre de ir à loja amanhã - ela disse a Michael, que a entregava um sushi. Ele sorriu. - Não se estresse. Não pense em Salzburg ainda. Estamos aqui, agora. - Você está certo. – ela sorriu de volta, se aconchegando nele. Ele havia dito que não queria ir embora. Ela queria estar no aqui e no agora também, curtindo sua última noite em Londres com Michael e todos os seus amigos. Quando ela voltasse para casa, teria que cuidar de mais coisas que apenas compras... O período de orientação da Universidade de Salzburg logo começaria. Seria o começo de uma nova vida para todos eles. Michael se mudaria para outra cidade, voltando para casa no final do semestre apenas. Suas vidas mudariam, mas ela não queria pensar naquilo. Hoje era tudo o que importava, o agora.


14. No dia seguinte, Julia havia ido diretamente para o trabalho para organizar o piquenique em sua casa. Eles tiveram um voo tranquilo, sem atrasos e antes de se despedir de todos no aeroporto, Julia recebeu a contribuição de todos para a comida. Perdida em pensamentos, ela desceu de sua bicicleta e a carregou até o portão quando uma voz animada repentinamente a despertou. - Ora, ora... Para que tudo isso? Julia ergueu o olhar das sacolas pesadas que ela estava descarregando no guidom, e olhou diretamente para os olhos azuis de Thorsten. O vizinho lançava um olhar questionador às sacolas de compras cheias de pães e petiscos. - Ah, é para nosso piquenique pós-férias. – ela explicou. – Por que você não se junta a nós? Temos comida suficiente para alimentar a vizinhança toda. - Acredito em você. – ele riu, abrindo um sorriso largo quando Julia tentou pegar as três sacolas sozinha. – Deixe-me te ajudar. Ela e Thorsten carregaram tudo para a mesa do lado de fora, onde Michael estava se ocupando de fazer uma enorme bacia de salada de frutas. - Ei, obrigado por ajudar a Julia, cara – ele disse, quando viu Thorsten carregando duas sacolas. – Minha namorada teimosa insistiu que daria conta das compras sozinha. Ela queria fazer tudo sozinha porque Michael ainda não estava se sentindo bem, depois da tontura em Londres no dia anterior. Ele havia se oferecido para ajudar, mas ela havia recusado porque sabia que ele ainda se sentia mal. Fazer uma salada de frutas era a atividade menos cansativa do dia então ela havia pedido para ele fazer aquilo e nada mais. - Sem problemas – Thorsten respondeu – Eu carrego caixas de produtos insanamente pesados no supermercado todos os dias. A mão de Julia é uma chefe realmente tirana. - Eu ouvi. – a Sra. Gunther cantarolou docemente ao chegar ao jardim. – Vou cortar seu bônus, rapazinho. Quando Julia e sua mãe haviam acabado de colocar toda a comida na mesa, Axel, Gaby e Tamara pararam em frente à casa, no carro de Tamara. - Londres chamando! – Tamara gritou do banco do motorista, antes de estacionar próximo ao portão. Ela saiu segurando um fardinho de Guinness que havia comprado na loja do aeroporto naquela manhã. Axel e Gaby a seguiram, carregando sacolas cheias de batatinhas sabor sal e vinagre. - Mais comida? – Thorsten gritou, fingindo surpresa. – Uau, vocês devem estar felizes de eu ter aparecido para ajudar a comer tudo isso. - Sempre fico feliz de ter você por perto – Julia disse, com um sorriso carinhoso. Thorsten olhou de lado, parecendo prestes a corar. - Ei, devo buscar meu violão? – ele disse de repente, saindo em disparada antes que ela pudesse dizer que sim. Julia piscou e se virou para Michael que estava em pé alguns passos atrás dela, a encarando pensativamente. De repente, ela se sentiu idiota por dizer coisas daquele tipo para Thorsten. Ela realmente não queria que aquilo tivesse soado como paquera – ela realmente se sentia daquela forma – mas aquilo havia tido um efeito em seu vizinho que Michael não havia deixado escapar nem se estivesse a quilômetros de distância. Ela esperava que ele não ficasse com ciúme, porque não havia nada com que se preocupar.


Ela hesitantemente caminhou em direção a ele e se inclinou para beijá-lo nos lábios. - Eu te amo. – ela sussurrou contra os seus lábios. - Eu também te amo. – ele murmurou de volta, encarando-a com tanto amor e ternura que ela se perguntou se havia imaginado o olhar ciumento de antes. Quando Florian e Moritz completaram o grupo, ao aparecer com uma enorme vasilha de salada de batata, Thorsten também voltou. Depois do jantar, ele tocou algumas músicas conhecidas em seu violão, para que todos pudessem cantar juntos. - Ok, agora toque algo realmente emocionante para nós – Tamara pediu depois que eles haviam acabado de cantar o final de “Hey Jude” a plenos pulmões. Thorsten baixou o olhar para o seu instrumento, afinando as cordas mais agudas, antes de começar a tocar a música que ele havia escrito. Ele ergueu o olhar, procurando por Julia. Ela sentiu as bochechas ficarem vermelhas, balançando a cabeça quase imperceptivelmente, mas Michael já a havia cutucado e a feito levantar de seu colo. - Cante – ele simplesmente disse, olhando-a com expectativa. Seu coração martelava em sua garganta, quando se sentou ao lado de Thorsten. Droga, ela estava ainda mais nervosa do que no dia em que ela teve que tocar sua própria música diante de todos os colegas de classe na cerimônia de formatura. Por que aquilo era tão difícil para ela? Aquele era seu próprio grupo de amigos. Seus olhos foram de Michael a Thorsten e voltaram, e repentinamente ficou claro para ela porque aquilo era extremamente esquisito. Era a primeira vez que ela cantaria aquela música com os dois juntos. Era a melodia de Thorsten, mas era a letra de Michael. Era como se os dois mundos estivessem se chocando, sem que nada pudesse alterar a fatal rota de colisão. - Mein Ruf ist dünn und leicht – ela cantou em uma voz radiante e suave. – Meu chamado, quieto e misterioso. O vento balançava as árvores ao redor da casa, enquanto sua voz ganhava força e parecia hipnotizar a plateia. Ela cantava e se derramava completamente na música. Quando a canção acabou, todos ficaram sentados, encarando-a admirados. Thorsten se virou para ela e colocou a mão em seu braço. - Obrigado – ele disse em voz baixa – Isso foi lindo. Ela ficou vermelha. Da última vez, ele a tinha agradecido de um jeito diferente. Ela o encarou com uma pergunta implícita em seu olhar. Será que algum dia vamos poder ser apenas amigos? Seus olhos azuis pareciam enviar a ela uma resposta. Sempre vou olhar para você de um jeito especial. Gaby quebrou o silêncio ao começar a aplaudir, o restante do grupo a seguindo imediatamente. - Uau, isso foi incrível! – ela disse – Vocês escreveram juntos? Thorsten deu de ombros timidamente. - Mais ou menos. – Enquanto as pessoas lançavam perguntas a eles sobre sua música, Julia rapidamente se levantou e entrou em casa para pegar um copo de água na cozinha. Quando ela saiu dali para voltar para fora, Gaby estava esperando por ela no corredor. - Jules – ela disse – Eu não acho que convidar o Thorsten foi a melhor ideia que você teve hoje. Julia piscou para ela. - Por quê? - Ah, porque é dolorosamente óbvio que ele ainda está apaixonado por você. E porque você está amigável demais com ele. E Michael está claramente percebendo tudo. - Oh. – Julia se encolheu. – Não. Você acha? Mas essa não era a minha intenção, Gaby. Você


