TFG - Cinema em Movimento agosto/2020

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mariana c. taffarel

Orientada por Prof. Dr. Igor Guatelli e Prof. Dr. Valter Caldana Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo, 2020


Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

cinema em movimento Mariana C. Taffarel

Banca examinadora: Prof. Dr. Igor Guatelli Orientador Prof. Dr. Luciano Margotto Soares Convidado interno Profª. Dra. Marta Vieira Bogéa Convidada externa

Agosto/2020



Dedicado a todas as pessoas.


agradeço Aos professores Dr. Igor Guatelli e Dr. Valter Caldana, pela paciência, excelente orientação e confiança. Muito obrigada por não me deixarem ter medo do improvável. Aos meus pais, por todo o amor, cuidado e segurança. À minha mãe, especialmente, agradeço pelo mundo. A Julio, por toda a ajuda. Aos amigos pra vida toda, Cris, Dolores, Ferrão, Lícia e Léo, sem os quais as angústias e frustrações teriam se tornado completo caos. Aos amigos de toda a vida, pelo companheirismo e momentos especiais ao longo de toda essa trajetória. A todos que contribuíram, pouco ou muito, à minha formação. Sou grata por cada momento e ensinamento que tenha me tornado a profissional que se manifesta neste livro.


A medida real das qualidades de uma cidade ĂŠ se nos imaginamos nos apaixonando por alguĂŠm nessa cidade. Juhani Pallasmaa


sumário

0 1 2 prelúdio //p.9 Apresentação Introdução

o espaço //p.61

o movimento //p.13

p.11 p.12

Kinema Tempo Itinerância Destino e Evento

p.24 p.28 p.39 p.51

Inércia O interno O urbano

p.65 p.81 p.105

3 0 o efêmero //p.117

O movimento do lugar Dissolução Performance Matéria e Objeto

epílogo //p.179

p.122 p.126 p.151 p.163

Considerações finais Referências projetuais Bibliografia

p.181 p.184 p.188



0 prelĂşdio



apresentação “[…] porque o passado do viajante muda de acordo com o itinerário realizado, não o passado recente ao qual cada dia que passa acrescenta um dia, mas um passado mais remoto. Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.” Italo Calvino

O incômodo que fez nascer este trabalho se tratou de uma perturbação um tanto saudosista de minha parte em relação às salas de cinema paulistanas. Desde que tive contato pela primeira vez com a história da Cinelândia me interessei pelas razões que levaram à grande supressão destes espaços na cidade, que outrora haviam sido tão vivos; bem como, analogamente, o desejo de verificação dos motivos pelos quais o cinema tanto conquistou o público naquela época. O que havia se formado como um interesse pela relação entre o cinema e a cidade, e da proposição de um respeitoso resgate da memória destas salas de cinema em São Paulo, germinou outras discussões acerca da problemática conjuntural dos cinemas na contemporaneidade; deste declínio da frequência das salas de cinema como um todo e até hoje, considerando-se a ascensão das plataformas de stream digitais e, antes delas, da televisão. Logo nas primeiras orientações com o prof. Dr. Igor Guatelli, fui instigada a dispersar meu grande apego aos cinemas como espaços que evocam este passado fascinante de São Paulo; de uma cidade de imaginação, de ruas pujantes, de cultura latente, de coletividade; em razão de que o verdadeiro interesse consistia nesta vivência urbana, conforme fora discutido também amplamente com o prof. Dr. Valter Caldana. Brevemente passamos a considerar uma completa reinvenção da experiência cinematográfica dos cinemas urbanos, de maneira que o estímulo desta mesma dinâmica urbana se fizesse através da experiência de cinema na rua; o que já denota uma oposição deliberada ao cinema de rua. A proposta se trataria de um cinema itinerante, substancialmente. O que se demonstrará nas páginas a seguir, portanto, é o desenvolvimento das reflexões acerca deste novo cinema, e um ensaio sobre um tal Cinema em Movimento; uma arquitetura itinerante que estimula uma nova experiência do cinema junto à experiência da cidade, bem como o contrário.

prelúdio [ 11 ]


introdução Conforme anunciado, a pesquisa desenvolvida neste trabalho auxiliou e serviu como embasamento teórico da proposta de um cinema itinerante na cidade de São Paulo. Serão apresentados conceitos retirados da física, da filosofia e da teoria do cinema, bem como fatos históricos e teorias da arquitetura e do urbanismo, relacionados à sucessão de eventos que levou à consolidação do cinema, tanto em um sentido concepcional, do que de fato é cinema e quais são seus desdobramentos na cultura; quanto num sentido espacial, do que se trata – ou de onde está, ou esteve, este cinema –, para que sejam exploradas atentamente as qualidades que uma nova proposta de cinema deveria conter. O conteúdo foi dividido em 3 capítulos que evocam o conceito do movimento como um fenômeno que será discutido ao longo de todo o trabalho, cujos desdobramentos terão focos distintos, relacionados ao cinema, à cidade, e ao objeto arquitetônico ensaiado como proposta resultante das reflexões realizadas. No primeiro capítulo – O Movimento – tratarei especialmente da compreensão do cinema como experiência atrelada à cultura. Para tanto, será traçada uma relação entre a concepção física e filosófica do movimento e à experiência do cinema propriamente dita. No segundo capítulo – O Espaço –, buscarei tratar de uma das propriedades componentes do fenômeno do movimento, aqui mais relacionado à cidade e ao lugar físico do cinema. O capítulo do Movimento aborda questões relacionadas ao que é o cinema, enquanto O Espaço aborda onde está o cinema. Por fim, o terceiro capítulo – O Efêmero – será a efetivação arquitetônica de todas as reflexões levantadas nos textos anteriores. A apresentação do Cinema em Movimento será feita através de uma expressão material dos conceitos abordados, analogamente ao esclarecimento do desenvolvimento projetual.

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prelúdio


1 o movimento



movimento a variação de posição espacial de um objeto em relação a um referencial no decorrer do tempo.

Para dar início às reflexões posteriores presentes neste trabalho, tomemos emprestado da física o conceito de movimento. É um efeito físico, um fenômeno observável e consequente da interação entre duas grandezas: o espaço e o tempo - as propriedades mensuráveis que o compõem. Segundo Steven Hawking (1988), para Aristóteles, a ocorrência do movimento dependeria da ação de uma força motriz; um impulso inicial realizado em determinado instante no tempo, que desencadearia uma variação de posição espacial, seguindo um sentido e uma direção consequentes da incidência desta força. Entretanto, a tradição aristotélica afirmava ser possível compreender todas as leis que governam o universo através do puro

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pensamento: não era necessário verificá-las com experimentos. Sendo assim, até então, não era possível compreender o movimento como fenômeno físico totalmente. A teorização empírica do movimento só foi elaborada com Galileu Galilei, como consequência de estudos realizados pelo físico no século XVII (quase dois mil anos após a conceituação inicial de Aristóteles), através da observação de corpos em queda livre, como feito no emblemático experimento da torre de Pisa. O principal objetivo de Galileu era contestar a hipótese de Aristóteles acerca do movimento e das propriedades que o provocariam. A introdução do método experimental de Galileu e os resultados atingidos por ele foram usados como base por Sir Isaac Newton para a concepção de suas leis do movimento: as Leis de Newton. Resumidamente, “a grande diferença entre as ideias de Aristóteles e as de Galilei e Newton é que Aristóteles acreditava em um estado de repouso absoluto, que qualquer corpo assumia se não fosse impelido por alguma força ou impulso” (HAWKING, 1988, p.29), enquanto para Newton, ainda segundo Hawking, o verdadeiro efeito de uma força é alterar continuamente a velocidade desse corpo, mais do que apenas colocá-lo em movimento. Analogamente, se um corpo já estiver em movimento, e nenhuma força agir sobre ele, ele se manterá em movimento em uma linha reta à mesma velocidade. Portanto, não haveria um estado inicial de repouso absoluto e, consequentemente, nem um espaço absoluto, uma posição absoluta de onde toda a movimentação é iniciada:

“A falta de um padrão absoluto de repouso significava que não era possível determinar se dois acontecimentos que ocorriam em momentos diferentes ocorriam na mesma posição no espaço. Por exemplo, suponhamos que uma bola de tênis de mesa no trem saltita verticalmente, para cima e para baixo, atingindo a mesa duas vezes no mesmo ponto com um segundo de intervalo. Para alguém na estação, os dois saltos pareceriam ocorrer a cerca de cem metros um do outro, porque o trem teria percorrido essa distância entre os dois saltos. A não existência de repouso absoluto significava, portanto, que não se podia dar uma posição absoluta no espaço a um acontecimento, como Aristóteles acreditou. As

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Experimento na Torre de Pisa. Fonte: Geogebra


posições dos acontecimentos e as distâncias entre eles seriam diferentes para uma pessoa no trem e outra na estação, e não haveria motivo para dar preferência a qualquer uma delas.” (HAWKING, 1988, p.30)

Ou seja, uma das conclusões de Newton sobre o movimento na física é o entendimento de que a velocidade e a posição de um movimento ocorrido em determinado momento no tempo são observadas de maneira diferente dependendo do referencial adotado. Trata-se, de maneira simplificada, do velho exemplo do homem que observa um trem saindo da estação: para o homem, é o trem que se desloca pelos trilhos, se afastando cada vez mais. Para os passageiros do trem, a estação é que parece estar se afastando deles. Ou seja, a percepção do movimento depende de onde o observamos. Chegamos, então, ao se falar de observação, a um território palpável para desenvolvermos nossas reflexões sobre cinema. A observação do movimento é o que caracteriza o cinema em essência. Os filmes são como os trens que saem da estação; e os espectadores, as testemunhas de sua partida (embora os filmes não sejam de fato como os trens, afastando-se dos espectadores e deslocando-se pelo espaço). Mas os espectadores observam o movimento e o apreendem como tal, por suas imagens representarem movimentos reais. Observa-se o trem saindo da estação através de uma tela e se admite este movimento da mesma forma que se faria observando-o na realidade. Vale salientar que não procura-se aqui tomar as concepções físicas ao pé da letra para nossas reflexões sobre cinema; apenas espera-se que elas auxiliem a compreensão do que se virá a tratar como movimento em cinema. Com isso busca-se esclarecer, desde o início, que a ideia de movimento a ser tratada adiante refere-se não apenas ao fenômeno do movimento enquanto resultado, mas também do que compõe esse movimento: o espaço e o tempo. Na filosofia, o movimento no cinema foi objeto de vastas reflexões na obra de Gilles Deleuze. A partir de sua interpretação das teorias de Henri Bergson acerca do movimento, o filósofo retira toda uma teoria da imagem, do movimento e do tempo enquanto partes constituintes do cinema, que, segundo a tese deleuziana, ao serem relacionadas de uma forma ou outra dão origem a modelos de cinema distintos. Explicaremos essas relações

