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ESCRITO EM LINHAS TORTAS MARIAN MELL
CORTESIA DA AUTORA JULHO 2013
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† SUMÁRIO
Introdução .................................................................... 5 01 ............................................................................... 11 02 ............................................................................... 31 03 ............................................................................... 50 04 ............................................................................... 70 05 ............................................................................... 91 06 ............................................................................. 106 07 ............................................................................. 121 08 ............................................................................. 138 09 ............................................................................. 155 10 ............................................................................. 171 11 ............................................................................. 187 12 ............................................................................. 201 13 ............................................................................. 217 14 ............................................................................. 232 15 ............................................................................. 248
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16 ............................................................................. 263 17 ............................................................................. 276 18 ............................................................................. 293 19 ............................................................................. 312 20 ............................................................................. 328 21 ............................................................................. 343 22 ............................................................................. 359 23 ............................................................................. 375
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INTRODUÇÃO O SEBO DA ESQUINA † Eles dizem que os demônios vivem na encruzilhada, mas o que eles não sabem é que existem vários tipos de encruzilhadas, algumas em “Y”, algumas em “T” e outras em “K”. Não importa, com o ritual correto o destino é sempre o mesmo: O Sebo da Esquina. Ele tem uma porta pequena, em estilo marroquino, a madeira pintada de verde claro envelhecido. Na fechadura cabe apenas uma chave e está sempre trancada, porém o cheiro de sândalo escapa pelas frestas, convidando a um local mágico. Em cima da porta um letreiro velho e vermelho ilumina o nome do local, simplesmente “Sebo da Esquina”, sem a menor pompa. É um local que não oferece medo a primeira vista, mas ninguém se atreveria a entrar sem possuir um convite. Ele possuía. O garoto com a chave barroca de bronze nas mãos. Respirou fundo, girou a chave duas vezes na fechadura e destrancou a porta. Um pequeno sino anunciou sua chegada ao momento em que ele abriu a porta. Plim. O interior do sebo não tinha livros, não era nem um sebo! Ali dentro havia uma aconchegante sala de estar. As paredes eram cobertas de papel de parede floral e havia um espelho oval com moldura dourada na parede. Os lustres pendurados no teto eram castiçais dourados com velas acesas tremeluzindo. No meio de tudo, um tapete felpudo branco jogado por cima do assoalho de madeira escura. Um sofá de estofado bordô de dois lugares com almofadas verdes com franjas douradas, estava simetricamente
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disposto com duas poltronas combinando. Na mesa de centro, com pés de arabescos, um candelabro segurava uma vela branca. Uma xícara de chá estava descansando ao lado do candelabro feita de porcelana verde com as bordas douradas, o cheiro de ervas do chá infestava o local misturando com o cheiro do sândalo já intimamente impregnado à sala. Ela estava lá, dizia se chamar Madame Daisy, mas seu verdadeiro nome era outro, que pertencera uma vez a uma deusa mitológica e outra vez à uma poderosa demônio. Qualquer um que a olhasse, entretanto, duvidaria disso. Ela aparentava ser uma jovem asiática beirando os vinte anos, de cabelos curtos, olhos negros que brilhavam com um vermelho sobrenatural. Sua pele era tão pálida quanto a de um defunto, mas era muito bonita. Usava um vestido verde escuro que possuía um quê de vitoriano, grudado ao corpo magro e curvilíneo, em seus braços finos, muitas pulseiras douradas. Parecia uma cigana perdida em uma época antiga. Ao ver o jovem entrar Madame Daisy não pareceu surpresa, pois já o esperava. Seus olhos sobrenaturais fixos no garoto, suas delicadas mãos repousadas no colo. O gato preto que estava em seu colo, porém pulou dali assim que a porta abriu e foi roçar-se aos pés do visitante. — Seja bem vindo, querido. — Madame Daisy disse lançando um meio sorriso que não mostrava os dentes. O interior de sua boca era negro como a noite, um buraco vazio capaz de engolir almas. Sua voz, entretanto, era suave e adocicada, sedutora. O garoto permaneceu ali em pé com os olhos azuis voltados para baixo, onde o gato preto estava, olhando de volta para ele. Não era um garoto alto para sua idade, era magrinho e estava com o uniforme da escola: calça preta, camisa branca e gravata verde escura como o suéter. A jaqueta em estilo militar por cima do uniforme e os coturnos em seus pés denunciavam seu estilo. Seus cabelos eram escuros, quase negros, sua pele alva e ele tinha um rosto bonito e de formato oval.
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— Miau! — o gato fez para ele. Como se acordasse de um transe, o garoto retirou rapidamente da bolsa carteiro que trazia transpassada ao corpo um livro pequeno como um desses blocos de notas, de capa vermelha com detalhes dourados. Estendeu na direção da mulher, sem se aproximar ou ousar erguer os olhos contornados de delineador preto para ela. — Eu não aceito devoluções, querido. Eu já informei isso a você. — Madame Daisy deu uma pequena risadinha, cobrindo a boca com a mão representando ser uma menininha tímida. — É um presente que te dei! — Não posso continuar com isso. — ele soou em desespero e ergueu o olhar celeste para ela. — Eu tentei... mas nenhum bem sai do que escrevo! — Tsc... — ela resmungou. Seu sorriso murchou e seu rosto tomou uma expressão preocupada. Estendeu a mão, as pulseiras fizeram barulho quando se agruparam no cotovelo. — Venha aqui, querido. Sente-se, tome um chá... e me conte o que aconteceu. — Não quero chá! — o garoto recusou energicamente. — Eu quase matei alguém hoje... eu... eu tentei jogar esse livro fora, mas ele sempre volta pra mim e por isso eu vim aqui, devolver essa... essa coisa pra você! — ele jogou o livro no chão de forma malcriada. O livro se arrastou até os pés descalços de Madame Daisy, enquanto ela o acompanhou com o olhar. Em segundos, sumiu de seus pés. O rapaz abriu a bolsa de novo e tirou de lá o livro. — Não o quero! Fique com ele, por favor? Madame Daisy suspirou vencida, mas não se levantou. Ela pegou a xícara da mesinha e as pulseiras tornaram a fazer barulho quando ela se mexeu. Deu um gole em seu chá de ervas bem devagar, sorvendo só um pouquinho. Soltou a xícara no mesmo lugar de forma paciente, em movimentos minuciosos e olhou novamente para o garoto, que continuava com a mesma expressão em desespero.
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— Desculpe, querido. Não existe a possibilidade de me devolver, ele agora é seu. Eu te falei que dentro do livro mora um jinn! Esse tipo de espírito quando capturado, não abandona sua alma, te servirá para sempre. — Madame Daisy falou calmamente. O garoto estava quase se desfazendo na sua frente, mas Madame Daisy não mudou de expressão. — Você disse que um jinn é um espírito guardião, mas esse só traz coisas ruins! — Eles são espíritos guardiões, mas como você, meu bem... eles possuem livre arbítrio. — Mas não o quero mais... eu estou cansado disso! Eu... não quero mais... — Você não precisa usá-lo se não quiser... é provável que ele se interesse por outra pessoa se você o ignorar, querido. — Madame Daisy deu de ombros de forma desinteressada. — E ele irá com outra pessoa? — Irá. — Oh. — pareceu obvio, mas o garoto não tinha sequer pensado nessa possibilidade. — Assim, simplesmente? — Simplesmente. — Madame Daisy estendeu de novo a mão. — Vem aqui, querido, sente-se comigo e tome um chá. — o garoto hesitou e ela teve que insistir. — Venha, venha.... eu tenho um novo presente para você. — Por quê? — ele soou desconfiado de seus presentes. — Eu gosto de você. — Não gosta, não. Se gostasse não me daria um livro desses que só faz o mal! — Por acaso o jinn fez mal a você? Ele saiu do livro e te machucou? — perguntou com um meio sorriso, viu o garoto comprimir os ombros. — Não fez, não é mesmo? O que te fez mal foram as consequências daquilo que você desejou... se não está contente com os resultados então você tem que aprender a desejar direito. — E você vai me ensinar a desejar direito?
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— Já estou ensinando. Venha. Não quer saber qual presente vou te dar? Ele continuou parado por um momento, hesitante, decidindo o que faria. Por fim, guardou o livro dentro da bolsa e caminhou até Madame Daisy. Segurou em sua delicada mão gélida. Ela o fez sentar ao seu lado e deu dois tapinhas nas costas de sua mão. Conferiu que ele usava um anel em forma de um crânio de corvo, feito de prata que ela havia presenteado, para proteção. Assim que o garoto sentou, o gato preto subiu em seu colo e se aninhou em suas roupas. O garoto não evitou lançar um sorriso ao felino e acariciar seus pelos macios. Era um sorriso genuino, bonito com dentes grandes. — Veja só, ele gosta de você! — Madame Daisy observou. — Por isso que vou dá-lo para você, assim você não vai se sentir tão sozinho... — ela segurou no queixo do garoto fazendo um carinho. — Eu queria... mas meu pai não vai me deixar entrar em casa com um gato. — ele informou e rapidamente tirou o gato de cima do seu colo. — Esse ele vai deixar. — Madame Daisy falou com convicção. — Você sabia que muito antigamente os gatos eram considerados sagrados? — Eram? — abriu os olhos de forma vislumbrada, interessado na história. — Eles trazem sorte a quem os tem! — Dizem que gato preto dá azar. — Não dá azar, mas é que eram comumente associados à maus espíritos... os gatos possuem forte ligação com o mundo daqueles que já se foram... e aqueles que já se foram e ainda vagam pela terra normalmente não são bons. — Explicou. — Vamos, escolha um nome para ele e será seu! O garoto calou-se, pensou um pouco e por fim, falou: — Lord Byron.
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— Lord Byron. — ela repetiu satisfeita porque ele aceitou seu presente. — Ele estará sempre com você, como eu também estarei, querido. Eles dizem que os maus espíritos as vezes se atraem por humanos de sentimentos intensos em suas almas... mas o que eles não sabem é que alguns desses maus espíritos, ou demônios, desenvolvem um interesse tão forte quanto uma obsessão.
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01 JULIA E O CENOBITA † Julia levantou a cabeça e olhou para a janela aberta, por onde entrava a agradável brisa da noite. Um gato de pelos longos tão negros quanto o céu e olhos amarelos brilhantes estava em cima do parapeito, invadindo seu quarto. — Miau. — Seja bem vindo, pequeno visitante! — a garota ficou em pé aproximando-se do felino. Fez carinho em seu pelo macio, remexeu no pescoço dele em busca da coleira de couro e leu o nome na placa. — Lord Byron, huh? — Miaaaaaaaaaau! — ele fez de novo, um miado longo e grosso. Era como se respondesse a ela. — O que você quer, gatinho? — ela colocou a cabeça para fora de sua janela. O vento balançou seus cabelos ondulados cor de café e jogou uma mecha por cima de seus olhos redondos, da mesma cor. Julia passou os dedos pela mecha e a prendeu atrás da orelha com um leve movimento, tinha as mãos delicadas e elegantes, os dedos finos e compridos de unhas bem feitas com esmalte roxo. Notou que as casas da vizinhança não ficavam muito juntas, os lotes eram grandes, separados por jardins bonitos, mas o gato poderia ser de qualquer uma delas! Olhou de novo para o felino, ele parecia ser saudável e até um pouco gordo. — Hm, deve estar com fome, talvez? — Miau!
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— Pois bem, vou buscar uma tigela de leite para você! — afastou-se da janela e saiu do quarto, descendo as escadas rapidamente. Pulou as caixas de papelão da mudança que ainda não haviam sido abertas, como se mudara há pouco tempo, a maioria das coisas permanecia encaixotada. Seu chinelo vermelho se prendeu na ponta de uma caixa de papelão escrita “QUADROS”, soltando do pé direito. Resmungou e o calçou de novo. Atravessou a sala e entrou na cozinha. Sua mãe estava na cozinha e assustou-se assim que a viu entrar. Isabel era uma bonita mulher de pele clara e olhos bem redondos e grandes como uma boneca de porcelana, feição que Julia puxou como uma réplica quase exata, não fosse pelo fato de que sua mãe tinha olhos cor-de-mel e ela olhos negros como duas pedras de ônix. Sua mãe estava tomando seu chá noturno, de camisola branca e suéter amarelo, segurando na mão a xícara colorida, procurou esconder as lágrimas que jorravam do seu rosto. — Ei mãe, tem um gato na minha janela! — Julia falou animadamente, fingindo que não tinha visto sua mãe de olhos chorosos. Era sempre assim desde que o divórcio de seus pais acontecera, sua mãe vivia chorando. — Gato? Você diz um menino? — Isabel procurou se recompor, endireitando a voz. — Não, gato. Um felino que faz “miau”. — a menina abriu a porta da geladeira e ajeitou a regata preta por cima do short vermelho de ginástica. Usava uma meia listrada de branco e preto que ia até o joelho. — Posso dar leite para ele? — Se você prometer que amanhã esse gato vai estar bem longe do seu quarto, pode. — Bom isso depende dele, você sabe! Gatos são animais muito independentes que fazem o que querem. — Julia explicou, pegando um Tupperware de plástico transparente da prateleira acima da pia. Encheu o recipiente com leite.
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Passou pela porta da cozinha indo na direção do seu quarto quando sua mãe avisou, fazendo-a parar de andar: — Não demore a dormir que já são onze horas e amanhã você tem aula! — avisou. — Preciso mesmo ir? — Julia perguntou da porta, virandose rapidamente para vê-la. A voz saiu choramingosa, fazendo gracinha. — Claro que precisa! — Isabel continuou bebendo seu chá, lançou um olhar de reprovação daqueles que apenas mães conseguem dar. Julia deu-se por vencida com um suspiro e voltou todo o caminho para seu quarto só para constatar que Lord Byron, o visitante, havia ido embora. Deixou o Tuppeware em cima do parapeito da janela, caso ele voltasse. Dirigiu-se à sua cama, sentando-se por cima do seu edredom lilás. Pegou o seu netbook cor-de-rosa e olhou para o chat com que conversava com Gabi, sua amiga. Digitou que precisava desligar o computador, pois sua mãe havia dito para ela dormir e Gabi enviou um “te vejo amanhã”. † — Feliz aniversário! — Gabi abraçou-se com Julia tão forte que a esmagou, na porta do colégio pela manhã. Gabi era a melhor amiga de Julia, tinha lente nos olhos para que eles ficassem azuis há tanto tempo que ninguém lembrava qual a cor natural. Usava os cabelos alisados em corte reto, tingidos de vermelho e na altura dos ombros. Era uma menina magra e baixinha que ficava nervosa muito facilmente, mas que tinha um sorriso genuíno e sincero. — Obrigada! — Julia sorriu sem muita alegria, não achava que tinha motivos para comemorar com todas as coisas ruins acontecendo em sua vida. — Dezesseis anos! Já tá na hora de avançar para a fase dois com o Arthur! — Gabi estava com um pirulito de morango na
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boca, daqueles em forma de coração, ela sempre tinha pirulitos daquele tipo na bolsa! Julia fingiu mais um sorriso. Como ia chegar na fase dois se não tinha nem raspado na fase um? Arthur era amigo de infância e participava do time de basquete da escola, lindo, perfeito e... tinha namorada: Aparecida. E agora que Julia havia mudado de bairro, eles nem eram mais vizinhos! — Ih, que foi? — Gabi notou que a amiga estava com ar desapontado. — É que você fala como se o Arthur fosse meu namorado e ele não é. — Ele era seu vizinho e te dava carona na volta para casa todos os dias. — Gabi retrucou como se isso fosse sinônimo de namorar. — E vocês se conhecem desde sempre! — O que faz de nós amigos, não namorados. — Dá no mesmo! — Gabi revirou os olhos como se fosse dona da verdade, raciocinando uma lógica que só fazia sentido em sua própria cabeça. — Como foi o fim de semana? — Julia preferiu forçar uma mudança de assunto. — O mesmo lixo de sempre! — Gabi ajeitou a sua mochila branca rabiscada com canetinhas coloridas nas costas, os chaveiros com símbolos de suas bandas favoritas balançaram. Tirou o pirulito da boca para falar. — Fiquei de castigo, meu namoro quase acabou! — Isso eu sei, mas você não me contou por que ficou de castigo! — Julia a lembrou. — Meu pai me pegou transando com o Nando no meu quarto domingo! Dá pra imaginar a confusão que foi? Essa era Gabi, uma louca e desvairada, mas também a única garota do Colégio São Valentim que não se incomodava com o fato de que Julia era uma perfeita looser. Julia se sentia uma perdedora e fazer dezesseis anos não tornava as coisas mais fácil, de fato, só piorava tudo! — E como se resolveu? — Julia quis saber.
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— Não posso usar o telefone depois das nove, não estou com meu celular e o Nando não entra mais no meu quarto. Vou ter que dar um jeito de dar umas escapadas aqui da escola..! — colocou o pirulito na boca. — Ai, Gabi, você não toma jeito mesmo! — A vida “com jeito” é muito sem graça! Prefiro as aventuras! — Gabi logo retrucou. Com pressa, rumaram para a sala. No corredor a coordenadora media com uma régua a distância entre o joelho e a ponta da saia das meninas, ou da gola da camisa branca ao pescoço. O colégio tinha um uniforme rigoroso: saia preta ou calça preta, camisa branca e gravata verde escura do mesmo tom do suéter verde escuro que tinha brazão amarelo do colégio bordado no canto esquerdo. O Colégio São Valentim já não tinha mais a sua glória de antigamente, era agora apenas um colégio com uma proposta de disciplina rígida. Aproximaram-se da porta da sala. A placa ficava em cima da porta, “Classe D” e alguém escrevera “errotados” de caneta preta ao lado. Ninguém sabia desde quando estava lá, mas estava e estivera desde o início do ano letivo. Ninguém reclamava, porque achava que era verdade mesmo! Ao entrarem na Classe D, Gabi e Julia foram para o canto que ficava perto das janelas, onde normalmente sentavam. — Olha, comprei um tênis novo! — por cima da cadeira colocou a perna para Julia ver seu novo Allstar preto, estendeu a cartela de hidrocor para a amiga. — Assina! Desenha algo bonito. — Não sei o que desenhar. — Qualquer coisa, Jujuba, qualquer coisa! Senão vou dar pro Nando assinar primeiro e você vai perder o posto de maior importância. — como se fosse realmente muito importante. — Tá bem. — Julia por fim pegou a cartela de hidrocor e desenhou uma rosa com espinhos encaracolados na ponta branca do tênis. — É bonito, vou até tatuar! — Gabi falou brincando, pois se aparecesse com uma tatuagem em casa seria expulsa!
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Antes que ela pudesse responder, Nando chegou. Deu um selinho na namorada e se jogou cansado na cadeira ao lado de Gabi, morrendo de sono, porque ficava sempre varando a noite jogando algum RPG multiplayer no computador. Era um rapaz bonito, de cabelos castanhos claros jogados no rosto de forma despojada, mais alto que Gabi e muito magro. — Bom dia Nando. — Julia o cumprimentou com um sorriso. Achava que Nando e Gabi eram perfeitos um para o outro, eles já namoravam há quase um ano e se conheceram na escola ano passado. — Boa noite, Jujuba. — ele caiu por cima da cadeira e começou a roncar, não literalmente, mas queria dormir. Nando era o tipo de aluno que passava a aula inteira dormindo e só levantava se o professor ameaçasse dar uma advertência para ele levar para casa. Na Classe D os professores não se importavam com os alunos, deixavam a bagunça rolar e depois se vingavam passando os trabalhos mais rigorosos, mais difíceis e as provas mais cabulosas. Sobreviver até o fim do ano e passar raspando era uma técnica avançada de guerra! Depois de assinar os tênis novos de Gabi, Julia resolveu abrir o seu caderno e desenhar. Ela fazia cada dia um desenho novo, às vezes se a hora se arrastava demais, podia desenhar até três! Julia desenhava o tempo todo, adorava e era uma boa artista, um talento que ela tinha e que não sabia de onde vinha. Em toda a sua família Julia era a única que gostava de desenhar. O fato de gostar de ouvir músicas intensas com guitarras e vocais líricos, de ler livros de fantasia e ter mais interesse em arte do que qualquer outra matéria fazia de Julia uma esquisita no meio de seus familiares. Sua imaginação fértil demais era um problema... e ai se dissesse que ia até a casa de Nando jogar RPG com o amigo e Gabi! Fazer cosplay nos eventos de anime, então, era um crime. Isso foi suficiente para seus pais a considerarem uma garota problemática e a jogarem no Colégio São Valentim... o
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que no fundo era uma grande sorte, já que lá ela conheceu os melhores amigos que podia ter! Não era que o colégio fosse todo de anormais, mas havia uma separação por notas e perfil que criava alguns estereótipos. Na Classe A, por exemplo, ficavam os nerds com smartphones ligados na internet e que participavam do clube de matemática ou de física concorrendo a medalhas, fazendo intercâmbio e disputavam bolsas internacionais com as notas mais altas! Na Classe B ficavam os atletas e rainhas de fotolog, onde estudava Arthur e Aparecida, tinham notas boas (mesmo que não tão boas quanto os alunos da turma A) e eram em sua maioria patricinhas, mauricinhos, metrossexuais e grupos mais interessados em pagar de “geração saúde” ou “bons filhos”. Na Classe C ficavam os alunos medianos, que não eram nem bons nem ruins, que não tinham ideias brilhantes mas também não envergonhavam seus pais, eram invisíveis na escola e em maior número do que as outras classes, daqueles que quando crescem e saem da escola se tornam profissionais medianos em empresas medianas e sofrem para pagar as contas sem dívidas no fim do mês; Gabi, Nando e Julia os chamavam de “normais”. Depois vinha a Classe D, já citada; e por fim a Classe E. Os “Especiais”, para não dizer retardados, onde a maioria era composta de alunos com problemas de aprendizado bem graves e lerdeza cerebral causada pelo excessivo consumo da maconha e outras drogas. Na Classe E tinha um aluno de vinte anos, que provavelmente repetiria o ano novamente porque ficava bêbado todo dia e faltava demais, era uma classe formada por sete alunos e eles eram muito unidos! Já sentados na classe enquanto o professor gorducho de bigode entrava para a monótona aula de química, Gabi virou para Julia, com o pirulito na boca. — E aí, como foi a mudança? — Está uma zona lá em casa, a maior parte das coisas encaixotadas.
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— E algum vizinho gatinho? — ao dizer isso, Gabi acariciou os cabelos de Nando de forma delicada. — Não conheci ninguém, ficamos bem ocupadas com as coisas. Conheci só um gato, — e a cara de alegre que Gabi fez forçou Julia a se explicar. — um felino, um gato preto, sabe? Invadiu meu quarto ontem a noite. — De algum vizinho gatinho? — Gabi como sempre, interessada unicamente nisso. — Não, de algum vizinho gótico. O gato se chama Lord Byron, dá pra acreditar? — Oh-Oh. — Gabi congelou, arregalou os olhos e tirou o pirulito da boca. — Não me diga! — Não te diga o quê? — Relôu! — Gabi estalou um dedo na frente de Julia fazendo-a piscar os olhos negros. — O seu vizinho só pode ser o “Pinhead”! — Quem? Gabi recolocou o pirulito na boca novamente com um suspiro e segurou com as duas mãos a cabeça de Julia, virando-a para o outro lado da sala de forma que seu olhar bateu em... Bruno. O cenobita das trevas que habitava sua classe. Ele era um garoto que nunca falava nada, mas que sempre chamava atenção por conta do seu visual das profundezas. O uniforme escolar parecia mais despojado só porque era ele que estava vestindo. Por cima do suéter, mesmo em dias de calor, ele usava uma jaqueta preta de poliéster com botões de pressão prateados e fivelas nos ombros que lembrava uma jaqueta militar. Sempre calçava coturnos militares, tinha vários anéis de prata nos dedos, unhas pintadas de preto, braceletes de couro com spikes e o apelido de “Pinhead” não era porque ele era careca e sem sobrancelha, até porque ele tinha os cabelos bem negros como petróleo e lisos que caíam por cima de seu rosto simétrico e de pele alva, mas porque ele tinha muitos piercings no rosto. Bruno era bonito, Julia achava, especialmente por causa de seus olhos azuis contornados por sombra preta e os lábios... devia
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ser proibido que garotos tivessem lábios como aqueles! Mas era só, porque ele era muito esquisito, do tipo que todo mundo para de falar ou se mexer apenas para ver passar, não porque admira e sim porque tem medo. Os piercings eram assustadores, Julia nem gostava deles, mas talvez pela esquisitice crônica, faziam Julia ficar imaginando como ele conseguiria falar, comer ou beijar com três argolas penduradas (uma de cada lado e uma do meio). Talvez ele não conseguisse, por isso não falasse nada! Ele tinha também uma ferradura negra no septo, o que dava a impressão de estar com dois mosquitos, ou algum inseto nojento por dentro do nariz que tentava desesperadamente escapar. Entre os olhos, duas bolinhas prateadas no bridge. Só em uma olhada, ela já contara cinco piercings! Que tipo de pessoa consegue achar legal se furar tanto assim?! — O quê, a Jujuba é vizinha do “Pinhead”? — Nando ergueu a cabeça e abriu os olhos interessado, segurou o rosto com uma das mãos, mas ficou ainda com as costas curvadas, largadão. — Shhh! — Gabi fez colocando um dedo em vertical na boca pedindo segredo. — Não espalha, se ele escutar pode resolver invadir o quarto dela em forma de morcego! — Para com isso, gente, nada a ver. — Julia espantou os corvos daquela ideia como um verdadeiro espantalho. Com os cantos dos olhos, espiou Bruno mais uma vez. Ele estava com os fones de ouvido desligado do mundo, olhando para lugar nenhum, fingindo prestar atenção na aula, mas sem convencer ninguém. Era do tipo de aluno que nem tirava o caderno da mochila — Pensa bem, Jujuba, quem mais por aqui teria um gato chamado Lord Byron? — Gabi perguntou e tirou o pirulito da boca mais uma vez. — Pensa bem! — Não pode ser qualquer outro gótico na cidade? Quem disse que é ele que mora lá perto? — Julia contestou a teoria maluca de sua amiga ruivinha. Afinal, seria muita coincidência! — Legal, né, vocês vão poder voltar para casa juntos! — Nando devaneou como se fosse a coisa mais legal do mundo.
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— Tá no mundo dos sonhos, Nando? — Gabi deu um tapa na cabeça do namorado e ele sorriu com toda a paciência do mundo para ela. — Vai ser um queima filme! — Se quiser eu falo com ele! — Você fala com ele? E desde quando ele fala? — Bem, não pessoalmente... ele joga no mesmo horário que eu. — Nando deu de ombros. — E ele é “debuffer”. Vocês têm noção de como um bom “debuffer” de damage control é raro hoje em dia? — Não, não sei. — Gabi se impacientou e enfiou o pirulito na boca irritada. Videogames era uma coisa que ela detestava em Nando, porque achava que ele preferia jogar do que levá-la ao cinema, e talvez ele preferisse mesmo. — E quem foi que disse que o “Pinhead” é o dono do gato? — Eu tenho a senha dele. Advinhem qual é? — e levantou duas vezes as sobrancelhas juntas para enfatizar bem qual era a senha. As duas garotas o olharam embasbacadas. — É...! — Prove. — Gabi tirou o pirulito da boca em um movimento dramático. Cruzou os braços, segurando o pirulito em uma das mãos com cuidado para não grudar em seu suéter. Nando olhou para ela sorrindo, totalmente vitorioso. — Vai, anda, prove. — Posso fazer ele vir até a gente e falar com a Jujuba... mas o que é que eu vou ganhar com isso? — Sexo? — Gabi encolheu os ombros se oferecendo. — Isso eu tenho de graça, vai ter que ser algo melhor! Algo memorável! — ele se indireitou na cadeira, coçou um dos olhos castanhos. Gabi ficou esperando a proposta inicial. — Eu estava pensando em algo como, você não reclamar quando eu não te responder no MSN porque estou jogando... por... um mês. — Uma semana é o máximo. — ela virou a cara pro outro lado fazendo pose irritada. — Feito. — e com muita calma ele pegou o celular prateado do bolso da calça, digitou uma mensagem de texto com um sorriso bobo e depois guardou.
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Quase em mesmo instante Bruno se mexeu na cadeira e tirou o celular do bolso da jaqueta, contemplando a mensagem que recebeu. Nenhuma mudança de expressão, ele apenas guardou o celular de novo no bolso, sem nem responder. Dava para ser mais esquisito do que isso? Qualquer pessoa normal teria no mínimo virado para Nando! Julia até sentiu um arrepio percorrer suas costas. O garoto dava medo! — O que você escreveu? — Julia quis saber. — Que se quiser o gato dele de volta, tem que vir falar com você e pagar o resgate! — respondeu sorrindo. — Você é doido? — Gabi deu mais um tapa na cabeça de Nando. — Ai! — Ele pode... sei lá, devorar a alma dela por causa disso! — Não exagera, Gabi. — Julia tentou acalmar os ânimos da amiga, que quase gritava na sala de aula. Ainda bem que Bruno usava sempre fones de ouvido, ou teria escutado o histerismo de Gabi. — É sério Julia, sabe o que dizem dele por aí? Que ele tem um pacto com Satã! — O que, obviamente, é um boato do pessoal da turma B, de babacas! — Nando defendeu o colega de jogatina noturna. Ele não gostava do pessoal da turma B e deixava isso claro sempre que virava as costas quando Arthur se aproximava de Julia no final a aula para oferecer a carona. Virou para Julia que estava com os dois olhos bem abertos. — De fato, são só boatos. — É bom que o seu “debãmer”-— “Debuffer”. — Nando consertou a namorada. — Tanto faz! É bom que ele não entregue para ela um daqueles cubos satânicos! — De qualquer forma, eu não estou com o gato dele de refém. — Julia sentenciou e depois, virou para Nando. — E não quero que ele me dê carona. — Vou dormir. — Nando abaixou a cabeça por cima dos braços, enquanto Gabi nervosamente mordeu o seu pirulito.
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† Momentos antes de morder a sua maçã diária, Julia congelou no tempo e espaço ao ver Bruno, bem na sua frente, com os olhos azuis em cima dela. — Então... — ele falou calmamente, causando um choque não só nela, mas em Nando e Gabi que até pararam de se beijar. Sua voz era calma, nem tão grossa e nem tão fina, tinha uma leve rouquidão e não variou de tom. — Meu Gato. Julia ergueu o olhar, com a maçã na frente do rosto, seus olhos foram passando pela gola da camiseta do uniforme, afrouxada revelando um pedaço de uma corrente prateada no pescoço, depois o queixo e os lábios perfeitos. As argolas negras encostavam-se ao lábio superior deixando-os um pouco abertos e secos. Ele falou através daquelas argolas, com uma dicção perfeita! Por fim ela mordeu a maçã, escapando daquela boca estonteante e subiu os olhos para encontrá-lo com um olhar glacial e penetrante sobre ela. Era assustador! — Seu gato? — ela deu de ombros, fingindo não saber do que se tratava. — Lord Byron. Janela. Seu quarto. — ele enumerou com a voz sem hesitar, articulando cada palavra de cada vez e cada sílaba em mesmo tempo, de uma forma ultra paciente. Julia ficou um tempo sem responder, olhando para ele sem quebrar o contato visual. Estava analisando-o, lendo seus movimentos, observando. Ele desviou o olhar e comprimiu os lábios. Insegurança, talvez? Pela primeira vez, ela pensou que ao invés de indiferença ao contato social ele poderia ser apenas... tímido. A garota podia sentir os olhares de Gabi e Nando em cima deles, totalmente curiosos com a conversa. Era melhor aliviar um pouco a tensão daquele instante, antes que Bruno virasse as costas e fosse espetar um boneco de vodu de cada um deles!
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— Seu gato... — articulou bem o que ia falar, para não parecer tão prolixa diante da monossilabidade do rapaz. Ele voltou com os olhos glaciais para cima dela, mas dessa vez, ela até viu um brilho de esperança. — Invadiu o meu quarto ontem, desci para pegar um pouco de leite e quando voltei, ele tinha ido embora. Não voltou para sua casa? — Ele fugiu... de novo. — Bruno ainda esperou que Julia falasse algo, mas como a menina permaneceu calada, ele virou-se para sair. — Obrigado mesmo assim. — Não espera! — ela segurou na manga da jaqueta dele, fina como uma capa de chuva. Bruno assustou com o toque, como se tocar nele fosse um tipo de crime. Ele passeou com o olhar pelas mãos na menina, depois levantou os olhos glaciais para ela. Assustada, a garota o soltou imediatamente, com medo de que ele fosse soltar fogo pelos olhos e transformá-la em uma pilha de pó! — Se ele reaparecer, eu aviso você. — Julia acrescentou. — Certo. — Ah que fofo, fico feliz que vocês se entenderam! — Nando se meteu entre eles, passando os braços por cima dos ombros de ambos, meio que em um abraço grupal. Apertou os dois contra si demonstrando todo o seu contentamento e olhou para Bruno. — Agora por que você não oferece para a dama uma carona na volta para casa, já que são vizinhos? O que me diz? Hein? — Certo. — Bruno respondeu. Nem se deu ao trabalho de convidar. Afastou-se do braço de Nando e colocou os fones, andando para longe. — Não acredito em você! — Gabi deu um tapa no ombro de Nando, quando ele voltou para perto dela. — E se ele a sequestrar? Matar ou esquartejar? — Você não leva essas suas teorias a sério, leva? — Nando perguntou. Ela fez biquinho, ele sorriu e por fim, se beijaram. Julia revirou os olhos, segurando vela. Mordeu mais uma vez sua maçã.
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† Quando o sinal bateu e os alunos ficaram em pé, Gabi articulou sem voz algo como “me liga depois”, em um misto de curiosidade e preocupação, fazendo um gesto com a mão perto da orelha simbolizando um telefone. Nando passou o braço por seus ombros e a afastou dali. Julia ainda estava se decidindo se ia aceitar a carona e entrar no carro de um completo estranho quando viu Bruno na porta esperando por ela. Aproximou-se, mas eles não trocaram nenhuma palavra, até porque ele estava de fone! Ele foi na frente, guiando-a. Julia o analisou enquanto andava: a bolsa de carteiro que ele usava era muito excêntrica como tudo nele! Transpassada pelo peito, caia para trás, era preta, mas tinha uma teia de aranha um tanto torta desenhada a mão com tinta vermelha, alfinetes cruzados, uma corrente prateada fina que balançava conforme ele andava e um chaveiro de um gato preto no zíper aberto do bolso da frente. Pelo visto, ele curtia mesmo gatos! Foi nesse momento que ela percebeu a ponta do que parecia um pequeno livro de capa vermelha e imaginou se colecionava livros em miniatura. — Ei, Julia? — uma voz familiar a chamou. Atraída pelo som, a garota girou os sapatos e encontrou com Arthur sozinho no corredor, isto é, milagrosamente sem Cidinha. Arthur era um garoto bonito, com cabelos claros e levemente avermelhados com fios que batiam no ombro, seus olhos castanhos grandes e expressivos. Por ser atleta, seu físico era o de um deus grego, com ombros largos e braços torneados! Julia teve que segurar um suspiro. — Oi, Arthur. — falou de forma contida. — E aí? Como foi o fim de semana? — ele perguntou com um sorriso, ajeitando a mochila azul e preta nas costas. O uniforme da escola ficava perfeitamente alinhado nele. — O lance da mudança, rolou?
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— É, rolou. — E como estão as coisas na casa nova? — Está uma bagunça com tantas caixas, mas em breve nos acertaremos — E a casa? É legal? Tem piscina, né? — É enorme! Nem sei o que vamos fazer com tanto espaço...! — ela passou as mãos pelo cabelo, daquele jeito que as meninas sempre fazem quando querem enviar sinais. Não tinha como evitar, Julia no fundo esperava que ele a convidasse para ir de carona com ela, mesmo que depois tivesse que pegar um ônibus para voltar para casa. — Ah, que isso, aposto que daqui um tempo não vai sobrar espaço! — Arthur comentou sorrindo de um jeito que o coração de Julia esquentou. — E a piscina? — Tuti? — Cidinha apareceu no corredor tão atrapalhada com seus livros que acabou derrubando dois no chão. Ela era uma garota linda de doer, com olhos cor-de-mel e cabelos castanhos claros compridos e perfeitamente lisos, magra como uma modelo. Era tão linda que dava nojo. Arthur era um ótimo namorado, atencioso, por isso ele correu para ajudá-la com os livros pegando-os do chão e carregando para Cidinha. Eles trocaram um selinho romântico e deram as mãos. Passaram por Julia. — A gente se vê. — Arthur falou com um sorriso quando passou. Julia os observou andar juntos, até que eles sumissem no corredor, o olhar repleto de chateação. Arthur nem lembrou que era seu aniversário! — Vai ficar aí parada? — Bruno perguntou, parado no corredor esperando por ela. Aqueles olhos glaciais, sem expressão e desprovidos de emoção causavam um efeito quase magnético em cima de Julia, ela quase perdeu o equilíbrio e, para não parecer uma boba, forçou um sorriso comprimindo os lábios para cima. A única coisa que
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Julia conseguia pensar era que, babando em cima de Arthur, já tinha feito um papel mais do que idiota! Ele tornou a andar sem falar nada ou fazer qualquer expressão em resposta ao sorriso tonto da menina. Julia o seguiu. Saíram juntos pelo pátio e atravessaram o portão da escola. Bruno tirou do bolso interno do casaco um chaveiro de morcego. Parou do lado de uma bicicleta de mountain biking equipada, de marca cara. Tinha até extensores no guidom. Para sua surpresa, Julia constatou que a carona que ele lhe daria, era de bicileta! Só podia ser brincadeira, né? Ele não tinha nem garupa! O garoto subiu na bicicleta após retirá-la do gancho em movimentos automáticos repetidos todos os dias. Olhou para Julia e viu que ela falou algo com ele, mas por causa dos fones de ouvido que berravam em volume máximo, ele não escutou. Tirou o fone esquerdo puxando pelo cabo, já na certeza de que ela fosse reclamar alguma coisa: — O quê? — Você não tem garupa. — ela reclamou torcendo o pé, inquieta. O vento chacoalhava seu cabelo cor de café. — E nem capacete. — Por acaso está com medo? — ele perguntou só pela graça, tinha certeza que a garota riquinha de brincos de ouro não achava o veículo apropriado. — Você senta aqui no cano, outro dia coloco a garupa se você fizer questão. — Uau, mais de três palavras, fico lisonjeada. — ela levantou as sobrancelhas surpresa. Ele havia dito aquelas palavras de uma forma que queriam dizer algo como “vou te dar carona outro dia”, ou foi só impressão? — Você sabe andar, não é? Não vai me derrubar? — Isso é relevante? — ele ajeitou a bolsa de carteiro para trás e ficou esperando, um pé no chão o outro na pedaleira. Que garota fresca! Revirou os olhos. — É muito relevante. Não quero me machucar! — Seria um milagre se ele não a derrubasse com aquelas botas, Julia analisou.
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Aproximou-se para sentar no guidom, quando Bruno puxou a mochila dela de repente, colocando-a em suas costas. — O que você tanto carrega? — a mochila pesava toneladas! — Meus livros e... hm... alguns materiais. — Materiais? — De desenho. Eu gosto de ficar desenhando na classe. — ela explicou enquanto ele afrouxou a alça da mochila para que ficasse mais confortável. — Vem. — ele avisou que estava pronto. Julia se sentou no cano, com as pernas para a esquerda. — Coloca os pés aqui nessa parte para não se machucar. Ela fez como ele pediu, descansando os pés no outro cano que segurava os pedais. Sentiu o ombro dele roçar contra o dela, quando ele segurou o guidom, em uma proximidade quase íntima. Julia colocou as duas mãos na base do guidom para se segurar e ele pedalou. A princípio a bicicleta cambaleou, até ele se acostumar com o peso extra. Mais uma vez ela sentiu o corpo dele contra suas costas, mas sem peso, só encostando e esquentandoa... era confortável. Por causa do vento criado pela movimentação os cabelos de Júlia caíram em seu rosto, ele afastou com a mão esquerda e a bicicleta jogou-se bruscamente para a direita. — Aaah! — Julia gritou, mas rindo ao mesmo tempo. Juntou os cabelos e os jogou por cima de um ombro. — E então, o que você tanto ouve? — ela perguntou. O fone de ouvido dele estava pendurado na gola da jaqueta, ligado, uma música suave escapava. O outro, estava em seu ouvido, porque ele estava escutando. — Depende do dia. — respondeu ao recobrar o movimento da bicicleta corretamente. — Agora, por exemplo? — Uma banda chamada The Knutz. — Não conheço. — Acho que não faz seu tipo. — E o que você acha que faz meu tipo, posso saber?
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Ele encolheu os ombros e jogou a cabeça para trás, tirando os cabelos dos olhos aproveitando o vento causado pela velocidade da bicicleta. — O que faz seu tipo? — Bruno perguntou pela incapacidade de adivinhar. — Cradle of Filth. — ela respondeu. — E coisas do tipo. — Sério? — A voz denotava uma surpresa, como se fosse algo interessante o que ela tinha dito, Julia adorou ouvir. — Talvez você goste de uma ou outra música... talvez. — Você por acaso é do tipo que pensa que todo mundo e diferente de você? — arriscou perguntar, mas torceu para ele não tirar um tridente de fogo da bolsa de carteiro e espetar nela com raiva. — Não exatamente, — ele demorou-se a dizer porque estava escolhendo as palavras. — julgo com definitiva certeza que sou diferente. — Talvez você seja. Talvez não. — Julia arriscou mais uma vez e antes que ele pudesse se ofender, completou. — Mas diferente é interessante. — ele não respondeu. — Posso ouvir? — Pode. — aproveitando que a rua era larga e reta, ele tirou a mão do guidom e puxou um dos fones para ela. Julia analisou o objeto, era um fone in-ear e ela não queria usar se tivesse caquinha, mas estava limpo. Colocou o fone e uma voz suave de um homem estava cantando uma música sinistra, chegava a ser triste e bonita, mas a voz era de certo modo melancólica. — Qual o nome da música? — ela quis saber. — The Hanging Man. — É diferente. — Hm. Julia ficou em silêncio, escutando a música. Sem querer, a perna de Bruno arrastou na sua, amassando sua saia, mas ela não ligou, envolta com as melodias que ouvia de sonoridade muito singular e envolvente. Era engraçado, pois imaginara que Bruno
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fosse daqueles chatos que só escutaria música clássica lendo poemas escritos por poetas mortos! A bicicleta jogou para a esquerda e eles entraram em uma rua que Julia reconheceu como sendo a da sua casa. — Qual a sua casa? — ele perguntou cortando o silêncio em que se encontrava. — 735. — Julia informou. — Sério? Eu moro na 733. — isso queria dizer que eles moravam lado a lado! Julia ficou impressionada, a casa de Bruno era uma enorme casa branca de seis quartos, três andares e que tinha até uma entrada com um pequeno jardim de flores na porta! — Eu me mudei esse sábado. Você deve ter visto um caminhão de mudanças, não viu? — Não estava em casa... — ele respondeu. Parou a bicicleta na frente da casa dela, amarela de dois andares e sacada de madeira. — Está entregue! — anunciou. Ela riu. — Viu, sem quedas, tombos ou machucados. — Obrigada. — ela desceu da bicicleta e tirou o fone. Ele entregou a mochila para ela. — Amanhã se você quiser carona, minha mãe sempre me leva ao ir trabalhar. — Alguém tem que levar a bicicleta para podermos voltar. — respondeu. Julia sentiu o coração dar três batidas de uma só vez. Peraí, ele estava dizendo que ela ia voltar com ele amanhã também? — Se estiver tudo bem para você... — ele percebeu que ela havia aberto os olhos e a boca em uma clássica expressão de espanto. — S-sim, tudo bem. — quase engasgou para falar, sem conseguir decidir se estava feliz ou surpresa, ou ambos! — Certo. Até amanhã. — ele se preparou para sair. — Espera! — mais uma vez ela o segurou pelo casaco, ele repetiu o mesmo ritual de se assustar e erguer os olhos azuis aos dela, quase como se fosse proibido que ela o segurasse. Julia o soltou colocando as duas mãos para trás como se fosse uma
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menininha de três anos que levou bronca da mãe. — Não quer entrar? É meu aniversário e tem bolo... de chocolate! — Eu... não posso. Estou de castigo. Ela fez uma cara curiosa. — Obrigado, mesmo assim. Feliz aniversário. Até mais. — ele falou depressa e se afastou. Julia suspirou. Ao menos Bruno havia sido simpático o suficiente para até lhe desejar parabéns! Suspirou. Era seu 16º aniversário e com sorte, a única companhia que teria seria o gato preto de Bruno, caso ele invadisse o seu quarto novamente.
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02 ERROS NA “MATRIX” † Os bigodes de Lord Byron pinicaram seus dedos. Bruno fez carinho nos pelos negros de seu gato, que estava deitado em cima da cama, o gato virou de barriga para cima, procurando por mais carinho. Mas era hora de sair. — Sem fugir, ok? — sussurrou. — Miau. — Shhh! — Bruno pegou sua bolsa carteiro do chão e passou pelo corpo. Buscou pela chave da bicicleta e que estava em cima do criado mudo, guardando-a no bolso da jaqueta junto com seu celular. Foi até a porta do seu quarto e a abriu silenciosamente, pegou do chão seus dois coturnos e sem calçar, pisou no corredor do terceiro andar. Debruçou no parapeito de madeira, olhando para baixo, percebendo a casa em completo silêncio, com as luzes apagadas. Desceu as escadas devagar o suficiente para não fazer barulho, mas rápido o suficiente para não demorar muito no processo, até chegar ao hall da casa. Andou até a porta e colocou a mão na maçaneta prestes à sair. Quando pensou que havia alcançado a liberdade ileso, uma pesada mão segurou em seu braço, apertando firme e puxando-o fazendo girar involuntariamente. Seu pai, Carlos, um homem alto e forte como um touro, o abraçou. Carlos estava fedendo à embriaguez, o bafo de uísque envelhecido escapava por sua boca em um hálito azedo.
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— Meu Deus! Eu estava tão preocupado! — o homem chacoalhou Bruno segurando em seus ombros, agora seus olhos derramavam lágrimas de arrependimento. — Eu que fiz isso em você? — soou arrependido vendo um hematoma na testa de seu filho. Qual seria a resposta mais adequada? “Não, foi a mesa que veio voando até a minha cabeça”? Ou ainda, “sim, você é um monstro!” para ver Carlos se desmanchar na sua frente como algodão molhado. Mas como havia grandes chances de que Carlos se aborrecesse e cedesse um olho roxo, preferiu permanecer calado. — Me desculpe! — o homem quase suplicou. Apertava a mão ao redor dos braços de Bruno de forma tão brusca que o machucou. Bruno tentou se soltar, mas Carlos o segurou ainda com mais força, prendendo-o como uma cobra que espreme sua vítima em um abraço mortal. — Quando sua mãe voltar vai ficar tudo bem! — falou exasperado. Aquelas palavras ditas em um momento de desespero eram mais vazias do que as garrafas de uísque que ficavam em cima da mesa do escritório de Carlos. Bruno sabia que sua mãe não voltaria nunca! Já fazia mais de um ano que ela os abandonara, cansada de servir como saco de pancadas para o marido. Era uma sensação horrível ser deixado para trás por sua mãe, largado e esquecido junto àquele homem infeliz! Sempre que seu pai surtava, agora era Bruno quem pagava o pato. No início procurou revidar, mas só piorou. Aprendeu que tinha de ficar quieto e no fundo, se achava merecedor daquilo... ah, certamente merecia! Foi de repente que Carlos o soltou. Fungou o nariz e secou os olhos com as mãos. A visão de um homem fragilizado nada condizia com seu dia a dia. — É melhor você ir para a aula, ou vai se atrasar. — o homem tateou os bolsos em busca de sua carteira de couro. — Tome, para você comprar um lanche. — e estendeu uma nota de cinquenta reais.
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Cinquenta reais. Era o preço que valia o hematoma na sua testa! Bruno não hesitou, pegou o dinheiro e guardou no bolso da sua calça preta. Carlos já voltava para dentro do escritório e naquele pequeno instante de alforria, Bruno rompeu pela porta de casa. Foi quando se permitiu respirar, quase aliviado por escapar ileso naquela manhã, mas seu estômago revirava, denunciando o nervosismo. Ligou os fones ao som do rock sombrio de Faith and the Muse. Em sua bicicleta, pedalou para longe, chegando na escola primeiro que todos. † Gabi abriu um pirulito de coração e colocou na boca rapidamente enquanto andava pelo pátio de mãos dadas com o namorado: — E então, o que ele falou para você? — perguntou para Nando. — Nada, ele não falou nada. — Nando deu de ombros. — E por que a curiosidade? Você já ouviu a história toda pela Jujuba! — Por isso mesmo, quero ouvir o outro lado da moeda. — Gabi explicou. — Até porque a Jujuba está com o julgamento alterado e totalmente fora de noção ao insinuar que o cara, de fato, possa vir a ser legal! — Eu não disse legal. Eu disse que ele é.... interessante. — Julia escolheu bem a palavra que ia usar, já antecipando o chilique que Gabia ia dar. — Viu só? — Gabi ergueu as sobrancelhas para Nando, enfatizando que Julia estava falando asneiras. — O que você vê de tão errado assim nele? — Nando estava quase ofendido, irritado. Parou de andar. — Sério, eu queria saber qual o motivo da implicância! — Não é implicância. — É sim, Gabi, é sim! — Nando insistiu.
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— Não é implicância, eu tenho meus motivos. — Tipo? — ele ergueu uma sobrancelha e cruzou os braços. Nando ficava uma graça fazendo cena para Gabi, mas ela nunca se dobrava. — “Tipo” que ele tem mais piercings na cara que o “Pinhead”! — Claro que não! E você nunca viu Hellraiser para saber quantas agulhas ele tinha! — Nando retrucou. — Tente um bom motivo para variar, que tal? — Você não entende? Ele tem problemas! — Gabi respondeu, balançando o pirulito. — Ahhhh, você resolveu acreditar que ele tem problemas! Pronto, o motivo é incontestável! — ele parecia estar debochando, mas estava muito bravo naquele instante. — Oh, Hail! Porque a Rainha da Verdade jaz diante de nós e suas palavras são as Profecias da Lei! — Nando, pare com isso! — Gabi revirou os olhos, socou o ombro do namorado com irritabilidade e chateação por ele estar zombando dela. — Eu só estou dizendo que ele não é normal, olha para ele e me diga se é normal alguém fazer isso consigo mesmo! — Usar roupa preta e colocar alguns piercings não fazem dele um suicida, psicopata, nem nada do tipo, Gabi! — Eu não disse isso, não coloque palavras na minha boca! — Você não disse, mas pensou! — Bem, eu pensei, claro, todo mundo na escola pensa! Por que eu não posso pensar? — ela enfiou o pirulito na boca e estalou o dedo bem perto dos olhos de Nando. — Qual o seu problema? — Gente, peraí, escutem só vocês brigando no meio do corredor por causa do visual de um garoto da classe! — Julia teve que jogar um pouco de pó da realidade em cima dos dois. — Ainda, que, sei lá, se a Gabi tivesse se beijado com ele... — e Gabi fez cara de nojo só de considerar a ideia. — Vai Gabi, eu deixo você admitir que ele tem lábios maravilhosos!
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— Ele quem? — a voz que soou atrás de Julia era a de Bruno. Ela ficou branca de susto e dura como uma pedra, e depois, roxa de vergonha. Não se virou para falar com ele e abaixou a cabeça. Droga, justo agora ele não podia simplesmente passar de fones de ouvido?! — Eu. — Nando consertou rapidamente, mas com dois dedos beliscou a bochecha de Julia em um carinho que queria dizer “Rá, se ferrou!” em deboche. — Não, não tem. — Gabi respondeu cruzando os braços e se calando com o pirulito na boca. Àquela altura já não se sabiam mais se ela falava de Nando ou de Bruno. — O que é que você quer aqui, afinal? — perguntou com hostilidade e empinou o nariz. Julia olhou para Gabi com olhar de reprovação, depois, virou imediatamente para Bruno, que já se afastava sem dizer nada, com o rosto sem emoção, colocando um dos fones. — Espera! — e alcançou a manga do seu casaco. Bruno tomou um susto com o ato, virando-se bruscamente e se afastando até quase grudar na parede do outro lado do corredor com os olhos bem abertos e assustados, o que assustou Julia também e deixou Gabi e Nando com caras de interrogação. — Desculpe. — ele pediu e na sequência, foi para a sala de aula, colocando os fones de ouvido e abaixando a cabeça. Mas que coisa...! Ela e essa mania de ficar segurando nele! — Viram o que eu disse? Es-qui-si-to. — Gabi falou e seguiu, para a sala. Nando olhou para Julia, colocou as duas mãos no bolso da calça preta do uniforme e foi na direção da classe, após um longo suspiro que significava que ele estava tentando manter a calma e a paciência com os mimos de Gabi. Antes que Julia pudesse seguir para a classe, Arthur e Cidinha passaram abraçados, trocando carícias logo pela manhã e nem deram bom dia. Suspirou. Droga, droga e droga! Foi para a sala e se afundou em sua cadeira, desenhando a aula inteira.
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† Assim que o sinal do intervalo tocou, Gabi desceu correndo na frente aborrecida com o namorado. Nando rompeu a sala apressado atrás dela. Julia ficou para trás, enrolando para guardar suas coisas, procurando ganhar tempo para o casal se entender. Nando e Gabi discutiam frequentemente, mas nunca brigavam realmente. Uma das coisas que Julia mais admirava no casal era que eles sempre davam um jeito de fazer as pazes e de chegar em uma conclusão que fosse boa para ambos. Suspirou. Será que um dia teria a sorte de ter um relacionamento daqueles com alguém? — Ei. — Bruno parou na frente dela, cortando seus pensamentos. Ela ergueu o olhar, mais uma vez passando pela gola, gravata, corrente... e repousou nos lábios cheios de argola. Reparou que ele tinha um objeto nas mãos, uma caixa fina e quadrada transparente com um CD dentro. — É... para você. — ele estendeu o objeto para ela, com suas unhas curtas e negras. — Seu aniversário. — Pra mim? — ela pegou a caixinha e uma eletricidade percorreu todo o seu corpo. Aimeudeus! Era um CD de músicas, um presente de aniversário! Seu coração esquentou repentinamente, com uma chama explosiva. — O-obrigada. — Não é nada. Sério. — ele enfiou as duas mãos no bolso da calça, nitidamente sem graça, abaixou a cabeça. — Não tive como sair para comprar um presente melhor. — Isso é muito melhor! — ela sorriu e examinou o objeto, estava escrito com caneta marcadora vermelha “Para alegrar seu aniversário”, com uma letra cursiva que poderia pertencer uma menina, mas que era dele. — O que posso esperar encontrar aqui? — Boa música. — respondeu, tirou a mão do bolso para jogar a franja para os lados. — É o que interessa. Julia analisou essa mania de falar com poucos palavras que ele tinha, como se só quisesse dizer o necessário e não gastar saliva
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ou oxigênio com palavras que seriam desperdiçadas. Quando ele afastou a franja da testa ela percebeu que ele estava com um hematoma. — Nossa, o que houve com sua testa? — logo comentou. — Eu... — ele pareceu precisar pensar no assunto. Certamente precisava, não esperava que alguém fosse efetivamente perguntar! — Bati a cabeça no armário. — e ajeitou a franja para cobrir a testa de novo, guardando as mãos no bolso. — E está doendo? — O pior já passou. — a voz de Bruno soou um pouco diferente, com uma entonação estranha. — Não é melhor ir à enfermaria ou algo do tipo? — Julia percebeu algo diferente. Era como se a voz dele tivesse uma potência singular, armazenando uma força capaz de mover mundos. Sentiu os pelos de seus braços e nuca se arrepiarem, uma sensação esquisita se instalou por todo o seu corpo, não era agradável, era como se uma energia estivesse atravessando seu corpo e tornando o ar mais pesado. — Não. — Bruno comprimiu os olhos. Julia permanecera imune à sua entonação, isso era inusitado e nunca aconteceu com alguém antes. Procurou distraí-la com um novo assunto. — Lord Byron apareceu ontem? — Na minha casa, não. E na sua? — Ele fugiu. — Se quiser, posso ajudar você a procurar. Pelo bairro, quero dizer. — Certo. — ele concordou. — Mas acho melhor você ir até a enfermaria. Essa não. Bruno ficou ali sem dizer nada, olhando para ela com uma expressão intrigada. Julia percebeu e respondeu o olhar do mesmo jeito, intrigada. Ela não entendia o que estava acontecendo, mas ele sim. — Se quiser vou com você. — Julia insistiu e ficou em pé, já se oferecendo.
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— Certo. — ele concordou, mais porque ficou sem reação do que pela vontade de ir, que não existia. Saíram da sala e foi bem no momento em que Arthur e Cidinha estavam passando de mãos dadas. Arthur pareceu se assustar ao vê-los e imediatamente virou para Julia, parando na porta da sala D. — Ei, Julia. — a chamou, mas nem precisava, porque Julia tinha seus dois olhos cravados em Arthur. Cidinha, estava logo ali, com os cabelos todos para o lado esquerdo preso com uma flor de pano vermelha, o que lhe concedia um ar sensual como se ela fosse uma dançarina de tango. Julia procurou ignorá-la, não tirou os olhos de Arthur, reparando em cada movimento de sua boca, quando ele perguntou na lata: — Por acaso vocês dois estão namorando? Julia se assustou com a pergunta. Arregalou os olhos, travou como se fosse um pedaço de madeira imóvel, com os músculos rígidos. Como assim? Que pergunta era aquela? Viu os olhos de Arthur fixarem-se no CD que ela trazia na mão. — Eu vi vocês juntos ontem. — Cidinha se intrometeu. De braços dados com o namorado, acariciou deslizando a mão pelo braço de Arthur até enlaçar seus dedos com os dele. Julia reparou naquele ato e tentou não sentir inveja disso, mas ela nunca havia segurado nas mãos de ninguém daquele jeito e não conseguiu evitar pensar sobre como seria a sensação de entrelaçar seus dedos com os dedos de Arthur. Ela queria muito sentir o calor da mão dele. — E estão saindo juntos da sala... — Cidinha continuou sua teoria, querendo insinuar algo. — Ele bateu a cabeça, tamos indo na enfermaria. — Julia logo se explicou, um pouco aborrecida por Cidinha fazer teorias e fofocar boatos, especialmente na frente de Arthur! — Bateu a cabeça? Como? — Cidinha perguntou curiosa, Arthur também virou para Bruno, os dois o olhando com ares de interrogatório.
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Bruno demorou um pouco para responder, mas Cidinha e Arthur não desistiram, ficaram calados esperando. — Não interessa. — Respondeu. Seu tom de voz soou estranho novamente, como se houvesse eletricidade capaz de fazer o ar parar de se mexer. Apesar da grosseria contida naquela frase, Aparecida e Arthur pareceram não se importar, inclusive, foi até como se eles nem tivessem escutado a resposta, e o assunto da pancada na cabeça de Bruno desapareceu como pó pelo ar. — Eu vi vocês juntos ontem... e estão saindo da sala. — Cidinha repetiu, exatamente do mesmo jeito anterior. Foi como repetir um filme, um erro na matrix. — Somos vizinhos. — Bruno respondeu nada incomodado com a repetição. — Ah, meu Deus! — Arthur levou um susto, os olhos no CD. — Hoje é seu aniversário? — e arregalou os olhos. — Ontem. Foi ontem... — Julia ficou sem graça. Apertou o CD contra o corpo e bateu as unhas na caixa transparente, totalmente sem graça e um pouco indignada em perceber que Arthur nem sabia o dia correto. — Puxa, feliz aniversário! — Cidinha falou animada e colocou uma mão no ombro de Julia com um sorriso no rosto, como se fossem amigas. — É, feliz aniversário! — Arthur repetiu como um papagaio. — Obrigada. — Julia agradeceu e foi só. Logo Arthur e Cidinha continuaram a andar pelo corredor, afastando-se. A garota ficou ali parada, observando-os, segurando o CD. — Então... — Bruno falou lentamente, com calma, olhando com o canto de olho para Julia. — Arthur. — O quê? — Julia piscou e virou para ele assustada. — Arthur, você, algo no ar. — enumerou, com a mania monossilábica. — Não, claro que não! — Julia negou, mas ficou roxa de vergonha com as faces pegando fogo. Será que ela estava dando
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tão na cara assim que até mesmo ele percebeu? Isso não era bom sinal. — Enfermaria. Você. Vamos? — falou imitando-o. — Você devia falar para ele o que sente. — Bruno sugeriu, enquanto andava pelo corredor. Julia olhou para ele com espanto, esperando uma explicação. — Posso jurar que ele estava com ciúme! — Se você acha que aquilo era ciúme, você realmente precisa rever os seus conceitos. — Julia decretou, batendo os ombros. — Vem, vamos para a enfermaria. — Que seja. — o assunto entre eles morreu ali. † Na enfermaria, Regina perguntou: — Como foi que você machucou a cabeça? — ela estava com o algodão embebecido em algum remédio fedido e cheio de álcool. Julia piscou confusa, olhando de novo para aquele bizarro “erro na matrix”. Era a segunda vez que aquela enfermeira gorducha e ruiva, cheia de batom vermelho e rugas no rosto perguntava a mesma coisa! Exatamente como aconteceu com Cidinha e Arthur! Da primeira vez, Bruno respondeu “Desmaiei e bati a cabeça na pia”, ignorando o fato de que, momentos atrás ele havia dito para Julia que fora uma batida no armário. A enfermeira, muito preocupada, queria saber se podia ligar para os pais dele e se deveria avisar a coordenadora. Diante da chuva de perguntas, Bruno simplesmente disse “Não está doendo mais”, com aquele tom de voz que fazia os pêlos de Julia eletrificarem-se. E pronto, era como se a enfermeira tivesse esquecido de que ele havia respondido e, acima de tudo, mentido ao fazer isso. — Sou atrapalhado. — Bom, vamos tomar mais cuidado, certo, querido? — Certo.
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Julia ficou embasbacada e perplexa. Teve certeza de que havia algo de anormal no ar, porque percebeu que o "erro na matrix" acontecia sempre que Bruno falava daquele jeito, era quase como mágica. Talvez fosse mágica, se é que era possível haver mágica. Resolveu por ficar calada, fingindo que não notou nada diferente, que o que acontecia era normal. Considerou seriamente, e pela primeira vez, a possibilidade de que os boatos que rolavam na escola pudessem ser verdade. E se Bruno tivesse mesmo um pacto com Satã? Logo no segundo seguinte, porém, Julia desconsiderou a ideia e se sentiu ridícula por pensar algo daquele tipo... Quer dizer, convenhamos, ele tinha mesmo um visual sombrio que impressionava, mas daí a ser satanista ou a versão adolescente do Neo... Julia pensou que talvez devesse maneirar um pouco nos livros de fantasia, filmes de terror e especialmente em jogar tanto RPG. Estava começando a imaginar coisas! Balançou a cabeça, para afastar os pensamentos que considerou insanidades. — Pronto. — Regina terminou o curativo pregando um Band-Aid na testa de Bruno e colocou as duas mãos na cintura por cima do uniforme branco. Ele ficou em pé. — Quando chegar em casa, coloque um pouco de gelo. — Certo. — Ele olhou para Julia, que parecia muito pensativa, certamente incomodada com alguma coisa, mas ele já tinha percebido que ela era imune ao encanto que ele estava lançando. — O que foi? — Estava pensando que preciso parar de jogar tanto RPG! — Confessou. — Ando sonhando acordada! — Hm. — Foi tudo o que ele fez. Fizera dois testes com Julia para ver se ela se manifestava sobre o assunto, se fazia alguma pergunta sobre o que estava acontecendo de estranho. Só por isso ele usou o encanto com a enfermeira na frente da garota, mas Julia não disse nada, certamente adotando uma postura cética. Era melhor encerrar o assunto por ali.
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— Vamos? Ainda quero tomar um suco antes de voltar para sala. — Julia abriu um sorriso, para simbolizar que estava tudo bem. — Eu deixo você pagar como agradecimento. — Agradecimento ao quê? — Bruno perguntou enquanto eles saiam da enfermaria. Pisaram no pátio e logo se misturaram à multidão de alunos. — Porque você tem medo de agulha e eu vim segurar sua mão. — Ele virou o rosto em sua direção, sem entender, com uma expressão esquisita. — É isso que você vai dizer se alguém perguntar. — Se alguém perguntar. — revirou os olhos. Meninas e suas esquisitices. — Acredite, eu sei que a Gabi vai perguntar... e não quero que... — E você não quer que ela fique imaginando coisas como ficou o Arthur. — ele concluiu. Julia corou-se de vergonha. — Posso fazer isso por você... embora haja uma grande falha na sua teoria... — E qual é? — Eu tenho piercings demais para ter medo de agulhas, não acha? Julia ficou sem resposta, claro, era uma ideia muito idiota. — Não se preocupe... — Bruno falou diante do silêncio dela, a voz tinha um rastro de ternura que a confortou. — Eu dou um jeito. E foi tudo. Ele colocou os fones de ouvido, afastando-se dela. Julia esperou ele se perder na multidão e depois, andou até o local em que sempre ficava com seus amigos. Tinha um banco de cimento onde ficava uma turma de garotas coloridas conversando de música, seus ídolos e trocando papel de carta que eram do primeiro colegial, cada uma com uma cor de calça diferente, mas com visuais parecidos. Nando e Gabi estavam encostados na parede, conversando um com o outro. Pelo visto haviam feito as pazes. Julia se
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aproximou e Gabi tirou o pirulito de coração da boca, virando para ela com um espanto: — Jujuba, onde é que você estava? — Na classe, dando espaço pro meu casal favorito se entender. — Julia falou, omitindo a parte da enfermaria e torcendo para nenhum deles perguntar, porque com certeza Cidinha já havia espalhado a fofoca. — Se entenderam, não é? — A Gabi vai pedir desculpa para o Bruno depois. — Nando falou. — E o Nando vai me levar no cinema, hoje. — Ah, que bom! — Julia sorriu feliz que os dois tinham encontrado um acordo. — Peraí, o que é isso? — Gabi arregalou os olhos quando viu o CD que Julia carregava. Em um ímpeto, puxou o objeto analisando-o como se fosse uma engenhoca alienígena. — Quem te deu isso? — e diante do silêncio de Julia, sacou. — O “Pinhead” te deu isso? — e virou para Nando, aterrorizada. — Veja só! Aposto que ele já deu uma de cyber stalker na página de Facebook dela! — Para com isso, Gabi. — Nando viu o acordo de trégua ir para baixo do ralo depois desse comentário. — Não foi nada disso, Gabi! Como você é cismada! — Julia pegou de volta o CD. Arrependeu-se por não ter guardado antes de sair da classe, tudo seria tão mais fácil se ela simplesmente tivesse colocado dentro da mochila. — Eu falei para ele ontem que era meu aniversário, ele só tentou ser... gentil. — É, Gabi! Você nem deu presente pra Julia! — Nando a cutucou com um dedo na ponta do nariz da namorada. — E nem você! — Gabi fez a mesma coisa, só que com o pirulito, melecando o nariz dele. — E nem o Arthur... — Julia acrescentou chateada. Gabi e Nando olharam para ela com piedade. — Ele nem lembrou que era meu aniversário. — Vivo dizendo que ele é um babaca e você nunca me escuta. — Nando sentenciou, mas seus olhos denunciavam
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preocupação. Era como se ele estivesse assumindo um papel de irmão mais velho que dizia “se ele fizer isso de novo, vou bater nele!”. — Ai, Jujuba, não fica assim... — Gabi foi socorrê-la, abraçando-a. Depois soltou a amiga e voltou a se encostar na parede, cruzou os braços aborrecida. — O problema do Arthur é a Cidinha, ele nunca esqueceu do seu aniversário antes! — Ah, é... e ela é bem fofoqueira também. Falou para o Arthur que me viu com o Bruno ontem, ele chegou até a me perguntar se eu estava namorando. — Julia contou, revirando os olhos. Detestava Cidinha com todas as suas forças. — Ai, quem ela pensa que é! Aposto que ela só disse isso para afastar ele de você. — Gabi decretou, enfiando o pirulito na boca e mordendo, demonstrando toda sua irritação. — Que vaca! — Você devia pensar nisso... — Nando falou e as duas garotas olharam para ele curiosa. — Digo, namorar o Bruno. — Tá doido, Nando? — Gabi deu um tapa nele. — Ai, Gabi! — O cara é um total freak! — Lá vamos nós de novo... — Nando perdeu a paciência. Virou para Julia. — Você acha? Acha que ele é um freak? — Eu? — Julia ficou azul. E agora o que ia dizer? Normal, com certeza ele não era com aqueles “erros na matrix”, o visual chamativo e os piercings... havia sim alguma coisa em Bruno que fazia todo mundo olhar para ele como se ele fosse um imã para olhos, mas também havia o fato de que ele era apenas um garoto como todos os outros! Ele era, inclusive, tímido, como ela havia reparado. — Ele é excêntrico, só isso. — Excêntrico é eufemismo para freak. — Gabi decretou como se fosse lei. — Cara, na boa, vocês duas estão achando que são quem? Como podem julgar uma pessoa assim só pela aparência como fazem esses mauricinhos da escola? — Nando se ofendeu como se o que elas tivessem dito fosse diretamente para ele. — Vocês são tão hipócritas!
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— Não vem, não, Nando! — Gabi irritou-se com o namorado, uma coisa que ela fazia era defender com unhas e dentes sua opinião sempre que tinha uma. — Não é hipocrisia nenhuma evitar o filho de Satã, todo mundo na escola sabe o que ele fez com o Juninho! — Isso é boato! — Nando revirou os olhos. — Bo-a-to! — Que Juninho? — Julia não conhecia aquele boato. — A Carlinha da turma C que falou. — Gabi contou, sem explicar a história. Julia fez uma careta curiosa, que demandava maiores informações. — O Bruno era da sala C ano passado, por isso a gente mal lembra dele... e o Juninho... — O Juninho era um babaca que lutava Judô e vivia enchendo o saco de todo mundo. — Nando explicou do começo. — Ele era mais forte e mais velho... ele era repetente, sabe? Bom enfim... ninguém gostava muito do Juninho e ele sempre escolhia alguém para encher o saco, as vezes até batia nos moleques. Daí um dia ele sofreu um acidente de carro e ficou tetraplégico. Depois que isso aconteceu, o colégio ficou em paz por um bom tempo, sem brigas... — Eu não me lembro disso, não! — Julia respondeu com sinceridade, mas ela nunca reparou muito na vida alheia mesmo. — E o que isso tem a ver com a história do Bruno ser filho de Satã? — Advinha só quem foi a última pessoa a apanhar do Juninho? — Gabi sugeriu uma hipótese. A resposta estava óbvia, mas Julia não queria pensar que fosse isso. — O “Pinhead”. — Ah, que isso, Gabi, é boato...! Foi um acidente! Até eu já tinha apanhado do Juninho, vai dizer que eu amaldiçoei ele também? — É diferente, Nando! — É diferente porque você está implicando e não consegue parar de implicar! Dá uma chance pro cara. — É, Gabi, pelo amor de Deus, né... tá parecendo uma maluca daquelas que fica dizendo que Bin Laden não morreu e
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que isso foi um golpe de estado dos Estados Unidos. — Julia suspirou. Gabi as vezes exagerava! — Bin Laden não morreu! — ela se defendeu, mas depois, como se percebesse que estava mesmo exagerando, falou. — Tá bem, eu vou dar uma chance para ele. — e com o dedo, fez o número “1”, para enfatizar. — Mas se ele ficar com esquisitices, na boa, não quero ele perto... vai ser um queima-filme! — E de qualquer forma, quem foi que disse que ele quer ficar perto? — Nando cruzous os braços e lançou um olhar misterioso. — Ele tem a turma dele. Fazia mais sentido até que Bruno não quisesse. Julia não evitou e acabou olhando para o outro lado do pátio, onde podia ver Bruno sentado no chão, com seus fones de ouvido e o olhar em lugar nenhum. Foi então que percebeu que realmente, Bruno tinha sua turma: os góticos do primeiro e terceiro ano. Não eram muitos, mas aquelas cinco pessoas que mais pareciam urubus, estavam bem ali ao lado dele. Todos usavam o uniforme escolar, mas de alguma forma pareciam bem mais estranhos. Alguns raspavam as sobrancelhas e as duas meninas tinham cabelos coloridos artificialmente com a franja em V, maquiagem branca no rosto e batom preto. Uma delas, de cabelo roxo e um corset também roxo por cima da camisa da escola, dividia o fone de ouvido com Bruno, ouvindo música junto com ele. Talvez aquela fosse a Trinity, pensou. † Quando se abaixou para tirar o cadeado da corrente que prendia a roda da bicicleta, pelo zíper do bolso da frente a agenda vermelha caiu no chão, aberta em uma página, com a capa virada para cima. Bruno estava de fones, não escutou quando aconteceu. Julia pegou a agenda. Era pequena, como um daqueles livros em miniatura do tamanho da palma da mão. A capa era dura e fosca de um vermelho escuro e intenso como o sangue. Tinha uma fita de cetim para marcar páginas e na ponta dela,
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estava preso um frasco bem pequenino de vidro com a tampa de rolha, que continha uma pedra vermelha lapidada em forma de gota. As páginas eram amareladas, como se a agenda fosse muito velha, não havia linhas; parecia ter sido aberta de forma aleatória ao cair, mas Julia leu a pequena anotação. Com a letra cursiva e perfeita de Bruno, em tinta vermelha, se lia: “Gisela pegou tudo aquilo que lhe era de valor e saiu. Nunca mais voltou, livre enfim.” Que bizarro. E os dedos de Bruno tocaram os seus, quando ele fechou o pequeno livro e retirou da mão dela. — É falta de educação ler coisas pessoais sem permissão. — ele falou com os olhos em cima dela, de um frio quase antártico. Ele guardou o livro dentro do zíper e fechou. Tudo o que Julia viu além daquela anotação foi a contracapa, que dizia “Sebo da Esquina” e tinha um endereço, que ela não conseguiu ler porque ele guardou livro rapidamente. — Desculpe. — Foi a única coisa que conseguiu balbuciar, totalmente envergonhada. Nunca havia xeretado nada de ninguém, se sentiu horrível. — Caiu no chão e eu fui pegar e... — Vamos indo? — ele já estava em cima da bicicleta. — O livro praticamente se jogou aos seus pés, não deu para evitar. — narrou, e ela não sabia se ele estava sendo irônico ou falando de forma gentil, para amenizar a culpa. — Desculpe. — ainda sem graça, ela tirou a mochila e entregou para ele. Sentou-se no cano da bicicleta. Ele estendeu o fone de ouvido para ela, que colocou e deixou um sorriso escapar. — O que é? — Sopor Aeternus & the Ensemble of Shadows. — nomeou a banda sombria e pedalou.
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Viajaram calados, enquanto a música intensa e melancólica, quase como uma poesia musical de um ode à tristeza, soava competindo com o barulho do trânsito da rua. Foi só quando chegaram na porta da casa de Julia, que ela arriscou falar: — Ainda está de castigo? — É. — Até quando? — quis saber curiosa. Bruno lhe devolveu a mochila. — Mais alguns dias. — ele não quis dar detalhes. — Escute o CD. — Vou escutar, obrigada! — Julia sorriu e acenou um tchau. — Até mais. A garota voltou-se para a porta da sua casa, pegando a chave de sua mochila. Colocou a chave na fechadura e entrou, trancando a porta em seguida. Subiu as escadas e pulou algumas caixas que estavam no corredor de cima, entrando em seu quarto. — Miau! — Lord Byron estava lá, deitado em sua cama. O vento balançava a cortina branca do seu quarto, entrando pela janela que ela esqueceu aberta. — Ai, ai ai... te levo para o seu dono depois, ok? Agora vou tomar banho. — Falou para o gatinho que se ergueu para roçar os bigodes em sua mão. Ela acariciou o seu pêlo negro e Lord Byron ronronou. Depois, ela andou até o rádio e colocou o CD para tocar. Afroxou a gravata e entrou no banheiro, para tomar banho. Quando saiu, enrolada na toalha, Lord Byron não estava mais lá. † Em seu quarto, Bruno abriu a sua bolsa de carteiro e pegou de lá o livrinho vermelho que outrora caíra aos pés de Julia, percorrendo com os dedos sua capa áspera e vermelha. Aproximou o livro dos lábios, apertando contra os piercings e fechou os olhos sentando-se em sua cama.
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Parecia um ato despretencioso do destino que o livro caísse de sua bola aos pés de Julia. Qualquer outra pessoa em sua situação, faria o mesmo: pegaria o livro, olharia o seu conteúdo e procuraria o dono para devolver. Foi exatamente isso o que Julia fez, não foi? Mas, como ele já sabia, aquele livro não era despretencioso e nem aquele momento, algo do acaso. Era uma escolha. O jinn estava mudando de dono como ela avisou que mudaria caso ele deixasse de usar... Só que aquele jinn não tinha bondade alguma para oferecer. Durante meses Bruno carregou aquele livro na bolsa com o zíper aberto somente esperando pelo momento em que ele caísse de lá e procurasse por outra pessoa! Qualquer um que soubesse do que aquele livro era capaz, iria querer o mesmo. No entanto, ele não queria que aquele livro fosse parar nas mãos de Julia! Ela parecia uma garota legal, dessas que tem uma vida perfeita e que não pensa nada ruim ou cruel acerca de ninguém. Aparentemente, estava enganado sobre ela, porque o livro a escolheu... e iria amaldiçoá-la tão quanto o amaldiçoou. Um jinn como aquele não escolhia pessoas boas, porque não era um espírito bom. A menos que ele impedisse, talvez? Ficou em pé, abriu a gaveta do seu criado mudo e jogou o livro lá dentro. Girou a chave da gaveta três vezes e a tirou da tranca. Andou até a janela e levantou o vidro. Lord Byron pulou para dentro do seu quarto pela janela, roçando os pelos negros em seu braço. — Miaaaaaaaau! — choramingou. Caiu no chão de carpete cinza e subiu na cama. — Você está certo, qualquer um pode achar essa chave se eu jogá-la daqui. — ele falou com o gato, como se Lord Byron pudesse entender. Bruno andou até o banheiro do seu quarto e atirou a chave dentro da privada. Deu descarga, enquanto olhava a chave prateada desaparecer com a água.
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03 PASSADOS † Julia passou nos lábios a manteiga de cacau enquanto entrava no pátio naquele dia gelado e cinzento. Tentara se agasalhar colocando uma legging bem grossa e preta por dentro da saia do uniforme, além de um moletom por cima do suéter, que era estampado de caveiras brancas e tinha capuz, mas ainda estava tremendo de frio e sentindo as mãos congeladas, como se estivessem endurecidas. — Esse frio me dá tanto sono... — Nando reclamou com um bocejo. A cabeça coberta pelo capuz branco do moletom enquanto caminhava abraçado com Gabi. — Você tem sono no frio ou no calor, Nando. — Gabi o repreendeu, mas de forma divertida. Estava com um cachecol colorido, rosa, azul e verde, toda sorridente como sempre. — Ei, não olhe agora, mas aquela morcega está olhando para você! — e cutucou Julia com uma cotovelada. Sempre que alguém diz para não olhar, causa o efeito contrário, por isso Julia ergueu a cabeça para a garota que Gabi indicou. Era gótica cheia de braceletes com espinhos de metal, tinha cabelos tingidos de roxos e olhos repletos de kajal indiano. Trazia na face uma expressão quase feroz e parecia querer arrancar seu coração só com o olhar de cão raivoso. Julia sentiu um frio percorrer o seu corpo transformando seu sangue em nitrogênio líquido, mas reparou que Bruno estava ao lado dela. Ele estava de costas para quem entrava na escola e não a viu, com os dois braços cruzados como se estivesse em meio à
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uma discussão. Por acaso eles estavam brigando? Traziam ambos expressões de aborrecidas, mas falavam baixo, afastados do grupo de góticos que parecia achar normal que eles estivessem discutindo, já que continuavam todos distraídos entre si. — Jujuba causando discórdia! — Nando debochou, insinuando que aquela menina pudesse estar com ciúmes dela e que, ainda, fosse namorada de Bruno. — Quem é ela? — Julia quis saber e desviou o olhar daquela menina furiosa, atravessou o pátio com seus amigos, mas sentiu o olhar da gótica raivosa acompanhá-la ao passar. — Priscila, ou Persephone, que é o apelido que ela usa. — Nando explicou como se a conhecesse. — É a “Healer”, eles jogam sempre juntos. — Eles são namorados? — Gabi, que adorava uma fofoca, perguntou curiosa. — Talvez. — Nando deu de ombros. — Nunca perguntei! Julia mais uma vez olhou para Priscila, por cima de seu ombro. Talvez fossem mesmo. Seguiu os amigos para a sala. † Priscila estava irritada e Bruno sabia, conhecia muito bem aquele olhar estreito que ela fazia sempre que ficava furiosa. Embora, em sua opinião pessoal, ela nem teria por que ficar fazendo tanta cena no pátio do Colégio e era por isso que ele estava irritado também. — Como não? Estão dizendo que vocês se beijaram! — ela bateu o pé no chão para enfatizar sua raiva, com sua bota plataforma preta envernizada e de cardaço roxo. No pescoço usava um crucifixo preto que balançou com o movimento de Hulk-em-muita-raiva que ela fez. Eles já estavam falando disso há meia hora e Bruno estava impaciente. — Boato. Obviamente. — Que vocês são vizinhos!