sabe, não é? Gaby deu de ombros, relutante. - Sim, eu meio que entendo. Mas a dúvida é: eles entendem? - Eu... Eu não sei – Julia disse, arrasada. Então ela não havia imaginado o olhar de Michael no fim das contas. Aquela situação toda era um saco. Ela tinha que conversar com ele naquela noite. Gaby estava certa: ela estava sendo ridícula. – Vou explicar tudo a ele. Prometo. - Vamos jogar pôquer. – Florian anunciou a Julia e Gaby quando elas voltaram para a mesa. – Vocês estão dentro, não estão, meninas? - Só se eu puder ficar no time do Axel. – Gaby exigiu. - Naturalmente, Senhora das Trevas. Ninguém ousaria manter vocês afastados – Florian respondeu docilmente. Axel deu um tapa na cabeça do amigo e puxou Gaby para seu colo. Eles jogaram por horas. Quando ficou tão escuro que eles não conseguiam mais enxergar as cartas com a luz das lanternas externas, eles decidiram encerrar a noite e limpar tudo. Julia recrutou Gaby e Tamara para levar todos os pratos sujos para a cozinha, enquanto ela recolhia todas as garrafas vazias em uma sacola plástica para guardar no galpão. Sua mãe poderia leva-las e devolver ao mercado. Ela parou quando ouviu duas pessoas conversando atrás do galpão. Era Michael e Thorsten. Eles estavam conversando em particular? Nervosa, ela se esgueirou para frente para escutar o que eles estavam dizendo. Ela não conseguia distinguir muito bem a voz de Michael, mas ele parecia resoluto, enquanto Thorsten parecia chateado. - Não estou pedindo isto sem motivo. – ela ouviu Michael dizer ao seu vizinho. Thorsten expirou, frustrado. - Desculpe, mas falando sério? Como é que você pode me pedir uma coisa dessas... – sua voz falhou. – Você sabe o que eu sinto por ela. - E é por isso que eu estou pedindo. - Como é que é? Olha, eu sei que você não tem que levar meus sentimentos em consideração, mas... - Espero que tenha ficado claro. – Michael o interrompeu no meio da frase. Quando ele se virou e apareceu no canto, Julia tropeçou ao andar para trás e tentou sair sem ser notada, mas era tarde demais. Ele trombou com ela. - Ah, oi – ela disse nervosa, olhando em volta para encontrar uma desculpa para estar ali. – Eu, hã, tinha que guardar essas garrafas no galpão, então... O olhar dele foi da sacola cheia de garrafas de refrigerante para o seu rosto culpado. - Você ouviu minha conversa com Thorsten? – ele perguntou, calmamente. Ela ficou vermelha. - Ok, sim. Mas eu não tive a intenção. - Tudo bem. Eu tinha que conversar com ele para pedir uma coisa que tem a ver com você. Sim, aquilo havia ficado absolutamente claro. Michael havia dito para Thorsten em termos nada incertos, para ficar longe dela. É por isso que o vizinho havia soado tão atormentado. Michael estava com ciúme e, francamente, ele tinha todos os motivos para estar. - Desculpe. – ela sussurrou. – Eu não deveria... Você sabe... - Não a estou culpando por nada. – ele murmurou. E então ele a beijou. Seus lábios suavemente exploravam os dela, suas mãos percorrendo suas costas. O mundo ao redor deles parecia ter parado. O vento havia parado e a lua cheia havia se erguido. Sobre as suas cabeças, as estrelas brilhavam no céu azul escuro rajado de raios vermelhos