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adiante, contudo, antes disso buscaremos expor alguns dos principais conceitos da filosofia bersogniana aos quais Deleuze recorre para iniciar seus discursos sobre o cinema. Para Bergson, a passagem da filosofia antiga à ciência moderna revelou a possibilidade de considerar o tempo como uma variável independente das outras. Se para a ciência moderna a observação do movimento e as propriedades que o compõem não são absolutas em relação a si próprias, essas propriedades não fazem parte de uma hierarquia em que um instante ou uma posição no espaço são mais importantes do que outras ao longo do fenômeno do movimento em si. Pelo contrário, como dito anteriormente, a percepção do movimento a partir da observação depende mais de como ele é observado – ou seja, do observador -, do que de posições ou instantes definitivos. Para Bergson, essa constatação demonstra que o tempo na física não dura. É como se ele se findasse no mesmo instante em que se inicia. Segundo Marques1, a diferença entre as formulações da ciência moderna e a filosofia bersogniana é a reflexão de um tempo interior, não-físico. Tal reflexão traz a noção de duração, assim definida: "A duração totalmente pura é a forma que adquire a sucessão de nossos estados de consciência quando nosso eu se deixa viver, quando ele se abstém de estabelecer uma separação entre os estados presentes e os estados anteriores" (BERGSON, 1970, p. 67). O tempo da duração de Bergson é um tempo que adquire uma sucessão perante a consciência e descreve um movimento indivisível e constante, como um "[...] prolongamento ininterrupto do passado num presente que penetra o futuro" (BERGSON, 1970, p. 1273). Ou seja, na filosofia bersogniana, surge uma interpretação do movimento como um fenômeno mental, que, originado de uma observação física (de um fenômeno físico) perdura em um campo imaginário, o da consciência (MARQUES, 2013). A observação do movimento para Bergson, portanto, se trata também de uma experiência psicológica, que tem relação com a memória e que nela perdura. Além da duração, Deleuze também faz uso do conceito da percepção em Bergson, o qual elucida outras problemáticas da imagem, da memória e do tempo na ciência, sobretudo na psicologia, e que abrem caminhos para a exploração de Deleuze dos mesmos temas no cinema. A percepção bersogniana parte de uma oposição à psicologia da época, em que se supunha que “o que a nossa percepção consegue representar enquanto imagem é o que

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o movimento

1. MARQUES, Silene Torres. A busca da experiência em sua fonte: matéria, movimento e percepção em bergson. : matéria, movimento e percepção em Bergson. Trans/ form/ação, v. 36, n. 1, p. 6180, abr. 2013.


da matéria interessa ao nosso corpo” (FARINA; FONSECA, 2015, p.119), ou seja, o que representamos de nossa percepção sobre a matéria é o que dela assimilamos através de nosso sistema sensório-motor, como uma percepção natural, que elimina o que não diz respeito às necessidades do corpo no momento em que ela ocorre. A observação de Bergson diz respeito à vastidão das qualidades da matéria, que vão além do que podemos perceber sensorialmente:

"A realidade da matéria consiste na totalidade de seus elementos e de suas ações de todo tipo. Nossa representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os corpos; ela resulta da eliminação daquilo que não interessa nossas necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções. Num certo sentido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto material inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, é infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, já que esse ponto recolhe e transmite as ações de todos os pontos do mundo material, enquanto nossa consciência só atinge algumas partes por alguns lados." (BERGSON, 1990, p. 26)

Tais considerações demonstram, para Deleuze, o momento em que o cinema (o cinematógrafo) surge, tomado de uma tentativa de se tornar um aparelho que mimetiza o nosso sistema sensório-motor, duplicando a percepção do que se captura através de um aparelho:

"Este [o cinematógrafo] começa tomado de uma tentativa de reprodução da percepção humana em seu esquema sensório-motor: câmera imóvel, mundo em movimento, plano sequência... o cinematógrafo funcionaria num sistema de similitude com a percepção humana e seu pretenso ponto de vista privilegiado e centralizante, mostrando a todos como todos veem, enaltecendo nossa capacidade de análise inteligível do mundo." (FARINA; FONSECA, 2015, p.116-117)

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Entretanto, o que acontece no cinema, para Deleuze, é que ao representar a percepção humana, o cinematógrafo acaba por revelar um mundo de percepções não naturais: de percepção cinematográfica, em que se faz um corte móvel da matéria, com o propósito de fazer o espectador perceber o que se pretende que ele perceba, numa determinação prévia realizada no próprio fazer cinematográfico - desde a captação da imagem através do cinematógrafo até a montagem do filme. Isto é o que Deleuze chamará de imagem-movimento, atribuindo sua “descoberta” à filosofia bersogniana (DELEUZE, 1983, p.11). Desta maneira, o cinema “reencontra a variação da percepção universal que a percepção subjetiva unicentrada eliminaria” (FARINA; FONSECA, 2015, p.120), pertencendo assim a uma concepção moderna do movimento, que não privilegia um instante (uma percepção) a outra; e sim os revela como variáveis interpretativas. A partir destas considerações, Deleuze, em suas obras Cinema I: Imagem-Movimento e Cinema II: Imagem-Tempo, discorre acerca de uma composição do cinema em formulações imagéticas. Segundo Farina e Fonseca2, a imagem-movimento, primordialmente, seria um modelo cinematográfico baseado em representações de ilusões antropocentristas; de narrativas pautadas em causa-efeito, início-meio-fim, do protagonismo de um herói em um enredo que dele depende; dentre outras características. O cinema da imagem-movimento é classificado por Deleuze como o cinema de ação, desde o expressionismo3 até os blockbusters contemporâneos, todo o cinema que se encontra preso a um modelo narrativo de folhetim. No cinema da imagem-movimento, se faz uma exigência de representação de maneira que o filme seja capaz de ser identificável pelo espectador como uma reprodução do que é verdadeiro. É importante, neste cinema, que a narração aspire à verdade. Para tanto, se faz um sistema composto por uma imagem-percepção (movimento de corpos como substantivo, como significado de uma mensagem) e uma imagem-ação (movimento como verbo, como ação propriamente dita), centralizadas num personagem. Entretanto, entre essas duas imagens se encontraria uma imagem-afecção, capaz de dotar os movimentos de atributos qualitativos, levando em conta uma dimensão afetiva que nos faria escolher uma percepção dentre tantas outras possíveis que poderíamos arrancar do

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2. FARINA, Juliane Tagliari; FONSECA, Tania Mara Galli. O cine-pensamento de Deleuze: contribuições a uma concepção estético-política da subjetividade. Psicologia Usp, Porto Alegre, RS, v. 26, n. 1, p. 118-124, jan./abr. 2015. 3. O expressionismo foi um estilo cinematográfico que teve seu auge na década de 1920 e ganhou força na Alemanha. Caracterizava-se por imagens distorcidas, afastadas da realidade, remetendo a pesadelos, expressando atmosferas sombrias e melancólicas.


mundo, ou seja, não haveria percepção sem afecção. Há também o poder da afecção de criar um intervalo entre a percepção e a ação, fazendo com que a primeira demore, dure, se misture com a memória. Ou seja, ao se pensar numa relação afetiva com as imagens exibidas no cinema, para Deleuze o componente mais relevante para que sejam criadas estas relações não é o movimento, e sim o tempo. A duração (como em Bergson) é, para Deleuze, uma propriedade que eleva o cinema a uma dimensão psicológica ponderada pelo espectador através de suas próprias afecções, ou de sua memória. É a partir disto que Deleuze propõe a discussão sobre um cinema para além da imagem-

4. O neorrealismo italiano foi um movimento surgido ao fim da Segunda Guerra Mundial. Era caracterizado por filmes que faziam um retrato das condições de vida no país, assemelhando-se a documentários. 5. A nouvelle vague foi um dos mais importantes movimentos do cinema, iniciado na França no fim da década de 50, como reação contrária às superproduções hollywoodianas. É representado por filmes intimistas e de baixo orçamento, que reconheciam o diretor como autor da obra, em oposição concreta ao cinema comercial. Uma das principais características da nouvelle vague, além das inovadoras técnicas cinematográficas, era a narrativa não-linear. Exemplos de cineastas relevantes a este movimento são François Truffaut, Jean-Luc Godard, Alain Resnais e Agnès Varda.

movimento; um cinema que capture o sensível e faça uso do espaço e do tempo para provocar ações e reações subjetivas a cada espectador. Trata-se de um cinema destacado e livre do império dos clichês representativos. É o cinema da imagem-tempo, que parte de um lugar qualquer e pode, sendo livre de um espaço e de um tempo absolutos, gerar movimentos não planejados, em devir. Há, neste cinema, a possibilidade de os objetos e os acontecimentos conquistarem realidades autônomas, que os fazem valerem por si próprios, produzindo indefinições entre real e imaginário, passado e presente, atual e virtual (FARINA; FONSECA, 2015). É no cinema moderno que se encontram tais características, sobretudo no neorrealismo italiano4 e na nouvelle vague5 francesa, entre outros movimentos cinematográficos surgidos a partir deles. São produções que apresentam cortes irracionais, planos não convencionais, enredos sem fechamento, dentre outros artifícios que estimulam o pensamento do espectador através de sua sensibilidade. É no cinema da imagem-tempo que se faz uso do tempo puro, um tempo sem hierarquia, que depende muito mais das conexões mentais realizadas pelo espectador, através do resgate de suas próprias memórias. Pois nelas estão guardadas as “potências do falso” (DELEUZE, 2009), do que está em devir, devido à capacidade psíquica de se criar e associar lembranças ou imagens. Com a abertura do tempo e da possibilidade de se explorar a subjetividade do espectador, o cinema da imagem-tempo acontece como um movimento sujeito a agentes externos: a própria atividade psíquico-cognitiva inerente a cada observador que o testemunha.

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A força impelida sobre os movimentos na física é como o resgate de memórias afetivas que fazemos mentalmente, inconscientemente, ao assistirmos um filme. Se uma força é capaz de alterar a maneira como um corpo se desloca no espaço, infere-se que é possível intervir em um movimento usando-se de artifícios sobre ele. Assim é a montagem no cinema. A forma como um filme é realizado pode gerar movimentos na apreensão do espectador sobre o que está sendo assistido. A roteirização do que acontece em uma narrativa, a suscitação de emoções no público, o despertar da curiosidade e da geração de raciocínio sobre o que está sendo transmitido são características encontradas no cinema que podem ser comparadas a forças motrizes; impulsos que fazem com que o espectador trace uma trajetória mental subjetiva. Em relação ao estudo que será traçado a partir das próximas páginas, a ideia de um Cinema em Movimento, portanto, traz em si conceituações acerca do espaço e do tempo não apenas no nível material, mas também no nível psíquico. Serão traçadas relações entre os movimentos de um cinema no nível espaço-temporal, tanto quanto em um contexto cognitivo de contemplação e de vivência. Os conceitos emprestados da física e da filosofia apresentados anteriormente serão essenciais, a partir daqui, para que se possa compreender de que maneira um Cinema em Movimento pode vir a acontecer, e quais qualidades estão intrínsecas a ele e que podemos explorar em relação a uma nova proposta de cinema na cidade. São muitos os movimentos que acontecem no cinema e em torno do cinema. Este estudo busca dilui-los a fim de que se criem movimentos outros; inconcebíveis em um contexto em que esses movimentos estivessem isolados, alheios uns aos outros. A proposta do Cinema em Movimento é induzir a experiência dos tantos movimentos do cinema: em relação a si próprio e ao espaço em que ele acontece e em relação aos usuários que dele fazem uso, de maneira simultânea. Nas páginas seguintes serão colocadas em foco as características que qualificam os movimentos físicos e psíquicos do cinema, de maneira a explicitar o que integra a experiência de um Cinema em Movimento e de que maneira ela ocorre na cidade e em seus usuários.