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— Verdade. — E que você está dando carona para ela a semana inteira de bicicleta! — Verdade. — Você está pensando em ficar com ela? — Te interessa? — Interessa, sim! Estou preocupada com você! — Nem se dê ao trabalho. — revirou os olhos. Ele achava que a preocupação dela nada tinha de preocupação de verdade, por isso, desdenhava. — Ela é uma patricinha, Bruno. Não é como nós. — apontou para si mesma. — Olha só para as roupas dela! Imagine ela entrando no Strange House de mãos dadas com você no Halloween, é ridículo! — Hm. — ele resmungou. Tinha mesmo que passar por isso àquela altura do camponato? Estavam no final de Abril e faltavam pelo menos seis meses até o Halloween. Ele nem sabia se estaria vivo até lá, quanto mais saber quem é que ele iria levar. Se é que ele ia aparecer na festa de Halloween! — Ande, diga logo o que está acontecendo entre vocês! E dessa vez conte a verdade! — Vizinhos. Carona. É só. — enumerou com a mania de sempre, mas a paciência, nem tanto. Priscila o olhou de forma desconfiada. Levantou uma sobrancelha fina e delineada com lápis preto: — Mesmo? — É. — Ela não pode arranjar carona com outra pessoa? — ele deu de ombros, sem saber a resposta. — Não quero mais que você dê carona para ela! — Por quê? — Não gosto dela! Nem do jeito que vocês ficam quando estão juntos! — Que jeito?
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— Do jeito que ficam quando estão juntos! Parecem namorados. — Não somos. — Não são, ainda! Dá pra ver que tem algo rolando entre vocês! — Não tem. — respirou fundo. — Vamos esquecer esse assunto? — Estava de saco cheio dessas cobranças de Priscila, do ciúme e do fato de que ela criava caso por tudo e, pior, sem motivos. Só queria que ela se calasse! — Como não? Estão dizendo que vocês se beijaram! — e ela bateu o pé, irritada. Era a segunda vez. — Que seja. — ele simplesmente passou por Priscila, andando para longe, deixando-a com seu olhar enfurecido para trás. Não ia ficar se explicando para ninguém, muito menos para ela, muito menos duas vezes. Quando Priscila voltou para perto de seus amigos, uma garota de cabelos azuis perguntou: — E então Per... o que ele falou? — Nada. — Como nada, vocês falaram mais de meia hora... ele tá ou não tá com a garota? — Ele não disse. — e Andreza ao ouvir sua resposta fez a maior cara de quem não entendeu nada. † — Advinha só o que eu descobri? — Gabi perguntou com o pirulito na boca, virando para Julia. Acariciou os cabelos de Nando que dormia e nem se mexeu. — O quê? — A Priscila é da classe da Larinha no terceiro colegial, então eu mandei uma mensagem de texto perguntando algumas coisas. E descobri tudo! — Você o quê? — e tirou os olhos do seu dragão de fogo para olhar para os olhos de lente azuis de Gabi.
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— Eles não estão namorando, mas rolava algo entre eles, ela ainda gosta dele! Tenho certeza. — Gabi estava orgulhosa de suas descobertas. — Mas parece que a briga hoje cedo era mesmo sobre você, Jujuba! — Sobre mim? — Julia sentiu seu coração congelar. — Mas por quê? — Por causa das caronas. Ela quer que ele pare de te levar para casa e continue indo na casa dela de tarde. Ele ia quase todo dia... — Ele ia? — Julia virou a cabeça para Bruno, que de fones, olhava inexpressivo para a professora. Não conseguia imaginar como um garoto tão calado e monossilábico quanto Bruno pudesse, de fato, ter uma namorada. — A Cidinha andou falando pela escola que viu vocês dois juntos do tipo... se beijando. — Gabi revelou. Depois, olhou para Julia com uma expressão curiosa. — Você andou beijando o garoto e está escondendo o jogo, por acaso? — Não! Não é nada disso! — um raio atingiu a cabeça de Julia. E que bom que ninguém ficou sabendo da enfermaria, pois tinha certeza que Cidinha daria com a língua nos dentes. — De qualquer forma, pare de pegar carona com ele. — Gabi sugeriu. — Por que além de alimentar o boato da Cidinha, vai acabar deixando a Priscila com raiva de você! — Que bobagem! — Julia irritou-se e revirou os olhos. — O que essa Priscilla pode fazer? † Depois de desenhar um belo dragão de fogo em seu caderno durante a aula inteira, Julia guardou suas coisas e colocou dentro da mochila. Gabi e Nando deixavam a sala de mãos dadas. Julia sempre demorava demais para guardar as suas canetas e eles nunca esperavam, despedindo-se apressadamente. Ela ficou em pé, colocou sua mochila nas costas e andou até a porta da classe. Bruno estava esperando por ela por ali. Seus
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olhos azuis estavam mais do que inexpressivos, mas ela não falou nada ao perceber que ele estava com fones de ouvido como sempre. Eles saíram juntos da sala e atravessaram o pátio da escola, parando apenas quando ele se abaixou para abrir o cadeado que segurava a corrente da bicicleta. Sem querer, Julia acabou olhando para o portão da escola, onde Priscila os observava ao lado de uma outra garota de cabelos azuis desbotados. As duas de braços cruzados, corsets vitorianos por cima da camisa da escola e luvas negras de rendinha. — Ei, Bruno. — Julia o chamou, mas ele não ouviu. Por isso, ela encostou no ombro dele, tocando por cima da jaqueta, chamando atenção. Bruno estremeceu em susto, mas olhou por cima do ombro e encarou Julia. Ela falou alguma coisa, mas ele não escutou. Ficou em pé puxando um dos fones e virou-se para ela: — Quê? — Acho que aquelas meninas querem falar com você. — ela apontou para as duas góticas no portão, esperando-o como duas bruxas da inquisição prontas para amaldiçoá-los. Ele olhou rapidamente, depois, virou-se para Julia. Não disse nada e pegou a mochila dela colocando nas costas. Puxou a bicicleta do gancho e subiu. — Não vai falar com elas? — Eu tenho que ir para casa, ainda estou de castigo. — ele respondeu. Não, ele não ia falar com nenhuma delas. — E não fique olhando para elas. — Ah. — Julia levou um susto. Teve a impressão que isso queria dizer que Priscila ia pular em seu pescoço. Subiu no guidom, pegou o fone. A bicicleta seguiu. A música era de uma banda que ele tinha gravado no CD, ela reconheceu. — Ouvi dizer que a de cabelo roxo era sua namorada. Verdade? — Nunca fomos. — Mas vocês estavam juntos, não estavam? — Isso foi há muito tempo atrás
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— Hoje cedo, vocês estavam brigando? — arriscou perguntar, puxando papo. — Por quê? — Ela está com ciúmes de você. — Sério? — Julia já sabia, mas escutar ele falar foi como levar uma facada nas costas. — É bobagem, não se importe com isso. Não tem mais nada entre a gente. — Terminaram? — Nunca namoramos. — Não é isso o que dizem pela escola. — Dizem. Sinônimo para boatos. Falam muita coisa que não é verdade pela escola, a gente também nunca se beijou. — É, você tem razão. — O assunto foi encerrado pois ambos se calaram. Depois de um tempo em silêncio, ao entrar na rua de casa, Julia lembrou-se de algo importante: — Ah, esqueci de te dizer, ontem o Lord Byron apareceu no meu quarto, eu ia levar ele até você, mas quando saí do banho ele já tinha fugido! — Eu disse! Ele é um gato fujão. — ele deixou um sorriso escapar. Julia sentiu-se até contente em finalmente vencer aquela carranca aborrecida que ele trazia o dia inteiro no rosto. Foi estranho perceber que se preocupava com o sorriso dele e isso a deixou de bochechas vermelhas na mesma hora. — Se quiser, posso te ajudar a procurar por ele de tarde. — Não posso, estou de castigo ainda, já esqueceu? — Ah, é mesmo... foi mal! — e ele parou a bicicleta na frente da casa dela. — Até quando vai esse seu castigo, mesmo? — Por quê? — Curiosidade. — Julia encolheu os ombros e pegou a mochila dele. — O que foi que você fez para ficar de castigo tão rígido?
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— Nada, meu pai acordou de mau-humor. — e antes mesmo que ela pudesse pensar em articular uma resposta, ele saiu. — Até mais. — Tchau. — ela acenou para ele e depois, entrou em casa. † Depois do almoço e do banho, Julia sentou em sua cama, de legging vermelha e uma camiseta branca. A primeira coisa que fez foi abrir a sua mochila para tirar o seu caderno de lá, mas quando puxou o objeto, uma agenda menor caiu no chão. Julia parou, intrigada. Era o pequeno livro vermelho que vira de Bruno. O que estava fazendo ali? O livrinho caiu aberto com a capa virada para cima. Ela o abriu, era uma página aleatória que dizia: “Juninho nunca mais levantou o punho contra alguém e a paz reinou sem fim.” Julia sentou-se na cama. Juninho devia ser o menino de quem Nando e Gabi falaram, que acidentou-se e ficou tetraplégico. Por acaso aquele livrinho era um índice de momentos de desgraça? Foi voltando as folhas de trás para frente, lendo o que ele havia escrito antes daquele dia. “Carlos trancou-se em seu escritório amargurado. Nunca mais foi o mesmo e nem nunca mais foi feliz.” Eram anotações que não pareciam importantes, consistiam de uma frase que expressava um acontecimento sem muita poética. Algumas chamavam atenção por não fazerem sentido. A maioria eram desgraças que aconteciam à alguém, mas algumas, grandes conquistas. Algumas até românticas!
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Depois que Julia leu todas as anotações de Bruno, encontrou anotações mais antigas nas páginas daquele livro. Todas eram escritas de vermelho, mas com outras letras o que indicava que além de Bruno, outras pessoas seguraram aquele objeto em mãos e escreveram sobre o mundo ao redor anotando acontecimentos estranho. E muitas eram anotações bem tenebrosas, como um epitáfio de morte. Uma das letras era bem caligrafa e dizia: “O sangue do bebê espirrou no rosto de Salomé enquanto ela esfaquiava seu próprio filho, José” Será que aquilo era um livro de poemas trágicos? De repente, podia ser algo passado de geração em geração na família de Bruno e ele apenas continuou a escrever. Leu mais algumas notas, constatando que muitas pessoas haviam escrito naquele livro. Algumas letras eram totalmente ilegíveis e dava apenas para reconhecer uma ou outra palavra. Tinha até uma que parecia um adeus de suicídio, com letra rabiscada e tremida. “A faca cortou a garganta de Madaleine. E foi assim que Eu morri. Adeus.” Que herança mais bizarra para se passar pela família! Curiosa, virou ao contrário para ler a contra capa, que era ainda mais esquisita. SEBO DA ESQUINA Na encruzilhada mais próxima Somente aos sábados. Das 22h às 22h10.
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— Miiiaaau! — Lord Byron apareceu, Julia levou um enorme susto. Estava xeretando o diário pessoal de Bruno e se sentiu repreendida pelo gato quando ele colocou aqueles olhos redondos e amarelos sobre ela. Soltou o livrinho imediatamente e se sentou na cama: — Olá, seja bem vindo, Lord Byron! — Miau! — o gato negro e peludo reclamou. — Eu sei, estava lendo sem permissão, eu sei! — ela riu. Passou as mãos pelos cabelos na tentativa de arrumar os fios rebeldes. — Vamos, é hora de você ir para o seu dono! Julia ficou em pé e vestiu seu moletom de caveiras. Colocou o livrinho vermelho no bolso do moletom e calçou os tênis. Pegou Lord Byron, que obediente, não se contorceu e nem a arranhou. Desceu as escadas e saiu pela porta. Notou que estava anoitecendo, o céu escurecendo gradativamente e a temperatura começava a cair, o que a deixou com vontade de ir buscar mais um casaco. Andou pela calçada seguindo o muro da sua casa até chegar na porta da casa de Bruno, seu vizinho. Apertou o botão da campainha e conferiu se estava com bafo: não estava, mas nem passou um batom, nem nada! Não demorou muito para um homem de olhos castanhos e cabelos também castanhos atender o chamado. Ele era forte e muito alto, com uma imponência digna de um rígido general, trazia um celular e nem olhou para ver quem era o visitante, digitando alguma coisa no smartphone. — O que é? — perguntou sem nem cumprimentá-la. Julia concluiu que ele era o pai de Bruno, mas eles não se pareciam em nada! O homem era muito alto e muito forte, como um boxeador profissional, até as feições do rosto eram diferentes. — Hm... boa noite, senhor... o Bruno está? O homem esticou os olhos para vê-la, finalmente. A única coisa que tinha parecida com Bruno era o olhar, inexpressivo e frio. Depois, ele olhou para o gato e virou a cabeça para trás:
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— Bruno! Desça já aqui! — a voz era forte como um trovão de um raio que caiu ao seu lado. Ele manteve a porta aberta, mas saiu do hall indo para dentro de outro cômodo ao fundo. — Esse gato inútil... Bruno desceu as escadas com pressa, não estava de uniforme, mas seus olhos estavam pintados com maquiagem negra. Seus cabelos molhados grudavam no rosto, as pontas na altura dos lábios que ela considerava perfeito e cheio de argolas. Parecia que Bruno estava bem à vontade em casa, pois vieram sem sapatos só de meias, de calça jeans preta e uma camiseta de mangas compridas, vermelha, sem estampa. A corrente que ele usava no pescoço aparecia pela gola da camiseta. — O que houve? — ele perguntou preocupado, mas viu que Julia segurava seu gato. — Seu gato, entrou pela minha janela. — ela sorriu entregando Lord Byron para ele. — Capturei antes que ele fugisse de novo! — Ah, valeu. — ele pegou o gato das mãos dela. Lord Byron pareceu não gostar e pulou no chão, subindo as escadas apressado. — Viu, ele é fujão. — ele riu. — A janela tá aberta acho que ele vai voltar para o seu quarto... sabe como são gatos, fazem o que bem querem! — Eu trago ele de novo aqui se aparecer essa noite! — Bruno? — o homem voltou, aparecendo pela porta. Julia viu Bruno estremecer de susto e depois, virar-se para o homem. Era engraçado como ele se assustava com as coisas. — Não vai convidar a sua amiguinha para entrar? Estou fazendo o jantar! — Não precisa entrar se estiver ocupada. — Bruno falou e deu de ombros, virando-se para ela de novo. — Não estou! — Julia entrou na casa de Bruno. — Com licença. — Além de ser muito linda é ainda muito educada! — o pai de Bruno a elogiou, soltando um sorriso em sua direção. — Como é seu nome? — Julia.
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— E como vocês se conheceram? — Sou vizinha. — Julia se aproximou do homem enquanto Bruno fechava a porta de casa. A casa estava impecavelmente limpa e tinha cheiro de spray de lavanda. — Aqui do lado. Eu vim porque o gato invadiu meu quarto. — Ah, sim, o gato! — Também estudo na mesma escola. — É mesmo? — virou para o filho, jogando sobre ele um olhar quase desconfiado. — É mais bonitinha e normal do que você. — Depois, ele voltou para dentro do que deveria ser a cozinha. — Estou cozinhando uma lasanha, você já jantou? — perguntou de lá. — Não, ainda não. Costumo esperar a minha mãe que chega as sete horas. — enfiou a cabeça para dentro. Reparou que ele deveria ter acabado de retornar do trabalho, pois ainda estava de terno e sapatos, com as mangas da camisa viradas para cima do cotovelo para cozinhar. A cozinha era grande e bonita, toda branca com detalhes laranjas. — Não quer convidá-la para vir aqui? — Ô pai, a Julia está cheia de dever de casa para fazer, deixa ela. — Bruno se intrometeu, parando na porta ao lado de Julia e encostando o ombro no batente, com as mãos para dentro do bolso, deixando bem claro que não queria visitas. Julia olhou para ele sem entender, porque o lance do dever de casa, era mentira. Quase nunca passavam nada para a Classe D. — Ah, me desculpe. Convidei em péssima hora! — o pai do garoto se desculpou, mas abriu o forno para ver a lasanha. O cheiro de queijo invadiu a cozinha. — Na verdade eu já terminei. Posso ficar para jantar essa noite. Bruno olhou para ela com uma expressão preocupada, mas ela não compreendeu e ficou encarando ele esperando uma outra reação, mas Bruno desistiu revirando os olhos azuis.
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— Por que não vão ver televisão enquanto eu termino aqui? — o pai sugeriu uma ocupação para os dois. Bruno suspirou vencido. Guiou Julia até a sala do lado, onde havia um confortável sofá de couro, um tapete branco no chão de madeira e uma televisão enorme, rodeada por aparelhos de som e de vídeo. — Fica à vontade. — Como é que chama o seu pai? — perguntou ao se sentar. — Carlos. — Bruno ligou a televisão com o controle remoto e se sentou ao lado dela. O nome remeteu para o livrinho vermelho que estava em seu bolso. Julia enfiou a mão para pegar o livro e devolver para ele, mas não estava mais lá. Ih, será que tinha perdido? Se tivesse perdido, Bruno ficaria irritado? Resolveu não falar nada sobre o livro naquele instante, depois procuraria na rua o diário mórbido do menino e o devolveria. — Ele parece legal. — a garota comentou, pela falta do que dizer. Bruno a olhou com curiosidade, tentando entender como Julia chegou àquelas conclusões, especialmente que sabia que de legal o seu pai não tinha nada, mas Julia parecia entretida com o programa de televisão, que havia sintonizado no noticiário popular e exibia desgraças o tempo todo. Naquele instante, uma senhora de sessenta anos ou mais exibia um hematoma na cabeça e um olho roxo, consequências de um assalto. — Puxa vida! — Julia comentou ao ouvir a senhora chorar em rede nacional. — Dá pra imaginar que fizeram isso com uma velhinha? Coitada! Quem seria capaz de fazer algo assim? — A crueldade faz parte do ser humano, bem como o ódio. — Bruno comentou com indiferença. — O mundo anda assim... — Você não sente pena dela? — Deveria? O que se tem é resultado do que se merece. — Tá dizendo que ela mereceu ser espancada? Ela é uma senhora de idade, nem pôde se defender! — e Julia juntou os
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cabelos castanhos, enrolando-os e jogando-os por cima do ombro como fazia sempre que subia na bicicleta. Por um instante, Bruno a percorreu com os olhos, foi a primeira vez que se deu ao trabalho de fazer isso. O cabelo de Julia era ondulado e castanho de verdade, não tinha nenhum pigmento de tinta colorida e ela também não usava esmalte, embora tivesse as unhas bem feitas. Era diferente de todas as meninas que ele costumava conversar e normalmente, manteria distância de garotas bonitas assim. Ela o encarou de volta, desafiadoramente, o olhar da menina trazia uma certa revolta com o que tinha acontecido com aquela mulher entrevistada e Bruno teve a impressão de que se Julia encontrasse os ladrões, bateria neles só para se vingar do que fez com a senhora, ou até algo pior como uma tortura chinesa. Aquele olhar que ela tinha era de pessoas que não pensariam ao praticar o que chamavam de “justiça com as próprias mãos”. Mas era só vingança. Aquele sentimento que hora te daria força, ao estar regado em ódio e em outro momento, destruía a sua alma, corroendo-a com remorso. Nietziche mesmo havia dito, “Na vingança e no amor, a mulher é mais bárbara que o homem”. O problema era que as pessoas costumavam confundir a vingança com senso de justiça e por isso, concluíam equivocadamente que poderiam se vingar e que, se o fizessem, não sofreriam consequências por isso. Ele, mais do que todas as pessoas sabia disso. E por isso, sabia também a diferença de vingança e de justiça. — Devia ser uma vovózinha super simpática e daí esses homens a atacaram por causa de uns trocados... bando de drogados! Se eu pego eles na rua eu-— Você não sabe o que ela já fez de correto ou errado na vida, não pode alegar que ela era boa só porque a tevê resolveu mostrar uma parte da verdade. — Bruno retrucou cortando-a. Uma justiceira, era o que Julia achava que seria... quando na verdade apenas se afundaria em sofrimento.
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Julia experimentou um momento de silêncio, ponderando o que ele havia dito e olhando para ele quase incrédula de que ele havia, de fato, dito algo assim. — Realmente não posso dizer que a mulher era santa, mas você também não pode dizer que ela era má! — Não disse isso, apenas disse que se aconteceu, foi porque ela mereceu de alguma forma. — sentenciou, como um verdadeiro cárcere, enquanto repousava a cabeça na mão. — Isso foi muito doentio! — Julia cruzou os braços. — Doentio é pensar que esse tipo de coisa aconteça com pessoas boas! — retrucou. — Você acha o quê? Que Deus se vinga? Que castiga pelos pecados que as pessoas cometeram? Que sei lá, só porque ela não pagou o dízimo, Deus mandou os ladrões irem lá roubá-la? — Eu tenho certeza que Deus não teve nada a ver com isso. — Você não acredita em Deus? — Ao contrário. Acredito que antes de tudo, havia o caos. — Para encerrar o assunto, Bruno mudou o canal para um desenho animado. — Acredito na crueldade. Ela está dentro das pessoas. Julia ficou quieta. Aquelas palavras pareciam um enigma para ela. Bruno dizendo aquelas coisas daquele jeito como se nem se importasse com a senhora era algo bizarro, mas considerando que isso vinha de um garoto que nomeara seu gato de Lord Byron... Resolveu não dizer mais nada, considerando-o um garoto muito esquisito, o que naquela altura, já não era nem novidade. Bruno ficou quieto também, mas seus pensamentos eram outros: achava bonitinho que Julia acreditasse em um mundo corde-rosa, mas ele já sabia que aquela visão era apenas a de uma pessoa ingênua demais, daquelas que se recusa a acreditar que o mundo é só isso: crueldade e nada mais. Pessoas assim, eram sempre um alvo fácil... †
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A faca caiu no chão debatendo-se como um peixe que pula para fora do aquário. Bruno estremeceu de susto e Julia olhou para ele intrigada. — Eu pego outra para você. — Carlos falou para Isabela, que já se esticava para pegar aquela faca que derrubou no chão. Ele foi até a cozinha e rapidamente voltou com outra faca limpa. — Obrigada! — a mulher agradeceu, usando vestido social. Eles estavam jantando juntos e conversando sobre trivialidades da vida que incluiam o clima, o trânsito na cidade e as notícias da primeira página do jornal. Carlos olhou no relógio de pulso enquanto se sentava na mesa novamente e servia-se de mais suco de goigaba. — Oito e quarenta, — avisou em voz alta e na sequência olhou para seu filho, que já havia terminado de comer. — Lave seu prato e vá pro quarto, não fique pensando que vai escapar do castigo só porque tem visitas. Hoje ainda é quinta. Sem dizer nada, Bruno fez conforme ordenado. Levantou, retirando suas coisas da mesa e entrou na cozinha. — Sua filha não te dá muito trabalho, dá? — Carlos perguntou sem se importar com o fato de que Julia estava bem na frente deles. — Julia é uma ótima menina. E o seu filho? Muitos problemas? — Isabela deu um gole no vinho que Carlos abriu para eles. Julia revirou os olhos porque ela estava se intrometendo no assunto dos outros. Eles iam mesmo conversar disso na frente dela?! — Eu devia ter batizado ele de “problema” ao nascer. — Carlos riu, mas depois consertou o que estava falando. — Piorou quando a mãe dele saiu de casa. — Foi um divórcio muito cheio de brigas? Eu sou divorciada, sabe? Fizemos um acordo para não haver brigas, acho que isso só piora tudo para os filhos. — É mesmo? — Carlos pareceu interessado. — Não nos divorciamos. Ela saiu de casa e nunca mais voltou. Não sei nem se
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está viva... — a voz chateada, o olhar bem sério. Ele se recostou para trás na cadeira e deu um gole em seu suco, pausando um minuto para respirar. — Tem quase um ano, mas parece que foi ontem. — Poxa vida, eu sinto muito. — Isabela esticou o braço para tocar no ombro de Carlos, consolando-o. — Se precisar de alguma coisa, qualquer ajuda... de verdade, estou aqui ao lado. Julia reparou que Bruno estava demorando na cozinha, provavelmente escutando o que eles estavam falando de longe. Juntou suas coisas e foi na cozinha, mas ainda escutou Isabela perguntar se Carlos já havia tentado colocar Bruno em terapia. Quando entrou na cozinha, achou Bruno encostado na pia de braços cruzados e em silêncio, com o olhar perdido em lugar nenhum, era a personificação da mágoa. O prato já estava no escorredor, bem como o copo. — Tudo bem? — Julia perguntou ao se aproximar dele, mas não precisava ouvir a resposta para saber que ele não estava bem. Ele não respondeu. Pegou o prato e o copo da mão dela, virando-se para lavar. Abriu a torneira e pegou a bucha. — Se quiser conversar... — Não quero. — Pode ajudar se desabafar, sabia? — Desabafar não vai mudar o que aconteceu. — Mas pode mudar o que vai acontecer... — Não vou chorar e nem me suicidar se é isso que você está pensando. — ele colocou o prato no escorredor e virou para ela com aquele olhar de facadas. — Foi melhor para ela o que aconteceu, não me arrependo. — Melhor? — Ela era muito infeliz com a vida que tinha. Agora está livre. — pegou o copo para lavar. Livre. Julia se prendeu nessa palavras. Por acaso aquela anotação sobre “Gisela”, que ela leu quando a agenda dele caiu no chão bem aos seus pés, seria sobre a mãe de Bruno? Deveria ser
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horrível ver a sua mãe deixar sua casa e não te levar junto, ele devia sofrer tanto com isso... Sem pensar, Julia agarrou o braço dele, na intenção de dar apoio, de mostrar que ela estava ali, da mesma forma que sua mãe fizera com Carlos na sala, mas Bruno assustou e acabou soltando o copo que caiu no chão espatifando-se e espalhando os cacos pelo chão. — O que você fez? — Bruno virou para ela irritado por causa do copo. — Desculpe, você que soltou o copo, foi mal! Não quis te assustar, você sempre fica levando sustos do nada... parece um hamster! — Bruno?! — ouviu a voz de Carlos chamar da sala, bem como o arrastar da cadeira. — Droga. — Bruno se abaixou para juntar os cacos de vidro rapidamente. Já sabia o que ia acontecer mesmo antes de acontecer. Carlos entrou abrindo a porta da cozinha: — O que foi isso? — o homem perguntou e andou na direção deles. Julia estava olhando para a forma como Bruno juntava os cacos, cheio de pressa. — Nada, eu... — ele ficou em pé e jogou os cacos de vidro na lixeira que ficava ao lado da pia. — quebrei um copo. Só isso. — Só isso? — A mão de Carlos alcançou a camiseta de Bruno e com um puxão, o arrastou da pia com violência. Julia abriu os olhos bem assustada, vendo como Carlos estava sendo bruto, segurando no filho daquela forma. — Vai já pro seu quarto antes que você quebre a casa inteira, seu marginal. — falou com a voz de trovão, bem alta, empurrando o filho na direção da porta. Bruno saiu depressa e Carlos virou-se para Julia, agora o rosto exibia uma expressão muito mais tenra, como a de um pai preocupado: — Você se machucou? — Eu estou bem... está tudo bem. — ela falou e deixou a cozinha também, com medo dele.
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Talvez Carlos não fosse tão legal assim. † Julia acordou com o estrondoso barulho de algo se quebrando. O som parecia uma batida de carro e ela imediatamente ficou de pé, andando até a janela que estava aberta, para olhar o que havia acontecido. Só com a cabeça para fora, foi que se tocou que não daria para ver nada na rua, já que sua janela dava para os fundos da casa, o contrário de sua antiga moradia. Olhou para dentro do quarto e constatou que eram mais de meia noite marcada em seu relógio, mas que as casas ao redor estavam acesas, inclusive, a de Bruno. Ouviu vozes, alguém brigando. Mais barulho de coisas se quebrando, vidros, talvez. Já que não sabia de onde vinha, resolveu imaginar o que era. Provavelmente por ali na vizinhança, um casal descobria uma traição. Igual como aconteceu na sua casa, no mês passado. É. Sua mãe falou que havia sido um divórcio sem brigas... ela tinha razão, os papéis do divórcio e a divisão de bens foi bem pacífica, mas seus pais brigaram antes dele, brigas barulhentas e complicadas, dramáticas toda vez que Clayton chegava tarde demais do serviço ou com marcas de batom na gola da camisa. Uma vez Isadora com muita raiva destruiu uma televisão, enquanto seu pai, Clayton, apenas pedia desculpas... mas ele que nunca largou a amante e estava atualmente casado e morando em outro estado. Havia destruído não apenas com o coração de Isabela, mas o de Julia. Julia culpava em parte seu pai e em parte sua mãe, pois ela nunca estava em casa e desmarcava com frequencia as viagens de família por causa de reuniões do trabalho. Isabela era uma executiva de sucesso, ganhava mais que o marido e agora tinha a infelicidade de pagar pensão para Clayton e sua amante, quer dizer, esposa.
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Seus pensamentos foram interrompidos quando Lord Byron pulou pela janela lançando um miado pelo quarto silencioso. — Miiiiiiiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuuu! — Shhh, a minha mãe está dormindo! — e o gato olhou para ela curioso. Julia o afagou e depois voltou para dentro do quarto, sentando-se na cama. Em cima do seu criado mudo estava o diário, agenda ou sabe-se lá, de Bruno. Ela passou os dedos pelas folhas de um lado para o outro e depois, parou na página que era marcada pela fita de cetim, vazia. Era quase um convite para escrever alguma coisa... mas escrever o quê? Aquela agenda não era dela e o melhor que ela fazia era não escrever nada lá. Fechou o livro e o colocou para dentro da mochila. No dia seguinte, a primeira coisa que faria seria devolver aquela agenda para seu dono. Deitou-se na cama de novo. Lord Byron pulou para lá e ficou em cima de seus pés, esquetando-se e ronronando lentamente. Julia dormiu.
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04 SEXTA-FEIRA 13 † Bruno se olhou no espelho mais uma vez, tentando colocar a franja na frente do olho, mas não conseguia decidir o que era pior: aparecer com um visual emo ou de olho roxo em plena sexta-feira na escola. Não estava inchado, pois logo fez compressa com gelo, mas não impediu de ficar escuro. Por sorte, o soco que levou não foi bem em cima dos piercings que tinha entre os olhos, porque isso sim iria doer! No fundo, ele não ligava para a dor, até achava bom quando sentia, porque ao menos sabia que ainda estava vivo e a sensação de estar descendo por um ralo em espiral diminuía. Ele podia, inclusive, sentir os seus pés bem no chão, ao invés de flutuar por aquela lama negra que chamava de “vida”. Mas um olho roxo, simplesmente seria difícil de explicar! Tirou as argolas do lábio de baixo colocando-as sobre a bancada de mármore da pia do banheiro de seu quarto. Com os dedos, puxou a boca para a frente e pegou em cima da pia um alfinete já estava aberto. Encostou a ponta afiada na pele, sentindo o arranhão do lado esquerdo, entre dois furos de piercing. Forçou a agulha contra a pele e furou a boca devagar. Aaaai! Parou um instante, ajeitou os dedos no alfinete e enfiou mais um pouco a agulha. Dessa vez doeu menos e ele transpassou para o outro lado, furando-se. Rodou o alfinete dentro do furo de um lado para o outro, passou álcool ao redor e esperou um instante com o alfinete na boca.
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Retirou o alfinete passando a jóia logo em seguida. Escolheu um twist preto, sem se importar com o fato de que provavelmente sua boca incharia por uns três dias. Ia doer. Tudo bem. Sobrou só a leve ardência e o esquentar da pele, mas ele estava suando por causa da dor da agulhada. Os furos que já tinha ele colocou lebrets com spikes. Suspirou com resignação, olhou-se pela última vez no espelho. Olho roxo. Tentou esconder com sombra preta, mas ficou parecendo um guaxinim, por isso, lavou o rosto tirando a maquiagem e pegou um óculos escuros para se esconder por detrás das lentes negras. Não era a melhor solução, mas não tinha jeito. Deixou tudo o que usou em cima da pia, as argolas, o alfinete e os algodões. Saiu do quarto e fechou a porta enquanto passava a alça da bolsa de carteiro pelos ombros. Desceu as escadas e passou pela porta, sem se preocupar em bater. Carlos não estava em casa. Havia saído depois do soco, dirigindo feito um louco e provavelmente voltaria para casa só de noite, ultra-super-hiper arrependido e querendo viajar no final de semana ou quem sabe, comprar algo muito caro para seu filho, com a única intenção de compensar o que fez. Isso não mudava o fato de que tinha um olho roxo, não é? — Ei! — a voz de Julia soou logo ali ao lado, fazendo-o estremecer de susto, despreparado para aquele encontro. Ele virouse para ela, que tinha um sorriso tímido no rosto, mas não perdeu a mania de assombrar como se fosse um poltergeist. — Eu não sabia que horas você saía, estou aqui desde bem cedo. Minha mãe tem uma reunião do outro lado da cidade... será que você podia me dar uma carona hoje? — Tudo bem... — ele concordou indigesto. Ajeitou o óculos no rosto, o pior dia para que ela precisasse de carona logo pela manhã. Foi andando até a porta da garagem e apertou o dispositivo do chaveiro. Reparou em Julia, que estava uma gracinha com os
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cabelos metade soltos e metade presos com um coque preso com lápis de cor lilás, mas ele não conseguiu sorrir. — Dormiu bem? — Aham. — ficou esperando a porta abrir. — Não está um pouco escuro para você estar de óculos? — Julia perguntou curiosa. Bruno não sabia o que responder e por isso, resolveu não responder nada. Tirou sua bicicleta Schwinn da garagem e fechou a porta pelo dispositivo novamente, enquanto subia na bicicleta. Julia entregou para ele sua mochila e no momento em que ele estava de mãos ocupadas ajeitando a alça em seu ombro, ela puxou os óculos e os vestiu, fazendo pose de brincadeira. Bruno queria entender por que as meninas tinham essa mania idiota de pegar coisas e usar. Anéis, braceletes, óculos... tudo elas pegavam para chamar atenção! Ele normalmente não se importaria, mas, normalmente também não teria um olho roxo. Ele viu o momento em que Julia entrabriu os lábios, provavelmente surpresa em ver o que ele estava escondendo. Será que ela ia gritar? — Meu Deus! — exasperou-se quase sem ar. Tirou o óculos e devolveu para ele, com os olhos arregalados, sua mão elegante e delicada sobre a boca. — Desculpe. Bruno não disse nada em resposta, pois sabia que ela estava pensando que o olho roxo tinha sido causado pelo punho duro do seu pai... e estaria certa! Bruno recolocou os óculos, ajeitou a mochila nas costas e ficou esperando a menina. Julia sentou-se calada na bicicleta. Ele pedalou, esquecendo de pegar os fones no bolso ou até mesmo ligar o iPod. O único barulho que eles escutavam era o da rua, os pneus dos carros no asfalto, as pessoas falando entre si e as padarias abrindo suas portas. Em outro momento, Bruno simplesmente faltaria na escola, mas o único pensamento sólido em sua cabeça era que Julia precisava de carona... o mundo ao redor, por sua vez, parecia derreter.
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Chegaram na porta do colégio. Era cedo, mas muitos alunos já entravam pelo pátio. Bruno entregou a mochila para Julia e se abaixou para prender a corrente na roda com o cadeado. Quando se levantou, foi que Julia corajosamente cortou o silêncio entre eles: — Não vão deixar você assistir aula de óculos. — Não vou assistir aula. — Vai fazer o quê? Ele deu de ombros e colocou as mãos no bolso. Ainda não sabia. Julia se preocupou com aquele silêncio especialmente quando o viu comprimir os lábios. Sempre teve a impressão de que ele estava se fechando para o mundo, mas constatar os reais motivos para aquilo foi inesperado e isso pedia que ela tomasse atitudes inesperadas. — Eu tenho uma ideia melhor, vem. — e puxou ele pela manga do casaco, atravessando o pátio da escola. Bruno se deixou levar, muito mais pela inércia e incapacidade de saber o que fazer do que pela vontade de seguir com ela. Entraram no banheiro feminino perto da biblioteca. — O banheiro feminino? — ele não entendeu. — Ninguém nunca vem aqui, fica tranquilo. — Julia o conduziu até um dos Box. — Senta aí! — Pra que? — ele perguntou desconfiado, mas sentou-se no vaso como ela mandou. Julia tirou sua mochila e a colocou no chão entre as pernas dele, abriu o zíper e tirou de lá uma necessaire lilás que entregou para ele segurar. — Vamos dar um jeito nisso agora, para ninguém ver. Confia em mim. — e tirou os óculos dele, Bruno levantou seus olhos azuis para ela e seus olhares se grudaram em um mundo de estática, por um instante foi como se eles estivessem boiando sozinhos no ar. Aquela foi a primeira vez que Julia viu emoção nos olhos dele, sentiu as pernas começarem a tremer, como se estivesse
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ficando franca, mas era apenas tristeza: Bruno estava tão chateado que ela teve vontade de chorar por ele. Não conseguia nem imaginar como seria se sentir daquele jeito, era tão injusto! Ele não estava de sombra preta naquela manhã o que deixava seus olhos mais azuis e menos glaciais de uma forma quase natural. No fundo, ele era apenas um garoto normal. Não normal de tedioso, mas de tangível. Ela ergueu os dedos finos e delicados para tocar no rosto dele, para ter certeza de que ele existia daquele jeito e que não era uma miragem: A maciez da pele, o calor do rosto, a umidade daquela lágrima que escorria reprimida por sua bochecha em uma só gota. — Está doendo? — perguntou com a voz vacilante, afogada em emoção. Os fios negros e lisos, tão macios do cabelo dele, entrelaçados em seus dedos. Ele comprimiu o canto dos lábios em resposta, agora ela já sabia o que isso significava. Os piercings estavam diferentes, ela reparou, os lábios perfeitos um pouco inchados. — Um pouco. — ele confessou, por fim, desviando o olhar. — Tomarei cuidado. — Julia pegou a necessaire e abriu, colocando-a aberta no colo de Bruno. Ele viu o que tinha dentro da bolsinha lilás: cosméticos femininos, uma escova de dentes, pasta, maquiagens. Coisa de menina, mas organizado, tudo em seu devido lugar encaixado como um quebra cabeça. — Não imaginei que você fosse o tipo de garota que usava maquiagem... — ele remexeu no conteúdo da bolsinha lilás, curioso e desorganizou tudo. — Não somos todas? — ela riu com a estranha capacidade de sorrir mesmo em um momento daqueles. — Eu tenho, mas quase nunca uso. — Julia deu de ombros e pegou o pó compacto e a base. — Acho meio esquisito passar essas coisas na cara e vir para a escola. Ainda que fosse um desfile de moda... quer dizer, desculpe, eu sei que você usa aquela sombra preta, mas não foi isso que eu quis dizer. — ficou roxa de vergonha por causa da gafe.
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— Não tem problema. — ele a respondeu. Achava que Julia era bonita mesmo sem maquiagem. — Não gostaria de te ver de batom preto e pó branco na cara! — Achei que você gostasse de garotas com batom preto e pó branco. — Julia o provocou. Bruno não respondeu, voltando a se calar. Diante de seu silência Julia segurou em seu queixo para colocar a cabeça em posição correta. Ela passou a base bem devagar, para não machucá-lo, constatando que o tom de pele dele deveria ser mais escuro que o dela, já que a base corretiva ficou mais clara do que devia. — Você não bateu a cabeça no armário, bateu? — perguntou enquanto usava seu talento de maquiadora. Passou o pó compacto para uniformizar a cor. Guardou os dois cosméticos na necessaire e pegou um estojo de sombras. — Não. — Sinto muito. — Não sinta. — Claro que sinto. O mundo é muito injusto e você não merece nada disso. — Julia abriu o estojo de sombras e olhou os quadradinhos coloridos, escolhendo os tons corretos de brancos, bege e bronze para igualar os dois olhos dele. — A verdade é que mereço. — Você acha isso? — Julia parou a maquiagem que estava fazendo, ergueu o corpo e olhou para ele. — Com certeza não merece, agora fique quieto senão vou borrar. Escolheu um cinza escuro, o mais próximo do que ela tinha de uma sombra preta, para deixá-lo com o mesmo ar de sempre, sem levantar nenhuma suspeita. — Pronto, é só você não ficar passando a mão no olho, caso contrário vai sair. — e virou o estojo com o espelho para que ele pudesse ver. — Ficou meio Bill Kaulitz mas ficou bom. — Credo... — ele reclamou discordando dela. — Ao menos você podia agradecer, né! — Julia pegou a necessaire fechando-a e guardando o estojo de sombras.
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O sinal bateu, anunciando o início da aula. — Obrigado. — colocou os óculos escuros no rosto e ficou em pé. — Mas acho melhor eu dizer que estou com conjuntivite do que aparecer com essa cara borrada, ein! — Ah, é... bem, isso também pode funcionar. — Julia se sentiu boba por arrastar o garoto até ali a toa. — Eu tô brincando, tonta. — Você brincando? — ela riu em provocação e um misto de surpresa. Até então ele nem falava mais de três palavras e agora, já até brincava! — Nossa, desse jeito eu vou ficar torcendo pra você levar sempre um desse por semana pra ficar com um parafuso a menos! — Não precisa torcer, eu vou levar. — Ei, isso não foi legal de você dizer. — o sorriso da garota sumiu imediatamente. — Por que não? — Porque não quero que isso aconteça de novo. — Ela guardou a necessaire na mochila e seus dedos esbarraram na borda da agenda vermelha, ela tirou o objeto lá de dentro. — A propósito... a sua agenda... — estendeu para ele enquanto colocava a mochila nas costas. — Eu não peguei, juro, deve ter escorregado na minha mochila ou alguém deve ter colocado. Bruno congelou quando viu aquele livro vermelho nas mãos de Julia. Era o mesmo livro que ele guardou na gaveta do seu quarto no início da semana. Pegou a agenda das mãos dela. — Você leu? — Eu li. — e ficou roxa de vergonha. — Desculpe por bisbilhotar. — Escreveu algo nele? — Não, por que eu ia escrever se é seu? Ele respirou em alívio, guardou o livro no bolso da sua bolsa de carteiro mesmo que soubesse que em segundos, o livro apareceria de volta na mochila dela como mágica. Virou-se para Julia e a segurou no ombro direito, um toque firme. — Promete que não vai escrever nele?
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— Prometo. — ela deu de ombros. Revirou os olhos e podia até escutar Gabi dizendo “es-qui-si-to!” em sua cabeça. Pegou a mochila colocando-a nas costas. — Vamos pra sala, ou vamos ficar pra fora. † Foi no intervalo que Priscila sentou ao lado de Bruno. Julia viu de longe, enquanto comia a sua maçã e segurava vela para seu casal favorito, que se amassava em beijos bem do seu lado. Priscila era bonita, mesmo de um jeito esquisito, um pouco mais alta que Bruno, bem magra e tinha um rosto delicado que se escondia por trás daquela máscara de Halloween. Ela se sentou ali com um sorriso no rosto e ele se assustou, como fazia sempre que algo brusco acontecia ao seu redor. Bruno olhou para Priscila por dentro dos óculos escuros. Ela sorriu e puxou seus óculos, do mesmo jeito que Julia fizera logo cedo. Ele pegou de volta e ela puxou um dos fones dele. — Hoje é sexta-feira treze, nós vamos para a casa da Dê depois da aula ver filmes de terror. Quer ir? Bruno não respondeu e colocou de novo seus óculos escuros agradecendo mentalmente à Julia que pareceu prever a situação. Priscila reparou em seu novo piercing, o lábio inchado e segurou em seu queixo. — Nossa, está super inchado e... — Não encosta em mim. — Ele se desvencilhou dela virando o rosto para o outro lado, segurando suas mãos longe dele. Em sua concepção o maior problema de Priscila não era achar que eles ainda tinham um relacionamento, mas a mania de ficar grudando como um pedaço de chiclete mascado, isso sim irritava mais que tudo. — Credo, Bruno, só quero ajudar! — Não pedi sua ajuda. — Tá, tudo bem! — ela cruzou os braços brava e vencida. — E a casa da Dê? Você vai?
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— Não vai dar. — respondeu irritado. — Por que não? — Vou levar a Julia para casa. — Todo mundo vai, você tem que ir! — e segurou no braço dele, fazendo voz de criancinha. — Já falei para não encostar em mim. — ele se soltou de novo e ficou em pé. — E então é isso? Vai levar a “Julia” para casa ao invés de sair conosco? — Priscila ficou em pé também, berrando. Os amigos góticos viraram-se para olhar a cena um pouco incrédulos e quem não era gótico, mas estava passando por ali, pareceu mais incrédulo ainda, alguns estenderam o celular filmando. — É. — Ouviram isso, gente? Ele não vai com a gente ver filme porque prefere levar aquela patricinha para casa! — Priscila fez cena. — Vê se cresce. — Bruno afastou-se de Priscila, atravessou todo o pátio e parou na frente de Julia, que naquele momento estava totalmente boquiaberta e tinha escutado a briga. Bruno colocou as duas mãos no bolso. Gabi e Nando que já haviam cessado o beijo entre eles e agora encaravam o garoto com cara de espanto. — Bruno, volta aqui! — Priscila gritou ainda, mas ele já estava na frente de Julia. — Estou indo embora. — Bruno avisou para Julia e virou-se para sair. — Espera! — Julia o segurou com as duas mãos, roçou sem querer a maçã na manga da jaqueta. Bruno não se assustou dessa vez, parou esperando o que ela tinha para dizer. — Eu vou com você. — Cê tá doida? — Gabi se intrometeu, mas Nando segurou em seu rosto e a encheu de beijos, para que ela parasse de atrapalhar. — Pera aí, Nando.
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— A aula é sempre um saco mesmo. — Julia resmungou e lançou um sorriso de cúmplice para Bruno. Juntos, atravessaram o pátio e voltaram para a classe rapidamente, apenas para pegarem suas coisas. Julia juntou tudo dentro da mochila e encontrou com Bruno no corredor. — Eu te criei problemas? — Não... — ele sorriu. — Você me ajudou hoje cedo, lembra? — Quis dizer com a Priscila... estava rolando algo entre vocês e... — Não tem nada rolando entre a gente, já te falei isso, não falei? — Bruno impacientou-se. — Falou mais ou menos, porque desse jeito que você fala revirando os olhos o tempo todo, não explica nada a ninguém. — Ficávamos juntos de vez em quando. Eu e a Priscila, quero dizer. — Bruno por fim contou, sentindo-se como se estivesse devendo aquela explicação para ela, já que Priscila fizera questão de deixar claro que o problema eram as caronas e, mais precisamente, Julia. — Mas já passou. — E o que aconteceu para passar? — Pessoas mudam, sentimentos mudam. Sei lá, acabou. — Você gosta dela? — Julia perguntou curiosa. Ela não queria perguntar, mas não aguentou. Não depois de vê-los juntos daquele jeito. — No passado, gostei. Passado. A palavra reverberou na cabeça de Julia. Meu Deus, por que ele ficava se esquivando das perguntas? Era quase como se quisesse esconder alguma coisa! E além do mais, por que ela ficava pensando nisso? E a resposta a atingiu com força: estava enciumada do relacionamento dele com Priscila; o que era surpreendente. — E como era o namoro de vocês? — Julia perguntou de forma investigativa. — Não foi um namoro. E qual o grande interesse afinal? — Só estou curiosa... e preocupada...
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— Não fique. Para evitar os olhares curiosos pelo pátio, eles saíram pelo outro lado do prédio que dava ao parquinho do pré-primário. Pularam pelo portão pequeno que vivia trancado com um cadeado e foram até a cerca atrás do roda-roda. Bruno segurou a ponta e abriu um pedaço, revelando uma falha na segurança escolar, ou uma passagem secreta para a rua. Julia passou primeiro a sua mochila e depois engatinhou pela abertura na cerca até o outro lado. Ali dava para um pequeno morro cercado por árvores, que dava acesso à rua de trás. — Agora sei como você faz para sumir depois das provas! — É... vem, vamos descer. — Bruno desceu primeiro e ajudou Julia estendendo a mão e dando apoio para que ela não escorregasse pela terra. — Temos que dar a volta e pegar a minha bicicleta. — Onde vamos? — Vou te deixar em casa. — E onde você vai? — Ainda não decidi. — Posso ir junto? — Por que você quer ir junto? — Está um dia ensolarado, apesar do frio e ainda são só dez horas. — Julia justificou-se como se a explicação fosse a mais plausível. Bruno ficou calado olhando para ela. — Posso ir? — Pode, mas onde você quer ir? — Qualquer lugar que você queria ir, está bom. — Certo. — E ao invés de continuar subindo a rua para chegar à esquina da escola, ele retornou por onde veio. — Vai voltar para a escola? — Julia não compreendeu. — Não, para onde vamos não dá pra ir de bicicleta, nós vamos de ônibus. — E onde vamos? — Você disse qualquer lugar, então quando chegar lá, você vê. — ele falou com um sorriso de diversão.
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Julia sorriu também. Podia se aventurar nessa. Era até divertido! † Ao chegarem na porta do Cemitério da Consolação, Julia pensou que já devia ter imaginado em que tipo de programação se metera ao se convidar para passear com Bruno, o único gótico de sua turma. — Bem sua cara, especialmente em uma sexta-feira 13. — ela comentou, Bruno virou para ela tirando os óculos. — Vamos rezar ou invocar um demônio? — Tá brincando? Aqui dentro estão obras de arte bem famosas. — De gente morta? — Não, esculturas tumulares, obras de Bruno Giorgi, Victor Brecheret... Rodolfo Bernardelli... — Quem? — Achei que você tinha dito que gosta de desenho e outras artes... — ele lançou um olhar enviesado. — Eu gosto. Cinema, por exemplo. — Não gosta de esculturas? — Eu gosto de Auguste Rodin. — Tem obras de Francisco Leopoldo e Silva, que inicialmente teve grandes influências de Rodin aí dentro. E também no parque Trianon. — Sério? — Julia se surpreendeu. — Para mim, eram apenas estátuas de jardim. Bruno riu, ela riu também. — Vem, vamos entrar e eu te mostro umas esculturas bem legais. — falou entrando pelos portões abertos do cemitério. Julia o seguiu. Lá dentro visitaram túmulos de alguns famosos como Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e da pintora Tarsila do Amaral, uma artista que Julia considerava
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incrível e cujo mausoléu era familiar, com três cruzes na frente e feito de granito. Julia achou muito simples para uma artista que representou tanto no Grupo dos Cinco, responsável pelo movimento artístico da famosa Semana de Arte Moderna. Eles viram obras de Francisco Leopoldo e Silva, que eram dois nus femininos esculpidos em granito e mármore, o “Grande Anjo” de Victor Brecheret, e muitas outras que Bruno não sabia de quem eram. Julia não resistiu em pegar seu bloco de desenhos para replicar as obras mais belas com seus lápis, enquanto contava que nunca fizera um curso de desenho mas que pretendia cursar Artes Plásticas, se sua mãe deixasse. Ao fim do tour cultural pelo cemitério, estavam andando até a Av. Paulista para comer um sanduíche, mas ainda conversavam sobre poetas, vertentes literárias e gente morta. — E Àlvares de Azevedo não era gótico? — Julia perguntou. — Romantismo, na verdade. — Mas ele não tinha influências de Lord Byron? — E também de Alfred Musset e Goethe, por sinal. Mas Lord Byron era do Romantismo. — Não era gótico? — Se você considerar gótico apenas algo que fale sobre morte, um ou outro poema talvez. Em algumas obras, a morte é bem presente tanto em Byron quanto em Álvares de Azevedo. — E onde está enterrado Àlvares de Azevedo? — Rio de Janeiro. — Ih... eu nunca iria para lá! — Por que não? — Pelo que mostram pela televisão o estado está em guerra civil! — E você acredita em tudo o que passa na televisão? — Não em tudo, mas também não acho que eles mentem tanto assim. Eu não me arriscaria em ir até lá só para ver o túmulo de um poeta que já morreu. — Você é medrosa.
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— Talvez eu seja. Mas todos nós temos nossos medos. — eles pararam na frente de uma lanchonete americana e entraram. Quando Julia foi pagar o seu lanche, reparou que a agenda vermelha de Bruno estava dentro de sua mochila mais uma vez. Mas como? Lembrava-se de que já tinha entregue para ele e que ele havia guardado em sua bolsa. Seria mais um erro na “Matrix”? Pagou seu lanche, andou com a bandeja para a mesa em que Bruno já se sentara e sentou-se ao lado dele, dividindo o sofá, a mochila ela deixou no sofá da frente, junto com a bolsa dele. — Ei, você colocou a sua agenda de novo na minha mochila? — perguntou enquanto balançava o livro vermelho e abria o canudo para colocar em seu refrigerante. — Não. — ele mastigava uma batatinha e o sal ardeu na ferida recém-adquirida por onde passava um piercing. Ele teve que beber o refrigerante e fez uma careta de dor. — Alguém colocou. — Não fui eu. — Bruno deu de ombros. — Além do mais, essa agenda é sua agora. — Minha? — ela fez a cara mais esquisita do mundo, com um sorriso meio torto tentando entender a maluquice que ele estava dizendo. — É sua, tem a sua letra aqui. — Foi minha, até talvez... terça-feira. — ele explicou. — Mas agora ele escolheu você. — Ele quem? — O jinn. — Quem? — e a careta dela ficou ainda pior. Bruno suspirou, soltou a batatinha que estava segurando e achou melhor explicar antes que ficasse tudo mais confuso ainda. — Você sabe o que é um Djinn? É uma lenda da mitologia árabe pré-ilsâmica que originou aquele mito do gênio da lâmpada de Aladdin, conhece? — Sim, da Disney. — O original é do livro As Mil e uma Noites, que são contos populares de Xerazade.
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— O que você é, uma enciclopédia literária? — Julia estava impressionada com os conhecimentos em literatura de Bruno, afinal, ele estava na Classe D, de derrotados, ou seja, suas notas ficavam entre 5 e 6 na média escolar no máximo. — Vamos nos concentrar na história dos Djinns, ok? — Ok! — ela pegou o sanduíche para comer enquanto ele falava. — A palavra em árabe é “jinni” com dois “n” e refere-se à uma raça de criaturas sobrenaturais criadas por Deus antes dos homens. Um “jinn” ou “Gênio” na tradução livre é o equivalente a um espírito guardião na mitologia árabe. Foram criados para serem uma classe equivalente de Anjos, mas ao contrário destes, um “Djinn” possui livre arbítrio. — Hm. — Julia fez um som para dizer que estava acompanhando, enquanto espalhava catchup em cima de seu sanduíche com cheddar, coisa que Bruno achava um gosto pra lá de esquisito, mas preferiu abster-se de comentários. — O Alcorão menciona que um Djinn é um espírito de fumaça ou fogo, que podem ser de natureza boa, má ou neutra. Em alguns escritos eles separam os Djinns em diversas classes como Marid, Ifrit, Ghul ou Si’la. De qualquer forma, há diversas contradições a respeito disso, mas o que você precisa mesmo saber é que, independente do tipo de Djinn que ele seja, ele pode realizar desejos para os humanos se aprisionados e utilizados de forma correta. O problema está em saber mexer com eles... — O que isso tem a ver com a sua agenda? — Julia perguntou de boca cheia. — Não é uma agenda, é um Livro de Djinn. Escreva qualquer desejo nele e vai acontecer. — Bruno respondeu. — Mas de verdade, não escreva. Não nessa ao menos. Julia era uma menina inteligente, por isso, ligar os pontos da história não foi tão difícil. Bruno estava dizendo que aquela agenda vermelha tinha um Djinn dentro e que ele realizava os desejos por escrito, era basicamente uma lâmpada de Aladdin! Ela começou gargalhar.
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— Ah, você não pode estar falando sério. Que brincadeira mais boba é essa? — Não estou brincando, estou falando sério. — Que você escreveu coisas nesse livro que se tornaram realidade? — Muitas delas. — Bruno a respondeu com seriedade. — Ele tem livre arbítrio e embora esteja aprisionado e seja obrigado a conceder qualquer desejo que você escreva dentro das regras do feitiço, bem... ele pode interpretar o que você escrever da maneira que ele quiser! Julia ficou calada, com cara de descrente, esperando ele terminar de explicar. Continuou comendo, mas com os olhos fixos em cima dele. — Esse jinn aprisionado nesse livro não tem natureza nenhuma além da má, talvez ele até tendencione na neutralidade se você conseguir equilibrar os seus desejos, mas acredite, por experiência própria, tudo o que se escreve aí, não sai exatamente da forma que você quer e é sempre para pior. — Tipo o Juninho? — Julia desafiou, fazendo uma pergunta sobre as coisas que ela leu e ouviu na escola. — Sim, tipo o Juninho. Embora devo confessar que eu esperava que algo pior acontecesse com ele... — Bruno deu mais um gole em seu refrigerante. — E algumas outras coisas voltam diretamente contra você. Inclusive, eu diria até que esse jinn em especial tem tanto prazer em desgraçar a vida de quem o possui quanto um demônio tem de abalar a fé em Deus. Ele é obsessivo por isso. — Quer dizer que, se eu escrever no livro que quero ficar rica, vou ficar? Tipo, instantaneamente e do nada? — Não necessariamente. Você vai escrever um desejo e não poderá dizer a data e nem a hora que quer que aconteça, nesse caso, só vai acontecer se as oportunidades forem favoráveis, o que poderia ser... por exemplo, um bilhete de loteria que vai se tornar premiado. — E o que há de mal nisso, é ótimo, não é?
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— O problema é que ninguém garante que seja através de um bilhete premiado, pode ser uma herança que venha através de algum parente de quem você goste muito, um acidente de trabalho que você possa vir a sofrer e do qual a indenização seja bem gorda... enfim. Muitas coisas ruins podem te dar dinheiro, sabia? Eu não ganho mesada nenhuma mas toda semana consigo juntar uma boa grana porque toda vez que eu apanho, meu pai me dá dinheiro. — Certo... agora vamos por os pés no chão e parar de fantasiar alternativas para a realidade só porque você está passando por um momento difícil, tá bem? Seu pai é um monstro, não tente justificar isso inventando histórias malucas. — Julia foi até cruel nessas palavras, mas ao invés de se ofender, Bruno riu. — Eu não quis dizer isso... — mas ela já estava arrependida de ter dito mesmo assim. — Viu? É por isso que o jinn escolheu você. — Bruno comeu outra batata. — Ele não escolhe pessoas boas porque não é bom. Ele escolhe pessoas com potencial para causar o mau em outras pessoas e as usa como instrumento. Você mesmo disse que se vingaria dos ladrões que bateram aquela vovózinha na televisão, lembra? — Lembro. — Vingança é algo que atrai um jinn e ele se alimenta do seu remorso. Mas lembre-se que se ele te usar, foi porque você deixou e porque, no fundo, possa vir a ser tão mau quanto ele... mesmo que depois você se arrependa, na verdade, o arrependimento é apenas uma das consequências de se desejar o mal e uma forma do jinn destruir você, que no fundo é o que ele quer. Deu para entender ou ficou confuso? — Eu compreendi o que você quis dizer. E esse livro super poderoso e maligno chegou até você de que jeito? — Da mesma forma que chegou até você. — Você colocou ele aqui dentro da minha mochila lá no cemitério e agora está tentando me pregar uma peça! — Julia concluiu. — Você está mesmo com um parafuso solto hoje, sabe?
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— Estou falando sério, quer ver? Você coloca o livro no meu bolso, eu não vou nem me mexer e depois você procura ele na sua mochila. — Bruno sugeriu um teste. — Vá em frente, o bolso da minha jaqueta não tem ratoeira. Julia suspirou. Ele ia fazer um truque de mágica, por acaso? Bem, por que não? Adoraria desbancar aquela pose dele quando o livro não saísse do lugar! Virou-se para abrir o zíper da jaqueta dele, que mantinha as mãos para cima e longe dos bolsos. Enquanto descia o zíper, Julia não evitou pensar que aquela era a primeira vez que ela abria a roupa de um garoto. Enfiou a agenda no bolso dele e fechou o zíper. — Prontinho. — falou totalmente incrédula. — Vai lá, abre a sua mochila. — ele continuou parado, sem se mexer. Julia levantou e pegou a sua mochila, abrindo-a. Colocou a mão para dentro, tateando os objetos e tal qual a sua surpresa, lá estava a agenda. Puxou o livro vermelho. — Mas como? — Viu eu falei. — Bruno explicou. — Vai ficar voltando para você, mesmo que você dê descarga nele, ele volta... acredite, já tentei e foi nojento. — E atear fogo? — Você pode até assar um marshmallow no fogo, mas a hora que cessar, o livro estará intacto. Rasgar também não funciona... ele é indestrutível. Julia voltou a se sentar, um pouco zonza com as informações. Era como ser criança e descobrir que mágica não era uma mentira e que o céu estava ao seu alcance. — Interessante. Nunca achei que esse tipo de coisa fosse possível! — Mas é bem perigoso mexer com esse tipo de ocultismo. As pessoas acham que estão preparadas, mas elas tendem a se enaganar e fantasiar situações. Quando se deparam com algo realmente verdadeiro... bem, acredite, ninguém está preparado para isso. — Bruno explicou de novo.
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— Não entendo... se você sabia que esse mal todo podia acontecer com você, porque usou o livro? — No começo? Porque quis. Julia ergueu as sobrancelhas curiosa. — Como disse, o jinn não escolhe você porque ele quer te dar um presente e te fazer feliz, ao contrário... ninguém resiste à poder realizar seus desejos, mesmo sabendo das consequências. — Igual cigarro, faz mal e pode te matar, mas as pessoas fumam mesmo assim. — Julia concluiu. — E você usa porque você não se importa com as consequências, você até quer que elas aconteçam. — Exatamente. — Você não fica chateado de que eu tenho o livro agora e você não? — Não. Não o quero mais. Estava esperando que ele fosse logo para alguém... já vai tarde. — Você se arrependeu de usá-lo? — Algumas coisas, sim. A maioria não. — Você escreveu sobre a sua mãe, não foi, para ela sair de casa e se livrar do seu pai, certo? Você disse que não se arrependia, era disso que estava falando, não é? — É. — E o que aconteceu de ruim com ela? — Com ela? Absolutamente nada. Ruim ficou para mim, que passei a apanhar no lugar dela. — Achei que você tinha começado a apanhar quando escreveu sobre o seu pai. — Julia deu de ombros. O que houve com seu pai então? — Ah.... bem... digamos que ele teve o que merece. — Bruno falou e Julia teve certeza que realmente, por pior que as coisas fossem, ele não se arrependia nem um pouco de ter causado aquele mal. — Do jeito que você fala, parece até que gosta quando ele bate em você.
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— Você tem noção do quanto o remorso pode corroer uma pessoa? Eu te digo, é bastante. Pena que o jinn estava de bom humor nesse dia e resolveu acatar com o pedido da forma que eu escrevi, sem mais nem menos. Ele podia, sei lá, ter feito algo pior. Eu ia até preferir! — Vai ver foi exatamente por você preferir que ele não fez. — Provavelmente. — E do que você se arrependeu? Trazer a tona essas memórias mesmo que por um breve segundo, era doloroso. Ele comprimiu os lábios daquele jeito que Julia já compreendia. Bruno logo as afastou da mente de novo. — Vamos deixar esse pedaço da história para lá. — ele virou o olhar para outro lado e se concentrou em comer. — Apenas não escreva nada nele, Julia. Nada de bom vem de lá, por mais promissoras que as oportunidades pareçam ser. Julia ficou pensando em tudo o que havia sido dito A razão dizia a ela que essa história era maluca demais, mas depois de ver o livro desaparecer do bolso de Bruno, não tinha muito o que duvidar não é mesmo? Quando chegasse casa, pesquisaria mais sobre essa mitologia e sobre jinn. Pousou seus olhos em cima de Bruno que comia calado, entregue ao seus demônios pessoais e por fim, rindo, segurou na mão dele para chamar atenção: — Vamos tomar um sorvete depois? Conheço um lugar aqui perto que é maravilhoso! Depois, ainda dá tempo de chegarmos em casa antes do seu toque de recolher. — Não estou mais de castigo. — Ele respondeu. — Dá até pra ir ao cinema. — Combinado! — Julia piscou para ele. Sabia que não tinha sido um convite, mas ela estava ficando boa em se convidar para passar o tempo com ele. — Mas já que você é o rico da turma, você paga! — Se eu pago, eu escolho o filme. — Bruno riu, achando graça das coisas que Julia dizia. Ela tinha uma capacidade de transformar as coisas muito mais fáceis do que pareciam; seria
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realmente muito triste ver aquela alegria se desintegrar por intermĂŠdio do jinn.
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05 VEXAME † Estava frio e Julia não queria levantar da cama, mesmo que já fosse mais de meio dia em pleno sábado. Deitada ainda de pijama, se esticou para pegar o seu celular que berrava em cima do criado mudo. O identificador de chamadas reconheceu o número de Gabi. Conhecendo bem a amiga que tinha, não daria para ignorar a chamada pois se o fizesse, Gabi ligaria insistentemente até ela atender, portanto, apertou o botão verde: — Oi, Gabi. — Jujuba! — Gabi gritou do outro lado da linha, soava preocupada e desesperada. — Eu te liguei ontem a tarde inteira, mandei mensagens, até e-mails! E você me ignorou! Eu achei que o “Pinhead” tinha matado você! — Bruno, o nome dele é Bruno. — Julia se sentou na cama para falar. — Certo... mas e aí o que rolou? Todo mundo ficou fofocando a fugida de vocês na escola, estão falando cada asneira! O que vocês fizeram, afinal? Conte tudo nos mínimos detalhes! — O que estão falando na escola? — Esquece isso, você sabe como as pessoas são bobas.... anda, me conta, o que vocês fizeram? — Passeamos um pouco, comemos um hamburguer, depois fomos para a casa dele ver um filme... — No quarto dele? — Na sala...!
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— Sozinhos? — Foi, assistimos Nosferatu... — Você não beijou ele, beijou? — Não, Gabi! Credo, olha as coisas que você imagina... a gente só ficou conversando! — Conversando? O “Pinhead” não fala, esqueceu? — Ele fala sim! Fala bastante até... e é bem inteligente por sinal... — Hm. — Gabi só resmungou do lado de lá soando totalmente desconfiada ou desaprovando as atitudes de Julia. — Você tá afim dele? — Gabiiiiiii! — Julia protestou, já cansada de ter que se justificar sobre as mesmas coisas. — Você sabe que eu gosto do Arthur, pare com isso! — Bem, é sempre bom perguntar, não é? Vai que de repente você se apaixona por esse esquisito... já está elogiando ele e tudo mais. — Eu não elogiei ele. — Disse que ele é inteligente. — Você está criando caso, somos apenas amigos. — Amigos, hum? Bem... tudo bem, o Nando disse que ele é legal e como ele não te matou ontem e nem tentou arrancar a sua roupa, sendo que vocês viram filme no quarto dele sozinhos... — e antes que Julia pudesse protestar essa última parte, que não havia sido desse jeito já que eles ficaram vendo filme na sala e Julia tinha dormido na metade, por sinal; Gabi continuou. — bem, talvez ele não seja tão ruim assim como todo mundo fala... — Não dá pra acreditar no que todo mundo fala. — É, talvez não. — Gabi por fim concordou pela inércia. — E talvez você devesse até chamá-lo aqui para comer uma pizza com a gente essa noite, taí um aviso de amiga! — Essa noite? — Você não esqueceu que vamos fazer uma sessão da campanha de Vampiros, hoje aqui em casa, não é? — Gabi a lembrou, porque Julia realmente já havia se esquecido. — Os
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amigos do Nando vão vir, ele queria te apresentar o Cris... que é um cara meio nojento, dá pra acreditar que ele arrota e canta, tipo, a música inteira do 30 seconds to mars?! — O Nando quer me apresentar um cara que arrota e gosta de 30 seconds to mars? Eu passo, sério, eu passo! — Eu falei pro Nando que era uma péssima idéia, mas ele não ouviu... então eu pensei que você podia chamar o “Pinhead”... o Nando tipo gosta do “Pinhead”. — Bruno. — Bruno... se você viesse com ele e tipo, fingisse que tá um pouco interessada nele... o Nando ia parar com essa mania de querer te arranjar alguém. — Gabi contou. Nando não gostava de Arthur e estava tentando convencer Julia de que haviam outros garotos mais interessantes que Arthur por aí, mesmo que eles não fossem nada interessantes. A ideia não era tão ruim assim e ainda livraria Julia de dois garotos chatos. — A menos que você prefira conhecer o Cris! — Não quero conhecer o Cris e não estou interessada no Bruno. Além do mais, não sou tão amiga assim do Bruno para pedir esse tipo de favor, eu vou morrer de vergonha e ele nem é tão social assim para querer ir jogar RPG... eu posso só dizer pro Nando que não gostei do Cris, ele vai entender! — Tudo bem, além do Cris está vindo o Eduardo, que é super alto do jeito que você gosta... embora se você sentar do lado dele tem que tomar cuidado porque ele sempre gruda o chiclete dele em baixo da mesa e... — Argh, está bem, eu vou ligar pro Bruno. — Julia convenceu-se. — Mas se ele topar, você começa pedindo desculpas pra ele, ok? — Ok! Até mais! — Gabi desligou o telefone. Julia suspirou vencida, se jogou deitada na cama de novo, pensando em quanto estava encrencada com essa manobra mirabolante. †
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“Estarei fora o dia inteiro, peça uma pizza e seja feliz C.” Era o bilhete pregado com um imã na geladeira em forma de uma estrela-do-mar ao lado de uma nota de cem reais que Carlos deixou para seu filho naquele sábado. Bruno suspirou, pegou os cem reais e guardou no bolso. Abriu a geladeira e pegou a caixa de leite integral. Serviu um copo e se sentou na bancada. Cobriu o rosto com uma das mãos e, em alívio, exalou ar dos pulmões. A campainha da sua casa tocou no mesmo instante. Bruno largou o copo e foi até a porta, Lord Byron cruzou seu caminho subindo as escadas, provavelmente em busca da sua comida que ficava no seu quarto. Abriu a porta e encontrou com Julia, usando uma blusa tomara que caia e uma saia preta de tule, com botas e um moletom estampado de caveiras. Os cabelos castanhos caiam por cima dos ombros e do lado direito, uma presilha de laço vermelho como seu batom. — Oi, boa tarde! — Julia sorriu segurando nas mãos um casaco de poliéster branco. — Oi. — Bruno foi surpreendido pela visita. Ele não esperava que ela fosse tocar a campainha em pleno sábado, já que considerava que eles tinham contato social puramente por causa da escola e que o dia anterior, a sexta-feira 13, havia sido mais uma anormalidade por causa do seu olho roxo; a surpresa foi tão grande que ele ficou sem saber o que dizer depois que a viu. — Posso entrar? — Julia perguntou sem timidez. — Ah, claro... — sem graça, ele abaixou os olhos e abriu a porta para ela entrar. Julia reparou que ele havia acabado de levantar, o cabelo estava uma bagunça e a camiseta do Skinny Puppy amassada. — Eu não tinha o seu telefone, daí resolvi tocar a campainha. — Julia explicou entrando pela porta. — Ei, o seu olho já está bem melhor! — É, mas ainda dói.
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— Eu queria te pedir um favor. — Um favor? — É... — e Julia ficou roxa de vergonha. Bruno fechou a porta e esperou ela explicar. — Vai soar esquisito, mas preciso mesmo de ajuda hoje. — Tá, isso eu entendi, mas pra quê? — Pro Nando achar que eu estou afim de você e me deixar em paz! — Julia deu um sorrisinho de nervoso. — O quê? — Bruno não entendeu nada. — É que o Nando acha que eu tenho que esquecer do Arthur me interessando por outro cara então ele fica sempre tentando me apresentar os amigos dele e hoje, que vamos jogar RPG, ele descolou dois esquisitos para me apresentar e a Gabi estava me avisando e sugeriu de te chamar... bem, já deu pra entender? — Certo, mas não, obrigado. — Não? — Não curto RPG e nem ficar fingindo essas coisas. Se você não tá afim dos caras, devia só falar para eles isso. — Ah... — Julia murchou, pensando em o quão ridícula não devia estar parecendo na frente de Bruno. Era mesmo ridículo, ela tinha que admitir! — Bem, tudo bem... acho que vou voltar para o meu quarto e escrever naquele livrinho para me arranjar um namorado de verdade! — e deu uma risadinha para enfatizar a piada, mas parou de rir quando ao olhar para Bruno o encontrou com uma expressão de seriedade tão profunda que foi como dar um tiro no próprio pé. — Eu vou com você. — Bruno falou com seriedade, colocando as duas mãos no bolso. — E você prometeu que não ia escrever nada lá. Esqueceu? — Calma, foi uma brincadeira. Não vou escrever nada lá. — Julia explicou. Ele não levava a serio o lance do livro, levava? Ele era mesmo esquisito, pensou. — Certo, vou me trocar. — Manera no delineador, hein!
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— Vem cá, a gente vai ter que beijar na boca? — Bruno perguntou enquanto andava até a escada. — Não! — Julia quase morreu de susto. — Não! — Dar as mãos? — No máximo dar as mãos... e vai se trocar logo, temos que estar lá às duas e já são mais de uma. Depois disso, Bruno foi se trocar. † Gabi abriu a porta assim que a campainha tocou, usando um micro-shorts preto e uma camisa xadrez azul e vermelha, segurando um pirulito de coração. Arregalou os olhos azuis por causa das lentes totalmente surpresa por ver Julia e Bruno juntos. — Oi! Sejam bem vindos! — Gabi reparou que ele tinha um olho roxo, mas não disse nada. — Valeu. — Bruno respondeu sem nem sorrir e entrou. Gabi segurou Julia na porta: — Você realmente trouxe ele?! — perguntou em sussurros. — Não, isso que entrou aí foi um holograma! Eu trouxe, você que me deu a ideia! — Eu estava, tipo, brincando! E o Dudu é um cara bem bonito. — Ah me poupe, Gabi! — Julia entrou no apartamento da amiga revirando os olhos. Se era brincadeira, ela não podia simplesmente ter dito antes dela pagar o maior mico convidando o garoto para ir lá com ela? Nando já estava cumprimentando Bruno e parecia muito feliz por ver o colega de jogos online para a sessão de RPG, pois oferecia uma cerveja. — Eu não bebo. — Bruno avisou, sentando-se à mesa ao lado de Dudu, que era um cabeludo com jeitão hippie, conferindo se já tinha algum chiclete colado por ali. — Mas aceito uma soda. — Beleza! — Nando abriu um sorriso e foi até a cozinha.
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— Esse é o Dudu e esse o Cris. — Gabi apresentou os amigos de Nando, que vieram do prédio dele. Cris era um gordinho de cabelos loiros e olhos verdes, que tinha as bochechas rosadas e um visual emo ultrapassado. — Essa é a Julia, minha melhor amiga. — Oi! — Cris pareceu animado. — E aí? — Dudu falava meio arrastado, parecia que era naturalmente lesado. Julia ficou tentando achar o que foi que Gabi viu nele para dizer que ele era bonito, porque... eca! — Oi. — Julia os cumprimentou mas agradeceu por Bruno ter topado em ajudá-la com aquela situação chata. Foi sentar-se perto dele, para que Gabi não a fizesse sentar ao lado de Dudu ou de Cris. Nando logo voltou com o copo de soda para Bruno e enquanto entregava para ele, avisou: — Estamos fazendo as fichas dos personagens, eu tirei diversas cópias. — pegou uma pasta e tirou uma folha para Julia e outra para Bruno. — A campanha é de Vampiros, é nova eu inventei essa semana todo o cenário e tals! — Certo. — Bruno pegou uma das fichas, mas não conhecia nada de RPG e nem sabia o que fazer. — Jujuba! Você desenha a minha personagem? — Gabi pediu, sentando-se na mesa. — Jujuba? — Bruno repetiu, olhando para ela com uma sobrancelha erguida, em deboche. — É só um apelido. — ela ficou sem graça e puxou a ficha dele, enquanto ajeitava os cabelos atrás da orelha. — Eu faço sua ficha, se você quiser. — Tá. Nando cutucou Gabi com um beliscão por baixo da mesa, perguntando o que estava rolando entre eles e Gabi bateu os ombros dizendo que não sabia de nada. E realmente não sabia, porque quando deu a ideia para Julia chamar Bruno, não era para eles, de fato, ficarem tão a vontade um com o outro, como estavam. Reparou que Bruno realmente
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falava, especialmente com Julia; a forma com que sorriam um para o outro, o fato de Julia sempre passar a mão no cabelo... tudo eram sinais de que estava mesmo rolando alguma coisa! Enquanto para Nando essa seria uma notícia ótima, para Gabi era assustadora. — E esse olho roxo aí, Bruno? — Gabi perguntou com o pirulito na boca. — Foi eu! — Julia respondeu antes de Bruno. — Totalmente sem querer eu fui descer da bicicleta e meti uma cotovelada nele! — ela até fez um gesto para ilustrar o que aconteceu. Cris deu risada, Dudu reclamou um “ouch” e Bruno, que tinha a intenção de inventar uma mentira não poderia ter inventado uma melhor. — Afff isso deve ter doído! — Nando comentou, fazendo cara de dor. Eles ficaram conversando e depois de duas horas ainda estavam fazendo as fichas dos personagens. Os livros de RPG estavam abertos em cima da mesa entre um pote de pipoca, copos de cerveja e refrigerante. Era unânime que estavam todos entediados e a maior atração era Julia desenhando a personagem de Gabi, com muito talento. Quando deu sete horas da noite e constataram que as fichas ainda não estavam prontas, desistiram do jogo e pediram uma pizza. Antes das nove horas, porém, os visitantes se despediram dos anfitriões. — Poxa, vocês não podem mesmo ficar? — Gabi segurava no braço de Julia, não deixando a menina ir. — Só mais um pouco...! Julia olhou para Bruno, que estava sentado na mesa ao seu lado. Ele deu de ombros, concordando em ficar. — Pode ser, mais um pouco! — Demais! — Gabi comemorou e balançou o pirulito como se fosse um pompom de torcida. — Vamos jogar verdade ou consequência?
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— Que coisa mais oitava série... — Bruno reclamou. Tudo bem ficar mais um par de horas por ali, mas daí a embarcar em um jogo fora de moda e totalmente trivial, não muito obrigado. — A Gabi sempre tem as ideias mais bobas, liga não. — Nando falou para provocar a namorada enquanto guardava os materiais do jogo em sua mochila. — Eu trouxe meu Wii e alguns jogos, tão no quarto da Gabi. — Ei você não tava proibida de levar o Nando pro seu quarto? — Julia perguntou. — Estou, mas meus pais viajaram e nunca vão ficar sabendo! — Gabi riu e colocou o pirulito na boca de novo. Os pais de Gabi sempre viajavam e Julia acreditava que era essa ausência que fazia Gabi aprontar todas e ser tão desvairada como era... embora Gabi na prática não fazia nada além do que fazia com Nando. — Eu prefiro Wii. — Julia decidiu. — Certo, vamos? — Nando colocou a mochila pesada nas costas, pronto para ir para o quarto. — E não vai arrumar a mesa, nem a cozinha? — Bruno indagou. Gabi e Nando se entreolharam, deram risada e depois, falaram juntos: — Claro, é, vamos! Julia não disse nada, mas sabia que Gabi e Nando nunca arrumavam nada e que deixavam a bagunça para que a faxineira desse conta na segunda-feira, mas talvez porque ficaram com vergonha da pergunta lançada, cada um pegou um pote da mesa, um copo e uma lata de cerveja e levou para a cozinha. Depois que arrumaram a mesa e limparam a louça, empilhando tudo dentro da máquina de lavar, subiram para o quarto de Gabi, que era como todo quarto de menina, mas que para Julia era o melhor quarto do mundo. Gabi tinha um daqueles beliches que a cama fica em cima e o espaço em baixo pode ser aproveitado para muitas coisas, mas que no caso de Gabi, ao invés de se encontrar a sonhada prancheta
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de desenhos que Julia gostaria de ter se tivesse um quarto daqueles, era possível sentar em um belo sofá cama e ver televisão. As paredes eram cor-de-rosa, o edredom era da Hello Kitty e ela tinha uma coleção de bonecas de porcelana de dar inveja, que a mãe trazia das viagens ao exterior. Além disso, havia uma prateleira cheia de CDs e DVDs e um monte de cacarecos bonitinhos e femininos enfeitando o quarto. Mas o quarto de Gabi estava uma baderna com roupas empilhadas no chão, em cima do sofá e em cima da cama. Tinha até uma cueca de Nando pelo chão que ele escondeu embaixo da pilha que ficava em cima da cama assim que eles entraram no quarto. Gabi tirou tudo o que estava em cima do sofá jogando no chão e abriu o sofá cama para caber todo mundo. Nando abriu a janela, porque estava muito abafado e com cheiro de roupa suja. Olhando para aquela bagunça, Bruno imaginou o chilique que seu pai daria caso ele deixasse o quarto dele naquele estado e se lembrou de que na pressa para sair com Julia, não arrumou a cama e deixou o copo de leite em cima da mesa da cozinha, o que já seria suficiente para um chilique daqueles e que provavelmente renderia mais uma semana de castigo, sem sair, sem poder assistir televisão ou até mesmo, falar no telefone. Ah, droga. Aquilo não tinha fim, nem mesmo com o Livro de Djinn tendo passado para outra pessoa, aquilo não tinha fim. — Ei, Bruno é a sua vez. — Julia avisou segurando em seu braço o que o fez pular quase meio metro de susto, o que a fez rir, como se aquilo fosse a coisa mais engraçada da face da terra e Bruno lembrou de que talvez, Julia já tivesse bebido cervejas demais para uma noite. Ele pegou o controle dela, olhou para a tela, pois nem sabia que jogo era que estavam jogando e contemplou uma fase de Muscle March, um jogo que era aparentemente muito engraçado já que todo mundo dava altas risadas mas que para ele, não era nada interessante. Não sabia jogar então, errou a fase quebrando o recorde de derrota mais rápida e passou rapidamente o controle para Gabi.