do sol que havia se posto. Julia sentiu a respiração dele em sua bochecha quando ele lentamente se afastou dela. - Eu te amo de todo o meu coração – ele disse. - E eu te amo. – Julia sorriu. – Por que você está tão sério hoje à noite? - Bem, só estou sério. Quero que você saiba que cada palavra que eu disse é verdade. Eles andaram calmamente de volta para a mesa, de mãos dadas. Os amigos estavam tomando uma última xícara de café. Thorsten não estava em lugar algum e Julia sabia exatamente o motivo. Talvez ela devesse ir até a casa dele no dia seguinte, apenas para esclarecer as coisas. - Vamos embora daqui a pouco – Tamara disse – Alguns de nós precisam trabalhar amanhã. Gaby franziu a testa. - Por que, meu Deus, eu tive que assinar um contrato de dois meses? Eu já fui para Londres. Eu nem preciso mais do dinheiro. - Por que você não guarda para a próxima folga? – Axel sugeriu. – Podemos ir para algum lugar juntos. O rosto de Gaby se iluminou. - Definitivamente! Ok. Eu vou limpar aqueles malditos estábulos por mais algumas semanas. – ela lançou um olhar apaixonado e esperançoso a Axel. Julia não conseguiu evitar olhar de lado para Michael da mesma forma. Em resposta, ele se inclinou e a beijou suavemente. Quando o café havia acabado, todos os convidados se foram. Michael foi o último a ir. Julia acenou para ele do portão, quando ele foi embora, no carro de sua mãe, buzinando para ela. Ela ainda podia sentir os lábios dele em sua boca, enquanto subia as escadas. Cantarolando, ela acendeu a luz do quarto e vagamente tocou algumas notas no teclado. A melodia que ela estava cantarolando era a música que havia composto antes da viagem para Londres, a música triste que ela havia criado ao piano depois da tarde na floresta. A canção havia sido perfeitamente nomeada Adeus, porque ela sentia como se estivesse deixando algo para trás naquela melodia. Julia se sentou e começou a tocar novamente, os sons saindo pela janela aberta e subindo em direção ao céu, onde a lua pálida brilhava, e descendo até o limite da floresta, onde ela havia dito adeus para tanta coisa naquele verão e aprendido novas lições. Ela estava no começo de um novo capítulo e era hora de virar a página. Naquele momento, sua mãe tossiu baixinho, em pé no batente da porta de seu quarto. - Que música maravilhosa, querida. – ela observou. – É nova? Julia olhou para a mãe pensativamente, então balançou a cabeça. - Não, eu não acho. Parece antiga. Eu a nomeei Adeus. A Sra. Gunther acenou. - Eu acho que eu entendo o que quer dizer. Julia sorriu. - Boa noite, mãe. Ela se levantou, desligou o teclado e se preparou para deitar na cama. Enquanto fechava as cortinas e fechava a porta do quarto, ela ouviu a mãe cantando baixinho a sua música no corredor. Com um suspiro satisfeito, ela escorregou para debaixo do edredom e leu seu álbum até que as pálpebras começaram a ficar pesadas. Nessa hora, ela apagou a luz e caiu no sono.


15. Uma voz a acordou de seu sonho. Julia se sentou na cama, desperta. Por um segundo, ela pensou que Anne a havia chamado, mas não poderia ser, pois ela estava ficando com o pai em Innsbruck naquela semana. Ela procurou pelo quarto, iluminado pela luz fria do luar. Ela não tinha fechado as cortinas antes? Ou havia esquecido? E então, ela ouviu novamente. Uma voz clara, soando como sinos, aparentemente vindo do nada. - Venha para a floresta. Um arrepio percorreu sua espinha, mas era por causa do vento frio soprando pela janela, a voz não a assustava. Ela soava quente e amigável. Julia esfregou o rosto. Sua testa estava molhada de suor. Não era nenhuma surpresa os arrepios que ela sentia por todo o corpo, com o vento tocando sua pele. Ela se levantou e caminhou para a janela, inclinando-se para fora. Não havia ninguém lá embaixo que a poderia ter chamado. Sem pensar muito, ela se vestiu e foi, silenciosamente, para o andar de baixo, sem acordar sua mãe. Julia caminhou para fora do quintal. O luar banhava tudo de prateado, dando ao mundo uma atmosfera de conto de fadas. Ela olhou para a rua onde ficava sua casa, momentaneamente dando de ombros, então começou a caminhar em direção à floresta. Quem sabe, talvez ela tivesse se tornado tão sensível à floresta quanto Michael. Talvez os espíritos da floresta a haviam chamado para dançar. Julia sorriu. Bom saber que ela não havia se tornado uma adulta chata e responsável ainda. Quem em seu juízo normal faria um passeio na floresta no meio da noite, porque uma voz misteriosa havia chamado? Na verdade, aquilo até era empolgante – algo que poderia ter acontecido em um de seus livros de contos de fadas. Assim que chegou à trilha da floresta, seus pés automaticamente a levaram em direção ao seu antigo local de meditação. Seu carvalho estava silenciosamente ereto em meio às outras árvores, parcialmente em meio às sombras. Contudo, o luar claramente iluminava uma figura familiar, em pé ao lado do carvalho. Ele parecia estar esperando por ela. - Michael? – ela perguntou surpresa. – O que você está fazendo aqui? Ele deu um passo em direção a ela e suavemente beijou sua bochecha. - Eu quero falar com você. - Hã... Aqui? – ela ergueu uma sobrancelha. Ele concordou solenemente. - Sim, aqui. Foi aqui que tudo começou. – ele a pegou pela mão e lentamente andou para trás até que eles estivessem diretamente sob o carvalho, seus rostos iluminados pelo luar que atravessava a folhagem. Julia prendeu a respiração. Os olhos de Michael nunca haviam parecido tão vividamente verdes e intensamente tristes como naquele momento. Todo o seu rosto parecia diferente, mas ela não conseguia apontar exatamente em quê. - Você ouviu a minha voz? – ele perguntou. - Era você? – ela piscou para ele. – Como é que eu posso ter ouvido sua voz na minha mente? - Porque a nossa conexão é muito profunda – ele respondeu – Porque eu venho escutando a sua voz na minha mente há vários anos. Ela balançou a cabeça, confusa. - Não estou entendendo, desculpe. Ele baixou o olhar, para a mão dele tocando o tronco da árvore.