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kinema

cinema <ci.ne.ma> s.m. 1. Arte de compor e realizar filmes para serem projetados. 2. Sala de espetáculos onde se vêem projeções cinematográficas.6 Etimologia: abreviação de cinematógrafo, do grego “kinema" (κίνημα), que significa movimento. De “kinein” (κίνησις) - deslocar, movimentar, mexer.7

Antes de fixar-nos em uma concepção pré-definida do que é cinema, daremos um passo atrás das concepções já realizadas acerca dos tipos de movimentos no cinema e resgataremos o significado e a etimologia da palavra, a fim de que novos caminhos de interpretação sobre esta questão sejam revelados.

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O Cinematógrafo Lumière Fonte: Wikimedia

6. Michaelis. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. 7. Houaiss. Grande Dicionário Houaiss.


O dicionário esclarece o que se entende comumente por cinema. As duas definições citadas remetem a dois significados: do cinema como arte e do cinema como lugar. Há, portanto, o entendimento de que existe um cinema imaterial, como fazer artístico, e um cinema material, como objeto espacial. Enquanto arte, “cinema” significa a técnica de fixar e de reproduzir imagens que suscitam impressão de movimento. As obras cinematográficas – os filmes – são constituídas por uma série de imagens impressas e alinhadas em sequência. O Cinematógrafo Lumière – o primeiro aparelho que tornou isso possível –, foi um invento do fim do século XIX, capaz de colher e projetar imagens de maneira rápida e intermitente, de modo a produzir a ilusão de se observar cenas em movimento.8 Da evolução do cinematógrafo e das produções cinematográficas nasceu a grande indústria do cinema arte, e dela, o cinema lugar, que surgiu nas cidades como resposta à necessidade da existência de espaços destinados à exibição de filmes ao público. A significação do cinema como espaço, por sua vez, está atrelada à concepção de um objeto fixo em meio ao território. Este pode ser um edifício, uma sala, ou um ambiente destinado à exibição e à contemplação de filmes. Diferente do cinema arte, cujo produto é uma reprodução artificial de movimento; o cinema lugar é efetivamente estático. Remete à rigidez de um edifício construído na cidade. Surge, desta maneira, outra dicotomia do significado de cinema: do cinema que é movimento, das imagens em projeção rápida e intermitente; e do cinema que é inerte, do objeto na cidade.

8. Ibid., p. 21.

Entretanto, considerando a essência primária do cinema como sendo o movimento (kinema); o retorno a ela nos permite desenvolver um outro raciocínio das noções de movimento e inércia sobre o cinema: se o cinema é movimento, enquanto arte, e ao mesmo tempo é algo inerte, fixo no espaço, enquanto lugar; qual dessas qualidades o caracteriza fundamentalmente? O movimento ou a inércia? Ou, indo além, qual é o cinema que exploraremos, de fato? É o cinema do movimento das imagens em projeção, ou o cinema do espaço fixo que contém

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uma tela estática onde se exibe este movimento de imagens? Para dar continuidade a esta reflexão, analisemos essas duas características antagônicas do cinema descritas anteriormente de maneira simultânea no cinema arte: O cinema arte é composto, em essência, por quadros estáticos, chamados frames. Os frames são cada uma das imagens fixas de um produto audiovisual.9 São os elementos que compõem um conjunto – o vídeo. Em produção audiovisual também é comum usar a palavra como unidade de tempo. Cada sistema de projeção utilizado no decorrer da evolução da produção audiovisual possui uma cadência de projeção10; a qual se refere à fração de tempo gasta entre a projeção de um frame e outro. O movimento do cinema – ou a mera ilusão de observá-lo –, portanto, decorre da variação do deslocamento espacial entre uma imagem estática e outra em uma determinada porção de tempo. Ao determinar-se a velocidade da sequência destas imagens, a visualização do todo é o que caracteriza o filme: o conjunto resultante de todos os deslocamentos entre todos os elementos estáticos que o compõem. Estes movimentos acontecem de maneira rápida o suficiente para que o olho humano não perceba a variação de espaço e tempo entre cada frame, e desta forma assimile o produto como um conjunto único de cenas. Disto, apreende-se que o que antecede a existência do movimento é a existência dos elementos estáticos. É necessário que existam imagens fixas e a composição de um sistema que as ordene ao longo do tempo, para que, então, se faça possível a ilusão da observação do movimento. Portanto, é a partir de elementos em inércia que se origina o movimento no cinema arte, que por sua vez só existe se este movimento existir, em reprodução nas telas de exibição. Analogamente, ao considerarmos o cinema lugar como um corpo inerte, estático e fixado no espaço urbano, podemos nos questionar se o espaço físico do cinema também pode ser o princípio de movimentos na cidade. E ao verificarmos esta questão, quais tipos de movimentos poderiam ser provocados por ele? Se este mesmo cinema arte que se verifica graças a movimentos de imagens estáticas é o mesmo que gera movimentos na psique – como os movimentos do cinema da imagem-tempo, explorado nas páginas precedentes –, o cinema

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9. AUMONT, Jacques & MARIE, Michel: "Dicionário teórico e crítico de cinema", ed. Papirus, 2001, pp. 136-137 10. Artigo "FPS versus frame time" no site da Microsoft MVP (em inglês). Consultado em 18 de março de 2020


lugar também pode ser responsável por movimentos em um psicológico urbano? O retorno ao kinema, portanto, se torna a verificação da existência de movimentos no cinema, seja ele arte ou lugar. É a partir dessa noção que será ensaiada, ao longo das próximas páginas, uma interpretação acerca do lugar do cinema perante a cidade, e quais são as qualidades que o compõem, ou que se originam dele. Se o cinema movimento é a unidade entre a relação do tempo e do espaço das imagens estáticas observadas em sequência, o cinema inerte, material, inserido no tempo e no espaço da cidade, também pode ser o elemento inicial de movimentos no contexto urbano? Trata-se, aqui, da noção de kinema elevada ao tempo e ao espaço da cidade: os componentes dos movimentos físicos reais, diferentes dos movimentos físicos exibidos em filmes; estes, ilusórios, resultado da contemplação do que se exibe na tela de projeção, que meramente exibe imagens em constante deslocamento. O cinema lugar é um elemento estático fixado no espaço da cidade, onde acontecem movimentos de naturezas distintas – de pessoas, de veículos, de produtos, de informações, dentre inúmeros outros. Portanto, como parte da cidade, o cinema tanto participa de seus movimentos quanto provoca outros. Pode ser tanto parte do trajeto de um deslocamento no espaço urbano, quanto um destino a que se chega para realizar uma atividade: a contemplação fílmica, especialmente. Em outras palavras, um deslocamento na cidade tanto acontece em torno deste cinema, quanto é motivado por ele. O tempo afetivo de deslocamento ao cinema é um dos assuntos a serem tratados adiante, como um dos exemplos dos movimentos em torno deste cinema inerte perante a cidade. Sendo assim, a questão iniciada aqui é a ideia de que o kinema enquanto movimento é uma noção a ser examinada sobre o cinema de maneira geral. Os movimentos sociais e do sujeito associados ao cinema, em torno dele, precipitados por ele, em direção a ele e a partir dele, concretos e abstratos (do corpo, da consciência, da imaginação, dos afetos) – questões fomentadas em conversas com o prof. Dr. Igor Guatelli – se tornam o foco deste estudo, de maneira a construir uma interpretação acerca das interações entre o cinema, sociedade e cidade, e os resultados das relações entre eles.

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tempo Ao longo desta pesquisa propôs-se desde o início que se fizesse uma abordagem dos movimentos do cinema a partir das propriedades que o compõem, de maneira que essa compreensão pudesse iluminar possíveis caminhos para uma discussão sobre um cinema que se dispõe a mover-se, um Cinema em Movimento, que por sua vez também provoca movimentos em torno de si. Ao tratarmos de movimento, fizemos uso de teorias da física para compreender que o movimento se trata de um fenômeno composto por duas grandezas variáveis, independentes, que não são absolutas em relação a si próprias: o espaço e o tempo. A partir da noção da ciência moderna de que o movimento não decorre de um estado de inércia inicial e de um instante absoluto, se derivou a conclusão de que também não há, de maneira absoluta, uma posição nem um tempo primordiais a partir dos quais o movimento é iniciado. Entretanto, apesar de ambas as grandezas não serem absolutas com relação ao estado inicial do movimento, se desvenda uma diferença entre o espaço e o tempo ao longo da ocorrência do movimento em

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si: a de que o espaço, apesar de não-absoluto, é divisível, mensurável, palpável; enquanto o tempo é uma variável independente, que não pode ser fragmentada nem hierarquizada em uma ordem de início-meio-fim, pois é imaterial e irredutível a uma totalidade finita. Como também verificado em Bergson, o tempo, mesmo que verificado em instantes, perdura no campo psicológico e nele não encontra limites. Como visto, essa compreensão do tempo do movimento inspirou a conceituação proposta por Deleuze acerca do tempo do cinema para além de uma noção a nível físico/ espacial (como a definição do cinema como uma mera sequenciação de imagens estáticas de maneira a criar a ilusão de se observar movimento). Segundo Deleuze, o tempo do cinema (de sua contemplação) é um tempo afetivo; um tempo puro, que segue trajetos subjetivos ao espectador, o qual articula suas próprias referências, memórias e significados às imagens observadas na tela. O tempo do cinema, para Deleuze, se trata de um tempo desprendido de hierarquia sobre si próprio, da mesma maneira que o movimento na física. Entretanto, na filosofia deleuziana o entendimento sobre o tempo se alonga por direções não especificamente referentes ao tempo no cinema, visto que o filósofo apenas faz uso deste conceito para propor interpretações acerca do cinema em relação à sua psicologia. Neste capítulo, faremos uso das conceituações do filósofo sobre o tempo para que se possa estabelecer de maneira mais acertada a sua relação com o cinema; sobretudo no contexto que nos interessa neste estudo sobre cinema e arquitetura. Ou seja, no contexto do cinema em itinerância, do Cinema em Movimento, no qual o tempo se faz presente tanto no movimento em um nível físico – das viagens da estrutura pelo território –, quanto nos movimentos psíquicos causados pelo cinema que se contempla nele: os movimentos do cinema arte, tratados por Deleuze como a essência de um cinema de rupturas subjetivas: o cinema da imagem-tempo. Além de que, intrínseca à ideia de um cinema itinerante está a qualidade do inesperado, da ruptura com a rotina, com o tempo regrado e submisso à ordem. Veremos que o tempo deste Cinema em Movimento é um tempo de sucessão em devir. O tempo em Deleuze será tratado aqui a partir de Peter Pál Pelbart; filósofo que procura esclarecer o significado de tempo na obra deleuziana de maneira a desvendá-lo e despi-lo