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Gabi ficou até de pé. — Aprendam com a mestra! — ela falou se gabando, mas foi atrapalhada por Nando enchendo-a de beijos no pescoço fazendo Gabi perder total concentração e inclusive, dar um soco no nariz dele sem querer. — Ai, Gabi! — ele se sentou no chão com a mão no nariz. — Ai nada, bem feito, você fica aí me atrapalhando! — Poxa, machucou! — ele choramingou e ela foi socorrer o namorado enchendo-o de beijos e em questão de segundos, não só a dor do soco passou como os dois começaram a se amassar por cima do sofá. — Ei, para vocês dois! Ficamos pra jogar e não pra segurar vela, seus tarados... Façam isso depois a sós! — Julia os interrompeu, fazendo cócegas em Gabi que pulou para longe do sofá e conseqüentemente para longe de Nando. — Tá bem! Tá bem! — Gabi concordou, segurando as mãos de Julia longe do seu corpo para que ela parasse de cutucá-la, rindo. Elas pareciam duas crianças. Riram uma com a outra e Gabi por fim se sentou, virando para Bruno, exalando bafo de bebida. — Viu só como ela é má? Cuidado viu! — Segurou no queixo de Julia. — Ela te ganha com essa carinha de boneca e jeitinho de criança, mas depois arranca fora o seu coração com unhas de cobra igual a Medusa! — Unhas? — Ele riu. — Era o cabelo...! Julia gargalhou com a burrice de Gabi, Nando além de rir, apontou para a namorada segurando a barriga e rolou caindo do sofá para o chão. Gabi irritada pisou nele, mas isso só fez Nando rir mais ainda. Bruno acabou rindo também, mais por ver os colegas brisando com o pouco álcool que tomaram do que com a piada em si. Aliás, não era nem uma piada! Era até triste que pessoas na idade de Gabi não soubesse direito da história da Medusa, por exemplo.
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Quando conseguiram parar de rir, Nando e Gabi começaram a se beijar de novo e dessa vez Julia não quis atrapalhar, apenas ficou de pé: — Acho melhor irmos embora e deixar esses dois mais a vontade, não estou a fim de ver nenhum filme pornô ao vivo! — Tudo bem. — Bruno ficou em pé também, dando espaço para Gabi e Nando que se amassavam. — Mas já? — Gabi protestou, empurrou Nando pelo ombro, esticou o braço e segurou a mão de Julia. — Fiquem mais! — Não dá, temos que pegar o metrô e já está tarde. — Julia desvencilhou-se da amiga e quase caiu para trás quando forçou o braço com o corpo, porque Gabi estava segurando forte. — Está tarde é perigoso... dorme aqui na sala! — Gabi insistiu. — Você tá bêbada, olha só tá caindo sozinha... fica aqui! — Não, Gabi temos que ir. Nos vemos na segunda! — Julia se inclinou e deu um beijo no rosto da amiga. — Vem fechar a porta, Nando... ai! — Gabi enlaçou os braços no pescoço de Julia e a puxou para a cama de novo. Nando ajudou Julia a se soltar de Gabi fazendo cócegas na namorada, eles guerrearam um pouco. † — E então, foi divertido? — Julia perguntou em pé no Metrô ao lado de Bruno, esperando o trem. Eles caminharam em silêncio total até ali e para variar, ela não aguentou muito tempo. — É, até que sim... — Obrigada por me salvar daqueles caras... — Tudo bem. O silêncio voltou de novo. Julia se sentiu uma tonta por não conseguir manter uma conversa sobre qualquer coisa por mais que dez minutos com Bruno. As vezes ele ficava tão monossilábico que irritava! Imaginou se com Priscila ele falava tão pouco assim também... — Pena que não deu para jogar, né?
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— Não sei se eu ia me divertir tanto se tivéssemos de fato, jogado aquilo. — Por que não? — Não é uma coisa que desperta meu interesse... — ele explicou. Julia o olhou erguendo as duas sobrancelhas indicando curiosidade. — Esses lances interativos não são pra mim. — Sei, você é tímido. — ela arriscou em concluir. — Mas RPG é bom pra esse lance de timidez, sabe? — ele não disse nada, mesmo quando ela ficou esperando que ele reagisse. — No próximo sábado se você quiser, pode vir de novo... conhecer o jogo, jogar, sabe? — Tá... — Tá mesmo? Ou tá de “vou dizer que sim só pra ela parar de falar!”? — e ela segurou no braço dele, fazendo-o virar-se para ela. — Tá de “não consigo pensar nisso agora porque são quase onze horas e meu pai vai me matar quando eu chegar”. — Sério? — Julia ficou muito preocupada. Se ele tinha um olho roxo, sabe-se lá por qual motivo, imagine o que ele não teria na segunda-feira. Percebeu que ele estava mesmo falando sério. — Não rola de inventar uma mentira convincente? — Nenhuma mentira é convincente o suficiente. — Poxa e por que você não me falou antes? Eu teria vindo embora mais cedo! — Eu ia falar o quê na frente da Gabi e do Nando? — Você não precisava ter dito para eles, mas dito pra mim. — e o trem do metrô entrou na plataforma, estacionando. — Deixa pra lá, você se preocupa a toa. — Não é a toa! É só que agora estou me sentindo culpada por ter feito você ir lá comigo em um momento tão egoísta e ainda se encrencar na sua casa, poxa.... — Julia se sentou num dos bancos totalmente chateada, apoiou o queixo na mão e o braço na perna, em uma expressão lânguida de tristeza.
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— Eu devia parar de dizer essas coisas. — Bruno sentou-se do lado dela visivelmente arrependido. — Se você não soubesse, não teria com o que se preocupar e ainda estaria sorrindo. — Eu prefiro a pílula vermelha... — era uma metáfora, mas queria dizer que ela não gostava de mentiras sociais. — Eu fiquei lá porque quis, podia ter levantado e ido embora a hora que eu quisesse. — Bruno explicou, para ver se ela se sentia melhor. — E também não é tão ruim assim... sério, se fosse tão ruim assim eu simplesmente não voltaria para casa hoje a noite, voltaria só... domingo a tarde. — E pra onde você iria? — Sei lá, ficaria por aí... na rua. — Na casa da Priscila? — Julia perguntou sentindo um choque dentro do seu corpo. Era por isso que ele ia para a casa de Priscila, certamente, podia se esconder lá e se consolar nos braços brancos e nos lábios negros da menina... e ele devia fazer isso bastante. Pensar nisso a deixou triste, mais ainda do que já estava, especialmente quando ele não respondeu, o que provavelmente queria dizer que sim. Julia sabia que não devia se importar com o que ele fazia ou deixava de fazer e procurou não pensar nisso. Segurou no braço de Bruno e encostou a cabeça em seu ombro, cansada, desejando apenas chegar logo em casa. Fechou os olhos apertando-os e começou a chorar. Ao perceber que Julia estava, de fato, chorando, Bruno quase morreu do coração, passou seu braço por cima dos ombros dela e a abraçou: — Ei, o que foi? — perguntou, mas arriscou pensar que, provavelmente, Julia já tinha bebido demais. — Por que você está chorando? Julia afundou o rosto no ombro dele. Que mico! Aquela noite não podia ficar ainda pior? Ela se sentia enjoada, tonta, triste... derrotada; mesmo que na prática não tivesse perdido nada, se sentia vencida.
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— Por favor, não chora... eu não aguento com garotas chorando... — Bruno via sua mãe chorar as vezes, ou quase sempre, e a sensação de não poder fazer nada a respeito era a mesma que sentia agora com Julia chorando, mesmo que fosse só chorar por estar bêbada. Ele ergueu a cabeça para ver em que estação o trem estava estacionando e mesmo que nem fosse a que eles deveriam descer, ele se ergueu com Julia e saiu. — Vem, vamos lavar o rosto, beber uma água.... vai ficar tudo bem... só... pare de chorar. — Tá bom... — ela concordou, mas não conseguiu se controlar, continuou chorando. Triste consigo mesma. Eles saíram da estação e entraram em um bar restaurante que havia ao lado. Bruno guiou Julia até a pia para lavar o rosto. Ajudou segurando o cabelo da garota, pegando papel toalha e sorrindo quando ela disse que estava fazendo papel de idiota. No fim de tudo, Julia vomitou em uma lixeira.
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06 O DESEJO † Vexame. A palavra dançava de um lado para o outro na cabeça de Julia quando ela acordou naquele domingo com ressaca, ouvindo um sino gigante dentro de seu cérebro. Os flashes memoriais invadiram sua mente, para seu desespero. Julia lembrou-se que depois de chorar e vomitar em um bar qualquer, andou escorada com Bruno choramingando até a hora que eles sentaram-se em um ponto de ônibus para esperar a primeira linha que devia passar dali três horas. Bruno comprou um mate gelado para ela, apesar do frio que estava fazendo, na tentativa de fazê-la acordar e ao ver o copinho laranja, Julia começou a chorar. Por um momento, voltou para aquela cena como se estivesse revivendo-a. Bruno dissera: — Meu Deus, pare de chorar! O que há com você? Por que você está chorando agora? — em um quase desespero, já que Julia vinha chorando há horas sem parar em soluços fortíssimos e sem dar nenhuma explicação. E chorou que nem uma idiota porque há dois anos atrás, quando ela fazia parte do time de vôlei antes mesmo de perder a vaga por causa das suas notas e iniciar o colegial na classe D; quando ela ainda participava do campeonato intercolegial em outras cidades do interior, um dia antes da final, Arthur comprou um mate daqueles e eles dividiram no mesmo canudinho para “dar
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sorte” e que foi como beijar a boca de Arthur pelo canudinho, mas sem beijar. — Devia significar alguma coisa, poxa... foi como um beijo, não foi? — lembrava de ter perguntado enquanto sua vista estava tão embaçada do choro que os olhos azuis de Bruno eram apenas um borrão naquela noite. A sensação da garoa nas suas mãos geladas enquanto o copinho de mate tremia, pelo frio, pela tristeza, por tudo. Lembrava ligeiramente de Bruno ter rido, mesmo tentando não rir daquela asneira que ela estava dizendo, de que ele ajeitou o capuz para cobrir a cabeça dela e dizer para ela que estava tudo bem, enquanto, aos soluços de choro, Julia contava que no ano seguinte, Cidinha pegou a sua vaga no time e agora era namorada oficial de Arthur. Que mico! Que mico! Que mico! Nota mental: nunca mais beber cinco cervejas na casa de Gabi. Aliás, nunca mais beber cerveja nenhuma! Julia sentou-se na cama e buscou por seu celular apenas para constatar que já eram quatro horas da tarde. Que horas chegara em casa mesmo? Não lembrava. Nem como foi que estava ali em sua cama de pijamas, mas provavelmente, sua mãe tinha algo a ver com isso e brigaria com ela. Droga. Coçou os olhos limpando-os e resolveu que era hora de sair da cama, comer um café-jantar e tomar um belo banho antes de tentar pensar em qualquer coisa e enquanto arrancava seu pijama para entrar no banho, lembrou-se de que tinha que checar se Bruno estava bem, porque lembrava dele dizer que estaria realmente encrencado ao chegar em casa. † O celular de Bruno tocou pela, o que ele contava ser, décima vez. Na décima primeira, resolveu atender as insistências de Priscila, portanto, pegou o objeto de cima da sua escrivaninha. — O que é?
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— Oi, Bruno! — a voz dela soou muito feliz do outro lado da linha, o que só podia siginificar que ela estava se esforçando para não ter um faniquito daqueles que seriam tão estressantes que detonariam o domingo, a semana seguinte e a próxima. Ele sabia que ela estava ligando porque Gabi fez o grandioso favor de postar no Facebook que ele estava na casa dela, com Julia e Nando; e agora, provavelmente, metade da escola já sabia disso. — Tudo bem? — Tudo bem. E você? — a pergunta bate e volta foi mais por educação. — Tudo bem... tá em casa? — Estou. — Você foi na casa da Gabi ontem, não foi? — Priscila não tardou a perguntar, mas ele não respondeu. Era meio óbvio que sim, não gostava de ter que responder o óbvio. — Você está namorando com ela? — Já falei que não umas mil vezes. — e fez questão de falar bem grosseiro, que era pra ver se Priscila se tocava que aquele ciúme estava enchendo a paciência. — Se você estivesse, me contaria? — Se eu estivesse, não seria da sua conta. — Claro que não é... além do mais você faz o que quiser, não é como se estivéssemos namorando ou algo do tipo... — Priscila suspirou, tentando fazer como se não se importava, mas a verdade era que se importava demais, a ponto de fuxicar o Facebook de Gabi e ligar em pleno domingo a tarde só para checar se ele estava em casa ou o quê. — E o que você está fazendo agora? — Nada... jogando. — ele estava no meio de uma missão com seus colegas de guilda, um deles inclusive, era Nando. — Posso ir aí? — Meu pai está de mau-humor. — era verdade, o lance do copo na cozinha e do edredom revirado em sua cama renderam horas de faxina pela cozinha e agora que ele achou que teria um pouco de paz, bem, lá estava Priscila detonando com ela.
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— Posso entrar para jogar com você, quer? — Pode ser. — Legal, eu entro! — Priscila se animou do outro lado. — Senti sua falta na sexta-feira, aliás, todos nós sentimos... a Raíssa mandou um beijo, você lembra da Raíssa, não lembra? — Lembro. — era amiga de Priscila, uma gracinha, mas falava palavrão demais. — Ei, quer vir aqui? Podemos pedir uma pizza e ver um filme... tem tempo que você não aparece aqui a casa, minha mãe estava até me falando esses dias que você anda sumido. — Não vai rolar. — Eu sinto saudades de você, do tempo que passávamos juntos... — Foi há uma eternidade atrás. — ele, por outro lado, não sentia falta e nem conseguia com Priscila grudando desse jeito, querendo controlar e tendo crises de ciúmes o tempo todo sem motivo nenhum. — Não realmente, foi há alguns meses atrás. Bruno soltou o teclado e o mouse do computador, levantou da cadeira sem avisar seus amigos e se jogou na cama. Lá vinha a “DR”, ele sabia prever pelo tom de voz de Priscila. — Dá no mesmo. — Não, não dá. E você não sente saudades de ficarmos juntos? — Te vejo todo dia no colégio. — Não é a mesma coisa, a gente conversava mais antes... se beijava mais antes... você nem me deixa encostar em você... lembra de quando andávamos pela escola de mãos dadas? Que você vinha aqui em casa quase todo dia? — Ano passado. — ele insistiu. Deus! — Por que é tão dificil pra você entender? Foi ano passado! — Eu achei que era pra sempre. — Eu nunca disse que era. — Eu achei que era, eu achava que era. E você achava que era, também!
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— Eu nunca disse isso. — A gente brigava, mas você sempre voltava... agora por causa dessa Julia... — Acabou! Muito antes disso! E não foi nada oficial, você mesma falou, lembra? — Não dava pra ser oficial, mas agora tudo mudou, agora dá! Você gostava de mim, eu gostava de você... poxa, foi imaturidade minha tomar aquelas decisões, mas agora... agora pode ser diferente! Você gosta de mim, eu sei que você me ama! — Deus! Não! — Desculpa se eu chateei você com o lance todo, Bruno... eu não tinha percebido o quanto eu gostava de você. A gente se dava super bem... e eu joguei tudo fora porque estava confusa... eu te amo. — Não! Você só está com ciúmes. — típico, Priscila sempre tinha ciúmes e não era só dele. E era um ciúmes tão ridículo e tão sem nexo, que provavelmente passaria tão logo Priscila presenciasse Julia chorando por causa de Arthur, outra coisa ridícula e até muito mais irritante, por sinal. — É claro que estou, você parece mudado perto dessa garota, estou falando. Ela é do mal! Te envenenou contra mim! É isso, não é? Ela é muito do mal! — Você devia pensar antes de falar. — ênfase no “pensar”. — Eu pensei, pensei muito. — Não com os neurônios. — e ele já estava ficando muito irritado. — Você está ficando com ela? — Eu vou desligar, estou com dor de cabeça. — Não! Aquela pergunta de novo, não! E sem esperar a resposta de Priscila, ele desligou. Priscila ainda ligou mais três vezes, que ele deixou tocar até resolver colocar o celular no silencioso, de saco cheio daquela história. †
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Enquanto arrumava o seu quarto foi que Julia derrubou de cima do criado mudo o livrinho vermelho que um dia pertenceu a Bruno. Ele caiu virado do avesso, abrindo em uma página aleatório bem aos seus pés. Ela pegou o livro e virou para ler a anotação que o acaso escolheu. “Ao menos duas vezes por semana Carlos dava ao seu filho dinheiro espontaneamente.” Sentou-se na cama, enquanto essa pequena leitura trazia a sua mente as memórias de Sexta-feira, o dia em que Bruno lhe dissera que o livro era mágico. Riu sozinha, lembrando daquela besteira. Não era possível que o livro fosse mágico, era? E se fosse mágico de verdade, por que ela não poderia usar? Repassou os alertas em sua mente, sobre como os desejos podiam se virar contra você mesmo; os acontecimentos que ela apelidou de “erro na matrix”; e as informações que Bruno lhe passou. Leu de novo a anotação. Lembrou que Bruno havia dito que sempre que apanhava de seu pai, ele dava dinheiro. Mas não seria o caso então de fazer um desejo que não tivesse tantas brechas de dar errado? Será que ela conseguiria? Pegou uma caneta preta de seu estojo. Preparou-se para escrever. Claro que não era verdade, certo? E se fosse... o que ela queria? Pela diversão ou puramente curiosidade em ver se iria dar certo ou não, Julia escreveu com sua letra cursiva e redonda: “Quero que o Arthur me dê um beijo na boca no pátio da escola.”
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Quando terminou de escrever, Julia se sentiu super ridícula. Mega ridícula. Ultra ridícula. Ri-di-cu-la. Que deprimente! Não existia nada mais deprimente do que acreditar em um livro mágico e pedir, como seu primeiro desejo, um beijo do menino de quem gostava! Era tão.... quinta série! Revirou os olhos para si mesma e, odiando-se, fechou o livro. — Miaaaaaaaaaau! — Lord Byron pulou na janela quase causando um infarto em Julia. O coração dela foi parar na garganta e depois voltou para o lugar. — Ai! Gato! Que susto! — berrou, o coração palpitando à milhão como uma britadeira dentro do seu peito. Revirou os olhos, soltou o livro em cima de seu criado mudo e foi até Lord Byron. Fez um breve carinho e esticou a cabeça para fora da janela. — E aí como está o seu dono? Não ouvi nenhum grito hoje, está tudo bem por lá, não está? — olhando a casa, ela parecia muito serena. — Miaaaaauuuuuu! — Já entendi, você está com fome...! Vem, vou colocar um pouco de leite para você. † Julia prendeu os cabelos em um rabo de cavalo, passou um batom rosado nos lábios e deu uma última checada em suas roupas na frente do espelho: calça jeans cinza por dentro da bota, uma blusinha florida creme e vermelha e seu sempre fiel moletom de caveiras. Considerou-se satisfeita com o resultado e desceu as escadas da sua casa, pulando as caixas. — Tchau mãe! — berrou para Isabela, que estava na cozinha, fazendo contas e esquentando água para um chá, de pijama e coque banana preso com uma caneta Bic. Sem esperar pela resposta de sua mãe, Julia saiu pela porta e abriu um enorme sorriso. — Pronto! — Que noiva... — Bruno reclamou, sentado no chão com as costas na parede da casa digitando algo no celular. Assim que ela
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apareceu, ele ficou em pé. — Vamos só até a estação, não até o shopping. — Eu estava de pijama, lembra? — Julia tentou se justificar, mas talvez ele tivesse razão. Ficou empolgada com o fato de que Bruno bateu na sua porta chamando-a para sair, que nem ligou se era só para acompanhá-lo até a estação de metrô para pegar sua bicicleta. E poxa, ele podia ao menos parecer mais impressionado com seu figurino, que tal? — E olha quem fala! É você que tá vestido pra uma festa de halloween, não eu! — brincou devido ao fato que ele estava com uma calça preta que era estampada como se fosse as pernas de um esqueleto, os olhos contornados de preto, casaco preto e uma bandana na cabeça. — Engraçadinha... — ele falou sem emoção e nem ao menos deu risada da piada, o que criou um momento de silêncio chato entre eles. Foram caminhando pela rua sem falar mais nada, passando pelas casas do bairro. Bruno as vezes tirava o celular do bolso, digitava alguma coisa e guardava de novo, em gestos tão repetitivos que ele parecia um robô. Vê-lo mexer tanto em seu celular fez Julia checar o dela umas três vezes sem a menor necessidade e ela quase tropeçou sozinha na calçada. Estavam atravessando um portão de grades quando um rottweiller enraivecido porque eles invadiram a frente da sua casa se jogou contra o portão latindo e raspando os dentes na grade. Bruno assustou e acabou soltando o celular no chão, que se espatifou abrindo em vários pedaços, separando a bateria. — Ai, droga! — quase gritou com o susto, enquanto se afastava do barulho e olhava para o rottweiler como se ele fosse um urso gigante, ou um monstro, algo do tipo. Julia gargalhou, mas ajudou a juntar a bateria e o celular, entregando as peças que juntou dando muita risada. Ele a olhou quase ofendido. — Você parece um hâmster quando se assusta dessa forma, é muito hilário! — justificou-se, tentando segurar os risos mas sem sucesso. — Você assusta o tempo todo! Qual o seu problema?
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— Nada, eu estava concentrado em outras coisas... sei lá. — ele juntou o celular de novo encaixando as peças. Julia ainda estava gargalhando sozinha no meio da rua. Pensando no assunto, ele não sabia dizer porque se assustava tanto, não havia nem reparado que isso acontecia... mas ela não precisava ficar rindo tanto! — Pode parar de rir, nem foi tão engraçado assim! — Foi sim! — ela continuou rindo um tempo, mas depois recuperou o fôlego e colocou a mão na barriga. — Ri tanto que estou com dor no abdômem. — Hm. — ele só resmungou, guardando o celular no bolso. — Ei, tá tudo bem com você? — Julia o segurou no braço e parou de andar de forma dramática, para ver se ele prestava um pouco de atenção nela. — Não muito. — ele respondeu, a sinceridade em ponta de faca fez Julia sentir como se uma adaga gelada entrasse em seu coração. Ela ficou como uma estátua sem reação, mas fez cara de dor. — Só estou irritado. — Comigo? — Por que eu me irritaria com você? — Não sei, dei um trabalhão ontem de noite... paguei o maior mico... — Julia enumerou. — Se eu tivesse irritado com você, não te chamaria para ir até a estação, né? — ele revirou os olhos e continuou andando. Óbvio. — Então por que está irritado? O que aconteceu? — Tudo... — Tudo o quê? — Nada. — Caramba, hein, Bruno, não dá pra ser mais evasivo ou monossilábico? — Julia cruzou os braços. — Pra você não querer falar só pode ser por causa do que eu fiz ontem... a gente chegou super tarde, quer dizer, tão tarde que era até cedo! Seu pai brigou contigo por minha culpa não foi? — Não é nada disso...! — Bruno revirou os olhos de novo. Cruzes! Por que as meninas precisavam ser tão neuróticas com
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essas coisas? — Eu estou irritado por uma série de motivos pequenos e idiotas, que não deveriam me irritar, mas que todos juntos me irritam! E me irritam muito! Ficou mais explicado agora? — Não, não ficou. — Julia não se deu por convencida, continuou de braços cruzados e fechou a cara. A voz ficou irritada, saiu até mais potente que o normal, o sorriso sumiu, os olhos ficaram sérios demais, endureceu como argila virando uma pedra de gelo. — Eu ainda não dormi, tive que limpar a cozinha depois de ouvir a maior bronca, levei umas chineladas, não comi nada o dia inteiro e a Priscila não para de me encher pois acha que eu estou namorando com você só porque a Gabi colocou no Facebook que estávamos na casa dela ontem. — Bruno explicou em um fôlego só, mas depois que falou tudo, reparou que em sã consciência nunca falaria tudo isso para ninguém, muito menos para Julia. A menos que ela estivesse usando o Livro... porque o Livro dava ao portador certos “poderes mágicos” e aparentemente, o de Julia era de conseguir a verdade mesmo quando se tentava mentir. Poxa, era bem mais legal do que as pessoas esquecerem o que havia acontecido! Que injusto! — Ah, certo... — Julia descruzou os braços mais calma e até, com certa tristeza por tudo o que ouviu. — Você tem todos os motivos do mundo para estar irritado, desculpe. — Bruno não a respondeu. — Se você estiver com fome, podemos comer alguma coisa... eu também ainda não comi nada. — Pode ser. — Pode ser ou “tudo bem, vamos”? — Tudo bem, vamos. — Eba! — Julia se animou e bateu palmas duas vezes feliz, como uma criança dando pulinhos de alegria. — E onde vamos? — Você escolhe... mas não posso voltar tarde hoje. — Tá bem! — e depois, como ela se lembrasse de alguma coisa, olhou no relógio do celular. — Ei, o bicicletário fecha as cinco e meia.
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— Eu sei. — Mas já são cinco e vinte! — Sério? — ele conferiu o celular também. — Que droga! — Vamos correr, aposto que chego primeiro que você! — Não chega! — Se eu chegar, você me paga o jantar! — Julia desafiou e saiu correndo na frente. Bruno correu atrás. Eles chegaram ofegantes na porta da estação, Julia quem ganhou e chegou em grande vantagem, segurando o funcionário que queria ir embora e fechar os portões do estacionamento. Por pouco Bruno não conseguiu retirar a bicicleta, mas por fim, tudo deu certo. — E então onde você quer ir? — Bruno perguntou em cima da bicicleta, enquanto o cabelo de Julia chicoteava sem querer sua face e ele lutava para manter os fios cor de café afastados de seu rosto, sem cair da bicicleta. — Você gosta de Kebab? — De quê? — Kebab, é um fast-food, pão sírio enrolado e recheado. — Tipo um Wrap? — Parecido, mas diferente...! Conheço um lugar bem legal perto do Parque Municipal. — Que fica do outro lado da cidade! — Bruno afastou o cabelo dela do rosto de novo. — Ei segura o seu cabelo! — Desculpe! — Julia fez o que ele pediu, enrolando o cabelo nele mesmo formando um coque. — Não pode ser um lugar mais perto daqui, não? — Eu não conheço nada por aqui, eu conheço perto de onde eu morava antes! — Conheço uma lanchonete aqui perto, talvez você goste. — Bruno sugeriu. — Pode ser, mas tem milkshake? — Claro... é uma lanchonete de verdade. — Então vamos!
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† Devia ter uma lei que proibisse que garotos comessem batata-frita daquele jeito e especialmente quando esse garoto tem uma boca tão bonitinha como aquela!, Julia devaneou ao observar em câmera lenta como Bruno segurava a batata frita nos dedos e mordia só um pedaço, mastigando bem devagar enquanto mexia no celular, totalmente distraído do mundo, sentado do outro lado da mesa. Deu um largo gole em seu milkshake que gelou a sua garganta fazendo-a tossir. Bruno olhou para ela preocupado, mas Julia só abanou a mão na frente do rosto para recuperar o fôlego. — O que é que você tanto olha nesse seu celular? — a menina perguntou inserindo qualquer assunto que pensou, mas depois que deixou a pergunta sair, arrependeu-se. — São só mensagens da Priscila, ela está me enchendo hoje. — ele soltou o celular em cima da mesa. — Você já explicou pra ela que somos apenas amigos? — Já. — E não adiantou? — Acho que só piorou... — Uau... você deve ter sido muito especial para a garota gamar assim em você! — Julia observou fazendo piada, mas a verdade era que esperava saber mais sobre o que havia acontecido entre Bruno e Priscila. — São meus olhos... ou talvez o piercing na língua. — era uma piada, mas ele nem riu. — Você tem um piercing na língua? — Julia abriu bem os olhos, surpresa. — Acho que isso explica tudo. — e pegou logo uma batatinha enfiando na boca, antes que acabasse falando demais. — Eu não tinha piercing na época. E nem tenho agora. — ele confessou. Era só uma brincadeira, por que Julia levava tudo sempre tão à sério? — Não? E o que fez ela gamar assim em você, então?
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— A Priscila tem namorado, ele chama Ivan e, tipo, é duas vezes maior que eu. — Bruno não queria explicar, mas acabou contando mesmo assim. A informação extra fez Julia parar até de mastigar a batata que comia, perplexa. — Ela nunca foi muito fiel e eu nunca fui de me importar... até o dia que passei a me importar e tudo virou uma bagunça. — Ah. — sem saber o que dizer, Julia apenas fez um sonzinho de que estava acompanhando a conversa. Peraí, isso queria dizer que era Bruno quem estava gamado em Priscila? Isso mudava um pouco as coisas do contexto! — Você levou um fora? — Vários. — Credo! Por que você insistiu tanto? — Eu gostava dela. Queria que ela largasse dele e ficasse comigo mas não foi o que ela fez. — Ela escolheu ficar com ele? — É. — E vocês terminaram? — Sim e não... — Como assim? Isso nem faz sentido! — Nunca nem ao menos começamos... Mas colocou um fim ao que estava rolando, certamente. — Você se arrepende? — Do quê? — Da Priscila? De ter ficado com ela... — É, eu me arrependo. — Por quê? Ela parece uma menina legal e parece que gosta de você, não seria agora que você fica com ela e se vinga de tudo o que rolou? O momento da vingança? Bruno riu. Julia riu também, deu mais um gole em seu milkshake de morango. Apesar da descontração, notou que tinha alguma coisa errada na forma como Bruno riu do que ela falou, especialmente que agora ele abaixava os olhos para o celular e comprimia os lábios, do jeito que ele fazia quando algo o chateava. A primeira coisa que concluiu, foi que Bruno ainda gostasse de Priscila.
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— Você é engraçada, imagina cada coisa boba! — ele por fim falou. — Tipo imaginar que dividir um canudo é como dar um beijo na boca. — Bruno ergueu os olhos azuis para ela de novo e tinha um sorriso de deboche. — Ah, eu devia ter previsto esse comentário! Você deve estar segurando há milhões de anos, esperando o momento exato para tirar uma com a minha cara, não é? — Exatamente. — Você é tão baixo! — Isso vindo de uma menina com um metro e meio não é nem ofensa! — Não é um metro e meio, eu tenho um metro e sessenta e dois! E jogava no time de vôlei! — Puxa, mas que alta, não é mesmo? — o deboche continuou. — E aí vai me deixar dar um beijo na sua boca... quer dizer, um gole no seu milkshake? Julia não se aguentou e deixou a risada escapar, enquanto passava para ele o copo de Milkshake arrastando na mesa. Balançou a cabeça em negação, não acreditando que ele fosse capaz de fazer uma piada na vida. — Todo mundo na escola acha que você é satanista, fico imaginando o que eles diriam se vissem você agora! — Que sou um satanista com senso de humor? — arriscou perguntar, o que fez Julia rir de novo. Ele deu um gole no milkshake, sem dar nenhuma importância ao canudinho, ou até mesmo à baba que tinha nele, e devolveu para ela. — Eu nem imagino o que vão dizer do seu olho roxo na segunda-feira! — Eu gosto da ideia de dizer que você me deu uma cotovelada, soa divertido. Vou ficar com essa. — Bem talvez um dia eu te dê mesmo uma cotovelada no olho, especialmente se você fizer por merecer. — E talvez um dia eu realmente te derrube da bicicleta, especialmente se você me der uma cotovelada.
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— Acho melhor eu tomar cuidado, então. — Julia piscou com um olho e deu um gole em seu milkshake. Tudo bem, ela não devia mais pensar essas coisas, mas não resistiu. Dividir um canudinho ainda era quase como dar um beijo na boca, especialmente depois que foi feita a piada! Parecia que ele tinha feito de propósito... e só de pensar nisso, suas faces pegaram fogo. O celular de Bruno tremeu em cima da mesa e acendeu o visor, rapidamente Julia viu que era uma mensagem de texto, ele pegou uma batatinha da porção e o celular da mesa quase ao mesmo tempo, encostando as costas no sofá da lanchonete, já se distraindo de novo com Priscila. Julia se esforçou para não suspirar com tremenda chateação e deu mais um gole no milkshake, mordendo o canudinho enquanto imaginava como seria beijar a boca de Bruno, se ele tivesse mesmo um piercing na língua... mas se ela fizesse isso, certamente Priscila cortaria a sua jugular com as próprias unhas.
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07 AÇÃO E REAÇÃO † Oito e quarenta e dois da noite era cedo para uma crise, mas Carlos entrou em casa batendo a porta. Bruno estava lavando os pratos e estremeceu assim que ouviu a voz do seu pai chamar: — Bruno! — berrou da entrada. Era algo no tom de voz que anunciava, sem que precisasse ser dito, que ele estava realmente encrencado. Droga, o que era agora? Repassou mentalmente tudo o que ele deveria ter feito, para ter certeza que não esqueceu-se de nada: a porta da garagem estava fechada, as luzes da casa (exceto pela cozinha que era onde ele estava) se encontravam apagadas, o chão da sala estava varrido, a correspondência desde sexta em cima da mesa de jantar... nada estava fora do lugar, do que se lembrava — Bruno! — mais uma vez, dessa vez pareceu ainda mais impaciente. — Já vai! — respondeu largando o prato em cima da pia e fechando a torneira. Ou talvez não devesse ter respondido nada, não dava pra saber qual escolha era a pior. Atravessou a porta saindo da cozinha e contemplou a visão decaída do homem que ele chamava de pai. Carlos estava bêbado, claro. Saiu de casa às quatro e meia, voltava só agora, mas estava bêbado. Havia dito que iria fazer compras, já que a geladeira estava vazia e a dispensa também... E com certeza comprara muitas coisas, desde que essas coisas tivessem teor alcóolico! Era irritante e ao mesmo tempo frustrante vê-lo daquele jeito.
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O pior de tudo era que se Carlos tivesse bebido mais um pouco, ele chegaria em casa sem conseguir ficar em pé, tonto e vendo tudo em dobro ou triplo, o que tornaria as coisas mais fáceis para Bruno. Entretanto, o homem era era grande e forte feito um touro (qualidades que Bruno não havia herdado) e precisaria beber muito mais para entrar pela porta trocando as pernas. Estava muito irritado, dava pra dizer só de olhar. — Onde você estava seu inútil? — já gritou assim que Bruno passou pela porta. — Estou há meia hora te chamando! Ficou surdo agora? — Na cozinha. — respondeu tentando nem se mexer, pois se colocasse as mãos no bolso, por exemplo, Carlos certamente se sentiria desafiado. — O carro está cheio de tralha — ou seja, “compras” — vá buscar e seja rápido! — ou seja, “agora, não fique aí parado” — Não já falei para deixar a luz da garagem acesa para quando eu voltar? — ou seja, “estou procurando um motivo para te dar belas cintadas”. — Anda! Bruno esperou ainda alguns segundos enquanto Carlos se afastava da porta e entrava no escritório. Passou rapidamente pela entrada, foi até a garagem. O carro estava com o porta-malas aberto, a porta da garagem escancarada. Graças a Deus o bêbado foi para o escritório, que continuasse bebendo e o deixasse em paz. Aproximou-se do porta-malas do carro e olhou o que havia dentro. Era uma coisa bem irônica que Carlos ainda por cima usasse sacolas ecológicas de pano, dando uma de Greenpeace. Puxou uma alça da sacola e espiou as compras. Que merda ele havia comprado? Haviam alguns produtos de limpeza nas sacolas, mas estava cheio deles dentro de casa! Olhou todas as sacolas, nenhuma comida... certo tudo bem, podia fazer como fez no mês passado que pediu pela internet usando o cartão de crédito do pai. Tirou duas sacolas do porta-malas. Aproximou-se da porta da cozinha e antes mesmo de abrir, Carlos abriu para ele, encarando-o com tanto ódio que Bruno segurou até a respiração.
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No susto, quase derrubou as compras no chão e deu dois passos para trás. O homem o segurou pela gola da camiseta, que já estava esgarçada de tanto que ele fazia isso e puxou o garoto para dentro da cozinha com violência: — Quer me explicar que bagunça é essa? — Que bagunça?! — não perguntou por mal, mas é que estava tudo bem arrumado mesmo, ele passou a tarde fora mas desde que voltou tinha se certificado que estava tudo em ordem. Carlos apontou para a pia e segurou em seu pescoço com muita força. Foi aí que Bruno teve certeza que não tinha nem o que argumentar, pois não havia escapatória. O prato que ele deixou em cima da pia ainda estava ensaboado e a espuma caiu no chão, molhando-o. Isso se enquadrava no tipo de bagunça capaz de tirar Carlos do sério, especialmente se ele estivesse irritado com alguma coisa como por exemplo, uma fechada no trânsito! Como foi que não pensou nisso antes? — Desculpe. — ainda tentou dizer, mas Carlos já o empurrava com força fazendo-o bater as costas e a cabeça na parede da cozinha. — Aaaai! — e soltou as sacolas no chão, um detergente rolou pelo piso de ladrilho branco e só parou quando encostou no pé da mesa da copa. — Você é um displicente! — Carlos berrou e ao mesmo tempo acertou um tapa no rosto de seu filho com tanta força que ficou a marca vermelha e a palma da sua mão ardeu. — Uma hora que eu saio de casa e olha a bagunça que você faz! — mais um tapa, no mesmo lugar. Bruno escorregou para o chão, com a mão no rosto do lado da pancada... ai! Que saco. — É só um prato! — respondeu. Ainda que tivesse bagunça, tudo bem, mas era só aquele prato, o resto da casa estava até brilhando de tanto que ele esfregou o chão pela manhã. — O que foi que você disse?! — Carlos gritou ainda em pé na sua frente. — É só um maldito prato! — gritou de volta.
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Responder para Carlos não poderia ser considerada uma decisão sábia, mas naquele instante Bruno estava irritado porque tinha feito tudo direito no domingo e ainda assim era acusado de algo que não tinha feito. — Não fale assim comigo, seu filho da puta! — Carlos puxou o garoto pelos cabelos negros, levantando-o do chão. — Me larga! — Bruno berrou de volta, mas foi arremessado conta a mesa da copa caindo por cima da toalha e empurrando sem querer uma tijela de vidro que normalmente servia para frutas, mas que estava vazia. A tigela caiu no chão se partindo em vários pedacinhos brancos e fazendo o maior estardalhaço. — Ai! — Recuperou o equilíbrio e saiu pela porta, entrando no hall de entrada da casa, ele que não ia ficar ali dando sopa para apanhar mais! Carlos foi atrás dele, assim que saiu da cozinha e entrou no hall atrás de seu filho, foi atingido por um vaso de metal que ficava de enfeite na mesinha de canto bem na cabeça. Isso o irritou profundamente e ele se apressou para perseguir Bruno por dentro de casa, pois abominava rebeldia. Correu atrás do filho para dentro da sala de estar, mas quando pisou no meio do tapete, Bruno contornou poltrona e voltou para hall se apressando em subir as escadas e entrou no quarto. Carlos segurou a porta de madeira antes que ela se fechasse e empurrou a porta com as duas mãos, fazendo Bruno cair sentado no chão. — Sai daqui! — Bruno jogou seu coturno contra ele, batendo em seu ombro. — Seu filho duma égua! — não segurou a força no braço quando acertou o rosto do seu filho em um tapa invertido tão forte que os dentes do garoto ficaram vermelhos de sangue; mas o sangue de Carlos estava borbulhando em suas veias e ele segurou o filho pela camiseta e o jogou para fora do quarto, contra a mureta do corredor. Bruno bateu a cabeça contra a parede com tanta força que ficou um tempo zonzo com a dor, o momento sem reação
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concedeu uma bela vantagem para Carlos, que o encurralou entre paredes e o estapeou. — Você tá precisando apanhar, seu puto malcriado! — berrou enquanto o estapeava com os dois braços, os músculos tão rígidos no ato que pareciam que iam rasgar a camisa amarela de linho. O garoto tentou se defender dos tapas empurrando o homem, mas ele estava em uma fúria tão grande que nada o afetava. Quando Carlos achou que seu filho tinha aprendido a lição, ou apanhado o suficiente pelas malcriações, ergueu o garoto do chão segurando-o pelos cabelos e o jogou para dentro do quarto. — Você está de castigo! — e fechou a porta trancando o garoto lá dentro. † Gabi sentiu um cutucão em seu ombro direito e interrompeu o beijo melado que dava em seu namorado Nando para virar-se e encarar Arthur. — O que foi? — perguntou um pouco surpresa por vê-lo ali, já que Arthur só falava com os amigos atletas dele; especialmente que ele estava sozinho, isto é, sem Cidinha. — Você viu a Julia? — Arthur perguntou segurando a alça de sua mochila em um dos ombros. — Não, ela ainda não chegou... — Gabi respondeu. — O que você quer com ela? — Nando, em modo irmãopostiço-protetor perguntou quase rangendo os dentes. — Não te interessa é só com ela. — Arthur revirou os olhos entojado. — Ah, olha ela ali! — Gabi apontou para a amiga que entrava no colégio com uma cara de sono terrível. Arthur não disse mais nada para eles, virou-se e foi andando na direção de Julia, cruzando o pátio da escola. †
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Julia desceu do carro e ajeitou sua mochila nas costas. Atravessou a rua e olhou no relógio do celular para constatar que tinha apenas cinco minutos antes do sinal bater. Que bom que não estava atrasada! Passou pelo portão da escola no que seria um dia totalmente normal e que ameaçava esquentar já que o céu estava bem azulado. — Psiiiiu! — ouviu alguém chamar por ela assim que pisou no pátio escolar. Virou-se e encontrou com Priscila, olhos de lentes brancas, maquiagem pesada e o cabelo azul desbotado. Era um engano, claro, pois Priscila nunca chamaria por ela, por isso Julia apenas se sentiu uma idiota por olhar na direção do chamado e virou-se para continuar seus afazeres. — Ei, Julia! — a menina de cabelos roxos insistiu e Julia virou-se para ela mais uma vez, um pouco surpresa por constatar que não havia sido um engano nenhum. Aproximou-se de Priscila sem dizer nada, mas reparou que ela estava desacompanhada de seus amigos góticos. Antes mesmo de conseguir abrir a boca para perguntar o que Priscila queria com ela, porém, Julia sentiu um puxão em seu braço que vinha do lado oposto. Não deu tempo de pensar, ela girou com o puxão e Arthur a abraçou com os dois braços, enlaçando sua cintura: — Me beija, agora. — ele disse e aproximou-se para um beijo, tocando seus lábios com delicadeza. Julia nem podia acreditar no que estava acontecendo, mas sua mente trabalhou rapidamente enquanto ela correspondia ao beijo de Arthur. O livro. Era mesmo verdade que o livro podia realizar desejos! Ela estava quase eufórica com a constatação, com o beijo, com tudo! Meu Deus! Estava mesmo acontecendo! E o beijo foi demorado, a ponto do seu coração acelerar com o susto e depois ir se acalmando devagar enquanto o beijo ia se desenvolvendo. Os lábios de Arthur eram vigorosos e ele tinha gosto de chiclete de menta.
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O abraço afrouxou e Arthur a soltou. Julia abriu os olhos devagar, apaixonada e foi então que o garoto disse: — Foi o pior beijo da minha vida. — com uma frieza fora do normal. Julia sentiu o seu coração se quebrar. Como é que é?! Antes que ela pudesse pensar em retrucar alguma coisa, viu Cidinha e suas amigas rindo e batendo palma para Arthur como se ele tivesse feito algo memorável. Além delas, Julia reconheceu também alguns amigos de Arthur, também do time. Arthur deu as costas para Julia e andou até Cidinha, eles se abraçaram. — Que otária! Ela caiu direitinho! — uma garota que estava com eles falou. Era nova na escola, mas já estava bem amiga de Cidinha. — Você me deve 200 reais! — Arthur falou para Igor, um outro garoto que estava ali e que era do time e com isso, Igor abriu a carteira já passando o dinheiro para Arthur. Julia não quis nem saber do que se tratava aquilo, mas sabia que havia sido uma aposta. Ela se sentiu muito traída, por si mesma, de ter escrito aquele desejo no Livro, seus olhos se encheram de lágrimas e ela saiu correndo, na direção do banheiro feminino da biblioteca. — Julia! — Gabi a chamou e saiu correndo atrás da amiga. Nando, por sua vez, chegou em Arthur e enfiou um soco no garoto. Arthur revidou e uma enorme briga começou no pátio da escola. † Gabi ajudou Julia a lavar o rosto no banheiro e a controlar a respiração porque ela estava tendo um verdadeiro ataque de pânico e tristeza. — Esse Arthur é um safado! Eu não esperava isso dele! — Gabi disse, estava fazendo o que toda melhor amiga faz em um momento como esse: fala mal do cara e o odeia solenemente,
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dizendo que você pode fazer muito melhor do que isso. — Você total consegue um cara melhor que ele Jujuba! — Eu sou uma idiota! — Julia soluçou enquanto secava seu rosto com a sua blusa já que não tinha papel toalha. — Não, ele que é idiota! — Gabi falou. — Só um idiota publica no Facebook o que ele fez, só os amigos idiotas dão “Curtir” e só a namorada idiota diz que vão usar o dinheiro para um motel! Gabi já tinha fuxicado o Facebook de todos, para saber o que estava rolando. No Facebook de Julia algumas pessoas deixavam mensagens negativas e tirando sarro do acontecido, o que fez Julia querer deletar o seu Facebook mas Gabi não deixou, elas apenas bloquearam os comentários. Outra coisa que elas haviam descoberto era que Nando e Arthur haviam brigado no meio do pátio e que estavam na sala da diretoria. O celular de Gabi apitou e ela pegou o aparelho, lendo a mensagem. — Aimeudeus! — gritou e cobriu a boca com uma mão. — O Nando tá na enfermaria! — Como é que é? — A Regina quem me mandou essa mensagem! — Gabi parecia desesperada. Regina era uma garota da sala delas com quem elas falavam pouco. — É melhor você ir ficar com o Nando. — Não vou te abandonar agora! — Não, sério, é melhor você ir. — Julia insistiu. Não era que ela queria se livrar de Gabi nem nada, mas queria ficar sozinha curtindo a sua fossa e tendo raiva de si mesma. — Mesmo? — Gabi pareceu incerta. — Mesmo! — Julia até fingiu um sorriso. — Okay! — Gabi a abraçou com o celular na mão, pegou suas coisas e se mandou rapidamente. — Qualquer coisa me liga! — disse antes de sair pela porta. Julia se encarou no espelho. Os olhos castanhos pulsando vermelhos cheios de veias de tanto chorar e a expressão chateada.
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Não dava para contar para Gabi a verdade e dizer que aquilo tudo só aconteceu porque ela não escutou os conselhos de Bruno e escreveu no livro um desejo estúpido! A culpa não era nem de Arthur, embora ela tinha que admitir: o que ele fez foi muito muito escroto! Estava com muita raiva de Arthur e de Cidinha! Como que se aposta uma coisa dessas diante do sentimento dos outros? E que péssimo era concluir que Cidinha e Arthur sabiam que ela estava afinzaça de Arthur a ponto de topar se beijar com ele sem mais nem menos no pátio da escola e na frente de todo mundo! Se pudesse, ela queria que Arthur se esborrachasse contra uma parede e quebrasse o joelho! E será que Bruno tinha visto o que aconteceu? Se não tinha visto agora com certeza já estava sabendo porque além da escola inteirinha estar comentando, com certeza Priscila tinha contado tudo nos mínimos detalhes... ou ele tinha visto no Facebook! E se ele já sabia, por que não estava ali dentro do banheiro com ela consolando-a? Poxa! Ela tinha ajudado-o com o lance do olho roxo...! Será que ele estava bravo? Afinal, ela quebrou uma promessa... Com certeza ele devia estar muito puto com isso, concluiu. Enfiou a mão dentro da mochila procurando o seu celular para enviar uma mensagem para Bruno e pedir desculpa, mas seus dedos encontraram a agenda vermelha. O livro dos desejos estava bem ali na sua mão. Sem conseguir se segurar, Julia estava chorando novamente de frente para o espelho abraçada com o livrinho. Como era idiota! Que burra, que burra, que burra! Por que não ouviu os conselhos de Bruno?! E por que deveria ouvir? Bruno usou o livro bastante, tinham várias páginas que ele havia escrito, até com o tal do Juninho! Por que ela não poderia usar e nem se vingar de tudo o que fizeram contra ela?! É, ela devia se vingar! Sentou-se no chão e carregada pela raiva que sentia no momento, escreveu em uma folha: “Quero que o Arthur quebre o joelho”. Pronto, ele ia ver só! Em outra folha, ela escreveu.
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“Quero que a Cidinha fique careca”. Tinha que ser o cabelo, porque Julia odiava aquele cabelo perfeito de Cidinha! Ela queria que aquele cabelo caísse inteiro da cabeça dela! Maldita fosse Cidinha e sua perfeição! Depois que escreveu, Julia se sentia bem melhor! A vontade de chorar passou e ela estava até mais calma. Guardou o livro na mochila e levantou-se. Lavou o rosto e decidiu que voltaria para a sala de aula. † Até que não havia sido tão traumático voltar para a aula. Apesar de sua página de Facebook ter sido invadida por uma porção de mensagens negativas, na escola as pessoas apenas olharam esquisito para ela. Algumas pessoas ficaram até do lado dela, julgando que o que a turma de Arthur havia feito era nojento e baixo, mas eles não ligaram, continuaram se divertindo e esqueceram da aposta como se não fosse nada importante sacanear e destruir os sentimentos de alguém. Nando e Arthur levaram uma suspensão e Gabi conseguiu uma licensa para sair da escola com seus pais e acompanhar o namorado, que estava machucado, para casa. Julia queria ir junto, mas sua mãe não deixou ela sair (e ela também não contou o motivo). Tudo o que Julia teve que fazer para passar intacta foi: não ligar o 3g do seu celular e olhar o seu Facebook, não descer no intervalo e evitar as risadinhas de todos, não falar com ninguém (nem com as meninas que passaram bilhete na sala de aula dizendo que achavam muito babaca o que Arthur havia feito) e, ao final da aula, esperar todo mundo ir embora para só então resolver descer as escadas e atravessar o pátio. Quando passou pelos portões, levou um susto ao ver Bruno ao lado de seus amigos góticos, conversando normalmente. O que ele estava fazendo ali?! Ele não estava de uniforme, mas de calça
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xadrez e um moletom preto escrito “Alien Sex Fiend” nas costas de vermelho com letras imitando tinta escorrida. Priscila quem sinalizou para ele que ela estava no portão e quando ele se virou para olhá-la, Julia entendeu porque ele faltou na escola. Bruno tinha um corte no lábio inferior e um belo arroxeado ao redor. — Ei, você tá legal? — ele perguntou assim que se aproximou. Priscila veio junto enquanto os morcegos ficaram do outro lado da rua, observando curiosos. — Ah, você já está sabendo? — sentiu até vergonha, era claro que todo mundo já estava sabendo! — A Gabi me falou. — Bruno contou. Julia fez uma cara de estranheza franzindo as sobrancelhas. — No chat do Facebook. — Ah... — deixou um sorriso escapar e teve vontade de chorar. Poxa, que fofo! Ele foi até lá porque estava preocupado com ela! — Aquele pessoal é mesmo muito babaca! — Priscila falou encarando-a com os olhos de lentes vampirescas. Sua voz era aveludada e muito bonita, poderia pertencer até à uma cantora. Depois, ela olhou para Bruno. — Eu tenho que ir o pessoal está esperando... vê se cuida dessa gripe, hein! — e abriu um sorriso. — Vou cuidar. — ele respondeu como fazia tipicamente: sem a menor emoção. Priscila se aproximou de Julia e a abraçou, o que foi muito esquisito para Julia, já que ela tinha certeza que a garota estava com tanta raiva que poderia puxar seus cabelos até arrancar o couro cabeludo. Depois, a morceguinha se afastou deles e se juntou aos amigos. Bruno virou-se para Julia, mas ela, sem coragem de encará-lo abaixou a cabeça. — Você está gripado? — ela perguntou porque não sabia o que dizer. — Não, mas eu sempre uso essa desculpa. — confessou e andou até a bicicleta que estava presa pelo pedal no meio-fio. Julia o seguiu, puxa como era bom vê-lo ali! — E eles acreditam?
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Bruno deu de ombros e subiu na bicicleta. Pegou a mochila de Julia, no mesmo movimento que fazia diariamente. — E você tá bem? — Ela se aproximou, mas não se sentou no cano. Ficou ali parada, segurando na manga do moletom dele e olhando para a ferida enorme que ele tinha na boca, contou os piercings e percebeu que ele tirou os do lado direito, provavelmente porque deve ter machucado muito. — É, eu tô. — Bruno abaixou a cabeça e comprimiu os lábios. Não, não tava, mas não ia admitir. — Sinto muito pelo lance do Arthur, nem acredito que ele fez isso contigo. — É... sobre isso... eu preciso te contar uma coisa... eu... eu... — droga era tão difícil falar! Encostou a cabeça no ombro dele e respirou fundo, para conter as lágrimas. — Você escreveu no livro, não foi? — Bruno já sabia, afinal, era óbvio. — Foi...! — e seus olhos se encheram de lágrimas, a voz embargou. — Eu escrevi... eu sou uma imbecil... — Ah, não chora...! — Bruno pediu, colocando as mãos nos ombros dela. Não dava nem para ter pena de Julia, afinal foi ela que escreveu no livro ignorando todos os seus avisos, mas não dava para ver uma garota chorando por um babaca e não se comover. — E você tem um livro dos desejos, pode, sei lá, se vingar deles quando quiser! Julia chorou mais ainda e se abraçou com ele. Bruno ficou sem entender o porquê, mas viu Priscila do outro lado da rua que esperava o ônibus fazendo a maior cara de raiva, comentando algo com Andreza e se segurando para não ir até lá encher Julia de porrada, o que, por um lado, era muito bom de ver. — Ei, vamos lá, se acalme. — Bruno afastou-se de Julia. Secou os olhos dela com as mãos. — É só um cara babaca, ele nem merece que você fique chorando por ele. Ok? — Você acha que eu devia me vingar? Acha mesmo? — Ela perguntou com a cara bem vermelha e os olhos derramando água. — Eu acho. Você não acha?
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— Eu acho... — e ela se permitiu sorrir. Estava aliviada por saber disso. Por ele não estar puto de raiva por ela ter usado o livro e ainda querer que ela se vingasse de Arthur. — Valeu por ter vindo me buscar... — De nada. Mas vamos logo que a Priscila está fulminando a gente e eu já tenho problemas demais. — Você fala essas coisas de um jeito que faz parecer que ainda gosta dela. — Não gosto. Mas confesso que adoro quando ela morre de ciúmes. — ele deixou um sorrisinho escapar, desses de canto e que aclamam vitória. — Você é mesmo muito vingativo. — ela secou as lágrimas com a manga do suéter da escola. — Você também. — É, acho que eu sou. — Julia respirou fundo. Era hora de admitir, era claro que era! A primeira coisa que fez quando Arthur e Cidinha zombaram dela foi se vingar no livro, antes mesmo de Bruno dizer que ela devia fazer isso. — Eu tenho certeza que sou. — Certo, então me ajude um pouco com isso e me abrace de novo. — Bruno falou já puxando Julia em sua direção. Julia o abraçou como ele pediu, um abraço apertado desses que fazem prender o fôlego. Ela imaginou Priscila soltando fumaça pelas orelhas de tanta raiva e se divertiu com isso... alem do quê, abraçar Bruno era algo gostoso. — Quanto você quer apostar que ela vai deixar o ônibus passar? — ele perguntou. — Eu aposto cinquenta que ela vai ficar tão brava que vai atravessar a rua! — Julia segurou nos ombros dele e o beijou no rosto, a pele dele era tão macia e fresca que ela sentiu os joelhos amoelecerem. Depois, deu outro beijo mais perto do queixo e sentiu quando as mãos dele deslizaram por suas costas e pararam no quadril. O jeito com que ele a segurava era muito sensual, Julia pensou enquanto os pêlos de seu braço arrepiaram. — Ah, ela pegou o ônibus. — ele avisou, mas não se soltou de Julia.
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— O quê? — Revirou os olhos porque perdeu a aposta. — Eu achei que ia conseguir irritá-la! — Acredite, você conseguiu. — Sério?! Não parece... — e por fim eles se soltaram, de forma natural. Julia o encarou e ele tinha um sorriso fofo no rosto. — Isso quer dizer que eu ganhei a aposta? — É, pode ser. Mas como ela não atravessou a rua, você me paga um sorvete. — Feito. — Julia sorriu também e depois sentou no cano da bicicleta. Bruno passou o fone para ela. — O que estamos escutando hoje? — Switchblade Symphony. — Uau, que nome exótico! — debochou. Ele começou a pedalar e ela lembrou de segurar o cabelo. † Eles passaram a tarde juntos mais uma vez. A sorveteria encheu e esvaziou de casais e amigos enquanto eles conversavam sobre diversas coisas. Dividiram um sorvete Banana Split todo de chocolate enquanto Julia contou como conheceu Gabi na escola e como ela sempre foi afim de Nando mas não tinha coragem de falar com ele, então Julia quem tinha feito amizade primeiro para aproximar os dois e apresentá-los, dizendo que achava que eles eram perfeitos um para o outro. — Tenho certeza que eles se dão bem, mas não existe esse negócio de ser perfeito um para o outro. — Bruno fez uma cara esquisita, como se achasse Julia uma maluca por pensar uma coisa dessas. — E além do mais, acho que ele gosta de você. — Claro que ele gosta, somos amigos! — ela riu divertindose, deu uma ombrada em Bruno, que estava bem ao seu lado. — Não é desse jeito que eu estou me referindo... — Você fala as coisas da boca pra fora, lembra que você disse que o Arthur estava com ciúmes? Acho que o que aconteceu hoje prova o quanto você estava errado.
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— Talvez eu tenha me enganado... — Talvez?! Não seja tãaaao modesto! — ela atirou um guardanapo nele. — Você estava totalmente enganado! — Tudo bem, eu estava totalmente enganado. — ele jogou o guardanapo de volta nela, mas fez uma bolinha antes. — Você acha mesmo que eu devia me vingar deles? Quero dizer, que eu devia escrever algo ruim para ele nos livros? — O cara foi um completo babaca... eu escreveria se fosse comigo. — mas depois que ele falou, pareceu se arrepender. — Mas você tem que ter certeza antes de fazer algo assim, porque não tem contra-feitiço e uma vez que acontece, fica pra sempre. Fora que desejar o mal assim pros outros, não vai te garantir nenhum lugar no céu... — Talvez eu não me importe de ir para o inferno se puder me vingar. — É, tenho certeza que não. — ele apoiou a mão na cabeça. — O que é irônico, antes de o livro te escolher, eu achava que você era uma garotinha cor-de-rosa com uma vida cor-de-rosa e sem motivo nenhum para ter raiva do mundo... diferente de mim. — Eu não tenho raiva do mundo, mas tenho de algumas pessoas... especialmente da Cidinha, do Arthur e da Priscila. — Da Priscila? — É algo com o jeito com que ela me olha... parece que quer me trucidar. — Ah, ela quer! — Viu... — e depois que pensou bem no assunto, viu que não tinha motivos para Priscila querer trucidá-la pois ela nunca tinha feito nada contra Priscila. — Eu nunca fiz nada contra ela e a garota me odeia! — Você fez algo contra o Arthur e a Cidinha por acaso? — Não... quer dizer... eu fiz. Hoje depois do que aconteceu eu escrevi no livro que queria que o Arthur quebrasse o joelho e que a Cidinha ficasse careca. — Ei, isso é perigoso... — a expressão de Bruno mudou, ele parecia preocupado agora. — Eu te falei que o livro só funciona a
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partir de oportunidades, ficar careca é algo bem amplo... ela pode desenvolver até um câncer e ficar careca no tratamento, você tem que tomar mais cuidado com seus desejos. — Talvez eu não me importe que seja com um câncer. — mas agora que pensou nisso percebeu que um câncer era algo que possivelmente matasse-a e Julia só queria que ela ficasse careca. — Mesmo? — ele pareceu não acreditar. — Não... acho que eu ficaria chateada se algo assim acontecesse. — Com certeza ficaria. — Bruno parecia saber por já ter feito algo parecido. — As coisas podem fugir bastante do controle... você tem que tomar mais cuidado, pensar melhor no que pode acontecer antes de sair escrevendo qualquer coisa. — Você já fez algum pedido que fugiu do controle? — Vários. E outros eu fiz sem me importar com isso, mesmo. Mas o que você faz com o livro é problema seu, não quero saber. Não é responsabilidade minha. — Você realmente não se importa ou está fazendo tipo? — Não me leve a mal, não é que eu não me importo com você... de fato, até me preocupo. — Você se preocupa comigo? Mesmo? — É. — ele bateu os ombros, lançou um sorriso. — Mas bem feito pra você! Pedir um beijo na boca é algo tão... quinta série! — Eu sei! — Julia riu e encostou a cabeça no ombro dele. — Foi exatamente o que eu pensei quando escrevi... e pra ser sincera... eu nem queria mais aquele beijo quando ele aconteceu. — ela deslizou as duas mãos e segurou na mão dele, enlaçando os dedos com os dedos dele. — Conta outra, você ficava imaginando que beijava a boca dele por um canudo de chá...! — debochou. — Ficava... mas isso foi antes da gente dividir aquele milkshake. — Por quê? Ficou imaginando como seria me beijar? — Eu fiquei...
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Ele riu, achando graça do que ela estava dizendo. Desencostou a cabeça da mão e mexeu o ombro para Julia desencostar dele. Ela ergueu a cabeça e o encarou sem graça, mas quando Julia foi soltar sua mão, ele não deixou. — Esse você não precisa pedir no livro. — e repousou a mão na nuca da garota puxando-a em sua direção. Julia permitiu que seus lábios se tocassem, os lábios perfeitos de Bruno eram macios, estavam com gosto de sorvete de chocolate e os piercings tornaram tudo mais interessante. Eles se beijaram o resto da tarde.
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08 OPORTUNIDADES † Julia sentiu borboletas na barriga assim que colocou os pés para fora de sua casa naquela manhã de terça-feira com a mochila nas costas e o uniforme escolar, pronta para pegar uma carona com Bruno até a escola. Ainda não decidira-se sobre o que pensava a respeito, (afinal ela gostava de Arthur desde os 12 anos!), mas não podia negar que havia sido legal o que rolou entre ela e Bruno na tarde anterior: eles se beijaram até o anoitecer na sorveteria e depois, continuaram a sessão de beijos em seu quarto ao som das bandas gravadas no CD que ela ganhou de aniversário dele e que, antes dele ir embora, eles combinaram de irem juntos para a escola. Lembrou-se de que Gabi e Nando fingiram que nada aconteceu na festa em que se beijaram no dia seguinte e levaram mais uma semana para marcarem de ir ao cinema juntos e se beijarem de novo, ocasião em que Nando pediu Gabi em namoro. Ela não se imaginava fazendo isso com Bruno, até porque, ele nunca a pediria em namoro visto que ele não namorava (palavras dele). Sentia o seu coração batendo descompassado no peito, a respiração travada de nervosismo e suas mãos estavam suando de tanta ansiedade. Seu coração pulou forte e ficou preso na garganta quando a bicicleta de Bruno parou na porta da sua casa. Bruno não parecia diferente (ele estava com o uniforme um pouco amassado e com cara de sono, a boca ainda partida pela pancada de seu pai e os
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cabelos precisando de um pente, como usualmente), mas para Julia, ele parecia outro. Ela ficou endurecida sem reação e andou como um robô precisando de graxa nos joelhos até ele. Bruno estava de fones, pegou a mochila dela, colocando nas costas, sem nem olhar para ela, com os olhos azuis quase grudados no chão. Era isso? Julia chateou-se. Ele não ia dizer nem “bom dia”? Não ia sorrir? Se ele ia brincar de ignorar, o que estava fazendo de bicicleta na porta da sua casa? Bruno levantou o olhar para ela depois que ajeitou a alça da mochila nos ombros e enfim sorriu. Quando seus olhos se encontraram, Julia entendeu que ele estava apenas tímido e não ignorando ela como havia (idioticamente) imaginado e por isso, ela sorriu também, passou o dedo pelos fios negros da franja dele, tirando de cima de seus olhos azuis, prendendo-os na orelha e, segurando firme em seu cabelo, ela o beijou. Depois, sorriram um para o outro e Julia sentou no cano da bicicleta. Bruno passou o fone de ouvido para ela e pedalou até a escola. Eles não disseram nada um para o outro durante o caminho, mas quando chegaram na porta da escola e ele se abaixou para prender a corrente na roda da bicicleta, Julia se sentiu no dever de perguntar: — O que você vai dizer para a Priscila? — Eu deveria dizer algo a ela? — Bruno perguntou ao ficar de pé, tentando analisar a expressão de Julia. Garotas eram mesmo esquisitas, isso lá era coisa para ela se preocupar? — Eu odeio que me respondam com perguntas. — E suas sobrancelhas se curvaram por cima de seus redondos e grandes olhos castanhos, em uma expressão irritada. Bruno coçou a cabeça um pouco indeciso com o que dizer depois disso. Tudo o que ele pensou era uma pergunta: “O que a Priscila tem a ver com isso?” ou “O que você quer que eu diga?”; mas como ela havia acabado de dizer que detestava que a respondessem com perguntas, resolveu não arriscar.
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— Eu não acho que tenho que ficar me explicando pra Priscila, ou pra ninguém. — e deu de ombros. Julia ficou calada, os olhos intensos em cima dele como se o analisassem. Ela não ficou contente com a resposta que ele deu, teve certeza. E embora já soubesse que Julia era tola e inexperiente com todo esse lance de relacionamentos de tudo o que conhecia dela, bem, ele não era. Percebeu que Julia estava com ciúmes do lance todo relativo à Priscila e provavelmente, muito insegura com o lance de que ele dissera que não namorava com Priscila e nem ninguém, certamente imaginando que ele faria a mesma coisa com ela, sem nem ter coragem suficiente para perguntar quais eram suas intenções. O que era irônico, ou até mesmo hipócrita visto que era ela quem tinha sentimentos por outra pessoa ali e não ele. Por isso, ele segurou nas alças da mochila dela e a puxou em sua direção, trazendo-a bem para perto. — Quando você quiser, a gente muda o status do Facebook para “namorando”, mas a condição para isso acontecer é que você tem que esquecer o Arthur. — e depois, a beijou. Julia entendeu o que aquelas palavras queriam dizer, por isso, quando eles se afastaram e cessaram o beijo, quando Bruno olhou para ela sem nem sorrir e se preparou para ir até o portão da escola, ela o segurou pela manga da jaqueta, o mesmo ato que tivera feito quando eles trocaram as primeiras palavras. Ele parou, virou para ela, olho no olho. — Não é nada disso. — ela falou com suavidade, um pouco de tristeza e um pouco de alegria ao mesmo tempo misturando seus sentimentos. Alegria porque ele havia dito, naquelas palavras que gostava dela; mas ao mesmo tempo, havia tratado-a como se ela fosse Priscila. — Eu nem ia ficar com você se eu estivesse pensando no Arthur, poxa... até me ofende que você pense isso de mim! — Bruno ficou parado ali na frente dela, sem dizer nada, totalmente sem emoção e isso já estava começando a desesperá-la. — Vamos deixar isso bem claro entre a gente, tá bem? — Isso quer dizer que você vai mudar o status do Facebook?
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— Depende, você tá fazendo isso só pra fazer ciúmes na Priscila? — Não, claro que não. Até me ofende que você pense isso de mim. — ele fez questão de usar as palavras dela contra ela mesma. — Eu nem ia ficar com você se tivesse pensando na Priscila. Julia revirou os olhos ao constatar que o lance de Bruno ser vingativo não era uma brincadeira, ele realmente era! — Isso nos deixa quites. Estamos entendidos? — Certo. — E faço questão que a morcega veja pelo seu Facebook que somos oficiais. — e por fim, Julia o puxou em sua direção para um beijo. Depois disso, de mãos dadas, eles entraram no colégio. † — Não acredito que você não me falou nada antes! — Gabi quase berrou no meio da classe durante a aula de química. Ela estava com um pirulito na boca, como sempre e os cabelos presos com uma tiara de princesa feita de plástico. Ela segurava o celular na mão, na página do Facebook, abismada com a mudança repentida de status que aconteceu no meio da aula, gerenciando o perfil da rede social pelos celulares. Julia teve que contar todos os detalhes da tarde de segunda-feira, inclusive os amassos no quarto e ficou roxa de vergonha por ter que fazer isso. — E o Arthur? — Depois do que aconteceu, quero que o Arthur se exploda. — Julia sentenciou. Mais precisamente “quebrasse o joelho” como desejou no livro. — Mas justo o “Pinhead”?! Tipo, tudo bem que ele foi fofo com você todos esses dias... mas ele tem piercings e usa maquiagem, Jujuba! — Eu gosto. — Julia deu de ombros. — Não, você não gosta de piercing! Nem de meninos que usam maquiagem. — Gabi sabia muito bem que tipo de garoto fazia ou deixava de fazer o gosto de Julia.
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— Eu gosto do Bruno, com ou sem piercing, com ou sem maquiagem. — falou para enfatizar. — Se você diz... — Gabi rolou os olhos e ficou um silêncio entre elas depois disso. Julia abriu o caderno irritada, virando as folhas com raiva, isso fez Gabi tirar o pirutlito da boca mais uma vez: — Acho que eu tava certa afinal. — Como assim “certa”? — Você pega carona com ele todos os dias, isso faz de vocês namorados! Julia acertou um tapa na cabeça de Gabi com seu caderno, mas a ruivinha apenas gargalhou, tirando sarro. Julia deu risada em resposta. — Mal posso esperar para ver a cara da Priscila hoje no recreio! — Ai, nem me fala... acho que vou morrer de dor de barriga antes disso! — Julia colocou uma mão em sua barriga para enfatizar que estava com borboletas na barriga de ansiedade. — Você devia falar para o “Pinhead” sentar aqui do seu lado depois do recreio... agora que são namorados, era bom ficarem juntos, não é? — Você acha? — Julia sentiu as borboletas se mexerem de novo. Será que ela estaria sendo muito precipitada se pedisse para ele mudar de lugar na sala? Olhou para Bruno que parecia bem entediado com a aula, apoiando o queixo na mão e fingindo que estava prestando atenção, quando na verdade, estava ouvindo música. — O Nando mudou de lugar. — Gabi justificou um pelo outro. Julia ficou calada, claro que ela queria que Bruno mudasse de lugar, mas não queria ter que pedir. †
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A cara que Priscila fez quando Bruno apresentou Julia para todos os seus amigos como “sua namorada” foi uma expressão de ódio puro. Especialmente quando Andreza abraçou Julia e falou: — Ai que bom! Eu estava na torcida! — a garota de cabelos azuis era baixinha e tinha uma voz super fina e de criança. Torcida para quê?!, Julia devaneou, mas abriu um sorriso bonito e aceitou o abraço da garota que cheirava à base compacta por usar tanta maquiagem no rosto para ficar com a cara branca feito um fantasma. — Muito prazer, my lady. — Tadeu, um esquisito cabeludo de sobrancelha raspada, lentes brancas e com uma camisa branca com manga balonê, falou dando um beijo nas costas da sua mão deixando uma marca de batom preto. — Seja bem vinda! — Jaime, um ruivo com a cabeça raspada nas laterais e que estava de mãos dadas com Andreza falou. — Uau você é muito linda! — Eduardo falou. Ele tinha piercings por todo o rosto, era careca e tinha as sobrancelhas raspadas. — É, seja bem vinda. — Priscila se esforçou para sorrir. Depois, virou para Gabi. — E onde está aquele seu namorado? — O Nando tomou uma suspensão por causa da briga de ontem. — Gabi abriu um pirulito enquanto respondia. — Ai eu achei o máximo o que o Nando fez! — Andreza estava eufórica. — Aquele pessoal da Turma B são uns babacas! Quem aquele cara pensa que é pra vir assim te agarrando, né! — O cara é muito podre! — Jaime concordou e deu um beijo na testa de Andreza. — É verdade que você era afim dele desde o sétimo ano? — Priscila quis saber. Não era por curiosidade, era mais para ofender o namoro dos dois. — Ela era até a semana passada, que foi quando me conheceu. — Bruno quem respondeu em tom de deboche, porque era a única pessoa não surpresa pelo comentário de Priscila.
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— Ei! — Julia ficou sem graça, as bochechas pegaram fogo. Colocou a testa no ombro dele. Gabi deu uma risadinha, para ajudar. — Ai você é tão fofa! — Andreza segurou em uma mecha do cabelo de Julia. A alegria que ela demonstrava por ver Bruno namorando resumia o sentimento de todos os amigos de Bruno que acompanharam tudo o que aconteceu entre ele e Priscila ano passado. Depois do intervalo, Gabi pediu para Bruno mudar de lugar na classe e ele mudou sem que ela precisasse insistir. † Quando quando Nando cruzou o pátio naquela manhã fria e chuvosa, ele andou até o lugar de praxe dos góticos, onde Gabi e Andreza estavam trocando esmaltes já que essa parecia ser uma paixão que as duas tinham em comum. Eles estavam andando com eles desde que Julia e Bruno resolveram namorar. Priscilla passou as últimas semanas inteiras reclamando no chat da Guilda que Bruno agora passava mais tempo com a namorada do que com os amigos, mas nem Andreza, Jaime, Tadeu e Eduardo ligaram, pois era de senso comum que eles estavam mais do que felizes por Bruno estar namorando. — Bom dia! — ele beijou Gabi e trocou um aperto de mão com Jaime, que estava ao lado de Andreza com a maior cara de tédio. — Bom dia! — Andreza respondeu com um sorrisão e um pirulito de coração na boca, cedido por Gabi. — Nando, o que você prefere? Vermelho Maçã-do-Amor ou Doce Orgulho? — Gabi tinha os dois esmaltes na mão, que eram de Andreza e ela estava trocando por um furta-cor que servia como cintilante e que Andreza queria passar em cima de um preto para criar um efeito especial. — Qualquer um! — ele sentou do lado de Gabi e deu as mãos com ela, os esmaltes pareciam iguais.
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Gabi chegava sempre cedo e normalmente precisava ficar esperando sozinha, mas agora encontrava sempre com Andreza que chegava ao mesmo horário e juntas esperavam todos os outros. Jaime era sempre o segundo a chegar, as vezes ele chegava junto com elas e naqueles dias ela desenvolveu uma amizade divertida com eles, o que mudou totalmente a sua opinião acerca do namoro de Julia, já que ela descobriu que Bruno era um cara legal e que tinha sofrido com o relacionamento com Priscila, que ainda namorava com Ivan. Claro que tudo melhorou quando ela descobriu que eles não eram satanistas e que nem todos gostavam de piercings. Dali do pátio eles viram quando Arthur chegou abraçado com Cidinha, com o joelho enfaixado e muletas. — Caramba, olha aquilo! — Jaime debochou. — Ele deve ter se machucado durante o campoenato... — Gabi soltou. — Ah é mesmo! — Andreza comentou. — Parece que ele escorregou quando tava viajando com os pais! — Escorregou? Caracoles... — Jaime comentou. — Bem feito! — Nando debochou. — Foi pouco pra um babaca que nem ele. — Ai na minha opinião, é a vida se vingando desse otário! — Gabi decretou. — Mais cedo ou mais tarde, aqui se faz aqui se paga! — Com certeza! — Andreza concordou. Todos eles ainda guardavam mágoas da turma de Arthur pelo o que fez com Julia e agora que ela estava definitivamente fazendo parte da turma, eles todos tomavam partido. — Preciso contar pra Jujuba! — Gabi largou os esmaltes que estava escolhendo e pegou o celular de dentro do fichário, já digitando algo. — Contar o que? — Julia estava bem do lado dela, havia acabado de chegar com Bruno e eles estavam de mãos dadas. — Cara você tinha que ver, o Arthur passou aqui com o joelho enfaixado! — Gabi ficou em pé e abraçou Julia.
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Julia levou um susto. Já tinha até se esquecido do desejo que fez no livro para que ele quebrasse o joelho e se sentiu um pouco culpada com o que aconteceu. Quer dizer, ela não precisava mais ter raiva de Arthur, afinal, por causa da babaquice dele foi que ela pôde partir para um lance bem mais legal... que era Bruno. — Bem feito praquele otário! — Bruno comentou nada incomodado com o fato de que o desejo havia se tornado realidade, ele tinha até um sorriso no rosto ao dizer isso. — Pode crer! — Nando concordou quando eles se cumprimentam dando um leve soco com suas mãos. — Jujuba, Vermelho Maçã-do-Amor ou Vermelho Doce Orgulho? — Gabi tentou a opinião da amiga, já que estava muito indecisa. — Eu gosto do Doce Orgulho. — Julia escolheu. — Então vou ficar com esse! — Gabi decidiu e trocou um esmalte com Andreza. — Eu também queria esse Inveja Boa, você troca? — Troco sim, eu estava namorando esse azul aqui... — Andreza mostrou um azul turquesa que ela achava que combinava com seu cabelo. — Cara, “inveja boa”, isso é nome de esmalte? — Jaime devaneou. — Existe “inveja boa”? — Nando filosofou além. — Não, acho que não... — Bruno também. — Inveja é sempre ruim. — Claro que existe! — Andreza se meteu. — Quando você não tem vontade de prejudicar mas olha com admiração e diz “ai que inveja daquele cabelo lindo dela, queria ter igual”! Isso fez Julia sentir um gelado no seu peito e ela apertou com força a mão de Bruno. Meu Deus! Ela tinha desejado que o cabelo de Cidinha caísse só porque tinha inveja! Como era cruel, primeiro detonou o joelho de Arthur e destruiu a carreira de atleta com que ele sonhava e em breve, destruiria o cabelo de Cidinha e pra quê? Para se vingar de algo que nem tinha mais importância!
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Bruno olhou para ela, sem entender porque ela estava esmagando sua mão direita, mas Julia não disse nada, apenas segurou a gravata do uniforme como se estivesse sem ar. — Ei, tudo bem? — ele perguntou. — Ah, sim... é só que... me lembrei de uma coisa... — e encostou a testa no ombro de Bruno, segurando agora na gola da jaqueta dele, ele segurou em sua mão, fazendo um carinho fofo, mas o arrependimento já machucava a alma de Julia. — Admiração e inveja são duas coisas muito diferentes, Dê! — Jaime falou continuando a filosofagem que estava rolando em paralelo. — Inveja é quando você tem raiva do que a outra pessoa tem e quer destruir, saca? — Ai gente é um Esmalte, sabe? Também não existe orgulho doce! Orgulho é sempre azedo! — Gabi falou o que arrancou risada de todos eles, exceto de Julia, que estava tendo uma crise em sua própria consciência. Logo depois, Tadeu e Eduardo chegaram junto com Priscila e o sinal anunciando a aula bateu. † O sentimento de culpa que estava corroendo Julia por dentro piorou quando no intervalo, enquanto Gabi e Andreza estavam agitando os encontros para o fim e semana, Cidinha desceu com Arthur para o pátio e ele teve que ser ajudado por dois amigos para conseguir descer as escadas e se sentar (com a perna enfaixada esticada) em um banco de cimento para comer um lanche com a namorada. Cidinha tinha um sorriso no rosto, mas Arthur parecia muito chateado. Eles se abraçaram, se beijaram e dividiram um cachorro quente como perfeitos pombinhos. Julia estava se sentindo muito mal e ficando maluca de pensar no que ia acontecer com Cidinha e como ela se sentiria se alguém desejasse que o seu cabelo caísse... quer dizer, tinha que ser algo de alguém com muita inveja mesmo! Por inveja e orgulho
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ela tinha simplesmente acabado com a carreira de atleta de Arthur. Lembrava que quando pegava carona com Arthur, uma vez ele contou que queria se profissionalizar como jogador, era uma espécie de sonho dourado e agora, por causa de sua inveja e seu orgulho, ele estava acabado! Foi pensando em tudo isso, que de repente, sem dizer nada, Julia soltou a mão do namorado e saiu correndo pelo pátio indo se trancar no banheiro da biblioteca para chorar. Enquanto chorava, ignorou os SMSs de Gabi, Bruno e Andreza, que ficaram preocupados com o que aconteceu e porque ela tinha fugido, onde é que ela estava etc, as coisas que qualquer um perguntaria se sua amiga ou namorada saísse sem dizer para onde ia e não retornasse quando a aula recomeçasse. Durante os seus soluços no último período de aulas, a porta do banheiro se abriu e ela ouviu passos que foram até a porta do box em que ela estava trancada, sentada com as pernas encolhidas e a cabeça apoiada nos joelhos. — Você não está chorando por causa do Arthur, está? — era a voz de Bruno, mas ela percebeu que ele estava irritado. — Estou! Ele não merecia nada disso... — Julia estava com a voz embargada e soava entre soluços. Julia só conseguia lembrar das coisas boas de Arthur, o jeito com que ele a ajudava a sair do carro sempre estendendo as mãos quando pegava carona e o chocolate que ele comprou para ela para animar quando ela perdeu a vaga do time de vôlei. Bruno não respondeu, ouvir que ela estava chorando por causa de Arthur foi como um tiro à queima roupa no peito. Continuou parado no mesmo lugar, em frente ao box. Ela o ouviu suspirar, como se ele estivesse de saco cheio. — E a Cidinha... Meu Deus! O que vai acontecer com ela? Eu sou um monstro! — ela chorou mais ainda. — Ele mereceu. — foi o que ele conseguiu falar. — Não, ele não mereceu! Ele não fez nada para merecer isso, eu que fui lá e escrevi coisas ruins porque eu sou ruim! Eu sou um monstro, sabe?! Cara eu tenho que ser muito péssima pra
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ter tanta raiva de alguém! Como posso ser tão vingativa e invejosa assim? — Não é. — Você só está falando isso porque você é pior que eu! — Não se martirize por ele. — Meu Deus... o que foi que eu fiz?! — Julia, sai daí. — ele soou impaciente. — Não! Eu devia me afogar nessa privada! Eu sou um monstro! Eu que merecia quebrar o joelho e que todo o meu cabelo caísse! Eu merecia um câncer, ou cair da escada e quebrar o pescoço! — Sem drama, tá bem? — Não é drama! Você não entende?! Você está sendo muito insensível agora! — Você está surtando. — Não estou! — Não seja criança. — Cala a boca e vai embora! Me deixa em paz! Isso tudo é culpa sua que me deu aquele livro idiota! — Julia berrou. Na verdade, ela não queria dizer isso, mas não queria admitir que estava surtando e que precisava de um abraço. — Vai embora agora! Sai daqui! Não era possível que ela estava chorando por causa daquele babaca depois de tudo! Pensando nisso, Bruno socou uma das portas de outro box com raiva e depois, sem dizer nada, caminhou até a porta e saiu. Julia começou a chorar ainda mais, sentindo como se tivesse sido abandonada pelo namorado em um momento daquele. Até se arrependeu do que falou para ele porque não era culpa dele, mas dela. Ela não queria ter descontado nele e nem dito aquelas coisas, agora com certeza ele a odiava! A porta abriu mais uma vez. Julia sentiu o coração pular de susto. Será que ele estava voltando para socorrê-la? — Jujuba? — era a voz de Gabi.