- Você costumava vir aqui para desenhar, escrever, ler ou sonhar. Este era o seu reino. Você se sentia segura aqui. E eu mantinha você segura. Eu era o anjo que guardava você. Uma estranha sensação percorreu Julia. Michael ia dizer mais sobre sua repentina atração por ela, depois do acidente. Mas por que é que nada daquilo fazia sentido? O que ele tinha dito, exatamente... Ele havia oferecido segurança a ela sob aquela árvore? - Então... Hã... Você também costumava vir aqui? – ela arriscou. Ele a encarou, ainda mais desamparado do que antes. - Eu costumava ficar aqui. Os olhos dela se arregalaram com espanto. Ela hesitantemente ergueu o olhar para os galhos do carvalho. O carvalho dela. - O que você quer dizer? – ela sussurrou. - Eu acho que você poderia me chamar de príncipe da floresta – ele respondeu baixinho – Um príncipe de verdade. Um carvalho, um ancião com uma vida na floresta de muitos séculos, vivendo em conexão com todas as outras criaturas da floresta, enraizado ao solo. A boca dela ficou seca. - Uma árvore – ela disse em um único tom. - Uma árvore – ele concordou. Aquilo era irreal. Era louco. Ela nunca havia ouvido uma história mais bizarra em sua vida e, mesmo assim, Julia sabia que ele não estava mentindo. Ela podia sentir isso. - O que... Como... – ela gaguejou e então parou. Ela não sabia o que perguntar. Michael gentilmente acariciou o seu rosto. - Você sempre sentiu que as árvores têm certa força de vida. – ele continuou seu notável conto. – Você sentia que elas podiam sentir. Que você as podia sentir. E você pode. As árvores são almas, almas muito quietas, pacíficas que se erguem do solo como ramos, crescem e se tornam galhos verdes e então ficam ainda maiores. A vida delas parece eterna. E a alma de uma árvore nunca está sozinha. Ela está sempre conectada com outras almas ao seu redor. E quando uma árvore viveu muitos séculos de vida e seu tempo está quase terminando, ela cai em um sono profundo. Ela dorme, perde o conhecimento de si mesma, misturando-se com a consciência do bosque mais uma vez, para renascer como um rebento. Michael se inclinou contra o carvalho, correndo a mão por seu cabelo. Sua voz baixou. - Mas algumas vezes, é diferente. Algumas vezes uma árvore se conecta com um ser humano no final da sua vida. Um humano que sempre visita a árvore, por exemplo. E esta conexão a desperta, por assim dizer. Isso significa que a alma da árvore não vai se dissolver na consciência da floresta. Ela se solta e renasce como humano, normalmente como uma criança ou outro membro da família da pessoa que a libertou da sua existência como árvore. É assim que nossas almas evoluem, espécie a espécie. Algumas vezes, de uma árvore para um animal, às vezes para um humano. - E você... Você teve uma conexão dessas comigo – Julia disse em uma voz hesitante, encarando Michael com os olhos arregalados. Exceto pelo fato de que não era Michael. E de certa forma, ela sempre soube. O garoto em sua frente concordou. - Sim, eu tive. Mas meu elo com você foi diferente do que as outras árvores sempre me ensinaram. Eu não queria nascer como seu filho ou seu neto. Eu queria estar com você... Como um igual. – ele sorriu timidamente. – Foi apenas quando eu acabei dentro deste corpo que eu percebi que eu estava apaixonado por você. Como árvore, eu não tinha conhecimento suficiente do que eu estava sentindo, mas como um garoto eu tive.


- Este corpo. – ela tocou o seu ombro um pouco trêmula, então a cabeça, a bochecha. – O que você fez com ele? Você roubou o corpo do Michael? Ele balançou a cabeça. - Não, claro que não. Ele veio rasgando a floresta com a moto e a roda ficou presa em uma raiz saliente no canto da estrada. A estrada estava escorregadia por causa da chuva e a moto virou, derrubando-o. A cabeça dele atingiu uma pedra, e ele se foi. – ele colocou uma mão na dela, tranquilizando-a. – Ele morreu com o impacto. Ele não sofreu. Julia não conseguiu evitar que os olhos se enchessem de lágrimas com as palavras dele. - Eu vi a alma dele flutuando, se reunindo à sua fonte. Ele parecia... Em paz. Foi naquele momento que eu tomei a repentina decisão de sair de meu corpo velho para este novo. Na noite do solstício de verão, quando a força do relâmpago conecta os poderes do céu e da terra, de cima e de baixo, é quando isso se torna possível. Os joelhos de Julia ficaram bambos. Michael a segurou enquanto ela caía sentada, encostada no carvalho. - Isso é impossível. – ela murmurou. – Isso não pode ser real. - E ainda assim, você sabe que é – ele disse calmamente – Eu acho que você sempre sentiu, mas não conseguia explicar. Ela lançou a ele um olhar suspeito. - Hã... Você pode ler os meus pensamentos? Ele sorriu, parecendo maroto de repente. - Algumas vezes. Alguns relances. - Então você o escolheu... De propósito? - Não, porque eu não tive nada a ver com o acidente dele. Eu nem sabia quem ele era até que eu entrei no corpo dele e meu... Ou, na verdade, as memórias dele voltaram. É uma incrível coincidência eu ter acabado dentro do corpo do garoto por quem você era apaixonada. Ou talvez não, eu não sei ao certo se existem coincidências. Essa é uma palavra tipicamente humana. Na floresta, tudo está conectado e tudo acontece por uma razão. A cabeça de Julia girava. Agora ela finalmente entendia porque ele parecia simplesmente saber as coisas e como ele havia sido capaz de encontrar Anne. Como ele sabia de seus gostos por livros e seu amor pela música, e como ele havia reconhecido a música dela. Ele era o seu carvalho. Uma alma que a apoiava e a consolava sempre que as coisas estavam difíceis. E em troca, ela o havia tocado, despertando-o do sono, oferecendo-o a chance de uma vida nova e diferente. - Por que você está me dizendo tudo isso agora? – ela perguntou, com a voz embargada. – Por que você não me disse antes? Seu silêncio a assustou. Ele expirou, então disse: - Por que eu achei que não fosse precisar. O coração dela ficou gelado. - Mas agora você precisa? - Sim, agora eu preciso. – ele olhou para ela, uma lágrima solitária rolando por seu rosto. – Por que, sabe, não posso ficar. Ela olhou boquiaberta para ele, sem entender. Na realidade, ela não queria compreender. - Não é assim que as coisas devem acontecer. – ele continuou, relutante. – Eu não me sinto mais confortável neste corpo. Eu fico doente com mais e mais frequência. A floresta está me chamando, me forçando a morrer de forma natural. Voltar mais tarde, nascendo de novo como um humano. É assim que as coisas sempre foram, e é assim que devem ser agora.