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de uma concepção linear, apaziguada e homogênea, para introduzir uma noção de tempo múltiplo, paradoxal, inesperado11; da maneira que propôs Deleuze no decorrer da construção de sua filosofia. Pelbart trata do tempo na obra deleuziana a partir da noção de que, para o filósofo, o tempo se pauta numa lógica de multiplicidade, como um rizoma12, onde “entra-se por qualquer lado, cada ponto se conecta com qualquer outro; feito de direções móveis sem início ou fim, mas apenas um meio, por onde ele cresce e transborda”13. O tempo em Deleuze não se trata de um tempo de finitude. É este rizoma temporal, que “se oferece à imaginação”14 e se desprende de uma concepção genérica de temporalidade – a que fragmenta o tempo entre passado-presente-futuro. O tempo é pensado como um meio, que se situa em qualquer parte, em direções móveis e múltiplas. No rizoma do tempo de Deleuze, o fim e o começo não se reconciliam, não se encontram numa lógica cronológica; eles acontecem simultaneamente, ou paralelamente, ou de qualquer maneira que não remeta a uma conformidade, pois isto é justamente o que ele não possui. Pelbart explicita de que maneira esta compreensão rizomática do tempo se aproxima muito mais de uma alienação, de uma perda de razão, do que de uma consciência, uma compreensão finita e total:

“ele (um rizoma temporal) contraria frontalmente as figuras que comandam nossa representação habitual do tempo: a linha, a flecha (mesmo invertida), o círculo, a espiral, ou a fonte jorrando. Em termos mais conceituais: o tempo homogêneo e progressivo, ou o tempo arqueado, ou o tempo originário, ou mesmo um tempo dito autêntico. [...] em Deleuze, ao invés de uma linha do tempo, temos um emaranhado do tempo; em vez do fluxo do tempo, veremos surgir uma massa de tempo; em lugar de um rio do tempo, um labirinto do tempo. Ou ainda, não mais um círculo do tempo, porém um turbilhão, já não uma ordem do tempo, mas variação infinita, nem mesmo uma forma do tempo, mas um tempo informal, plástico.” (PELBART, 1998, p. XXI, grifos do autor)

Pelbart anuncia, desta maneira, uma reconfiguração na noção de tempo, que agora

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11. O Tempo NãoReconciliado é a obra de Peter Pál Pelbart acerca dos estudos do filósofo sobre o tempo deleuziano. 12. O rizoma em Deleuze é um modelo epistemológico de sua filosofia e a de Félix Guattari; extraído do significado de rizoma na botânica, a fim de exemplificar um sistema sem raízes, ou seja, sem afirmações ou proposições mais fundamentais do que outras. 13. PELBART, P. O Tempo Não-Reconcliliado. Imagens do Tempo em Deleuze. São Paulo, Perspectiva, 1998. p. XX. 14. Ibid., p. XXI.


será tratada como este emaranhado alucinatório, subjetivo, que em Deleuze tanto acontece numa imagem de tempo, em um plano estético – como o cinema –, quanto num tempo de acontecimento; o qual, para nós, será essencial para a compreensão de nosso Cinema em Movimento. O tempo do acontecimento em Deleuze se trata de uma interpretação do tempo relacionada ao devir, ao intempestivo. O acontecimento não está inserido numa linha de tempo contínua; está associado às idas e vindas do pensamento. Para Deleuze, segundo Pelbart, o que conduz a construção do pensamento é o paradoxo: uma violência contra o pensamento ortodoxo – como o do cinema da imagem-movimento –, que se baseia em reconhecimentos, recognições de objetos que já temos guardados na memória. O paradoxo é o que nos força verdadeiramente a pensar, e nos afasta de compreensões genéricas e coletivas, colocando-nos frente a raciocínios originais.

“O paradoxo é duplamente destrutivo: subverte o bom senso e também o senso comum, as duas formas que constituem conjuntamente nossa Imagem do pensamento. [...], Mas de onde viria tal poder atribuído ao paradoxo, se ele não passa de um ‘divertimento’ do pensamento? Ora, Deleuze o diz com todas as letras: o paradoxo não é um divertimento, mas ‘a paixão do pensamento’. Pois há coisas que deixam o pensamento tranquilo, e aquelas que o forçam a pensar.” (PELBART, 1998, p. 64, grifos do autor)

O rompimento com o tempo do bom senso e do senso comum que, ainda segundo Pelbart, fazem parte de uma flecha temporal linear, em que a sucessão das coisas é previsível, dá lugar ao tempo do paradoxo, que “surge para abolir o princípio de mão-única do tempo”, sendo um tempo de subversão, de um acontecimento que é conduzido num instante infinito, de infinitas possibilidades, livre de uma ordem genérica de passado-presente-futuro, “afirmando simultaneamente vários sentidos, numa temporalidade multilinear”15. 15. Ibid., p. 65.

Ou seja, para Deleuze, em Pelbart, o reconhecimento do pensamento, graças ao bom-

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Diagramas de reflexão sobre os paradoxos em relação aos espaços de cinema. Uma restrição, uma divergência na conformação formal, uma completa desconstrução do território como ele era; são acontecimentos que poderiam levar à descontinuação completa da admissão do habitual.

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senso e ao senso comum, leva a uma redundância, enquanto o nascimento do ato de pensar através de uma violência sobre um pensar anterior leva ao “impensável”. Da ordem do impossível surge a possibilidade16. Paralela à construção da proposta de um Cinema em Movimento, a reflexão sobre o paradoxo deleuziano nos defronta à questão da existência de espaços voltados à exibição cinematográfica e pode enunciar questões para mantermos em mente no decorrer deste trabalho. Para nós, a compreensão do paradoxo pode nos levar à reflexão do que se identifica como cinema na cidade. A compreensão de que o cinema lugar se trata de um espaço essencialmente fechado, escuro, amplo (no que diz respeito à quantidade de assentos para a acomodação dos espectadores) – ou seja, a sala escura –, remete ao senso comum, que por sua vez carrega um tempo de previsibilidade, de consciência do fato de que as exibições cinematográficas se dão neste tipo de espaço, e que nele sempre ocorre uma determinada atividade. Um paradoxo com relação a este espaço cinematográfico seria, por exemplo, a total negação de seu uso. Segundo Guatelli, o paradoxo seria uma ruptura quase total, que causaria profunda angústia devido à suspensão de um sentido original, sua perda e necessidade de reposicionamento de pensamento. “O paradoxo é o absolutamente incongruente com o admissível, abala nossas representações, nos desestabiliza em relação ao que consideramos ser essência, próprio de uma coisa. O paradoxo é tudo aquilo que destrói a relação estável entre substância e seus supostos atributos.” (GUATELLI, em conversas com a autora sobre o presente trabalho).

15. Ibid. p.64

Portanto, a negação do uso do cinema, ainda segundo Guatelli, geraria uma apreensão com relação ao que é esperado deste espaço, e da maneira que se deve agir perante a ele, obrigando ao sujeito reexaminar seu entendimento daquele território. Questionaria-se o que fazer de um cinema que não é mais cinema. A negação da sala de cinema resultaria na negação do cinema em si? E, de maneira inversa, se o cinema passar a ocupar espaços

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diferentes do habitual, de maneira imprevista: de que forma a apropriação destes espaços pelo cinema alteraria a experiência dele e do que entendemos ser sua natureza intrínseca? Contudo, no caso do Cinema em Movimento, o exemplo da negação do espaço original – a negação da compreensão genérica da sala de cinema –, estaria mais relacionado à sua itinerância. Durante um tempo, o cinema aconteceria em determinado território na cidade, deixando um rastro na memória de quem o experimentou mesmo em sua ausência. Ele se negaria a deixar de existir mesmo quando não mais existisse no território em que existiu. Se é a partir da ruptura e da imprevisibilidade de um paradoxo que surgem novos fluxos de pensamento, e deles – pode-se inferir – novas ações, espera-se que em torno do acontecimento destes de cinemas surjam novas dinâmicas, novas atividades, novos fluxos, novas interações. A inserção de um novo objeto em um espaço que antes nunca havia sido destinado ou preparado a recebê-lo leva a uma inconformação, uma distorção da apreensão deste mesmo espaço, que antes era compreendido de uma maneira, e com a presença de um novo objeto será interpretado de outra. A movimentação do pensamento com relação ao espaço é uma subversão; uma desconstrução da tranquilidade do tempo ordinário, da rotina e da convenção do território como ele era. A partir da inserção de um objeto como o Cinema em Movimento o território se torna outro; sobretudo devido às suas particularidades funcionais e estéticas, sobre as quais refletiremos posteriormente neste trabalho. E este território se torna outro não apenas devido à presença de um corpo estranho, mas pelas novas dinâmicas que esta presença provocaria. O Cinema em Movimento se tornaria um tipo de “campo imantado” em que atividades atípicas ao território original seriam atraídas pela transformação causada pela nova presença. Estas atividades estão associadas a uma apropriação do espaço. Seja pelos usuários deste Cinema em Movimento, pelos pedestres que encontram ao seu redor um ambiente amistoso, de acolhida para um momento de lazer, ou por pessoas que enxergam neste “novo” território possibilidades múltiplas de como utilizá-lo.