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— Oi... — Julia respondeu entre choros, mas já não sabia se estava chorando porque brigou com o namorado ou por causa da culpa que sentia. talvez fosse por ambos. — Meu Deus, o que houve?! — Gabi parecia desesperada, parou na porta do box. — Abre aqui, o que você tem? Eu trouxe água com açúcar. Julia abaixou as pernas e abriu o trinco permitindo que Gabi entrasse. A amiga a abraçou preocupada e depois, a fez beber toda a água com açúcar que ela pegou da lanchonete com os sachês. Arrastou Julia para fora do box insistindo que ela tinha que lavar o rosto. — Você está na TPM? — Gabi perguntou sem entender porque ela estaria chorando. — Não... só estou... chateada! — Com o quê? — Gabi parecia ainda mais confusa. — Olha, se anima... a gente estava combinando de ir tomar sorvete depois da aula, a Andreza e o Jaime estão afim de ir... o Tadeu e o Dudu também... depois a gente ia para a casa do Tadeu e aproveitar que os pais dele viajaram... vai ser super divertido vamos ver um filme, você adora filmes. — Eu briguei com o Bruno... — Julia começou a chorar de novo. Gabi fez cara de triste e estendeu para ela um lencinho de papel que ela tinha no bolso. — Eu falei pra ele ir embora e me deixar em paz... — Por que você disse isso? — Eu estava nervosa e falei... — Julia assoou o nariz. — coisas horríveis! — Ai Julia... coitado do garoto, ele estava super preocupado com você. — Gabi comentou com um suspiro de chateação, o que só contribuiu para Julia se sentir pior ainda. — Olha vem aqui, lava o rosto, se acalma... — Gabi abriu a torneira mais uma vez e ajudou Julia se curvar. — A aula já vai acabar e vocês conversam, resolvem tudo. O problema era que Julia não sabia como ia resolver aquilo. Arthur estava com o joelho quebrado, Cidinha ia ganhar um
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câncer e Bruno devia estar muito bravo com ela. Mesmo assim, permitiu que Gabi a ajudasse com aquela crise de arrependimento e depois que o sinal da aula bateu, elas saíram pela porta. Julia sentia-se tonta, com um buraco no coração que drenava sua força. Gabi a guiou para fora do colégio e Julia se sentiu pior ainda ao ver Bruno com sua mochila, já na bicicleta, conversando justo com Priscila. Priscila não perdia tempo mesmo, né?! A garota de cabelos roxos (retocados), estava cutucando o ombro da jaqueta dele, como se estivesse puxando um fiozinho solto, mas na verdade, só estava aproveitando para tocar nele. Mas o pior aconteceu quando Pricila a viu primeiro que Bruno e, para mostrar que tinha todo o poder do mundo sobre ele especialmente em momentos daquele, despediu-se dele com um beijo demorado no rosto e um abraço enlaçando por seu pescoço. O sangue de Julia até ferveu de raiva, teve vontade de pular no pescoço da menina de cabelo roxo e enforcá-la até a morte! — Tchau! — ela falou para Bruno afastando-se dele e depois, virou para Julia. — Tchau Julia, melhoras, hein! Bruno virou-se para Julia no susto e Julia mordeu a língua, para não falar nada de ruim naquele momento, pois isso poderia fragilizar ainda mais a situação. Afinal era a primeira briga entre eles desde que começaram a namorar. — Bom, vou deixar você em boas mão! — Gabi se despediu de Julia e foi encontrar com Nando que já estava no carro de sua mãe esperando por ela. Pelo visto, a sorveteria e o encontro na casa de Tadeu havia sido cancelado porque ela ficou chorando e o clima deve ter estragado. Bruno ficou olhando para ela e Julia simplesmente, não aguentou aqueles olhos azuis em cima dela tão sem emoção. Ela o abraçou e o encheu de beijos na boca, segurando em seu cabelo escuro: — Me desculpa... — ela falou entre os beijos, ele a abraçava, mas desviou o rosto dos beijos. Quando percebeu, Julia parou. — O que foi? Tá muito bravo?
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— Deixa pra lá, vamos embora. — ele falou exausto. — Não, não vou deixar pra lá! — Julia cruzou os braços brava. Sem perceber, ela fez de novo, usando aquele tom de voz manipulativo. — O que é que a Priscila queria com você? — Ela queria saber se estávamos brigando, daí eu disse que não, mas a verdade é que eu acho que estávamos! — Bruno respondeu, mas percebeu que só estava contando a verdade por causa dos poderes do livro. — E pare de usar essa voz comigo! — Que voz? — Julia não entendeu. — Essa do livro... aparentemente você consegue fazer as pessoas falarem a verdade mesmo quando elas querem mentir. É a segunda vez que você me faz dizer uma coisa que eu não quero dizer. — ele explicou. — Eu posso mesmo fazer isso?! — Julia parou para pensar a respeito. — Como que eu uso isso? É uma grande vantagem, sabia? — Sabia! O que é muito injusto já que comigo as pessoas ficavam burras e eu tinha que ficar repetindo as coisas porque elas esqueciam. — Eu lembro disso. — Julia lembrou-se de Arthur e Cidinha esquecerem de uma conversa bem como a enfermeira. — Engraçado que as pessoas esqueciam, mas eu não. — Por causa do livro... estava em passagem... mas agora que ele está definitivo com você, só você pode usar os poderes dele e é bem desagradável. — Foi mal, eu nem sabia desse poder, você podia ter me dito antes! — Julia colocou as duas mãos na cintura. — Pra quê? Do jeito que você é, vai ficar usando toda hora só pra não correr o risco deu mentir para você! — Vou mesmo! — ela riu o que arrancou dele um sorriso. Era um sinal de que eles ainda estavam bem, certo? Ao ver aquele sorriso se formar no rosto dele, ela simplesmente não resistiu e puxou casaco dele trazendo-o para perto, beijando seus lábios perfeitos. Bruno a abraçou e eles fizeram as pazes finalmente.
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† Já era quase noite e Julia estava deitada em sua cama com a camisa do uniforme aberta e o sutiã de renda branca a mostra, abraçada com Bruno que beijava seu pescoço, queixo, boca, ombro, colo... e eles estavam naquela simulação de sexo com roupas há algum tempo (era o máximo que Julia deixava, já que era virgem e não planejava mudar isso tão cedo). Julia adorava os beijos de Bruno e a sensação do seu peso contra seu corpo, a forma como suas pernas se encaixavam, como ele deslizava as mãos por suas pernas. Ela adorava puxar os cabelos negros dele, morder seu ombro e colocar as mãos em suas costas por dentro da camisa do uniforme. Sentir o calor de Bruno e a maciez de sua pele era algo que a deixava maluca e a fazia derreter de paixão e explodir enquanto explorava sensações. Aquela foi a primeira vez que eles estavam fazendo aquilo com a camisa aberta, provavelmente porque Julia estava querendo usar todo o seu poder de sedução para fazer Bruno esquecer de Priscila, de Arthur e do mundo inteiro. Ela estava doida para arrancar a camisa dele e deslizava a mão por seu tórax, ombro, nuca e cabelo enquanto o beijava com delicadeza, mas o seu celular tocou em cima do criado mudo asustando-os e atrapalhando tudo. Eles se afastaram e Julia se sentou pegando o celular e abrindo a mensagem de texto que vinha de Andreza. “Ligue a televisão no canal 5! Dê” — Ué, é uma mensagem da Dê pedindo pra ligar a tevê no canal 5. — Julia falou com o rosto iluminado pela luz do celular em uma expressão de estranhamento. — Ah vai, deve ser um programa tosco... você sabe como a Dê é. — Bruno a empurrou de volta para a cama e Julia cedeu, abraçando-se com ele. — É, acho que sim! Eles se beijaram de novo e ignoraram o recado, depois naquela noite, durante o jantar com Isabela, descobriram que um
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incêndio terrível acometeu um prédio no centro da cidade e era justamente o prédio em que Cidinha morava.
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09 DECISÕES ERRADAS † A única coisa da qual se falava na escola era do acidente no prédio de Cidinha. Contavam que houve um vazamento nos tubos de gás do prédio que causou o incêncio e que, apesar de ninguém ter morrido, Cidinha havia se queimado seriamente. Estava desfigurada e sem cabelo porque ela se cobriu com um cobertor seco para escapar e ele pegou fogo. Comovidos com a falta de sorte da colega, os alunos da Classe B do segundo ano colegial do Colégio São Valentim organizaram um envio coletivo de flores para o quarto da amiga e dispendiam esforços para que todos os alunos assinassem cartões bonitos e cheios de glitter que estimavam melhoras. A página inicial do Facebook de Cidinha estava repleta de mensagens cheias de carinho. Arthur não estava comparecendo nas aulas, diziam que ele estava ao lado de Cidinha o tempo todo e ele deixava recados no Facebook dela também e acabava vez ou outra por receber comentários em sua página também. Apesar da brisa fresca da manhã os dias já estavam mais quentes com a proximidade da primavera e por isso nem todos os alunos estavam usando o suéter. Priscila, que por cima da camisa branca usava um corpete preto de vinil assinou o cartão que desejava que Cidinha melhorasse logo. Era feito em uma cartolina branca dobrada ao meio e com a capa feita a mão por uma menina do terceiro ano
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que fazia scrapbooks, encapada por um contact transparente. A verdade era que Priscila tinha sido a única da turma a fazer isso. Bruno se recusou logo que Adriana, melhor amiga de Cidinha ofereceu um dos cartões no pátio e uma caneta: - Não sou nenhum hipócrita, muito obrigado. - ele falou com a exacerbada frieza de sempre, sentado no chão e dividindo o fone de ouvido com Julia e de mãos dadas com a namorada. Julia, que havia pensado em assinar o cartão antes dele dizer isso, desistiu e preferiu encarar as sapatilhas verdes de plástico que Adriana calçava. O que Bruno falou a fez pensar: seria mesmo muito hipócrita ela assinar o cartão desejando melhoras se ela tinha sido a responsável pelo o que aconteceu. E também, tinha que ser sincera consigo mesma: estava pouco se lixando para Cidinha! Tudo bem, ela entrou em crise quando viu Arthur de joelho quebrado, mas nem se lembrava dos acontecidos e curtiu o resto dos dias com o namorado e os amigos: eles foram ao cinema, ao teatro, viraram a madrugada na casa de Tadeu, tudo como sempre. - Alguém mais vai assinar? - Adriana perguntou ainda na esperança de que alguém além de Priscila fizesse algo. Ninguém respondeu. Gabi e Nando não pararam de se beijar; Andreza continuou pintando as unhas com um novo esmalte Violeta que ela trocou com Gabi; Jaime Tadeu e Dudu não interromperam a conversa fervorosa que tinham sobre gêneros musicais. Entretanto, eles só estavam fazendo isso porque estavam do lado de Julia e não assinar era como tomar partido. Adriana afastou-se deles empinando o nariz de forma detestável, defendendo sua querida melhor amiga e foi espalhar que eles haviam sido os únicos a não assinar o cartão, o que não era verdade porque algumas meninas do primeiro colegial também se recusaram a assinar porque em um treino Cidinha empurrou uma amiga delas que era reserva do time e a menina havia se machucado na ocasião.
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- Daqui a pouco vão perdoar todos os pecados e santificar essa garota! Isso me dá nojo! - Andreza encerrou o assunto com essa observação.
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- Tchau Jujuba, nos vemos sábado? - Gabi abraçou-se com a amiga no final da aula, depois deu as mãos com Nando para sair da sala. Julia guardou as coisas em sua mochila vagarosamente enquanto Bruno mexia no celular e escutava música com apenas um dos fones, ela olhou para ele e viu quando ele suspirou de raiva e guardou o celular no bolso, erguendo os olhos azuis em sua direção: - Eu te encontro lá fora. - ele saiu apressado, sem explicar o que havia acontecido. - Espera! - ela tentou chamá-lo, mas ele já tinha ido, porque saiu correndo. Julia suspirou, guardou suas coisas apressada e saiu da sala enquanto colocava seus livros na mochila. Passou pela porta atrapalhada e o livro de história caiu no chão, abrindo no meio e Arthur, que estava passando por ali abaixou-se para pegar. - O-obrigada. - Julia agradeceu perdendo a reação. Arthur tinha o olhar entristecido, mas continuava o mesmo deus grego de sempre. O uniforme perfeitamente alinhado, os cabelos castanhos avermelhados estavam um pouco mais compridos que o normal, talvez pelo desleixo do momento, e mesmo que estivesse de muletas, ele não parecia estar doente. - De nada. - Ele sorriu para ela, um sorriso genuíno e limpo, de dentes perfeitos e brancos, contornados por seus lábios grossos. - É verdade que você está namorando aquele... - Esquisito? - Julia completou para ele. - Estou.
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- Eu estava tentando lembrar o nome, não ia ofender. Arthur se defendeu, equilibrou-se com uma muleta e ajeito os cabelos no rosto. - Ele é esquisito mesmo. Não tem nada a ver com você... Julia teve um pouco de raiva de Arthur por ele dizer isso, mas ao mesmo tempo, ainda se sentia exponencialmente culpada pelo o que aconteceu e vê-lo andar de muletas pelo corredor da escola não era nada fácil. - É, acho que não faz muito o meu tipo. - ela sorriu por fim. Mas a gente se dá bem, ficamos juntos todos os dias nas férias. As férias haviam sido incríveis nesse aspecto! Isabela viajara na última semana o que deixou a casa só para ela, foi a primeira vez que ficou sozinha em casa. Bruno dormiu lá quase todos os dias e embora ela continuasse virgem, eles estavam avançando mais e mais... - Você tá feliz? - Ei, você tem um daqueles cartões que estão enviando para a Cidinha aí com você? - mudança drástica de assunto. Não dava para falar de Bruno com Arthur, era esquisito demais. - Tenho sim... - Posso assinar um? - Você quer assinar? - ele pareceu surpreso, mas contente ao mesmo tempo. Julia continuou sorrindo e fez que sim com a cabeça. - Legal, você pega pra mim? Está na minha mochila, dentro de uma pasta azul. - Claro. - Julia se aproximou dele. - Em que zíper? - No de trás. A cor favorita de Arthur era azul. A mochila era azul, a pasta, o estojo, tudo o que podia, inclusive a pulseira de plástico do relógio Swatch. Ele dizia que gostava de azul porque era uma cor que começava com “A”. “Por que não amarelo?” Julia havia perguntado a ele, mas Arthur só dera risada dela, achando a pergunta engraçada. Julia tinha saudades daquela época, quando eles eram amigos, conversavam sobre filmes, música e vôlei. Eles tinham
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tanto em comum que Julia achava que ele era o cara certo para ela, imaginava-se em uma vida perfeita com ele, provavelmente, eles escolheriam até o mesmo nome para os filhos sem se consultarem, ao menos ela achava. - Achei. - Julia tirou a pasta e entregou para ele. - A Adriana disse que seus amigos não quiseram assinar... é verdade? - Não são meus amigos, são amigos do Bruno. - Julia bateu os ombros. Gabi e Nando eram amigos dela, mas Jaime, Andreza, Dudu, Tadeu e Priscila não eram. Especialmente Priscila. - E a Priscila assinou. - Ah tá. - Arthur nem sabia quem era Priscila. Tirou o cartão de dentro, não era um gigante feito de cartolina, era um cartão que ele havia comprado em uma papelaria, tinha um cachorro segurando um kit de primeiros socorros com a boca na capa. Aqui, pode assinar nesse. - Me empresta uma caneta? - ela perguntou, mas ele já estava com uma na mão. Ela sorriu e se inclinou para escrever. Arthur ficou segurando a pasta como se fosse uma prancheta. - E como a Cidinha está? - Está se recuperando... ela passou por algumas cirurgias corretivas, por isso vai ficar um tempo internada... disseram que o rosto dela vai ficar quase perfeito, sem cicatrizes e tudo mais... mas ela vai ter que usar sempre peruca... o fogo destruiu os folículos pilosos... sabe? O que produz o cabelo. - Coitada... - Julia engoliu seco em culpa. Talvez não devesse ter perguntado. - E você? Quando vai voltar a jogar? - Ah, eu esmaguei o joelho, nunca vai voltar. - Arthur acrescentou com tristeza. Julia queria pedir desculpas, mas não teve coragem porque ele iria estranhar e fazer perguntas, na vergonha, nem levantou a cabeça e iniciou um desenho ao lado da sua assinatura, para ganhar tempo. - Ei, lembra que a gente ia no parque jogar vôlei? - Arthur perguntou de repente.
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- Lembro! Era muito divertido, a gente nem via a hora passar! - Era muito legal! Eu sinto falta daquela época, sabe? Era tudo tão mais fácil, não é? - Era sim... - Você ainda joga vôlei? - Não, eu arrumei outras coisas para fazer... você sabe, fico desenhando. - Ei, talvez você possa me ensinar a desenhar, qualquer dia desses! - Pode ser... - Julia terminou de assinar o cartão. Devolveu a caneta para ele. - Prontinho. - Obrigado. - ele sorriu. - Me ajuda a guardar? - Ajudo. - ela pegou a pasta e colocou dentro da mochila. Espero que a Cidinha melhore logo e você também. - Obrigado. - Ele ajeitou as muletas para andar, olhou firme para Julia. - Você não tem raiva de mim? Depois do que eu fiz eu achei que... - Eu fiquei chateada. - Julia encolheu os ombros, mas ficou muito nervosa com aquela pergunta. - E fiquei com muita raiva no dia, mas depois me arrependi. Me desculpe... - ufa, pronto, havia dito! - Não, eu que tenho que pedir desculpas. - ele abaixou a cabeça, envergonhado. - Aquilo que eu disse... sobre o seu beijo... foi só porque eu apostei... na verdade, foi até legal... sabe? O coração de Julia pulou de um lado para o outro em seu peito, tão forte que parecia que ia perfurar sua pele e sair pulando pelos corredores da escola sozinho! Ela prendeu até a respiração e não conseguiu falar nenhuma palavra. - Fico feliz por você estar... namorando. - ele por fim sorriu. - A gente se fala? - Se precisar é só me ligar, tá bem? - Julia sorriu também. Arthur se aproximou para beijar-lhe o rosto, em um cumprimento que ele nunca fizera antes.
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Julia entrou em pânico e acabou se mexendo, então eles quase se beijaram na boca sem querer, pararam e desviaram como dois joão-bobos. Riram. Ele segurou em seu ombro e se aproximaram de novo meio sem jeito. Arthur acertou sua bochecha com um beijo suave e de lábios quentes. Ela ficou com as faces em labaredas e rosas de vergonha. - Até mais. Julia pensou em se oferecer para ajudá-lo a descer as escadas, mas assim que se virou, deu de cara com Bruno em pé no corredor de cabeça baixa e com fones. Arthur passou por ele sem cumprimentar e nenhum dos dois se deu a trabalho de falar alguma coisa, inclusive, Julia percebeu que ambos viraram a cara para o outro lado, fazendo questão de evitarem-se. O coração de Julia se debateu de susto, arrependimento e é claro, com vergonha de ter sido vista assinando o cartão de Cidinha e conversando com Arthur, especialmente que Bruno não tirou os olhos do chão, nem mesmo quando ela se aproximou. Ele se desencostou da parede e Julia deu as mãos com ele, mas Bruno soltou. Ele sempre fazia isso quando estava chateado ou bravo. Ele não disse nada, nem brigou com ela e nem fez nenhum comentário, o que na opinião de Julia foi pior do que se ele tivesse reagido de alguma forma. Tudo o que Bruno fez foi ignorá-la, passando o tratamento do silêncio e desceu as escadas, saindo para o pátio, onde seus amigos o esperavam. - E aí tudo pronto? - Dudu era o mais animado. Eles haviam combinado de irem ao cemitério naquela tarde, seria a primeira vez que todos iriam. Julia até estava animada com o passeio, pois achava que se fizesse um programa gótico com os amigos góticos de Bruno, estaria experimentando coisas novas e se aproximando mais do namorado; mas agora, com a situação azedada, já achava que era uma péssima ideia. - Tudo pronto. - ela sorriu para o amigo, como se estivesse tudo bem.
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Ivan era bem diferente do que Julia havia imaginado: ele era bonito, tinha um moicano roxo, olhos castanhos redondos e os lábios finos pintados com um batom violeta e dois piercings de argola. Ele era bem alto, tinha ombros largos e um figurino muito excêntrico, composto de uma jaqueta preta de botons, um lenço preto com estampa de estrelas brancas no pescoço e uma calça que dava a impressão de ser feita com teias de aranha. A voz de Ivan era suave e ele tinha um sorriso muito fofo, seu único defeito era que ele fumava. Mas ele e Priscila nem pareciam que eram namorados. Não davam as mãos, não se abraçavam e nem se beijavam. Eles nem ficavam lado a lado! Era cada um no seu canto, cuidando das suas coisas, como se um não existisse para outro. A única hora que Julia viu Ivan se aproximar de Priscila, passar o braço por seus ombros e “tomar conta” do que era seu foi quando ela chegou perto de Bruno: - Ei, depois você me passa aquele staff que compramos? Eu precido dele para fazer uma quest com a Dê e o Jaime hoje a noite. - Priscila se aproximou de repente, segurando no braço de Bruno. Um garoto esquisito sem cabelo e sem sobrancelha, pediu o iPod emprestado para copiar algumas músicas que só Bruno tinha e eles estavam trocando algumas palavras sobre um especial do Sisters of Mercy que aconteceria no Strange House no domingo. Julia até ouviu um garoto dizer que Bruno nunca mais apareceu no Strange House e no Cemitério desde que começou a namorar. - Não vou entrar hoje. - Bruno respondeu enquanto entregava o iPod para o colega e Julia observava a cena de longe (mas perto o suficiente para ouvir). - Mas você pode logar na minha conta e pegar o que quiser.
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- Eu tenho um rip do vinil de Sisterhood, quer que copie para você? - o garoto perguntou no meio da conversa dos dois. - Quero. - Posso mesmo? - ela abriu um sorriso feliz, segurando na jaqueta dele. - A sua senha ainda é a mesma? - Lembra de devolver o shield depois. Foi nessa hora que Ivan chegou, fazendo Priscila largar a jaqueta de Bruno e colocando a mão direita na nuca da menina acariciando o seu cabelo. Ele nem falou com Bruno e nem Bruno falou com ele, Priscila virou-se para Ivan e sorriu debilmente. - Aqui, valeu! - o garoto sem cabelos devolveu o iPod. Aparece lá no Strange House domingo que vai ser trevas! - Talvez. - Bruno afastou-se deles depois disso, retornando para onde estava Julia. Julia estava sentada em um dos túmulos, ouvindo uma gravação caseira de uma garota de cabelos vermelhos que cantava super bem e se chamava Alessandra, mas que todos chamavam de Lady Les. - Ei. - ele falou assim que chegou, sentando do lado dela e guardando o iPod no bolso, passando os fones por dentro da camisa do uniforme. Era o fim do tratamento do silêncio. Tudo o que precisou foi uma Priscila e um Ivan!, Julia pensou e sorriu para ele, enlaçando os braços em seu pescoço e dando um beijo cinematográfico em Bruno. Depois disso, eles ficaram a maior parte do tempo juntos, mas na saída do cemitério, enquanto Bruno se despedia dos amigos, Ivan parou do lado de Julia com um sorriso bonitinho. - Que pena, nem tivemos tempo de conversar! - É, tudo bem, fica para a próxima. - Julia lançou um sorriso também. - Vão ter próximas? - Ivan surpreendeu-se. - Ué, sim... - e o sorriso de Ivan ficou ainda maior e mais bonito. - Que ótimo!
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- Acho que sim... - Julia riu. No segundo seguinte Bruno segurou em sua mão e puxou ela para longe de Ivan. - Ai! - ela fez porque foi inesperado e tomou o maior susto. - Não fale com ele. - Bruno reclamou, continuou puxando Julia para fora do cemitério. - Calma, ele não faz meu tipo! - ela brincou. Bruno parou de andar e virou para ela, o olhar tão glacial quanto um iceberg gigante e solto no meio da Antártida. - Tecnicamente nem eu. Com isso, Julia teve certeza que ele escutou a conversa inteira que ela teve com Arthur. Abaixou a cabeça e colocou o cabelo para trás da orelha, encarando os coturnos de Bruno. E agora o que ia dizer? Diante do silêncio de Julia, ele respirou fundo e continuou andando até o posto de gasolina, onde deixou a bicicleta presa em uma grade.
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Bruno deixou Julia na porta de casa, ela desceu da bicicleta e enlaçou os braços nele para dar um beijo, mas Bruno virou o rosto, o beijo pegou no canto dos lábios, mas não era bem isso que Julia queria fazer. - Você está bravo? - Não. - claro que estava! - Claro que está! - Julia o olhou irritada, mas não soltou seu pescoço. - Por que você está bravo? - Por que será? - ele revirou os olhos impaciente. - Bem, me desculpe! Seja lá o que eu fiz! - Corta essa! - ele segurou nos braços de Julia, forçando-a a soltar seu pescoço. - Você sabe muito bem o que você fez! Não seja hipócrita.
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- Você está exagerando, eu só conversei com ele! Eu fiquei me sentindo mal pelo que fiz. - Eu teria feito muito pior e não estaria me lamentando. Bruno sentenciou com frieza. - Eu tenho que ir, até mais. - e ele não se despediu com um beijo e nem nada, apenas pedalou até a porta da sua garagem. Julia soltou o ar dos pulmões, sentindo-se culpada. Abriu a porta de casa. Ouviu sua mãe na cozinha, falar com alguém ao telefone: - Você não pode estar falando sério! - a voz estava chorosa. Julia estranhou, fechou a porta sem fazer barulho e se aproximou pé ante pé. - Não, Clayton! Não desligue por fa-- - ela parou de falar, estava sentada na mesa da cozinha com as roupas do serviço, um terno feminino preto risca-de-giz. Isabela cobriu o rosto com as duas mãos e chorou em soluços. Julia não falou com ela, apenas passou furtivamente pela cozinha e subiu as escadas de casa pulando as caixas que desde o dia da mudança não foram tocadas e entrou em seu quarto furiosa! Estava brava por causa de Bruno, por causa de si mesma e por causa de seu pai que era um imbecil que fazia sua mãe chorar! Jogou-se na cama chorando e ouviu quando Bruno ligou o rádio em casa, provavelmente ele passaria a madrugada jogando videogame com Priscila enquanto ela podia se remoer com o remorso que sentia, sem nem ao menos ter feito algo de errado. Escutou a hora em que Isabela subiu as escadas e se trancou em seu quarto, batendo a porta. Inferno! Sabia que Isabela ainda amava Clayton, mas ele tinha uma mulher mais nova, com menos botox no rosto e provavelmente, com muito mais disposição para o sexo! E devia ser um sexo muito bom mesmo para Clayton abandonar sua mãe e a ela, a família, para se casar com uma menina de peitos siliconados. Movida pela raiva que sentia, Julia tirou da mochila o caderninho vermelho e escreveu:
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“Quero que o meu pai volte a ser casado com a minha mãe!”
Depois, ela fechou o livro e continuou chorando em seu travesseiro.
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De manhã Julia ouviu sua mãe vomitando no banheiro quando pisou no corredor para ir até a cozinha preparar café da manhã para si. Não era comum escutar sua mãe nessa situação, mas Julia pensou que, muito provavelmente Isabela bebeu a noite inteira para afogar as mágoas e agora estava de ressaca. Todo mundo tem seu dia de fossa, pensou e ao mesmo tempo desejou que Bruno estivesse mais calmo ou ela quem teria uma tarde de fossa! Entrou na cozinha usando uma regata preta, short vermelho de ginástica e meias ¾ listradas branca e preta. Tirou uma tigela das meninas superpodesoas do armário e se serviu com cereais, leite e mel; sentando-se na bancada. Enquanto comia, Isabela apareceu na cozinha ainda de camisola e usando um penhoar amarelo por cima das roupas; seus cabelos castanhos presos em um coque. - Bom dia querida. - Beijou o topo da cabeça de Julia com carinho. - Mãe, me dá dinheiro? - Pediu com um sorriso nos lábios sujos de leite e a boca cheia de comida. - Pra quê? - Isabela curiosa perguntou, enquanto tirava da geladeira um prato de melão cortado em quadradinhos. - Não fale de boca cheia, Julia.
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- Desculpe! - Julia engoliu rapidamente sua comida. - É que vou sair com a Gabi. Programa de meninas, sabe... e eu queria comprar umas roupas. - Roupa? Mas você comprou roupa nas férias... - Mas é que vamos em uma... - escolheu bem a palavra Festa. Isabela se sentou em silêncio, pegou o garfo e pareceu bem desconfiada de que Julia estivesse contando uma mentira, porque era mãe e sabia quando os filhos mentiam. - Festa de que? - Halloween. - Não era de todo uma mentira, mas Julia não queria dizer que ela e Gabi iam comprar roupas para saírem domingo a noite com seus namorados em um bar gótico, além do mais, Julia estava escondendo o detalhe de que seu novo vizinho era também seu namorado. Isabela desconfiava o que estava acontecendo, especialmente porque Julia até então, nunca levava amigos para o quarto para ouvir música. Julia era mais do tipo de garota que, se tivesse amigos em casa, ficaria na sala jogando banco imobiliário. Não era nada difícil para uma mulher experiente como Isabela (que também tinha sido uma adolescente de dezesseis anos um dia), entendesse o que estava realmente acontecendo entre Julia e seu esquisito vizinho. Ela procurava não se preocupar muito, mas de noite quando chegava, revirava o lixo de casa temendo encontrar um pacote de camisinha. Quando não encontrava porém, tinha uma crise de desespero que sua filha estivesse se relacionando sem proteção e depois, concluía que Julia ainda era muito nova para essas coisas, especialmente que Julia usava ainda calcinha e sutiã compradas na ala infantojuvenil... ufa! - Sei, uma festa de Halloween em setembro? - Isabela perguntou a sua filha e viu o rosto de Julia ficar rosa por causa da mentira. - Você não vai começar a ir em cemitérios e se drogar, vai? - Mãe!! - Julia protestou, totalmente incrédula que sua mãe estivesse perguntando aquelas coisas horríveis.
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- Eu li no jornal sobre isso uma vez, sabe? Jovens indo ao cemitério e usando drogas, fazendo sexo... - Ai que horror a gente não fez nada disso por lá! - Julia ficou ainda mais cor- de-rosa, parou até de comer para colocar as duas mãos na face que estava pegando fogo. - Então vocês já foram mesmo em um cemitério? - Isabela continuou seu interrogatório disfarçado de conversa casual. Julia balançou a cabeça fazendo que sim. - Bem, eu acho que posso te dar algum dinheiro, mas você tem que me prometer que não vai transar com esse menino, Julia, não agora... você é muito, muito nova para fazer essas coisas e você não conhece ele direito! - Ai mãe! Pare com isso! Eu não vou fazer nada! - Julia abaixou a cabeça e resolveu se concentrar em sua tigela de cereais amolecidos, dando uma colherada bem funda e enchendo a boca para não precisar responder mais nada. E se ela quisesse fazer, Isabela não tinha nada a ver com isso!, pensou. - Acho bom, porque senão darei uns belos cascudos nesse safado! Os meninos são sempre muito apressadinhos, Julia... eu lembro que na minha época... - Mãe! Eu não quero ouvir isso, que nooooojo! - Julia tapou os dois ouvidos e falou de boca cheia, assumindo uma expressão irritada. Que Isabela guardasse suas experiências sexuais para si mesma! Isabela rachou de rir e Julia voltou a comer. Depois que colocaram os pratos na lava-louças, Isabela deu à Julia dinheiro e uma carona até a casa de Gabi; e todos os conselhos que as mães sempre dão.
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O centro da cidade era muito cheio de gente, uma confusão de se andar e Gabi se perdeu com o mapa que Andreza fez para elas saírem da estação e chegarem em segurança na Galeria do
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Rock. Gabi cismou que ali era o local certo para comprar roupas novas, já que elas estavam prestes à pisar em um bar gótico. - Ai, a Dê deve estar dormindo... Ela não atende! - Gabi segurava o celular com uma mão e o pirulito com outra. Estava de saia jeans, meia calça vermelha e moletom verde escuro. Estava prestes a ter um ataque de pânico. - Mas ja são duas da tarde! - Julia observou, parada na frente da amiga com o seu moletom de caveiras e calça jeans, os cabelos presos em um rabo de cavalo alto. - Por que o Bruno não veio? - Gabi perguntou, já desesperada. - Tenho certeza que ele poderia nos salvar! - Pelo mesmo motivo do Nando. Gabi riu. Nando disse que ele não precisava de roupa e que tinha agendado uma dungeon no jogo, o que quer que isso quisesse dizer. Mas não era bem por isso que Bruno não estava ali, mas porque quando ela ligou para ele depois do almoço, constatou que ele ainda estava bravo com ela. O garoto podia ser muito rancoroso, também! Isso a entristecia um pouco, poxa, qualquer ladrão podia estar ali bem do lado dela com uma arma roubando-as que Bruno estaria “complicado demais para sair”; palavras dele, com aquela voz gélida fatal. - Estamos condenadas a sermos trocadas por um computador! E eu achava que as meninas que namoravam caras de banda tinham problemas! - Gabi falava isso porque antes de Nando ela tinha um rolinho com um garoto que tocava em uma banda e estava sempre com sua guitarra, motivo pelo qual o rolo não evoluiu para a segunda semana. - Espero que não, sinceramente! - Julia riu também. - Por que você não liga pro seu namorado e pede socorro? - Porque ele vai rir de mim! Além do mais, eu te falei que ele está bravo comigo por causa do lance do Arthur. - Julia revirou os olhos.
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- Você só foi legal com o cara... e o Arthur pediu desculpas, ponto pra ele! O Bruno está exagerando, e é ele quem fica com a Priscila pendurada no pescoço né! - Tem razão. - Julia concordou. Só de pensar em Priscila parecia que ia explodir. - Ele deve estar pendurado com ela nesse momento, jogando aquela droga...! - Se você ficar aí parada desse jeito com certeza a Priscila vai vencer! - E o que eu posso fazer? - Ai, amiga, sinceramente? - Gabi enfiou o pirulito na boca de novo e guardou o celular no bolso. - Liga chorando pro Bruno e diz que você está perdida pra chegar na Galeria do Rock; se ele não vier correndo te salvar, termina, porque ele não liga pra você. - Eu não consigo fingir choro. - Tá na hora de aprender, com o Nando sempre funciona! Gabi piscou o olho. Julia respirou fundo para tomar coragem, pegou o seu celular e ligou fingindo um choro como Gabi falou, não conseguiu chorar de verdade, mas falou com uma voz chorosa e fez alguns “sniffs” para enfatizar. Em menos de meia hora Bruno estava ali com elas e apesar de estar monossilábico, ele sorriu para Julia e a beijou normalmente, acompanhando as meninas na entediante tarefa de comprar roupas... e não deixou Julia comprar nada que tivesse listras, alegando que “listras não era gótico”.
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10 FESTA ESTRANHA, COM GENTE ESQUISITA † O Sol estava se pondo, mas o dia estava muito nublado, por isso, às seis da tarde a rua estava completamente azulada pela luz natural. Seria até bonito de se contemplar. Bruno saiu pela janela do banheiro, deixando o chuveiro ligado, a luz acesa e o som tocando em um volume que fosse baixo o suficiente para que só desse para ouvir entrando em seu quarto e que fosse alto o suficiente para que, se Carlos resolvesse bater na porta, achasse que ele não estivesse escutando. Se tudo desse certo, levaria algumas horas antes de Carlos descobrir que ele havia fugido do castigo. Claro que haveriam consequências, mas pra que pensar nisso agora? Pisou com cuidado no telhado, segurando-se na janela e esticou os braços para agarrar a extremidade da parede, enquanto contornou a casa pela lateral onde o telhado ficava mais perto do muro e era mais fácil para subir. Subiu a mureta que ficava ao lado e dava acesso ao telhado da casa vizinha e bateu as mãos na janela do quarto de Julia. — Aiiiii! — Gabi estava de sutiã de oncinha e levou um susto quando viu Bruno pela janela. Se cobriu imediatamente com o travesseiro, soltando o batom e a máscara para cílios na cama, manchando o edredom da amiga. Seus cabelos ruivos estavam presos para cima com uma piranha ainda molhados e seus olhos estavam sem lente. — Que susto!
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Julia estava tendo um trabalhão para amarrar suas novas botas, mas ficou em pé assim que ouviu a batida e virou pra Gabi com o dedo na boca: — Shhhiii! — Você vai deixar ele entrar? — Gabi continuou com cara de brava segurando o travesseiro. — Eu tô pelada! — Então coloca a blusa! — Julia riu e virou-se para a janela, abrindo os feiches e erguendo a janela. — Estamos quase prontas! — Estão atrasadas. — ele colocou o torso para dentro e Julia o beijou nos lábios. Gabi rapidamente colocou uma blusa rendada que comprou na Galeria do Rock e que ela pretendia usar com um corpete preto de pano. Estava com uma calça legging preta e ankle boots de salto agulha. — Quer dizer que você invade o quarto da sua namorada? — Gabi comentou com as sobrancelhas para cima pegando a máscara e o batom de novo para terminar sua maquiagem trevosa. — Aprendi com Lord Byron. Julia riu da piada, e agora que Bruno estava olhando para ela, achava que ia ter um infarto porque ela estava linda demais. Ela estava de saia tule cor-de-rosa, que ela já tinha e as vezes usava, um tomara que caia com fivelas e renda e uma gargantilha de renda preta com um pingente de morcego prateado que ao invés de ficar pendurado, batia na curva do seio. Quase morreu. — Todo gótico usa uma camiseta escrita Alien Sex Fiend? — Gabi quis saber passando nos lábios um batom violeta quase preto. Bruno estava usando uma camiseta preta com manchas de sangue com a frase escorrida escrita em branco, por dentro da jaqueta militar preta com duas riscas brancas no ombro. — Amigo alienígena sendo usado de escravo sexual, é isso? — É uma banda. — Bruno revirou os olhos e se ajoelhou para ajudar Julia com os cadarços do coturno. — E amigo em inglês é “friend” com “r”. — Tanto faz!
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Elas levaram ainda mais meia hora para se arrumar e ficarem prontas. Bruno ficou um pouco impaciente mas não as apressou. Por fim, conseguiram sair de casa antes que Carlos percebesse sua ausência. Até aqui, tudo bem. † A Strange House era uma casa noturna muito esquisita, ficava em uma rua sem saída no que deveria ter sido no passado uma casa de família. As paredes eram pintadas de preto e havia apenas uma placa dizendo “Aberto” brilhando em neon vermelho na porta. Algumas pessoas esquisitas ficavam ali fora, com garrafas de vodca e cigarros na mão, conversando. Mas a festa não acontecia dentro da casa, que inclusive devia ser uma casa com residentes normais mesmo (o dono do bar, talvez?) e sim, no porão. Era um bar sujinho de um ambiente, paredes de pedra úmida, cheiro de mofo, luz de velas e um estrobo piscante. O local era um quadrado, com um banheiro tanto para o público masculino e feminino. Uma grade separava o que deveria ser a pista, do bar e do lounge. Um DJ alto e careca com uma camiseta com a estampa de um Biohazard incinerava a pista com sons que iam do dançante ao tedioso. Fumavam lá dentro, mesmo que não pudessem fumar e ficava uma camada de fumaça sufocante que impregnava o cheiro do cigarro nas roupas e nos cabelos de todo mundo. Serviam vinho em copos de plástico ou leite condensado com chocolate em pó regado de conhaque. Aqueles que frequentavam o Strange House compunham um público muito variado de visuais inusitados e idades distintas. Havia um homem cheio de tatuagens que devia ter mais quarenta anos dançando ao lado de garotas vestidas como princesas do século XVIII e outras que usavam latex, vinil e máscara de gás coloridas. Julia achou que estava pisando em outro mundo quando entrou no porão segurando a mão de Bruno e se equilibrando para
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não cair da escada de madeira íngreme. Assim que chegaram no chão, Andreza os abordou: — Vocês vieram! — ela berrou escandalosamente e abraçou Julia. Era uma das que estava de vinil e latex, com máscara de enfermeira (preta com biohazards em azul estampados) e tubos de plástico coloridos pendurados no cabelo azul. Apesar do visual ser esquisito e a maquiagem extravagante, Andreza combinou as cores do cabelo com os tubos e os detalhes do corpete, causando uma harmonia singular. Julia achou o visual muito esquisito, mas concluiu que talvez Andreza estivesse bonita para a cena da qual fazia parte. — Acabamos de chegar! Jaime estava no bar, pegando vinho. O moicano vermelho levantado, usando uma camiseta branca esburacada, calça preta, coturno e correntes no cinto de rebites. No pescoço um goggles com spikes. Bem mais simples, mas que chamava atenção mesmo assim. — Que festa estranha! — Gabi falou com o pirulito quase caindo da boca aberta em susto. — Com gente esquisita! — Nando cantarolou do lado, fazendo-a rir e beijando seus lábios de batom quase preto ficando com os lábios manchados ele também. Como havia se recusado a se “fantasiar de Dark Nando”, ele estava de calça jeans e camiseta e talvez pelo fato da calça jeans ser escura, ele até que se misturou legal. Chegando ao bar Gabi pediu dois vinhos, um deles para Julia. Elas beberam juntas e fizeram uma careta porque o vinho além de ser doce demais, estava quente: — Ei, até que essa festa parece divertida! — Gabi falou animada. — Você acha? — Nando fez uma careta. — Se você beber mais desse vinho, tenho certeza que vai achar também. — Julia brincou. — Esse vinho deve ser tão ruim que deve queimar os neurônios, daí você faz coisas estúpidas como achar legal um lugar assim! — ele brincou, mas estava falando sério quanto a não
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gostar do local. Gabi olhou para ele enviesado e Nando bebeu o vinho com um gole só. † Até que era divertido. Julia concluiu um tempo depois em que estava dançando com os amigos, bebendo e rindo das besteiras que Jaime tinha coragem de falar. Mas toda a diversão se esvaiu assim que Priscila chegou na festa. Priscila era linda, alta e magra. Os cabelos roxos compridos e ondulados a faziam parecer uma princesa fada... do mal. Parecia uma vampira de filmes semi-pornô, com um corpete preto com renda roxa e um short bloomer que deixava a mostra a as alças da cinta liga que seguravam sua meia ⅞ arrastão. As suas botam eram de verniz, de plataforma o que a deixavam mais alta ainda. Ela desceu as escadas olhando para os dois lados como se procurasse por alguém, atravessou o porão indo até o bar e segurou no braço de Bruno, que virou para ela em um susto. Priscila sorriu, mas lágrimas caíram por seu rosto. Julia, que estava na pista com Gabi e Andreza imediatamente parou de dançar e ficou olhando. Daria tudo para ir até lá, ouvir o que eles estavam falando. Bruno pareceu preocupado, falou com ela rapidamente, olhou para a pista onde estava Julia, mas sem olhar para ela (como quem procura por ela mas não encontra). E por fim, Priscila o segurou de novo no braço falando algo como se estivesse desesperada e os dois saíram do porão, subindo juntos as escadas. Mas que droga! O que estava acontecendo?! Julia ficou confusa, desesperada e triste ao mesmo tempo. Era só Priscila chegar para Bruno desaparecer com ela?! Com todos esses pensamentos revirando dentro de sua cabeça, Julia encostou no bar e pediu mais vinho. †
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Trinta e oito minutos foi o tempo que Bruno e Priscila ficaram fora da festa e que Julia ficou à mercê de sua imaginação salpicada com muito ciúme. Bruno desceu a escada sozinho, parecia bravo e Julia andou até ele com seu quinto copo de vinho na mão. — Oi! — ela chegou passando os braços pelo pescoço dele. Ele sorriu. — Onde você foi com a Priscila? — e o sorriso desapareceu. — Eu vi vocês saindo e... — Você bebeu? — ele perguntou. A voz saiu sem emoção, mas as sobrancelhas se curvaram por cima dos olhos, era uma expressão de decepção que furou o coração de Julia. — Só um pouco... — Julia procurou manter o sorriso. — estamos em uma festa, né? — Acho que sim... — ele revirou os olhos. — O que ela queria com você? — Nada... — Como nada? — Julia ficou brava. — Foi algo com o Ivan, não estava fazendo sentido... mas ele já chegou, ela está com ele agora. “Agora”. A palavra naquela frase soou muito estranha. Muito estranha. Julia procurou ignorar a vozinha na sua mente que lhe dizia coisas como “porque ele estava com ela antes” e o beijou. Era um beijo misto de saudades e medo, totalmente cheio de ciúmes, que podia ser um beijo cinematográfico mas que foi interrompido por Bruno tão logo suas bocas se tocaram. — Eca... — ele falou. — Gosto de vinho não dá. “Eca”? Mais uma palavra que ficou batendo e voltando na cabeça de Julia. Como assim “eca”? Não se diz “eca” pra namorada depois de um beijo por mais que ela tenha comido leite estragado e ponto final! Dizer “eca” pra namorada sigfinicava um monte de outras coisas, e nenhuma delas tinha a ver com o gosto de vinho. Julia sorriu, mas estava ruindo por dentro, deu um beijo no rosto dele e afastando-se, falou: — Vamos dançar? — virou o resto do vinho no copo.
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— Tá... E eles foram dançar. Julia tentou se concentrar na música, mas os pensamentos estavam girando dentro de sua cabeça como se o cérebro estivesse dentro de um liquidificador. As risadas que as pessoas davam ao redor, inclusive Gabi e Andreza, pareciam que estavam zombando dela porque seu namorado havia saído da Strange House, ficado trinta e oito minutos com uma Priscila chorosa e sabe-se lá fazendo o quê! Era um buraco no meio do peito de Julia que a deixava ôca por dentro, por isso, ela dançou enquanto as luzes rodavam, o som rodava e até o chão em baixo de seus pés rodavam.... Julia ficou enjoada e teve vontade de vomitar. Ela parou de dançar de repente, Bruno segurou no seu braço quando ela cambaleou. — Ei, tudo bem? — Estou ótima! — ela soltou-se dele com um puxão. — Já volto... — e virou-se na direção do banheiro, segurando a mão com a boca, para que não acabasse vomitando no chão. Ela andou o mais depressa que conseguiu enquanto tudo girava e seu estômago dava voltas dentro de sua barriga, alcançou a porta, mas estava fechada. — Abre, pelo amor de Deus! — ela pediu, batendo as duas mãos na porta. — Peraí! — alguém respondeu, mas a porta logo abriu. Lá dentro tinha a luz acesa e os olhos de Julia tiveram que se fechar quando ela entrou, mas ela fechou a porta e ajoelhou no chão, vomitando no vaso. — Você tá legal? — uma voz levemente familiar soou, familiar o suficiente para Julia balançar a cabeça dizendo que não, e vomitou de novo. Não tinha papel para se limpar, Julia notou. Por isso ela passou a mão no rosto para limpar a baba vermelha do líquido que saiu queimando seu esôfago e nariz. Duas mãos a seguraram pelo ombro em gancho, erguendo-a do chão. Julia ficou em pé meio sem vontade. Ela não queria ajuda, ela só queria se afogar na privada de tão enjoada e tonta que se
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sentia. Nota mental: não beber vinho também. E um jato de água gelada estourou contra o seu rosto, fazendo-a reagir. Segurou no lenço que alguem estendia e limpou o rosto no pano de algodão. Quando terminou de secar o rosto, olhou para o lenço em suas mãos, um lenço que ela já tinha visto em algum lugar, preto e de estrelas brancas. Por que parecia tão familiar? — O melhor lugar para vomitar é lá em cima... — Ivan falou segurando em seu ombro com delicadeza. — Aqui é meio sujo. — Foi onde consegui chegar. — Julia virou-se e entregou para ele o lenço. — Obrigada. — Cara, sua make tá um estrago! — ele riu com aquele sorriso fofo. Colocou o lenço de volta no pescoço sem sentir nojo. — Eu sou um estrago...! — Julia começou a chorar, as lágrimas saindo pelos olhos castanhos e a maquiagem saindo em seus dedos finos. — Que isso, você é linda. — Ivan tirou de novo o lenço e entregou para ela. — Lava o rosto, vamos lá fora tomar um ar, ok? — Não quero sair agora... vai todo mundo me ver chorando como uma retardada. — e pensar isso a fez chorar mais. O lenço tinha um cheiro gostoso, adocicado como damasco. — Tudo bem a gente fica aqui. Festa no banheiro é sempre legal. — e ele tirou do bolso o maço de cigarros colocando um na boca. — Você vai fumar no banheiro? — Julia lançou um olhar enviesado por cima do lenço. Ivan estava de calça preta com alfinetes presos, cinto de rebites e uma jaqueta com tantos botons e tantos patches quando se poderia ter, e correntes que caiam penduradas do ombro da jaqueta. O moicano dele estava para cima, mas já meio caído para frente desmontando. O visual decadente ficava tão bem nele. — Qual o problema? — tateou os bolsos atrás do isqueiro. — Você chora, eu fumo. — Mas eu não quero chorar!
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— E nem eu fumar, mas é o vício. — Ivan bateu os ombros e achou o cigarro no bolso da frente, onde ficava pendurado um botom escrito “Alien Sex Fiend” que fez Julia rir. — Todo mundo tem algo desse tal “Alien Sex Fiend!” — É que é uma banda muito boa, você devia ouvir. — com o zippo preto ele acendeu o cigarro. — Eles têm mais álbuns do que você tem anos. — Sério? Eu tenho dezesseis. — Eles têm dezesseis só de estúdio e mais quatro ao vivo... e não vou nem contar os singles. — ele tragou. Julia riu. — Ah, viu? Fica muito melhor um sorriso em você. — ele sorriu em resposta. — Eu acho que “sem cigarro” fica muito melhor em você também. — Tudo bem a gente faz um acordo, eu paro de fumar e você para de chorar. — e com isso, ele jogou o cigarro no chão e pisou com o coturno. — Já fiz minha parte. — Eu posso tentar... — “Vou tentar” é o que todo derrotado diz, as pessoas que vencem costumam dizer “vou conseguir”. — Sou uma pessoa que normalmente perde... — Quem te disse isso? — A vida... — ela bateu os ombros. — Sei... — ele fez uma expressão esquisita. — E o que você perdeu ultimamente? — Além das tripas agorinha? — Julia brincou e ele riu. — Meu pai, ele saiu de casa para se casar com a amante... dá pra imaginar? Minha mãe está arrasada. — Que coisa, comigo aconteceu o mesmo. — Mesmo? — É, tem um ano... foi horrível, o pior ano da minha vida. Ele largou a família por uma mulher bem mais nova que ele... que tinha idade, sei lá, pra ser minha irmã mais velha.
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— Meu pai também. — Julia comprimiu os lábios. — Não sei porque os homens fazem isso, digo, se casar e abandonar a família por uma mulher mais nova, é horrível. — Eu concordo. Quando me casar, vai ser pra valer, não vou ficar trocando de mulher. — Você pretende se casar com a Priscila? — Julia achou que ele era jovem demais para pensar em casamento, especialmente com Priscila. Ele se espantou com a surpresa dela, então ela resolveu explicar. — Não me leve a mal, mas sua namorada fica cercando o meu namorado, todo dia. E eu digo to-do-di-a. — Eu sei disso. — ele virou o rosto e olhou pro chão, sentou. — Mas quem disse que eu vou me casar com a Priscila? Provavelmente eu não me case... não estamos lá muito bem. — Não? A Andreza me disse que vocês namoram há anos. — Três anos, mas e daí? Ano passado ela teve esse lance com o Bruno que definitivamente estragou tudo... a gente vem aos trancos e barrancos desde então... termina volta, termina volta... a vida mais chata que uma música em looping. — Você tem ciúmes? — Sou um cara de sentimentos, que posso fazer? — ele virou para ela de novo, sorriu meio sem graça. — E sei lá, não é a mesma coisa... e não sei porque eu estou falando tudo isso pra você! — Talvez você ache que eu mereça saber. — É, acho que sim... — ele devaneou. — E então? — Então o quê? — O que eu mereço saber? — Julia abaixou para se sentar também, ao lado dele. — Como assim? — Desse “lance” entre a Priscila e o Bruno. — Julia queria muito saber tudo o que tinha acontecido, era quase como se fosse vital para sua sanidade mental. — Ah... sei lá. Eu e a Priscila sempre tivemos um relacionamento aberto, ela podia sair com quem quisesse e eu
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também. Foi ideia dela e tal... mas eu nunca levei a sério e nem nunca quis. — E ela saia beijando outros caras na sua frente? — Na minha frente não. — Ivan pareceu bem incomodado com a ideia de ver sua namorada com alguém, o que Julia achou uma das coisas legais sobre ele. — O Bruno era alguém da escola, só isso, ela ficou com ele numa festa que eu não fui porque estava doente. — Uau, ein... — foi o comentário que Julia fez, revirando os olhos. — Pois é... — Ivan concordou. — Mas eu acho que ele não sabia de mim... ao menos foi essa impressão que eu tive. O lance deles foi rolando na escola... aos poucos ela foi falando cada vez mais nele... e ela misturou sabe? — Misturou o quê? — Os sentimentos. Ela ficou confusa. Eu cheguei a perguntar se ela queria terminar, mas ela não quis... mas mudou as coisas entre a gente. Eu passei a levar o critério do relacionamento ser aberto mais a sério, acho que tentei fazer ciúmes. Julia riu. — Acho que eu também faria isso... poxa, ela estava mexendo com seus sentimentos! — Não só os meus... os dela também... e do Bruno. — Ivan admitiu. Ele não parecia ter raiva de Bruno ou de Priscila, o que era bem diferente de Bruno. — Eu só descobri que eles brigaram porque ele parou de aparecer no prédio. — Peraí... ele ia lá com você lá? — É, rolava na minha casa, as vezes na casa dela... dependia do dia, da hora, da disposição dos dois. — Como é que é? — Julia nem conseguia imaginar. — Eles transavam no meu quarto enquanto eu tava na sala vendo televisão. É. — Ivan admitiu. Julia sentiu um tiro no peito de tristeza por Ivan, taí algo que se acontecesse com ela, ela não aguentaria.
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— Desculpa, mas ou você é muito burro ou muito covarde! Se meu namorado transa com outra garota no meu quarto, eu mato ele! — Não era todo dia! E também transei com meninas quando a Priscila estava lá. Era bem liberado as coisas entre a gente! — Você transou com eles? — Julia arregalou os olhos. — Deus! Claro que não! Que tipo de gente você acha que eu sou? — ele falou como se pessoas que fizessem isso não fossem nem consideradas pessoas. — Um pervertido! — Também não! Só estávamos confusos... sei lá... — Ivan deu de ombros. — Todo mundo tem o direito de se sentir confuso um dia, vários dias. — E agora você está menos confuso? — Não, mesma bosta. — ele riu da própria desgraça. — É só alguma coisa acontecer que a Priscila pira. Ela totalmente pirou quando o Bruno começou a namorar com você! — Nossa fico muito aliviada mesmo por ouvir isso! — Quem tinha que se preocupar era eu, não você. Foi o Bruno que terminou tudo com ela, sabe? E ele não quer mais saber. — Sério? — Ele não aguentou nem dois meses. Quando descobriu que tinha um terceiro na parada, no caso, eu. — Você disse que ela transava com ele no seu quarto, como ele não sabia de você? — Então menina..! — Ivan pareceu aborrecido. — Eles ficavam juntos na escola, não no prédio, saca? Quando tudo isso rolou ele acabou descobrindo, mas rolou só por uns dois meses, nem isso! E ele desistiu, cansou, sei lá. — Ahhh... entendi. — Julia revirou os olhos. Que péssimo essa situação, quer dizer, péssimo para Ivan. — Depois que ele ia embora, vocês transavam? Você e a Priscila? — A maioria das vezes não... ela misturou os sentimentos.
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— E você? Que sentimentos você tinha nessa época? — Você quer mesmo saber? — Ué, quero. — Ninguém nunca me perguntou isso... — ele engoliu saliva, estava quase emocionado com isso, o que foi inusitado. — Nem a Priscila... — Se não quiser dizer, tudo bem. — Julia resolveu retirar, vai que ele começava a chorar! — Raiva, tristeza, sei lá, as vezes eu ficava com tanta raiva que eu achava que eu não me importava. Ai eu chorava.. bem emo mesmo! É claro que eu me importava, né! — Acho que sim... você ainda se importa? — Sinceramente agora eu não sei. — Ivan confessou. — Eu estou meio de saco cheio de tudo ser “o Bruno” pra Priscila. Depois do que rolou, a gente resolveu ficar sério na relação sabe? Mas sei lá... ela é super neurótica! Qualquer coisa e ela já acha que eu estou traindo e transando com outras garotas. — E você está? — Não, claro que não... não curto essas coisas e já tive a minha cota de putice por umas duas vidas. — Viu, é de meninos como você que o mundo sente falta! — Julia sorriu e segurou ele no braço balançando, para enfatizar. — Agora eu acredito que quando você se casar, vai ser para valer. Com tudo isso que você passou, não tem como não valorizar o amor, né? Ele ficou calado olhando para ela com cara de espanto, mas com admiração. Era um olhar tão sincero e tão profundo que Julia ficou até sem graça, por isso, ela ficou em pé. Ele ficou em pé quase que ao mesmo tempo. — Obrigada, pela conversa e pelo lenço. — ela estendeu o lenço para ele, as duas mãos juntas na altura do colo. Ivan sorriu, segurou nas mãos dela ao invés de pegar o lenço. — Fica pra você, presente! Afinal, você foi a única que se importou em me ouvir.
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— Eu nem tenho o que te dar em troca! — olhou para ele surpresa. Foi nesse momento em que ele inclinou para frente e seus lábios se tocaram. Julia sentiu os joelhos amolecerem, teve que segurar no ombro dele e deu um passo para frente, Ivan a abraçou antes de encostar as costas na parede e o selinho se transformou em beijo. — Não, não! — ela se soltou dele logo. Ivan tinha gosto de cigarro e café, o gosto estava impregnado na sua língua, Ivan ficou parado, sem se mexer, também parecia chocado. — Meu Deus! E meio tonta com tudo isso, ela abriu a porta e saiu do banheiro correndo, procurando ar para respirar. O salão estava muito escuro, a luz piscando forte e Julia se sentiu cega. A porta de entrada abriu e uma pequena luz entrou, foi o suficiente para Julia encontrar por onde tinha que sair. Emergiu na superfície procurando ar, o coração batendo depressa o arrependimento pesando em suas costas. Ela se sentou no chão, encolheu as pernas e soltou a cabeça no joelho com as mãos na barriga, o estômago revirando. Nas mãos, o lenço de estrelas de Ivan parecia brilhar, o cheiro de damasco. Meu Deus, ela estava ficando louca! † Não demorou muito para a festa terminar. Julia rompeu do banheiro e subiu correndo para fora. Andreza estava lá fora com Jaime e viu quando a menina se escorou na parede, desmanchando-se em lágrimas e se encolhendo. Enquanto ela foi socorrer Julia, Jaime desceu para procurar por Bruno. Bruno estava falando com Ivan, foi a única vez em que eles se falaram após meses. Ivan chegou se encostando no bar e pegou um vinho, bebendo tudo de um gole só e daí, olhou para Bruno. — Ei... sua namorada estava passando mal. — e isso fez Bruno olhar para ele, só virar os olhos azuis, sem dizer nada.
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— Cara! — Jaime chegou se jogando em cima de Ivan, que quase caiu no chão. Segurou em Bruno. — A Julia tá passando muito mal, vem comigo! Bruno ingorou Ivan de novo e seguiu Jaime até o lado de fora da festa, onde Julia estava deitada no chão, praticamente com Andreza tentando colocar ela em pé, mas sem sucesso. Ele se aproximou e resolveu a situação em três minutos: pediu para Andreza avisar Gabi e Nando que eles iam embora, chamou um taxi e tirou Julia do chão. Só quando escorou a namorada em seu corpo que percebeu que ela estava segurando um lenço preto de estrelinha. Ele sabia muito bem de quem era. — Você falou com o Ivan? — Perguntou. Julia, ainda chorando e super arrependida, fez que sim com a cabeça, mas não conseguiu falar nada só balbuciou. — Espero que não tenha acreditado em nada que aquele imbecil falou. E por algum motivo, totalmente desconhecido para Bruno, Julia chorou mais. † Isabela não ficou brava quando Bruno entrou com Julia bêbada (segurando o lenço de Ivan) pela porta de entrada. Ela foi uma mãe muito paciente e atenciosa; tirou as coisas da cama, deitou Julia, agradeceu a ajuda de Bruno e falou para ele não se preocupar que ela ia ficar bem. Bruno foi para sua casa, seu pai não era nada paciente. Antes de abrir a porta, ele pegou o celular do bolso da jaqueta, estava no silencioso e ele já tinha visto as 209 chamadas perdidas e as 90 mensagens de texto e mais algumas de voz basicamente estourando sua caixa postal. Foi girar a maçaneta e abrir a porta, para Carlos agarrá-lo pelos cabelos e jogá-lo no chão. O celular escorregou pelo piso. — Onde é que você tava porra?! — berrou como nunca. Ele tinha chutado a porta do banheiro e descoberto que ele fugiu.
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Tinha também revirado o seu quarto de pernas pro ar e estava muito, mas muito bravo mesmo. — Não te interessa. — respondeu. Carlos não esperou. E dali pra frente, foi só um inferno.
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11 COMEMORAÇÕES (IN)FELIZES † Era um encontro a dois, totalmente romântico e fora do quarto que Julia planejou a semana inteira para aquela tarde e deveria ser legal o suficiente para comemorar cinco meses de namoro com Bruno. Escolheu um roteiro interessante com a ajuda de Gabi e Andreza; comprou roupas novas e uma lingerie sexy para o momento do “apenas amassos”, que inevitavelmente acabava acontecendo. Mas nada estava saindo como Julia havia planejado e tudo porque o celular de Bruno apitava a cada dez minutos com uma mensagem de Priscila. Segundo Bruno dissera, Priscila estava em crise com Ivan e sempre que isso acontecia, ela mandava mensagens sem parar muito enlouquecida, para todo mundo que conhecia. Julia já sabia que sempre que Priscila e Ivan entravam em crise a garota de cabelos roxos ligava para Bruno. Mas o que era pior? Priscila em crise ligando para Bruno ou Priscila em crise com Ivan? E será que a crise por acaso tinha a ver com aquele episódio no banheiro do Strange House? E se tivesse?! Julia estava enlouquecendo com isso, já que, desde que aconteceu ela guardou o lenço de estrelas bem guardado e empurrou aquelas memórias para bem longe da sua mente. O pior mesmo era pensar: E se Bruno descobrisse? Bruno por sua vez não respondera às mensagens e nem se dava ao trabalho em lê-las, deixando que elas se acumulassem no celular. Cada vez que escutava o toque da campainha que
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anunciava mais uma mensagem, ele só esticava o olho para o visor para se certificar de que não precisava ler. — Por que você não desliga o celular? — Julia sugeriu e revirou os olhos sentada ao lado dele quando mais um aviso de mensagem cortou o ar e interrompeu um beijo. — Porque se meu pai ligar e eu não atender, ele arranca o meu couro hoje a noite. — explicou. — Você já personalizou o toque do seu pai e sabe quando é ele que está ligando. Pode ignorar as mensagens! — Ele as vezes manda mensagem... — E o que essa garota tanto manda pra você? — Julia segurou o celular dele e puxou irritada. — Deixa isso pra lá... — Bruno tentou pegar o celular de volta, mas Julia não deixou, levantou do banco da lanchonete em que estavam e afastou-se dele, mexendo nas mensagens. — O que você está olhando? — Quero ver o que ela tem de tão importante para mandar pra você. — Julia leu a primeira mensagem da lista de novas mensagens, todas do número de Priscila. Será que em alguma delas estava escrito algo sobre Ivan, Julia e um banheiro? “Onde você está? me liga!” e “Preciso muito de você” eram as mensagens que mais se repetiam, mas haviam algumas como “sinto saudades de você”, “gosto muito de você”, “posso ouvir a sua voz agora?” que tiraram Julia do sério! Encheu as bochechas de ar e suas sobrancelhas de curvaram por cima de seus olhos. Priscila não se tocava?! — Cinquenta e nove mensagens! Qual o problema dessa menina?! — Julia se irritou. — Por que você não responde dizendo que está ocupado? Que tem namorada? Que está aqui comigo? — Porque não adianta. — Por que você não manda uma mensagem e diz pra ela te deixar em paz? — Eu já fiz isso. — Hoje? — Não, não hoje...
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— Então faz hoje. — Julia se aproximou dele e estendeu o celular, a outra mãos deslizou pelos cabelos dele. — Diz pra ela que você está ocupado comigo e que é pra ela te deixar em paz! — Não vou ficar dando satisfações do que tô fazendo ou deixando de fazer para ela. — Bruno nem pegou o celular que Julia estava estendendo, ele ficou até irritado com a sugestão da namorada. — No fundo você adora quando ela fica assim atrás de você, né? — Julia perguntou irritada. — Você falou que não estava comigo para fazer ciúmes nela! — Eu não estou! O celular apitou de novo outra mensagem. Julia estremeceu de susto porque não esperava que uma mensagem fosse chegar bem naquele momento. Priscila estava enchendo o saco! Ela baixou os olhos para contemplar a mensagem que já solicitava abrir. “Eu sinto muito sua falta :(“. Que irritante. Priscila não precisava de Bruno e muito menos sentir a falta dele! Ela não já tinha Ivan? — Ai que ódio! — ao ver a mensagem na tela, Julia jogou o celular no chão, fazendo-o se espatifar. — O que você tá fazendo, sua louca! — Bruno no susto levantou-se do banco e abaixou para juntar os pedaços do celular que se espatifou pelo chão da lanchonete. — Você quebrou! — Não quebrei, ele só soltou. — Julia se abaixou para ajudar a catar os pedaços do celular. Catou algumas peças do chão e entregou para ele os pedaços. Eles se sentaram lado a lado no sofá de estofado verde escuro de novo e Julia olhou para os lados conferindo se as pessoas na cafeteria estavam olhando esquisito para eles por causa da cena que ela estava representando, mas havia só alguns casais muito ocupados entre si para terem visto, porém, a garçonete estava rindo. Bruno não falou nada e apenas juntou as peças, ligando o celular de novo. Colocou o aparelho em cima da mesa e olhou para Julia que o encarava em silêncio com uma expressão irritada.
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— Não fica assim, vai... — ele segurou em seu rosto e deu alguns selinhos. Julia se afastou virando o rosto para os lados, mas cedeu e acabou beijando-o também. — Diz pra ela te esquecer de vez? — pediu segurando nas mãos dele e encostando sua testa na dele, nariz com nariz. — Isso vai te fazer feliz? — Muito. — Como você é boba! — ele riu, beijou a garota mais uma vez, pegou o celular e finalmente digitou uma mensagem. Mostrou para ela. Achava besteira a cena de ciúmes, mas ao mesmo tempo, contente por ela estar se importando com isso. — Você pode enviar que vou pegar um milkshake pra gente. — De chocolate tá? Não gosto de café. — Julia abriu um sorriso. Café lembrava Ivan e ela não queria pensar em Ivan. Bruno piscou concordando e ela se concentrou na mensagem. Olhou para o celular em sua mão e viu que Bruno havia escrito “Estou ocupado com a minha namorada, me erra!”. Satisfeita, Julia apertou para enviar. Suspirou quase que aliviada! Tchau, tchau Priscila! Viu Bruno parar na frente do caixa. Chegou mais uma mensagem de Priscila, assustando Julia. “A Julia que pediu para você escrever isso, não foi?” Irritada, Julia apagou a mensagem e não pensou duas vezes: pegou da mochila o livro dos desejos e escreveu. “Quero que a Priscila esqueça o Bruno para sempre”. Fechou o livro sentindo o grandioso prazer da vitória, pois sabia que agora Priscila os deixaria em paz. Enfim sós!, pensou. Guardou o livro na mochila e ficou esperando por Bruno, que voltou com um milkshake de chocolate como ela pediu. — Daqui nós vamos pra onde? — ele se sentou e passou o braço por seus ombros, sem a curiosidade de saber se Priscila havia respondido.
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— Eu tinha programado de irmos ao cinema, mas mudei de ideia. — Julia avisou abrindo o canudo e dando um gole no sorvete. Tinha em mente fazer Bruno esquecer de Priscila também. — E qual a ideia agora? — Podemos pular a sessão de filmes e ir direto para a sessão de beijos no meu quarto. O que acha? — Parece ótimo. — ele sorriu. — Mas achei que você estava cansada de fazer sempre as mesmas coisas, nos mesmos lugares... — Eu comprei uma lingerie nova. — ela deu uma piscadela com o olho, o que deixou Bruno sem palavras. † A lingerie nova de Julia era cor-de-rosa e de renda preta, com lacinhos na alça do sutiã. Mas isso foi tudo o que Bruno viu da peça nova, já que antes mesmo de conseguir tirar a blusa da namorada, seu celular tocou a marcha fúnebre, o toque de celular personalizado para seu pai. — Saco... — reclamou, mas atendeu antes do terceiro toque. — Alô? — Onde é que você tá, porra? — a voz vazou do celular e Julia, que estava sentada abraçada com o namorado sem querer largar dele ouviu o tom agressivo com perfeição. — Na rua, eu te avisei que ia sair. — ele mentiu, mas o silêncio poderia ser denunciante. Julia continuava beijando seu pescoço, mordiscando, mas parou as investidas quando Bruno a segurou no ombro em um pedido para ela parar. Ao mesmo tempo, Carlos berrou: — Avisou o caralho! Você tem cinco minutos para estar em casa! — e desligou. Que sorte que ele estava na casa da vizinha. — Ele está bravo? — O que você acha? — Bruno calçou os coturnos sentado na cama com muita pressa. — Com o quê? — Não sei. Quando chegar em casa descubro.
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— Não vai, não, fica aqui. — ela pediu abraçando-o pelas costas. O coração até parou de bater de medo de que ele apanhasse. — Dorme aqui...! — Não vai rolar. — ele ficou em pé livrando-se do abraço e abotoou a camisa. -Eu tenho que ir. — Não, Bruno! — ela o segurou no pulso. — Fica aqui, por favor, não vai lá com aquele maluco! — Que maluco? Ele é meu pai. — ele riu e beijou a namorada na testa. — A gente se vê amanhã. — Se ele encostar a mão em você eu vou chamar a polícia. — Fica fora disso. — a expressão dele mudou imediatamente para quase desespero. — Eu falo sério. — Tá bem... — Julia limpou as lágrimas que escorreram de seus olhos, mas não estava chorando. — Você me liga pra dizer que está tudo bem? — Claro que está tudo bem, sua tonta. — ele não a beijou, apressado, saiu abrindo a porta e descendo as escadas, deixando para trás a sua bolsa de carteiro e a jaqueta do uniforme. Julia ouviu a porta da sala abrir e fechar e se jogou na cama. Lord Byron apareceu na janela com um miado comprido: — Miiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiaaaaaaaaaaau! — Shhhh! — ela queria ouvir que estava tudo bem com Bruno. Bruno era o namorado perfeito mas haviam duas grandes coisas que eram uma pedra no sapato para Julia. A primeira era Priscila, que incomodava demais e a segunda, Carlos. Era frequente, mais ou menos uma vez por mês Bruno apanhava do pai por motivos que as vezes ele não queria dizer. Hematomas nos braços, pancadas na cabeça, soco na boca... eram os mais comuns. Isso quando ele apanhava e não contava, que devia acontecer com mais frequência ainda. Era por isso que eles não saiam muito e ficavam sempre em sua casa, porque qualquer problema Bruno podia voltar correndo antes de seu pai perceber que ele tinha ido. Sair e entrar pela janela era mais comum do que pela porta principal.
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† Carlos estava em pé perto da porta olhando no relógio de pulso quando Bruno rompeu pela porta. Lançou um olhar de puro ódio porque por vinte segundos, Bruno chegou bem a tempo e no prazo que ele deu. — Onde diabos você estava, seu inútil? — Na rua. — não quis dar detalhes e nem dizer que era na casa de Julia porque em uma próxima ocasião em que Carlos estivesse bêbado, ele poderia entrar na casa da garota e até fazer algo contra ela. — Você tem estado muito displicente com a casa ultimamente, não quero mais você saçaricando na rua! — Mas a casa está limpa... — Limpa? — Carlos segurou ele pelos cabelos e o arremessou contra o móvel de entrada, fazendo-o derrubar dois vasos e porta-retratos antigos. — Pronto, agora você tem o que arrumar. — fechou a porta de entrada e se enfurnou no escritório. Bruno ficou um tempo sentado no chão, tinha um arranhão no braço porque caiu em cima de um vaso de cerâmica que se partiu. Juntou os cacos e foi pegar a vassoura na cozinha. A vida, por melhor que estivesse, sempre virava aquele inferno. † Sozinha em casa, após de ter colocado um pouco de ração para Lord Byron, Julia subiu para o seu quarto, ligou o seu netbook e o rádio, sentou-se na cama e pegou da mochila o livro vermelho com capa de couro capaz de realizar todos os desejos. Abriu em uma página em branco e pegou a caneta. Antes que ela pudesse escrever qualquer coisa, o celular tocou. — Oi Gabi! — atendeu animada e soltou a caneta por cima do livro. — Tudo bem?
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— Você tá ocupada? — Gabi perguntou logo de cara, sem nem responder sua pergunta. Sinal de que não estava bem. — Não, o Bruno já foi pra casa. — Jujuba, você não vai acreditar no que aconteceu! — a voz de Gabi mudou, ela estava chorando. — A Priscila enlouqueceu, sério... ela fica ligando pro Nando a cada dez minutos ela encheu o saco dele a tarde inteira! — Como assim? — Eu não sei, ele acabou de sair daqui, a gente brigou porque ele não quis desligar o celular... ai um inferno! Ela ligou várias vezes, quando eu atendia ela berrava dizendo que queria falar com o Nando e não comigo... meu! Essa garota tem problemas! — Como é que é?! — Julia ficou incrédula com o relato dos acontecimentos. — Priscila ligando para o Nando? Mas eles nem se falavam! — Pois é! Foi isso que eu disse pra ele, mas ele não quis me ouvir, disse que eu estava exagerando! Ele foi na casa dela, tenho certeza..! Ai Julia e se ele estiver me traindo com ela? — O Nando te traindo? Fala sério, Gabi... o Nando te venera...! Ele não ia fazer isso! — Julia tranquilizou a amiga em crise. — A Priscila é meio maluca, meio não, totalmente... — É, ela é bem maluca mesmo... mas sei lá eu quero ir lá... você acha que eu devia ir lá na casa dela? — Não, Gabi... você pode confiar nele. E se você for lá, vai fazer barraco, ele vai ficar ainda mais bravo! — Você tem razão... — Gabi soluçou, mas concordou com Julia. — Eu vou tomar um banho e um chá, dar um tempo e ligar para ele. — Você quer que eu vá aí? — Não, não precisa eu tô bem... — Mesmo? — Mesmo, obrigada Jujuba. Se eu precisar eu ligo de novo! — É pra isso que servem as amigas. Beijo! — Beijo. — e Gabi desligou.
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Julia se sentou na cama. Que coisa estranha, será que ter mexido na memória de Priscila para que ela esquecesse de Bruno, amalucou mais ainda a garota?! O que será que ela queria com Nando, afinal? Lembrou-se que Nando comentou que eles jogavam juntos e portanto, devia ser algo relativo ao jogo, o que também explicava o surto enciumado de Gabi. Julia não aguentou muito a curiosidade e foi mexer no Facebook, apenas para descobrir que o status de Ivan havia mudado de “Em um relacionamento aberto” para “Solteiro”. Sentiu seu estômago revirar de emoção, mas sem saber se eram emoções boas ou ruins. † No dia seguinte ficou óbvio que havia alguma coisa de errada acontecendo quando, na escola Priscila falou ao encontrar com Bruno no pátio: — Desculpe, quem é você mesmo? E repetiu essa pergunta cinco vezes em menos de uma hora, mesmo com todo mundo explicando que ele era Bruno, que eles se conheciam há dois anos e que eles faziam parte da mesma guilda no jogo online. Quando o professor entrou na sala, porém, Bruno tirou os fones e virou-se para Julia: — O que você fez com a Priscila? — perguntou bem diretamente, à queima roupa e sem se importar se Gabi e Nando poderiam ouvir, mas que por sorte não ouviram porque estavam brigando pelo fato de que Nando nem avisou quando voltou para casa. — E-eu... — Julia engasgou, totalmente despreparada para responder. E sem coragem também, pois não imaginou que seria esse o tipo de esquecimento que ia acontecer. — Mais precisamente... o que você escreveu? — ele não desistiu, soava irritado. — Pra ela te esquecer.
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— Você fez isso mesmo? — Fiz. — Por quê? — Porque ela estava enchendo o saco! — Julia ficou na defensiva. — Pense pelo lado positivo, ela não vai mais ficar no seu pé. — Eu não acredito que você fez isso. — Bruno colocou os fones de novo, virando para frente. Julia o cutucou, mas ele estava bravo demais para querer falar com ela. Era decepcionante que Julia tivesse apelado para o livro em uma questão tão idiota quando aquela! Mas ao mesmo tempo, ele também ficara muito chateado porque, sem nem perguntar se ele se importava, Julia apagou todo o passado que ele tinha com Priscila, livrando-a de toda a culpa que ela sentia por tudo o que o fez passar, enquanto ele ainda se martirizava com tudo aquilo e ainda morria de raiva só de olhar para Priscila... quer dizer, agora tinha ainda mais raiva! O silêncio de Bruno foi um martírio para Julia, ela tentou de tudo, inclusive tirar os fones de ouvido dele, mas cada tentativa apenas o irritava mais e mais, até que, quando chegou a hora do intervalo, Bruno estava no limite. Enquanto todo mundo estava achando que Priscila havia endoidado de vez, Nando era o único que estava verdadeiramente preocupado com a saúde de Priscila e era justamente essa preocupação que estava enlouquecendo Gabi. — Não aguento mais! — Gabi desabafou. — Relaxa, Gabi, ele só está preocupado. — Jaime falou, ele estava ao lado de Julia, de frente para Gabi, pois os três haviam se afastados dos demais que cercavam Priscila. Julia estava com os olhos fixos em Priscila, odiando o fato de que, agora que “esqueceu” de Bruno, que ele parecia mais interessado em certificar-se de que ela realmente não lembrava nenhum detalhe do que aconteceu entre eles. Priscila inclusive jurava de pés juntos que ela nunca viu Bruno na vida, nunca, em sã consciência se interessaria por ele e
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que ela nunca traiu Ivan (agora seu ex-namorado) com ninguém. O que martirizava Julia era a expressão de tristeza que Bruno tinha quando falava com ela. Priscila estava tratando a todos como malucos, achando que era uma brincadeira, uma peça, que todos tentavam pregar nela só para dar risada. Bruno desistiu, se afastou de Priscila e foi se sentar longe de todos eles, com fone de ouvido e com a cabeça entre as pernas. Julia queria ir lá sentar-se com ele, mas não teve coragem. Nando deixou Priscila com Andreza, Tadeu e Dudu e se aproximou de Gabi, quando foi passar o braço por seus ombros, ela deu uma pirulitada em sua mão e falou: — Agora lembrou que eu existo, não é? Já cansou de brincar com a morcega? — Ai, Gabi! O que foi que deu em você? — O que deu em mim? O que deu em você?! — ela colocou as duas mãos na cintura e tanto Jaime quanto Julia tiveram que se afastar para deixar os dois se entenderem, o que não aconteceu e eles brigaram o intervalo inteiro. Gabi achava que Nando estava abandonando-a por causa de Priscila, enquanto que Nando dizia que só queria ajudá-la com o problema de memória. Nesse aspecto, eles não estavam conseguindo encontrar um meio termo como faziam em tantas outras brigas, pois ambos tinham opiniões radicais a respeito. Julia continuou sendo ignorada por Bruno o restante das aulas e inclusive, na volta para casa quando ela foi de carona no cano da bicicleta e Bruno não quis dividir os fones com ela, para que eles não tivessem que conversar. Foi quando pisou no chão na porta de sua casa, que Julia não aguentou e arracou os fones de Bruno com violência, enquanto ele estava tirando a mochila dela das costas. — Não acredito em você! — ela gritou, irritada. Os olhos mareados de lágrimas, mas não ia chorar, só estava com muita raiva da atitude dele. — Todo aquele papo de que havia superado a Priscila era mentira, não era?!