Lentamente, ela absorveu suas palavras. - Não. – Julia agarrou sua mão, olhando para ele impotente, passando os braços ao redor do corpo dele, do corpo que não era dele. Se ao menos ela pudesse fazer mais. Se ao menos ela pudesse abraçar a alma dele, segurá-lo até que eles se erguessem e voltassem a esse mundo bem mais tarde. – Você não pode fazer isso. Não vá. Por favor, por favor, não me deixe. - Eu tenho que fazer isso. – ele murmurou em meio aos cabelos dela, um choro sufocado em sua voz. – Eu tenho que ir. E agora você sabe o porquê. Ele se afastou de seu abraço e a olhou em silêncio. Então, ele pegou o rosto dela com as mãos e a beijou. Ele a beijou suavemente, seus lábios tocando o nariz dela, as bochechas, a boca e as pálpebras, quando ela as fechou e começou a chorar. - Eu te amo mais do que eu um dia amei alguém neste mundo. – ele sussurrou. Eles ficaram ali por um bom tempo, sob o luar, seus olhares um no outro, os dedos entrelaçados. E Julia não podia acreditar que aquela seria a última vez. Não era justo. Era muito cedo. Ela secou as lágrimas dos olhos com uma mão trêmula. - Daqui a quanto tempo? – ela queria saber. - Não sei. Posso sentir minhas forças diminuindo. – o dedão dele acariciava a sua outra mão, que descansava na dele. Mais uma vez, ela apertou o corpo junto ao dele, chorando baixinho. - Você tem um nome? – ela perguntou. – Eu quero saber seu nome de verdade. Ele balançou a cabeça. - Não é um nome como o dos humanos. Se eu abrir sua mente para que você o ouça, eu não sei se você conseguirá entendê-lo, - Por favor, tente. – ela insistiu. – Por favor, eu quero saber por quem estou apaixonada. Ela ficou dentro do abraço dele, sentindo-o pressionar sua testa na dela. Por apenas um segundo, era como se algo tivesse apertado o interior de seu crânio e então as portas da sua mente se escancararam. Ela fechou os olhos e perdeu o fôlego, quando ela ouviu um som indescritivelmente lindo. Era o sussurro do vento brincando nas árvores, um tinir como de pequenos sinos, o giro da Terra enquanto girava silenciosamente no espaço, o farfalhar das flores, brotando rapidamente, como em uma filmagem acelerada. Era a força da vida percorrendo tudo, comprimida em uma única sílaba. Ele a soltou e ergueu o rosto dela. - Este é o meu nome. – ele murmurou. – Mas para você, eu sempre vou ser Michael. - Foi esplêndido. – ela sussurrou maravilhada. – Você é esplêndido. Eu te amo muito. Mais uma vez, ele a beijou. O espírito do carvalho que tinha se apaixonado por ela, o garoto do bosque que tinha chegado a ela como Michael. Ela o apertou forte. Ela não queria deixá-lo ir. Mas então um tremor balançou o chão da floresta. Julia olhou em volta, em pânico. O que era aquilo... Um terremoto? O que estava acontecendo? Ela gritou de medo quando foi erguida no ar e jogada para trás, as mãos de Michael se soltando das dela. Suas costas bateram no chão, as mãos segurando desesperadamente o carpete sob seus dedos. Julia piscou os olhos e congelou. Ela não estava na floresta. Ela estava sentada no chão de seu quarto, vestindo um pijama ensopado de suor. Lá fora, o sol estava brilhando, mas as suas cortinas ainda estavam fechadas. Seu edredom havia caído da cama junto com ela. Entorpecida, ela esfregou o rosto. Inacreditável. - Um sonho. – ela murmurou séria, apenas para ouvir sua própria voz e se assegurar de que agora estava acordada. – Foi tudo um sonho.


Julia se levantou com as pernas bambas. Não havia acontecido nada daquilo. Ela não havia ido até a floresta e ela não havia conversado com Michael, mas tudo pareceu ter sido tão real que ela ainda estava em um completo torpor. Ela andou pelo corredor aos tropeços, para usar o banheiro e se refrescar. Distraidamente, ela se vestiu com um vestido de verão e sapatilhas baixas. O celular mostrava a hora: nove e meia. Bom. Aquilo significava que Michael provavelmente já estaria acordado. Com uma careta, ela percorreu a lista de contatos e ligou para o número dele. Aparentemente o telefone estava desligado, porque foi direto para o correio de voz. Ah, bem, ela apenas apareceria, sem avisar. Ele não se importaria. Ele trabalharia apenas no turno da tarde naquele dia, e ela realmente precisava vê-lo naquele momento. Ela tinha que tirar aquele sonho horrível de sua cabeça imediatamente e abraçá-lo e contar sobre o sonho estranho que tivera. Ainda assim, aquilo parecia errado. Aquela manhã parecia errada. - Vou ver o Michael! – ela gritou na direção da janela quando viu a mãe sentada no quintal com uma xícara de café e uma torrada. - Divirta-se. – a mãe respondeu de volta. – A que horas você volta? Seu pai vem aqui esta tarde, trazer Anne. - Vou voltar na hora do almoço. – Julia prometeu, sua voz fingindo certa animação. Assobiando estridentemente, ela deixou a casa e rapidamente caminhou para o ponto de ônibus. Fingir estar mais animada do que ela verdadeiramente estava, ajudaria a espantar as sombras de seu pesadelo antes de chegar à casa de Michael. Para se distrair de seus pensamentos obscuros, Julia pegou seu MP3 e verificou a lista de músicas, para escolher suas faixas preferidas de Chopin. Depois de uma viagem de vinte minutos, ela desceu na esquina da rua de Michael. Enquanto Julia guardava seu MP3, ela começou a caminhar mais rapidamente para chegar à casa o mais rápido possível. Um sentimento inexplicável de medo estava crescendo em seu estômago e ela queria se livrar daquilo imediatamente. E então, o seu coração parou. As luzes azuis de uma ambulância estavam piscando, refletindo na entrada da sua grande e luxuosa mansão. Um grupo de pessoas estava aglomerado na calçada. - Julia. – ela sentiu uma mão em seu ombro. Axel estava ao seu lado. - O que está acontecendo? – ela perguntou, ansiosa. O rosto de Axel estava pálido. - Cheguei há cinco minutos. Nós íamos trocar algumas fotos de Londres. A mãe dele. – sua voz falhou. – Ela estava na rua em frente a casa, chorando, segurando o celular. Ela ficava repetindo: “Outra vez, não”. Julia engoliu seco. - Outra vez não, o que? - Jules... Ele se foi. – Axel sussurrou. – Ele morreu. Morreu dormindo. Era como se alguém a tivesse atingido na cabeça com um taco pesado, sugando toda a luz e o amor do seu corpo e alma. Julia não conseguia respirar. A próxima coisa que ela sabia é que estava no chão frio da calçada, olhando para o céu azul. A parte de trás de sua cabeça doía terrivelmente. As pessoas se juntaram ao seu redor e alguém segurava a sua mão. Como ela tinha ido parar ali? - Onde está o Axel? – ela resmungou. A pessoa segurando sua mão apertou seus dedos. - Estou bem aqui. Você desmaiou, ok? Apenas fique quieta, alguém vai buscar uma água para você. Ela queria ficar deitada ali para sempre. Na verdade, ela nunca mais queria levantar. Assim como ele também nunca mais ia se levantar. Michael tinha ido embora, ele havia sido tirado dela.