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O Cinema em Movimento provocaria, enfim, microdinâmicas, que fazem parte deste tempo de acontecimento. O tempo do cinema e o tempo do acontecimento, portanto, entram na discussão sobre um Cinema em Movimento de maneira que nos colocam frente à percepção deste cinema como algo que vai além de uma “sala de cinema” que viaja pela cidade. O movimento do cinema pela cidade resulta não apenas no deslocamento do objeto (o corpo arquitetônico) entre territórios no espaço urbano, mas também em movimentos de pensamento e de dinâmicas que alteram a apreensão destes mesmos espaços. O cinema da imagem-tempo, como visto em Deleuze, já traz em si a noção de movimentação do pensamento, de maneira que modifica os fluxos de pensamento ao evocar memórias e devaneios subjetivos a cada espectador, os quais organizam as suas próprias interpretações da obra cinematográfica. O Cinema em Movimento, então, é ainda mais poderoso na sua subversão temporal, pois é tanto a materialização física de uma subversão do tempo – da rotina da cidade interrompida por um novo objeto itinerante, efêmero – quanto a projeção de tantas outras subversões; as que estão presentes nas obras cinematográficas exibidas neste mesmo objeto. Com relação à infinitude do tempo, Deleuze invoca a compreensão do tempo aiônico neste tempo do acontecimento em detrimento do tempo cronológico. Aión, segundo Pelbart, é o tempo total, que é infinito em suas duas extremidades, o passado e o futuro, sempre atualizando-se em um presente; que por sua vez se torna

“uma espécie de temporalização da eternidade, que poderá estender a sua perfeição ao futuro e passado que ele engloba, presente total do período cósmico. Não se trata mais do instante evanescente. Quando ele se alarga e se estende em direção ao passado e ao futuro, abarcando a ‘totalidade da vida’, como diz Cícero, estamos na linha do Destino, onde os acontecimentos sucessivos estão harmonicamente encaixados, numa simultaneidade essencial. [...] Nesse sentido, o instante não é mais uma divisão, mas ligação, totalização.” (PELBART, 1998, p. 68)

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vis ão

a fec ção


cro nos ai รณn


Em Deleuze, Cronos e Aión são leituras simultâneas do tempo. Enquanto Cronos é (de maneira simplificada) o presente, o tempo limitado; o “movimento regulado dos presentes vastos e profundos”17, Deleuze questiona a existência de algo que perturbe a ordem cronológica. Há algo desmedido e parcial – ou desregulado – sobre o tempo? O Aión, desta forma, é diferente do tempo cronológico; remete à infinitude, à eternidade e à imensidão. Enquanto Cronos quantifica o tempo, Aión é o que o atemporiza. É a própria subversão do tempo, gerada por acontecimentos, paradoxos ou instantes que perduram na eternidade. Aión é o passado e o futuro (as “extremidades do infinito”) simultaneamente, e a atualização deste tempo aiônico através de novos acontecimentos é o que deriva a noção de infinitude do presente. O tempo aiônico se trata de momentos perversos, que corrompem a ordem: acontecimentos. É uma forma vazia do tempo, enquanto Cronos é uma forma finita. A perturbação do sentido está no tempo aiônico, e ele leva a uma desarmonia, um devir-louco, uma esquizofrenia em comparação à regularidade presente no tempo de Cronos. Enquanto objeto que gera movimentações de pensamento que perduram na infinitude do tempo, o Cinema em Movimento é regido por este Aión, o tempo aiônico, o tempo do devir. O Cinema em Movimento, ao gerar inflexões na rotina da cidade e do território em que se insere, se torna a possibilidade de vivência de um tempo outro, o tempo da experiência não-programada. A inserção em cada novo território é uma surpresa, uma perturbação do cotidiano conservado pelo tempo cronológico; o que desmonta as noções que foram préconcebidas ou resguardadas da vivência daquele espaço até o momento do aparecimento deste novo objeto que dele se apropria. Este efeito-surpresa da aparição do Cinema é o que transformaria continuamente a apreensão do tempo como ele era antes. Se torna agora uma possibilidade de pausa e descoberta; de uma contemplação e de duração18 diferente e inédita, que pode resultar numa nova compreensão sensível tanto do espaço quanto da nova experiência que nele toma lugar. O tempo do Cinema em Movimento, portanto, se trata de um tempo de movimentações em torno de movimentações; de uma estrutura rizomática de acontecimentos que se enrolam

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17. Ibid., p. 68. 18. A mesma duração conceituada por Bergson e utilizada por Deleuze na compreensão do cinema da imagem-tempo.


e desenrolam como vivências efêmeras e memórias permanentes. Se trata de um instante que perdura no tempo eterno da subjetividade, das percepções eternizadas em lembranças.

itinerância A itinerância é o ato de deslocar-se constantemente; de não fixar-se de maneira permanente. Na exploração do kinema – o que definimos como a essência de um cinema que tanto é movimento quanto cria movimentos em torno de si –, a itinerância entra como uma noção de deslocamento total, de kinema em ação, que não apenas pertence a um espaço sujeito a movimentos, mas também se desloca por ele, se tornando, ele próprio, um movimento no território. A itinerância como movimento total do cinema se associa à possibilidade de deslocar a atividade da exibição cinematográfica a espaços que a princípio não foram destinados a este uso específico, para que a contemplação fílmica se torne, de alguma maneira, acessível às pessoas que fazem uso daquele espaço.

Palhaço do Grand Circus, Inglaterra, 1904, H.F. Cooper. Fonte: PRONI 19. ROCHA, Gilmar. O Circo: memórias de uma arquitetura em movimento. Patrimônio e Memória, São Paulo, v. 14, n. 2, p. 503-532, jul/dez, 2018.

Um exemplo de atividade itinerante que se assemelha ao que se descreve acima é o circo, que é um programa itinerante por natureza. O circo, em essência, necessita locomoverse continuamente à procura de um novo público. As viagens do circo são mais do que deslocamentos no espaço. Elas são, acredita-se, o principal constituinte de uma cultura circense. Segundo Gilmar Rocha19 (2018, p.510), “o nomadismo, a viagem, o deslocamento, antes de serem situações extraordinárias, constituem, na verdade, a regra da atividade circense”. No circo, a permanência é temporária, e o símbolo de sua presença é uma arquitetura nômade, improvisada construtivamente, e disposta no espaço como um assentamento; um território fisicamente delimitado que nada mais é do que a expressão de um território simbólico em contínuo movimento: em itinerância. A cultura do circo se trata de uma cultura viajante que

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se define mais pelo itinerário do que pela vinculação a um território (ROCHA, 2018). Ou seja, a espacialidade da atividade circense é a itinerância em si. Seus domínios são temporários, e proporcionais ao movimento feito entre um assentamento e outro. A itinerância dos circos, portanto, sendo mais do que o movimento do circo em sua totalidade enquanto objeto, é, na verdade, a materialização de um desejo de encontrar o público. Surge do não-pertencimento, da marginalização dos próprios artistas protagonistas dos shows: Na história do circo, associa-se a arte circense aos ciganos, que, perseguidos pela sociedade, encontravam no circo uma maneira de se sustentarem. O nomadismo era mais do que uma escolha artística; era uma necessidade. Os artistas levavam suas vidas inteiras junto às lonas que abrigavam suas performances. A viagem dos circos surge da ausência do lugar, tanto do próprio circo, quanto dos artistas protagonistas dele. Com relação ao cinema, houve também uma problemática de ausência do lugar, referente ao surgimento do cinema. De acordo com Flávia Cesarino Costa20, desde o invento do cinematógrafo, embora as primeiras sessões tenham sido numerosas e abarcantes de um grande público (as primeiras sessões dos irmãos Lumière foram vistas por quase 1,5 milhão de pessoas), isso não significava que o cinema tivesse alguma respeitabilidade ou fosse considerado sequer como forma de expressão artística. Essas exibições eram, sobretudo, parte de exposições tecnológicas (as Exposições Universais), e cativavam o público pelo seu caráter performático e envolvente. A tendência na época era de usar de métodos de ilusionismo utilizando imagens fotográficas para simular viagens no espaço e no tempo. “Eram o que os contemporâneos chamavam de espetáculos totais ou ultrarrealistas, muito comuns no início do século, e neles o cinema era um dos componentes, mas não o único.” (COSTA, 1995, p.2). O que, segundo a autora, se denomina como Primeiro Cinema, – o período caracterizado desde o invento do cinematógrafo, em 1895, até 1908 –, foi, na verdade, a incorporação da tecnologia cinematográfica a outros tipos de entretenimento.

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20. COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração, domesticação. São Paulo: Scritta, 1995.


"Circus Bath", 1937, Chicago. Kenneth Heilbron. Fonte: Art Institute Chicago


Estrutura e lonas do circo Sells & Floto Circus, 1914, EUA. Fonte: Divulgação


O cinema, nesta época, era marginalizado no sentido de não ser considerado arte da maneira que o reconhecemos hoje. O objetivo da sua incorporação a esse tipo de performance era possibilitar uma cativação do espectador; o que estava intimamente relacionado ao interesse da época – o ápice da Revolução Industrial –, de continuamente expor novos inventos e, desta maneira, tornar público o conhecimento de que a tecnologia estava a avançar. Disto se justifica o motivo de grande parte das primeiras sessões terem sido realizadas em Exposições Universais, que nada mais eram do que mostruários das maravilhas tecnológicas que o novo século prometia. A marginalização do cinema como arte, causada principalmente pela ausência de conteúdo narrativo consistente – uma vez que os primeiros filmes eram cenas curtas integradas a outros tipos de entretenimentos –, consequentemente, fez com que o cinema se instalasse em locais não exclusivamente destinados à sua ocupação. Além das grandes Exposições Universas, as exibições cinematográficas tomavam lugar em feiras, circos, teatros de ilusionismo, parques de diversões, cafés e todos os locais onde havia espetáculos de variedades; sobretudo as pequenas casas de entretenimento popular denominadas vaudevilles. Os filmes entravam como parte integrante das performances que aconteciam nesses locais. Em 1896 o vaudeville se tornava a forma de diversão popular mais frequente nos Estados Unidos, e é neste contexto que se deu a estreia do Cinematógrafo Lumière, fazendo grande sucesso.

“No final do século XIX o show de vaudeville compunha-se de uma série de atos, de dez a vinte minutos, encenados em sequência e sem nenhuma conexão narrativa ou temática entre si: Uma sessão típica de vaudeville em 1895 podia incluir um ato de acrobacia de animais, uma comédia pastelão, uma declamação de poesia inspirada, um tenor irlandês, placas de lanterna mágica sobre a África selvagem, um time de acrobatas europeus e um pequeno número dramático de vinte minutos encenado por um casal de estrelas da Broadway. Os primeiros filmes tinham herdado, portanto, essa característica de serem atrações autônomas, que se encaixavam facilmente nas mais diferentes programações. Os filmes, em sua ampla maioria compostos por uma única tomada, eram pouco integrados a uma eventual cadeia narrativa.” (COSTA, 1995, p.9)

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Desta forma, esse Primeiro Cinema caracteriza-se por uma certa itinerância, consequente de um não-pertencimento e da necessidade de deslocar-se por diferentes locais que abrigassem a exibição e a incorporassem em seus eventos. As casas de entretenimento e os espaços públicos em que se exibiam os filmes pareciam ser, obviamente, a melhor opção de localidade para que acontecessem as primeiras exibições. A informalidade do espaço era primordial para que a o público em massa pudesse acessá-lo, com curiosidade, e o cinema fosse conhecido. Além de que a diminuta quantidade de dispositivos disponíveis para se realizar a apresentação dos filmes ao público também era outro fator a ser considerado na necessidade de instalação do cinema em diferentes territórios, intercalando as sessões de exibições entre um local e outro. O invento do Cinematógrafo Lumière, além de ser interessante por proporcionar um incremento aos entretenimentos que já existiam, teve seu sucesso atribuído em grande parte ao seu design que, diferente dos dispositivos inventados anteriormente, era fácil de ser transportado e instalado.