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Bruno abaixou os olhos e comprimiu os lábios, naquela expressão que já tinha um tempo que ela não via, mas que não esquecera o que significava. Um choque de irritabilidade percorreu seu corpo eletrocutando-a de energia e sem nem ao menos perceber, ela deu um tapa ardido na face do namorado que ficou até a marca. — Ai, você está louca? — ele olhou para ela em um espanto, os olhos bem abertos e a boca entraberta em surpresa. Segurou o rosto com umas das mãos, porque estava doendo pra caramba. — Você é um crápula! — ela gritou. — Eu te odeio! — e virou as costas, subindo a varanda. — Não, não, não, espera. — Bruno largou a bicicleta deixando-a cair no chão e segurou Julia abraçando-a . Ela se debateu para se soltar, mas ele segurava seus dois braços e corpo com as duas mãos enlaçadas na altura do cotovelo. — Não faz assim, Ju... espera... por favor. — Me solta! — ela gritou, ele soltou. Julia virou-se para ele, os olhos carregados de tristeza e raiva. — Eu não aguento mais esse drama! Arthur, Priscila, Ivan! Quando não é um é outro, mas o resultado é sempre o mesmo! A gente briga, eu choro e você é um mentiroso! — Não faz assim, espera... vamos conversar. — O que tem pra conversar? Você me ignorou o dia inteiro! Você não quer conversar, se quisesse tinha conversado quando eu tentei falar contigo e explicar! Você nem deixou eu explicar porque eu fiz isso! — Não precisa explicar, eu sei porque você fez. — Ótimo, você sabe, pronto, assunto encerrado! — Julia cruzou os braços, a tristeza tomando conta de si. Se sentia patética por viver aquele namoro acreditando em uma mentira. — Espera, que saco!Você é muito nervosa! — ele gritou de volta. — Eu quero pedir desculpas! — Você quer? — Julia sentiu o coração pular uma batida. — Por quê?
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— É... que... — ele estava escolhendo as palavras, sem saber o que fazer com as mãos e por isso, acertou a mochila nas costas. — Você podia ter me perguntado antes de ter feito, sabe? Foi muito egoísta! — Isso não é um pedido de desculpas, é uma acusação! — Julia retrucou. — Pera, Julia dá um tempo... deixa eu me explicar! — Tá bem, vai em frente. — Ela cruzou os braços, mas estava nervosa. Se ele ia dizer que ainda gostava de Priscila ela não queria ouvir. Sentiu um rombo no peito, como se alguém estivesse arrancando um pedaço do coração. — Quando eu disse que você podia ter perguntado, era porque talvez eu não concordasse que você apagasse tudo da memória dela... olha só pra ela! — ele colocou a mão na testa e abaixou a cabeça. — Você praticamente abençoou a Priscila, ela esqueceu tudo e era para ela estar sofrendo. Eu não estou com raiva de você eu só estou... frustrado. Ah, era isso?!, Julia quase caiu sem equilíbrio no chão um pouco surpresa e muito aliviada pelo o que escutou. Deu risada e o abraçou, beijando-o. — Bobinho... — suspirou. — Você tem razão, eu quis me livrar de um problema e esqueci que isso podia te afetar, me desculpe. Eu não vou escrever mais nada que tiver a ver com você, eu prometo, tá? — Você já prometeu antes e ainda assim escreveu! — ele passou uma bronca. — Você tem razão. Eu prometo que vou te perguntar antes, sempre, tá bem? — segurou no rosto dele, olhando em seus olhos. — Tá bem... — E se você quiser fazer a Priscila sofrer, eu escrevo qualquer coisa que você quiser... — Deixa isso pra lá, provavelmente foi para o melhor. — Bruno revirou os olhos. — Ou não, já que agora ela está cercando o Nando e a Gabi está ficando possessa de ciúmes.
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— Ai, meu Deus... nem me fala. Acha que eu devia escrever para eles pararem de brigar? — Você escreve o que você quiser. — Você acabou de dizer que eu devia ter perguntado! — Julia ficou confusa. — Do que diz respeito a mim! O que tem a ver com os outros, pouco me interessa! — E eu que tenho fama de egoísta! — Julia reclamou, emburrada. Bruno riu e a beijou. Tirou a mochila das costas e entregou para ela. — Não quer entrar? — Estou de castigo, ainda por cima. — ele pegou a bicicleta do chão e foi para casa. Julia respirou fundo e entrou em casa. — Jujuba! — a voz familiar de seu pai ecoou pelos corredores. — Pai? O que está fazendo aqui?! — arregalou os olhos e piscou várias vezes surpresa. E às duas da tarde? — Voltei para casa, meu docinho! — Clayton era um homem de barriga saliente, cabelos escuros, olhos grandes e um pouco narigudo, mas era seu pai. Ele estava de calça jeans e camiseta de manga comprida enrolada até o cotovelo, um pouco desleixado. No corredor, Julia contemplou mais caixas de mudança em cima das caixas que já estavam. — Pai! — ela correu até ele e o abraçou feliz. Que alegria! Ele estava de volta! Era tudo o que ela queria!
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12 SÓ DEPOIS DOS 20 ANOS! † Julia abriu seus olhos castanhos de repente, as suas narinas captaram cheiro de café. Uma imagem surgiu na sua cabeça e um raio atingiu seu coração. Sentou-se na cama afastando os lençóis e procurou não pensar em Ivan. Suspirou chateada consigo mesma, afinal a última coisa que precisava era ficar martelando na sua cabeça Ivan... Ivan que tinha cheiro de damasco, olhos sinceros e os lábios quentes com gosto de café. Ivan que tinha terminado o namoro com Priscila. Será que isso tinha acontecido por causa dela?! Ok, hora de admitir. Claro que tinha! Muito possivelmente, não, reformulando, com toda certeza os últimos acontecimentos inusitados eram reações ao seu impulsivo desejo de que Priscila deixasse Bruno em paz! Mas não seria exatamente agora, com Priscila esquecendo Bruno para todo o sempre-sempre que Ivan e Priscila ficariam mais juntos do que nunca em uma espécie de final de filme águacom-açúcar onde eles subiriam uma montanha ao por do sol e apareceria escrito no céu "felizes para sempre"? O que tinha acontecido para que ao invés de darem as mãos e irem ao encontro da felicidade, Ivan e Priscila resolveram terminar?! E provavelmente era por ter terminado que Priscila ligou para Bruno o dia todo e, após o pedido, para Nando. Será que era algo sério? Será que Ivan estava triste? Ele parecia gostar tanto de Priscila... com certeza estava triste.
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E chega de pensar em como Ivan estava ou deixava de estar! Era melhor se concentrar em questões mais importantes com o fato de que seu pai estava de volta em casa. Essa feliz notícia tirou Julia da cama com um sorriso enorme! Era a primeira vez em meses que ela se sentia tão bem! Estava doida para contar para Ivan que... Ops. Para Bruno! Correu para o banheiro tomar banho e se arrumar, pois era dia de aula. † Julia desceu as escadas de uniforme e foi até a cozinha. Clayton estava sentado tomando uma xícara de café e lendo o jornal. Era como voltar ao passado, quando eles eram uma família feliz. Na mesa estava uma mesa posta com perfeição: Bolo, pão, queijo, manteiga, frutas e cereal. — Bom dia papai! — ela beijou o rosto de Clayton e sentouse na mesa para tomar café da manhã ao lado do pai. — Bom dia, querida, tudo bem? — Tudo ótimo! — Julia sorriu enquanto despejava cereal na sua tigela. Seu pai estava em casa, ele parecia feliz, sua mãe parecia feliz. Tudo estava bem! — Que bom. Vou te levar para a escola e deixar sua mãe no serviço. — ele informou enquanto dobrava o jornal e colocava de lado na mesa. — Não precisa me levar, vou de bicicleta com o Bruno. — Bruno? Que Bruno? — O meu vizinho... — Julia revirou os olhos e segurou a boca. — Ele é da minha classe. — Ah...! Mas não é perigoso? — Clayton serviu-se mais café. — E se vocês caírem? — Não vamos cair, pai! — Julia largou o prato de cereal na metade, quando a campainha tocou. — Ai, é ele, tenho que ir! — Não vai comer? Mas Julia já estava no corredor, onde pegou sua mochila e abriu a porta. Pisou para fora de casa e se jogou enlaçando os braços em Bruno, beijando-o. Ele estava com os cabelos úmidos e
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com gosto de pasta de dente, e os piercings de spike arranharam seu queixo. Ela se soltou dele com um sorriso e segurou no braço. — Vem aqui você tem que conhecer meu pai! — puxou ele. Bruno quase caiu, mas conseguiu se equilibrar enquanto que sua bicicleta se estatelou no chão... ouch! — Espera! — ele tentou, mas Julia o puxou até a porta. Clayton já estava na porta, de calça jeans e camiseta, com as duas mãos na cintura. No rosto, uma expressão que Julia conhecia como “desaprovavão”, mas ela não tinha nem ideia de porque ele estaria fazendo tal expressão. — Pai, esse é o Bruno. Meu vizinho.... e namorado. — Ela sorriu, mas seu pai faz uma expressão de mais desaprovação ainda. — Hm. Prazer. — Clayton foi um pouco seco, cruzou os braços e observou bem aquele garoto, começando pelos olhos cheios de kajal até a ponta desgastada do coturno militar. Ficou horrorizado. — Prazer... — abaixou a cabeça sem jeito, pois percebeu os olhares de fogo que vinham de Clayton. — Bem, temos que ir! — Julia o puxou de novo. — Tchau pai! — Vão com cuidado! — Clayton falou, mas ficou esperando eles subirem na bicicleta. Uma das coisas que não gostou foi que além de não usarem as proteções adequadas, Bruno não tinha garupa. † Assim que Bruno parou a bicicleta na porta do colégio, Gabi se aproximou com os olhos cheios de lágrimas. — Jujuba! — chamou pela melhor amiga. — Gabi? O que houve? — Julia se assustou, Gabi era do tipo de garota que estava sempre sorrindo e feliz, para chorar precisava ter um bom motivo.
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Gabi olhou para Bruno e depois para Julia, comprimindo os lábios que queriam se entortar, tentando não chorar na frente de todo mundo. Bruno entendeu o recado: — Eu encontro vocês na sala. — falou. — Obrigada! — Julia deu um selinho em Bruno e se afastou com Gabi, indo na direção do banheiro feminino. Bruno se abaixou, prendeu a roda da bicicleta com a corrente e quando se levantou, viu Nando e Priscila entrando juntos, conversando e rindo, pelos portões da escola. O cérebro até demorou para processar a informação, ele ficou até um tempo parado em nulidade mental. Guardou as chaves no bolso da bolsa de carteiro e entrou pelo portão da escola, onde no pátio, já estavam seus amigos. — Cara, preciso falar com você, seriamente! — Tadeu se aproximou, suas sobrancelhas estavam crescendo e isso o deixava muito engraçado. — Fala. — Bruno concordou. Tadeu segurou em seu braço, uma coisa totalmente incômoda! Não gostava dessa mania das pessoas em ficarem segurando nele como se precisassem chamar atenção, especialmente que, na maioria das vezes, elas seguravam bem em em cima de algum hematoma que as mãos fortudas de Carlos haviam deixado. Não era nem que doía, mas acionava uma espécie de alerta aranha. — Você tá sabendo que a Priscila e o Ivan terminaram? — Não me interessa. — Bruno revirou os olhos. Até porque, todo mundo sabia que Ivan e Priscila sempre voltavam. — Não meu... foi sério. Foi o Ivan quem terminou. — Isso é novidade. — Bruno comentou. E coloca novidade nisso, mas em se tratando de Ivan, tudo podia ser apenas um blefe. — Eles estavam brigando direto, você viu no Strange House quando você foi lá, lembra? — É... — Surtos e mais surtos.
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Foi apenas isso que aconteceu naquela noite no Strange House: por algum motivo que ele nem quis saber qual era, Ivan atrasou para buscar Priscila e não atendia o celular, ela achou que ele já tinha ido para a casa noturna, mas chegou lá e constatou que ele não estava (claro) e começou a criar teorias malucas de que ele estava na casa de alguém. Alguém queria dizer, uma menina. Cada menina que não aparecesse na porta do Strange House era uma possibilidade de encontro às escondidas de Ivan, imagine só. E ter que ficar vendo Priscila chorar, soluçando e surtando por Ivan cada vez que ele sumia ou se atrasava, era um saco. — Você sabe como é! Ela termina, ele corre atrás e faz drama, ela volta... até a hora que ela cansa dele de novo, e fica nessa. — Sei. — E não precisava se lembrar, já que em uma das vezes em que ela se cansava de Ivan, fora Bruno quem sofreu. — Mas dessa vez, ele terminou. — É blefe. — Bruno decretou. Queria também terminar logo aquela conversa. — Não, meu, tou falando... tem algo muito estranho rolando. A Priscila enlouqueceu, ela até esqueceu de você de tão traumatizada que ficou com o fim do namoro! Você tem que fazer alguma coisa, falar com o Ivan e com a Priscila, sei lá! — Tadeu sugeriu. — Eu não vou falar com o Ivan! — Bruno soltou-se de Tadeu. — Você já falou com ele antes... — Tadeu bateu os ombros. Bruno revirou os olhos. A única vez com que falou com Ivan, foi apenas porque Priscila não parava de chorar. A imagem estava meio que marcada no seu cérebro para sempre: Priscila sentada na ponta da cama do quarto de Ivan chorando, tremendo, soluçando e dizendo que ia se matar. Exatamente como ficava sua mãe, com a diferença que as vezes, Gisela tinha um olho roxo. Bruno nunca tinha visto Priscila daquele jeito antes e até então nem achava que ela gostava tanto assim de Ivan! Em sua
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opinião, quem gosta, não trai. Ele nunca traiu Priscila e por isso, achava que se Priscila traia Ivan (mesmo que fosse algo précombinado entre eles) era porque Priscila não gostava de Ivan. Tão simples, né? Priscila estava balbuciando em desespero que amava Ivan, que não poderia viver sem ele e que, se ele a deixasse, ela ia se matar. Mas hein?! Tudo isso porque Karina, um casinho de Ivan, conseguiu o telefone de Priscila (remexendo no celular dele) e ligou dizendo que ia convencer Ivan a terminar com Priscila porque amava Ivan. Faça-se aqui uma observação importante. Para Bruno, ter uma garota apaixonada por Ivan e afim de convencê-lo a parar de correr atrás de Priscila era ótimo! Priscila vivia dizendo que não conseguia terminar com Ivan porque ele era muito sensível e estava em depressão (palavras dela) por todas as adversidades que estavam acontecendo na casa dele (uma confusão envolvendo uma traição entre seus pais). Por isso, quando ficou sabendo de toda verdade, em choque, tomou a estúpida decisão de ligar para Ivan e resolver a crise dos dois para eles. O que envolveu: desistir de Priscila, convencer Karina de que Ivan não era para ela e dizer (não foi preciso convencer) a Ivan para dar uma segunda chance para Priscila. Não necessariamente nessa ordem. Bruno se sentia muito patético ao pensar nisso... mas seu relacionamento com Priscila foi feito de decepções. Quem saiu de coração partido e orgulho ferido foi Bruno. Ponto final. Falar com Ivan de novo e resolver as coisas para Priscila... não, muito obrigado! O que acontecia com Priscila não era mais responsabilidade sua. E mais. Ele não tinha desculpado Priscila por nada do que ela tinha feito e muito menos Ivan! (Não que Ivan tivesse feito diretamente alguma coisa, mas só pelo fato de Ivan existir mesmo). Aliás, que ótimo que Ivan terminou com Priscila! Que fosse pra valer. Assim ela podia se acabar de chorar por Ivan e sofrer pela eternidade por causa dele e quem sabe, até se matasse! E nem
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assim Bruno sossegaria achando que teria se vingado, porque não teria! — Não vou falar nada com aquele idiota. — Bruno decretou e se afastou de Tadeu. † — Eu não aguento mais Jujuba! — Gabi soluçava, sentada no vaso com a cabeça pendurada nas mãos e afundada em lágrimas. — O Nando fica o tempo todo dando atenção pra Priscila... o tempo todo! — Calma, Gabi... — Julia estava aflita. — O que está acontecendo? — A gente não consegue se entender, ele acha que eu estou fazendo crise de ciúmes, mas ele é quem fica dando atenção pra ela o tempo todo! — Mas ele não estava na sua casa ontem? — Estava, no telefone com ela! A tarde inteira! Ela ligou no meio do filme e eles só pararam de conversar porque os pais do Nando foram buscá-lo lá em casa! — Gabi chorou mais ainda. — Mas o que essa Priscila quer tanto com o Nando? — Ela quer dar pra ele, o que você acha?! Sirigaita! — Gabi assou o nariz. — Eu não sei o que fazer, eu tento falar com ele e a gente briga... eu quero me entender, eu amo muito o Nando! Me ajuda, Jujuba! — Vou pegar água com açúcar. — Julia abraçou a amiga. † Mais tarde no mesmo dia, durante o intervalo, Nando parou na frente de Julia — Ei, Jujuba, tem um minuto? — Claro. — Julia tirou o fone e entregou para Bruno, ficou em pé e se afastou um pouco do grupo para conversar com Nando.
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Todo mundo sabia o que estava rolando, já que Gabi chorou tanto que ficou com dor de cabeça e estava na enfermaria. — O que foi? — Preciso da sua opinião... você sabe que eu e a Gabi estamos meio que... hm... brigados... — Porque você fica dando atenção pra Priscila, né cabeção! — Eu só estou tentando ajudar! — Ajudar com o quê? — Ela tem que ir no médico ver o que há de errado com a cabeça dela.. — Nado soava aflito. — Estamos todos preocupados... — Nando estava se referindo à Jaime, Andreza, Tadeu e Dudu. — Ela inventou essa fantasia na cabeça dela, como uma realidade paralela, saca? Onde ela nunca ficou com o Bruno e que o Ivan é perfeito e que sem ele, ela vai morrer! — Ah sim. — Julia engoliu seco. Ivan. Agora ele era “perfeito” também? Cruzou os braços. — Ela pode cometer suicídio, estou preocupado, você não ficaria preocupada se fosse comigo? — Ficaria. — claro, ela não estava preocupada com Priscila porque foi ela quem fez o pedido e sabia que não era nada grave. — Então! Ela pode se matar, meu... magina ela se matar e você saber que você podia ter ajudado e não ajudou?! Eu ia pirar...! — É, eu também... — mas Julia não achava que fosse pirar. — Sabe a Priscila e o Ivan terminaram, você ficou sabendo? — Não... sério? — Julia tentou fingir que estava surpresa, mas ela tinha xeretado o Facebook de Ivan e já sabia. — Quando? — Tem uns dois ou três dias... três dias. — Nando contou. — O Ivan que terminou com ela, parece que ele conheceu uma outra garota... a Priscila acha que foi no Strange House! E isso que é o mais bizarro! Julia sentiu o estômago dar voltas em sua barriga. Oh-Oh! — A Priscila nem lembra que ficou chorando pro Bruno até o Ivan chegar, que ela fez a maior cena de ciúmes e que sobrou até pra Dê! — Não lembra? — Julia tentou parecer impressionada.
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— Não, ela criou uma fantasia louca de que o Ivan deu o lenço dele pra menina com quem ele ficou! Julia ficou branca como um fantasma e seu coração até parou de bater. Não era que a fantasia de Priscila não tivesse acontecido, até tinha... mas não daquele jeito! Eles não tinham ficado, nada disso... foi um beijo sem querer, totalmente inesperado e que, supostamente, nem devia acontecer. — Entendeu porque estou tão preocupado?! — Nando pareceu perceber a cara de pavor de Julia. — S-s-sim! — Ela quase engasgou. — Ufa... me ajuda com a Gabi, Jujuba! Só você pode explicar pra ela...! Não aguento mais brigar... eu gosto tanto da Gabi. — Tudo bem... eu falo com ela... — e colocou a mão no ombro de Nando. — Ela também gosta muito de você Nando, fica tranquilo! Foi nesse momento que Julia decidiu que precisava usar seus poderes mágicos para ajudar seus amigos. Quando voltou para sala, Julia escreveu em seu livro dos desejos: “Quero que o Nando e a Gabi parem de brigar!” Isso deveria bastar! † Nando juntou suas coisas com as de Gabi e saiu da sala. Ele ia até a enfermaria tentar fazer as pazes e Julia havia desejado “boa sorte” para ele. Ela guardou suas coisas vagarosamente e saiu da classe de mãos dadas com Bruno. — Ei, Julia! — Arthur a chamou, apressando-se com as muletas. Julia parou de andar virando-se para Arthur, que estava sorrindo. — Ah saco. — Bruno reclamou revirando os olhos.
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— O que foi? — Julia tentou ser fria, para não criar problemas com seu namorado. Fez questão de não soltar a mão de Bruno. — Eu queria só avisar, a Cidinha me pediu para agradecer ao seu cartão. Ela até chorou quando viu... e mandou isso aqui pra você. — Ele estendeu um envelope cor-de-rosa com um selinho de ursinho. — É uma carta. — Pra mim? — Julia esticou a mão livre e pegou o envelope. — É sim! — Arthur estava animado e sorrindo, até parecia que ele não tinha mais problemas. — Ela vai sair do hospital, mas ainda vai ficar de repouso. — Isso é uma boa notícia... — É sim! Ela ficou internada quase dois meses! — Arthur? — na porta da sala da Classe B, Adriana o chamou. — Eu tenho que ir. — E Arthur ajeitou as muletas. — A gente se vê! — Obrigada. — Julia despediu-se enquanto Arthur voltava para dentro da sala. Julia virou-se para Bruno e eles continuaram andando. — O que será que tem aqui? — Abre e vê. — Vejo mais tarde. — Julia falou com um sorriso e guardou a carta de Cidinha na mochila. — Hoje você pode ficar lá em casa? — Tenho que voltar antes das seis horas. — Bruno falou. Ele estava de castigo, mas Carlos estaria trabalhando até lá. — Tudo bem! — Julia sorriu feliz. † Clayton estava em casa quando Julia voltou. O que foi esquisito porque ela achou que seu pai estaria trabalhando. Ele estava descarregando compras do carro e pediu ajuda para Bruno e Julia. Já dentro da cozinha com as sacolas, foi que Clayton perguntou:
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— Para andar de bicicleta não tem que usar aquelas proteções? — e ao mesmo tempo soltou as compras em cima da mesa. — Creio que sim. — Bruno respondeu. Fala sério que ia começar o interrogatório logo no primeiro dia, né?! — E você não usa? — Ai pai, a escola é aqui do lado! — Julia percebeu que ele estava implicando. — Mas tem que usar! Olha, eu vou dar dinheiro pra vocês comprarem, é melhor. — Clayton decidiu. — Tá bem. — Julia segurou na mão de Bruno e passou para o corredor, indo em direção ao quarto. — Não liga pro meu pai, ele as vezes é muito cri-cri. — Certo... — Bruno respondeu e lançou um sorriso forçado. — Vem, vamos nos divertir um pouco. — ela o puxou para dentro do quarto e fechou a porta, jogando sua mochila no chão. Virou-se e abraçou-se com o namorado passando as mãos por seus cabelos e beijando sua boca. Adorava tudo em Bruno. Ele tinha a altura ideial, de forma que ela só precisava levantar um pouco a cabeça para beijá-lo, ele estava sempre limpinho e cheiroso e tinha os lábios mais macios do universo. Deslizou as mãos para as costas de Bruno por dentro da camisa do uniforme, explorando-o de forma sensual, mas quando o tocou, Bruno estremeceu e interrompeu o beijo, segurando em seus braços finos, em um movimento que a fez descer as mãos e olhar para ele confusa, analisando a expressão do namorado, concluiu que ele estava com dor. — O que foi? — Nada.. — ele afastou-se dela, foi sentar na cama. Estava fugindo, claro. — Não vamos ver aquele filme? — O que tem nas suas costas? — ela colocou as duas mãos na cintura, percebendo a mudança de assunto. — Nada, Julia, deixa pra lá... — Seu pai te machucou? E não mente! — Não que ele pudesse mentir, se ela quisesse, ele diria sempre a verdade, mas
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claro que ela esperava que ele dissesse de livre e espontânea vontade. — Sempre, né! — impacientou-se. Que droga, se ela já sabia, porque ficava fazendo grande caso do assunto? — Deixa pra lá, vem aqui, vamos ver filme. — Poxa, Bru... — Julia se aproximou chateada abraçou-se com ele sentando-se em seu colo, puxou os cabelos dele para trás e mordeu seu queixo. — Eu fico preocupada com você! Você nem tem noção do quanto... — Não é nada, só o de sempre. Não precisa se preocupar. — ele sorriu, que era para ver se ela largava mão de ser tão neurótica a respeito. — Com o que ele te bateu? — Pra quê você quer saber isso? — Só quero saber... — Dessa vez com o cinto. — Machucou? — O que cê acha? — Deixa eu ver? — Não. — Então é porque foi muito, não foi? — Só umas cintadas, nada demais, Julia... para de ser neurótica. — Neurótica? Eu fico preocupada... e quando é de madrugada e daí parece que ele está pondo a casa abaixo? Eu fico aqui com o coração na boca achando que ele pode te matar... ou te dar um olho roxo ou uma boca partida de novo. — Eu vou ficar bem! — Quem garante? Ele pode acordar no meio da noite pegar um machado e cortar sua cabeça fora. Ele riu, quase gargalhou como se o que ela estivesse falando fosse tão hipotético e impossível que chegava a ser engraçado. — É sério Bruno! Por que você deixa ele fazer isso? Por que não chama, sei lá a polícia?
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— Já disse que não é pra chamar a polícia, ele é meu pai! Todas as vezes que ele me bateu, eu mereci... então não é culpa dele. — Discordo! O que você fez de tão ruim? Não lavou a louça do jantar? Francamente, né! Ele podia comprar uma lava-louças, não precisava bater em você! E outra, não é porque você fez uma ou duas coisas errados que ele precise te espancar! — Podemos mudar de assunto? Eu não gosto de falar nisso... por favor? — Tudo bem... — Julia concordou mas fez cara de contrariada. Alguma coisa no “por favor” que ele disse a deixou triste. Encheu o namorado de beijos intensos na boca e no pescoço, apertando-se contra ele. Julia tirou sua gravata e desabotoou sua blusa exibindo seu sutiã de rendinha branca e deixou Bruno escorregar a alça pelo braço devagar e depositar um beijo doce em seu ombro, o metal do piercing gelado. Ela cheirou os cabelos de Bruno e comprimiu os ombros inspirando fundo, droga, será que ele não percebia que ela se preocupava? O quanto ele era importante para ela? Ela ficaria muito triste se algo acontecesse com ele... Bruno a beijou no pescoço, segurando em suas costas, Julia inclinou a cabeça para trás e seu pai abriu a porta sem bater. — O que vocês estão fazendo?! — Pai! — Julia gritou assustada e saiu do colo do namorado. — Que pouca vergonha é essa?! — É melhor eu ir embora. — Bruno ficou em pé. — Acho bom mesmo! — Clayton abriu bem a porta. — Você sabe onde fica a rua. — Pai! — e segurou no braço de Bruno. — Não vai! — o abraçou. — É melhor eu ir... — Ele a beijou no rosto. Daria um beijo na boca se não fosse Clayton parado com olhos demoníacos em cima dele. Pegou a bolsa de carteiro do chão e saiu. Enquanto passava pela porta da casa, ouviu Clayton gritar:
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— Vamos ter uma boa conversa, mocinha! Fechou a porta com cuidado e foi para sua casa, deixando a bicicleta na cozinha de Julia. Ele nem precisava ouvir a conversa para saber do que se tratava. † Clayton teve uma bela conversa com Julia. Um interrogatório sobre a vida de Bruno, coisas que ela nem sabia como responder para um pai. Quantas namoradas ele teve antes de você? (uma, Priscila). Até onde vocês já foram? (Foram onde?). Ele já tocou em você? (Ele é meu namorado...) Vocês se beijam de lingua? (Claro, né, pai!) E ele já te obrigou a fazer algo que você não queria? (Não! Que tipo de pergunta é essa?) Ele já colocou a mão dentro da sua calcinha? (Claro que não! — enquanto ficou roxa de vergonha) Já colocou a mão nos seus seios? (Hm... já... uma vez). Por dentro ou por fora da blusa? (Dentro) Dentro do sutiã (uma vez) Uma única vez? (umas duas... três... no máximo — várias, mas ela não queria dizer). Ele já transou? (Já... mas não comigo...). Você está de castigo, nada de televisão e vai lavar a louça após o jantar de hoje! Isso resumia a conversa. No jantar, Clayton ficou reclamando com Isabela que ela era uma irresponsável por deixar isso acontecer. Isabela tentou defender seu ponto de vista: Julia já tinha dezesseis anos, estava apaixonada e Bruno era um bom garoto, muito educado que ajudava a lavar a louça depois do jantar mesmo sendo a visita. Clayton replicou dizendo que se fosse muito bem educado não se vestiria como um bicha (palavras dele!). Isabela falou que a moda mudava e que Clayton na sua época usava um figurino “Grunge” e tinha um cabelo que parecia do Slash. Clayton resmungou e disse que tudo bem, que não iria proibir o namoro mas que nada de subir para o quarto, iam ter que ficar na sala e no máximo de mãos dadas. Isabela lembrou que era melhor liberar uns beijos em casa do que correr o risco deles se afobarem pela vontade de
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arriscar o que era proibido e eles terminarem com uma Julia grávida aos dezesseis anos do primeiro namorado. No fim, Clayton deu um discurso de duas horas sobre que partes do corpo Julia devia evitar ser tocada e etc, a importância da camisinha e uma lição de moral sobre sexo só após o casamento e com muito amor. Nessa parte Isabela riu e falou que depois dos vinte anos, estava tudo liberado para Julia. Se eles estavam tendo um faniquito só porque Bruno tinha piercings e pintava os olhos com kajal, imaginem só se Julia namorasse alguém como Ivan?! Ter seu pai em casa não era a melhor coisa do mundo, afinal! Quando foi liberada para subir para o seu quarto Julia jogou-se na sua cama desconsolada e ligou o netbook para falar com Gabi, ela sempre ficava online no Facebook. Exceto naquela noite, que Gabi estava offline. Deixou o netbook de lado imaginando que talvez Gabi e Nando estivessem fazendo as pazes em ótimo estilo! Lembrou-se da carta de Cidinha. Retirou a carta da mochila e leu o que estava escrito de caneta cor-de-rosa em uma folha branca: Julia, Tudo bem com você? Fiquei muito feliz de receber o seu cartão, me animou bastante! Eu estava achando que tudo o que tinha acontecido comigo foi porque você ficou com raiva de mim... olha me desculpe, eu sou uma idiota... Você, por outro lado, mostrou que é mesmo uma garota de coração nobre, bem que o Arthur falou! Sinto que seremos amigas para sempre! Meu médico me disse hoje que poderei voltar para casa, mas tenho que ficar de repouso, você virá me visitar? Traga o seu namorado, quero conhecê-lo! Fique bem, Cidinha
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Julia engoliu seco, limpou as lágrimas e se sentiu uma pessoa muito suja. Era culpa dela sim, porque ficou com raiva. E ainda havia enviado um cartão hipócrita para Cidinha... que monstruosidade! Não havia nada de nobre em seu coração. Quando olhou para o computador porém, a carta de Cidinha havia perdido total importância, e o seu coração esqueceu toda a culpa ao ser atingido por um raio. Havia uma solicitação de amizade nova em seu Facebook... e era de Ivan.
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13 PROIBIDO É MELHOR † Logo que clicou em “aceitar” a solicitação de amizade de Ivan, Julia se arrependeu. Pense bem, era só Bruno logar no Facebook que ele veria a notificação de que eles agora eram “amigos” e provavelmente ficaria muito bravo. Quando Ivan mandou uma mensagem de chat dizendo “oi”; Julia entrou em pânico e fechou seu netbook. Ivan era um erro. Concluiu. † No dia seguinte Julia colocou os pés para fora de casa acompanhada do seu pai. Ele estava segurando as chaves do carro. Julia respirou fundo e se aproximou de Bruno dando um selinho rápido. — Meu pai vai levar a gente hoje, tá bem? — Ok.. — Bruno concordou sem fazer mais perguntas. Sua bicicleta Schwinn pelo visto ficaria retida na cozinha de Julia enquanto ele não adquirisse capacete e garupa. Os dois entraram no carro de Clayton e foram em silêncio até a escola. O caminho de carro era bem rápido, levou cinco minutos e por isso, foram um dos primeiros a pisarem no pátio da escola. Assim que saíram do carro e que ele se afastou do casal, Bruno parou de frente para Julia e segurou em seus delicados ombros. Ela então reparou nele: o uniforme amassado, a gravata
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mal enlaçada e a cara de sono. Ele estava tão bonitinho todo desleixado desse jeito naquela manhã! — Ficou tudo bem na sua casa? Seu pai te bateu? — Perguntou preocupado, muito preocupado. Julia levou um susto com a pergunta e até arregalou seus olhos castanhos. Isso era pergunta para se fazer? — Não..! Ele não me bateu! — Você mentiria pra mim? — Claro que não, Bru... — ela deu um sorriso para ilustrar que estava bem. — Foi só um interrogatório..! — Só? — Ele respirou aliviado e a abraçou bem apertado. — Eu nem consegui dormir...! — Que bobo! O que você ficou pensando? — Julia o abraçou também, sentindo-se feliz e protegida. Não conseguir dormir porque ficou preocupado com a namorada definitivamente garantia alguns pontos positivos para ele. O dia estava com um clima bem agradável, a primavera já se instalava e as árvores floridas deixavam a escola mais alegre e colorida. Naquele instante, abraçada com Bruno, perfeitamente aninhada nos braços dele, Julia achou que aquele era um dia perfeito! E foi nesse momento que Gabi entrou na escola com uma aura negra ao redor dela, parecia até que ia chover com aquela energia pesada. Andava com os pés pesados, como se o chão afundasse. — Jujuba, tem um minuto? — parou na frente do casal, já atrapalhando o romance. — Claro. — Julia concordou e soltou-se de Bruno sem a menor vontade de fazer isso. Seguiu Gabi pelo pátio até que elas pararam perto da sala do laboratório de ciências, local bem estranho para uma conversa de amigas. Julia reparou que pela primeira vez na vida Gabi estava mal arrumada! Parecia um caco! Os cabelos ruivos não foram alisados pela chapinha, ela estava sem maquiagem e sem lentes. Foi um choque olhar para aqueles olhos castanhos escuros,
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especialmente que parecia que Gabi passou a noite inteira chorando. — O que foi? — preocupou-se. — Terminei com o Fernando. — o rosto de Gabi ficou mais vermelho que seu cabelo. Ênfase no “Fernando”. — Como é? Por quê?! — Por que ele é um babaca! Imbecil! Otário! — Gabi começou a chorar e Julia, sem saber o que fazer, arrastou a amiga até o banheiro mais próximo. Gabi explicou entre soluços que, no dia anterior, quando Nando (Fernando, já que Gabi estava fazendo questão de dizer todas as sílabas) foi buscá-la na enfermaria, eles resolveram conversar e que a conversa havia sido bem calma por sinal, mas que tinha posto um fim na relação de forma bem trágica: Nando achava que Gabi não passava de uma menina mimada que só queria as coisas do jeito dela e Gabi achava que se Nando estava relutante demais para colocar um basta nas ligações de Priscila pelo bem do namoro, portanto... eles deviam terminar. Fernando respondeu com um "Ok, se é isso que você quer" e Gabi completou com "Você não me deixa escolha." e cada um foi para sua casa. — Mudamos o status do Facebook. Você não viu? — depois, mais calma, Gabi perguntou ao lavar o rosto. — Não... Não vi. — Sentiu-se a pior amiga do mundo porque ao invés de prestar atenção aos problemas de Gabi, entrou em pânico por causa de Ivan. — Mas não deve ser nada sério, vocês vão conversar e vai ficar tudo bem, né? — Não quero ver esse otário nem pintado de ouro! — Gabi bradou enquanto secava o rosto, sua voz soou endurecida. — Eu sei que você tá brava, mas vocês se dão tão bem.. Vão resolver isso... Já resolveram tanta coisa! — Julia estava acabada. Nando e Gabi eram perfeitos um para o outro, isso não podia acabar assim com um mal entendido tosco por causa de Priscila! — Acho que não. E não nos damos tão bem assim... O Fernando é fechadão, isso sempre foi um problema entre a gente.
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— Vocês não tinham problemas... E sempre foram perfeitos um para o outro! — Isso foi antes da Priscila aparecer. Tenho certeza que o Fernando está ficando com ela! Sabe, faz todo o sentido do mundo eu ter levado uns chifres! — Para de imaginar maluquices! — Eu acho... — Gabi sentenciou retocando a maquiagem para não ficar pagando papel de palhaça na frente dos amigos, ideia de Julia, que não queria ver a amiga daquele jeito deplorável. — E o Ivan disse que é muito provável. — O Ivan? Você tem falado com ele? — Eu falei ontem com ele pelo Facebook, de noite. Eu precisava saber se ele terminou mesmo com aquela vampira do mal... e saber se era por causa do Fernando. — E o que ele disse?! — Julia arregalou os olhos e deixou a boca meio aberta. — Que era muito provável que a Priscila quisesse algo com o Fernando... Mas que os motivos pelos quais ele terminou foram outros... Ele não quis me contar! — Ah... — Julia sentiu seu coração se comprimir. — Não dou dois dias pro Fernando e a Priscila anunciarem que estão namorando! — Gabi fechou o gloss. — Que isso Gabi! — Quanto você quer apostar? — Gabi virou para ela. Julia não sabia o que dizer. Seria possível?! † Na classe Nando não se sentou ao lado de Gabi, ele foi se sentar do outro lado, onde tinha uma cadeira vazia que era, anteriormente, onde Bruno se sentava antes dele passar a se sentar ao lado de Julia. No intervalo, uma separação de turmas esquisita aconteceu. Gabi ficou ao lado de Julia, Andreza, Bruno e Jaime, enquanto que Nando ficou ao lado de Priscila, Tadeu e Dudu. Era como ver
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Gabi deslocada no meio dos casais enquanto que os três urubus (Nando de moletom branco, mas ainda assim, um urubu) cercando a princesa fada do mal vampiresca Priscila, recémsolteira, livre, desempedida e precisando de consolo. Na saída, quando Gabi correu para ir embora e não ter que cruzar mais com Nando em lugar nenhum; foi Nando que se aproximou de Julia e Bruno, atrapalhando o beijo do casal: — Jujuba, tem um minuto? — Claro. — foi como um déjà vu. Bruno revirou os olhos e Julia se afastou um pouco para falar com Nando. Será que ela devia chamá-lo de Fernando? — Tudo bem? — ele perguntou sem jeito, as mãos dentro do bolso do moletom branco. — Acho que sim... e você? — Péssimo... — ele abaixou a cabeça. Para um garoto fechado, Nando estava abrindo bem facilmente seu coração. — A Gabi terminou comigo... você já sabe. — Eu tenho certeza que vocês vão se resolver, não vão? — Acho que não... — a voz de Nando vacilou. Ele por acaso ia chorar?! — Eu... não sei o que fazer... — Poxa Nando, calma...! Olha será que não é melhor você se afastar da Priscila um pouco? O Dudu e o Tadeu podem cuidar dela... não acha? — sugeriu. — Não... — Nando continuou de cabeça baixa, mas colocou a mão nos olhos como se limpasse lágrimas. — A Gabi está sendo neurótica... é só isso... — Ela está convencida de que você prefere a Priscila... e eu sei que é neurose, mas não é da Gabi que você gosta? — e Nando fez que sim. — Não é melhor você dizer isso a ela e demonstrar? — Tem razão... — Faça isso. — Julia sorriu. Ótimo, tudo o que esses dois precisavam era largar o orgulho e se entenderem! Nando se afastou e foi para o carro enquanto que Julia abraçou-se com Bruno. Clayton buzinava feito um louco do outro lado da rua.
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† Namoro no sofá era muito sem graça! Clayton ficava passando o tempo todo da sala para a cozinha, da cozinha para a sala, controlando o que os dois estavam fazendo de um jeito que tudo o que Bruno e Julia fizeram foi segurar a mão do outro e se sentaram com a distância de uma almofada entre eles. Fora isso, o celular de Julia tocava o tempo todo, de dez em dez minutos e era necessário pausar o filme que eles estavam assistindo para atender. Era Gabi, chorando por causa de Nando. Era Nando, chorando por causa de Gabi. Eles não conseguiam conversar direito um com o outro, porque sempre que começavam a conversar, queriam discutir e ficavam tão chateados e bravos que um desligava na cara do outro. Quando deu cinco e meia da tarde, Bruno levantou do sofá mais do que entediado e talvez, levemente irritado, deu um beijo no rosto de Julia (porque ela estava falando com Gabi) e voltou para casa. Julia passou a noite inteira no chat do Facebook (um com Nando e outro com Gabi) até que conseguiu convencer aos dois a darem uma trégua para si mesmos, tomarem um bom banho ter uma bela noite de sono e dormir, para que no dia seguinte pudessem conversar com calma. Credo! Como relacionamentos podiam ficar complicados! Era uma coisa muito maluca que Nando e Gabi estivessem sofrendo um pelo outro, os dois afim de voltar e ainda assim não o fizessem! Jogou-se na cama cansada. Era bom que ela tivesse uma boa noite de sono também! Sentou-se com o netbook no colo já se preparando para desligar, quando o chat abriu uma janela com a foto de Ivan. Ivan: Ei! Julia ficou branca de susto e sentiu um choque no peito. Aimeudeus, ele estava falando com ela!
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Ivan: ...oi? E agora? E agora? E agora? E agora? E agora?! Se ela respondesse estaria quebrando uma das regras em seu namoro. Lembrava que Bruno dissera de forma bem enfática na porta do cemitério que não era para ela falar com Ivan e ela já tinha feito o belo favor a si mesma de, além de ter conversado por horas em um banheiro sozinha com Ivan... bem, melhor nem pensar nisso e dar um jeito de devolver aquele lenço. Julia: Oi... Estou com seu lenço... Er... porque ela tinha escrito isso dessa forma? Parecia até que ela estava com saudades dele ou algo assim! Julia: Preciso te devolver... Melhor, agora estava melhor. Ficou olhando a tela do computador enquanto estava escrito “Ivan está digitando” no canto inferior da janela e sentiu seu estômago pular. Cruzes, porque ela ficava se sentindo assim tão ansiosa quando o assunto era Ivan?! Era uma sensação desnorteadora, muito mais forte do que borboletas na barriga. Seria arrependimento? Ivan: Não se devolve um presente... Julia: Ah...ok. Mas e você tudo bem? Ivan: Um pouco... acho que enlouqueço antes da meia noite, hehe! Julia: O que tá pegando? Ivan: Minhas irmãs se estapeando, minha mãe fora de casa trabalhando e meu celular em crise epilética com tanta ligação e mensagem.... mas de boas. Julia: Você tem irmãs? Ivan: Três. 6, 12 e 14. As que estão se estapeando são as mais velhas... uma quer ouvir Justin Bieber e a outra NXZero. Julia: Nossa que horror... coloca as duas de castigo e ensina pra elas ouvir música direito! Ivan: Já tentei... nessa idade elas são impossíveis! Daqui a pouco a vizinha de baixo começa a bater a vassoura no teto. Julia: Xi... melhor você controlar a situação.
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Ivan: Tô esperando meu irmão voltar com a pizza e tudo será resolvido. Julia: Você tem um irmão também? Ivan: Uhum... meio irmão. Do primeiro casamento do meu pai. Julia: Seu pai já tinha sido casado antes? Ivan: É,mais ou menos, morou junto na faculdade com uma namorada, sabe? Ai deu no que deu... ele meio que fugiu não quis saber... aí casou com a minha mãe e quando a Dafne nasceu ai apareceu o Andy... ele veio morar com a gente. Foi mais ou menos quando a Livy nasceu. Livy é a mais nova, a Dafne é a de 14... e a do meio se chama Mara. Julia: Todo mundo tem nome de 4 a 5 letras ai? Ivan: hahaha... Anderson tem mais letras, mas a gente apelidou de Andy pra fazer juz. Julia: bem pensado! Poxa, deve ser o máximo ter irmãos! Eu sou filha única, sempre me pergunto como é ter irmãos... Ivan: Nãaaaao! Não é legal! O Andy trabalha dai ele nunca tá por aqui... mas as garotas me tiram do sério... vc não sabe como é ser babá! Julia: Hunf! Se não gosta de suas irmãs, fique sabendo que vou roubar elas pra mim! Ivan: Elas são feias e melequentas! Tem foto nos albuns do Face. Curiosa com a família de Ivan, Julia abriu os álbuns, e achou um chamado “Família”. Tirando Anderson, que era um garoto de black power na cabeça, todas as meninas tinham cabelos castanhos superlisos e olhos castanhos. Livy era gordinha para sua idade e estava sem dente, com os cabelos presos em chiquinhas. Mara parecia uma modelo, mas usava óculos e muito cor-de-rosa, enquanto que Dafne usava mechas verdes no cabelo e um visual como o da Avril Lavigne. Julia: São lindas, todas elas. Vou roubar! >:D Ivan: Ahaha! Duvido! Eu moro perto do cemitério, é só vir aqui pegar, até arrumo a mala pra elas!
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Julia: Talvez um dia eu vá. Ivan: Vem amanhã, tá afim? Julia: Ahhh amanhã não dá... Ivan: Sabado? Julia: Tbm não...! Ivan: Domingo? Julia: Vc não vai no strange house? Ivan: Você vai? Julia: Yup! Ivan: hm... ok. Te vejo lá. Julia: :) Conversaram por mais alguns minutos sobre música, filmes e livros. Descobriram que tinha muito em comum (exceto em música). Julia só desligou o netbook porque Andy chegou com a Pizza e Ivan teve que ir cuidar das irmãs. † A sexta-feira prometia ser um repeteco da quinta. A bicicleta de Bruno continuou confiscada por Clayton; Gabi e Nando encheram a paciência com seus chororôs até a hora que Julia saiu da escola... e continuaram ligando enquanto ela tentava ver filme com Bruno. Isso era mais do que irritante. — Na boa, não dá pra continuar essa palhaçada. — Bruno falou quando Julia pausou pela milionésima vez o filme. Ficou em pé. — Eu vou pra casa. — Não, espera! — Julia segurou no braço dele. — Gabi, eu te ligo depois! Depoooois! — ela desligou o celular e apertou um dos botões da lateral. — Viu, desliguei, desliguei! Coloquei no vibra e nem vai nos atrapalhar! — Puxou Bruno de novo. — Fica aqui comigo, estou com saudades... — Eu também, mas assim tá uma droga! — foi sincero. — Não faz assim, vai, seja paciente... vem aqui, me dá um beijo.
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Ele se inclinou para beijá-la e no momento em que seus lábios se tocaram, Clayton passou assobiando pela porta da cozinha. Ô inferno! Bruno se afastou de Julia, mas ela não queria soltar, segurou forte em sua jaqueta e o jogou no sofá, subindo por cima dele intensificando o beijo inocente em um verdadeiro amasso enquanto o celular tremia já perdido em algum canto do sofá. A televisão começou a passar o filme de novo, assustandoos. Julia olhou para seu pai em pé do lado do sofá com o controle na mão e um balde de pipoca na outra: — E aí, não vão ver o filme? — Vamos... — Julia se endireitou no sofá, Bruno também. Deram as mãos de novo, com a distância de uma almofada entre eles. — Parece um filme legal, vou ver com vocês. — e dito isso, sentou numa poltrona ao lado do sofá com a única intenção de controlar os dois. A paz estava muito longe de acontecer. † Após dar ração para Lord Byron e de jantar com seus pais, Julia entrou em seu quarto chateada porque tentou uma conversa com seus pais sobre o que aconteceu e de nada adiantou. Clayton continuava achando que sua filha tinha nove anos e Isabela de alguma forma parecia muito de acordo com esse controle. Colocou o gato para fora, fechou a Janela e foi tomar banho enquanto escutava música. Vestiu o pijama (não era bem pijama, já que ela usava meias compridas e listrada, shorts e uma regata para dormir sempre!) e sentou em sua cama para secar os cabelos. Ouviu uma batida na janela. Levou um susto e olhou para fora, vendo Bruno por ali, ele estava de calça jeans preta e uma jaqueta cheia de patchs e botons. Correu para abrir a janela com um sorriso e abraçou o namorado passando metade do corpo para fora. Bruno teve que se segurar no batente para não cair.
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— Você vai entrar? — Shhh! — ele pediu silêncio segurando a boca de Julia com uma das mãos. — Você quer que eu entre? — sussurrou. — Claro, né, Bru! — ela respondeu o sussurro ainda sorrindo feliz. — Vem eu seguro a janela... Bruno passou para dentro do quarto devagar, sem fazer barulho. O som estava ligado, mas não muito alto. A corrente presa no cinto de rebites raspou no batente. Julia percebeu que os coturnos não estavam amarrados. — O que você tá fazendo aqui? — Julia perguntou enquanto ele a ajudava a fechar a janela. — O que você acha? Eu vim ficar um pouco com você, a sós. — ele sorriu. — E te chamar pra sair, quer fugir comigo? — Você tá fugindo por acaso? — Estou. — Por quê? — Julia perguntou e ele só lançou um olhar enviesado. Era alguma coisa com o pai dele, certeza. — Se eu fugir o cerco vai piorar e minha mãe vai colocar a polícia inteira dentro de casa! — e riu — Porque ao invés disso não ficamos aqui? — No seu quarto? Tá maluca? E se o seu pai entrar pela porta? — Eu tranco! — Julia correu para trancar a porta. — E é só a gente ficar falando assim que ele nem vai perceber! Você pode dormir aqui. Bruno ficou um tempo calado. Ele precisava fugir para longe, mas se Carlos não soubesse que ele estava ali, até que podia funcionar como esconderijo até o sol raiar. Encolheu os ombros vencido: — Ok. — Mesmo! Yay! — Julia pulou em cima do namorado de novo, beijando-o. Bruno estava sempre fazendo alguma coisa perigosa e fora da “lei”! Era encantador, não era? Isso acendia alguma coisa dentro de Julia e tudo o que ela queria fazer era se entregar àquela sensação de aventura.
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Julia arrastou o namorado para cama, puxando-o enquanto o enchia de beijos quentes. Deitou-se com ele por cima, esquetando-se com o calor de seus corpos. Ela o beijou na boca, no pescoço, no ombro enquanto puxava fora sua jaqueta, no outro ombro ao tirar sua camiseta e arrancou apressada sua regata e seu sutiã, amassando-se com Bruno, invertendo posições e beijando-o com tanto desejo que ele ficou até sem fôlego. Sua mãe tinha razão, quando as coisas eram proibidas, era muito mais legal! † Os olhos inchados de choro e azuis de lente que pertenciam à Gabi abriram-se por inteiro de tal forma que parecia que eles havia ficando maiores de repente. O pirulito vermelho apareceu depositado em sua língua, enquanto o seu queixo caiu completamente para o chão e se desenrolou como um pergaminho até o outro lado do mundo. — Não acredito! — e colocou uma mão no coração espantada, em uma expressão ultra clichê. — Vocês usaram camisinha? — Não chegamos tão longe assim, Gabi! — Julia ficou roxa de vergonha tendo que lembrar a amiga dos detalhes que ela estava sendo obrigada a contar. Elas estavam sentadas no Sanrio Café tomando frappé de cappuccino e comendo pão de mel em forma de Hello Kitty. Pelo espelho da parede, Julia se viu ficando mais cor-de-rosa do que a loja. — Tá, mas... e você gostou? — Gabi estava animada e muito surpresa. Até esqueceu que de manhã ela acordou chorando por causa de Nando. — Algumas coisas sim, outras não muito... — Você pegou?
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— Ai Gabi! — Julia derreteu envergonhada. A memória aparecia em flash acendendo nela um misto de excitação e muita timidez. — Ai o quê... preciso saber o que você fez! Até onde você foi? Ficou sem calcinha? — A gente só não chegou nos “finalmentes”! — Julia explicou. — E não fiquei sem calcinha... lógico. — Tem várias coisas que dá pra fazer sem calcinha sem ser o “finalmente”! — Eu sei... mas não fizemos muito disso... só um pouco... — E você gozou? — Gabi! — Julia quis morrer. — Acho que sim... não sei. — E ele? Cuidado heim! Uma vez minha mãe descobriu que o Rafael foi lá em casa porque o meu edredom ficou tipo, manchado... sabe? — Rafael foi o segundo namorado de Gabi, ela tinha doze anos na época, foi com Rafael que Gabi perdeu a virgindade. Não tinha sido legal e por isso, Gabi tinha a teoria que sexo só ficava bom mesmo com a prática. — Fica uma mancha enorme e branca que só sai com água quente. Levei a maior bronca! — Ai, eu não sei, não olhei se ficou nada disso! — e se desesperou. Se sua mãe visse qualquer coisa, estaria frita! Fritinha! — O Bruno saiu correndo logo que amanheceu... e eu dormi logo em seguida. — E quando vocês vão fazer o “finalmente”?! — Gabi estava ultra curiosa, o que era ainda mais esquisito e intimidador. — Estamos combinando... com calma e sem pressa, preciso me preparar, sabe. Quero que seja algo romântico. — Não é nada disso que você tem que pensar agora, nunca viu filme pornô não? — Não, claro que não! Eu sei como é, que na hora dói e tals e que nem adianta eu fantasiar muito, você já me contou todos os detalhes que eu preciso saber. Eu só não quero me apressar. O Bruno me entende. Eu quero que seja um momento especial.
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— Legal que ele entenda, é o mínimo que ele tem que fazer né. — As vezes eu me sinto tão sem graça... — Julia desabafou, com o canudo do frappé na boca. Gabi lançou um olhar em dúvida para ela. — Ele já transou, eu não... e se ele ficar olhando pra mim e pensando “nossa que tonta”! A Priscila parece ser super bem experenciada... eu vou ser um fiasco! — Ai, amiga, por favor, vamos não pensar na Priscila e sexo nesse momento que eu estou ficando louca em imaginar a Priscila fazendo sexo com o Fernando! — Ai Gabi... eu não sei o que está acontecendo, você e o Nando sempre se entenderam! E ele tem me ligado tipo, quase toda hora, chorando, dizendo que te ama... — Deve ser arrependimento, ele é um crápula. — Gabi sentiu os olhos arderem com as lágrimas de novo. — Eu gosto do Fernando, poxa, se gosto... mas não dá pra ser assim, ou ele me valoriza ou não dá... Sabe eu tenho inveja de você... — De mim? — O Bruno parece ser espontâneo e é um fofo... lembra que ele foi até a Galeria do Rock salvar a gente? O Fernando ficou... jogando com a Priscila! Você acredita que quando fizemos um ano de namoro e o Fernando não queria nem combinar um encontro especial..? Sério, não existe romantismo naquele nerd. Julia alcançou a mão da amiga por cima da mesa e lançou um olhar de piedade. Gabi estava muito amargurada. — Sabe o que eu acho? Que você devia ligar para o Nando e dizer que gosta dele. Ou escrever uma carta! — Não. — Gabi soltou a mão de Julia. — Não quero. Ele que se acabe com a Priscila! — pegou um guardanapo e secou os olhos tentando não borrar a máscara para cílios. — Eu acho que precisamos fazer compras. Você pra comprar lingerie novas, porque, na boa! Não acredito que você deixou o Bruno te ver com aquele conjuntinho infantil que você tem desde os treze anos! E eu — apontou para si mesma — porque preciso esquecer o Fernando
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de uma vez e de quebra arrumar um namorado que me valorize! Chega de chorar, chorei a semana inteira! — E posso saber onde que você vai arranjar um namorado? — Estou pensando em falar com o Ivan... — E ao ouvir o nome de “Ivan” todo o cor-de-rosa se desfez dos olhos de Julia, foi como cair da escada e levar um chute no estômago (que inclusive revirou). — ... para ele me apresentar algum amigo dele mais gatinho e menos esquisitinho nesse domingo! — Oh. — Julia engoliu seco. Que susto! Por um momento achou que Gabi fosse dizer que estava afim de Ivan... ufa! Aliás, “ufa” nada! Se Gabi quisesse ficar com Ivan ela deveria incentivar! — E por que não o Ivan? — O Ivan com certeza é muito mais experiente na cama que a Priscila, deve ser um perigo! Mas eu não me imagino beijando a boca de um cara tão esquisito! Ao ouvir aquilo, Julia ficou roxa de vergonha. Ela tinha beijado a boca daquele esquisito e ele tinha gosto de café, um gosto que ela podia sentir na língua, por causa do frappé de cappuccino que tomou com Gabi. — Ei, me ajuda a comprar uma lingerie perfeita para domingo? — ficou em pé, espantando Ivan da cabeça. — Pra ontem, Jujuba! Pra Ontem! Elas passaram o sábado no shopping, divertindo-se e procurando esquecer os problemas do coração.
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14 SONHO OU PESADELO † A noite de sábado estava muito agradável, o clima estava ameno e o céu bem estrelado. Julia estava com seus pais em um restaurante francês cinco estrelas. Usava um bonito vestido branco petit poá com renda preta nas barra super delicado que sua mãe deu de presente para a ocasião. Seu cabelo estava semi-preso com tiarinhas de cristais brancos delicados. Ela estava linda como uma princesa, foi o que seu pai disse ao puxar a cadeira de madeira branca para ela se sentar à mesa quadrada de frente para sua mãe, que estava maravilhosa de vestido prateado frente única. A menina sentou-se colocando as mãos no colo e segurando o celular pois esperava uma mensagem do namorado. Isabela sorriu para a filha, orgulhosa, os olhos brilhando emocionados de um jeito que Julia nunca tinha visto, era um olhar muito bonito, feliz e cheio de sentimentos bons. Isso fez Julia sorrir de volta, com o peito cheio de alegria. Era bom estar em família de novo, Julia devaneou. O celular vibrou em sua mão e disfarçadamente ela abaixou os olhos, para ler a mensagem. “Hey! Sinto saudades. Bjs!” E Julia por baixo da mesa, sem conseguir esconder um sorriso, respondeu: “Estou morrendo de saudades! Mil beijos!” Ao erguer a cabeça, o garçom estava servindo champagne em seus copos a pedido de seu pai.
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— Uau, qual é a ocasião? — Eu não vou beber, muito obrigada. — Isabela recusou. — Mas eu gostaria de uma água com gás e um copo com gelo e maçã. — Sim madame. — O garçom se afastou. — Gelo e maçã? Que coisa mais esquisita, mãe! — Julia riu. — Tá com vontade de grávida! Isabela arregalou os olhos assustada e Clayton engasgou. O clima esquisito denunciou tudo o que estava acontecendo. — Espere, você está grávida?! — Julia abriu a boca surpresa. — Como? — Estou, filha! — Isabela colocou as mãos na mesa com a palma para cima, querendo que Julia lhe desse as mãos. — Uau, que máximo! — Julia soltou o celular e segurou nas mãos da mãe. — Eu sempre quis ter uma irmãzinha! Vai ser menina, certo?! — Não temos como saber ainda! — Clayton sorriu. — Quando descobri que estava grávida, foi um choque... mas resolvemos levar isso adiante... como uma família. — ênfase no “família” — Queríamos te contar em um momento especial. — Estou muito feliz! — Julia sorriu emocionada, os olhos cheios de lágrimas. Que bênção! Além de ter sua família de volta, ganhava uma irmã, ou um irmão! Aquela foi uma das noites mais felizes da vida de Julia (a primeira tinha sido a de sexta, com o namorado) e nada no mundo podia estragar a perfeição daquele momento! Pegou o celular e digitou: “Você não vai acreditar! A minha mãe está grávida! Estou tão feliz! Tão feliz!” E Bruno respondeu: “Se você está feliz, eu estou feliz.” Após derreter com a mensagem do namorado, Julia jantou com seus pais e provou um prato regional de frango com molho de queijos que estava uma delícia.
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† A máquina de lavar roupa travou e Bruno chutou o eletrodoméstico de raiva. Mas que droga! Ajeitou a calça puxando pelo cinto de rebites e entrou de volta na cozinha. Carlos estava lá, sem camisa e de calça de moletom, descalça, abrindo a porta da geladeira. Ignorou a entrada do filho e remexeu até encontrar uma caixa de leite integral, do qual bebeu direto sem copo no estilo caubói de filmes americanos. Era um dramático, mesmo. — A máquina emperrou... de novo. — encostou-se na parede, cruzando os braços. — Hm. — Carlos soltou a caixa de leite dentro da geladeira e apoiou-se na porta. — Não tem nada nessa merda... — Se você tivesse feito compras, teria. Carlos soltou a porta da geladeira, fechando-a e se aproximou de Bruno, já agarrando seus cabelos, sem dar chance de que o garoto fizesse nada, a não ser olhar para ele assustado. — Não fale assim comigo, seu inútil! — e bateu a cabeça se Bruno contra a parede. — Ai! — Eu sustento essa porra! — e deu mais uma cabeçada contra a parede. — E o que você faz aqui, hein?! Quebra a máquina de lavar! — Eu não quebrei! — Você sabe quanto eu paguei naquela máquina?! — Carlos berrou e foi mais uma cabeçada. — Ai! — e Bruno segurou nos braços do pai, tentando se defender. — E o que você fez? Quebrou a porra da máquina! — e Carlos o puxou pelos cabelos arremessando-o contra a geladeira com força. — Ai! — Bruno bateu o ombro com violência e caiu no chão.
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— Dê um jeito naquela máquina antes do meio dia, ou isso vai ficar pior. — Carlos saiu da cozinha deixando seu filho no chão. † Em pleno domingo a tarde, Julia estava na sala de espera do pronto socorro com o coração na mão. Seus olhos castanhos estavam vermelhos de tanto chorar e seu lábio inferior tremia involuntariamente. Ela estava com os cabelos embolados em uma espécie de coque, mas porque não tivera tempo de pentear o cabelo e por isso, estava ainda de pijamas: shorts de ginástica preto, meias listradas preta e rosa e uma regata pink, de pantufas de panda nos pés. Esperar era a pior parte e como ela havia esquecido de pegar o seu celular, não podia fazer nada para se distrair. Secou os olhos com o bolinho de papel úmido que tinha nas mãos e procurou não se desesperar. Mas não se desesperar como se sua mãe estava passando mal?! Seus olhos se encheram de lágrimas e embaçaram a sua visão. As memórias traumáticas rondando sua cabeça, desesperando-a cada vez mais. Tudo aconteceu bem cedo, quando ela estava saindo do quarto, seu pai estava gritando por ajuda. Isabela estava com as pernas cheias de sangue. Podia ser um aborto! Cobriu o rosto com as mãos. — Eu estou cumprindo a minha parte do acordo. — alguém parou do seu lado. Julia estremeceu ao ouvir a voz suave de Ivan. Ela ergueu a cabeça limpando os olhos com as mãos. Ele estava diferente, com os cabelos descoloridos e sem laquê, o moicano comprido caindo pelos ombros por cima de uma jaqueta jeans. Julia segurou no lenço que ele estendia para ela, preto, com estampas de caveiras brancas. Ensaiou um leve sorriso, para indicar agradecimento e colocou o lenço no rosto. Ivan sentou do seu lado no sofá da sala de espera, enquanto ela inspirou o ar com
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o lenço no rosto, absorvendo o aroma de damasco à goles largos. Pelo visto Ivan tinha um timing perfeito para socorrê-la. — O que você faz aqui? — A Livy passou mal ontem a noite, vomitou muito e tal... ela está lá dentro tomando soro, ou algum remédio... eu até ficaria com ela, mas é que não suporto agulhas! — ele riu. — Você tem piercings, como é que não suporta agulhas? — São coisas diferentes, sabia que uma vez eu desmaiei quando fui tirar sangue pra um exame? — Sério? — Que vexame, né? — Acho que sim! — Julia sorriu. — Van! — uma garota o chamou. Julia a reconheceu de uma fotografia no Facebook, mas ao vivo, Dafne era ainda mais bonita. Dafne tinha um sorriso bonito no rosto, mas estava com ares de cansada e olheiras. — Estamos indo, a Livy já saiu. — Ah, podem ir, eu vou mais tarde. Encontrei uma amiga. — ele avisou. — Quem é essa? — Ela se aproximou usando uma calça jeans lilás e uma camiseta preta com estampas de estrelas em neon rosa, verde e branco e allstar nos pés; seus cabelos castanhos presos para trás de forma desleixada exibindo mais as mechas verdes que ficavam por dentro. — É a Julia... — Ivan as apresentou. — E essa é a minha irmã Dafne que te falei, a que ouve NXZero. — Oi muito prazer... — Nossa tá tudo bem? — Dafne arregalou os olhos castanhos assim que viu e assumiu uma feição preocupada, juntando as mãos delicadas na frente do corpo, em posição de piedade. Julia começou a chorar mais, afundando o rosto no lenço de Ivan. — Dafne que pergunta sem noção, você fez ela chorar! — Desculpe! É melhor eu ir... até mais. — Dafne se afastou. Ivan suspirou.
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— Minha irmã é muito sem noção, foi mal.... — Não era melhor você ir com ela? — Julia perguntou limpando os olhos. — Nah, você parece estar precisando de uma companhia. — ele falou e ficou em pé em seguida. — Quer tomar um café? Tem uma cafeteria aqui do lado... — Eu estou de pijama! — Eu empresto a minha jaqueta, vamos! Café. Julia achou no mínimo irônico, mas ficou em pé aceitando ajuda. Ela realmente precisava de companhia naquele momento e era Ivan quem estava por ali. Seus joelhos falsearam quando ela colocou a jaqueta dele que estava quente e cheirosa. Eles se sentaram em uma mesinha na cafeteria, que ficava dentro do pronto-socorro mas que tinha uma janela para uma rua pouco movimentada e arborizada. Julia pediu um cappuccino e um pão de queijo, Ivan acompanhou e insistiu em pagar a conta. A garota contou toda sua história para Ivan: que seu pai e sua mãe se casaram de novo porque ela estava grávida e que ela ficou sabendo que teria uma irmã ou irmão no jantar da noite anterior... mas que agora, seu sonho podia ser um grande pesadelo. As lágrimas escorreram do seu rosto enquanto ela contava o quão traumático fora ver sua mãe chorando assustada e com sangue nas pernas, seu pai desorientado e que eles quase bateram o carro duas vezes no caminho. E se sua mãe morresse? E se ela perdesse o bebê?! -Ei, calma... vai ficar tudo bem. — Ivan segurou em sua mão para dar apoio, um gesto que as pessoas normalmente fazem e que não costuma dizer nada, mas que para Julia foi como um porto-seguro. Ela sentiu o calor da mão do garoto, um calor capaz de organizar seus pensamentos. — Você não pode sempre pensar no pior... se você pensar positivamente, as chances de tudo dar certo são maiores. — Você acha? — Julia ainda tinha os olhos cheios de lágrimas, mas se permitiu sorrir com esperança.
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— Sim, eu acho. Se a gente sempre se entregar ao desespero quando algo ruim acontece, vamos apenas perder as forças.... e são em momentos assim que precisamos ser fortes. — Ivan acariciou as costas das mãos de Julia com o polegar. — E puxa, você é tão sortuda, eu queria que meu pai voltasse pra casa...! — É... acho que dei sorte nessa. — Julia lançou um sorriso forçado dessa vez. Seu pai não voltaria para casa se ela não tivesse feito o pedido no seu livro dos desejos... seria possível que por causa do pedido Isabela ficasse grávida?! — Julia? — Clayton perguntou da porta da cafeteria, segurando no batente e com a roupa amassada e suja de sangue no ombro (onde Isabela segurou). Ele fez ares de alívio por vê-la bem. — Graças a Deus achei você...! — Pai! — Julia ficou em pé imediatamente e correu para ele em um abraço. — Como a mamãe está?! O que houve? — e as lágrimas voltaram a escorrer. — Está bem, foi só um susto... na idade da sua mãe as coisas ficam mais... complicadas. Os médicos vão interná-la para observação, mas agora já está tudo bem. — Mesmo?! — Sim, vamos pra casa, tenho que trazer roupas para ela... — Clayton falou. Após acalmar sua filha, virou-se para Ivan, que sem saber o que fazer continuou sentado. Tirando o cabelo descolorido, ele parecia um garoto bem normal, na opinião de Clayton, mas isso porque o encontrou fora do Strange House. — Quem é aquele garoto? — Um amigo meu, ele estava aqui com a irmã... — Julia secou os olhos. — Eu vou me despedir... ok? — Eu te espero na recepção. — Clayton afastou-se. Julia retornou até a mesa. Ivan ficou em pé: — Está tudo bem? — Vai ficar, ela foi para um quarto em observação, meu pai disse que está tudo bem... — Que ótimo! — Eu vou pra casa, você quer uma carona?
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Ivan riu. — Eu estou do lado de casa! — e apontou pela janela para o outro lado da rua. — Ali é o metrô Clínicas e mais pra baixo fica a Av. Rebouças... e eu moro ali do lado do Shopping Higienópolis. Bem, não do lado exatamente, mas ali perto, mais pra Santa Cecília... só que dá pra ir a pé. — Ah... tem razão é meio perto. — Julia se localizou mais ou menos, não costumava ir muito por aquela região. — Eu nunca estive no Shopping Higienópolis antes. — O dia que quiser ir já tem companhia! — Obrigada. Eu tenho que ir agora... mas valeu! — Julia segurou na lapela da jaqueta e a desceu pelos ombors entregando para Ivan. — Valeu, o lenço pode ir pra sua coleção! — ele brincou enquanto vestia a jaqueta, lançou um sorriso fofo para ela. — Bem se continuarmos nos encontrando em situações assim, talvez eu tenha que te dar uma caixa de lenços antes! — Ah, não se preocupa... eu tenho vários disso daí. Julia segurou no ombro dele e se esticou para beijá-lo no rosto, mas Ivan que foi pego meio de surpresa acabou virando o rosto e sem querer, e o beijo saiu bem no cantinho, quase um selinho. Ivan se assustou e deu um passo para trás imediatamente e Julia ficou cor-de-rosa de vergonha. Eles sorriram sem graça um para o outro e sem dizer mais nada, se afastaram. † Julia acabou não indo para o Strange House no domingo a noite, não apenas porque Bruno enviou uma mensagem dizendo que era impossível sair de casa e que ele não ia arriscar fugir dessa vez; mas porque estava preocupada com Isabela. Isso atrapalhou totalmente os planos de Gabi que queria conhecer alguém por lá (tinha combinado tudo pelo Facebook), mas Gabi compreendeu
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perfeitamente e as duas ficaram conversando no Facebook até de madrugada. Na segunda-feira, a fofoca da vez era o fato de que Nando e Priscila atravessaram o pátio de mãos dadas. Gabi ficou furiosa, mas tentou fingir que estava tudo bem. No intervalo porém, ela deixou escapar: — Eu não falei! Não dava dois dias para eles se assumirem! — O Tadeu disse que encontrou eles ontem no hall do prédio quanto tava indo pro Strange House. — Jaime explicou. Tadeu estava lá do lado de Nando e Priscila, junto com Dudu. — Ai Gabi, sinto muito! — Andreza falou com angústia. — Mas pense pelo lado positivo, ao menos você e o Ferando pararam de brigar! — Que cafajeste! — Gabi acrescentou, não dando atenção para os comentários de Andreza. Julia por sua vez sentiu o seu coração petrificar-se ao ouvir as palavras de Andreza. Seria possível que o término do namoro entre Gabi e Nando tivesse a ver com seu pedido?! Isso sim seria péssimo! Ela encostou a cabeça no ombro de Bruno que estava sentado do seu lado ouvindo música com os fones e totalmente alheio ao que estavam comentando. Bruno sentiu dor, mas achou melhor não reclamar para Julia. Ela sempre ficava tensa e desesperada demais quando ele aparecia com um machucado novo, por isso quando ela encostou em seu ombro dolorido, ele apenas se ajeitou, para uma posição que doesse menos, passando o braço pelos ombros dela e beijou a garota na testa, ela nem percebeu. Ele não estava escutando a conversa já que Faith and The Muse gritava em seus ouvidos tapando todo o som exterior, mas ele não tinha a menor intenção de ficar ouvindo todo mundo reclamando do fato de que Priscila e Nando estavam se beijando no pátio; ele achava até irônico que isso tivesse acontecido e não precisava ser nenhum gênio para ter certeza que Julia já estava se enrolando com os pedidos no livro dos desejos. O que era triste, já que ele até avisou dos perigos daquele livro e ela até prometera que
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não ia escrever. E como Julia descumpriu a promessa diversas vezes, ele considerava aquilo um problema exclusivamente dela e não queria ter parte. Já estava de bom tamanho ter que ser cúmplice. — Talvez a gente possa ver com o Ivan de te apresentar alguém, ele conhece todo mundo do rolê! — Andreza deu a ideia para Gabi, que agora estava fissurada em conhecer alguém. — Sério mesmo? — Gabi se animou. — Mas tem que ser super gato e não gosto de esquisitos cheios de piercing e maquiagem, hein! — Podexá! Podemos ir quarta no Cemitério Araçá, ele sempre tá por lá. Fica ali na Dr. Arnaldo, sabe? Perto do metrô Clínicas! — Jaime sugeriu. — Vamos com certeza! — Gabi cutucou Julia. — Você vai me ajudar nessa, não é? — Claro que sim. — Julia sorriu. † Quarta-feira chegou rapidamente. Julia entrou em uma rotina cheia de tarefas com a ausência de sua mãe e seu pai em casa. Isabela estava de repouso mas voltaria para casa naquela noite. Por isso, Julia combinou com Clayton que encontraria com ele para que pudessem voltar juntos. Mas o problema daquela tarde, prometia ser Bruno, que não estava nada satisfeito da decisão de Julia em ir com Gabi até o Cemitério do Araçá para encontrar justo com Ivan. — Só falta agora a Gabi começar a namorar um amigo do Ivan e você querer sair junto com eles, fala sério! — Bruno reclamou na porta da escola, de braços cruzados. — É só apresentar um garoto pra Gabi, não quer dizer que eles vão namorar! Ela só vai dar uns amassos nele, para esquecer do Nando..!
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— E ela não pode se agarrar com qualquer outro garoto da escola? Precisa ser justo um amigo do Ivan? — e a forma com que ele pronunciou “Ivan” foi com total desprezo. — Por que você se incomoda tanto com o Ivan?! — Não me incomodo! — Incomoda, sim! É por causa do que rolou com a Priscila? — e dessa vez Julia quem ficou enciumada. — O que rolou entre vocês e a Priscila já está esquecido em um passado bem distante! — Não! Está esquecido pra sempre já que você é tão egoísta que chega a dar nojo! — Para com isso, Bru! Vai ser divertido lá no cemitério! — Julia enlaçou os braços em seu pescoço e tentou beijá-lo mas Bruno se esquivou. — Bru..! — Quer saber? Você faz o que você quiser, já é bem grandinha pra tomar conta de si mesma... só não espere que eu vá achar o máximo ou ainda que eu vá com vocês! — Por que você não vem comigo? Vai ser legal passear... e podemos jantar em casa para dar boas vindas para minha mãe! Vamos? — Não, muito obrigado. — ele se afastou dela segurando firme em seus braços. Julia o encarou indignada. — E fala pro seu pai devolver a minha bicicleta, ela é bem útil em dias como esse. Até amanhã. — Bru! — Julia ficou parada e cruzou os braços irritada. Bruno virou as costas e saiu. Durante essa semana em que Clayton estava no hospital com Isabela eles tinham que pegar ônibus para voltar para casa e demorava demais para passar, já que Julia se recusava a ir a pé e portanto, eles chegavam após as duas horas. Ele tinha razão, Clayton podia ter devolvido a bicicleta naqueles dias, mas só queria liberar o veículo de duas rodas quando eles comprassem capacetes e proteção. Ela viu Bruno descer a rua da escola ao invés de ir para o ponto (provavelmente indo a pé como ele queria ir todos os dias) e
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chateada, voltou para dentro da escola onde Gabi, Jaime e Andreza estavam comendo um lanche juntos antes de irem. Julia se sentou na mesa com eles e apoiou o queixo em suas mãos. Suspirou chateada, revirou os olhos. — O Bruno não vai? — Gabi perguntou mordendo o seu hamburguer. — Não, ele ficou bravo com a ideia de ir falar com o Ivan. — Julia sentiu uma pequena pontada de culpa. O certo seria que ela apoiasse o namorado e não fosse também, mas a bem da verdade era que queria ir e principalmente, apoiar sua melhor amiga nessa hora. — Eu já imaginava... — Jaime bateu os ombros. — Vou comprar meu lanche. — Julia se afastou deles para comprar um sanduíche natural e um suco de maçã. † O Cemitério do Araçá era grande e talvez não tivesse obras tão importantes como tinha Cemitério da Consolação, mas nem por isso deixava de ser um local bonito. Julia inclusive, achou que as Primaveras Lilás floridas deixavam o local ainda mais bonito do que qualquer outro cemitério que ela poderia ter visitado na vida. As flores ainda caiam ao chão, criando uma camada lilás digna de uma paisagem de filme. E as coisas pareciam ser mais divertidas por ali também. Logo que se aproximaram do local de encontro, avistaram Lady Les, a menina que cantava super bem estava deitada em uma sepultura de granito marrom fazendo vocalizações tenebrosas e dançando. Ela era o tipo de gótica clichê, de cabelos bem longos vermelhos e vestidos pretos como a Mortícia da Família Adams, e era muito bonita; alguns amigos dela estava assistindo e aplaudindo a performance de dança sensual. Do outro lado, estava mais engraçado ainda porque quatro góticos de visuais excêntricos estavam dançando no silêncio de
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fones de ouvido e mesmo que estivessem ouvindo coisas diferentes, pareciam estar juntos em uma mesma música. O grupo era bem menor do que o grupo que ficava na sextafeira no outro cemitério, mas todos pareciam bem mais animados. Julia se aproximou com as pernas bambas, totalmente sem graça por reconhecer Ivan de costas conversando com uma garota de moicano preto, usando saia xadrez e meia arrastão, que parecia mal encarada. — Ivaaaan! — Andreza chegou abraçando ele por trás e fazendo cócegas. Eles se abraçaram rindo e Andreza cumprimentou a garota esquisita. — Oi Zu. — Vixi você veio da escola é? — a garota riu debochada, porque Andreza estava de uniforme. — Tá parecendo aquelas meninas do Rebelde! — Credoooo! — Andreza reclamou, mas parecia mesmo, exceto que a saia do uniforme era muito mais comprida que a micro saia do programa de televisão. Ela segurou na mão de Ivan. — Vem aqui preciso de você! — Isso foi sexy! — ele brincou. — Sexo só depois das dez da noite! — Zu brincou e aproveitou para acender um cigarro. Ivan abriu bem os olhos a hora que Andreza o arrastou para perto de Julia e Gabi, nitidamente surpreso em vê-las por ali. — Oi, oi. — ele as cumprimentou com um beijo no rosto e dessa vez se certificou de acertar a bochecha de Julia. A menina ficou cor-de-rosa na mesma hora em que os lábios dele tocaram de leve seu rosto. — E aí, resolveram conhecer o lado de cá? — Na verdade a gente veio falar contigo um lance sinistro. — Jaime se encostou em uma sepultura de pedra. — Tá sabendo que a Persephone anda se agarrando com o ex-namorado da Gabi, né? — Anda? — Ivan ajeitou no pescoço o lenço quadriculado verde e preto, não pareceu interessado no assunto. Olhou para Gabi que sorriu amarelo, irritada com a história.