Apenas agora tudo se encaixava completamente. - Como é que ele pode estar morto? – ela guinchou, desanimada, virando a cabeça para olhar para seu primo. Axel a olhou, sentido. - Eu ouvi os paramédicos falarem para os pais dele que ele teve um dano cerebral. Eles perguntaram ao pai e à mãe se ele havia sofrido mudanças estranhas de comportamento ultimamente. Aparentemente, ele teve uma hemorragia cerebral. Julia estava sem palavras, seu cérebro zumbindo, os pensamentos girando em sua mente sobre o sonho da noite anterior e o que aquilo poderia significar. Ela tinha conversado com ele e ele tinha dito que precisava ir e o porquê. Será que aquilo tudo era verdade? Será que aquela era a forma que ele havia escolhido para dizer a ela a verdade? Ela nunca mais descobriria, não havia mais como perguntar a ele. Ele nunca mais a seguraria em seus braços como havia feito depois do piquenique do dia anterior, sob o céu estrelado. Ele nunca mais a beijaria no luar de seus sonhos. Um choro ruidoso e desesperado começou a surgir em seu corpo, escapando por sua garganta. Julia conseguiu se sentar, afastando o copo de água que alguém segurava em sua frente. - Por favor, me leve para casa. – ela pediu a Axel. Ele concordou e rapidamente a ajudou a se colocar em pé. Julia olhou em volta, seu olhar pousando nos pais de Michael, os rostos sem cor. Eles pareciam fracos e perdidos, parados ao lado da ambulância que continha o corpo de seu único filho. Ela ergueu o olhar para Axel e ele a apoiou enquanto ela caminhava até eles. - Ele está morto – a mãe de Michael disse, inexpressivamente, os olhos injetados, cheios de dor. Ela estendeu os braços e puxou Julia para um abraço apertado que a deixou sem ar. O pai de Michael tocou seu ombro. Julia não podia olhar para a maca dentro da ambulância, era apenas um corpo, uma casca sem vida. Nada do que se despedir. Ele estava em algum outro lugar, ela tinha certeza daquilo. - Ele a amava – o pai de Michael a disse, baixinho, entregando-a a foto que ficava na cabeceira de Michael, com a mão trêmula. A foto dos dois abraçados sempre ficava perto da cama dele. – Tome, você deve ficar com isso. Seus pais continuaram conversando com ela, mas ela não absorveu nada. Julia esperava que Axel estivesse prestando atenção, porque ela não seria capaz de lembrar-se do que o senhor e a senhora Kolbe a disseram sobre o funeral, se ela queria tocar algo no piano durante a cerimônia, porque Michael sempre adorava vê-la tocar. - Eu ligo para vocês mais tarde – ela conseguiu dizer – Vou para casa agora. Desculpe. Axel a levou para seu carro, estacionado no meio-fio. Silenciosamente, ele dirigiu para Birkensiedlung, Julia sentada ao lado dele como uma estátua. - A propósito, eu liguei para a Gaby. – ele finalmente quebrou o silêncio. – Ela vem para sua casa assim que possível. - Obrigada. – ela olhou para fora da janela, sem enxergar nada, apenas despertando novamente quando Axel entrou em sua rua. Ela tinha tanta coisa para fazer. Todos tinham que ficar sabendo, ela tinha que ligar para seus outros amigos, assim como contar para sua mãe, sua avó e Anne... - Por que você não se senta do lado de fora? – Axel sugeriu quando ele a viu agarrando o telefone, desesperada, quando desceu do carro. – Eu tomo conta de tudo. Converso com a sua mãe, faço as ligações. Com a respiração falha, Julia se sentou na cadeira de jardim em que sua mãe havia descansado tomando uma xícara de café naquela mesma manhã. Ela fechou os olhos e ouviu Axel passar por ela pelo caminho de cascalhos. Pela janela aberta da sala de estar, ela captava os fragmentos de