“Enquanto o Vitascópio [de Thomas Edison] pesava cerca de quinhentos quilos e precisava de eletricidade para funcionar, a máquina dos Lumière era ao mesmo tempo câmera e projetor, utilizava luz não elétrica e era acionada por manivela. Devido ao seu pouco peso, podia ser transportada facilmente e assim filmar assuntos mais interessantes que os de estúdio, encontrados nas paisagens urbanas e rurais, ao ar livre ou em locais de acesso complicado. Além disso, os operadores dos Lumière atuavam também como cinegrafistas e multiplicavam as imagens do mundo para fazê-las figurarem nos seus catálogos.” (COSTA, 1995, p.9)

O Lumière era nômade. Viajava por territórios diferentes e apresentava imagens do “mundo real”: cenas externas; filmagens de pessoas comuns e ambientes urbanos. A ascensão do invento dos Lumière também deu-se graças a este teor documental e realista de suas filmagens. Os irmãos entenderam que o mercado para seus filmes não era o público refinado, mas a audiência popular, que se encantava com imagens de eventos cotidianos, os

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Metade de cartaz de 1896, propaganda do Cinematógrafo Lumière. Fonte: Artchive Russia


quais podiam associar às suas próprias rotinas; e também com filmagens de entretenimentos populares, como o circo, os espetáculos de magia e hipnotismo, números de pantomima, sessões de adestramento de animais e exibições de lanterna mágica (COSTA, 1995). Aqui é cabível o entendimento de que a relação acolhedora do cinema com o público desde seu nascimento até a sua consolidação é fruto de um interesse em fazer com que as massas tivessem acesso a ele. Era necessário tornar o cinema conhecido e desmarginalizá-lo. Era preciso divulgar o novo invento, que em pouco tempo derivaria uma mega indústria de entretenimento. Tornar as exibições interessantes e acessíveis ao público popular foi a primeira estratégia que possibilitou o grande sucesso do cinema no mundo. Os emblemáticos “A Saída da Fábrica” e “Chegada do Trem à Estação” (ambos de 1895) – os primeiros filmes feitos pelos irmãos Lumière – nada mais eram do que a documentação de rotinas; de acontecimentos comuns nas vidas de pessoas comuns. O mesmo público que assistiria a esse cinema também o protagonizava. A questão da viagem do cinematógrafo pelos territórios urbanos e do caráter itinerante do Primeiro Cinema, portanto, vai além da indisponibilidade de espaços voltados especificamente à sua exibição. Segundo Costa, a atitude de lançar o cinema junto ao espaço urbano público e aberto foi o que possibilitou que o cinema se popularizasse; e a exibição de filmes que mostravam a realidade das massas e pudessem entretê-las era a familiaridade necessária para gerar o interesse do público pelo cinema. Trata-se, como nos circos, do transporte de uma atividade que precisa de mais do que um lugar para si, neste primeiro momento da cinematografia: precisa de um público que se interesse por ele e o alimente para que cresça perante a indústria e se desenvolva. É tanto um processo de domesticação de um público e de reconhecimento dessa arte. Pôster de divulgação de companhia de cinema itinerante usado em 1900. Fonte: Library of Congress

De acordo com Vicente de Paula Araújo, no Brasil, a primeira exibição cinematográfica ocorreu em 1896, com a chegada do cinematógrafo ao Rio de Janeiro. Desde então, a

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Fotograma de Saída da Fábrica (La Sortie de l'usine), Irmãos Lumière, 1895.

Fotograma de Chegada do Trem à Estação (L'Arrivée d'un train à La Ciotat), Irmãos Lumière, 1896.

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itinerância do Primeiro Cinema se deu através do trabalho dos chamados “exibidores ambulantes”, proprietários de cinematógrafos que viajavam pelas cidades exibindo uma pequena seleção de filmes em salões e galpões, no período entre 1896 e 1905. Em São Paulo, o aparelho só chegou em 1898, trazido pelo Dr. Cunha Sales, um afamado empresário que vinha de uma temporada bem-sucedida no Rio de Janeiro. A exibição foi realizada no Teatro Apolo, onde também ocorriam outros tipos de entretenimentos e performances – como o phonographo21 de Edison e bailes populares de dança –, mas era o cinematógrafo o que mais chamava a atenção do público. As exibições, apesar de pagas, eram públicas e amplamente divulgadas na mídia. A chegada do cinema em São Paulo tornou-se tão grande sucesso que passaram a ser inaugurados espaços voltados principalmente à exibição fílmica, embora ainda abrigassem outros tipos de entretenimento. As chamadas “casas de diversão” continham cinematógrafos e exibiam filmes europeus de eventos particularmente europeus, como o desfilar dos presidentes, a passagem da Rainha Vitória, a marcha das tropas alemãs, tal como cenas cômicas de palhaços e mostras de ilusionismo; o mesmo tipo de entretenimento aos quais as massas europeias também estavam acostumadas. O cinema acabou se mostrando de grande alcance popular em todo o mundo, porém, diferente do cinema na Europa e nos Estados Unidos, onde explorava-se a massificação da atividade para torná-la cada vez mais rendosa e viável, no Brasil o cinema foi pensado como uma atividade artística dignificante para o país, com uma tendência elitizante e discriminatória. Segundo Anelli (1990), o cinema representava a modernidade que era desejada para as metrópoles brasileiras. Tanto os filmes quanto a tecnologia do cinematógrafo eram a materialização de uma internacionalidade da qual o Brasil fazia parte. Todavia, enquanto durou o Primeiro Cinema, a viagem dos cinematógrafos pelo território paulistano era realizada sob condições improvisadas, sobretudo entre teatros, salões e galpões, embora sempre amplamente divulgados em jornais e anúncios de rádio e, desta maneira, cativantes a um grande público. Entre os entretenimentos populares favoritos dos

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21. O fonógrafo é um aparelho inventado por Thomas Edison em 1877 para gravação e reprodução mecânica de som através da marcação das ondas sonoras nas superfícies de cilindros. Era utilizado em shows de entretenimento para reprodução de música, principalmente.


paulistanos também estava o circo, que instalava-se pelos bairros da cidade, embora algumas de suas performances também fossem incorporadas às programações dos mesmos teatros e casas de entretenimento em que se davam as exibições dos cinematógrafos. Em São Paulo, portanto, mostrava-se neste período um caráter ainda muito popular das diversões que ocorriam pelo território, sobretudo do cinema; cenário que mudaria com a consolidação do cinema como arte ao longo do tempo. A itinerância deixou de acontecer quando empresários finalmente solidificaram seus investimentos na indústria cinematográfica e passaram a ser inauguradas salas especificamente destinadas à exibição cinematográfica: as grandes salas de cinema que caracterizaram a paisagem urbana paulistana no período moderno. Contudo, antes de nos concentrarmos na compreensão da ascensão das salas de cinema em São Paulo, entenderemos por fim que a itinerância como primeira forma de espacialidade do cinema antes de sua consolidação foi, portanto, fundamental para o reconhecimento do cinema pelo mundo. Como os circos, o cinema passou por um processo de desmarginalização associado ao seu não-pertencimento perante as artes. Embora os circos permaneçam itinerantes por natureza, por serem baseados numa cultura nômade, enquanto o cinema encontrou numa interiorização espacial um melhor abrigo para sua atividade, que acabou por gerar uma outra cultura, de experiência intimamente ligada à expressão da modernidade que as grandes salas de cinema traziam às cidades. Entretanto – conforme discutido anteriormente em nossas reflexões com relação ao movimento –, da itinerância derivam-se movimentos colaterais, sobretudo de pessoas, fazendo com que haja uma alteração de suas intensidades no espaço urbano; em um tipo de ação e reação comportamental relacionada às imprevisibilidades geradas pela presença de um objeto efêmero. A itinerância transforma o espaço que antes foi, para que seja algo novo. Deixa rastros de memória mesmo quando não deixa rastros físicos, pois a vivência daquele lugar se torna diferente antes e depois da presença do objeto temporário. Pode-se dizer que os mesmos

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tipos de transformações ocorreram ao tempo deste Primeiro Cinema, devido à sua condição itinerante. Graças à originalidade da atividade cinematográfica, ao princípio do inédito vinculado às primeiras exibições, é que o cinema pôde encontrar o seu público e, ao longo do tempo, consolidar a grande indústria que nasceu a partir de seu sucesso inicial. Embora a proposta itinerante do Cinema em Movimento tenha surgido antes desta verificação histórica do início do cinema, pode-se considerar que o Cinema em Movimento faz, além de tudo, um resgate ao momento em que o cinema estivera marginalizado, desvalorizado de um sentido artístico que o elevasse a uma posição essencial na cultura. Apesar de não ser este o caso atual, visto que o cinema hoje é, mais do que nunca, presente em diversas áreas artísticas, além de ser inquestionavelmente classificado como arte. A problemática reside no fato de que o cinema hoje passa por um processo de esvaziamento de sua necessidade enquanto espaço na cidade; enquanto lugar. O cinema atingiu um alcance tão vasto na cultura – estando presente virtualmente, em nossos aparelhos celulares, ao mesmo tempo em que faz parte de mostras artísticas audiovisuais, por exemplo –, que torna-se possível questionarmo-nos qual a verdadeira necessidade de ainda existirem espaços especificamente voltados à exibição cinematográfica da mesma maneira que existem há décadas (em salas escuras de exibição). O retorno à itinerância revela o motivo pelo qual o alcance ao público e a temporária alteração da “tradição” dos lazeres, da rotina e da conformação às atividades existentes são fundamentais para que as dinâmicas anteriores a essa intervenção sejam transformadas, ou ao menos questionadas. O Primeiro Cinema iniciou uma alteração tão significativa, de tanto interesse do público, que acabou por desencadear o desenvolver de uma indústria que modificou significativamente as nossas noções acerca do que é arte, por exemplo. O Cinema em Movimento, neste contexto de esvaziamento da valorização dos cinemas lugares, buscará revelar os motivos pelos quais a persistência desses espaços é relevante à cidade enquanto desencadear movimentos em torno de si; ou seja, diferentes ações, reações, subversões, atividades imprevistas – as microdinâmicas que são, no fundo, conforme defenderemos adiante, o que enriquecem as vivências culturais e urbanas.