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— É. Parece que já rolava algo antes de vocês terminarem. — Andeza sugeriu, abraçando-se com Jaime. — Você acha? — Gabi virou para a amiga e já cruzou os braços. — Bem, é muito provável que seja verdade. — É provável... — Ivan concordou um pouco sem graça, abaixando os olhos. A primeira vez que pareceu realmente incomodado com o assunto. — Mas não estou preocupado com isso não. Cansei dos chiliques da Priscila. — ele virou para Gabi de novo. — E foi por causa disso que vocês terminaram? — Olha... eu acho que sim... — Gabi falou. — Embora o Fernando tenha dito que não, eu não duvido, eles estavam muito grudados! — Ah poxa, que droga... você tá bem? — Ela ficaria muito melhor se você tivesse um amigo solteiro pra apresentar! — Andreza segurou nos ombros de Gabi. — Você tem né? — Tem vários... ou várias também se você quiser variar! — Não! Eca! — Gabi fez e deu um soco no ombro de Ivan, do jeito que ela fazia com Nando antes. Julia sentiu um apertar de garganta que indicava que ela não gostou da proximidade dos dois. — E não gosto de esquisitões como você, quero um cara mais normal, gostosão. — Ah meu... sei lá, tem o Caio... as meninas dizem que ele é legal. — Ivan tirou a poeira do casaco no mesmo lugar onde Gabi havia dado o soco, como se limpasse do toque dela. — Legal ou gostosão? — Gabi quis saber. — Ele faz boxe, é todo fortão... se enquadra? — Claro! Quando você me apresenta ele? — Galeria do Rock, sábado? Topa? — Ivan sugeriu com um sorriso. — A gente dá uns rolês e baixa em algum canto pra vocês se entenderem melhor. — Fechado. — Gabi topou e abraçou Julia. — Yaaaaaaay! Já temos o que fazer sábado! Ivan se afastou e ficou dando atenção para Zu; enquanto Gabi e Andreza entraram em uma discussão sobre tinta de cabelo
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com Alessandra e Julia ficou sobrando entre Jaime e os dançarinos, conversando sobre música. Poucas horas depois Zu foi embora e com ela, Andreza e Jaime. Ivan sentou-se ao lado de Gabi e Julia, que estavam conversando com Alessandra e com Sônia, uma menina de cabelos pretos compridos que estava de calça jeans e casaco preto, com uma gargantilha que tinha uma enorme cruz pendurada. — E aí, aquela Zu é sua nova namorada? — Gabi quis saber, colocando um pirulito na boca. — Não! Nada disso! — Ivan se espreguiçou e se esticou na grama, apoiando-se nos cotovelos. — Na verdade ela estava interessada na Julia! — Sério? — Gabi arregalou os olhos e curvou-se em cima dele. — E você avisou que a Julia tem namorado, né? — É... mas e aí vocês vão ficar aqui até que horas? — Não sei, que horas o pessoal vai embora? — Gabi perguntou e se esticou do lado dele. — O pessoal costuma vazar as cinco, seis horas.. hoje é quarta. Lá pelas nove horas tem um pessoalzinho que retorna, mas eu não volto mais hoje, não. — Ivan explicou. — Ih... — Julia reclamou. Ela combinou com seu pai de encontrar com ele só as oito horas. Virou para Gabi. — Eu combinei com meu pai às oito... mas podemos ir pro Hospital esperar por lá. — Até as oito horas? — Ivan sentou-se de novo e olhou no relógio. Ainda eram quatro horas. — Nãaaaao, vai ficar muito tarde... vamos lá pra minha casa, depois trago vocês aqui. Beleza? — Por mim ótimo, especialmente se você tiver fotos do seu amigo! — Gabi ficou em pé e limpou a saia preta do uniforme. — Eu acho que tenho! — Ivan ficou em pé também e estendeu a mão para Julia. Ela sorriu e aceitou a ajuda, ficando em pé. — Vem, conheço umas quebradas aqui a gente chega em uns minutos. — Ótimo! — Gabi se animou.
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Eles se despediram do pessoal e saíram do cemitério. Só do lado de fora que Julia percebeu que ainda segurava na mão de Ivan, com os dedos enlaçados; mas não soltou.
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15 AMARGO ARREPENDIMENTO † A casa de Ivan estava vazia, com as luzes apagadas e o apartamento não era tão grande assim. Haviam apenas dois quartos, um banheiro e uma sala, que era o mesmo lugar que ficava o computador. Ivan mostrou a casa e explicou que dividia o quarto com suas três irmãs (haviam dois beliches) e que Anderson dormia no sofá-cama da sala. Sua mãe tinha um quarto só para ela, com uma cama de casal. Juia não conseguiu evitar de imaginar e tentar descobrir onde que Bruno e Priscila transavam se no quarto de Ivan só tinham beliches, pareciam bem apertado por ali. Ou talvez, fosse no quarto da mãe de Ivan? Ficou triste por estar ali e pensar nessas coisas. — É sempre tão silencioso aqui? — Gabi quis saber, já sentando no sofá depois do micro-tour e se espreguiçando, sinal de que estava cansada. — A essa hora sim... mas espera dar umas sete que as meninas voltam do play ground?! Vira a zona! — ele riu. — Querem beber um suco? Água? Refri? — Eu aceito refri! — Gabi puxou Julia para ela se sentar ao seu lado. — Ah, eu também. — Julia soltou a mochila no chão e sentou. Ivan foi para a cozinha e nesse momento, Gabi se aproximou do ouvido de Julia para cochichar:
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— Eu achava que o Ivan era mais rico! — confessou, parecia horrorizada porque ele não era, o que Julia achou idiota já que sabia que a mãe de Ivan e o irmão, Anderson, quem sustentavam a família e que as vezes, Ivan fazia uns bicos para ajudar em casa. Por isso revirou os olhos e se afastou de Gabi. Foi bem na hora em que Ivan voltou, com dois copos de guaraná e entregou para elas. Tirou a jaqueta, soltando-a na cadeira da mesa redonda de quatro lugares no canto da sala e sentou-se do lado de Julia. — E aí o que querem fazer? — Ivan perguntou. — Você tem o Canal Fox? Essa hora tá passando uma série que eu adoro! — Gabi abriu um sorriso. — Tem... — Ivan levantou de novo e ligou a televisão e o aparelho da TV a Cabo na tomada, entregou os controles para Gabi. — Sinta-se em casa. — Obrigada! Agora só ficou faltando mesmo a pipoca! — Quer que faça? — Ivan perguntou, ainda em pé. — Se tiver, eu quero sim! — Gabi! — Julia ficou horrorizada. — Liga não Ivan ela é muito folgada! — Não tem problema, eu faço. — Ivan riu e foi para a cozinha. — Eu ajudo você. — Julia o seguiu. — Eu vou ficar bem aqui! — Gabi riu. A abertura de seu programa de televisão começou. Julia parou na porta da cozinha. Era bem estreita e com prateleiras dos dois lados, um fogão de quatro bocas, um forno elétrico e um microondas. Estava um tanto bagunçada mas a decoração era bonitinha. Tinha os detalhes verdes e todos os objetos combinavam. O que não era verde era de vaquinha. — Uau, que fofo! — Julia entrou e pegou em cima da bancada de mármore um galheteiro que tinha a forma de uma vaquinha com um laço vermelho na cabeça e cílios enormes. — A minha mãe adora essas vaquinhas esquisitas. — Ivan falou enquanto colocou o pacote de picoca de microondas sabor
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queijo para dentro do aparelho apertando alguns botões. O aparelho ligou. — Eu acho fofas. — Julia soltou o galheteiro na bancada de novo. — Eu acho você fofa. — ele virou-se de frente para ela com um sorriso. Julia sentiu suas faces corarem, mas já estava perto demais de Ivan para escapar do feitiço, ele se inclinou para frente, ela ficou nas pontas dos pés e seus lábios se tocaram suavemente. Julia segurou no ombro de Ivan, ele deu um passo para frente e passou os braços por sua cintura, trazendo-a mais para perto. Seus corpos se colaram e eles se beijaram. A primeira pipoca estourou e eles interromperam o beijo. Sorriram um para o outro e foram se sentar no sofá. Ivan entregou o pote de pipocas para Gabi que encheu a boca com elas. Sentou-se ao lado de Julia e segurou a mão dela enquanto eles viam televisão juntos. † Bruno estava sentado no sofá de couro da sala com um pacote de ervilhas congeladas na cabeça onde havia levado uma pancada com o ferro de passar roupa, tudo porque queimou o colarinho da camisa branca sem querer. Tá, talvez não tenha sido tão sem querer assim já que ele havia deixado o ferro em cima da camisa por mais tempo que deveria enquanto foi enviar um SMS no celular para Julia depois de tanto se martirizar com ter deixado ela ir sozinha no cemitério... mas mesmo assim! Carlos sentou do seu lado empurrando-o para o lado. Estava arrependido, dava para ver no olhar. Sua camisa azul marinho risca-de-giz estava com os botões estourados, o que ficava bem engraçado porque a gravata amarela estava apertada no pescoço. O homem passou o braço pelos ombros de seu filho e o puxou para acolhê-lo, colocando a outra mão pelos cabelos escuros do garoto enquanto beijou o topo de sua cabeça com carinho.
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Segurou o pacote de ervilhas congeladas, tirando-os das mãos de Bruno em uma tentativa de cuidar do ferimento: — Desculpe... — A voz estava entupida de arrependimento. — Eu sinto muito mesmo. — Apertou os braços ao redor do filho em um abraço forçado. — Você tinha que ter prestado atenção... — As palavras quase não saíram afogadas em mágoa, balbuciadas com emoção pesada. — Você entende, não é? Com o rosto afundado em Carlos, Bruno não se deu ao trabalho de responder, mas pensou no assunto. Seu pai tinha razão afinal das contas! As vezes se pegava pensando em como seria se ele conseguisse ser o “bom filho” que Carlos queria que ele fosse; mas sempre chegava a conclusão de que isso nunca ia acontecer. Ele não queria ser um bom filho para Carlos, essa era a verdade... mesmo tendo sido Carlos quem ficou com ele quando sua mãe os abandonou. Bruno não sabia o que pensar a respeito e portanto, resolvia não pensar. Era confuso demais. Ele sabia que as vezes odiava Carlos com todas as forças, até desejava secretamente que o homem se matasse, sofresse algum acidente na rua... essas coisas. Mas se pensava a sério nisso, não era bem o que queria... afinal, bem ou mal, Carlos era tudo o que restava de sua família. Ele não tinha mais avós e avôs, todos já estavam falecidos antes dele completar dez anos. Carlos tinha um irmão mais velho, que nunca se casou e que morava no litoral, era dono de uma loja de surf... mas Ricardo nunca aparecia por esses lados. Gisela era filha única e se casou porque engravidou, ela mesma adorava dizer isso, que só estava casada por causa do filho. Carlos batia em Gisela porque ela era infiel. A típica esposa desesperada que transa com o jardineiro, encanador, piscineiro... até o entregador de pizza. No telefone, Gisela dizia que não conseguia abandonar Carlos porque não sabia como ia criar o filho sozinha. Dá pra imaginar o que é você ouvir quase todos os dias a sua mãe contar pra alguém a triste história de como ela engravidou de
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um desconhecido, se casou com ele e não conseguia abandonar por sua causa? Sua causa, única e exclusivamente sua. Bruno não gostava disso, mas ainda assim, amava sua mãe. Pior do que ouvir as histórias no telefone, os planos de fuga frustrados e tudo mais... era ouvir os gritos dela quando apanhava de Carlos. Ela sempre chorava muito depois de apanhar... chorava tanto que dava até dor de cabeça. Aliás, lembrar disso dava dor de cabeça. — Eu vou consertar tudo isso, eu prometo. — Carlos falou apertando-o em seus braços. Assim ia sufocar! Bruno tentou se soltar do abraço, mas tal como uma jibóia, quanto mais ele lutava, mais Carlos o apertava. O arrependimento de Carlos era sem dúvida a pior parte. Não porque ele ficava com pena, porque no fundo, achava ótimo que ao menos isso corroesse a alma de Carlos até a exaustão... mas porque na maioria das vezes, até o desculpava! Como agora. Foi só uma pancada com o ferro, levada com razão. Ele nem tinha que queimar a camiseta que seu pai iria usar na reunião e podia mesmo ter prestado mais atenção. Bruno se odiava por ser assim tão fraco. No fim, ele desculpava, achava que merecia, que não era um bom filho... e estava mesmo sempre aprontando alguma coisa... mas o colarinho, foi sem querer. Conseguiu se soltar de Carlos e por fim ficou em pé. — Estou com dor de cabeça, vou pro meu quarto. — e antes de esperar pela resposta, saiu em disparada. Entrou em seu quarto que estava sem porta e sem previsão de que uma nova fosse colocada. Carlos havia marretado a porta quando ele fugiu para ir ao Strange House com Julia. Lord Byron estava no batente da janela querendo sair, mas ele não se importou. Jogou-se na cama ainda de roupas e se enrolou no edredom. Sua cabeça estava latejando com a pancada. †
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Julia descobriu o amargor do arrependimento logo no dia seguinte quando viu Bruno. Seu coração acelerou mais forte e ela ficou extremamente triste por ter feito o que tinha feito com Ivan... ela se abraçou com Bruno com força e o encheu de beijos assim que o viu. — Desculpa! Eu não devia ter ido no cemitério, devia ter ficado em casa com você. — ela disse. Mas na verdade ela queria dizer algo “Desculpa por ter beijado o Ivan diversas vezes, assistido filme de mãos datas e, especialmente, ter gostado disso”. Chegava a doer o arrependimento que sentia, como estacas em seu coração. Onde que ela estava com a cabeça afinal?! — Sem problema. — Bruno não ligou, ou não pareceu ligar. Eles foram para a escola normalmente como todos os dias e Julia contou que agora sua mãe ficaria sempre em casa de repouso, por ordens médicas. Ela segurou na mão dele e fugiu de seus olhos azuis. No meio da aula, Gabi e Julia foram juntas para o banheiro feminino conversar. Era o único lugar em que podiam fofocar sem que Bruno estivesse junto (afinal, ele estava sempre com Julia, na escola, morando ao lado da casa dela, etc). Elas estavam no mesmo box, falando baixo em segredo. Gabi sentada com um pirulito na boca, Julia em pé encostada na porta. — Levei um susto quando me toquei que vocês estavam se beijando, poxa você podia ter me avisado! — Desculpe... foi meio sem querer que aconteceu. Julia teve que contar a história inteira: o que aconteceu naquele banheiro do Strange House, as conversas no Facebook de madrugada e como ela estava pensando em Ivan todos os dias sem parar como uma maluca. — E o Bruno? — Gabi arregalou bem os olhos. — Você vai contar pra ele? — Não! Claro que não! — Julia perdeu o chão, o mundo rodou involuntariamente. A garganta ficou amarga de repente, como se ela tivesse engolido litros de água de azeitona, quis
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vomitar, mas Gabi estava sentada no vaso olhando para ela com suas lentes azuis interrogativas, questionadoras e com certeza, desaprovando tudo aquilo! — Se eu fizer isso ele vai terminar comigo e me odiar para sempre! — Ai Julia... e o que te garante que o Ivan não vá contar? Você sabe que o Bruno teve aquele rolo com a Priscila — e ela tirou o pirulito da boca e colocou o dedo indicador fazendo cara de nojo como se fosse vomitar para ilustrar bem a sua opinião sobre a menina de cabelos roxos. — eu aposto que o Ivan só ficou contigo pra se vingar. — Você acha? — Só a hipótese foi como uma bomba em cima de Julia. — Com certeza! Ele te deu o lenço e espalhou pra todo mundo essa história. Bem, a Priscila espalhou... mas com certeza foi pra chegar no Bruno! — Gabi concluiu como um cachorro de caça rastreando a raposa. — E o que você vai fazer? — Eu não sei! — Julia choramingou em dor emocional. Bruno não podia descobrir o que tinha acontecido em hipótese alguma. — De quem você gosta mais? — Gabi perguntou enfiando o pirulito na boca de novo. Ajeitou os cabelos ruivos. — Ai Gabi! Que pergunta é essa? — Sério, se você gosta do Ivan é fácil, só terminar com o Bruno... mas se você gosta mais do Bruno... bem, você tem um problema. — Definitivamente eu gosto mais do Bruno... eu não sei o que me deu... eu não devia ter feito isso...! — E seus olhos se encheram de lágrimas de arrependimento e seu estômago revirou de um jeito ruim, doendo. — O que eu faço? — Se você gosta do Bruno, acho que devia dizer pra ele o que aconteceu. — Ele vai me odiar! — Vai ser pior se ele ficar sabendo por outra pessoa...! — Não posso contar pra ele, Gabi!
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— Eu detesto ter que te dizer, mas eu tenho que te avisar. — Gabi ficou em pé e colocou as duas mãos no ombro de Julia, olhando-a firmemente. — Se você não contar, pode ter certeza que o Ivan vai contar pra você. De qualquer forma você já se ferrou. — Você tem razão... — Julia concordou. — Eu preciso dizer a verdade. † Arthur segurou Julia no corredor no momento em que ela passou com Gabi para voltar para classe: — Ei, Jujuba. — ele chamou, mas já agarrou em seu braço. — Vou pegar minha carteira! — Gabi entrou na sala e deixou Julia para trás. Era hora do intervalo. — Oi Arthur! — teve que lançar um sorriso amarelo para ele, pois estava apressada, precisava falar com Bruno. — A Cidinha perguntou se você leu a carta dela. — Ah, eu li. — e por cima do ombro, olhou para a classe. Bruno levantava da sua cadeira e Gabi estava falando algo com ele. — Legal, quando você vai visitá-la? Ela me pergunta isso todos os dias! — Eu não sei... — A Cidinha já está em casa, se você quiser ir esse sábado, vou estar lá. — Ah, tudo bem... pode ser. — Ótimo! Fica combinado! — Arthur a abraçou de repente, cheio de carinho, inspirando seu perfume e comprimindo os ombros. Julia procurou afastá-lo imediatamente. Sentiu-se totalmente desconfortável naquele abraço. Era falso, não encaixava e ela nem queria visitar Cidinha coisa nenhuma! — Ju? — Bruno já estava na porta da sala, junto com Gabi que estava com o pirulito bem enfiado na boca para não se manifestar.
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— A gente se vê. — Julia se afastou de Arthur e agarrou no braço do seu namorado, mas não teve coragem de olhar para Bruno. A primeira coisa que fez foi se explicar, seu coração parecia que estava sendo esmagado por um martelo. — Eu só estava falando com ele sobre a Cidinha. Ele disse que ela vive perguntando quando eu vou lá e sugeriu de eu ir visitá-la sábado, ela já saiu do hospital... Bruno não disse nada, o que foi ainda pior, pois deixou Julia com a impressão de que ele estava bravo com ela. — E você quer ir? — Gabi perguntou incrédula. — Bem, eu disse que ia... fiquei com vergonha de dizer que não queria ir sozinha... — Julia se sentiu péssima. Era como se ela estivesse sentindo os olhos de Bruno sobre ela. Será que ele ia perceber? Será que só de olhar ele saberia que ela beijou Ivan?! — Se você quiser ir eu vou contigo. — Bruno falou. Foi uma outra martelada em seu coração. Poxa vida! Ela tinha beijado Ivan... e lá estava Bruno sendo fofo com ela, aturando Arthur e Cidinha por ela... se oferecendo ir junto só para que ela não tivesse que ir sozinha! Apertou mais a mão do namorado e encostou a testa no ombro dele, totalmente sem graça. Respirou fundo inalando o cheiro das roupas de Bruno, que cheirava a amaciante. — Certo... — Julia concordou só para não ficar calada e demonstrar que havia algo errado. Arrependeu-se, entretanto, e segurou Bruno antes deles saírem para o pátio. Deixou Gabi se afastar deles e por fim, ergueu a cabeça para Bruno. Olhar dentro daqueles olhos azuis era como o fim do mundo agora. Bruno lançava uma expressão interrogativa, mas carinhosa de tal forma que Julia sentiu como se inúmeras bigornas caíssem do céu em cima de sua cabeça. Ela se sentiu diminuta, esmagada pelo peso da consciência. — Ei, me beija? — ela pediu segurando nas duas mãos dele. Bruno deixou escapar um sorriso, o sorriso mais lindo do mundo na opinião de Julia... especialmente que ela achava que
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nunca mais veria ele sorrir assim para ela. Bruno se aproximou e seus lábios frescos se colaram com o dela. Julia aproveitou cada segundo: o suave toque, o encontrar de suas línguas, quando ela o abraçou apertando-se contra ele e ele colocou as mãos em seu rosto, a sensação dos piercings arranharem seu queixo... queria tudo para ela, não queria se soltar mais. Mas Bruno se soltou dela, descendo as mãos para seus ombros e a segurando parada no mesmo lugar, enquanto ele se afastava. Julia tomou fôlego. Era agora, ela precisava falar! — Bru... eu preciso te dizer uma coisa. — Hm? — ele perguntou e esperou. Eles estavam se olhando muito intensamente. O coração de Julia acelerou como um tambor, a ansiedade deixou suas mão suadas. — Eu... eu... — hesitou. Meu Deus... ele ia odiá-la para sempre! Nunca mais ia beijá-lo ou conversar sobre literatura com ele. Com quem ela ia voltar da escola? Com quem passaria suas tardes? O mundo seria tão vazio sem Bruno! Tão sem significado! Não podia! Ela precisava dele como um girassol precisa do Sol. — Eu.. q-queria dizer que... você é muito especial pra mim. — Você também é muito especial para mim. — Ele sorriu e a beijou. Julia o abraçou. Droga, não tinha como dizer a verdade! Não podia, simplesmente não podia! E foi assim que Julia decidiu, que faria de tudo o que fosse possível para que Bruno nunca descobrisse que ela beijou Ivan. † — Tem certeza que quer fazer isso? — Bruno perguntou na fachada do Hotel em que Cidinha estava hospedada assim que ele e Julia pisaram por lá. Por conta do incêncio ocorrido no prédio em que ela morava os andares atingidos estavam interditados e levaria algum tempo
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para que o governo, a seguradora e os moradores decidirem o que seria feito. Porém, como Cidinha estava passando por um trauma, seus pais decidiram alugar um flat em um hotel para ela. — Tenho sim. — Julia falou, segurando nos braços flores e um ursinho de pelúcia que ela quis comprar e de mãos dadas com Bruno. Respirou fundo engolindo coragem pelo nariz. Quando a entrada foi liberada os portões abriram e eles caminharam até o hall. Bruno deu passagem para ela e Julia foi na frente. A garota andava hesitante, em cima de suas sapatilhas pretas. As rendas da saia de seu vestido se debatiam com o vento e ela teve que soltar a mão do namorado para segurar a barra da saia antes que ela levantasse e mostrasse sua calcinha. Seus cabelos cor de café compridos e soltos chicoteraram de um lado para o outro e ela se atrapalhou inteira, pois ou segurava a saia, ou os cabelos. Bruno abriu a porta do hall para ela. Julia sorriu amavelvente e tirou os fios de cabelo que grudaram em seu batom cintilante e lilás. Apertou o botão do elevador para subir. — É no sexto andar. — Julia falou ao dar as mãos com ele de novo. Ela estava nervosa, dava para ver. Achava que Julia não estava nem um pouco preparada para ver Cidinha após o acidente e ter que lidar com o fato de que ela era a responsável. O elevador chegou. Mais uma vez abriu para ela e apertou o andar, enquanto tirava os fones e desligava o iPod, guardando-o no bolso da jaqueta preta. Julia se acertou no espelho, ajeitando os cabelos e a alça do vestido, procurando esconder a renda violeta da alça de seu sutiã que teimava em aparecer. Olhou para Bruno no espelho e riu, virando-se para ele já esticando a mão para acertar seus cabelos, que deveriam estar bagunçados por causa da ventania que tomaram na entrada. Trocaram um selinho e o elevador chegou, tocando uma campainha. Deram as mãos de novo e entraram no hall. Havia apenas duas portas por andar e o chão era de madeira. — É o 62! — Julia avisou. Bruno tocou a campainha.
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A porta de madeira destrancou e Cidinha apareceu. Ela parecia a mesma, mas não era mais a mesma. Em seus olhos não haviam mais emoção, a pele de seu rosto estava quase que totalmente reconstruída, mas não tinha o mesmo aspecto e estava sem sobrancelhas. Ela usava calça jeans e uma blusinha azul com um panda estampado. Cidinha estava de peruca feita de fios castanhos em um tom diferente do dela mas parecido, comprida. Mais maquiada do que o normal, provavelmente procurando esconder as cicatrizes das cirurgias reconstrutoras com cosmético, ela tinha desenhado uma sobrancelha com lápis marrom; parecia feita de plástico porque estava muito artificial. — Vocês vieram! — soou muito feliz por vê-los e se abraçou com Julia fortemente. Julia não soltou a mão de Bruno, ao contrário, apertou ainda mais de uma forma que espremeu seus dedos contra seus anéis e machucou. É... ela não estava mesmo preparada para fazer isso. — São pra você. — Julia procurou se afastar de Cidinha colocando os presentes que comprou entre elas. — Espero que goste. — Ah, puxa... não precisava! — Cidinha tomou as flores e o urso em suas mãos. — Entrem, por favor! — e largou a porta aberta, virando-se para a sala, onde estava Adriana e Arthur. — Olha só Tuti! Ganhei presentes! — Que legal! — Arthur vibrou, mas nem se mexeu da cadeira. Não estava mais com gesso, mas usava uma joelheira articulada e ainda precisava de muletas. Adriana não disse nada, mas endureceu assim que Julia e Bruno entraram. Estavam todos na sala, sentados em dois sofás brancos. No centro uma mesinha de madeira com o tampo em vidro repleta de salgadinhos e refrigerante. Pelo visto, Cidinha se preparou para a visita.
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— Eu te ajudo. — Adriana levantou e foi pegar as flores da mão de Cidinha, colocando-as em um ajarra de vidro com água. — São bem bonitas. Julia sentou-se no sofá que ficou vazio e fez Bruno sentar-se do seu lado. Arthur enfiou vários amendoins japoneses na boca de uma só vez. Cidinha sentou do lado dele e apontou para o copo de água, que ele se esticou para entregar para ela mastigando os amendoins. — Então... — Cidinha começou, cortando aquele silêncio ultra esquisito que se instalou na sala de repente. — Quando foi que vocês começaram a namorar? — Tem uns cinco meses, por aí. — Julia respondeu estreitando os ombros, segurou com as duas mãos a mão de Bruno, nitidamente sem jeito por estar ali com eles. — Ah que legal. — Arthur quem comentou, sem saber o que dizer. — Quando é que você retorna para a escola? — Julia perguntou para Cidinha. — Acho que só ano que vem. — Cidinha respondeu com um sorriso. — Eu até poderia voltar, mas já perdi muito conteúdo e resolvi esperar um pouco... — e soltou o copo. — Todo mundo está torcendo por você, Cidinha! — Adriana retornou e sentou-se do lado de Julia. — Não é Julia? — Claro... — Ainda estou com vergonha de sair na rua de peruca! — Cidinha riu. — Que isso, amor você tá linda! — Arthur passou o braço envolvendo a menina e beijou sua face. — Não dá nem para perceber que é uma peruca, parece só que você cortou o cabelo diferente. — Você está sendo gentil, amor! — Cidinha sorriu para ele e se afastou. Virou-se para Julia. — O que você acha? — Ah... eu... acho que ficou bom esse cabelo em você. — A Cidinha é linda, tudo fica bem nela. — Adriana completou.
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Bruno se segurou para não acabar revirando os olhos e respirando de forma impaciente ou entediado. A peruca de Cidinha era nitidamente falsa, mas provavelmente ninguém julgaria ela por isso, talvez em uma ou outra roda de amigos alguém fizesse uma piada, mas no fundo todos teriam pena do acontecido e se sentiriam culpados por fazer a piada. — Tem razão. — Julia concordou. — Sabe, ainda tenho várias cicatrizes nas costas. — Cidinha revelou. — E não posso mais tomar muito sol, várias recomendações... sabia que uso protetor solar fator 100 dentro de casa? Na rua, tenho que usar fator 200..! Provavelmente quando eu tiver trinta anos, vou aparentar que tenho cinquenta! — Poxa... — Julia inseriu o comentário. Apertou de novo a mão do namorado. — Até lá a medicina já vai ter avançado tanto que isso não vai acontecer! — Adriana riu. — Não fique encanando com isso agora! Você está ótima, só está sem cabelo! Cidinha colocou as duas mãos na peruca, como para se certificar de que estava com ela na cabeça, escorreu os dedos pelos fios sintéticos. — Minha mãe disse que vai me comprar uma peruca de fios naturais e importados. Essa daqui machuca a minha cabeça. — Cidinha falou. — Mas fazer o quê? Tem que usar né! — Eu acho você linda até sem cabelo. — Arthur interferiu de novo. Ele sempre interferia quando ela se rebaixava, denunciando que a auto-estima estava em frangalhos. Depois disso, eles conversaram sobre filmes que estavam em cartaz no cinema e evitaram tópicos como a escola, os sonhos futuros que tinham para si e tudo mais. Cidinha contou que o cartão de Julia foi um dos poucos que ela fez questão de enquadrar, porque o anjo que ela desenhou no cartão tinha sido algo que deixou Cidinha muito feliz e acompanhou a menina nos dias de desesperança.
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— Se eu ficava muito triste, eu lia o cartão e rezava para aquele anjo. Foi muito importante pra mim. — Cidinha disse enquanto contava a história da sua recuperação. Ela também discursou sobre como foi importante ter Arthur o tempo todo do seu lado. Disse isso enquanto olhava para ele com carinho e eles se beijaram rapidamente. Parecia até que o acidente tinha feito dos dois mais íntimos, como se o amor tivesse crescido mediante as dificuldades que eles passaram. Não seria nada surpreendente que até o final do colégio, antes mesmo de entrarem na faculdade, eles não anunciassem um noivado. Pouco antes de anoitecer Julia e Bruno foram embora e deixaram Adriana, Cidinha e Arthur para trás enquanto caminhavam em silêncio pelas ruas até que chegaram ao metro. Foi lá que Julia começou a chorar, em soluços gigantes e derramando muitas lágrimas. Seu rosto inteiro ficou vermelho. Ela se abraçou com Bruno sem conseguir parar de chorar e balbuciava de tempos em tempos: — Eu sou horrível! Eu faço tudo errado! Bruno comprou uma água sem gás para ela e sentaram-se para esperar o trem do metrô. Eles ficaram sentados lado a lado, um trem passou, mais outro... Levou algumas horas para ela se acalmar.
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16 A NOITE QUE MUDOU TUDO † Foi fácil para Julia colocar uma pedra no assunto chamado “Ivan”: Ela o bloqueou no Facebook de uma vez por todas e evitou a todo custo voltar ao Strange House ou ao cemitério por semanas. Tudo o que ela precisou para isso foi convencer Bruno de que haviam muitos outros programas interessantes para eles fazerem como namorados: Cinema, passeios em museus, teatros e shopping... e até ir à uma loja de esportes comprar os acessórios que Clayton queria que eles usassem para devolver a Schwinn de Bruno. Deu certo! Com a bicicleta de volta ela e Bruno puderam voltar à rotina de irem e voltarem juntos da escola (mas agora ele tinha garupa). Além disso, Ivan nunca mais a procurou. Nem mesmo quando Gabi começou a “namorar” com Caio! Segundo Gabi, Ivan havia “se aposentado”, termo utilizado para quando alguém saía do grupo, não aparecia mais no cemitério e nem nas festas e casas noturnas. Andreza especulava que era porque com o término com Priscila ele estava evitando os “locais comuns”, mas Gabi dizia que Caio havia dito que um tal de Felipe havia dito que Zuleika (ou Zu, a lésbica do cemitério) havia dito que Ivan estava trabalhando depois do colégio em uma livraria dentro de um shopping e que portanto, estava sempre sem tempo ou sem disposição para sair. O que, pensando bem, foi perfeito para Julia poder esquecer de seu deslize e levar as coisas adiantes com seu namorado.
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Pouco a pouco a vida foi se acertando: Seu pai arrumou um emprego e sua mãe estava sempre em casa de repouso esperando a barriga crescer enquanto fazia compras para o quarto do bebê pela internet. Com a ausência de seu pai ficava mais fácil amassar-se com Bruno em seu quarto, exceto nos momentos em que Nando ligava para Julia para choramingar o término da relação com Gabi(ainda!). E era exatamente isso que Julia estava fazendo naquele momento enquanto deveria estar se arrumando para a festa de Halloween no Strange House, estava sentada na cama com o telefone sem fio da residência pendurado no ombro, e o celular vibrando SMSs de Gabi com “me liga agora!” e “onde você está?” Olhou no relógio. Duas horas com Nando ouvindo ele se explicar de que o romance que ele teve com Priscila foi coisa de uma semana, que ele não conseguiu ir além dos beijos com ela, que só pensava em Gabi, que não sabia o que fazer e que, inclusive, havia mandado flores, e-mails e poemas para ela. As notas de Nando estavam péssimas e era possível que ele repetisse de ano.. e ele ia afundando como o Titanic. — Ela nem olha na minha cara... eu tentei falar com ela todos esses dias na escola... eu estou tão triste..! — Você tem que superar, Nando... você sabe que a Gabi está saindo todas as sextas, sábados e domingos com a Dê e o Jaime... — Julia tentou não falar que Gabi estava “namorando” outro cara. As aspas em “namorando” se devia ao fato de que não era oficial. Caio podia ficar com outras meninas, Gabi podia ficar com outros meninos, mas sempre que eles se encontravam estavam juntos. O que resumia todas as sextas, sábados e domingos... e algumas vezes durante a semana quando ele passava as noites na casa de Gabi. Farewell, Nando! — É, eu estou sabendo que a Gabi vai ao Strange House hoje, você vai? Acha que eu devia ir?!
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— Melhor não, Nando...! — Julia desesperou-se. Se Nando visse Gabi com Caio certamente partiria para briga. — É Halloween, você devia sair com seus amigos. — Que amigos? — Não sei... do seu RPG! — É... sei lá... — Nando pareceu bem chateado. — Você tem razão... eu acho que vou escrever um e-mail para ela... talvez ela leia. Você fala pra ela ler? — Claro, falo sim. — Obrigada Julia... eu não sei o que eu faria sem você. — Nando desligou. Julia suspirou e soltou o telefone, esticando-se na cama para pegar o celular. Gabi estava ligando pela sétima vez. — Oi! — Jujuba! Finalmente, meu! Estava ficando desesperada já...! — Gabi soou aliviada. — Já está pronta? — Ainda não! Eu estava falando com.... o Nando. — Ai, que saco! Esse garoto está com problemas. Eu tive que trocar de e-mail por causa dele! — Você gostava dele... lembra? — Não começa, Jujuba! — Gabi riu do outro lado. — Isso foi antes do Caio. Você sabe que o Caio é minha alma gêmea! — Sei. — Julia concordou, mas não achava. Caio era um garoto até normal, estava sempre de preto e tinha os cabelos castanhos cacheados e curtinhos. Ele não era feio, mas Nando era muito mais bonito (e mais divertido) do que Caio. Fora que Gabi e Nando tinham mais coisas em comum do que Gabi e Caio. Talvez devesse escrever no livro para Gabi se apaixonar por Nando de novo, quem sabe?! — Você já está pronta? — Estou! Vamos arrasar! — Gabi parecia empolgada. Seus amigos combinaram suas fantasias para fazer um grupo todo no mesmo tema do Magico de Oz. Gabi era Dorothy, Caio era o Homem de Lata, Andreza era a Bruxa (verde e não azul, ela havia até trocado a cor do cabelo) e Jaime o Mágico de Oz; para Julia e Bruno sobrou o papel de Leão e Espantalho.
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— Eu fico pronta em meia hora. — Julia falou, mas não havia nem ido para o banho ainda. — Certo! Eu e o Caio vamos passar primeiro na Dê, o Jaime tá por lá... e vamos aí, tá bem? Estejam prontos! — Gabi deu a ordem. — Beijos! — Até mais. — Julia desligou. Aimeudeus! Estava super atrasada! † O Strange House estava mais cheio do que nunca naquele especial de Halloween. A rua do lado de fora estava cheia e o porão também. Como Caio já dirigia, ele estacionou o seu Gol 2000 azul marinho, e que precisava de uma bela reforma no motor, em um estacionamento na rua de cima e eles tiveram que descer a pé até até a rua onde ficava a esquina sem saída do Strange House. Andreza quis parar para comprar um cigarro na padaria. Sua fantasia de Bruxa Má do Oeste parecia um vestido comum de cetim, comprido. Ao invés de pintar o rosto todo de verde Andreza mudou a cor do cabelo (para um verde limão ultra artificial) e fez uma maquiagem nos olhos toda verde, combinando com a cor das unhas e desfilou pela rua segurando a barra da saia comprida e uma vassoura de bruxa que comprou na 25 de março com um chapéu pontiagudo de plástico na cabeça que ficou esquisito. Jaime que andava de braços dados com ela, estava como um mágico de festas de crianças de cartola e capa, mas valia a intenção. Julia quase tropeçou com seus saltos altos de uma bota marrom de Gabi (e que era um número maior que seu pé), um vestidinho marrom com pelúcia na barra e nas mangas com direito a um rabo de leão e orelhinhas na cabeça. Bruno a segurou, com uma roupa que misturava um caipira com punk que só ele achava que era um espantalho (calça xadrez com patchs, coturno, camisa branca e colete) e ele tinha protestado antes de concordar com a
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fantasia que preferia ter feito a fantasia do Espantalho do Batman, não do Mágico de Oz. — Você vai se esborrachar até o final da festa... — ele revirou os olhos. Não entendia porque ela não podia ter ido com um sapato dela. — Você me segura. — ela debochou com um tom cara-depau. — Você devia ter posto duas meias. — Gabi falou. era a perfeita Dorothy, com um vestido branco e azul, meias ⅞ brancas e um sapato vermelho gritante. Seus cabelos estavam presos em duas chiquinhas altas com laços vermelhos. Caio estava de mãos dadas com ela e estava muito engraçado. Ele colocou um funil da cabeça e vestiu uma roupa toda prateada feita de lycra e mais parecia o Freddy Mercury Prateado da televisão do que o Homem-de-Lata. No pescoço ele usava um despertador vermelho de plástico em forma de coração, feito por Gabi. Julia sabia que aquele coração-despertador havia sido um presente de Nando no dia dos namorados daquele ano, era triste ver aquilo! Ainda mais quando sabia que Nando ainda chorava por Gabi. — Ei, preciso comprar cigarros! — Andreza falou parando na frente da padaria. Deu a vassoura para o namorado segurar e entrou na padaria. — Ei Ju, seu rabinho tá caindo. — Gabi avisou. — Ah, que droga! — Julia foi mexer e o rabo de pelúcia saiu na sua mão, o que fez todos rirem. — Ops! — Vem aqui no banheiro comigo, tenho alfinetes na minha cinta liga! — Gabi segurou no braço de Julia oferecendo ajuda. — Você está de cinta liga?! — Caio se afobou. — Uau! Gabi puxou Julia para dentro da padaria. Haviam alguns homens por ali bebendo cerveja no balcão, que ficaram olhando para elas com jeito de tarados. Gabi desfilou puxando Julia até o outro lado, onde ficavam o único banheiro da padaria. Elas pararam na porta.
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— Acho que o Caio morreu de tesão quando você disse que estava de cinta liga! — Julia falou entre risos. — Ele vai morrer mesmo é quando descobrir que eu estou de fio-dental! — Gabi debochou. Julia arregalou os olhos assustada. — Nós vamos ao motel daqui, combinamos tudo ontem! O máximo! — Jura? Tem certeza Gabi?! Você quer mesmo fazer isso? — Ai, Jujuba, já dei pra ele, né! — Gabi deu risada. — Por que você não vai no motel com a gente?! — Tá louca? Que nojo! — Não, boba, estou falando de você e do Bruno... não de você, eu e o Caio! Para com isso! — Gabi riu de novo. — Não estou nem um pouco pronta para essas coisas. — Julia decretou. — Eu quero ir devagar... — Mais devagar que isso vocês dormem. — Gabi revirou os olhos. A porta do banheiro destrancou. — Daqui a pouco você faz vinte anos e vai continuar virgem! Quando a porta abriu Julia quase morreu do coração. Seus olhos bateram em Ivan. Poxa, tantas pessoas para saírem daquele banheiro e ela tinha que cruzar olhares justo com ele?! E ainda por cima, vestido daquele jeito super sexy?! As borboletas do seu estômago pareceram despertar todas de uma vez e Julia sentiu uma leve tontura. Ivan estava com uma camiseta do superman por baixo de uma camisa branca e paletó abertos, usando calça social e óculos de aro grosso. O moicano estava pintado de preto e jogado só para um lado. Assim que viu Julia ele abaixou a cabeça e passou sem dizer nada, nem ao menos cumprimentou Gabi, fingindo que nem as conhecia. — Van! — Dafne o chamou. Ela estava fantasiada de Mulher-Maravilha, com direito à tiara dourada e cabelos com curvas. Abraçou Ivan assim que ele apareceu. Gabi jogou Julia para dentro do banheiro e fechou a porta. Julia se encostou na parede sem fôlego, entrando em pânico.
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— Eu estou sem ar...! — Julia falou. O coração acelerado, a cabeça girando e o estômago em revolução. — Acho que vou vomitar! — e correu para o vaso sanitário nada limpo, curvando-se e vomitando tudo o que comeu. — Ahn?! — Gabi não entendeu, mas ajudou Julia quando ela expeliu todo o jantar pela boca. — Nossa, o que foi?! Ju?! — Eu não estou legal... — Julia confessou, buscando o papel toalha para limpar a boca. Ficou em pé e foi até a pia. Gabi estava branca de susto. — Eu quero ir embora. — Não, você tá maluca?! Essa é a festa do ano! — Gabi falou. — Eu preciso ir embora! — Julia insistiu. Lavou a boca. — Você entrou em pânico por causa do Ivan? — Gabi percebeu. — Foi isso, não foi? — Não! — Entrou sim, tenho certeza. Foi a mesma coisa naquela excursão do ano passado quando você viu o Arthur na praia. Você vomitou na hora, tenho certeza! Você panicou. — Gabi era a melhor amiga de Julia e já a conhecia muito bem. — Não! Não diga besteira! Claro que não! — Ai, Ju! — Gabi colocou as duas mãos na cintura. — Tudo bem que o Ivan é lindo de tudo, mas depois de todo trabalho do mundo para limpar o histórico com o garoto e você panicou quando viu ele! — Gabi, panicar não existe, essa palavra não é nem um verbo, sabia?! — Você me entendeu! — Gabi começou a rir. — Não dê risada, isso não é engraçado. — Julia fez uma bolinha com o papel e jogou no lixo. — Eu preciso ir embora agora! — Por quê? Ele nem falou contigo, te ignorou na boa... aliás, ele me ignorou também! Você viu, não viu? — Gabi levantou a saia e tirou um alfinete da cinta-liga. Ela colocava alfinetes com medo que o feiche de plástico soltasse, normalmente
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soltava. — Relaxa! Vai ficar tudo bem. Se ele disser algo pro Bruno, negue até a morte! Tudo vai ficar bem. — Eu sei... mas... não estou preparada pra estar no mesmo lugar que ele... — Por quê? Ele não vai te agarrar. Ele estava até acompanhado... viu aquela menina? Ela era a Avril Lavigne morena! Eles estavam até de fantasias combinando! Você sabe que o Superman se casa com a Mulher-Maravilha nos quadrinhos, não sabe?! — É a irmã dele, Gabi! Irmã! — Ah é? O Caio já ficou com ela... acho que estou com ciúmes. Como você sabe que ela é a irmã do Ivan? — Ela chama Dafne... encontrei com ela uma vez no hospital. Podemos ir embora agora, por favor?! — Relaxa, amiga! Se eu não vou arredar, você também não vai! — Gabi segurou em Julia virando-a de costas. — Vai, me dá esse seu rabo aí! — ela riu, pensando alguma sujeira no que falou. Julia riu também e entregou o rabichó de pelúcia para a amiga. A noite estava apenas começando. † Tudo correu nos conformes nas primeiras horas em que eles entraram no Strange House. Priscila estava lá vestida de Cleópatra e nitidamente evitando o mesmo canto em que Ivan estava. E Ivan, por sua vez, estava evitando o mesmo canto em que Julia se encontrava. Parecia que estavam dançando Escravos-de-Jó; e Julia ficou a maior parte do tempo na pista, dançando muito, mesmo que estivesse super cansada e com dor nos pés por causa da bota de Gabi. — Ai eu preciso sentar. — Julia segurou no braço do namorado e falou em seu ouvido. — Meus pés estão me matando. — Quer uma água? — ele ofereceu. — Não precisa. Eu vou lá nos sofás um pouco, tá? — e quando ele fez que sim, ela se afastou.
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Foi quando estava indo para os sofás que Julia cruzou de novo, e totalmente sem querer, com Ivan. Dafne estava puxando ele do bar para a pista. Ele virou bruscamente com o copo de vinho na mão e se chocou contra Julia, manchando seu vestido. Julia deu um pulo para trás mas já era tarde demais. Ivan ficou branco de susto e surpresa, totalmente sem reação. Dafne colocou as duas mãos na boca e fez um sonzinho que se parecia com um “Haaaan!”. Olhando seu vestido todo sujo e o vinho escorrendo em sua mão esquerda, Julia prendeu o ar nos pulmões. Ivan não disse nada, nem mesmo um “desculpe” e isso foi o fim! Julia não esperou, algumas pessoas ao redor já estavam rindo enquanto outras olhavam um tanto horrorizadas. Ela virou a mão na cara de Ivan: — Qual o seu problema?! — Ei! — ele reclamou e segurou ela no pulso. — Eu não te vi! — Me solta! — ela o empurrou com força, ele quase caiu no chão. — Não me toca seu idiota! E dito isso, Julia, a maluca, saiu correndo para fora do Strange House. Chegou lá em cima com o vestido manchado e os olhos cheios de lágrimas. Sabia que tinha que ter ido embora da festa antes mesmo de ter entrado. Colocou as duas mãos na cabeça. Oquefoiqueeufiz?! sua mente reverberou. — Desculpe. — Ivan falou logo atrás dela, colocou a mão em um toque gentil em seu ombro. — Você se importa da gente conversar? A voz suave fez Julia perder as forças no joelho e ela sentiu um tremelique pelo corpo inteiro. Limpou as lágrimas com seus dedos, borrando a maquiagem. — Pode ser... — concordou. Ivan levou Julia até o outro lado da rua, onde eles se sentaram lado a lado. Ficaram em silêncio a princípio, Julia chorando e ele escolhendo por onde começar. — Você tá bem? — ele perguntou por fim.
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Julia riu por entre as lágrimas. Caramba, tanta coisa pra dizer e ele pergunta isso?! Era até ridículo! — Estou, é só um vestido estúpido, eu nem vou usar de novo... — ela falou. Limpou os olhos, fungou e olhou para ele. Ivan parecia super preocupado, com os braços nos joelhos e olhando para ela por cima dos óculos. — Hm. — ele fez. — Então porque você me bateu? — Não sei... — Julia respondeu e ficou vermelha de vergonha. — Desculpa, eu sei lá o que me deu... foi uma loucura. — Ah... — Mas acho que foi porque você me ignorou mais cedo e daí veio derrubando vinho em mim... — Ah... — ele fez de novo, ajeitou os óculos no rosto. — Achei que você estava com raiva de mim ou algo, achei melhor nem arriscar falar contigo. — Raiva de você? Por quê? — Sei lá, você sumiu... me bloqueou no Face... — Ah, bem... por motivos óbvios. — Julia deu de ombros. — Achei que você ia entender. — Eu entendi. Mas me chateou mesmo assim... — Por quê? Você só ficou comigo pra se vingar do Bruno ter ficado com a Priscila! — Ahn? — ele virou para ela de novo, parecia ofendido e com um olhar de dor emocional. Incrível como ele parecia genuinamente chateado. — Quem foi que disse isso? Não foi nada disso! — Sei lá, faz sentido. — ela bateu os ombros. — Além do mais, eu tenho namorado... — Eu sei.. e justo quem, né... — Ivan passou os dedos nos cabelos. — É até irônico que com tanta garota por aí no mundo eu tenha me apaixonado justo pela namorada do Bruno... é ridículo. Julia não respondeu, mas seu coração pegou fogo quando ele disse “me apaixonado”. Seria mesmo verdade? Ou ele estaria apenas sendo um conquistador barato com ela?
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— Não precisa me olhar assim, não vou dar em cima de você e nem dizer pra você terminar com ele. — Não? — Não... — resmungou comprimindo os lábios. A mesma expressão que Bruno fazia as vezes, o que foi esquisito. — Mentira, eu vou. — e ele virou para ela decidido. — Termina com ele e fica comigo. Fica comigo ou termina com ele... a ordem não importa na verdade! Pode até ser que pareça vingança, mas não é... Eu só penso em você desde que te vi aquele dia chorando no banheiro... e não é possível que só eu sinta isso... — dramaticamente ele colocou a mão no peito, a respiração estava densa. — Você também sente, não sente? — Eu... — Julia hesitou. Sentia? Ou estava apenas interessada pela aventura? Seu coração estava acelerado mas era de alegria ou de susto porque ele estava dizendo aquilo tão abertamente? Sua barriga parecia um borboletário fervilhando. Ela não sentia-se assim com mais ninguém... isso tinha que significar alguma coisa, não tinha?! — Eu sinto. Ivan deixou um sorriso escapar. Parecia aliviado por ouvir aquilo, mas ao mesmo tempo feliz. Julia sentiu-se feliz também. Ele se aproximou dela devagar, seus lábios se tocaram de leve e eles se beijaram. † Ah, mas que merda., Bruno pensou assim que viu Julia do outro lado da rua de boca colada com Ivan. Ele pensou em tudo, mas não quis pensar em nada. O melhor a fazer era ir embora dali. Por isso, ele saiu de escanteio e subiu a rua até o metrô. Já estava completamente sem ar quando chegou lá, em estado de choque talvez. Que se dane... era no mínimo merecido! Passou pela catraca e desceu a escada rolante, pegando o primeiro trem que passou. Bem ou mal, a vida sempre dava voltas e cobrava uma conta exorbitante no final. Provavelmente isso era
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só Ivan cobrando a conta... pensando bem, ele até tinha algum direito de fazer isso. Bruno não foi para casa, entretanto. † O celular de Julia tocou preso dentro de sua bota, com uma mensagem de texto. No susto, ela segurou Ivan e se afastou dele. Ficou com as faces rosadas e pegou o celular, sentindo o coração parar de bater quando leu a mensagem de Bruno. “Meu pai ligou e tive que ir embora. Não te encontrei, desculpe? Até mais.” Julia ficou sem saber o que pensar, mas como estava acostumada com Bruno atendendo imediatamente os chamados de seu pai, não se preocupou. Olhou para Ivan, que a fitava com ares de quem sabia de quem era a mensagem. — O Bruno teve que ir embora. — Hm. — ele tentou não parecer interessado. — Você falou mesmo sério para eu terminar com ele e ficar com você? — Uhum. — Eu vou terminar. Ok? Amanhã mesmo. — Mesmo? — É... é melhor eu ser sincera e abrir o jogo... eu gosto do Bruno, mas eu gosto mais de você. Ele sorriu e a beijou de novo. Foi como estar no céu. † Ele estava em pé na esquina da encruzilhada mais próxima de sua casa. Sentia-se triste e seus olhos ardiam, mas os pensamentos estavam brancos e sem forma. O vento soprava morno à oeste, os carros passavam apressados e as pessoas também. Colocou a mão no pescoço, segurando o pingente de sua corrente.
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De repente tudo mudou. O ar parou por um segundo, a temperatura caiu tão depressa que de sua boca saiu vapor, o silêncio imperou. Os carros sumiram, as pessoas desapareceram e por fim, o vento mudou de direção, soprando para leste. A noite ficou tão silenciosa que parecia que era outro lugar. Foi que percebeu uma luz vermelha no alto de sua cabeça. Olhou para cima e deparou-se com um cartaz retangular de neon, reconhecendo o símbolo de uma pluma e um pote de tinta caligráfica. SEBO DA ESQUINA ABERTO A porta era a mesma, reparou. Marroquina e verde clara, envelhecida. Não havia maçaneta, mas a fechadura era antiga, de ferro. Cabia apenas uma chave. Aproximou-se da porta. Não dava para escutar nenhum som, mas o cheiro de incenso de sândalo escapava pelas frestas. Um cheiro tão familiar. Levou as duas mãos à corrente prateada que tinha no pecoço e puxou de dentro da camisa o pingente. Era uma chave de metal, antiga, nem de ouro e nem de prata mas com aspecto sujo e rústico, com arabescos, que poderia pertencer a um antiquário. A pequena chave coube perfeitamente na porta, girando duas vezes, a destrancou. A porta abriu tocando um sino, que ecoou pela noite silenciosa. Ele entrou.
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17 PASSOS TRÔPEGOS † O quão pirado o mundo podia ficar? Quantas coisas podiam dar errado ao mesmo tempo em tão pouco tempo? E por que as coisas tinham que dar errado? Por que as pessoas eram tão egoístas? Por que a maioria das pessoas não se importavam com nada a não ser com si mesmas? E por que, acima de tudo, essas pessoas conseguiam dormir tão tranquilas todas as noites depois de terem ferrado com a vida de outrém? Os pensamentos permeavam a mente de Bruno naquela tarde de verão em que, sentado em um parque, com os ouvidos entupidos por The Frozen Autumn, ele desejava que tivesse algo que simplesmente pudesse fazer contra as ondas que o engoliam. Eram ondas de tristeza e ira que o incapacitavam. Todos pareciam sair impunes de seus erros, mas ele quem arcava com a conta. Foi nesse momento em que ela sentou do seu lado. Cheirava à incenso de sândalo e vestia uma saia comprida de cetim verde esmeralda. As mãos finas e pequenas, de unhas compridas e delicadas. Ela segurou em sua mão, um toque firme, macio e quente, um toque de consolo. — Você parece aflito, querido. — sua voz rouca e sedutora soou por cima da música, como se fosse mais poderosa que os fones em volume máximo. Ele piscou os olhos azuis só porque fazia já muitos minutos que não piscava, isso trouxe abaixo suas lágrimas. Soltou um suspiro que estava preso na garganta e virou a cabeça na direção da mulher. Era uma garota asiática que mais se parecia com um
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fantasma ou um ser sobrenatural. Cabelos negros e curtos, pequena e magricela. Seus olhos negros como a noite tinham um brilho vermelho, nitidamente afirmando que ela não era dali. — Eu estou. — a respondeu. Talvez algo naqueles olhos tenham feito com que ele tenha dito a verdade mesmo sem querer dizer. Normalmente evitava contato social, já que todas as vezes que tentou, as pessoas o decepcionaram. — O que perturba sua alma, rapaz? — As pessoas de modo geral. Eu as odeio na maior parte do tempo... — Quem você odeia? — Todos que conheço. As vezes, até aqueles que não conheço. — E de todos, quem você odeia mais? — com sua outra mão ela deu tapinhas na mão do garoto, mas sua intenção não era machucar e sim de fazer um carinho. Comprimiu os lábios e olhou para a paisagem do parque. Uma mãe brincava com seus dois filhos, um homem jogava uma bolinha para seu cachorro, amigos andavam de bicicleta e o vendedor de pipoca estava entediado, bocejando. Pensou um pouco naquela questão. Quem ele odiava mais? — Não consigo decidir, há alguns que odeio com bons motivos. Há outros que odeio sem razão, só pelo prazer de odiar. — confessou o que escondia dentro de si. — O ódio é algo muito poderoso, mas usá-lo no momento de fúria é desaconselhável. O melhor a se fazer é guardá-lo para depois, montar uma boa estratégia... usá-lo quando for oportuno. — E como faço isso? — É simples... me fale da garota que faz você chorar e eu te ensino. — Ah... — ele soltou outro suspiro, vencido, sentindo-se mais transparente do que um plástico. — Priscila, a conheci na escola. Não posso dizer que gostei dela logo quando a vi, mas tenho que confessar que com o tempo, passei a amá-la. Começamos a namorar... foi um namoro legal.
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— Mas? — Recentemente descobri que ela tem um namorado... ela disse que não gostava mais dele, que não conseguia terminar porque ele é depressivo... eu tentei compreender. — E então? — Era uma mentira. Ela nunca teve intenção de terminar com ele. — ele deu de ombros. — Eu acreditei nela. — Acreditamos em quem amamos... o que é normal, porém um erro. — a moça falou com sapiência e um olhar carinhoso, de quem dá um bom conselho. — Não é porque nós amamos que as pessoas nos amam em retorno. Normalmente, não amam! — Eu sei. — E o que você fez? — Quando percebi que ela preferia ele, me afastei. As vezes eu chego a me odiar por ter sido tão idiota... — E você odeia o namorado dela? — É, acho que sim. — Por quê? — Porque ela preferiu ele a mim... porque ele existe. — E você odeia ela também? — Bastante. — Por quê? — Porque ela mentiu. Porque ela está feliz com a escolha que ela fez. Porque ela não se arrepende do que me fez. O que faz com que eu me odeie mais ainda... como foi que não percebi antes? Sou muito estúpido... — Tsc, tsc, tsc. Você está usando o ódio de maneira errada, percebe? — mais uns tapinhas na mão. — Você o cultiva e joga para dentro de você... quando deveria jogar neles. — ela fez um símbolo com a mão como se tirasse algo de dentro dela e jogasse em um casal que passou por ali e como se fosse a maldição de uma cigana, o casal largou as mãos e se afastou brigando. — E como jogo para eles? — interessou-se. Se houvesse um meio de fazê-los pagar, queria saber qual era.
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— Você sabe a resposta, porque os conhece. O que seria capaz de tirar o sono deles a noite? O que incomodaria mais? Mais uma vez ele se calou para pensar no assunto e descobriu, sem muito esforço que a moça estranha tinha razão: ele sabia a resposta. — Que ela se arrependesse da escolha que fez, mas nunca fosse capaz de recuperar o que perdeu... e para ele, acho que simplesmente conviver sabendo com o arrependimento dela bastaria, desde que anseiasse nunca se afastar. Seriam assim infelizes por toda a vida. — imaginar Priscila e Ivan em um sofrimento absoluto pelo resto da vida, criava um certo alívio, um misto de prazer. — Viu? Muito melhor. — ela sorriu, mas sua boca não tinha dentes e nem língua, era uma negritude como um poço sem fundo, um poço de pura escuridão, onde todas as coisas ruins se escondiam. Segurou no queixo do garoto e beijou-lhe lentamente os lábios, que hipnotizado, aceitou passivamente aquele beijo estranho de lábios gélidos. — Agora você pare de chorar, ponha em prática sua vingança, acabe com a tranqulidade deles, esmague-os! — a moça tirou do bolso de sua saia uma chave antiga feita de metal, colocando na palma do garoto e fechando seus dedos por cima. — Quando conseguir... venha me visitar que eu te darei um presente. E isso tinha sido há muito tempo atrás. † — Ah, Bruno. Há quanto tempo não te vejo...! — a princesa das trevas falou sentada em um sofá e bebendo chá. O sofá era branco, o tapete era oriental e a sala em que ela estava tinha as paredes repletas de livros. Apesar de estar falando com ele, Madame Daisy estava de costas, segurando uma xícara de porcelana verde e bordas douradas. Os cabelos continuavam lisos
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e curtos, ela continuava pequena e delicada, com a pele branca como gesso. — Eu não planejava voltar. — ele foi sincero. — Mas voltou com os mesmos problemas, suponho? — ela soltou a xícara na mesinha do centro. O incenso de sândalo queimava em um incensário feito de metal. — Venha aqui, deixeme ver você, sabe que não vou negar ajuda. Bruno contornou o sofá, Madame Daisy estava como sempre, não envelheceu nem um segundo. Ela sorriu com carinho pela negritude de sua boca e esticou a mão, os olhos brilhando de vermelho intenso, exatamente como ele se lembrava. Era uma asiática tão bonita que parecia uma boneca. — Que roupa horrível, querido. — falou assim que Bruno segurou em sua mão. Ela o puxou para sentar-se do seu lado, conferindo que ele ainda usava o anel feito de prata com a figura de um crânio de corvo, um presente dela. — Não é engraçado como você me odeia, mas sempre recorre a mim quando precisa de ajuda? — Não tenho mais ninguém... — a verdade era dura. — O que posso fazer por você? Aceita um chá? — Não, obrigado... seus chás são traiçoeiros. — Eu tento. — ela não se incomodou com a acusação. — E o livro? — Não está mais comigo, ele escolheu uma garota. — Tsc, tsc. — ela bateu na mão dele como sempre fazia. — Você o deixou entediado, não foi? Quanto tempo sem escrever? — Alguns meses... — Incrível, não achei que você fosse resistir ao poderes que lhe dei... E a menina, tem utilizado o livro? — ela estava genuinamente curiosa. — Pouco... ela tem defeitos, mas tem um bom coração. — Hmmm, você me parece aflito, querido... por acaso foi essa garota que o jinn escolheu que partiu o seu coração dessa vez? — É, foi sim. Com o mesmo garoto da outra, inclusive... — ele queria se afundar em sua própria tristeza.
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— A vida é mesmo intrigante! — Madame Daisy segurou uma risada, divertindo-se com seu sofrimento. — Você a odeia? — Não... — E o garoto? — Um pouco. Mas ele está só se vingando, portanto, foi merecido. — É sempre merecido, querido. Você já sabe disso. — E ela apertou o queixo dele em um outro carinho, as mãos gélidas. — E você quer o livro de volta? — Por um tempo, eu queria que ele escolhesse outra pessoa... mas agora me arrependo... Madame Daisy sorriu calmamente. Sua voz sedutora era capaz de criar conforto até mesmo nas piores situações. — Agora você o quer de volta? — Não... eu não quero aquele livro nunca mais... quando disse que me arrependo, é por causa dos danos que já causou nas mãos da garota. — Você precisa cultivar um pouco mais o seu ódio, querido. — Madame Daisy estalou os dedos e uma outra xícara de chá apareceu. — Você tem que odiá-la, ela fez mal a você. — Não consigo... gosto muito dela... — Aqui, tome chá comigo, querido. — Madame Daisy retirou a xícara verde de cima da mesa e entregou para ele. — Beba, beba... isso vai te fazer bem, sem truques desta vez, prometo. Bruno não disse nada. Aceitou a xícara de chá e deu um gole. Tinha gosto de morango e esquentou todo o seu corpo. Madame Daisy segurou a xícara tirando de suas mãos, afastou o objeto colocando-o em cima da mesa. — Eu vou te mostrar o que sua namorada está fazendo... em troca, você terá que fazer uma coisa para mim. Bruno bocejou cansado, sentindo o corpo quente por causa do chá, afinal havia um truque e Madame Daisy havia mentido mais uma vez.
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Ela segurou novamente em suas mãos, entrelaçando seus dedos gelados com os dedos dele e depois, depositou suas mãos em seu decote largo, onde os seios antes tão pequenos, eram agora macios e fartos como os de Julia. Com um entorpecer em todo o corpo que vacilava sua mente, Bruno viu a figura de Madame Daisy aos poucos tomar a forma de Julia, os cabelos macios e cacheados, a pele rosada e os lábios deliciosos. Ela o beijou, subindo por cima dele no sofá. † A segunda-feira amanheceu fria e chuvosa, com inúmeras nuvens cinzas no céu. Era um clima que Bruno gostava, mas a parte chata era andar de bicicleta na chuva e chegar na escola ensopado. Primeiramente teve que se desvencilhar de Carlos, que o segurou na porta logo que ele passou. O homem queria levá-lo até a escola e claro que Bruno não queria, afinal, ele estava um caco de olhos vermelhos e chorosos, precisando fazer a barba e de um belo banho. O de sempre. Carlos tirou uma boa grana da carteira, a recompensa pelo surto psicótico de domingo a noite. Nada demais, só umas cintadas porque eram mais de meia noite quando ele pisou em casa, cheirando a cigarro e bebida. Não era que tinha bebido ou fumado, mas sair a noite para uma boate gótica tinha esse resultado. Enfiou o dinheiro no bolso da jaqueta e saiu pela porta rapidamente, correu na chuva até a garagem e deparou-se com Julia logo ali. O que foi esquisito, embora ele soubesse bem o motivo. Ela estava fofa com uma capa de chuva com capuz feita de plástico grosso e cor-de-rosa, tamborilando os dedos na alça da mochila e molhada o suficiente para dar na cara que estava ali já há alguns minutos. Normalmente ela ficava em casa, tomando café da manhã esperando ele tocar a campainha e atendia sempre
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sonolenta. Estar ali de pé esperando há tempos e com olheiras só podia significar que ela não dormiu a noite. Evitou lembrar o que Julia havia feito com Ivan depois que ele foi embora do Strange House e atuando um meio sorriso, tirou o dispositivo da garagem do bolso. — Caiu da cama? — perguntou em tom debochado assim que abriu a garagem. — Estava preocupada contigo. — ela falou com os olhos grandes em cima dele e analisando-o. Provavelmente conferindo suas reações. — Por quê? Estou bem. — ele pegou a bicicleta, os capacetes e acessórios de proteção e fechou a porta da garagem. — É que... você saiu do Strange House ontem tão apressado que.. — ela hesitou, escolhendo as palavras. Sinal de que não queria esbarrar em nenhum tópico que pudesse comprometê-la. Pegou o capacete que o namorado oferecia, o vermelho era o dela, dentro estavam as cotoveleiras que seu pai insistiu para comprarem e as joelheiras. — Foi extremamente necessário. — ele subiu na bicicleta e colocou o capacete na cabeça. Por cima da calça, colocou as joelheiras e por fim, por cima da jaqueta, as cotoveleiras. — Desculpe ter te deixado sozinha e sem ter como voltar para casa. — Eu voltei com a Gabi. — Julia falou e mordeu o canto da boca nervosa. Terminou de vestir os equipamentos. — Te liguei e mandei mensagem... você não viu? — Não. — ele ligou o Ipod, colocou um dos fones. Colocaria os dois para não ter que ouvir a namorada se desculpando e se explicando de forma tão desonrosa, mas se o fizesse, ela ia encanar que ele estava bravo com ela. — Vamos? — Tá tudo bem mesmo? — Julia segurou em seu ombro. — Por que não estaria? — perguntou rindo. Tinha que tomar muito cuidado com o que ia dizer porque ela estava definitivamente tentando arrancar a verdade dele e caso se distraísse, as palavras voariam da sua boca. — Vamos? Já estou ensopado.
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— Ah, sim. — ela se enclinou para um selinho, mas ele desviou seus lábios. — Fiz um piercing agora, tá doendo. — era verdade, entretanto. Ele tirou todos os piercings que tinha e furou de novo. Só de sacanagem, ele estava com piercings iguais aos de Ivan, exatamente na mesma posição e da mesma cor. — Ah, sim. — Julia passou as mãos pelos seus cabelos, fazendo um carinho e o beijou no rosto. Sentou-se na garupa. — Que tal a gente sair hoje de tarde? — O que você preferir. — concordou. Tanto faz. † O estômago de Julia estava enfurecido, havia uma forte queimação que subia por seu esôfago e ela estava ligeiramente enjoada. O nervosismo estava batendo tão forte em seu corpo que ela não conseguia fazer nada além de tremer e bater o queixo, como se estivesse no dia mais frio de sua vida. — E então? — Bruno sentou do seu lado na cafeteria, trazendo um copo descartável com café, que entregou para ela. — Sobre o que quer falar? Julia teve um pouco de dificuldade de olhar para ele, mas sorriu quando pegou o café. Ele estava com as mãos geladas, nitidamente com frio por estar encharcado da chuva de tal forma que o cabelo escuro até pingava. Provavelmente ele acabaria doente desse jeito, sua boca perfeita estava levemente arroxeada. — Ah... eu... — pensou um pouco. Como deveria dizer? Ela queria abrir um diálogo e terminar o namoro. Só por isso escolheu sair com ele naquela segunda-feira tão chuvosa e tomar um café, que lembrava-a de Ivan. As memórias da noite anterior faziam-se firmes em sua mente e seu rosto ainda estava sentindo os arranhões da barba do rapaz, de tantos beijos que se deram. — queria conversar contigo... sobre a gente. — Tudo bem... o que há de errado? — Bruno perguntou dando um gole em seu café, esperando que fosse suficiente para
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esquentar seu corpo naquele frio. O ar condicionado da cafeteria estava ligado e suas roupas ensopadas. Até sua meia, dentro do coturno, estava gelada. — De errado nada... digo, nos damos bem num geral, certo? — Uhum. — E já estamos juntos há consideráveis meses, certo? — Quase seis meses. — Tem razão... parece que faz mais tempo... — A gente passa muito tempo junto, por isso. — ele sorriu e bebeu de novo do café. Julia estava com medo de pegar seu café da mesa e dar na cara que estava nervosa demais, pois certamente tremeria tanto que o café cairia do copo. Por isso, apenas tamborilou os dedos na mesa, batendo as unhas compridas e pintadas de cor escura. — E sobre o que você quer falar? — Eu... — Julia abaixou a cabeça desviando do olhar intensamente azul dele. Respirou fundo e com coragem, começou seu discurso preparando o fim do namoro. — Sinto que estamos nos afastando... — A gente? — Bruno não entendeu, suas sobrancelhas expressaram dúvida. — Eu não acho. — Não acha? — Não. — respondeu com convicção. — Estamos bem, não estamos? Não estamos brigando. — Bem... não somos o tipo de casal que briga o tempo todo sem motivos. — Então por que você acha que estamos nos afastando? — ao perguntar, ele passou os dedos pelos cabelos dela, por uma mecha prendendo os fios atrás da orelha. — Aconteceu algo? Ou está se preocupando a toa? — e ele beijou seu pescoço. — Ah... eu.. — Julia não sabia o que dizer. O toque suave e carinhoso a deixou sem jeito e derretida, um sorriso se formou em seu rosto. Não sabia o que ia dizer, queria terminar o namoro há segundos atrás, mas ali com Bruno beijando seu pescoço... tudo
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mudou. Bruno era capaz de fazer com que ela esquecesse de tudo, menos ele. — Eu te amo. — ele sussurrou em seu ouvido, interrompendo os beijos em seu pescoço para falar. Julia segurou em seu rosto e olhou firme em seus olhos claros. — De verdade? — De verdade. — ele respondeu, e inclinou-se para beijá-la. Naquela tarde Julia decidiu que mais uma vez iria enterrar o que aconteceu com Ivan e que nunca mais, nunca mesmo, iria procurar o garoto de moicano na vida. † — Mas você não contou para o Bruno o que aconteceu? — Gabi perguntou dando um gole no seu chá gelado, sentada na lanchonete na frente de Julia. — Não, claro que não. — Julia revirou os olhos. — Vou dar um passo adiante com ele e enterrar de vez esse assunto. — Tem certeza? — Gabi largou o canudinho cor-de-rosa. Elas saíram juntas da escola para passar uma tarde de “garotas”. — Quero dizer... é um grande passo... e você estava com o Ivan naquela festa de Halloween. — Já faz uma era que isso aconteceu, nem me lembro mais. — Faz duas semanas, apenas. E se você se apaixonou pelo Ivan? Julia sentiu suas faces queimarem. — Não me apaixonei, eu amo o Bruno. — Sei lá... o Bruno é esquisito. E o Ivan é mais esquisito que o Bruno. Sempre achei que você e o Arthur estavam destinados a ficar juntos. — Gabi comentou batendo os ombros inconformada. — E acho que você só ficou com o Bruno porque levou um fora do Arthur... — No começo, acho que sim, mas o Bruno me conquistou!
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— Se tivesse te conquistado, você não teria beijado o Ivan... em três ocasiões diferentes. — Gabi bateu a mão na mesa, enfatizando seu ponto de vista. — Você vomitou pelo Ivan, você nunca vomitou pelo Bruno! — Uau que romântico isso! — Julia revirou os olhos de novo, sendo irônica. — E você disse pro Ivan que ia terminar o namoro para ficar com ele. — Eu sei! — Julia remexeu o canudo do seu suco de graviola para misturar a água com a polpa da fruta. Respirou fundo aborrecida. — Por que você ainda não terminou? — Eu pensei muito, Gabi! — Julia confessou, mas Gabi fez cara de quem não acreditava. — Pensei mesmo... o Bruno ficou doente semana passada, lembra? Por causa daquela chuva... Eu fui cuidar dele todos esses dias e daí ele estava lá, com febre, de cama e sem voz... algo me deu um clique! Eu me preocupo muito com ele, detesto ver o Bruno triste ou sofrendo por qualquer coisa... me parte o coração... eu me atinei: amo o Bruno, não vou mais magoá-lo! — Mas e o que rolou com o Ivan?! Desapareceu?! — Eu não sei o que aconteceu com o Ivan, acho que foi pela aventura... por ele ser diferente, exótico... mas não é nada, não a ponto de me fazer terminar com o Bruno. — Acho que você teria terminado se o Bruno não tivesse dito que te ama. Aí você se encantou... e ficou com complexo de culpa quando ele ficou doente. — Gabi deu mais um gole em seu chá e soou impaciente. — Mas você vai acabar magoando o Bruno nessa história... ele gosta de você! Eu já fui traída, eu sei como é ruim. — O Nando não te traiu. Isso é invenção da sua cabeça! — Traiu sim! Todo mundo acha que eles ficaram juntos antes... — Mas o Nando disse que não.
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— E você acredita no traste? É claro que ele está mentindo... aquele calhorda! — Gabi terminou seu chá. Julia não disse, mas ouvir ela se referir a Nando como “traste” e “calhorda” doeu nela. — Sei lá... mas não vou mais procurar o Ivan. — Tem certeza Jujuba? Eu sei que o Bruno é seu namorado e que você quer ir adiante com ele... eu estaria na torcida segurando pompons por vocês e tudo mais... mas eu vi você e o Ivan juntos, seus olhos brilhavam de alegria... eu acho que você só está se sentindo culpada pelo Bruno... no fundo, é isso, não é? — Claro que me sinto culpada! Eu traí o Bruno três vezes... eu sou suja, suja, suja! O Bruno nunca fez nada de mal pra mim, ele é fofo e sempre me apoiou quando eu mais precisei... poxa e eu... eu sou um monstro! — Você não é um monstro... essas coisas acontecem. — Você acha o Nando um monstro, por que eu sou diferente? — Porque é. Você se importa com o Bruno e o Nando não se importou comigo. É diferente... além do mais, sou sua melhor amiga. O que você decidir, vou apoiar, tá? — Eu preciso fazer dar certo entre eu e o Bruno... — Julia chacoalhou a cabeça desapontada. — Enquanto você evitar o Ivan pode até ser que dê certo entre vocês. Mas marque minhas palavras: é só o Ivan aparecer que você vai se arrepender de não ter terminado. — Vira essa boca pra lá... — E quero saber como você vai fazer quando transar com o Bruno e ele perceber que você não é mais virgem. — Gabi sentenciou. Julia enfiou o canudo de novo na boca para não ter que responder. Meu Deus, como ela era suja! †
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Deitada em sua cama, com Lord Byron por cima de suas costas, Julia estava encarando uma página em branco do livro dos desejos. Ela queria realizar alguns pedidos, mas estava com medo dos resultados. Queria ser capaz de pedir que sua mãe ficasse bem, mas não queria comprometer o bebê. Queria que Gabi perdoasse Nando, mas não queria estragar o namoro dela com Caio, afinal, ela parecia feliz... embora Nando estivesse vivendo um verdadeiro inferno. Queria também fazer algo de bom por Arthur e Cidinha, porque sempre que eles ligavam era um martírio ter que ouvir Cidinha em crise por causa de sua aparência e Arthur sofrendo com a depressão da namorada. Queria poder apagar o que rolou com Ivan, mas não queria que ele esquecesse dela tal como Priscila esqueceu-se de Bruno. E queria deixar tudo bem entre ela e Bruno. Ela leu o último pedido que havia feito: “Quero que meu pai arranje um bom emprego e que paguem bem, sem ser um trabalho ilegal ou perigoso”. Seu pai conseguiu um bom emprego e com vários bônus como vendedor. Tudo havia dado certo, porque daria errado agora? Respirou fundo e escreveu: Quero que a Gabi perdoe o Nando e que eles voltem a ser amigos. Ótimo, amigos não são necessariamente namorados! Com certeza esse daria certo! Quero que minha mãe tenha o bebê sem riscos para ambos.
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Aê! Mais um que daria certo! Estava ficando boa em semântica! Era um trabalho difícil já que não havia muito espaço para escrever e um erro de grafia causado pela letra muito diminuta poderia por tudo a perder. Quero que a Cidinha e o Arthur fiquem sempre juntos! Ooops. Talvez esse estivesse um pouco amplo demais, mas não conseguiu pensar em nada melhor, ao menos seriam inseparáveis. E agora, ela precisava escrever um pedido para Ivan esquecer dela. Seria o certo. Ela fez isso com Bruno e Priscila, devia fazer isso com ela e Ivan. Respirou fundo, colocou a ponta da caneta e escreveu “Quero”, quando estava no meio do “o”, ouviu uma batida na janela, no susto, o “o” voou longe com um traço. Virou-se para a janela e Lord Byron berrou: — Miaaaaau! — esticando-se por inteiro. Era Bruno, lógico! Ela girou na cama fazendo Lord Byron sair de cima dela e ficou em pé, soltando o livro por ali. Abriu a janela deixando o vento quente da primavera de novembro entrar. Bruno passou para dentro, com dificuldade, sentando no chão. — Bru? O que foi? — Julia prendeu a janela aberta. Estranhou porque o namorado não ajudou a fechar a janela como sempre fazia. Abaixou-se do lado dele, reparando que ele estava com as roupas úmidas e o cabelo também. — Você tá bem? Porque suas roupas estão molhadas? Aquela manhã e tarde estava calor, muito calor. Ele não estava molhado da chuva, com certeza. — Estou bem... — Ele disse, mas tossiu, ainda gripado. A tosse estava bem forte, arranhando o pulmão. Julia tirou sua temperatura colocando uma mão em sua testa e constatou que estava muito alta. Ele estava melhorando, o que tinha acontecido? Percebeu que ele estava com a boca sangrando e ligou os pontinhos. Maldito Carlos!
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Ela ficou em pé, abriu a porta do quarto e pegou duas toalhas no corredor, voltou para dentro e cobriu Bruno com elas, ajudando a secar o cabelo dele e suas roupas. Que coisa mais louca... será que Carlos tinha colocado ele dentro do chuveiro frio? Mas isso nem fazia sentido! Não quis perguntar porque sabia que Bruno não gostava de falar no assunto. No banheiro do seu quarto ela pegou algodão para limpar a boca de Bruno, que ainda sangrava. Ajudou o namorado a ficar em pé o levou para a cama. — Tira essas roupas, Bru... vou colocar na secadora. — ela tentou tirar sua camiseta. — Não, não. — protestou, segurando a camiseta. A voz rouca, quase afônica. — Deixa, eu tô bem. Julia se afastou e Bruno deitou na cama cansado, ainda enrolado nas toalhas. — Você tá doente, com febre... se ficar com elas vai piorar muito, pegar uma pneumonia sei lá. — Julia falou. Lord Byron subiu no colo de Bruno e se esfregou na camiseta dele. — Shh, Lord Byron se comporte. — ele empurrou o gatinho para o lado e tossiu. Julia sentou do lado dele na cama e acariciou seus cabelos. — Bru, por favor... tira essa roupa molhada! — Shhh... — ele a fez deitar do lado dele e a abraçou. — Tiro depois. Agora, só fica aqui, por favor. Ela continuou fazendo carinho no namorado, consolando-o até que ele dormiu, entre tosses. Ela percebeu quando ele dormiu porque a respiração ficou mais densa e as tosses diminuíram. Sentou-se na cama. Será que ele ficaria bravo se ela tentasse tirar suas roupas? Pelo menos a camiseta e as meias ensopadas, para ele não ficar tão doente. Julia começou pelos sapatos que estava desamarrados e as meias molhadas, ele nem se mexeu. Colocou nele meias dela, que eram cor-de-rosa. Deu risada baixinho e tirou as toalhas de cima dele, para tirar a camiseta preta de mangas compridas, essa daria trabalho. Ela levantou a camiseta de suas costas e parou.
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Masquep...! pensou um palavrão na hora que viu os vermelhões nas costas do namorado. Seus olhos se encheram de lágrimas e sem pensar duas vezes, ela pegou o livro que estava em cima da cama e escreveu (usando o “quero” anteriormente escrito): Quero que Carlos se torne um pai amável e protetor, incapaz de fazer mal ao filho. E isso provavelmente resolveria os problemas de Bruno.
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18 O PRINCÍPIO DA INÉRCIA † Algo estava muito estranho. Foi o que Bruno pensou assim que abriu os olhos e percebeu que estava no quarto de seu pai. Reconheceu a parede esverdeada, a cortina verde escura que tampava a janela da varanda e os moveis de mogno. Nunca era permitido entrar ali (a menos para varrer e passar o aspirador de pó), então o que ele estava fazendo deitado no meio da cama, usando os pijamas do pai? O mais bizarro de tudo, foi constatar que Carlos estava sentado na ponta da cama, acariciando seus cabelos. Era como estar em uma realidade alternativa.. e se não estivesse sonhando, só uma coisa poderia ter acontecido, constatou. Ah, não! — Filho? Está se sentindo melhor? — Carlos perguntou com a voz suave. Meu Deus! Filho? Ele tinha escutado direito?! Não ia ser imprestável nem nada do tipo? O ar até prendeu em sua garganta, mas ele tossiu, ainda gripado. — Está na hora do seu xarope. — Carlos o beijou na testa, ele teve que se sentar com o susto. Carlos pegou o xarope do criado mudo e colocou um pouco em uma colher. Virou-se para Bruno. — Olha o aviãozinho! — e ridiculamente fez um barulho de avião levando a colher para a boca do filho, porém Bruno ficou estático. — Abre a boca meu bem.
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Bruno até abriu a boca, mas foi mais pelo “meu bem” ter causado uma espécie de choque do que qualquer outra coisa. Meu bem? Que raios! Carlos enfiou a colher com o xarope para dentro e Bruno quase engasgou. Era xarope de limão, eca! — Ótimo. Agora volte a dormir, você ainda está muito doentinho. Bruno quis vomitar. Especialmente quando Carlos o abraçou com delicadeza, enchendo-o de beijos na cabeça. Mas talvez se dormisse, ele pudesse fazer aquele delírio maluco desaparecer. Acabou fechando os olhos e escorregando para dentro do cobertor. Carlos fez carinho em seus cabelos de novo, suavemente deslizando os dedos . — Consertei a porta do seu quarto. — o homem falou como que orgulhoso daquilo. Bruno sentiu um nó se formar em seu peito. — E não se preocupe com a máquina de lavar roupa, já dei um jeito naquela lata velha. Ufa, certo? “Dar um jeito nela” era típico. Algo que Carlos diria quando queria dizer que detonou a coitada. Era o mínimo por ela ter explodido o registro e ter voado água para todos os lados inundando a lavanderia, a cozinha... e até a sala. Já tinha algumas belas semanas que a máquina estava quebrada, pois fora martelada por Carlos na última ocasião... e pensando bem, fazia mais sentido que Carlos tivesse consertado a porta do quarto por se sentir culpado em encher Bruno de cintadas por causa da explosão da máquina. — Agora a gente tem uma máquina de lavar roupa e uma secadora. — Carlos continuou como uma verdadeira dona de casa. — Comprei uma que faz tudo sozinha, lava, seca... cabem 13kg! Automática. — Você o quê? — Bruno tornou a acordar e sentou-se na cama depois dessa. Sua voz saiu afônica. Sentiu tontura e viu o quarto inteiro girar. Não, não, não. — Comprei uma nova. — E o que você fez com a antiga?