conversas ao telefone, que não conseguia acompanhar por completo. - Ei, o que aconteceu com você? – uma voz familiar a fez abrir os olhos. Ela piscou para o rosto ansioso de Thorsten. Quando ele se sentou ao lado da sua cadeira, pegou suas mãos nas dele. – Eu vi Axel trazendo você para casa no carro dele. Você está doente ou algo assim? Julia balançou a cabeça. - Ele morreu – ela disse, sua voz parecendo muito alta em seus próprios ouvidos. Quanto mais ela dizia as palavras, mais verdadeiras elas se tornavam. Se ela ficasse parada, talvez ele voltasse. Talvez o silêncio desfizesse a sua morte. Mas ela sabia que ela não conseguiria ficar quieta. Ela queria falar sobre ele, dizer a todos por que ele havia roubado o seu coração. Dizer o seu nome. - Michael. – ela acrescentou, quando Thorsten a olhou sem entender. - Michael? – sua voz disparou. – Como... O que você está falando? Você não pode estar falando sério. Ele sofreu um acidente ou... - Não. – sua garganta estava seca. – Disseram que ele teve um dano cerebral. Ele morreu na noite passada. Instantaneamente. Ele não sofreu. – as palavras de Michael em seu sonho. Thorsten estava sem palavras. - Jesus. – ele finalmente gaguejou, afundando na grama, com as pernas cruzadas. – Como isso... Ele sabia? Ele sabia que estava prestes a morrer? - Ele nunca mencionou nada para mim. – Mas a verdade era outra. Ele havia mencionado isso a ela. Em Hyde Park, dois dias antes, ele a havia dito que não queria ir embora. Ele não queria desaparecer na escuridão da floresta, como o homem no poema de Daniil Charm. - Não posso acreditar – Thorsten disse, obviamente mexido. – Você sabe, ele falou comigo sobre você a noite passada e... Julia suspirou. - Sim, eu sei. – ela interrompeu. – E peço desculpas. Ele só estava com ciúme, por isso ele queria que você ficasse longe de mim. Thorsten fez uma careta, balançando a cabeça. - Não, ele não queria. Julia piscou confusa, mentalmente repassando a conversa que havia ouvido escondida atrás do galpão na noite anterior. - Não entendo. Então o que é que ele te disse? Thorsten limpou a garganta. - Ele me pediu – ele respondeu, sério. – para... Tomar conta de você assim que ele se fosse. - Cuidar de mim? – Julia engoliu em seco. - Sim. E eu disse a ele que ele era um idiota cego por me pedir, entre tantas pessoas, para cuidar de você como um irmão mais velho. Quero dizer, é bem óbvio que eu gosto de você como mais do que uma irmãzinha ou a vizinha da frente. Apenas agora as palavras que ela havia ouvido começavam a fazer sentido. Michael não havia pedido para Thorsten ficar longe dela, ele havia pedido para ele estar próximo a ela quando ele se fosse. Mais lágrimas começaram a se acumular em seus olhos. - Eu não fazia ideia. – Thorsten murmurou vagamente. – Eu pensei que ele estivesse falando de ir para Graz. Mas ele... Ele devia estar falando disso. Ele sabia, assim como sempre sabia de várias coisas. Julia fechou os olhos. Em sua mente, ela podia ouvir o vento cantar, as flores crescerem, a terra girar em torno de si. Ele não poderia ter ido. Ela não podia lidar com aquilo. - Tenho que ir para a floresta – ela disse de repente, levantando-se apressada.


- Jules, não vá. Fique aqui. – Thorsten tentou pegar as mãos dela, mas ela deu um passo para trás. - Eu vou. Diga a Axel para onde eu fui. Eu preciso ficar sozinha por um tempo. - Tudo bem, mas eu vou com você – Thorsten respondeu determinadamente. O esboço de um sorriso passou por seu rosto, apesar da situação. - Assim não vou ficar sozinha, vou? Ele passou uma mão pelos seus cabelos. - Uma pena. Não vou deixar você ir sozinha. Não assim. Ela hesitou, então acenou. Ela andou ao galpão onde guardava a bicicleta, enquanto Thorsten entrou para dizer a Axel onde eles estavam indo. Não muito depois, ela estava em seu caminho para a floresta, pedalando como louca, Thorsten sentado em sua garupa, com os braços ao redor de sua cintura. Julia estava completamente sem fôlego quando chegou à trilha principal, mas ela não desacelerou, quase tropeçando em suas próprias pernas, na pressa para chegar ao local onde ela e Michael haviam se encontrado em seu sonho. Ela parou de repente quando viu o carvalho. O local parecia como antes, em seu sonho, mas a realidade era diferente. Seu carvalho havia perdido quase todas as suas folhas. Sua força vital havia partido, o garoto do bosque havia levado o brilho e a elegância daquele lugar sagrado, e ele não estava em lugar algum. O que é que ela havia encontrado ali? - Você quer se sentar, talvez? – Thorsten a perguntou, ofegando de cansaço. Ela estava correndo pela floresta sem nem mesmo olhar para trás. Julia se virou, dando de ombros, desolada. - Eu não sei – ela disse em uma voz totalmente sem emoção. Ele caminhou até ela. - Venha – ele disse, colocando um braço ao redor de seus ombros caídos, confortando-a. – Você não pedalou e correu todo o caminho até esse lugar, para simplesmente ir embora agora. Anne me disse que você tinha um lugar especial na floresta, para onde vinha às vezes. Um lugar de meditação para buscar inspiração. É esse o lugar, não é? - Sim. – ela acenou lentamente. – Foi um dia. Ele gentilmente a guiou para o lugar sombreado sob o carvalho. Julia se abaixou até o chão, encostando-se contra o tronco. Thorsten se sentou ao seu lado, ainda segurando sua mão. Ela respirava nervosamente. - Fique à vontade. – ele a encorajou, sorrindo. Julia vagarosamente soltou a mão dele, erguendo os joelhos e abraçando suas próprias pernas. Ela olhava em direção ao céu. Bem acima de sua cabeça, pequenas nuvens brancas flutuavam no céu azul, alheias ao drama que estava acontecendo em sua vida naquela manhã de sol. Silenciosas e indiferentes, elas navegavam para longe, para longe do carvalho, para longe de Salzburg e em direção ao restante do mundo. As poucas folhas que ainda ficaram nos galhos farfalhavam suavemente na brisa que dançava por entre as árvores. Uma lágrima correu por seu rosto quando ela pensou naquela tarde em que ela e Michael tinham estado ali, quando ele se sentiu mal. Ele vinha aqui para se fortalecer. Se o sonho foi mesmo real, ela podia agora entender o motivo. Mas como poderia ser verdade? Ele tinha simplesmente sofrido um dano cerebral devido ao acidente e os efeitos haviam finalmente o atingido. Aquela era a única explicação razoável para suas estranhas alterações de comportamento e sua morte repentina. - Vou ficar perto. – Thorsten murmurou, levantando-se para dar mais espaço a ela. Julia o viu ir, um sentimento de carinho em seu coração. Ele não a abandonaria. Michael o havia pedido para tomar