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destino e evento A partir do capítulo seguinte abordaremos em mais detalhes a questão do espaço físico do cinema. Entretanto, ainda se faz importante salientar algumas noções com relação à experiência de recepção do cinema, que até agora compreendemos que acontece num tempo desmedido, desregrado, em uma dimensão essencialmente psíquica. O tempo do cinema, como vimos, se trata de um tempo subjetivo, particular de cada espectador, que, assistindo a um filme, percorre trajetos mentais imprevisíveis, em processos de rompimentos de linhas de pensamento – provocados pela narrativa da obra – e de novas ligações, das afecções relacionadas à memória. Contudo, não se pode negar que o tempo do cinema, apesar de imprevisível num sentido psíquico, enquanto ação contemplativa, também carrega em si uma noção de finitude, devido à duração da obra cinematográfica em si; ou seja, devido à limitação do tempo do filme: o tempo cronológico que marca o período entre o início e o fim de um filme.

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Essa duração finita (diferente da duração que se estende pelos fluxos da consciência) demarca um sentido de tempo que analisaremos adiante sob uma dimensão física do cinema, nos afastando das concepções de experiência psíquica que vimos até agora para que nos concentremos no que consiste a experiência – ou a vivência – do cinema enquanto materialidade no espaço: a experiência do cinema lugar, da sala de cinema. Para tanto, consideremos que, diferentemente da experiência do cinema arte na dimensão imaginária (imaterial), o mesmo cinema existisse numa dimensão física (material), que ocupa certo fragmento do espaço. Em um fazer cinematográfico analógico, esta existência física se trataria da totalidade de espaço do deslocamento entre um frame de vídeo e outro de maneira sucessiva. Em outras palavras, a dimensão física do cinema arte seria a do videotape, a fita de vídeo que registra em suas partículas magnéticas as imagens captadas pela câmera de vídeo. Cada imagem impressa neste videotape gera um conjunto, que por sua vez é o produto final do cinema arte: o filme. O primeiro e o último frame impresso neste videotape demarcam, materialmente, o início e o fim das filmagens. A evolução tecnológica que transformou o cinema analógico no cinema digital, caracterizado por um moderno processo fotoelétrico – em que a luz é transformada em eletricidade e codificada virtualmente – fez com que o produto cinematográfico enquanto matéria deixasse de existir. Contudo, preserva-se ainda a mesma qualidade temporal cronológica, demarcada pelo início e o fim do filme. Este tempo cronológico ainda é de um tempo físico, pois não perdura além de suas extremidades, sendo propriedade mensurável de uma obra divisível em fragmentos de cena, frames e instantes, mesmo que virtuais. Esta temporalidade finita nos interessa nesta reflexão sobre os cinemas lugares pois gera uma experiência também finita. Ou seja, se o filme possui início e fim, o ato de assisti-lo ocupa este mesmo espaço de tempo. A permanência física de um espectador em uma sala de exibição tem uma duração de tempo programada, proporcional à duração do filme assistido. Este se trata de um tempo de evento programado, de programação pré-definida, de resignação

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a um acontecimento que, em um tempo urbano, é o tempo de duração da permanência do espectador em uma sala de cinema na cidade. O tempo finito da experiência do cinema é, desta maneira, interpretado aqui num sentido de experiência física do cinema. Está relacionado à escolha de ir ao cinema e submeterse deliberadamente a um tempo determinado pela própria obra cinematográfica, e às experiências mentais que resultarão dela; que por sua vez possuem um tempo próprio – o tempo do acontecimento –, que se desdobra na psique. A ida ao cinema, portanto, além de ser uma movimentação com um destino específico (a sala de cinema) e o propósito de se realizar uma atividade (assistir a um filme), é uma experiência que retira o espectador de sua própria realidade, ao mesmo tempo em que propõe uma vivência espacial esporádica, associada ao lazer, ao entretenimento, à pausa. Um evento, num sentido de eventualidade, afinal, é também um acontecimento que foge da normalidade, do tempo regrado da rotina. Enfim, a interpretação do cinema como evento nos permitirá, a partir de agora, compreender o cinema lugar como um espaço de atividade pública associada ao lazer, ou melhor, um espaço destinado ao público para a contemplação do cinema arte; espaço que, essencialmente, é comum ao público que dele usufrui, pertencente a uma cidade que, por sua vez, também é comum aos indivíduos que a vivenciam. Até aqui tratamos do cinema enquanto arte e das características que o qualificam em um nível psicológico. O entendimento das qualidades psíquicas do cinema foi o que nos interessou até agora para que pudéssemos traçar uma primeira relação entre o cinema arte e uma experiência de cinema. A interpretação do cinema lugar como espaço de evento nos auxiliará na continuidade da reflexão iniciada anteriormente acerca da existência dos cinemas lugares e do seu papel no território urbano. Dado que, ao considerarmos o cinema lugar como o espaço desta eventualidade de cinema – o lugar onde se realiza o evento finito que é o ato de contemplar a obra cinematográfica –, não deixamos de nos defrontar com a problemática destes espaços persistirem no território urbano num sentido utilitário; de que

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a necessidade do ato de ir a uma sala de cinema para assistir a um filme não mais existe, no contexto atual onde o acesso a essas obras é (ou poderia ser) facilmente possibilitado através da internet. Ao tratarmos da itinerância iniciamos a reflexão de que a presença do cinema desencadeia movimentos que são relevantes à cidade uma vez que promovem microdinâmicas em torno de si. Entretanto, essas microdinâmicas só são possíveis enquanto houver interesse do público em alimentar a atividade destes cinemas; ou seja, enquanto o público ainda preferir, em algum momento e por algum motivo, a ida ao cinema em vez do consumo virtual dos filmes. De acordo com Thomas Elsaesser22, esta questão está relacionada a uma diferenciação entre o cinema como ritual e o cinema como espetáculo. O cinema como ritual, segundo o autor, diria respeito a uma ação rotineira, que faz parte do tempo regrado e genérico a que estamos habituados ao longo de todos os dias. O espetáculo, em contrapartida, se trataria do acontecimento, da eventualidade, do devir de uma ação que terá desdobramentos desconhecidos. Segundo Elsaesser, o caráter de evento é o princípio organizador “externo” do cinema, já que, além de promover o encontro do espectador com um conjunto de expectativas pertencentes a uma codificação do que é habitualmente encontrado em uma sala de cinema, é também um evento condicionado por uma qualidade performática. Ou seja, a ida ao cinema, além de proporcionar ao espectador o encontro com o acontecimento ao qual ele se propõe a resignar-se (assistir a um filme), este acontecimento guarda em si uma experiência que difere da mera contemplação do filme por si só: a performance da obra cinematográfica seria o que os cinemas lugares podem oferecer ao espectador que o cinema virtual não ofereceria. Ainda segundo Elsaesser, esta qualidade é o que confere ao filme sua inteireza enquanto obra, e um evento seria sua efetivação. Ainda que o cinema, enquanto objeto urbano, pareça obsoleto perante o desenvolvimento tecnológico que possibilita o consumo cinematográfico individual, é o caráter performático conservado nas salas de cinema que interessa ao espectador como possibilidade de experiência distinta. Elsaesser pontua ainda que esta experiência sempre

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22. ELSAESSER, T. Cinema como Arqueologia das Mídias. Szlak, Carlos. São Paulo: Edições Sesc, 2018.


esteve atrelada à existência das salas de cinema, embora tenha se modificado ao longo do tempo:

“Nos últimos cem anos, a combinação de performance e evento assumiu formas muito diversas. Por exemplo, se o caráter de performance do cinema mudo requeria uma orquestra no fosso, o caráter de evento das décadas de 1930 e 1940 era definido ao redor do público constituído por famílias; nas décadas de 1970 e 1980, o evento se modelou sobre os hábitos de lazer de seu público majoritariamente jovem e masculino; na década de 1990, ao que se conta proveu outra vez e cada vez mais um público constituído por famílias, com seu caráter de performance agora requerendo som Dolby Digital.” (ELSAESSER, 2018, p.207-208)

Há também para o público, conforme Elsaesser, uma vantagem temporal na visita aos cinemas, como o privilégio de conferir a estreia de um filme, por exemplo. As grandes indústrias se aproveitam de um princípio de inédito intrínseco aos seus lançamentos, valendose de grandes atitudes publicitárias, tornando o próprio filme um evento: O público, interessado em conferir em primeira mão as obras que são promovidas em tão vasta distribuição – como os lançamentos dos blockbusters, anunciados em todo tipo de meio midiático, numa espécie de contagem regressiva que ocupa até mesmo espaços urbanos –, é impelido a testemunhar o tão grande evento o mais rápido possível, e está disposto a pagar por essa experiência em uma sala de cinema. O espectador destes “filmes-evento” é tomado de um imediatismo que se torna outro motivo pelo qual as salas de cinema ainda possuem utilidade em meio ao contexto da digitalização das mídias, sobretudo para as indústrias, neste caso, que podem lucrar também (e ainda mais) com a presença do público ansioso pelo consumo das obras audiovisuais, e não apenas com a comercialização virtual. Portanto, o movimento da ida ao cinema se demonstra, novamente, como uma escolha devido a uma consciência de que esta atividade resultará numa experiência possível somente

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por que hรก ci ne ma?


num espaço físico específico onde nos sujeitamos a uma submissão perante um tempo diferente do habitual; o espaço dessa experiência inédita, singular e performática. Segundo Elsaesser, é o espaço físico do cinema que proporciona condições concretas para que até os filmes “pequenos” se beneficiem de uma “qualidade sagrada do evento”. Para ele, é a possibilidade de “epifanias” que justifica a principal pretensão do cinema de ser diferente da televisão, por exemplo, que é considerada parte do um processo de desenvolvimento tecnológico que indubitavelmente causou o esvaziamento das salas de cinema ao longo do tempo; contudo, este assunto será tratado em mais detalhes nos capítulos seguintes. Outra consideração importante que se faz a respeito do cinema como evento ao qual se escolhe ir é o seu papel como atividade “participativa”, em que o público se sente parte de um todo comum; afinal, todos os espectadores presentes numa sala participam de uma mesma atividade. Um espectador pode não buscar especificamente estar junto a outras pessoas quando vai ao cinema, como se esta qualidade “coletiva” fosse o principal fator que o leva até o cinema, contudo, a possibilidade de estar junto de outras pessoas e fazer desta atividade um encontro é o que diferencia a experiência da sala de cinema da experiência solitária de contemplação cinematográfica virtual, que se faz através das telas de televisão, celulares, computadores, etc. O cinema como evento, então, trata-se também de uma manifestação de pluralidade, de algo que envolve o público num único acontecimento, até que cada um o aprecie (em suas próprias distinções psíquicas) e o incorpore em suas próprias vivências. Assim, podemos considerar que o espaço do cinema deixa de ser um mero espaço de lazer e se torna um espaço público quando oferece e até se utiliza da possibilidade de encontro social. É neste sentido que podemos nos atentar à variedade de usos de um cinema. Nele pode-se encontrar um bar, um café, um saguão suntuoso; espaços em que o público pode se relacionar e interagir. Atualmente, o uso das salas de cinema até extrapola a exibição cinematográfica. Nelas são realizadas exibições de jogos de futebol, performances musicais, transmissões ao vivo, palestras; exemplos de uma vasta gama de possibilidades de ocupação de um espaço de plateia como o dos cinemas, e que se tornaram habituais ao longo do tempo.