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— Mandei consertar, oras. — quase riu, achando graça da pergunta. — E doarei para quem precise. Por que você está preocupado com uma máquina de lavar roupa? — Nada... — o problema não era a máquina. — Você está com fome? Eu fiz uma canja. Bruno balançou a cabeça que não, tonto demais para falar. O mundo parecia rodopiar dentro daquele quarto. Era possível que Julia tivesse feito algo com Carlos? Ela teria usado o livro para desejar aquilo? Que tosco! — Se tiver fome, me chame. — Carlos mais uma vez segurou em sua cabeça carinhosamente depositando um beijo em sua têmpora. — Estarei lá em baixo. Tirei folga para cuidar de você. Ele ia vomitar! Isso era o fim do mundo! Quando Carlos saiu do quarto, Bruno já estava sentindo o sangue ferver. Ótimo, se era isso que Julia queria, ela tinha conseguido! A garota mexeu onde não devia e isso teria volta. Irrevogável. † Ele nunca agia por impulso, nem mesmo nos casos mais extremos. Entretanto, não foi o que aconteceu daquela vez. Bruno bateu na janela de Julia naquele dia pela tarde assim que imaginou que ela retornou da escola. Julia não demorou muito para abrir e travar a janela, ele entrou. A menina estava se preparando para sair, e vestido preto de renda e descalça. Ela sorriu, ainda sem maquiagem e o abraçou. — Bru! Você está melhor? Estava indo pra sua casa! Ele segurou no braço dela e a afastou dele com um empurrão violento. Julia quase caiu no chão, mas se equilibrou por fim. — Que merda você fez? — a voz rouca, falhando, porém carregada de irritação.
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— Como assim? — ela ficou branca como um giz. — Do que você está falando? — Meu pai enlouqueceu e obviamente só pode ter tido a ver com você! — ele quase berrou, se tivesse voz para isso. — O que você fez? — O que era preciso! — ela se aproximou dele, os olhos com lágrimas, ela o abraçou de novo, ele segurou em seus pulsos mantendo-a longe dele. — Você acha que é legal ver como você ficava ao ser espancado? Meu coração parecia que ia falhar! — Eu disse pra você não se meter nisso! — Ai Bru, você tá me machucando! — ela tentou se soltar, mas ele estava segurando firme. — Eu nem cheguei perto de te machucar! — irritado, ele a empurrou tão forte que ela bateu a cabeça na parede do outro lado do quarto. — Você é louca! Só pode ser louca! — Ai! — ela colocou a mão na cabeça. Que grosso! — Eu queria te ajudar! — E por acaso eu pedi a sua ajuda? Não, eu não pedi! Eu disse pra você ficar fora disso! Quão difícil é ter carácter pra você? — Você não sabe o que está dizendo! — Não, eu sei sim. Você começou a escrever nesse livro mesmo tendo me prometido que não ia fazer. — ele fez soar como o pior crime. — Daí você achou que podia resolver o que havia acontecido entre eu e a Priscila de um jeito que fosse mais vantajoso para você... — Não foi isso! — ela tentou protestar, mas era e ela sabia que era. Foi puramente por ciúmes que ela fez o desejo para Priscila esquecer de Bruno, desse jeito Bruno seria só dela. — Sendo que era você quem estava se agarrando com o Ivan todo esse tempo! Julia arregalou os olhos e abriu a boca. — O quê? — Você acha que eu não já sabia? — Não é o que você tá pensando!
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— Não quero ouvir o que você tem a dizer. — ele tampou os ouvidos. — Não estou saindo com o Ivan foi só uma vez! — Julia berrou, se fazendo ser escutada. Lágrimas escorreram de seus olhos como um riacho desgovernado. — Eu sei exatamente o que aconteceu e quantas vezes aconteceram. Não tente isso comigo, eu não me importo o quanto você chore! — ele destampou os ouvidos, mas continuou aborrecido. As sobrancelhas escuras curvadas por cima dos olhos celestias, antes tão sem emoção, mas agora, carregados de ódio. — Tudo bem eu admito, eu fiquei com ele algumas vezes, mas eu te amo! — Ama? — ele quase riu da piada. — Você arruinou a minha vida, isso não é amor. — Bruno, não fala assim... — Me esquece. — e ele se virou para sair pela janela. Julia levantou-se e rapidamente o alcançou, impedindo-o. Segurou pelo braço de Bruno, mas ele a empurrou de novo, para longe: — Não escoste em mim. — avisou. — Não fale comigo. — Bruno por favor, vamos conversar. — implorou. — Não tenho nada pra conversar com você. — Você tem que me ouvir! Me deixar me explicar! — Pra você mentir de novo? Não, muito obrigado. — e mais uma vez, tentou sair. — Se você sair por essa janela eu vou escrever no livro para você voltar! — em desespero, segurando na camiseta dele, ela berrou. — Você pode tentar. Mas você não vai gostar de descobrir o que acontece ao escrever meu nome lá. — e por fim ele se soltou. Julia ficou sem reação. Ele saiu. A menina ficou sozinha, sentou-se no chão e chorou copiosamente, abraçada com suas pernas. †
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O céu ia desabar pois estava negro e cheio de nuvens que cuspiam raios estrondosos, como se uma tempestade se formasse prestes a aniquilar qualquer sombra de alma viva que teimasse em vagar nas ruas naquele instante. O guarda-chuva infantil com a forma de um sapo verde de olhos para cima parecia querer escapar das mãos quase congeladas de Julia que segurava-se a ele com toda força, praticamente rezando para ele não voar. Estava encharcada, seu uniforme escolar parecia feito de água e seus pés, dentro da bota, pareciam imersos em um aquário. Um carro passou levantando água da rua e escoando em cima de Juia em uma cachoeira suja. Ecaaaaa!, ela pensou. Sem tempo para dramas ou nunca chegaria a tempo no colégio! Devia ter aceitado a carona que seu pai ofereceu logo pela manhã, mas recusou quando um raio brilhante de esperança a fez acreditar que ela poderia esperar por Bruno... quem sabe? Esperou cinco, quinze, trinta... quarenta minutos na chuva! Na chuva! Esperou em vão, já que ela descobriu mais tarde que Bruno já estava na escola através de uma mensagem de Gabi, que lia-se: “Jujuba, você perdeu a hora? A prova começa em 20 e o Bruno mudou de lugar na sala, vocês brigaram, não foi?” E depois veio outra, enquanto ela subia a ultra-mega-superhiper ladeira que dava acesso aos portões principais (único meio de entrada depois que as aulas começavam) esbaforida, encharcada, com dor na panturrilha de tanto forçar seus passos. A segunda mensagem dizia: “Re-loooou, Jujuba?! Você não esqueceu que hoje a prova é no primeiro período, não é?
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Corra, corra, o Prof. Ferrari está com cara de boi amassado!” Que, pensando bem, nem fazia sentido. O que era um boi amassado? Não evitou pensar se a expressão usada por Gabi se referia ao fato de que o professor estava com cara de sono ou com o enorme bigode de Senhor Feudal dele todo retorcido de um lado, o que as vezes acontecia. Conseguiu entrar na escola. Ótimo! O bedéu não estava nos portões e os cadeados não estavam trancados (ufa!) e correu passando pelo pátio e indo direto para o segundo andar do prédio onde ficava a sua sala. Bateu na porta, mas não esperou o professor dizer nada, apenas entrou, pingando a chuva de sua roupa bem em cima da prova de Isadora, uma garota que sentavase do outro lado da sala, mas que provavelmente tinha sido realocada para a prova. — Ai! — Isadora reclamou puxando a prova para perto do seu corpo, limpando o borrão no gabarito. — Professor! O professor já estava olhando o que acontecera, sentado em sua mesa com uma sobrancelha grosseira e grisalha erguida, e a cara de boi amassado na verdade era de azedume, como Julia descobriu assim que os olhos escuros do homem bateram sobre ela. Ouch! — Posso entrar? Ele não a respondeu. Dramaticamente olhou no relógio de pulso erguendo o queixo e abaixando o nariz de forma esquisita, torceu a boca de um lado para o outro e por fim, falou com a voz irritadiça: — Já entrou, não é? Sente-se e pegue a sua prova. — tirou uma poeira do relógio. Provavelmente, nem havia poeira alguma. Julia engoliu seco. O ar quase se prendeu em sua garganta gelada de frio. Ela atravessou a sala muda, mas os chaveiros de sua mochila atrapalharam o silêncio em que a classe se encontrava. Tirou a mochila e se sentou em seu lugar, apenas para estranhamente reparar que Nando estava de volta por ali.
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Ele sorriu para Julia, com o lápis preso entre os dentes e a garota sorriu de volta, tentando secar as mãos na roupa sem muito sucesso. O professor parou do seu lado, entregou a prova e Gabi enviou um polegar para cima em sinal de aprovação por ela ter chego a tempo de fazer a prova. Entristecida, Julia suspirou e olhou para o outro lado da sala, fitando a cadeira em que Bruno costumava se sentar desde o início do ano, antes de que eles começassem a sair juntos. Ele estava lá, com aparência de doente e distraído demais para prestar atenção ao que acontecia a sua volta, tamborilando os dedos na mesa enquanto olhava seus próprios movimentos. Ela conhecia aquele olhar, porém, e era de decepção. † Por causa da chuva, foi impossível sair da sala de aula durante o intervalo e alguns alunos aproveitaram para estudar para a próxima prova. Gabi estava falando como ela e Nando voltaram a ser amigos, mas Julia nem estava prestando atenção. A voz de sua melhor amiga parecia só um zumbido esquisito dentro da sua cabeça, que estava mais pesada do que o normal. — Ei, você nem está me escutando! — a ruivinha percebeu, entretanto, reparando que Julia parecia presa em uma outra dimensão. Estalou os dedos nos olhos de Julia. — Rê-lou! — Julia piscou, focando nela enfim. — O que houve? Você está péssima! — Ah então você resolveu desculpar o Nando... — Julia acrescentou na discussão, sendo que nem era mais esse o assunto. — Isso foi há horas atrás, já estou te contando outro babado! — Gabi bufou. — É algo que totalmente te interessa! — Não interessa... — Julia fingiu um sorriso amarelo. — Vocês vão voltar a namorar? Gabi piscou algumas vezes na sua frente não acreditando que Julia estivesse fazendo uma pergunta daquelas. Nando rolou de rir.
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— Não, claro que não! — ele quem respondeu. — A Gabi tá namorando o Caio, lembra? — Ah é... — Julia riu de si mesma. Provavelmente para fazer os dois voltarem ela devesse escrever no livro para Gabi esquecer de Caio. E foi de repente que Julia começou a chorar sem perceber, as lágrimas escorrendo pelos olhos. Nando se arrepiou inteiro de pavor e Gabi arregalou os olhos de forma brusca, o que foi engraçado. A garota ficou de pé e puxou Julia pelo braço, arrastando-a dali imediatamente e, como uma melhor amiga deve fazer, socorrendo-a! † Gabi ajudou Julia a lavar o rosto e ofereceu a ela seu batom. — Eu já imaginava. — Gabi fez uma expressão entristecida. — Logo que ele chegou sentando láaaa do outro lado do mundo e nem disse oi pra mim ou pro Nando. Foi por causa do Ivan? — Não... foi outra coisa. Mas o Ivan surgiu no meio da briga e tudo mais... — Julia recomeçou a chorar. — Ai Gabi me ajuda! Por favor! — Primeiro se acalme! Respire fundo! Isso. Eu vou pedir pro Jaime falar com ele... sei lá. Assim que a situação estiver sondada, eu te ajudo... se puder. — Gabi quase quebrou a sua unha ao morder de nervoso. Guardou as mãos no bolso. — Mas o que ele disse quando surgiu o Ivan na conversa? Você contou tudo? — Não... não foi assim... ele disse que já sabia, que não queria me ouvir... nem me deixou explicar. — Ihhhh... — Gabi fez som de “mal sinal”. Julia ergueu os olhos molhados. — Calma, vou falar com o Jaime, tá? Olha... — e pegou do bolso o celular. — Eu vou mandar mensagem pra Dê e ela pede pro Jaime conversar com o Bruno... mas não era melhor você deixar terminar? Você teve aquele lance todo com o Ivan e de repente é uma boa de... — Não! — Julia nem deixou a amiga terminar, tapando os ouvidos. — Não quero nem saber do Ivan! — e jogou fora o papel
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em que secou os olhos no lixo. — Vamos voltar pra sala... se o Jaime não conseguir nada, eu falo com ele! — Julia, é melhor você se poupar disso. — e foi a primeira vez, em séculos, que Gabi usou seu nome ao invés do apelido carinhoso. Soou como uma bronca. — Digo, dê um tempo pra ele pensar. — Ele me odeia, no que ele tem que pensar? — Em te desculpar, o que você acha? Se você der espaço, como o Nando me deu, com certeza ele vai te desculpar. — Ah... — Julia não disse nada, mas naquele instante, ela descobriu o que precisava ser feito. A única forma de conseguir que Bruno a perdoasse por tudo (Ivan era só uma das coisas listadas e talvez, no topo da lista), era se ela escrevesse no livro que ele devia fazer. Era anti-ético, será? Não era o jeito mais correto de conseguir o perdão do namorado, mas ela não tinha outra escolha. Ele não estava deixando nenhuma outra escolha! † Na saída da aula, depois das primeiras duas provas da semana, Bruno não podia acreditar em seus próprios olhos: parado em pé com um guarda chuva gigante estava Carlos, de terno e sobretudo vindo do trabalho, segurando um casaco nos braços e na porta do pátio do colégio, ao lado de uma freira que era a coordenadora geral. Os músculos de seus ombros enrijeceram e seu maxilar travou diante daquela visão, mas a tensão que explodia dentro de seu corpo ficou totalmente fora de contexto quando Carlos abriu um sorriso assim que o viu. — E aí filhão?! — O homem pareceu animado e Bruno quis morrer! A visão de um pai patético conseguia ser muito pior do que se Carlos estivesse bravo com alguma coisa que ele fez. E tinha feito: deixou todas as torneiras abertas antes de sair. — Como foi a prova? A Reverenda estava me falando que você
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sempre falta na aula de educação física, isso explica essa sua resistência baixa e porque você anda sempre gripado. Bruno não respondeu e aproximou-se rapidamente na intenção de arrastar Carlos dali para o carro e sumir antes que algum de seus amigos os visse! Imagina o mico! — Ano que vem teremos vagas em diversas atividades extra curriculares novamente, por que você não procura o departamento de esporte e entra em um dos times? Além de melhorar seu condicionamento, vai fazer novos amigos. — A coordenadora, que era baixa e muito magra, sugeriu com um sorriso doce no rosto. — Sabe, é uma ótima ideia! — Quem respondeu foi Carlos, ainda animado. Ele parou de repente como quem se lembra de alguma coisa e estendeu o casaco em suas mãos, jogando para cima de Bruno. — Vista pois esfriou demais o dia! Vamos, ficar aqui nessa ventania não vai te fazer nenhum bem. Obrigado, reverenda Lúcia. — ele estendeu a mão para um aperto amigável. A reverenda lançou um sorriso amável para os dois, como se estivesse orgulhosa de Carlos por ser um pai tão atencioso. Teve que vestir o casaco, mesmo que estivesse até com calor tamanho o desespero que sentia naquele momento. Carlos não ia gritar? Puxar pelos cabelos e dizer que ele era um irresponsável por faltar na aula de educação física?! A sensação que ele experimentava era a de ter entrado por um espelho, tal como Alice, e saído na Terra do Contrário! Seu pai estava lá com um sorriso bobão na cara, como se ter um filho preguiçoso fosse a coisa mais linda do mundo. Carlos passou o braço pelos ombros de seu filho e o abraçou ao abrir o guarda chuva, lembrando de puxar o capuz para cobrir sua cabeça, protegendo-o do frio e da chuva. Bruno sentiu coceira por causa do abraço de urso do pai, era como ser alérgico ao contato. Carlos guiou o garoto pelo pátio escolar até a MercedesBenz estacionada na porta da escola, onde normalmente era proibido estacionar. O carro de Carlos estaria atrapalhando o trânsito se Bruno não tivesse esperando até o último segundo para entregar a prova,
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evitando assim falar com qualquer um que tentasse, como Jaime, por exemplo, que enviou mais SMSs naquele dia do que em todo o tempo de amizade, todos escritos “Podemos conversar?”. Era tão óbvio que Jaime estava sendo enviado como um primeiro viajante de uma expedição para conhecer o terreno e saber se era seguro falar com ele sobre Julia. Bruno não queria falar sobre Julia com ninguém, nem pensar no assunto. Carlos abriu a porta e ficou como um poste inerte esperando ele entrar e Bruno sentou-se no banco da frente, tirando o capuz de cima da cabeça. Ele passou a língua entre os piercings de argola que agora usava, ponderando se devia tentar iniciar uma briga com Carlos para tentar provocar alguma reação que não fosse aquele sorriso estúpido tatuado na cara de seu pai... e foi que levou um susto! Gabi deu um tapa na sua cabeça, esticando a mão pelo banco de trás: — Êeee Bruno que demora pra fazer a prova! — a ruivinha falou divertindo-se. — Se você levou anos em uma provinha tosca de Sociologia, imagina só na prova de Matemática! Primeiro ele teve que se recuperar do susto, depois, seu cérebro teve um grande trabalho para entender que droga estava acontecendo e porque Gabi estava dentro do carro de Carlos balançando o seu pirulito de coração. Ao virar-se para encarar a ruivinha sorridente (e convenhamos, muito cara-de-pau), ele viu que Julia também estava lá, olhando pra ele mordendo a boca, as faces vermelhas e os olhos enormes e magnéticos em cima dele. Não só isso, Julia estava com as roupas úmidas e a camisa branca marcava as rendas do seu sutiã amarelo, de um jeito que dava pra ver tudo. — Eu sou muito bom em matemática. — ele respondeu e virou para frente, evitando encarar Julia tempo demais. Tortura. — Ótimo! — Carlos sentou-se fechando o guarda-chuva e colocando-o no chão perto do câmbio automático. — Dessa forma pode ajudar suas amigas com os estudos! Aproveitando... por que não almoçam em casa hoje? — Girou a chave e mudou o câmbio
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de P para D, encarando Julia pelo retrovisor. — Assim a sua mãe pode descansar mais tranquila essa tarde! Eu devia ter tocado a sua campainha, não sabia que você estava sem carona hoje de manhã. — Que isso, não se preocupe... — Julia tentou se esquivar. A voz soou hesitante, mas ela sorriu. Não é um saco quando seu pai resolve se meter em seus assuntos e convida seus amigos para almoçar e estudar com você justo no dia que você menos quer ter que encontrar com as pessoas? Bruno ponderou que deveria fingir que estava muito doente, mas isso também implicaria em Carlos representar aquele outro papel ridículo de enfermeiro. Melhor engolir seco e ficar quieto. Foi isso que Bruno fez, se afundou no banco de couro do carro e procurou nem se mexer demais, para que sua expressão aborrecida passasse despercebida. O celular de Julia tocou um som semelhante a um “blip”, indicando uma mensagem. Gabi deu uma risadinha após espiar o visor. Julia prendeu a respiração e no silêncio do carro, Bruno escutou Gabi sussurrar: — Responde, Jujuba! — Não Gabi! — Julia respondeu com outro sussurro, mas fez ares aborrecidos, guardando o celular na mochila de novo. Bruno se afundou mais ainda no banco e colocou uma mão na frente dos olhos. Ah, pelo amor de Deus! Ela não ia responder uma mensagem de Ivan dentro do carro enquanto ele estava lá, ia?! O que era aquele Mercedes-Benz afinal? Uma porta diretamente aos nove círculos do Inferno por acaso?! Algo parecia querer explodir dentro dele, como se o coração estivesse congelando e o sangue fervendo, ao mesmo tempo. Bruno não disse nada, entretanto e fingiu que nem percebeu as risadinhas de Gabi ou o fato de que a ruivinha estava tentando tirar o celular de dentro da mochila de Julia e isso iniciou uma guerra de cosquinha no banco de trás do carro. Evitou pensar na mensagem que Julia recebeu de Ivan, e, especialmente, afastou da
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mente qualquer pensamento que o levasse a imaginar a cena de Julia passando o número de celular para Ivan. Tudo bem, ele até imaginava que Ivan fosse procurar dar em cima de sua namorada logo que ele aparecesse com uma... mas porque Julia tinha que cair na conversinha mole dele?! Isso sim que era um golpe fatal. † A mesinha de centro da sala estava entupida com os livros de matemática, uma jarra de suco de amora, copos, biscoitos amanteigados e torta de chocolate gianduia. O jeito com que Julia estava debruçada sobre seus cálculos, com os cabelos ondulados por cima da mesa tentando resolver um exercício de trigonometria, era no mínimo engraçado. Antes de se sentar ali para estudar, Julia trocara de roupa e portando, vestia seu moletom de caveiras por cima de uma regata branca de um jeito desleixado deixando o ombro esquerdo à mostra aparecendo a alça do sutiã preto e leggings; seu esforço no exercício era mínimo e totalmente dramático: ela apagava os cálculos inteiros vez ou outra, espiava os de Gabi, apagava de novo, corrigia, mordia o lápis para pensar, formava um sorrisinho como se tivesse pensado em algo e tornava a rabiscar... por fim apagava tudo de novo e a sua folha já estava toda marcada. Por isso, ela virou a folha do caderno e começou de novo, ajeitando de qualquer jeito a alça da blusa por cima do ombro, mas sem cobrí-lo por completo e puxou os cabelos todos para um lado, destampando a visão de seus seios. Suspiou chateada como se precisasse de ajuda, enchendo as bochechas de ar e fazendo uma cara de desapontada com si mesma enquanto jogava os dois ombros para baixo derrotada. Gabi estava com o pirulito na boca, digitando um SMSs pro namorado, coisa que ela estava fazendo há pelo menos meia hora sem parar, mensagem daqui, mensagem de lá, uma risadinha aqui e outra acolá... e o exercício continuava pela metade. Ela também
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nem queria estudar e estava óbvio que ela só estava acompanhando Julia naquela tentativa de reaproximação com o ex-namorado. Bruno estava sentado na ponta oposta à Gabi, ao lado de Julia. Posição estrategicamente escolhida para que ele pudesse observar os cálculos de Julia e todos os sinais que as garotas se enviam quando conversam entre si sem palavras. Gabi enrolava os cabelos nos dedos quando estava prestando atenção e balançava o pirulito freneticamente quando queria que Julia reagisse de outa forma; mas agora ela estava procurando fingir desinteresse na mesa e forçar uma situação onde Bruno não tivesse escolha e tivesse que falar com Julia, afinal, a garota estava em pânico com seus cálculos, será que ele não podia ver? E já que elas estavam representando um típico joguinho feminino, Bruno se viu obrigado a representar um típico joguinho masculino. Ele espiou os cálculos de Julia como se precisasse olhar de perto para constatar que estavam errados; inclinou o corpo por cima de seu caderno apoiando-se em seus cotovelos e abriu a boca para falar, tomou ar e desistiu. — Não estou acertando. — Julia falou como se fosse alguma novidade e poupando-o do esforço de precisar falar. — Já tentei fazer esse cálculo de mil maneiras, não consigo achar o “x”. — e ela passou os dedos elegantes pelos cabelos como se estivesse cansada, mas estava só flertando. Ergueu os olhos para ele. — Você conseguiu? — Ah... — Bruno endireitou-se e espiou o seu cálculo, como se precisasse analisar para saber que estava correto. — Não sei. Dessa vez foi Julia que se inclinou para olhar o caderno dele, esticando a mão por cima das folhas brancas pautadas de cinza. Do jeito que ela ficou, dava para ver a barra do sutiã por entre seus seios, que ele nem evitou olhar. — É por isso que odeio trigonometria, olha o tamanho desse cálculo! — ela reclamou e se inclinou mais um pouco, dessa vez pro lado e puxou o cabelo todo para o lado oposto, como se oferecesse o pescoço à um vampiro. Ele teve vontade de matá-la
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naquele instante, especialmente por causa do decote. — Dezesseis linhas! — e ficou calada como se estivesse lendo o cálculo, mas na verdade estava esperando por uma reação dele. — Eu fiz assim... — colocou o lápis em cima do papel, encostando o braço com o de Julia e, fingindo que fez sem querer, rapidamente tirou. Interrompeu o que estava falando, como se precisasse pensar e depois, com o braço mais distante, repetiu. — Eu fiz o seguinte, esse pedaço é “x” então esse pedaço é “um sobre x”. Você monta uma equação e resolve com o teorema de pitágoras. — Oh! — Julia fez como se tivesse descoberto a América, ou uma mina de ouro. Ela sorriu e virou para ele, ainda inclinada, de um jeito que eles ficaram quase que de narizes colados. — Mas como você sabe que é “um sobre x”? — É observação e lógica. — ele explicou com outro sorriso. — Os ângulos internos desses dois triângulos são iguais, portanto, eles são semelhantes... pelo seno e cosseno você acha que essa linha é “um sobre x”. — Ah! — ela fingiu que entendeu. Bruno travou seus olhos com os dela, deixando o sorriso de seu rosto escorregar um pouco e apertou levemente seus lábios contra as argolas como se estivesse pensando em alguma coisa. Julia relaxou o maxilar, mantendo os lábios entreabertos e respirou ar pela boca. Ergueu os olhos quebrando o contato e fingindo reparar em algo fora do lugar, ele deslizou os dedos por alguns fios do cabelo de Julia, entreabiu a boca de um jeito que à distancia que estavam dividiram o mesmo ar... exalou um pouco de ar como se estivesse entristecido e, parecendo perceber só agora o que estava fazendo, largou os cabelos da menina, virou para o lado e quase derrubou o lápis no chão, afastando-se rapidamente e de forma estabanada. Até tossiu, não porque estava com a garganta ruim, mas porque convinha no momento fingir que ficou sem ar. — Você pode copiar. — ainda olhando para o outro lado ele deslizou o caderno para ela. Seus dedos se tocaram no processo e
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ele puxou a mão, ao mesmo tempo em que se levantou. Tossiu de novo cobrindo a boca e foi até a cozinha. Se não bastasse para que ela pensasse que ele estava com saudades e dolorosamente entristecido pela separação, então Julia era mesmo uma tapada! Esperava que se fosse o caso, Gabi estivesse por ali prestando atenção com os cantos dos olhos, para inserir um comentário típico de melhor amiga enquanto ele recuperava o fôlego na cozinha e bebia um copo de água. Depois, ele retornou para a sala e viu quando Gabi pegou de novo o celular fingindo que tinha uma mensagem nova e enfiou o pirulito na boca para calar-se. Bruno sentou-se novamente no mesmo lugar, dessa vez tomando o maior cuidado do mundo para deixa transparecer que ele estava tomando o maior cuidado do mundo em não deixar que nada dele (joelho, cotovelo, ombro) encostasse em Julia, e manteve os olhos grudados em seu caderno que estava no mesmo lugar, pois ela nem havia copiado o exercício. † — É claro que ele está chateado e bravo, o que você queria? — Gabi do outro lado do telefone concluiu o óbvio. — Ai, Gabi... será que ele me odeia? — Julia chateou-se, deitada na cama com o celular na orelha. Lord Byron estava bem em cima de seus pés. — Não, ele não te odeia! Dá pra ver que ele é louco por você! Mas ele está de orgulho ferido, não vai te desculpar tão cedo..! — Gabi decretou. — Aquela hora, rolou um clima. — Gabi estava falando do momento em que Bruno levantou tossindo e foi para a cozinha. — Eu senti! — Ele está confuso, Jujuba, de orulho ferido! Não vai te desculpar tão cedo... você tem que se afastar e dar tempo pra ele. — Gabi insistiu em sua teoria. — E o Ivan? Vai aceitar o convite dele pra sair?
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— Não sei... ele é muito fofinho, mas não sei. — Como não sabe? Seu namoro já era, C’est fini! — Eu amo o Bruno. Preciso fazer algo para reconquistá-lo. — Ele está muito bravo e chateado, Jujuba, não sei o que você pode fazer. — Gabi suspirou. — O Ivan é muito mais gato, mas o Bruno é muito mais rico. Já sei, como decidir! Quem é mais pintudo? — Ai Gabi! — Julia se debateu na cama envergonhada. — Tudo pra você é sexo! O que tenho com o Bruno é muito maior que isso! — Não acho. Vocês não têm nada a ver, nada mesmo! — Não é verdade! — Julia protestou. — Você só tá a favor do Ivan porque é mais fácil pra você sair com o Caio! — Não! Eu estou a favor do Ivan porque é mais fácil pra você se atirar no Ivan do que conseguir o perdão do Bruno! — Gabi foi sincera. — Você estragou tudo com o Bruno ficando com o Ivan e está estragando tudo com o Ivan ficando atrás do Bruno. — O Ivan é um erro. Eu preciso consertar as coisas entre eu e o Bruno... — Boa sorte, amiga! Nem com mágica ele vai te perdoar viu?! Não, era exatamente com mágica que Bruno iria desculpála!, Julia devaneou. Era óbvio que Bruno ainda gostava dela e estava sendo orgulhoso demais para admitir! Tudo o que ela tinha que fazer era dar um empurrãozinho, que ele definitivamente precisava! — Vamos ver. — Julia aborreceu-se com a amiga. — Você faz o que quiser. — Gabi aborreceu-se também. — Vou desligar que ainda preciso ligar pro Caio. Boa noite. — Boa noite. — Julia desligou e sentou-se na cama. Ela podia fazer isso, certo? Era óbvio que Bruno ainda gostava dela e o único motivo para que eles não tivessem reatado o namoro era por ser muito orgulhoso! Ela conhecia Bruno como a palma da mão e por isso, sentiu-se no direito de puxar o seu Livro
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dos Desejos da mochila, abrir em uma página em branco, sacar a caneta e escrever. “Eu quero que o Bruno me desculpe e volte pra mim” Melhor impossível. Lord Byron miou para ela. Julia encarou o gatinho, era como se ele quisesse dizer alguma coisa: — Eu sei, não é a coisa mais ética da face da terra, mas não consigo evitar. Eu o amo. Mas o gatinho apenas deu meia volta e partiu pela janela, deixando Julia com a consciência pesada e o pulmão cheios de ar.
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19 O DIREITO DE REAÇÃO † Antes das provas finais daquele dia, Priscila estava sentada no pátio interno do colégio protegida da chuva torrencial que desabava naquela semana como se o fim das aulas indicasse o fim dos tempos. Seus cabelos roxos estavam desbotados e precisando de um retoque, mas sua maquiagem havia sido preparada impecavelmente naquela manhã, o batom lilás e a sombra de mesma cor que combinava com seus cabelos davam a ela um ar sobrenatural, como se fosse uma bruxa de um desenho infantil. Por cima da camisa da escola, ela sempre usava um corselete e havia escolhido um roxo, como suas meias grossas. O cadarço do seu coturno havia sido substituído por uma fita de cetim também roxo. Não era que roxo era a cor favorita de Priscila, na verdade ela preferia laranja e todo mundo que a conhecia muito bem sabia, mas era que roxo era a cor favorita de Ivan e enquanto namorava com ele Priscila tinha o hábito de se vestir para ele... hábito esse que a separação de alguns meses não conseguiu mudar. — Oi, bom dia. — uma voz rouca chamou sua atenção. Priscila ergueu os olhos castanhos e viu Bruno parado na sua frente, com as duas mãos no bolso e a alça da bolsa de carteiro customizada transpassando pelo corpo amassando a gola da jaqueta. — Bom dia. — ela respondeu com um sorriso educado. — Posso me sentar? Precisava falar contigo.
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— Pode sim. — a menina concordou e ajeitou os cadernos na perna. Bruno sentou-se do lado dela, remexeu no bolso e tirou algumas notas de dinheiro emboladas em um rolinho. Estendeu para Priscila. — Isso é seu. — ele estendeu as notas para ela. — Meu? — É... tipo... olha, me desculpe. — fez parecer que o que estava falando era muito difícil de ser dito, para convencer. — Eu tava precisando de grana e nem pensei antes de concordar em fazer isso contigo e... — Fazer o quê? — Priscila não compreendeu. Juntou as sobrancelhas finas e recém-tiradas em uma expressão que misturava a confusão e a curiosidade. — Falar que nos dois já tivemos um rolo e que você traiu o Ivan. — disse depressa e segurou nas mãos de Priscila colocando o dinheiro entre os dedos dela. — São seiscentos reais o pessoal fez uma vaquinha e a gente fez uma aposta. — Oh. — Priscila engoliu seco um momento e pensou no assunto. — Mas me mostraram fotos de algumas festas da gente abraçados e eu não me lembro disso. — Ah, é montagem. Eu fiz no photoshop. — Sério? — Sério. E o Dudu colocou o meu telefone no seu celular sem você perceber pra parecer que a gente se falava no telefone, mas nem nos falamos, nunca. — deu de ombros. — Desculpa mesmo. Eu fiquei sabendo que o Ivan terminou com você por isso e estou me sentindo péssimo. — Não foi bem por isso... — Priscila apertou as mãos no dinheiro e torceu a boca, como se fosse começar a chorar. — Quer dizer, foi e não foi... — Claro que foi. E tem mais, eu confirmei tudo pra ele quando ele me procurou perguntando... apresentei todas as provas imagináveis, enfim. Eu convenci o Ivan que realmente aconteceu entre a gente.
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— Oh... Por que iam fazer isso comigo? — Por inveja. Tô sabendo que tem uma menina na turma muito afim do Ivan e as amigas dela que tiveram a brilhante ideia de separar vocês dois. Eu só topei pela grana... mas não consegui nem usar o dinheiro de tão mal que fiquei. Sei que não muda nada... mas queria que você soubesse que você não é louca. Nada nunca aconteceu. — Muito obrigada por vir contar. — Eu só tenho que te pedir um favor... — Qual é? — Podemos manter isso entre a gente? Digo... sem você contar que eu te contei tudo isso... — Como vou convencer o Ivan a voltar comigo se eu não provar pra ele que nunca aconteceu? — Eu fiquei sabendo que vocês tem um relacionamento mais aberto... — E daí? — Daí o melhor é você admitir que rolou algo, dizer que foi passageiro, que nunca mais pensou em mim, que ele é tudo pra você... blá-blá-blá. Tenho certeza que isso basta. Um bom diálogo resolve tudo. — É... é uma boa tática. — E você sabe muito bem o que fazer para conseguir ele de volta, né? — É, sei sim. — Priscila sorriu mais uma vez e estendeu o dinheiro para ele. — Olha, pode ficar, é seu. — Não, faço questão que fique com você. — Bruno ficou em pé para não dar chance de Priscila oferecer de novo. Devolver o dinheiro para ela seria crucial para que ela acreditasse nele. — Até porque já consegui o que eu queria. Ah, só mais uma coisa... toma cuidado com o que você fala pros seus amigos. Eles não são tão amigos assim. — Obrigada... obrigada mesmo, por vir aqui me contar isso. — De nada. — e afastou-se dela antes que alguém os visse conversando e caminhou até a sala de aula.
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Fase um. Concluída. † Durante as provas daquele dia, Bruno encenou perfeitamente que estava querendo falar com Julia, mas que estava “sem oportunidade”. No intervalo ele tentou se aproximar e encenou uma “desistência de última hora” porque Andreza se aproximou com o estojo de esmaltes e se sentou ao lado de Julia, mostrando as cores novas que trocou com Gabi. Foi o suficiente. — Eu acho que ele quer falar com você. — Gabi disse, de braços dados com Nando subindo a escadaria para a sala de aula. — Eu vi ele te cercando... — Acha que eu devia ir lá? — Julia perguntou ansiosa. — Não, claro que não! — Gabi retrucou e depois olhou para Nando pedindo apoio. — É melhor não. — Nando concordou. Julia olhou aquela cena e foi quase como ter entrado por um túnel do tempo. Nando e Gabi juntos, de braços dados, trocando olhares cheios de confidências... sentia saudade daquela época em que eles estavam namorando e tudo era mais simples. Gabi devia ser louca para preferir Caio a Nando. Nando era muito mais bonito e muito mais simpático, engraçado e tudo mais. — Se o meu casal favorito disse que não, então, é não. — Julia sorriu. Só depois ela percebeu que eles não eram mais um casal. Nando e Gabi se afastaram na mesma hora. A impressão que deu foi que nem eles lembravam que não eram mais um casal. Julia percebeu que eles estranharam o momento, suas palavras e o fato de que não estavam mais juntos. Naquele instante, julgou que Gabi estava sendo orgulhosa! Com certeza sua amiga ainda nutria sentimentos fortes por Nando e estava negando a si mesma, só para não dar o braço a torcer e sair por cima da situação. Quando se sentou em sua cadeira de novo, tirou da mochila o seu caderninho vermelho e escreveu.
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“Quero que Nando e Gabi se apaixonem perdidamente e voltem a namorar!” E escorregou de novo o livro para dentro da sua mochila. — Cara, não sei nada de matemática... — Nando resmungou assim que a professora entrou segurando as provas. — Copia minha prova, vou me espreguiçar algumas vezes pra você olhar, tá? — Gabi se ofereceu. — Valeu, Gabi! Não sei o que seria da minha vida sem você! — ele sorriu flertando, ela sorriu nitidamente aceitando o flerte. Julia suspirou. Era questão de tempo, muito pouco tempo. † Julia juntou seus materiais para dentro da mochila e saiu da prova de matemática com a impressão que ia ficar de recuperação. Gabi e Nando já tinham ido embora e Bruno também, ela que demorou mais que todo mundo pois não sabia resolver as questões e não conseguiu copiar nada de Gabi de tão distraído que ficou tentando achar as respostas corretas. Ela lembrou das explicações de Bruno, mas não soube reproduzir nada. Um fracasso. Assim que saiu pela porta da sala, levou um susto ao perceber que Bruno estava por ali, esperando-a. Congelou, mas meio que já sabia o que ia aconteceu: Bruno estava ali para dizer que queria desculpá-la e voltar com ela, por causa de seu pedido. Sentiu-se feliz com isso, mas ao mesmo tempo, uma onda de arrependimento a invadiu. Bruno não estava lá de espontânea vontade. — Ei, Ju... posso falar contigo? — Bruno pediu assim que a viu. — Pode... — ela se aproximou, mas Bruno começou a andar, descendo as escadas.
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Julia o seguiu em silêncio, segurando as mãos juntas. Ela não queria atrapalhar o que ele ia dizer. Mesmo sendo algo forçado, ela acreditava que ele tinha vontade de falar com ela, mas não tinha apenas a coragem necessária. Bruno parou no pátio interno e se sentou na bancada de mármore, Julia sentou-se do lado dele com as mãos no colo. Os alunos passavam no corredor em direção à saída. Eles viram Priscilla passar com o celular na mão, mas ela não os viu e nem eles escutaram com quem ela estava falando. Julia olhou para Bruno que tinha seus dois olhos azuis como o céu voltados para suas botas, muito sério. Ele suspirou e segurou em uma das mãos de Julia, puxando-a para si e beijando as costas de sua mão. Julia sentiu o encontro com os piercings gelados e seus lábios quentes, que fizeram um choque elétrico percorrer o seu corpo com saudades e desejo. Ela queria tanto aquele beijo na boca! Os dois ficaram em silêncio. Ela esperou que ele tomasse a iniciativa, que ele dissesse algo, mas Bruno permaneceu calado, segurando sua mão contra seus lábios macios pensando no que dizer. Julia exalou ar pela boca, ele ergueu os olhos para ela e soltou sua mão. — O que quer falar? — Julia por fim perguntou e passou os dedos bem onde os lábios de Bruno haviam tocado sua pele. — Você escreveu no livro, não é? — ele perguntou. A pergunta surpreendeu Julia, ela engasgou e ficou sem saber o que dizer ao ser pega em flagrante pelo ex-namorado. — Eu sei que escreveu. Pediu para que eu te desculpasse e voltasse pra você, não foi? — os olhos glaciais dele em cima dela. — Escrevi. — Eu disse pra você não escrever o meu nome lá. — Eu sei, me desculpe. — Se você quer que eu comece a desculpar, podia começar a aprender com seus erros. — sentenciou com dureza. — Você tem razão... — soou arrependida.
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— Não é fácil, né? Ter um livro com esse tipo de poder e evitar usar pra conseguir tudo o que quer.... — Tem razão. É mais fácil escrever as coisas em um livro mágico do que resolvê-las na vida real... me desculpe... eu não queria te forçar a me pedir desculpas ou reatar o namoro. Ele riu, debochando. — Se não quisesse, não tinha escrito. Julia sentiu um tiro no seu coração. Doeu. Ele tinha razão. Seus olhos arderam com lágrimas de arrependimento. Ele estava tão bravo com ela! Tão bravo! Ele nunca ia perdoá-la pelas coisas que ela fez. — Não chore. — ele disse e beijou a bochecha dela com delicadeza, de uma forma que ela assustou, piscando os olhos incrédula — Eventualmente nós iremos reatar, mas você tem que aprender com seus erros primeiro. — Eu já aprendi... — ela protestou imediatamente. — Se tivesse aprendido não tinha colocado o meu nome no livro, como eu te avisei. — Desculpe. Eu não vou fazer isso nunca mais. Ele suspirou e bateu as mãos nas pernas, ficando em pé. — Você deu sorte que eu gosto de você, Julia, porque se fosse qualquer outra pessoa que tivesse escrito meu nome naquele livro... bem, eu não seria tão complacente. — Bruno começou a se afastar. — Bru, espera! — Julia ficou em pé. — Não vamos voltar juntos? Ele parou e virou-se para ela, os olhos dela estavam cheios de lágrimas, o nariz bem vermelho e a expressão que seu rosto fazia era de um doloroso abandono. Péssimo, ele até sentiu dor em seu coração congelado. Ugh! — Eu disse pro meu pai que íamos voltar com seu pai, assim podemos evitar aquela parte bem desconfortável de voltarmos juntos no mesmo carro. Eu vou a pé. — aproximou-se dela e segurou em seu rosto, dando um beijo em sua testa, Julia até fechou os olhos com o carinho. — Ah, mais uma coisa antes que
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eu me esqueça! Já que você tem um pouco de dificuldade de manter a sua palavra em dia comigo... vou dar uma forcinha para que você não escreva meu nome por lá de novo. — Como assim? — ela abriu os olhos para ele. — De agora em diante... — ele sorriu. — ...estou pegando ele de volta. Os olhos de Julia se abriram com espanto. Grandioso espanto. Ela entreabriu a boca em surpresa enquanto absorvia aquelas palavras. Pegando o livro de volta?! Como assim?! — Pegando ele de volta? — Eu esqueci de mencionar? — ele soltou as mãos do rosto dela e olhou para cima, simuladamente tentando lembrar-se de alguma coisa. — Acho que esqueci. — virou os olhos para ela de novo. — O livro é meu, deixei ele ficar com você porque não tinha mais interesse em escrever nele mas... bem, digamos que meu interesse mudou de uns dias pra cá. Julia ficou pasma demais para dizer alguma coisa. Nem conseguia organizar as palavras que queria dizer. — Mas não se preocupe. Eu prometo que não vou escrever o seu nome no livro. Ao menos, minhas promessas você sabe que eu posso manter. Ao contrário das promessas que saem de você. — ele se virou de costas mais uma vez e a deixou no pátio, sem reação. Depois que foi abandonada por Bruno, Julia sentou-se de novo enquanto respirava muito profundamente como uma verdadeira asmática. Era uma loucura! Não podia acreditar no que escutou. Tirou a mochila das costas e procurou pelo livro, tirando as coisas de dentro de forma desesperada e percebendo que o livro vermelho não estava lá. Ela se sentiu tão enganada por Bruno, quer dizer, se o livro era dele, por que ele a deixou usar e se atrapalhar toda com Gabi e Nando?! Ter feito mal à Cidinha e a Arthur?! De repente, outra ideia mais apavorante surgiu em sua cabeça: agora que Bruno tinha o livro de volta, para que tipo de desejos ele pretendia usar?!
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Ficou em pé, guardou suas coisas e resolveu perseguir o garoto. Se ele havia ido a pé mesmo como disse, com certeza ela conseguiria alcançá-lo descendo a rua! Correu depressa, atravessando o pátio e rompendo pelos portões da escola. E foi então que Julia congelou. Seus olhos captaram Ivan, parado em pé com o moicano bagunçado, meio caído, de jaqueta de couro, óculos escuros e um sorriso no rosto enquanto falava com Priscila. Priscila estava sorrindo também. Ambos em pé perto da entrada da escola. A fada-bruxa-do-mal segurava no braço do garoto, se inclinava para frente para conversar com Ivan aproximando-se dele com o joelho direito dobrado. Mas que merda! Eles ficavam tão bem juntos por terem um estilo diferente e serem tão próximos! Julia sentiu seu estômago revirar de ódio. Priscila foi a primeira que viu Julia, mas ignorou fingindo que não a percebera ali no portão. Voltou a olhar para Ivan, colocando uma das mãos de bruxa no peito dele, mexendo na lapela do casaco de couro. — Eu tenho que ir. Preciso estudar um pouco para a prova de amanhã, mas a gente se tromba... afinal somos vizinhos! — ela se abraçou com ele como se estivesse morrendo de saudades, cheirando o casaco dele e beijando sua face. — Tchau Van, não some, tá? — Tchau. — ele ajeitou o casaco no corpo enquanto ela se afastava dele. — Tchau Julia! — Priscila acenou para a garota espectadora e saiu de perto, atravessando a rua para ir até o ponto. Ivan virou-se no susto para trás, olhando para Julia, que já estava com o sangue fervendo. Parecia um dejavú, um maldito dejavú! Só que ao invés de Ivan, a cena havia acontecido com Bruno meses antes. Priscila era uma bruxa malvada! — Ei, Julia. — Ivan se aproximou com um sorriso. Julia cruzou os braços e olhou para ele muito irritada e enciumada. Era assim simplesmente?! Ele tinha ido até a escola para reatar com Priscila?!
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— O que é que você quer? — Falar contigo. — ele ficou sério, um pouco hostilizado pela garota. — Eu estou tentando falar com você há semanas e como você não respondeu, eu achei melhor vir aqui... saber o que tá rolando... falar contigo melhor, face a face. — Você veio falar comigo? — É. — Não veio falar com a Priscila? — Não... — ele bateu os ombros. — Eu... por que você sumiu de novo? Se arrependeu daquela noite comigo? — Sim, eu me arrependi. — Julia abaixou a cabeça sem coragem de olhar para ele. — Sinto muito Ivan... eu devia ter te falado... eu pensei em te falar mas... — Você não terminou com ele, né? — Ivan perguntou à queima roupa. — Não. Não tive coragem... eu... — Tudo bem. — Ivan colocou as duas mãos no bolso, visivelmente chateado. Bateu a ponta do coturno direito no asfalto, fazendo “tuc-tuc-tuc” com a ponta de ferro. — Mas ele terminou comigo quando ficou sabendo de você. — Julia deixou escapar. Ergueu os olhos para Ivan que a fitava intensamente. — Quer dizer que tenho chance de chamar você pra sair? — nem conseguiu segurar o sorriso fofo e sincero que se formou nos lábios. — Sábado? — Julia sorriu em resposta. — Perfeito! — e ele a abraçou, beijando a boca da menina sem esperar. Julia foi pega meio de surpresa com aquela avançada de Ivan mas recebeu o beijo e retribuiu, abraçando-se a ele também, com saudades. Ivan tinha gosto de café, um leve sabor de nicotina que denunciava que ele estava fumando de novo e um cheiro exótico de damasco, que para Julia era como um afrodisíaco. Foi nesse exato momento que alguém tropeçou neles, de leve, caindo um pouco para o lado. Julia e Ivan se soltaram.
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— Foi mal. — era a voz de Bruno, rouca, do jeito que estava pela gripe. Julia congelou. Meu Deus! Já tinha perdido as contas de quantas vezes estava se beijando com Ivan enquanto tentava um relacionamento com Bruno! E por que ele não estava bem longe a caminho de casa?! — Sem problemas. — Ivan quem respondeu. Julia abaixou a cabeça e encarou os coturnos de Bruno, que pareciam mais novos que os de Ivan e que já se afastavam deles denunciando que Bruno nem parou e provavelmente, havia se batido com eles de propósito. Mas que droga, que droga, que droga! Amaldiçoou-se. Ficou tão sem jeito que quando Ivan tentou se aproximar, ela fugiu. — O que foi? — ele percebeu. — Nada! Eu tenho que ir... — Julia se afastou mais um pouco. — Eu tenho prova amanhã. — Tudo bem, nos vemos sábado, ok? — Ok! — e dito isso, Julia saiu correndo descendo a rua, enquanto Ivan foi para o ponto de ônibus, onde Priscila ainda esperava a condução. † Bruno sentiu duas mãos em suas costas, mas ele já imaginava que Julia ia correr atrás dele antes mesmo de cruzar a esquina. — Ai! — ele reclamou. — Desculpe. — ela pediu de imediato. Estava com as faces vermelhas, provavelmente da corrida que deu até alcançá-lo, pois Bruno tinha certeza que vergonha por ter sido vista com Ivan é que não era! — Eu precisava falar com você. — Ela estava ofegante. — Achei que já tínhamos conversado. — ele nem parou, continuou pelo caminho de sempre. — E que íamos voltar separados. — ênfase no “separados”.
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— Somos vizinhos, podemos voltar juntos, não é? — Julia colocou as mãos nas bochechas, porque estavam queimando. Ela estava morrendo de vergonha de olhar para ele depois de ter sido pega com Ivan... e ela nem queria ter beijado Ivan, foi ele que a atacou! Definitivamente. — Se você faz questão. — Bruno bateu os ombros. — Mas devia pedir pro seu namorado te levar pra casa, não pra mim. — Ele não é meu namorado. E ele que me agarrou, não foi como se eu quisesse beijar. — Não pareceu que você estava lutando contra ele. — Bruno observou e continuou andando mais depressa. Bem observado por sinal, ele viu o lance todo acontecer, pois estava ali perto, mas Julia estava em choque demais para ter reparado que ele estava ali. — É que me pegou meio de surpresa. — Julia parou de andar e segurou no braço de Bruno. Ele já estava acostumado com os toques dela e não pulou para o lado como um hâmster assustado. Ele apenas parou de forma abrupta com o tranco e voltou-se para ela. — Peraí, Bru. — Julia pediu chateada, escorregou a mão para enlaçar os dedos com os dele, dando as mãos. Ele deixou, para que ela tivesse a impressão de que ela tinha algum tipo de poder sobre ele. — Eu te amo. — Não é beijando o Ivan a cada encontro que você vai me convencer disso. — respondeu revelando sua chateação e aborrecimento. — Eu nem sei o que aconteceu, me pegou de surpresa... eu fiquei sem reação... poxa! Eu não ia pedir pra voltar a namorar com você se fosse para ficar pensando no Ivan... eu não quero nada com ele. — Se não quisesse, não tinha concordado em sair com ele sábado. — e ele soltou as mãos dela nesse momento, que era para enfatizar o aborrecimento e simular até ciúmes, não que precisasse simular alguma coisa nesse momento, ele estava ardendo de ciúmes por Ivan ter ido até a porta da escola agarrar Julia!
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— Ah... — Julia se deu conta de que Bruno havia escutado a conversa dela com Ivan. — Se você quiser, eu fico com você o sábado todinho. — Olha, acho que você devia sair com ele. — Quê? — Você devia sair com ele. Pra se decidir. — Eu já me decidi! — Se tivesse decidido não se agarraria com o Ivan toda vez que você acha que eu não estou vendo! — Não fala assim! — Julia mais uma vez avançou para segurar a mão de Bruno. Ele deixou novamente, aceitando o toque. — Eu te amo... Bru... só você. — Eu já estive nessa antes, posso suportar você se agarrando com o Ivan se é isso que você quer fazer... mas é insuportável quando você se agarra com ele escondido. Não dá pra ver o quanto você me machuca? — Bruno soou derrotado. — Desculpa. — Não! Não vou ficar te desculpando a vida inteira! Eu vou te desculpar dessa vez e no sábado. E só! Decida-se a partir daí. — ele soltou a mão dela de novo. Isso estava deixando Julia desesperada, porque a impressão que ela tinha era que ele queria fugir e que, para impedir, ela tinha que se agarrar forte! — Tudo bem. — Julia concordou. Mais uma vez avançou para segurar a mão dele que ele enfiou dentro do bolso, mas ela o fez tirar. — Se é o que você quer, tudo bem. — Não é o que eu quero. É o que você precisa fazer. Estou cansado de ficar no meio desse furacão... A minha vida tá de cabeça pra baixo...! — ele colocou uma das mãos no rosto, abaixando a cabeça, comprimindo os lábios. Julia odiava vê-lo daquele jeito, era como martelar pregos em seu coração. Ela se sentia tão culpada pelas coisas que fez com ele que nem notou, mas já estava abraçando Bruno e beijando seu rosto.
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— Desculpa, desculpa... — ela falou se desfacelando por dentro e derretendo de culpa. — Eu não preciso sair com o Ivan pra decidir, Bru... eu amo você. Eu amo muito! Eu não vou mais te magoar, eu prometo. — Promete? — Bruno perguntou afastando-se dela, o olhar glacial de volta em seu rosto, parecia até ligeiramente decepcionado. — Não acredito nas suas promessas, Julia. — Eu sei disso, poxa vida... mas por favor, Bru, me dá uma chance! Eu sei que você quer me dar uma chance... — suplicou, juntando as mãos rente aos seios, unidas, como se estivesse rezando. — Eu quero, mas tenho medo de dar uma chance e você me destruir pela segunda vez. — Por favor, Bru... me diz o que fazer para te ter de volta! Só você pode me ajudar nessa... — Julia choramingou. — Se eu tivesse o livro, escreveria para o Ivan me esquecer. Você podia escrever, não é? Eu escrevi da Priscila, nada mais justo do que você escrever do Ivan. — Não. Você tem que decidir isso por si mesma, Julia. Se você me ama de verdade, vai dar um fim no que quer que seja isso que está rolando entre você e o Ivan... sábado. — Tudo bem, eu vou dar um basta. Sábado. — ela combinou. Ufa! — Ótimo. — ele virou-se para continuar andando. — Tenho que ir. — Vamos juntos..! — Julia propôs, não que ele pudesse recusar. Caminhou ao lado de Bruno em silêncio, tentando manter uma proximidade mesmo que forçada. † Ao chegar em casa, Julia tentou ligar para Gabi. Não conseguiu pois o telefone estava caindo em caixa postal o tempo todo... E justo agora que ela precisava de conselhos!
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Depois disso, Julia ajudou sua mãe como todos os dias, levando almoço para a mulher, ajudando com o banho (ela preparava a banheira e apoiava a mãe nos ombros), trocando os lençóis da cama, secando o cabelo, trocando as roupas. O pai de Julia havia contratado uma faxineira, que vinha duas vezes por semana, mas a arrumação básica da casa ficava por conta deles mesmo: Julia não precisava aspirar o pó e nem varrer o chão, mas todo dia tinha que arrumar sua cama. Quando terminou seus afazeres, Julia resolveu estudar para as provas finais do dia seguinte. † Não estava chovendo, mas estava nublado. Verão era sempre assim. Julia entrou pela porta da escola e no momento em que pisou no pátio, abriu um sorrisão quando visualizou Nando e Gabi em beijos e amassos no “lugar de sempre”. Julia considerou que talvez por esse motivo que Gabi não estava disponível para atender o telefone quando ela ligou na tarde anterior. Foi uma sensação enorme de missão cumprida que Julia sentiu quando pousou os olhos no seu casal favorito, sendo o seu bom e velho casal favorito novamente. Ela sabia que aqueles lábios colados eram frutos de seu desejo no livro vermelho. Que bom que deu tempo de desejar! Suspirou apaixonada. Nando e Gabi eram sua fonte de inspiração o seu ponto de segurança e estabilidade. Se eles estavam juntos, então tudo estava bem! Com certeza ela poderia esquecer que um dia colocou as mãos naquele livro e que bagunçou a vida de tanta gente com seu egoísmo... Bruno podia ficar com ele pra sempre se quisesse! Ela não ligava mais pois tinha tudo o que ela precisava em seu devido lugar.... bem, exceto que ainda não tinha reatado o namoro com Bruno. Mas nisso ela daria um jeito no sábado! Procurou não atrapalhar Gabi e Nando, portanto, Julia foi direto para a sala.
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As duas provas foram tranquilas, Gabi passou um bilhetinho para Julia dizendo que estava combinando de ir para a casa de Andrezza depois da aula. Julia respondeu um “ok” e passou o bilhete rapidamente, antes que a professora de Geografia achasse que era uma cola.
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20 FRANCAMENTE! † Andrezza estava com os olhos bem abertos em uma expressão de descredulidade incrível, ainda digerindo o fato de que Gabi e Nando estavam juntos de novo. Gabi estava contando toda a história para ela e para Julia enquanto elas comiam em uma lanchonete antes de irem até a casa de Andrezza, mas nenhuma delas tinha real interesse em estudar Química! Preferiam fofocar. — Eu estava só estudando com o Nando, sério! Ele está com as notas muito baixas e se não levantar um pouco as notas, nem vai poder fazer recuperação nas férias... imagine ele repetir de ano, seria o fim! — Gabi contava, mas estava sorrindo como uma sonsa! Os lábios avermelhados de tanto trocar beijos com Nando a deixavam mais bonita e seu olhar radiava um brilho de alegria contagiante. — Mas o Caio meio que entrou em pânico por eu passar a semana inteira com o Nando estudando e tudo mais... sei lá... foi ciúme mesmo. Ciúme doentio! Eu desliguei o celular, porque ele não parava de ligar e estava atrapalhando meus estudos... mas acredita que ele foi lá?! Conseguiu entrar sem o porteiro interfonar, então foi uma surpresa quando a campainha tocou.... mas eu achei que pudesse ser algum vizinho precisando de alguma ajuda e pedi pro Nando abrir porque eu estava ocupada fazendo um suco pra gente... — E o Nando que abriu pro Caio? — Andrezza abriu mais ainda os olhos, ficou quase parecendo um desenho animado. Seus cabelos estavam manchados e desbotados de verde, que ela estava
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tentando muito tirar aquela tinta para colocar azul de novo... mas ia acabar é ficando careca de tanto descolorir! — Sim! O Nando abriu a porta e o Caio já mandou um murro nele! — Gabi falou dando um gole em seu suco de maracujá. — Ele gritou “Eu sabia que você tava aí!” e pum! Deu um bem no queixo do Nando, ele até caiu pra trás. Quando eu saí da cozinha por causa dos barulhos, os dois estavam se pegando... você sabe como é o Nando, ele revida tudo, é muito nervoso! — Sei. — Julia concordou. Afinal, Nando brigou até mesmo com Arthur no início do ano. — Pois é, o Caio quebrou até um vaso da minha mãe com margaridas que o meu pai deu de presente essa semana... affe, foi horrível! — E o que você fez?! — Andrezza continuou interessada. — Separei os dois! — Gabi informou. — E o Caio terminou comigo. Disse que eu sou suja, poxa, eu nem tinha feito nada, estávamos só estudando! — E posso saber como de “só estudando” vocês passaram para “super amassos no pátio da escola”? — Andrezza debochou, remexendo no canudo do seu milkshake de morango. — Isso foi depois! Quando o Caio saiu... eu comecei a chorar, sabe, muito péssimo e trágico. O Nando ficou lá me consolando, super fofo! Me abraçou tão forte que meu coração até pulou...! Ele disse que eu devia ligar pro Caio e pedir pra ele ir lá conversar comigo, que ia embora pra me dar espaço e tudo mais... — Gabi colocou as mãos no peito, como se precisasse segurar o coração. Suspirou. — Foi nessa hora que eu percebi! — admitiu. — O Nando me respeita, o Caio não. E talvez o Caio tivesse razão, sabe? Eu não fiz nada com o Nando, mas eu queria fazer. Eu não queria que o Nando fosse embora... tanto que quando ele levantou pra juntar as coisas dele eu não deixei, segurei no braço dele, pedi pra ele ficar, fiz ele sentar de novo do meu lado... parecia uma doida. Daí a gente fez as pazes com um ótimo sexo no sofá!
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— Ai Gabi! — Andrezza colocou a mão na cabeça, como se Gabi tivesse feito uma besteira. — Ai nada! — Gabi retrucou. — Eu tava morrendo de saudades do Nando e não tinha percebido. Cara, o Nando sabe me pegar de um jeito que só ele, viu...! Eu vi fogos de artifício! Literalmente! Foi o melhor sexo que já fizemos na vida... reacendeu tudo em mim! Ainda tô pelando! — Gabi molhou o dedo na língua e passou em seu braço fazendo “tshhhh” insinuando que estava pegando fogo. — Eu tô muito feliz que vocês voltaram, estava na maior torcida. O Nando gosta muito de você e eu sei que você gosta muito dele também! Esse tempo que você passou com o Caio foi mais uma realidade alternativa do que qualquer outra coisa. — Julia abraçou Gabi, sentada lado a lado com a amiga. — Tem razão Jujuba, eu devia ter te escutado, mas eu sou muito cabeça dura e orgulhosa... — Gabi abraçou ela também e sorriu. — Eu fiquei enciumada demais com o lance da Priscila! Ainda mais depois que o Nando ficou com a vampira quando terminamos, foi um balde de água fria na minha cabeça sabe... acho que eu não esperava que ele fosse capaz de me esquecer e quis provar que eu podia esquecer ele também. Julia não disse nada, pois não sabia o que dizer. No fundo ela sabia que a separação de Nando e de Gabi era culpa sua, por causa do desejo deles não brigarem mais, o que totalmente afastou os dois quando eles estavam discutindo a relação. Julia esperava que de agora em diante, eles não precisassem mais brigar, pois tinha medo que isso os afastasse de novo por causa do desejo. — Eu não tinha percebido que ainda gostava dele tanto assim... e poxa, ele tentou tanto voltar comigo, me mandando emails, cartas e eu só dando bota no menino! Me sinto até mal...! Mas juro que se a Priscila chegar perto dele de novo, eu mato! — Não precisa se preocupar com a Priscila, ela não quer nada com o Nando! — Andrezza riu. — Ela quer voltar com o Ivan.
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— Sério mesmo?! — Gabi olhou pra Andrezza e depois, para Julia. — Jujuba! Liga pro Ivan agora! Não deixa a bruxa roubar ele de você! — Para com isso, Gabi! — Julia se defendeu, cruzando os braços. — A Priscila pode ficar com o Ivan, eu estou atrás do Bruno, lembra? — Por falar nisso, o que foi aquilo ontem? — Andrezza perguntou, virando sua atenção para Julia. — É verdade que você e o Ivan se beijaram na porta do colégio? A Priscila viu! — Como assim se beijando com o Ivan?! — Gabi ficou azul de susto. — O Ivan me agarrou! — Julia protestou. — E olha, até que não foi tão ruim... só de me ver com o Ivan, o Bru meio que acordou. Ele até concordou em voltar comigo, se eu terminar tudo com o Ivan. — e com um sorriso de vitória, passou as mãos em seus cabelos compridos ajeitando-os nos ombros. — Jujuba! — Gabi colocou as duas mãos na cintura discordando. — Não me diga que você vai voltar com o Bruno! Ecaaaa! — Cara isso é doideira! — Andrezza coçou a cabeça confusa. — Você gosta do Bruno ou do Ivan?! — Ela gosta do Ivan. — Gabi que respondeu pro Julia. — Não gosto! Eu gosto do Bruno. — Julia estalou os dedos nos olhos de Gabi. — Você terminou com o Caio, pode parar de torcer pelo Ivan. — Você tá se enganando! — E o Bruno? Tá tudo bem com isso? — Andrezza perguntou curiosa. — Ele não tá nem falando com a gente, não entra mais no jogo e nem responde os SMSs do Jaime. — Eu sei... — Julia abaixou a cabeça e mexeu nos cabelos. — Ai Dê, eu me sinto tão mal com o que eu fiz... — Devia né! É o mínimo. — Andrezza passou a bronca. — O Bruno sofreu tanto com a Priscila e o Ivan! Você nem imagina como ele ficou, o que esses dois fizeram com ele... e aí vai, você, e repete tudo de novo! Deve estar sendo pior ainda agora!
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— O que a Priscila e o Ivan fizeram com ele? — Gabi quis saber, abriu bem os olhos. — A Priscila basicamente usou o Bruno pro Ivan voltar com ela... ele estava se engraçando com uma tal de Karina. — Andrezza contou. — Deu o maior rolo entre eles. — O Ivan disse que só começou a sair com outras meninas por causa da Priscila ter começado a sair com o Bruno. — Julia não compreendeu. — Ah, claro que o Ivan disse! — Andrezza irritou-se, nem disfarçou no tom de voz. — Se eu fosse o Ivan, eu também ia dizer! Ele é super dissimulado. — Sério? — Gabi quase caiu para trás. Talvez o fato de que a cadeira de ferro era chumbada no chão que a impediu de cair. — Como assim? — Julia ficou azul. Ivan tinha olhos tão sinceros, não dava pra acreditar que tudo o que ela viu fosse uma simulação. — O Ivan tá sempre se agarrando com uma menina diferente, ele é o maior pegador. Mais rodado que... sei lá! Até eu já dormi com ele, antes de conhecer o Jaime... — Andrezza confessou, ficou com as bochechas roxas. — Você e o Ivan?! — Gabi engasgou com o suco na boca. — Quando? Como? E a Priscila?! — Foi assim que eu conheci a Per! — Andrezza chamava a amiga pelo apelido da internet, que era Perséfone. — Fiquei com o Ivan uns três anos atrás, logo no início do namoro com os dois. A gente teve um rolo de uns dois meses, ele vivia indo lá na minha casa... — Você sabia da Priscila? — Julia perguntou, já que Gabi nem conseguia falar. — Sabia que ele tinha uma namorada, eu não ligava, eu tava solteira, não tava enganando ninguém... e o Ivan, bem... ele é super gato e estilosinho... beija super bem... irresistível, né? — Andrezza deu de ombros e olhou bem para Julia, em cumplicidade. — Fora que ele sempre dizia que tinha um relacionamento aberto com a Per... então, tudo bem para ambos.
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Julia se sentiu esquisita, o coração congelou e seu sangue parou de correr em suas veias. Nem dava pra acreditar no que estava escutando. — Eu ficava com a parte boa, beijos, sexo e amassos... não precisava tomar conta dele como namorado. Eu nunca pedi pro Ivan terminar com ela e nem nada... quando ele tava comigo desligava o celular, ela nem incomodava. Mas um dia, eu fui numa festa com ele, a Priscila tava lá... ela deu um escândalo, a gente brigou... e depois viramos amigas! Ela é loucamente apaixonada pelo Ivan... e ele é loucamente apaixonado por ela. — Como?! Se fica nessa traição o tempo todo?! — Gabi acordou do seu congelamento facial. — Eles vivem sempre assim: se traem o tempo todo, um chora pro outro, eles voltam como se nada no mundo pudesse separar eles dois... e não demora muito para começarem a se trair novamente. É bizarríssimo. — Andrezza falou. — Não acredito nisso... o Ivan parece são sincero e tão fofo! — Julia queria morrer. Sua cabeça parecia dentro de um ciclone. — O que ele me contou é totalmente diferente disso! — E a Karina? — Gabi voltou no outro assunto. — Quem é essa? Andrezza deu um gole largo em seu milkshake antes de continuar a contar o que sabia. — Ela veio muito depois de mim! Eu e a Per ficamos muito amigas, sabe? Ela quem me apresentou o Jaime, em um encontro no cemitério. Nos demos bem logo de cara e começamos a namorar... o Jaime sabe do Ivan, inclusive o Jaime já deu uns beijos na Per também uns anos atrás, então estamos quites nesse aspecto. — Igual eu e o Nando! Só que eu não peguei o Ivan, peguei o Caio, né. — Gabi deu uma risadinha. — A Per ficou com o Jaime em uma das vezes que ela e o Ivan tavam mal... enfim... vamos falar disso depois, deixa eu contar da Karina. — Andrezza mudou o foco da conversa se concentrando. — A Karina ia direto lá no cemitério que o Jaime
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ia, o da Consolação... a Per e o Ivan ficavam mais no Araçá com a turma do Ivan. Enfim... quando eu comecei a namorar o Jaime, a Per ia comigo lá no cemitério da Consolação e as vezes o Ivan ia junto... enfim, a Karina tava sempre por lá mas o Ivan nunca tinha dado em cima dela até então... e rez a lenda que foi a Karina quem deu em cima dele... bem, vai saber?! — Hm! — Gabi fez, para dizer que estava acompanhando a conversa. — Um dia, em uma festa... bem, a Per ficou super doente com catapora e não podia ir... e como o Ivan nunca teve catapora ele não chegava nem perto dela! — Andrezza riu, deu outro gole em seu milkshake. — Enfim, o Ivan foi na festa e ela não... e daí quando eu vi, ele já estava se agarrando com a Karina. Depois, o Ivan ficou com catapora também, óbvio!, e a Karina que já tinha tido catapora quando criança não teve. — Tá mas tirando a catapora, o que pegou entre a Priscila e o Ivan? — Gabi nem compreendeu aquela maluquice. — Ah... bom, de catapora a Per começou a jogar esse game que a gente joga até hoje! E ela conheceu o Bruno que pra nossa surpresa, estudava no São Valentim! Ele era super outcaster não falava com ninguém, totalmente recluso... mas a gente meio que ficou amigo dele quando o lance deles esquentaram. — Andrezza contou. — A Pri sempre estudou no São Valentim, eu mudei pra cá quando começamos a ficar muito amigas, eu estudava em outro colégio... e daí o Jaime veio junto comigo! Nisso conhecemos o Tadeu e o Dudu também. — O Bruno estuda no São Valentim desde quando? — Gabi perguntou. — Mesma coisa, parece até que o destino uniu todo mundo! — Andrezza respondeu com um sorriso. — Mas é que como ele sempre cabulava aula e era um ano mais novo que eu e a Per, a gente nem se encontrava... o Jaime tava na sala dele, mas eles não se falavam não. Depois eu repeti e empatei com eles... mas não caí na mesma sala do Bruno. — Tá mas e aí e a Karina? — Gabi voltou no assunto.
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— Então... enquanto a Per ficou de catapora jogando com o Bruno, o Ivan ficou com a Karina. Daí quando ele ficou de catapora, ele meio que brigou com a Per por ter passado catapora pra ele. Eles tavam dando um tempo e quando as aulas começaram a Per deu em cima do Bruno. Todo mundo achou que a Per tinha terminado com o Ivan, porque ele tava sempre com a Karina e ela sempre com o Bruno. — Andrezza falou. — Mas aí o Dudu viu a Per e o Ivan juntos... e contou pro Jaime, que me contou. Eu fiquei tão brava, porque ela podia ter me dito que eles tinham voltado né! Mas ela disse que foi só aquela vez, que nem estava mais com o Ivan coisa nenhuma... eu acreditei. Mas daí o Dudu viu eles de novo, uma seis vezes, daí nem dava mais pra gente se enganar, tava na cara que o Ivan e a Per estavam voltando! A Karina ficou muito brava, ela estava dizendo que era namorada do Ivan e tals... enfim, ela conseguiu o telefone da Per e disse que ia fazer o Ivan largar dela... e então a Per surtou! — Surtou como? — Gabi abriu os olhos e fez barulinho com o canudo porque seu suco acabou. — Contou tudo pro Bruno, que até então não sabia de nada e ninguém quis contar porque ele tava super apaixonado pela Per... além do mais, ele que era o outcaster né?! — Andrezza respondeu. — E o que ele fez? — Julia abriu a boca que já estava quase colada por sua saliva de tanto ter ficado calada. — Ele... juntou os dois. — Andrezza respondeu e tanto Julia quanto Gabi ficaram boquiabertas. — Simplesmente isso. Ele ligou pra Karina, convenceu ela de largar o Ivan e depois conseguiu fazer o Ivan voltar com a Per. — Mentira! Que babaca! Por que ele fez isso?! — Gabi se revoltou. — Ele disse que gostava muito da Per pra ver ela infeliz, que preferia que ela ficasse com o Ivan. Ele chorou muito, faltou na escola... foi horrível. Ele quase repetiu de ano, se afastou ainda mais da gente... só falava as vezes com o Jaime, sabe?
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— Peraí, mas porque a Priscila ficava correndo atrás dele? — Julia não conseguiu fazer a história se encaixar na sua cabeça. Esse era um detalhe importante, se Priscila gostava de Ivan, porque ficava ligando o tempo todo pra Bruno?! — Pra fazer ciúmes no Ivan. Ele e a Priscila continuaram saindo com outras pessoas fora do relacionamento, mesmo depois de tudo... e sei lá, por algum motivo o Ivan só tem ciúmes do Bruno, então a Priscila meio que se aproveitava disso... então quando ele começou a namorar a Julia todo mundo achou que isso ia acabar mas... — Mas o Ivan deu em cima da Julia por vingancinha. — Gabi sentenciou. — Cara, não acredito. Julia sentiu seu coração ser flechado pela dor da verdade. Ivan era podre! E pior, ela tinha caído na conversinha mole dele, todo o papo que ele gostava dela e que tinha se apaixonado... provavelmente, quando foi até a escola, ele tinha ido falar com Priscila e só aproveitou para falar com ela. — A Priscila infernizou meu namoro com o Bruno... a gente sempre brigava por causa dela, era horrível! — Julia falou aborrecida, cruzando os braços. — E o Ivan veio pra cima de mim pra se vingar?! — Não acho que ele quis se vingar. — Andrezza deu sua opinião. — Ou quis, sei lá. — A primeira vez que eu fiquei com o Ivan foi no primeiro dia que fui ao Strange House, foi super sem querer, ele me beijou meio na surpresa, eu tava mega bêbada e brava por causa da Priscila em cima do Bruno... sei lá, foi confuso. — É, todo mundo sabe que vocês ficaram esse dia, ele contou. — Andrezza disse. — Inclusive, ele contou pro Bruno. — Ele contou?! — Julia ficou branca. — É... — Andrezza bateu de ombros. — Na verdade, o Bruno ficou muito encanado que você tinha conversado com o Ivan, você tava mega passando mal e segurando o lenço do Ivan, nem sei se você lembra. — Eu lembro do lenço. — Julia confessou.
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— Acontece que a Per viu você saindo do banheiro com o Ivan e me contou. Eu contei pro Jaime... e bem, o Jaime contou pro Bruno. Mas quando o Jaime contou, o Bruno disse que já sabia. Como rolou aquele lance esquisito da Per esquecer do Bruno, lembra? Todo mundo achou que foi trauma do fim do namoro e tals?! E eu acho que foi mesmo! — Lembro. — Gabi lembrava muito bem, foi isso que atrapalhou ela e Nando. — Ninguém deu muita bola pros verdadeiros motivos que levaram o Ivan a terminar com a Per... que foi isso, ela viu vocês juntos, contou pro Bruno, mas ele não acreditou, afinal antes do Ivan chegar no Strange House ele tinha dado o maior perdido na Per porque estava com a Zu e a Rafa. — Zuleika? A lésbica? — Gabi perguntou. — É. Tipo os três, sabe? — Andrezza juntou as mãos para indicar que eles haviam dormido juntos. — A Zu é namorada da Rafa, o Ivan dormiu com elas. — Affe! — Gabi quase morreu. — Quem é esse Ivan?! Andrezza deu de ombros. Seu Milkshake terminou. — Enfim! — Andrezza colocou o copo vazio pro lado. — Quando rolou o lance da Per esquecer do Bruno e todo mundo ficou super preocupado, o Dudu pediu pro Bruno falar com o Ivan sobre isso, pra ele voltar pra Per. No começo meio que o Bruno não quis... mas o Dudu e o Tadeu insistiram muito... além disso a Per começou a dar em cima do Nando e o Bruno não gostou por causa da Gabi. — Ele me defendeu?! — Gabi piscou como se não acreditasse. — É, ele foi falar com o Ivan pra voltar pra Per. Tipo, só ligou e tals, no celular do Ivan pelo telefone da Per... e o Ivan contou tudo pra ele. Eu sei disso não foi porque o Bruno me contou não, viu?! Quem me contou foi o Jaime, que estava junto na hora... o Bruno e o Jaime conversam as vezes quando o Bruno dá abertura e esse foi um dia que ele deu... ele tava tão bravo, mas disse que desconfiava quando viu você segurando o lenço do Ivan.
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— Andrezza relevou a trama final. — Só que depois vocês ficaram tão bem juntos, por isso ninguém se meteu. — Eu fiquei com o Ivan quando fomos no Araçá aquela vez. — Julia confessou. — Eu não sei o que me deu...! Eu só pensava no Ivan... eu estava com o Bru e era muito bom estar com ele, mas sei lá... eu fiquei de novo com o Ivan. Só que me arrependi, a Gabi que me deu uma força pra apagar isso do histórico, pro Bruno nunca ficar sabendo... eu tava com tanto medo de perder ele. — E daí você ficou com o Ivan de novo no Halloween! — Gabi falou. — E o Bruno viu. — Andrezza disse. — Aliás, todo mundo viu! Vocês tavam se agarrando na porta! Era meio visível, né. — É, acho que sim... — Julia abaixou a cabeça. — Acho que a primeira vez ele perdoou porque achou que você tava muito bêbada. Te garanto que se ele ficasse sabendo desse dia do Araçá, ele já teria terminado contigo. — Andrezza sentenciou. — E você bem que mereceu. — É só que ele não terminou, ele sabia que a Julia ficou com o Ivan no Halloween e mesmo assim não terminou! — Gabi levantou a questão já esquecida por todos. — Inclusive, a Julia quem ia terminar com ele e o Bruno disse que a amava! Só por isso ela não terminou com ele e nem ficou com o Ivan. — O Ivan pediu para eu terminar com o Bruno, mas certeza que foi só pra se vingar mesmo. — Eu não acho. — Andrezza novamente deu sua opinião. — Não acho que o Ivan faria isso só por causa de vingança, inclusive, eu acho que ele pode até ter se apaixonado por você, porque ele sumiu do rolê! Só apareceu mesmo naquela festa de Halloween. — Cara que confuso... daí o que começou por vingança foi virando de verdade? — Gabi colocou as mãos na cabeça. — Ou seja, o feitiço se virou contra o feiticeiro! Afinal, agora ele fica correndo atrás da Jujuba! — É, mais ou menos. O Ivan também correu atrás de mim e da Karina, ele se interessa pelas pessoas mas no fundo, ele gosta
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da Per. Eu acho meio doentio o jeito que eles se gostam. Ele pode até tá interessado na Julia, mas não é amor nem nada disso. — Andrezza cuspiu sua opinião mais uma vez. — Agora com a Per querendo voltar pra ele, tenho certeza que ele volta. — A menos que goste mesmo da Jujuba! — É, mas se ela tá querendo voltar com o Bruno, com certeza com o fora que vai tomar, o Ivan volta pra Per. — Andrezza sentenciou. — É isso que eu preciso fazer. O Bru disse que se eu quiser voltar com ele, tenho que terminar tudo com o Ivan, de uma vez por todas. Depois de ficar sabendo tudo isso, então, tenho certeza que é isso que preciso fazer. — Cara, você não merece o Bruno. — Andrezza soltou aborrecida. Gabi e Julia olharam para ela em susto. — É o que eu acho! O Bruno merece alguém que goste dele de verdade. — Eu gosto dele de verdade, eu sei que posso ter sido uma crápula esses dias, mas eu gosto. Você mesmo disse, o Ivan é irresistível, é jogador, ele sabe muito bem o que faz e me enganou com aquele papinho dele de vítima. — Julia cruzou os braços irritada com Andrezza. — Mas eu gosto do Bruno de verdade e ele de mim. Tudo o que eu preciso é recuperar a confiança dele. — Se você gosta dele mesmo, ótimo. Eu fico feliz, porque ele realmente gosta de você, mas ó... se você sacanear ele de novo, eu vou fazer de tudo pra vocês nunca mais ficarem juntos, tá ligada? — Gente! São seis da tarde! Estamos conversando há horas! — Gabi olhou no relógio de repente e exclamou pasma. — Era pra eu estar indo pra casa do Nando já! — ficou em pé e pegou seus cadernos. — Mal meninas, mas tenho que ir! — deu um beijo em ambas e se afastou. — É melhor eu ir também. — Andrezza acrescentou e ficou em pé pegando sua mochila. — Ó, Ju, não tenho raiva de você, eu até tô disposta a ajudar você a voltar com o Bruno porque sei que ele super te adora... mas sei lá, ele é uma pessoa muito boa pra ficar sofrendo.