conta dela e ele faria isso. Seus pensamentos viajaram de volta ao sonho da noite anterior. Michael havia dito a ela o que estava acontecendo e porque ele tinha que partir. Ele sempre insistia que ela deveria continuar sonhando, porque era uma parte importante de quem ela era. Mas se o sonho foi real ou não, ele não o traria de volta. - Volte para mim. – ela sussurrou, em uma voz embargada. – Por favor, volte. Me dê um sinal. A floresta ficou em silêncio. Uma folha seca do carvalho se soltou, pousando em seu joelho. Julia olhou para cima e parou de tentar segurar as lágrimas. Ela não conseguia fazer aquilo. Era muito para ela. Naquele instante, o seu celular tocou em seu bolso. Ah, droga, provavelmente era Gaby perguntando onde ela estava. Sua melhor amiga tinha vindo até a sua casa para consolá-la e ela nem estava lá. Julia esticou as pernas e pegou o celular do bolso da calça para ler a mensagem. “1 nova mensagem. Michael.” Sem palavras, ela encarou o display. Como? Sua mão trêmula colocou o celular na grama. Julia expirou profundamente, esfregou os olhos e olhou de lado para o celular, que ainda piscava com a mesma notificação. Ela não havia imaginado. Era realmente dele. Tinha que haver uma explicação para aquilo. Talvez ele tivesse enviado a mensagem horas antes, mas só foi recebida pelo telefone dela naquele momento. As redes de telefonia nem sempre eram completamente confiáveis. Ainda assim, ela havia pedido por um sinal, e aqui estava. Seus dedos fraquejaram quando ela pegou o telefone para ler a mensagem. “doce Julia, eu vou sentir muito a sua falta. Eu nunca vou esquecer você. Sempre que você ouvir as árvores farfalharem como música tocando na floresta, pare e pense em mim. Mas não espere por mim. Estou livre agora e você tem uma cabeça cheia de sonhos e uma longa vida cheia de amor à sua frente. Deixe o sol brilhar. Bjs, sempre seu, Michael.” Ela leu a mensagem várias e várias vezes. Sabendo que não tinha tanto tempo, ele devia ter enviado a mensagem antes de morrer, quando sentiu que tinha chegado a hora de ir. A mensagem deveria ter ficado presa entre satélites, chegando ao seu celular horas depois de ter sido enviada. Mas aquelas últimas palavras... Ele havia dito as mesmas palavras em seu sonho na noite anterior, que ele sempre seria o Michael. Ou ela estava se apegando a ninharias? Julia guardou o telefone e olhou em volta procurando. Ela segurou a respiração. Por apenas um momento, parecia que ele estaria atrás dela, como se a estivesse assistindo o tempo todo. Ele sairia de trás das árvores, sorrindo, para puxá-la para um abraço carinhoso. Ela aguçou os ouvidos. Ela não estava ouvindo passos se aproximando? Quem estava ali, na floresta dos seus sonhos? Um farfalhar suave encheu seus ouvidos. O sussurro do vento, as vozes das árvores, o movimento giratório da terra girando e girando sem parar na imensurável vastidão do espaço. A música em tudo. E então, Thorsten emergiu das árvores, voltando a ela com um sorriso doce em seus lábios. Ele cuidadosamente a ergueu e abraçou seu corpo pequeno, acariciando seu cabelo. Ela sentiu o corpo quente dele contra o seu. - Venha – ele disse – Vou te levar para casa. Todos vão estar lá para te confortar. Não há necessidade de ficar sozinha. Julia começou a voltar para a trilha principal, um passo de cada vez, apoiando-se nele. Sua mão estava segura na dele. Sobre suas cabeças, os pássaros cantavam, fazendo a floresta inteira parecer viva com a música. - Eu sei – ela respondeu suavemente, mas de propósito – Não estou sozinha.


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Série Distópica Young Adult

Romance Paranormal Young Adult/New Adult


Agradecimentos Escrever meu primeiro livro (Shadow of Time) envolveu muita pesquisa, porque a história era em Navajo Nation, um lugar que eu nunca havia visitado. “O Garoto do Bosque” foi muito mais fácil neste aspecto, porque eu morei na Áustria. Eu estive lá entre 1998 e 1999 fazendo intercâmbio. Meu alemão era horrível, eu nunca havia morado fora da casa dos meus pais e eu não tinha nenhuma ideia de como o país funcionava. Em outras palavras, eu me diverti como nunca! Era divertido conhecer todos os tipos de coisas diferentes sobre a Áustria, como o fato de que as lojas austríacas sempre fechavam para o almoço (quando você pensava que iria fazer algumas compras nesse horário) e que as pessoas sempre se cumprimentam dizendo “Deus te cumprimenta” ou “Eu sou seu servo” (Servus). Eu realmente gostei de incorporar esses elementos na história enquanto escrevia esse livro. E agora é hora de agradecer muitas pessoas. Primeiro de tudo, minha irmã Marije por ler o primeiro rascunho dessa história e chorar no final. Ela até me chamou de cretina, se me lembro corretamente (talvez você também me chamou disso, pela forma como as coisas terminaram). Eu entendo que eu posso ter chateado algumas pessoas, mas eu realmente não poderia terminar essa história de nenhuma outra forma. Era assim que tinha que terminar. Em segundo lugar, meu editor holandês Marije Kok e meu editor americano Alexis Arendt, por exaustivamente percorrerem os manuscritos em inglês e holandês. Muito obrigada pelo trabalho duro e dedicação! Eu também gostaria de agradecer ao meu pai por fazer a tradução livre do poema Engel para o inglês, Daniil Charms por escrever poemas tão excelentes (o poema usado no livro foi traduzido livremente do original russo por mim e parcialmente adaptado da tradução de Matvei Yankelevich), e a família Ebner em Birkensiedlung, Salzburg por alugarem um quarto para mim entre os anos em que estudei lá. Eu costumava viver na mesma rua que Julia e Thorsten. Por último, mas não menos importante, um muito obrigado para a tradutora Juliana Pellicer Ruza, que traduziu para o português a versão que você acabou de ler! Há músicas neste livro: se você quer ouvir as músicas que Julia e Thorsten escreveram, você pode visitar: http://youtu.be/-t3z17iqm1k http://youtu.be/C7XipXNwdUs http://youtu.be/EnqviSljxLY Até a próxima! Abraços, Jen Minkman. http://www.jenminkman.nl (em holandês e inglês) Twitter: @JenMinkman Facebook: ttp://www.facebook.com/JenMinkmanYAParanormal E-mail: jenminkman@hotmail.com



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