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— Eu sei. — Julia concordou. — Eu estou arrependida de tudo, eu queria ter contado pra ele e resolvido isso antes de explodir as coisas assim... mas vou resolver isso com ele. O lance do Ivan, está definido. — Ótimo. — Andrezza sorriu, mas era meio forçado. — O Bruno tem um coração de ouro. — e depois de dizer isso, ela se inclinou para beijar a bochecha de Julia e saiu. Julia voltou a se sentar, cobrindo a cabeça e chorou, se sentindo a pior pessoa do universo. † Se Bruno escutasse as últimas palavras de Andrezza, ele estaria rindo do quão equivocada ela estava a respeito dele. Ninguém tão vingativo quando ele poderia ter um coração de outra cor a não ser negro. Ele gostava de Julia, talvez até mais do que gostou de Priscila... e era por isso mesmo que ela merecia sofrer mais! Enquanto Julia estava na lanchonete sozinha se martirizando por causa de seus erros, Bruno estava com uma chave de fenda nas mãos tentando abrir a gaveta do seu criado mudo. Ele forçou diversas vezes sem conseguir e por fim, desistindo de abrir de um jeito mais suave, foi atrás da marreta do seu pai, na caixa de ferramentas, e destruiu o criado mudo. Dos destroços ele tirou o livro, que estava na mesma posição da gaveta na qual ele deixou. Sentou-se em sua cama empurrando Lord Byron para fora do seu travesseiro e leu os desejos de Julia. Os últimos pedidos de Julia visavam remendar as coisas mais preciosas pra ela: o namoro de seus melhores amigos, a saúde de sua mãe, seu namoro com ele e que seu pai arranjasse um bom emprego. Que egoísta que ela era! Bruno fechou o livro abruptamente no instante em que seu pai abriu a porta: — Olá filhão! — Carlos trazia um idiota sorriso no rosto. — Oi. — fingiu um sorriso de bom filho.
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— Nossa, o que aconteceu com o seu criado mudo? — Carlos afrouxou a gravata e entrou no quarto acendendo a luz, o que fez Bruno fechar os olhos porque a luz incomodou. Carlos se aproximou e olhou para o criado mudo destroçado no chão e até remexeu com o pé nos destroços. — Perdi a chave e precisava pegar algo dentro dele. Carlos afagou seus cabelos, beijou sua testa e pegou a carteira tirando várias notas de dentro. — Compra um novo pela internet, você tem a senha do meu cartão, não tem? — e entregou as notas pra Bruno. — E compra um abajur, meu bem, ler no escuro faz muito mal pra você. — Claro. — Bruno concordou. Esperou o pai sair e fechar sua porta de novo para poder voltar a respirar. Estava difícil de se acostumar com o “novo Carlos”, receber carinhos ao invés de uma pancada na cabeça. No fundo, Bruno sabia que uma vida pacífica ao lado de seu pai era muito almejada, mas ao mesmo tempo, era terrível estar ao lado daquele homem que ele odiava e amava ao mesmo tempo. Encarou o livro. Queria escrever maldades para se vingar de Julia, de tudo o que ela havia feito, especialmente com seu pai. Madame Daisy queria que ele escrevesse e destruísse a vida da da menina da mesma forma que ela havia destruído seu coração, aos poucos e de forma avassaladora. Bruno concordava que Julia merecia cada segundo de sofrimento vingativo. Respirou fundo e abriu o livro em uma página em branco. Pelo quê deveria começar? Sua vida em família? Ivan? Seus amigos? Queria destruir a alegria de Julia, arrancar seu sorriso para sempre. Era isso que as pessoas mereciam, não era? Que ao menos pagassem por seus atos... mas, ao mesmo tempo, não queria causar mal nenhum à Julia. Não tinha coragem. Vencido, largou o livro em cima da cama, desistindo. Lord Byron roçou a cabeça e empurrou o livro de volta para Bruno: — Miaaau...!
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— Eu sei, mas não consigo. — juntou as mãos no rosto. Estava tudo de cabeça para baixo! — Gosto tanto dela que até dói... — confessou, entretanto, sabia que Madame Daisy ficaria muito descontente com sua covardia e desobediência.
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21 ASPIRAL DECADENTE † Julia sentiu o coração palpitar mais forte quando colocou os olhos em Ivan. Ele estava lindo, esperando-a com uma rosa vermelha na mão em frente à um café. O dia estava ensolarado e fazia muito calor, de forma que ela podia ver todos os músculos do braço de Ivan, já que ele estava com uma regata da banda que todo mundo tinha uma camiseta. — Você está linda! — Assim que se aproximou, Ivan estendeu para ela a flor que trazia, com um sorriso no rosto e o ato lembrou Julia imediatamente de que ele era um galanteador, jogador e pra lá de mentiroso. — Obrigada. — agradeceu quando pegou a flor, sem querer, seu dedo encostou em um espinho. — Ai. — Que bom que você veio, estava morrendo de medo de levar mais um fora! — Ivan pareceu sincero, até meio sem graça. Seu moicano estava tingido de roxo, mas precisava de um corte. Julia comprimiu os lábios insegura. Tadinho de Ivan, pensou, quando ele soubesse o que ela realmente faria lá. Ele procurou dar as mãos com ela, antes de entrar no café, mas Julia fingiu que segurar uma flor requeria as duas mãos. Juntos, entraram no recinto enquanto Ivan magneticamente colecionava olhares curiosos por causa de seu estilo. Sentaram-se lado a lado, dividindo um sofá acolchoado, em uma mesa ao fundo, perto de um quadro com uma fotografia da cidade há
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cinquenta anos atrás, de cor sépia. Uma garçonete trouxe um cardápio preto, com letras em caramelo. Julia soltou a flor em cima da mesa e procurou ocupar as duas mãos com o cardápio, enquanto Ivan guardou o maço de cigarros no bolso da calça jeans rasgada. — Eu queria um expresso. — ele pediu. — E eu um suco de uva. — ela evitou tomar um café. Seus cabelos estavam soltos e usava um vestido preto de bolinhas brancas, preso com um cinto vermelho como seu batom, parecendo uma pinup. A garçonete se afastou mais uma vez. — E como vão as coisas com sua mãe? — Ivan quis saber, interessado. — Está ótimo! Ela fez novos exames e talvez a gente fique sabendo o sexo do bebê! E suas irmãs? — Mesma coisa de sempre, mas a Dafne arrumou um namorado... e tenho que ficar de olho. — Uau, espero que ele a trate bem, ela é muito divertida. — É, eu também. — ele sorriu. Ivan tentou se aproximar. Segurou as mãos de Julia que estavam soltas em cima do cardápio. Julia sentiu um choque, não porque o toque de Ivan causoulhe arrepios de emoção, mas levou um susto e, como se ele tivesse micose nos dedos, puxou as mãos para o colo, afastando-se. — Ué... — ele não compreendeu. Colocou a cabeça apoiada na mão, em cima da mesa. — O que foi? Você está me evitando. — A Andrezza me contou a real. — Julia cruzou os braços, aborrecida. — A real do quê? — Você mentiu pra mim sobre a história do Bruno. — Não menti, contei a minha versão. — ele se defendeu, endireitando-se e ficando com a coluna reta de surpresa, sentindose ameaçado pelas palavras dela. — A Priscila confundiu as coisas e tudo ficou estranho entre nós dois... eu estava em depressão... — Não se faça de vítima... você e a Priscila já tinham um relacionamento aberto quando ela conheceu o Bruno!
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— Uma coisa não anula a outra. — No fundo, você é um mentiroso! — Não seja hipócrita. Você sabe que ficou comigo porque se sentiu atraída e não porque eu omiti parte da história. — Você só veio atrás de mim em um tipo de vingança arquitetada! — Não foi nada arquitetado! — Ivan se defendeu, abriu bem os olhos claros em uma espécie de susto. — Que tipo de gente você acha que eu sou? A garçonete chegou com o pedido depositando a xícara de café na mesa e o copo com a lata de suco de uva, eles esperaram em silêncio ela se afastar e retomaram a conversa. — Com certeza você só estava esperando o Bruno aparecer com uma namoradinha para dar em cima dela e se vingar. Você só queria fazer o Bruno sofrer. — Julia deu um gole no seu suco de Uva, que estava sem açúcar como aquela conversa. — Espere aí! Não fiz nada disso sozinho! — Ivan não estava compreendendo as acusações, mesmo assim, sentia uma urgência em se explicar. — Vai me acusar, agora também? — Não! — Ivan quase morreu. Julia até sentiu uma pontinha de tristeza ao ver o desespero assumir o olhar do rapaz. — Não é isso... escute, eu fui sincero contigo sobre meus sentimentos... tudo bem que não contei a você a história toda, quando fiz o Bruno parecer a pior pessoa do universo, eu só estava tentando jogar você contra ele... mas nunca te enganei, entende? Eu nunca menti sobre o que sinto por você. — O que você sente por mim? — Eu me apaixonei por você... e me senti mal por ter me apaixonado, por causa do Bruno. Eu sei que se ele não tivesse aberto mão da Priscila, ela nunca teria ficado comigo... mas a Priscila é passado agora, Julia... e o Bruno também. — e mais uma vez, ele tentou segurar as mãos dela, mas Julia não deixou. — Vamos, não fique brava comigo... me dê um beijo. — Não vou te dar um beijo, Ivan.
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— Não? — ele fez ar de cão abandonado, deu pena. — Eu estou tentando voltar com o Bruno. — Julia confessou. Viu quando Ivan abriu a boca em surpresa, sentindo-se incompreendido. — Quê? — Eu cometi alguns erros, alguns não... muitos, mas é o Bruno quem eu amo. O que tivemos, Ivan, eu e você... foi só um erro. — Um erro? — ele não acreditou, pareceu bem chateado. — Isso. só um erro. — Se sou um erro, por que veio? — Para colocarmos um fim nisso de uma vez por todas. — O que você tá dizendo? — Balançou a cabeça. Os olhos ficaram um pouco avermelhados, mas ele não parecia que ia chorar. — Eu achei que você sentia o mesmo por mim, foi o que pareceu... no Mote-— Não diz isso! Eu não gosto de você, nunca me apaixonei! — Não acredito em você. — É o Bruno que eu amo! Por favor, nos deixe em paz. — Você não gosta dele tanto assim. — Ivan decretou. — Se gostasse, não teria me beijado. — Não diz besteiras, eu deslizei só isso. Ivan bebeu todo o conteúdo da xícara em um gole só. Ficou em pé e abriu a carteira, pegando algumas notas, jogando-a em cima da mesa. — Vou deixar vocês em paz. Você vai descobrir que não gosta dele, mais cedo ou mais tarde... e vai vir correndo pra mim, de novo. Julia comprimiu os lábios, segurando uma resposta. O melhor a fazer era deixá-lo ir. Tinha que colocar um ponto final em seu relacionamento torto com Ivan se quisesse reconquistar Bruno. Ivan não esperou. De coração partido, afastou-se.
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Sentada na mesa, Julia viu Ivan descer a rua, fumando um cigarro. Era horrível magoar alguém como ela havia feito com Ivan, mas no fundo, achava que ele tinha merecido, pelas mentiras que contou e pelo que havia feito com Bruno (duas vezes). Largou o seu suco e pagou no caixa a conta da mesa, deixando o dinheiro de Ivan por lá, como um gesto orgulhoso para si mesma. Tirou o celular do bolso e tentou ligar para Bruno, mas ele não atendeu. † Ao chegar de seu encontro com Ivan, Julia parou na frente da casa de Bruno. Carlos estava ali, no meio da garagem com a porta aberta, colocando uma mala grande e marrom no carro. Ele estava de terno, como se estivesse indo trabalhar em pleno sábado. — Sr. Carlos? — Julia o chamou. — Ah, olá Julia! — o homem baixou a porta do porta-malas e ajeitou a manga da camisa social listrada. O paletó estava pendurado dentro do carro, na alça da porta traseira. — Tudo bem? — O Bruno taí? — Você quase o encontrou, mas ele acabou de sair. Foi pegar uma pizza... ali na rua de cima... talvez se você correr, o alcance na encruzilhada. — Ah... — Julia mexeu nos cabelos de forma nervosa. — Você vai viajar? — Por uma semana, à negócios. Volto no próximo domingo... fica de olho no Bruno por mim? — Pode deixar. — ela sorriu. — Agora preciso ir. — e ele entrou no carro. Rapidamente, o carro se afastou. Julia olhou no relógio e estava um pouco tarde para esperar por Bruno ou ir atrás dele, por isso foi para casa e enviou um SMS, pedindo para ele avisar
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quando retornasse, pois já estava atrasada para jantar com seus pais. Mais a noite, quando chegou em casa, já havia passado da hora de dormir e Bruno não retornou suas mensagens. † Bruno disse que ia comprar uma pizza, mas na verdade, foi até o Sebo da Esquina, encontrar-se com Madame Daisy. Abriu a porta com a chave que usava pendurada em seu pescoço e entrou na sala. Havia algo de estranho. O local parecia mais escuro, empoeirado, as velas estavam pela metade. Ele estava todo de preto, usando uma jaqueta de poliéster que imitava um design de uniforme militar, mas que não parecia suficiente para o frio que fazia no local, como se o ar condicionado tivesse quebrado. Aquela foi a primeira vez que não se sentiu confortável por pisar naquele lugar. Madame Daisy o esperava com os olhos vermelhos cheios de raiva e os braços cruzados por cima de seu vestido negro, sentada no sofá. — Você ainda não escreveu no livro! — ela falou de forma irritada, assim que o viu. Sua voz ecoou por todo o lugar e os gatos do sebo se eriçaram, como se vissem um fantasma. — Me desculpe... — Bruno jogou-se sentado aos pés da mulher, como um servo pedindo por perdão. — Shhh, está tudo bem, querido... — Madame Daisy suspirou. Passou a mão com força pelos cabelos de Bruno em um carinho bruto, arranhando um pouco sua cabeça com suas unhas duras e pintadas de vermelho. — Você vai escrever? — Eu não consigo... — Hmmm... — ela se demorou um pouco, ponderando o assunto, afundou a mão em sua cabeça, em um toque duro e gélido. — Não consegue ou não quer?
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Bruno não respondeu, com vergonha da resposta que tinha para dar. Era simples: não queria. Ele não queria machucar Julia. — Você precisa escrever! — ela gritou revoltada diante de seu silêncio. Puxou com força os cabelos de Bruno. — Ai! — Bruno tentou se afastar, mas Madame Daisy o segurou pelos fios negros, encravando as unhas em sua cabeça, um ato que normalmente era Carlos quem fazia. — Ai! Você tá me machucando! De repente, ela o soltou. — Oh. — ficou com a delicada mão solta no ar, sem posição, como se estivesse assustada pelo próprio ato, como se sua mão tivesse vida própria. — Me desculpe querido.... — ajoelhouse no chão, abraçando-se com ele, com força. — Você sabe que eu te amo, não sabe? Não quis te machucar. Bruno deixou que ela o abraçasse, tal como recebia os pedidos de desculpa de Carlos, recebia os de Madame Daisy. Ela era como a mãe que ele não tinha... afundou a cabeça no ombro da mulher, por entre os panos fofos do vestido, o cheiro de pó incomodou seu nariz e ele espirrou. — É pó... — ela disse com um suspiro. Afastou-se dele e segurou com as mãos geladas seu queixo. Ele reparou que seu vestido tinha pó depositado em seu ombro, como se fizesse décadas que ela não se mexia. — Sua gaveta tinha muito pó... — Gaveta? — ele procurou se recordar do que ela estava falando. — Você diz... a gaveta em que coloquei o livro? — Por isso você precisa escrever nele, querido. Seu livro está ficando empoeirado demais... escreva nele. — e ela lançou-lhe um sorriso com a boca negra. Escrever no livro parecia uma coisa sensata a se fazer, para ajudar Madame Daisy. Mas ao pensar bem no assunto, Bruno já havia escrito muitas coisas naquele livro... coisas cruéis. E imediatamente, lembrou-se do dia em que parou de escrever. O dia que quase matou alguém: Juninho. — Por quê? Esse livro só faz mal pra todo mundo! Eu não quero mais ter que escrever... nada de bom sai de lá... — ele se
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afastou da mulher, arrastando-se até se bater contra o outro sofá. — Eu perdi tudo... achei que as coisas iam melhorar quando o livro foi para ela, mas só piorou... — Essa garota te fez mal. Não foi o livro que fez nada, mas o que ela escreveu lá! Você devia se vingar, escrever algo ruim para ela! — Madame Daisy engatinhou até ele, aproximando-se como um felino cerca sua presa. — Escreva algo em cruel, algo que a faça chorar! Prometo que vou te recompensar... — Não quero. — recusou. Madame Daisy curvou a sobrancelha irritada, o sorriso em sua boca escura sumiu, dando lugar a uma expressão de desgosto. — Não quero fazê-la chorar... — Por que não? — perguntou quando o alcançou, abraçando-o de novo como um gato carente. — Por que eu a amo. — confessou. — O que você disse? — ela afastou-se dele de imediato, soltando-o. Seus olhos vermelhos pareciam flamejar como o fogo. — Repita! — Eu a amo... Ao fim do soar de suas palavras, Madame Daisy ergueu a mão e bofeteou sua face com uma força extrema que pareceu afundar o seu rosto. — Ai! — foi um tapa mais forte do que um murro de Carlos, era como se Madame Daisy tivesse a força de cem homens. Contorceu-se sentindo dor. — Eu vou embora daqui! — Perdão! — ela segurou em sua mão, que estava em cima do local onde recebeu a bofetada. Puxou a mão do garoto liberando o local e depositou um beijo em seu rosto. — Perdão! O beijo fez a dor passar, Bruno sentiu o rosto até dormente. Se acalmou, mas ainda não havia desistido de ir. Ficou em pé. — Vou para casa. — Não, por favor! — Madame Daisy o segurou na perna. — Por favor, fique mais um pouco... — Não posso... — Não pode ou não quer? — perguntou.
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Bruno não a respondeu, o que deixou a resposta óbvia o suficiente para Madame Daisy. — Oh, você não me quer mais, por causa dela. Está indo encontrá-la, não é? — Estou. — Tome um chá comigo antes, por favor. — ela quase implorou. — E depois, te deixo ir. — Tudo bem. — Bruno aceitou. Madame Daisy deu-se por satisfeita. † No Facebook Gabi postou uma foto dela e Nando em uma exposição no museu de arte moderna. Depois, no Starbucks de um shopping. Mas não atendeu ao celular nenhuma vez, quando Julia ligou. Era até como se Gabi estivesse evitando-a. Nando também não atendia ao seu celular, mas dava sempre caixa postal, como se estivesse desligado. Julia se chateou, mas resolveu respeitar os amigos, afinal eles haviam acabado de reatar o namoro e talvez precisassem de um tempo sozinhos... mas com quem ela ia pedir conselhos? Queria um jeito de falar com Bruno, mas ele não estava retornando-a também. Deixou um bilhete por baixo da porta, chamando-o para ir até o seu quarto, mas não apareceu. Nem mesmo Lord Byron, que sempre entrava por sua janela! Era como estar abandonada por todos. Deitada em seu quarto, Julia se convenceu de que iria bater na porta de Bruno, levantou da cama e abriu a porta. Era já segunda-feira e fazia dois dias que não via o ex-namorado. Havia feito como ele pediu, terminara com Ivan no sábado, encerrando o assunto... e precisava contar para ele, para que pudessem reatar o namoro e serem felizes. Assim que abriu a porta, encontrou com seu pai, segurando a chave, pronto para destrancar a maçaneta. — Julia! — seu pai a chamou.
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— Oi, Pai... — ela sorriu. — Como foram os exames? Mas Clayton não falou com ela. Passou reto até a cozinha. Isabella entrou em seguida, andando devagar e segurando a barriga que parecia ser muito maior. Estava com uma feição horrível, o rosto inchado como se tivesse acabado de chorar. — Vem aqui, querida, precisamos conversar. Julia seguiu sua mãe até a cozinha, onde seu pai espalhava os exames na mesa da cozinha e uma chaleira já fervia água no fogão, para o escalda-pé que Isabella adorava fazer sempre que chegava em casa. — Vem aqui filha, esses são os exames da sua mãe. Fizemos e refizemos diversos ultrassom.... foi um dia bem cansativo. — seu pai suspirou. — E já sabem o sexo do bebê? Estou muito curiosa! — Julia exclamou enquanto arrastava a cadeira para sua mãe sentar-se. — Parece que são dois meninos. Sua mãe está grávida de gêmeos. — Gêmeos? — Julia levou um susto, olhou para sua mãe que retirava os sapatos. — Mas como? — Houve algum erro nos exames anteriores, não haviam identificado o segundo feto, mas... agora sabemos que são dois. Os médicos refizeram os exames várias vezes para confirmar e confirmou... — Mas isso não seria uma boa notícia? Por que estão com essas caras? — Julia se aproximou de seu pai e olhou os exames, dava para ver imagens de dois fetos, mas ela não conseguiu entender aqueles borrões. — Você sabe que a gravidez de sua mãe é de risco, por isso ela fica sempre em repouso. — Sei, sim.... — Bem, uma gravidez gemelar... é mais perigosa ainda. — Mais perigosa? — Julia sentiu um golpe no coração, olhou para seus pais asusstada. — Mais perigosa como? — Muito perigosa.
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— Ai, credo Clayton, assim você vai matar nossa filha! — Isabella se intrometeu e segurou no braço de Julia. — Seu pai está fazendo alarde... eu só vou ter que ficar de repouso mais severo, nada demais. — Isabella... — Deixa, Clayton, não tem pra quê assustar a menina! Guarde esses exames. — a mulher falou. — Julia tem outras coisas com o quê se preocupar, como o namorado por exemplo. Nunca mais vi Bruno por aqui, está tudo bem com vocês? — Eu estava indo visitá-lo... — Por que não visita ele mais tarde? Quero te mostrar as roupinhas que compramos e poderemos escolher dois lindos nomes para os bebês! — Tudo bem. — Julia queria encontrar Bruno, mas percebeu que havia algo de errado com sua mãe e seu pai, algo com os exames que Isabella não queria contar. Será que tinha algo a ver com seu desejo? Ela escrevera que sua mãe tivesse o bebê sem ter risco para ambos, será que isso significava que, agora que eles eram três, um deles estava em perigo? Só o pensamento a desesperou. † Bruno abriu os olhos. Reconheceu o lustre vitoriano de porcelana azul turquesa. O cheiro de chá de sândalo invadiu suas narinas. Mais uma vez, adormeceu no sofá de Madame Daisy e como sempre, acordava confuso com o que havia acontecido. Lembrava-se de ir até a mulher para dizer que não conseguia escrever nada de mal para Julia no livro, que tentou, mas não conseguiu... Sentou-se, mas o esforço fez sua cabeça rodar.. Vagamente lembrava de que Madame Daisy ficou irritada e que deu-lhe uma bela bofetada no rosto, tão forte que pareceu que havia quebrado o maxilar... mas depois ela se arrependeu, desculpou-se e ofereceu-lhe um chá.
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Eram sempre os chás. Ela devia jogar algum sonífero neles ou usar uma magia muito forte para ele dormir... ele sempre dormia. — Oh, você acordou. — a voz de Madame Daisy surgiu e com a visão um pouco embassada, Bruno a viu se aproximar, usando um belo vestido imperial francês feito de panos vermelhos e flores negras. Sentou-se no sofá ao lado dele, acariciando seu cabelo negro. — Está se sentindo bem? — Um pouco tonto... — Tsc. — ela fez com desgosto e estalou os dedos, fazendo uma xícara de chá surgir em sua outra mão. — Aqui, querido, tome esse chá. — Vai me fazer dormir? — Vai te fazer se sentir melhor. — ela estendeu a xícara de porcelana verde e bordas douradas para ele. — Beba tudo. Bruno pegou a xícara e deu um gole no chá de sabor adocicado. Um dos gatos de Madame Daisy subiu em seu colo, pedindo carinho. Ele tinha o pêlo branco e preto, malhado como o Frajola. Bruno imediatamente soltou a xícara em cima da mesa. — Não posso ficar, preciso por ração para Lord Byron. — Oh querido, em que mundo você está? — Madame Daisy pegou novamente a xícara, oferecendo para ele. — Lord Byron está no seu colo. Bruno olhou o gato novamente e agora ele tinha o pelo todo negro, bem felpudo e de nariz amassado como Lord Byron. Talvez seus olhos estivessem enganando-o. — Como ele entrou aqui? — Ele mora aqui. Se você ficar, ele ficará com você. — Madame Daisy segurou nas mãos de Bruno, fazendo-o segurar a xícara de chá. — Beba isso, querido, ande, vai te fazer melhor. Bruno sentiu-se confuso. Ué, Lord Byron não morava com ele, em sua casa? Tentou lembrar-se do dia em que levou o gato para casa e seu pai não queria deixá-lo ficar, mas as memórias se confundiram com o dia em que encontrou seu gato morto e afogado na privada.
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— Shhh, não pense nessas coisas, querido. Beba o chá. — Madame Daisy o acariciou na cabeça, passando a mão por sua testa tal como o carinho que Bruno recordava-se que Gisella fazia. — Depois eu deixo você ir para casa. Sentiu-se sonolento e deu mais um gole do chá. Ir para casa... o que ele precisava fazer por lá, mesmo? Não conseguia se lembrar. † Julia soltou o celular em cima da cama, cansada. Gabi ainda não retornara nenhuma de suas ligações. Não era bizarro? No Facebook a tela de Gabi postava um passeio com Nando, em algum canto da cidade, o que significava que Gabi estava bem e que seu celular estava funcionando, então por quê não atendia? Ela tinha mil coisas para falar com Gabi: Ivan, Bruno, sua mãe e a gravidez de risco... Olhou para o computador. A tela mostrava as ultimas atualizações do Facebook de seus amigos. Cidinha e Arthur haviam postado que estavam juntos em uma pousada de férias; Gabi tinha colocado uma foto de Nando comendo um algodão doce do outro lado da cidade; Andrezza postou uma foto dela com os amigos no Araçá e ela viu que Ivan e Priscila estavam entre eles. Teve certeza que isso era obra de Bruno. Ele disse que ia pegar o livro de volta, com certeza era para se vingar. Ela o conhecia como a palma da mão e sabia que Bruno era um garoto vingativo, que não contaria até dois para escrever alguma maldade naquele livro. Será que havia sido ele quem tinha escrito para sua mãe estar esperando gêmeos? Para que Gabi e Nando a abandonassem? Para que Ivan voltasse para Priscila? Sem perceber, Julia estava batendo na porta da casa de Bruno, com tanta força e raiva que as fortes batidas ecoavam pela rua desértica em pleno sábado a tarde. — Bruno! Abre essa porta, agora!
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Mas ele não abriu, da mesma forma como não respondeu seus bilhetes deixados por baixo da porta e muito menos respondido às mensagens de celular. Curiosa, ela girou a maçaneta e descobriu que a porta estava destrancada. Respirou fundo e entrou. Se Bruno achava que ia se esconder, estava muito enganado! — Olá? — procurou chamar por alguém, fechou o zíper do seu casaco de estampa de estrelas, sentindo frio. — Sr. Carlos? Bruno? — nada. A casa estava escura. — Lord Byron? Julia entrou, seus passos fizeram barulho e ela virou os olhos para seus sapatos pretos, encontrando os bilhetes que deixou para Bruno. Ele nem os leu! — Bruno? Primeiro ela passou pela cozinha, encontrando um bilhete de Carlos que deixara um dinheiro para Bruno se virar enquanto ele viajava a trabalho, mas que parecia não ter sido mexido. Então, resolveu ir até o quarto do ex-namorado, procurando-o. Subiu as escadas. A casa estava toda apagada e parecia bem vazia. A porta do quarto estava fechada, mas Julia entrou mesmo assim, virando maçaneta. A porta rangeu, emperrada e possivelmente mal colocada pelo marceneiro que Carlos contratou. O quarto estava escuro e todo bagunçado. O criado-mudo estava destruído, a cama estava desfeita, com os lençóis negros revirados. Haviam algumas roupas no chão, que Julia reconheceu como o uniforme escolar. — Bru? — chamou, mas parecia que a casa estava vazia. De longe, Julia reconheceu o livro vermelho em cima da cama. Talvez pudesse desfazer os pedidos de Bruno que acabavam com sua vida. Pé ante pé, andou até a cama e pegou o pequeno objeto percorrendo suas páginas, conferindo os seus últimos desejos. Foi um choque. Para sua surpresa, Bruno não tinha escrito nada no livro e nem distorcido seus desejos, o que a levou a outra
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constatação: com certeza era apenas o jinn agindo, como Bruno a avisara no primeiro instante que ele faria. Sentou-se na cama de Bruno e chateada, abraçou o livro, sentindo as lágrimas arderem seus olhos. Estava arrependida de ter utilizado o livro. Aquele livro era maligno, havia destruído sua vida... tudo bem, ela tinha escrito e desejado coisas, mas em nenhum momento desejou o mal, só o bem! Talvez Bruno soubesse como desfazer os feitiços. Ele era o dono do livro antes dela e com certeza, saberia utilizá-lo melhor. Onde estava Bruno agora que ela precisava tanto dele? — Miaaau. — Lorde Byron se roçou entre suas pernas. Ela enxugou as lágrimas e passou a mão nos pêlos do animal, notando que pela primeira vez, o gatinho estava despenteado. — Olá, Lord Byron! Está sozinho? Ele correu até o pote de comida, faminto, mas estava vazio. — Está com fome?— ela perguntou ficando em pé. Andou até o potinho de comida e tentou pegar em cima do armário o pote de ração, mas atrapalhada, derrubou o livro no chão. — Onde está seu dono relapso que não coloca comida pra você? — Miau! — o gatinho choramingou. Julia pegou a ração e espalhou no pote de ração, achou que Lord Byron fosse correr para cima da comida, mas o gatinho não foi. Procurou por ele e o encontrou sentado em cima do livro vermelho aberto. — Venha comer! — Miau! — ele cavou o livro. — Seu dono já vai voltar, venha comer. — Miau! — ele tornou a cavar, em mesmo lugar. Julia percebeu que Lord Byron tentava dizer alguma coisa, por isso, pegou o livro do chão e leu o que o gatinho apontava. — “Na encruzilhada mais próxima, todos os sábados das 22h as 22h10”. — Leu. Lord Byron olhou para ela com um miado fino. — Oh, entendi. Está me dizendo que ele foi para esse endereço? — Miau... — e o gatinho miou, como se concordasse.
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— Mas se ele foi, já tem uma semana que não aparece aqui? — Miaaau. — O gato confirmou. Julia se assustou. Bruno nunca deixaria Lord Byron abandonado por tanto tempo, ao menos, deixaria a janela aberta para que ele pedisse abrigo em sua casa, mas constatou que a janela — e toda a casa — estava fechada. Seu coração deu um pulo, ao constatar que havia algo de muito errado acontecendo.
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22 VISITAS INDESEJADAS † Era sábado. Pontulamente dez da noite. Julia estava em pé na encruzilhada mais próxima de sua casa, segurando o livro vermelho que tinha um jinn. As pessoas passavam depressa por ali, era uma rua bem movimentada. Os carros buzinavam impacientes com o sinal. Julia se perguntou se estava no lugar certo, o sinal fechou ficando vermelho e ela atravessou a rua, parando bem no meio: o centro da encruzilhada. Seu coração parecia doer e seus pensamentos estavam em branco. Sua mão segurava o pequeno livrinho vermelho. Os cabelos presos em um rabo de cavalo chicoteavam com o vento que soprava à direita, batendo em sua face. Sentia-se triste e abandonada. Não havia esperanças para ela. Talvez ela nunca mais fosse capaz de encontrar Bruno novamente... E seu cabelo parou de balançar, como se o vento cessase de soprar. Julia piscou os olhos quando notou que tudo ao redor havia mudado, não estava mais atravessando uma rua movimentada. Só havia silêncio. No alto de sua cabeça uma luz vermelha se acendeu. Ela virou os olhos escuros para uma placa em que se lia “Sebo da Esquina” em neon. Ao seu lado, uma porta azul turquesa marroquina surgiu. Parecia bem velha, quase sem tinta, como a parede de cimento enorme que a circundava.
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Julia sentiu o cheiro de incenso de sândalo que escapava pelas frestas e soube que era ali que teria que entrar. A porta estava trancada, ela torceu a fechadura diversas vezes, mas parecia em vão. O buraquinho cabia uma chave, mas ela não tinha chave nenhuma... E agora, como iria entrar? Pensou um pouco e constatou o que precisava fazer: do bolso da jaqueta tirou uma caneta escolar e escreveu um desejo no livro: “Quero que a porta do Sebo da Esquina esteja aberta para mim.” E como mágica, a fechadura destrancou com um “clique” e um “plim”, por causa do sino que ficava em cima da porta. Uma vez, Julia leu que os sinos ficavam em cima da porta para afastar que maus espíritos entrassem nas casas, entrentanto por algum motivo, ela teve certeza que o mau espírito estava ali dentro. Julia entrou devagar e com receio do que poderia encontrar, mas o lugar mais se parecia com uma sala de estar de uma casa de vó: aconchegante, com papel de parede floral e lustres de castiçais dourados com porcelana azul turquesa. Uma mesinha de centro segurava uma xícara de chá ainda quente, ao lado, um candelabro de porcelana verde com bordas douradas. O sofá tinha estofado bordô, ornamentado com almofadas verdes com franjas douradas que estavam servindo de travesseiro para Bruno. Ela nem podia acreditar no que estava vendo! Bruno estava mesmo ali. Ela podia ouvir sua respiração calma, enquanto ele dormia tranquilo, com a jaqueta que ele usava sempre na escola e de roupas pretas. Suspirou aliviada, por vê-lo bem. Guardou o livro e a caneta em seu bolso e andou a passos leves, sem fazer barulho até Bruno.
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— Bruno? — sussurrou, chamando-o, passou a mão por sua pele macia, tocando em seus lábios perfeitos cheios de piercings. — Ei, Bru? Ele pareceu despertar, franziu o cenho ao escutar sua voz e depois, abriu bem devegar os olhos celestiais. Ao vê-la, assustouse. Julia se afastou e Bruno sentou-se: — Quem é você? — perguntou colocando uma das mãos na testa cobrindo os olhos. — Como assim, Bru? Sou eu, a Julia, sua namorada. — Ex-namorada. — a voz de uma mulher soou logo atrás de Julia, com um timbre de arrepiar. Julia virou-se e encontrou com uma japonesa muito bonita. Ela usava um vestido azul e dourado como a decoração da sala, nos moldes do império francês do século 18. Ela estava rodeada de gatos, mas tinha os braços cruzados em desgosto. — Ora, ora, vejam só se não é uma visita indesejada. Julia entendeu que o adjetivo era para ela. A mulher parecia ser um fantasma morto, ou um ser demoníaco. Tinha os olhos vermelhos e sua boca era a mais completa escuridão capaz de engolir sua alma... sentiu medo e por isso, segurou no braço de Bruno, tentando fazer ele levantar: — Vamos embora daqui! A porta do sebo fechou com uma batida violenta e um estrondo quase ensurdecedor, abruptamente. — Não vai levá-lo a lugar algum! — a mulher japonesa de vestido vitoriano berrou, com a boca negra bem aberta. Bruno tentou se levantar, mas logo sentou-se de novo sentindo-se tonto. Ele enxergou as mãos delicadas de Julia, mas não conseguiu enxergar nada com foco. Bocejou, sentindo o corpo todo adormecer. Julia reparou que Bruno soltou o corpo para trás, tombando adormecido. Puxou o garoto pela gola da jaqueta, chacoalhando-o. — Bruno! Ele mais uma vez abriu os olhos, parecia estar muito cansado e sem forças.
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— Quem é você? — coçou os olhos, tentando acordar. — Sou eu, Julia! Sua namorada! Madame Daisy gargalhou, achando graça naquela cena. Julia virou-se para aquela estranha mulher, que a fitava intensamente com os olhos demoníacos como se a analisasse. — Humanos, adoram acreditar naquilo que convém. — ela falou com certo ar de superioridade. — Ele não é mais seu namorado, Julia. — Como você sabe meu nome? — Julia se assustou. — Conheço todos os seus desejos, um a um. Madame Daisy, a seu dispor. — Se é ao meu dispor, deixe-o ir. — Julia logo falou. — Claro, quando ele acordar. Por que não fica aqui e toma um chá? A mulher estalou os dedos e mais uma xícara apareceu na mesinha de centro, verde e dourada como a outra. O chá tinha uma cor marrom e parecia ser de alguma erva, pois o cheiro infectou todo o recinto. Julia observou que a outra xícara havia sido tomada até a metade e deduziu que era a xícara de Bruno. Com certeza aquela mulher estava drogando Bruno. — É o chá, não é? Você deu o chá a ele e o fez dormir desse jeito. — Julia perguntou com coragem, pois era uma acusação. — Hm, que interessante. Você deduziu isso sozinha? — Madame Daisy a provocou, mostrando-se descontente que seu truque não deu certo. — Eu achei que você não fosse muito inteligente, devido ao teor inocente de seus desejos... Estava cada vez mais óbvio que a mulher se sentia ameaçada pela presença de Julia e quanto mais a menina demorava-se por ali, mais ameaçada a mulher se sentia. Era como uma abelha, assustada e prestes a ferroar. — O que você é, realmente? — Muito mais poderosa que você. Posso te destruir com um estalar de dedos, tão rápido quanto fiz esse chá aparecer. — Pode? — Julia não acreditou, quase riu do que a moça estava falando, ergueu uma sobrancelha da cor do café em
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desdém. — Eu acho que se pudesse já teria feito, tão logo eu entrei aqui. Você mesmo disse que sou indesejada, no entanto, não conseguiu me impedir de vir. Madame Daisy contorceu o rosto com raiva, dedurando-se. Julia percebeu que estava certa e isso concedeu uma grande vantagem: confiança. — Que coisa! Eu achei que você fosse um demônio, uma succubus, qualquer coisa realmente poderosa... mas pelo visto você não pode usar seus poderes para nada além do que aquilo que está escrito no livro, não é? Deixe-me advinhar, o jinn que realiza os desejos, é você. Madame Daisy se irritou, correu até Julia para enforcá-la, mas seus dedos transpassaram o pescoço da menina. Julia berrou assustada e se afastou no impulso, mas percebeu que a mulher não tinha poder de lhe fazer nenhum mal. — AAAAA! — Madame Daisy berrou irritada, afastandose. — Eu ODEIO você! Você chegou do nada, roubou ele de mim! Depois de você, ele não vinha mais me visitar, não passava mais as tardes comigo! — O quê? — Julia se surpreendeu, virou os olhos para Bruno que continuava adormecido no sofá, meio caído para o lado. — Então o Bruno vinha aqui e não na casa da Priscila? — Priscila? Você diz aquela primeira namoradinha dele? Claro que não! Ele vinha até mim! Eu que estendi a mão a ele, eu que apresentei uma alternativa! Eu que permiti que ele controlasse a própria vida realizando todos desejos que ele quisesse! — E você acha que fez algum bem? Tenho certeza de que se ele soubesse do que o livro era capaz, ele nunca teria escrito uma letra! — Não tenha tanta certeza, menina, não subestime o que a amargura pode fazer com as pessoas! — Cala a boca! Você não percebe? Você destruiu a vida dele! — E o que você fez? — Madame Daisy perguntou.
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Julia sentiu uma pontada no coração ao constatar a verdade: Ela tinha mesmo destruído o coração de Bruno, ele devia ter sofrido tanto ao descobrir que ela tinha se beijado com Ivan... podia até visualizar a cena de Bruno indo até aquela mulher demoníaca atrás de consolo, por estar com o coração partido e sentindo-se perdido. Era isso, Bruno devia se sentir muito só e triste, para que um demônio como Madame Daisy se aproveitasse desses sentimentos para usá-lo e manipulá-lo daquela forma. — O que eu fiz foi errado, eu sei. Mas você foi muito pior! — Saia daqui, vá embora! Você não é bem vinda aqui! — Madame Daisy gritou, expulsando-a. — Eu só vou embora daqui com o Bruno. — e andou novamente até o garoto, empurrando Madame Daisy para o lado, quase derrubando a mulher no chão. Puxou Bruno novamente pelos braços. — Bru? Bru, acorda, vamos embora! Bruno despertou pela terceira vez, e tal como as outras vezes, não reconheceu Julia: — Quem é você? — perguntou, antes de colocar a mão na testa. — Tudo está rodando... — Não percebe? Ele prefere esquecer você. — Madame Daisy a provocou. Julia olhou para Bruno, que já adormecia de novo, por cima de uma almofada esverdeada, como uma criança se aninhando no colo da mãe. Percebeu que não conseguiria tirá-lo de lá saindo pela porta, especialmente com aquela japonesa maligna pronta para impedí-la. Só tinha um jeito de sair dali sem que a mulher pudesse impedir: desejando. Tirou do bolso o livro e a caneta. Madame Daisy abriu bem os olhos vermelhos em surpresa e abriu a boca em um berro gigante. Foi difícil escrever com o vento que saía da boca da mulher, mas Julia segurou firme a caneta entre os dedos e finalizou o desejo: “Que eu e Bruno
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possamos sair do Sebo da Esquina sem que nada possa nos impedir.” E de repente, tudo mudou novamente ao redor. Gotas de chuva fina caíram nos dedos de Julia, que ainda seguravam a caneta em cima do ponto final da frase. Ela ouviu buzinas, estava de novo no cruzamento... mas parecia que muito tempo havia se passado, pois estava amanhecendo. Bruno estava deitado no meio da faixa de travessia de pedestres, ela correu até ele guardando o livro dos desejos e a caneta em seu bolso; ajudou ele a levantar-se do chão. — Bru? Você tá bem? — O que... houve? — ele perguntou, virando os olhos para ela e aceitando ajuda para ficar em pé. Bateu a sujeira da calça. — Vem comigo, eu te conto tudo. — Julia o puxou pelo braço, pois os carros buzinavam impacientes por eles estarem atrapalhando o trânsito. † — Eu não quero chá. — Bruno afastou a caneca de sua frente, fazendo-a deslizar pela mesa da copa de sua casa. — É, tem razão. — Julia concordou e jogou na cabeça dele uma toalha, para que ele se secasse. — Quer um café? — Eu sinto como se estivesse doente... — Talvez você esteja uma semana sem comer. — ela constatou. Abriu a geladeira a procura de alguma coisa, mas até o leite estava estragado. — Nossa, Bru, acho que tem até aranha na sua geladeira..! — brincou. Bruno se permitiu rir um pouco e soltou as mãos da toalha, quando achou que tinha secado um pouco os cabelos. — Ao menos temos dinheiro para pedir pizza. — Às seis horas da manhã? Não acho que tenha algum restaurante funcionando... talvez eu deva ir lá em casa, pegar algo.
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— Não, por favor, não me deixa sozinho. — suplicou. Julia sentiu dor no coração pelo que escutou, o tom de voz dele estava péssimo. — Deve ter alguma coisa no freezer... Ela abriu a porta do freezer de cima da geladeira e achou um pote de sorvete de chocolate. — Tem sorvete. — Serve. Enquanto o silêncio dominava a cozinha, Julia serviu o sorvete em dois potes de vidro que achou em um dos armários. Entregou uma colher para Bruno e sentou-se na sua frente. — Quanto tempo faz que você conhece aquela mulher do Sebo? — Madame Daisy? — Oh, esse é o nome dela? — Julia se surpreendeu. Achava que ela teria um nome diferente, mais antigo, mais cruel. — Não sei, foi o nome que ela me disse. — ele deu de ombros e levou um pouco de sorvete a boca. — Quer saber, nem me lembro direito quando a conheci... só lembro de um parque. — Hm, há alguns minutos atrás você nem conseguia lembrar meu nome. — Julia observou. Suas roupas estavam úmidas, por causa da chuva que tomaram no caminho de volta para casa. — Tem razão... acho que deve ser aquele chá... — Acha? Com certeza é aquele chá, Bru... — Julia comentou enquanto observava Bruno dar mais uma colherada no sorvete, com fome e sem dizer mais nada. Era até estranho que ele não estivesse surtando com o que tinha acontecido, afinal, Madame Daisy havia mantindo-o em cativeiro por uma semana! — Mas me diz, o que ela quer com você? — Não sei... — ele não tirou os olhos do sorvete. — Como não sabe? A mulher te dá um livro capaz de conceder desejos e você não pergunta o que ela quer em troca? — Acho que ela me deu um gato também. — ele chacoalhou a cabeça. — Não, meu gato morreu no início das aulas, meu pai matou afogado...
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— Do que você está falando? Eu vi Lord Byron ainda ontem. — Julia não compreendeu. — É, acho que esse era o nome dele. — Bruno deu de ombros. — Meu pai odeia animais... já te falei isso, não falei? — Já... seu pai costumava ser... hmmm — parou um tempo escolhendo as palavras certas. — Difícil. — Cruel. — Você não costuma falar muito dele, sabe. Está sempre mais ocupado tentando esquecer que ele existe, fugindo. — Ah... — Bruno largou a colher e engoliu o ultimo teco de sorvete. Foi só então que ergueu o olhar carregado de emoção para Julia. — Seria um crime confessar que, por vezes, desejo que ele morra? — Eu acho que é normal... digo, por tudo o que eu sei que ele faz com você. — Você não sabe nem da metade da história. — Por que você nunca me contou. — ela soltou o sorvete pela metade e esticou as mãos por cima da mesa, alcançando os dedos finos de unhas pintadas de preto de Bruno, fazendo um carinho de leve. — Ele ja abusou de você? — Não... — Bruno desviou o olhar para o lado. — Não precisa ir até aí para destuir a dignidade de alguém. — Todas as vezes que falei para você chamar a polícia, você não queria... achei que ele te ameaçasse de alguma forma. — Por pior que seja, ele é tudo que me resta. — Você tem a mim, Bru. — Não é verdade. — ele afastou-se dela, colocando a mão no bolso da jaqueta. — Antes mesmo de você se apaixonar pelo Ivan, você era caidinha pelo Arthur... — Talvez você tenha um pouco de razão. Eu era louca pelo Arthur... mas aí ele me beijou daquele jeito horrível e tudo mudou. Eu não sabia que ele podia ser tão podre... — Ele não é. — Como não?
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— Tudo isso só aconteceu porque você desejou. Já parou para pensar no que teria acontecido, em como as coisas realmente seriam, se você nunca tivesse escrito nada no livro? Julia ficou calada. Não, ela nunca havia parado para pensar nisso, para retroceder. — Não. — Pois eu penso nisso bastante. O que seria do meu pai, se eu nunca tivesse escrito nada sobre ele, para começar? Quem garante que ele não poderia ser melhor? — Por acaso tio Carlos era legal antes? — Não. Ele não era legal... — Eu tenho outra teoria. — Você e suas teorias sem sentido... — Bruno revirou os olhos. — Eu acho que o livro não muda as pessoas, só de acordo com o que elas permitem. Eu não poderia escrever para o Arthur se apaixonar por mim, por exemplo. — Poder pode. Mas com certeza o livro transformaria a paixão em uma obsessão. — Porque no fundo, o livro não pode fazer com você aquilo que você não é. Por isso que o Arthur me beijou daquela forma terrível, por isso o meu pai só voltou para casa porque minha mãe está grávida... por isso a Priscila te esqueceu, acho que no fundo, para ficar bem com o Ivan ela desejava que nunca tivesse se envolvido com você. E seu pai... Ele se preocupa com você, no fundo. — Faz sentido... — Por isso a Gabi e o Nando voltaram. — Por isso minha mãe me abandonou. — Eu sinto muito, Bru... sinto muito que sua vida tenha sido assim tão ruim a ponto de você acreditar nas promessas daquela mulher. Ela usou você! Manipulou seus sentimentos... — Ah... me lembro agora. — Bruno colocou as mãos na cabeça. — Eu tentei devolver o livro a ela... depois do que aconteceu com o Juninho eu não queria mais usar o livro. Ele
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podia ter morrido e eu nunca quis matar ninguém. Eu me assustei. Mas aí ela me ofereceu aquele chá e me deu um gato... — Lord Byron. — Mas esse gato não pode ser Lord Byron. — Bruno soou confuso. — Lord Byron morreu, meu pai afogou na privada... — Hm... ela está manipulando você. Com certeza te deu um gato e aquele chá, te fez achar que o gato era seu antigo gato, Lord Byron. — Ah. — Bruno jogou-se por cima dos braços, escondendo a cabeça entre eles. — Você tem razão, só pode ser isso. — Dizem que os demônios se apegam aos sentimentos ruins das pessoas... mas não sei o que Madame Daisy viu de tão ruim em você para te perseguir assim. — Ódio. — Bruno falou, de dentro de seus braços. — Você tem um coração mole demais, Bru. Não consegue denunciar seu pai, não consegue negar ajuda para a Priscila e o Ivan mesmo depois de tudo o que eles fizeram contigo, não consegue nem me dar um fora... — Quando a vida é injusta contigo, você passa a odiar todo mundo. É como se toda a frustração que você carrega tomasse outra forma. Vira ódio... e tudo o que você quer fazer é se vingar. — Entendo. — Julia acariciou os cabelos de Bruno. — Sinto muito ter te conhecido... o livro nunca teria ido para você se não tivéssemos nos cruzado. — ele levantou a cabeça. — Eu sei que muitas coisas ruins aconteceram quando estive com o livro em minhas mãos, mas... conhecer você foi a melhor coisa que já me aconteceu, Bru. — Julia contornou a mesa para abraçá-lo. — Por favor, não se arrependa de nós. — Não me arrependo de nós... mas me sinto responsável pelo que trouxe até você. — Não se preocupe, eu nunca mais vou escrever naquele livro de novo. E dessa vez, pode confiar na minha promessa. — e para selar aquela promessa, Julia o beijou com saudades. †
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Quando despertou, Julia percebeu que estava sozinha e sem roupas por dentro dos lençóis negros de Bruno. Sorriu que nem boba, cheirando o travesseiro, sorvendo a goles largos o perfume do garoto. Sândalo. Levantou-se, procurando suas roupas na bagunça do quarto. Colocou a calcinha e o sutiã de renda preta, cobrindo o corpo com a camiseta de Bruno. Vestiu sua calça jeans e não encontrou seus sapatos. Desceu as escadas descalça, amarrando uma trança em seus cabelos compridos e castanhos escuros. Sentiu cheiro de café e andou até a cozinha, mas antes de atravessar a sala, escutou vozes. — Na boa, esse deve ser o pior café que eu já tomei em toda minha vida. — parecia a voz de Ivan. — Joga fora e faz um novo. — era a voz de Bruno. — Eu achei ótimo. — parecia ser Priscila. Julia sentiu o coração comprimir. O que estava acontecendo? Por que Ivan e Priscila estariam na casa de Bruno naquele instante? Curiosa, esticou o pescoço para olhar dentro da cozinha e certificar-se de que não estava sonhando, nem nada do tipo. Bateu os olhos primeiro em Priscila, sentada na mesa degustando uma pequena xícara de café, usando um vestido negro como suas botas, de cabelos tingidos de roxo como os de Ivan, que estava em pé perto da pia, jogando fora o café que achou ruim, usando calça jeans preta rasgada e uma camiseta branca cheia de furos, de estampa preta de alguma banda esquisita que provavelmente só ele conhecia. Não, não era o sonho. Era ainda pior: era real! Não teve coragem de surgir na cozinha daquele jeito, usando as roupas de Bruno e sem saber o que estava acontecendo. Não era Bruno que dizia detestar Ivan e Priscila? O que fazia ele ali tão confortável ao redor dos dois? — E aí, vão dizer o que vocês querem aqui ou vão querer que eu asse um bolo também? — Bruno perguntou, em pé perto da
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mesa, com as mãos no bolso da calça jeans e usando uma camiseta toda amassada. Julia reparou que ele também estava descalço e os cabelos bagunçados denunciavam que ele havia saído da cama naquele instante. — Não se for tão ruim quanto esse café... — Ivan soltou a xícara em cima da pia. — Van... — Priscila o repreendeu. Ela remexeu em sua bolsa que tinha a forma de um caixão, com uma cruz branca decorando e tirou de lá um maço de notas de alto valor, o que parecia ser muito dinheiro. — Viemos te devolver isso. — Pra quê? — Pra você engolir. — Ivan virou-se para Bruno com violência, fazendo o garoto pular de susto. — Não precisamos da tua grana de garotinho mimado, tá sabendo? Cara... por que você deu isso a ela? Por que disse que nunca teve nada com ela e que te pagaram pra mentir, sendo que você sabe, melhor do que ninguém, que vocês já até transaram! — Porque eu quis. — Bruno deu de ombros. — A garota que você disse que quer roubar o Van de mim, é a Julia, sua ex-namorada. Ele me disse que ela está tentando voltar com você, mas que você disse que só ia topar se ela desse um fora no Van... — É, foi. — Pra quê, meu? — Pra você deixar a Julia em paz. — Mas você sabe que ela gosta de mim. — Ivan cantou vitória. — E eu sei que você não presta. — Bruno respondeu com frieza. — Você pode fingir pra quem você quiser que se importa com a Julia. — Você sabe que a Julia transou comigo aquele dia no Halloween, não sabe? — Cara, para com isso.
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— Tá com ciúmes que sua mina deu pra mim igual uma gata no cio? Quero saber se doeu, Bruno, se isso te fez chorar igual um emo. — Van! — Priscila o repreendeu de novo. Jogou o bolo de notas para Bruno, que pegou no ar. — Eu vim só te devolver isso. Sinto muito ter esquecido de você, me desculpa. Vamos embora agora, Ivan? Com o anúncio, Julia se escondeu antes que eles a vissem por ali. Priscila passou primeiro, indo até a porta de saída. — Vamos. — Ivan passou pela porta da cozinha, mas antes de alcançar Priscila, olhou para Bruno com desdém. — Vou estar aqui esperando a Julia se tocar de que não gosta de você. Manda um beijo pra ela... ah, pensando bem... deixa que eu mesmo pego um beijo dela quando a encontrar, afinal, ela não resiste, né? E foi assim que Priscila e Ivan deixaram a casa de Bruno. Julia se sentiu meio tonta com tudo aquilo, ver Ivan falando daquela forma era como estar em uma realidade paralela onde Ivan fosse outra pessoa, uma pessoa bem diferente daquele cara carinhoso e olhar sincero que ela achava que conhecia. Ivan era mesmo um jogador, que estava apenas representando um papel. Julia deixou seu esconderijo atrás do sofá e entrou na cozinha, onde Bruno estava ainda em pé no mesmo lugar, com uma expressão destruída. Dava para ver que ele tinha ficado abalado com as visitas indesejadas. — Bru? Ele pareceu sair de uma espécie de transe, virando os olhos para ela de repente. — Você o escutou. — disse, com chateação. — Vá atrás dele, sei que é isso que você quer fazer. Julia suspirou cansada e foi até Bruno. — Você está errado. Eu já decidi que quero estar com você. — Não vale se não for de coração. — Bruno afastou-se. Soltou o bolo de notas em cima da mesa antes de sair pela porta da cozinha. — Você devia ir pra casa, meu pai está chegando e eu vou tomar um banho.
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— Espera. — Ela pediu, fazendo ele se virar. Andou até Bruno e o abraçou, procurando seus lábios, que ela achava tão perfeitos, para um beijo. Ele virou o rosto, como fazia sempre que estava chateado com ela. — Você sabe que eu te amo, não sabe? — Eu sei que eu te amo. — Eu vou te provar que eu te amo. — Não precisa... — ele segurou nos braços dela, livrando-se do abraço. Com delicadeza, beijou sua testa. — Já disse que consigo suportar que você se envolva com o Ivan... apenas cumpra sua promessa dessa vez. Por favor... — Eu vou cumprir. Não vou fazer nada escondido de você. Ele ensaiou um sorriso, mas não saiu. Julia se sentiu culpada, seu coração se comprimiu querendo parar de bater. Com os olhos cheios de lágrimas, Julia deixou que Bruno se afastasse dela mais uma vez. Já naquele instante, havia decidido que tinha uma promessa que não iria cumprir. † “Eu quero que Madame Daisy perca totalmente seus poderes após realizar meu próximo desejo.” Era tarde da noite. Julia estava sentada em sua cama com uma caneta na mão. Tremia, com medo e tristeza. Seus olhos carregados de lágrimas embassavam sua visão. Usava apenas uma camisola cor-de-rosa, enquanto seus pais dormiam. — Miau! — Lord Byron, ou qualquer outro gato que fosse, chamou sua atenção como se pedisse que ela não desistisse agora. — Eu sei, eu sei. Mas estou louca de medo do que pode acontecer... eu não posso errar dessa vez, porque só tenho uma chance.
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Ele se roçou em seu braço, numa tentativa que parecia a de querer de dar apoio ou força. Julia secou as lágrimas com as duas mãos e virou a página do livrinho dos desejos, pronta para escrever seu último desejo. — Vamos lá. Havia pensado muito bem em que palavras tinha que usar para que seu pedido desse certo, fosse um sucesso absoluto e não desse errado. Seria irreversível para todo o sempre... e ela teria que conviver com o erro. Respirou fundo, pesadamente. “Desejo que todos os desejos aqui escritos nunca tenham sido escritos por ninguém.” Ela fechou o livro. — Miauuuu. — Será que vai funcionar? Bruno me disse que não havia contra-feitiço... — ela largou o livrinho em cima da cama e acariciou Lord Byron. — Se bem que não é contra-feitiço quando é um feitiço... de qualquer forma, agora não podemos fazer mais nada... eu quebrei uma promessa e escrevi no livro... e Madame Daisy, não existe mais. — Miau. — o gatinho se aninhou em cima de Julia para dormir. — Espero que o Bruno possa me perdoar um dia... — A menina bocejou, sentindo-se sonolenta. Julia adormeceu logo em seguida.
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23 RECOMEÇO † O despertador começou a apitar as seis horas da manhã. Julia abriu os olhos e se remexeu na cama. Esticou o braço colocando-o para fora do lençol e bateu a mão no rádio relógio. Estava tão frio fora das cobertas que ela se enrolou mais, pronta para mais algumas horas de soneca. — Julia, minha filha, você vai perder a aula. — a voz de Isabella a despertou. — Aula? — Julia estava de férias, ao menos, era o que lembrava-se. — Mas eu estou de férias. — Acho bom você levantar, ou vai perder a carona. Carona. Bruno. Isso fez Julia sentar-se na cama, mas quase morreu de susto ao encarar a figura de Isabella na sua frente, magra, sem barriga de grávida, usando um terninho pronta para ir trabalhar. — Você não está mais grávida? — Morreu do coração. Será que sua mãe tinha perdido os bebês? — Grávida? — Isabella gargalhou, segurando uma caneca quente, da qual dava para ver o vapor. — Só se for do espírito santo, né, filha! Eu não estou namorando ninguém desde que me separei do seu pai. — Que dia é hoje? — Julia perguntou de repente, desceu da cama e tropeçou em uma caixa de papelão que estava escrito “Coleção de quadrinhos” com sua letra, de caneta vermelha.
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— Julia, tome cuidado, meu amor. — Isabella arregalou os olhos castanhos em susto. — Que dia é hoje... você só pode estar brincando, é seu aniversário, lembra? — Meu aniversário? — Julia congelou ao constatar o óbvio. Seria possível que o tempo tivesse andado para trás? — Te dei os parabéns meia noite, comemos um bolo... e você ficou de escolher seu presente de aniversário no fim de semana, afinal, hoje eu tenho que resolver uma coisa importante do serviço e não poderíamos jantar. — Ah, lembrei. — Julia falou e se atirou em direção ao seu armário, colocando o uniforme o mais rápido possível. — É melhor eu me apressar, quero chegar cedo hoje. — Tome ao menos uma xícara de café... vou te levar até a escola, não precisa correr. † Encarando a porta do Colégio São Valentim, Julia perdeu a coragem de entrar, fincando os dois pés no chão de cimento, como se de repente, criasse raízes. — Feliz aniversário! — Gabi a abraçou de repente. Ela estava com um pirulito vermelho na boca e tinha os cabelos soltos, usando lentes azuis. Julia ficou calada sem saber o que dizer. — Dezesseis anos! Já tá na hora de você passar para a fase dois com o Arthur! Julia tentou forçar um sorriso, mas não conseguiu. Estava revivendo a mesma coisa duas vezes, como um “erro na matrix”. Pensar nisso a carregou imediatamente para as memórias que tinha com Bruno, será que tudo estava perdido? — Ih, que foi? — Gabi pareceu preocupada. — É que você fala como se o Arthur fosse meu namorado e ele não é. — soou aborrecida. — Ele era seu vizinho e te dava carona na volta para casa todos os dias. — Gabi retrucou. — E vocês se conhecem desde sempre!
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— O que faz de nós amigos e não namorados... — Julia revirou os olhos e começou a andar em direção á sala de aula. — E como foi o fim de semana? — Mudou de assunto. — O mesmo lixo de sempre! — Gabi ajeitou a sua mochila nas costas, os chaveiros balançaram fazendo um barulho de chocalho e tirou o pirulito da boca para falar. — Fiquei de castigo, meu namoro quase acabou! Julia já sabia o que a amiga ia dizer, lembrava-se dessa conversa. — Meu pai me pegou transando com o Nando no meu quarto domingo! Dá pra imaginar a confusão que foi? — E como se resolveu? — perguntou mesmo já conhecendo a resposta. — Não posso usar o telefone depois das nove, não estou com meu celular e o Nando não entra mais no meu quarto. Vou ter que dar um jeito de dar umas escapadas aqui da escola..! — colocou o pirulito na boca. — Ai, Gabi, você não toma jeito mesmo! — A vida “com jeito” é muito sem graça! Prefiro as aventuras! — Gabi esticou as sobrancelhas para cima. — É, você já me disse isso! — Julia riu. — Ahn? — Gabi não entendeu, pois para ela, aquela era a primeira vez que Julia dizia essas coisas. Ela ficou parada no corredor, mas viu Julia desviar do caminho de sempre, indo parar na frente da porta da sala A. — Ei onde você tá indo? — Vou visitar o Arthur e a Cidinha, preciso ver se eles estão bem. — Julia disse, esticando a cabeça para dentro da sala. — Relou! — Gabi falou do seu jeito de sempre. — O que está havendo com você? Você sabe que o Arthur e a Cidinha sempre ficam na quadra antes das aulas, treinando vôlei. — Oh. — Julia mesmo assim espiou dentro da classe, mas não encontrou os dois. Possivelmente Gabi tivesse razão. — É mesmo, esqueci... — Credo, acho que a separação dos seus pais mexeu mesmo com você... — Gabi ergueu uma sobrancelha desconfiada,
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remexendo o pirulito dentro da boca. — Como foi a mudança, por falar nisso? — Está uma zona lá em casa, a maior parte das coisas encaixotadas... — Julia balançou a cabeça e andou até a porta da sala “D”, onde bem ao lado alguém havia escrito “errotados”, para completar a palavra “Derrotados”, possivelmente coisa da Classe A. — E algum vizinho gatinho? — Gabi quis saber. Julia parou estática na porta da classe, dando passagem para Bruno que chegava naquele mesmo instante. Congelou, enquanto analisava cada detalhe de Bruno: ele usava sempre uma jaqueta militar preta por cima do uniforme escolar, mesmo em dias de calor, seus olhos da cor do céu e do mar estavam escondidos por trás de óculos escuros e ele tinha três piercings nos lábios, ah... “aqueles” lábios! Devia ser proibido que um garoto tivesse lábios tão perfeitos como aqueles. Sem perceber o que estava fazendo, ela segurou no braço dele, impedindo-o de entrar na sala: — Ei, Bru! — chamou. Bruno estava de fones de ouvido e não escutou ser chamado, mas virou os olhos na direção das delicadas mãos da menina, que envolviam seu braço, impedindo-o de andar. Como se fosse um crime que ela o segurasse, ele a olhou, sem dizer nenhuma palavra, esperando que ela dissesse algo. — Desculpe. — Julia o soltou, percebendo o que fez por impulso. Lançou um sorriso sem graça, entristecida. Enquanto Bruno se afastou, entrando na sala em direção ao seu lugar, Julia percebeu o que estava estampado debaixo do seu nariz o tempo todo. De alguma forma ela havia voltado no tempo, para uma época em que Bruno e ela eram apenas dois colegas de classe que não se conheciam e nunca se falavam. A constatação de que agora eles não tinham mais nada em comum foi como um golpe em seu estômago. Ela sentiu-se tonta.
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— O que você tá fazendo, sua louca? — Gabi bateu em seu ombro. — Por que você foi toda íntima com o esquisito do “Pinhead”? — Eu preciso vomitar! — Julia avisou, segurando a boca e girando sobre suas botas, correndo o mais rápido possível na direção do banheiro feminino. Juntou os cabelos como conseguiu, apressada, levantou a tampa da privada fedida do banheiro escolar e vomitou todo o seu café da manhã. Que droga, que droga! Será que seus desejos tinham dado errado? Será que apenas os seus desejos tinham sido apagados da história? Será que Bruno ainda tinha o livro? Será que ele se encontrava com Madame Daisy nas tardes que fugia de seu pai? Isso explicaria os óculos escuros, com certeza Bruno tinha um olho roxo! — Não acredito nisso! — Gabi exclamou logo atrás dela. — Você vomitou. — É, tou me sentindo mal... — Julia pegou papel para limpar a boca e deu descarga. — Me empresta sua escova de dentes. — Você vomitou por causa do “Pinhead”. — E daí? — E daí que você panicou! Igual panicou por causa do Arthur... você... você tá apaixonada! — Gabi, isso não é nem verbo! — Julia foi até a pia, onde encarou-se de olhos vermelhos e parecendo um trapo. — Vai, me empresta sua escova de dentes. — O Nando vai pirar quando souber disso. — Gabi decretou com um sorriso e pegou da mochila sua necessaire com a escova de dentes e uma pasta. † O professor gorducho e de bigode, parou na frente de Bruno, segurando os pesados livros de química e a lista de chamada:
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— Você não pode ficar de óculos escuro aqui na sala. — ele avisou. Bruno desencostou a cabeça da mão, onde segurava o fone de ouvido escondido. A classe inteira pareceu prestar atenção no que estava acontecendo, pois era raro um professor implicar com alguma coisa que qualquer aluno da Classe D fazia. — Estou com conjuntivite. — ele avisou. A classe lançou uma risadinha. Do outro lado da sala, Julia virou a cabeça prestando atenção no que estava acontecendo e abandonando o desenho de um gato preto que fazia em seu caderno. Até Nando que dormia por dentro de seu capuz cinza, levantou a cabeça. — Consiga um atestado para não vir na aula, aqui você segue as regras. Ande logo e me dê esses óculos. — o professor estendeu a mão rechonchuda para o menino. Bruno suspirou, enfadado, mas obedeceu o professor: tirou os óculos escuros entregando para o homem e revelando para todo mundo o olho roxo que tentava esconder. Julia sentiu o coração pular diversas batidas ao ver aquele olho roxo. Tinha algo de errado: o olho roxo de Bruno devia acontecer na sexta-feira e não na segunda. A classe riu de novo, e o professor, satisfeito, foi em direção à sua mesa escrever no quadro negro. — Se soubessem o que ele passa, duvido que estivessem rindo! — Julia soltou, como uma confissão para seus amigos. — Desculpe? — Gabi virou para ela imediatamente, perplexa. — Desde quando você sabe o que se passa com ele? Julia desviou dos inquisitores olhos de lentes azuis de Gabi para os olhos de Nando cheios de interrogações. — Não sei, digo, eu imagino... um cara que se fura tanto assim deve ter algum problema em casa... — e voltou com os olhos para o seu desenho, tentando fugir daquelas interrogações. — Você está stalkeando ele. — Gabi constatou, mesmo que errado. — Quê? — Nando nem entendeu.
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— Ah, Nando, se você dormisse menos já tinha se ligado como eu! A Jujuba tá apaixonada pelo “Pinhead”. — Não estou apaixonada! — Está sim! Até vomitou porque falou com ele! — Nossa, que romântico isso, não é? — Julia revirou os olhos, mas ficou com as bochechas vermelhas. — Viu, tá apaixonada, está ficando vermelha como meu pirulito! — e quase encostou o pirulito na bochecha de Julia, para comparar. — Sério? — e um sorriso se formou no rosto de Nando. — Se quiser eu falo com ele! — Você fala com ele? E desde quando ele fala? — Bem, não pessoalmente... ele joga no mesmo horário que eu. E ele é “debuffer”. Vocês têm noção de como um bom “debuffer” de damage control é raro hoje em dia? — Não, não sei. — Gabi virou-se para o outro lado. — Você e esses seus jogos ridículos. — Não são ridículos. — Pode ser. — Julia falou. — Quê? — Sério? — É, sério. — Julia disse. Nando e Gabi olharam para ela pasmos, ambos boquiabertos. — Podíamos ir em alguma lanchonete depois da aula, afinal, é meu aniversário. — Vou mandar um SMS para ele agora! — Nando pegou o celular. — Não, meu! — Gabi puxou o celular da mão de Nando, impedindo-o. — Ele pode... sei lá, devorar a alma dela por causa disso! — Não exagera, Gabi. — É sério Jujuba! Sabe o que dizem dele por aí? — Gabi virou para a amiga, alertando-a. — Que ele tem um pacto com Satã? — Julia perguntou, adiantando-se àquele diálogo.
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— Não... — Gabi fez cara de estranhamento, como se Julia tivesse ficado louca. — Para com isso, Gabi, você tá parecendo uma louca. — Nando falou. — Devolve meu celular, a Julia quer sair com ele. — Eu estou tentando proteger a Jujuba! — E virou para Julia, lançando um olhar preocupado para cima da amiga. — Vai que o Juninho passa a te perseguir também? — Juninho? — Julia levou um susto. Ela havia escutado bem? Juninho? — O cara do terceiro ano que brigou com o Bruno semana passada. — Nando explicou. — Brigou? Brigou como? — Julia arregalou os olhos assustada. — Dãaaaa, em que mundo você está? — Gabi deu um beliscão em Julia. — Por que você acha que o olho dele tá roxo? O cara é um armário! — Ai, isso doeu! — ela reclamou, mas o beliscão serviu para ter certeza de que não estava sonhando. — E o que aconteceu com os amigos dele do último ano? Ninguém foi defender ele, não? — Que amigos do último ano? — Gabi esticou as orelhas, curiosa. — Nem sabia que ele tinha amigos. — Você diz o pessoal da Per? — Nando perguntou. — É isso, eles. — Uau, você stalkeou mesmo a vida dele, ein! — Gabi assustou-se. — Eles brigaram por causa de um rolo. — Nando deu de ombros. — Ele até saiu da guilda... mas eu jogo com ele sempre que ele tá online. — Oh. — Julia nem acreditou. — Eu desisto, você é um caso perdido. — Gabi revirou os olhos e devolveu o celular para Nando. — E aí, Jujuba, ainda quer que eu mande SMS para ele? — Não. — Não?
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— Deixa que eu mesma mando. — e pegou o celular da mochila, acessando a página de contatos. Descobriu que tinha o número de Bruno registrado. — Não acredito, você conseguiu até o celular dele! — Gabi quase desmaiou, mas esticou o olhar para o celular de Julia, querendo ler a mensagem. — Você vai mesmo fazer isso? — Vou, vou sim. — Julia digitou a mensagem, dizia: “Oi Bru, é a Julia sua colega de classe, eu sento aqui perto da janela... hoje é meu aniversário e estou chamando o pessoal para um lanche depois da aula, quer ir? Ouvi dizer que a batata frita do lugar é ótima.” — Você nem sabe se ele gosta de batata frita... — Gabi provocou. Julia lançou um olhar de desdém para a amiga. — Oh, você stalkeou isso também. Com um sorriso divertido, Julia enviou a mensagem. Ergueu a cabeça e viu quando Bruno se remexeu, pegando o celular do bolso da jaqueta. Foi incrível ver o momento em que ele levou uma espécie de susto e virou a cabeça na direção da janela, para conferir se ela estava lá. Julia lançou seu melhor sorriso e deu um tchauzinho. Gabi se afundou resmungando um “não acredito!” e Nando acompanhou Julia dando um segundo tchauzinho, achando tudo muito interessante. — Ei, você vai chamar o babaca do Arthur também? — Nando quis saber. — Não! Aposto que ele nem lembra do meu aniversário. — Julia deu de ombros. † — Na boa, achei que góticos só passeassem em cemitérios. — Gabi decretou jogando-se sentada ao lado de Nando, colocando a mochila no chão. Ergueu os olhos para Bruno, em uma espécie de provocação. — Só na sexta-feira treze. — ele retrucou, um tanto ácido.
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Julia sentiu as bochechas pegarem fogo, ao sentar-se do lado de Bruno. Ela juntou os cabelos com as mãos, colocando-o para o lado. — Não liga pra ela, cara, a Gabi tem P.h.D. em encher o saco dos outros. — Nando explicou, tentando desculpar a antipatia da namorada. — Eu sou muito legal, tá? — Gabi revirou os olhos. Uma garçonete se aproximou deles, com o bloquinho de notas prontas para anotar o pedido dos jovens. — Eu vou querer... — Nando analisou o cardápio. — Esse combo com um x-burguer duplo! Ah, e pode ser com um ovo no meio também? — Pode sim. — E eu.... — Gabi demorou pensando. — Diz aí, Jujuba, a batata frita daqui é mesmo boa ou você só inventou isso para fisgar o Bruno? — Foi só para fisgar o Bruno. — Julia respondeu fingindo um tom irônico para que sua resposta se passasse como uma brincadeira, mas a verdade era que estava louca para vê-lo comer batata frita mais uma vez, pois achava que ninguém mastigava de forma tão sexy quanto ele. — Nesse caso, eu vou querer só a batata, mesmo. — Bruno respondeu, largando o cardápio em cima da mesa. — E uma coca. Gabi e Nando ficaram em silêncio, perplexos. Julia começou a rir para quebrar o silêncio que se formou e Bruno riu também. — Calma, gente eu estou brincando. — ela disse. — A batata daqui é muito boa, pode pedir. Viu quando Nando e Gabi voltaram a respirar. Eles fizeram seus pedidos e a garçonete se afastou. Rapidamente um garçom trouxe as bebidas. — E aí, Bruno, onde é que você mora? — Gabi perguntou, enquanto Bruno enfiava uma batata na boca. — No cemitério? — Ai, Gabi, como você é implicante! — Nando se aborreceu.
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— Não estou implicando, estou só perguntando! — Está implicando sim, onde é que já se viu alguém morar em um cemitério. — Eu moro perto do cemitério. — Bruno falou. Julia virou para ele com surpresa, um pouco entristecida por saber que ele morava longe. — Sério? — Nando arregalou os olhos, perplexo. — Não. Eu moro no Jardim Europa. — Bruno revirou os olhos e deu risada, achando engraçado que tivessem acreditado nele. — Que susto. — Julia deixou escapar. Todos viraram para ela. — Quer dizer, nada de errado morar perto do cemitério, mas é que seria bem inusitado... — A Julia mudou para lá nesse fim de semana. — Nando brincou. — Vai que vocês são vizinhos. — Até parece! — Gabi deu um gole em seu milkshake. — Seria muito bizarro, se fosse verdade. — Onde você mora? — Bruno quis saber. — Rua Áustria. — Julia informou. — 735. — Então você é minha vizinha, mesmo. — Incrível. — Nando se surpreendeu. — Vocês podem até voltar juntos todos os dias. — Seria bem legal. — Julia suspirou e virou-se para Bruno. — Não seria? — Depende, isso inclui um convite para entrar pela sua janela? — Talvez inclua... — Ai meu Deus. — Gabi ficou em pé. — Preciso de outro milkshake, vem Nando. — Mas o seu ainda tá cheio... — Mas preciso de um novo, o meu já derreteu... — Gabi puxou Nando pelo braço, que quase caiu da mesa. — Vem logo, deixa de ser um mané! Quando Nando ficou em pé, Gabi se inclinou com as mãos juntas, para cochichar ao ouvido de Julia:
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— Na boa, não acredito que você vai perder o BV com esse esquisito. Julia a afastou como quem afasta a um mosquito que está incomodando. Lançou um olhar aborrecido para Gabi, mas Nando puxou a namorada pelos ombros. — Vai querer de chocolate? — Morango... — Gabi falou à contragosto, afastando-se. Julia encheu a boca com seu milkshake de chocolate e Bruno enfiou mais uma batata na boca. Ela não evitou, mas se pegou pensando em beijar a boca de Bruno agora que tinha a chance, estava morrendo de saudades dele, mas ao mesmo tempo... tinha medo de como ele iria agir agora que eles eram dois completos desconhecidos. — Já que você não vai dizer nada... — Bruno interrompeu o silêncio, mastigando mais uma batata. — Eu preciso te perguntar... A menina ergueu o olhar castanho escuro para ele, curiosa. — O que diabos você escreveu no livro dessa vez? — Quê? — ela se assustou. O coração bateu à mil por hora. — Só pode ter sido você, porque eu não fiz nada... — Você se lembra? Eu achei que tinha esquecido de tudo como todo mundo! — Julia colocou a mão no peito, sentindo o coração acelerar. Seria melhor que ele tivesse esquecido, do que estar jogando os olhos glaciais para cima dela de novo. — Eu te avisei que não há contra-feitiço. É claro que eu me lembro. — ele suspirou. Enfiou mais uma batata na boca. — Achei que você não ia mais quebrar promessas. — Foi a última vez. Eu estava tentando concertar as coisas! Desejei para a Madame Daisy perder os poderes completamente... e de alguma forma, voltamos no tempo. — Não voltamos no tempo. — Bruno estranhou o que ela disse. — Minha mãe não está grávida, eu acabei de me mudar, Arthur e Cidinha estão ótimos, Nando e Gabi estão exatamente como sempre... — Julia enumerou.
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— Não voltamos no tempo. — Bruno balançou a cabeça. — Hoje de manhã meu pai não estava em casa, sabe o que eu descobri? — Não... — Ele teve prisão preventiva decretada pela minha mãe há um mês; E ela quer se casar com o advogado... — Sua mãe está na sua casa? — Está. Ela fez até panquecas hoje cedo... mas me deixou de castigo porque eu briguei com o Juninho na escola. Ainda bem que já tou acostumado com olhos roxos... e castigos. — Fiquei sabendo do Juninho. E teoricamente, você se afastou da Priscila tão logo ela terminou com você. Ou seja, você nunca encontrou a Madame Daisy e está vivendo como se nada tivesse acontecido! — Claro, como se isso pudesse apagar permanentemente que você me traiu com o Ivan. — E não apaga? — Julia perguntou aborrecida, cruzando os braços. — Nessa realidade, eu nem conheço o Ivan. — Teoricamente, nessa realidade, nem a gente se conhece. — Quer saber? Você tá sendo um egoísta! — Eu? — É, Bru! A gente ganhou a chance de recomeçar! Tudo bem, nossas memórias não foram resetadas como a matrix, mas pelo menos podemos valorizar as coisas boas que nos aconteceram dessa vez. — Você é tão inocente! Quem garante que coisas ruins não vão voltar a acontecer? Pode ser que tudo fique até pior... eu te avisei, nada de bom sai daquele livro! Julia sentiu os olhos arderem com suas lágrimas, mas procurou segurar o choro e manter a calma. Segurou no braço de Bruno: — Bru, por favor... me escuta... — pediu. Como ele ficou calado, ela continuou. — A vida não é perfeita e coisas ruins acontecem o tempo todo, mas pelo menos dessa vez, o que tiver
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que acontecer, vai acontecer. Não vai ser culpa minha... nem sua. Vai ser responsabilidade de Deus. — Deus não tem nada a ver com isso. Nós somos responsáveis por nossos atos. — Bruno chacoalhou a cabeça, em negação. — Nossos atos apenas. Não por desejos cheios de mágoa... eu sei que você se arrepende de coisas que escreveu. Bruno comprimiu os lábios e abaixou a cabeça, vencido. — Eu sempre me perguntei como seria se eu nunca tivesse escrito naquele livro. Claro que me arrependo e muitas coisas... E se você não tivesse quebrado sua promessa, eu não saberia que haveria um jeito de desfazer. — E agora que sabe, se arrepende? — perguntou com medo da resposta. Bruno olhou firme nos olhos de Julia. Demorou-se um pouco pensando bem na resposta que daria. — Não. — respondeu. Julia respirou de novo, colocando as duas mãos na boca, e piscou, deixando as lágrimas caírem. — Você tem razão... eu devia valorizar as coisas boas, mas passei tanto tempo vendo coisas ruins acontecerem que não sei mais ter esperanças por tempos melhores. — Desculpe... eu queria que sua memória tivesse sido resetada, também. — Eu não. — ele segurou em suas mãos, abaixando os braços de Julia. — Assim ao menos tenho todas as memórias felizes que tive ao seu lado. — E as tristes? — As tristes poderão ser reescritas. — ele ensaiou um sorriso. — Em linhas tortas. — Não importa... será escrito por nós, sem que ninguém possa distorcer. Julia se permitiu sorrir.
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— Agora, vamos fazer desse o seu melhor aniversário de dezesseis anos... — Esse já é o meu melhor aniversário de dezesseis anos, Bru... — Ainda não, pelos meus cálculos, você ainda nunca beijou na boca... exceto por um canudo. — Não foi você que disse que trocar saliva no canudo não conta como um beijo? — Por isso mesmo. Ele se inclinou em sua direção. Julia recebeu aquele beijo de lábios perfeitos e que tanto desejou. E aquele foi o primeiro beijo perfeito, mesmo que não tivesse sido exatamente o primeiro... ela tinha certeza que a partir dali, todos os momentos seriam perfeitos, mesmo que, na realidade, eles não fossem exatamente perfeitos.
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Fim.
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Escrito em Linhas Tortas é um texto registrado na biblioteca nacional e protegido pela lei de direitos autorais. Esta obra é uma publicação de Julho de 2013, cedida como cortesia pela autora. Sua reprodução poderá ser feita, porém nunca comercializada, e os créditos deverão ser dados à autora.
Mariana Mello Sgambato é escritora e autora, já publicou o Romance Beijos & Batom (2012 – Editora Modo), e publicará Lembre-se de Morrer (2013 – Editora Modo) e Segredos de um amor de verão (2013 – Editora Modo).