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É a partir desta consideração que se revela a qualidade urbana dos espaços de cinema em si, antes mesmo que ele possibilite movimentações e microdinâmicas, como discutido anteriormente. São estas virtudes (a qualidade de evento, a performance e o caráter público do cinema) que nos auxiliam a compreender a persistência da utilidade dos espaços de cinema nas cidades. O movimento dentro de um cinema, desta forma, também se torna parte da nossa discussão, pois nele também existem qualidades urbanas. A possibilidade de encontro, de vivência social, são características que ainda destacam os cinemas como espaços públicos urbanos, uma vez que acontecem em um objeto localizado no território urbano e, portanto, fazem parte da totalidade dele. Consequentemente, conservando características de espaços públicos, os cinemas qualificam o próprio território urbano que, quanto mais possuir espaços que possibilitam a vivência coletiva, será cada vez mais rico aos indivíduos que dele usufruem. O Cinema em Movimento faz uso de todos estes aspectos quando propõe a experiência cinematográfica junto a espaços urbanos que já são dotados de dinâmicas próprias, conforme levantado anteriormente. A qualidade do evento pode ser ainda mais clara ao se pensar num objeto itinerante. A efemeridade do acontecimento deste cinema em determinado território marca de maneira visível o tempo cronológico da experiência proporcionada por ele; portanto, esclarece que esta experiência é eventual. O caráter performático também seria ainda mais evidente, devido às funcionalidades e tecnologias exploradas no objeto, que fazem dele um evento por si só; entretanto, não nos prolongaremos ainda neste sentido projetual. Apenas nos concentraremos que, enquanto evento, o cinema promove relações que são relevantes ao espaço e ao tempo da cidade, uma vez que há nele condições que qualificam essas propriedades e elevam a experiência a uma possibilidade singular; e o projeto do Cinema em Movimento buscará instigar estas características através de uma arquitetura efêmera e performática. Graças à verificação das movimentações em torno do cinema e dos motivos que o tornam um destino deliberado, fruto da escolha de vivenciar um evento singular e excepcional, fora da

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Plateia da estreia do filme "Bwana Devil", o primeiro longametragem em 3D, no Paramount Theater, em Hollywood. Novembro de 1952, J.R. Eyerman. Fonte: Life Pictures, Getty Images

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rotina comum, é que podemos dar continuidade à reflexão sobre os espaços de cinema como lugares urbanos. Embora a permanência das salas de cinema nas cidades pareça uma incógnita ainda maior diante do contexto atual em que o acesso a esses lugares é distante da realidade socioeconômica, em que a ida ao cinema se torna um privilégio dos detentores de poder aquisitivo suficiente para um consumo considerado supérfluo, desnecessário – se considerarmos a aproximação do público com os produtos cinematográficos proporcionada existência dos meios digitais –, nos lembraremos, a partir de agora, que a questão da presença dos cinemas nas cidades ainda é relevante tanto no sentido urbano quanto no sentido da atividade da indústria cinematográfica. Para a cidade, o cinema representa uma possibilidade de lazer e, sobretudo, de vivência coletiva. Para a indústria, é um artifício de comercialização e de efetivação e dignificação da cinematografia. Espera-se, desta forma, que fique clara que a reflexão proposta neste trabalho é a do resgate da aproximação da experiência do cinema junto à cidade, devido aos aspectos que aqui defenderemos como positivos para uma vivência urbana rica em movimentos, em diferenciações e variedades. O Cinema em Movimento seria uma tentativa de promoção de todos os movimentos relacionados ao cinema em si próprio e na cidade. A verificação dos motivos que enriquecem a presença de um cinema no espaço urbano, enquanto materialidade física serão exploradas nas páginas seguintes, para que possamos dar continuidade à reflexão do Cinema em Movimento como um objeto instigador de movimentos urbanos.

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2 o espaรงo



o espaço Ao longo das páginas precedentes tivemos contato com uma conceituação do cinema com base numa abordagem físico-filosófica do movimento, que consideramos como a essência do cinema tanto em seu significado como arte quanto como lugar. Sob a ótica do movimento é que pudemos verificar que as experiências do cinema estão relacionadas a inflexões, a subversões temporais na dimensão psíquica, fomentadas pelos movimentos imagéticos da própria obra cinematográfica. E estas experiências mentais, por sua vez, ocorrem junto à experiência física que toma lugar no espaço de exibição – a dimensão física do cinema –, onde os espectadores vivenciam, participam e são os agentes de outros tipos de movimentações: os deslocamentos de ida ao cinema, que por sua vez fazem parte dos tantos movimentos que tomam lugar no território urbano. É a partir deste ponto em que deixamos a discussão sobre o movimento do cinema que seguiremos nossos estudos. Neste capítulo nos debruçaremos com maior cautela sobre os lugares de cinema, sobretudo na cidade de São Paulo, que será também o território do nosso

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Cinema em Movimento. Trataremos do espaço e de suas particularidades e diferenciações. Aqui, diferentemente do capítulo anterior, em que tratamos do tempo e das movimentações presentes nele, trataremos do espaço: a outra propriedade componente do fenômeno do movimento. Consideraremos que os lugares de cinema na cidade são reconhecidos sob variadas formas e configurações espaciais, as quais surgem ao longo da história do cinema devido às mudanças socioculturais, tecnológicas e até mesmo urbanas que se sucederam desde o invento do cinematógrafo até os dias de hoje. Veremos que, além da valorização do cinema e de sua consequente evolução rumo a uma grande e influente indústria cultural, o surgimento das salas de cinema no espaço urbano também foi desencadeado por um desejo de modernidade que se percebia, como vimos, desde a chegada do cinematógrafo em São Paulo; uma intenção de aplicação de um modelo de vida cosmopolita que fora replicado das grandes capitais norte-americanas e europeias. Desta forma, buscaremos relacionar os espaços de exibição cinematográfica e suas diferentes características às dinâmicas urbanas contemporâneas aos momentos em que estes lugares passaram a existir no território, de maneira que o cinema continuará sendo, para nós, um objeto valoroso para uma reflexão sobre a cidade e a vivência urbana. Portanto, sairemos de uma compreensão mental do cinema – e de sua relação com a existência física dos lugares de cinema na cidade – para buscarmos compreender quais as relações destes espaços com as dinâmicas urbanas. Finalmente nos aproximaremos do que o cinema induz no espaço urbano, além das movimentações destinadas ao alcance da experiência do cinema arte, pois a maneira (e os motivos) pelos quais estes fluxos ocorrem estão, agora, claros para que possamos seguir frente ao entendimento ainda mais profundo da relevância do cinema no espaço urbano.

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inércia No início do capítulo anterior, a proposta da análise da conceituação do significado de movimento segundo a física serviu como apoio para uma abertura da compreensão do cinema como algo composto e envolto por movimentos. Em continuidade a esta reflexão, evocaremos agora a oposição da ideia de movimento; uma condição estática, fixa, portanto, imóvel: a inércia. A inércia se trata do princípio da física que indica a tendência de um corpo em repouso permanecer em repouso, da mesma maneira que um corpo em movimento permanecerá em movimento. É uma condição justificada pela Primeira Lei de Newton, a Lei da Inércia, que diz que esse estado dos corpos é constante a não ser que uma nova força atue sobre eles. É uma propriedade inerente da matéria, ou seja, qualquer corpo que possuir massa está sujeito a um estado inerte. Esta propriedade é perceptível quando, por exemplo, estamos sentados em um carro que, ao começar a acelerar, faz com que nosso corpo seja pressionado contra o banco. Isso acontece porque estávamos em estado de repouso e uma aceleração foi aplicada

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através de uma força (a que faz o carro entrar em movimento). Portanto, segundo a física, para percebermos a ação da inércia, precisamos estar em algum referencial acelerado; precisamos estar em movimento. Somente assim é possível perceber a diferença entra o estado inerte e o estado móvel. Em uma interpretação (um tanto abstrata) da propriedade da inércia na física aplicada ao contexto de nosso Cinema em Movimento, podemos considerar que, uma vez que compreendemos nas páginas precedentes toda a relação de movimentos presentes em um filme, tal como dos movimentos precipitados por ele – mental e espacialmente, da contemplação e da ida ao cinema –, a assimilação desse movimento pode ser justamente o “referencial acelerado” que faz possível a percepção do estado de inércia do cinema: A inércia, com relação aos corpos físicos, é uma propriedade que remete à estabilidade, à conservação de um estado. Pode-se considerar que o tempo da inércia é eterno, porque a inércia é uma constante, uma imutabilidade por definição. O tempo não importa para um corpo inerte, porque este tempo também se torna inerte; se torna invariável, não influi na condição estática do objeto em questão. O tempo da inércia se trata de uma continuidade interminável até que algo (uma força) cause uma transformação desta condição. Ou seja, inerente à inércia está a invariabilidade, a preservação deste estado que perdurará no tempo até que sua constância seja alterada pela intervenção ou pela variação da intensidade de uma força que, consequentemente, modificará a relação entre o corpo inerte e o espaço em que ele se faz presente. Portanto, é devido à invariabilidade de deslocamento no espaço, ou da inexistência desse deslocamento, que percebemos a inércia e, analogamente, é devido à variação do deslocamento no espaço, do rompimento com a inércia, que existe o movimento e a mutabilidade deste movimento. Pois, como agora podemos destacar, o deslocamento por si só, de maneira invariável também se torna inerte. Também acaba por se tornar uma permanência. Desta forma, podemos admitir que a transformação – a possibilidade de instabilidade – é também algo a se considerar com relação ao movimento.

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Como exemplo mais próximo às nossas discussões anteriores, resgatemos a questão dos circos. O movimento, a viagem dos circenses, do espetáculo e das lonas é tão intencional que se torna a essência da cultura circense. É premeditada, deliberada, estável em sua própria condição de instabilidade. O movimento, tão previsto, é que torna a itinerância uma permanência, enquanto intenção constante, uma inércia imaterial, pode-se dizer. Ao contrário do circo, a breve condição itinerante do Primeiro Cinema representou, na verdade, o rompimento de uma inércia e o início de um movimento que resultou na consolidação do cinema como arte. Os lazeres, antes da chegada do cinema, já estavam estabilizados na indústria do entretenimento de uma certa maneira, e da mesma forma estavam fixados nas vivências e no consciente coletivo. A incorporação do cinema a estas formas de lazer – quase parasitária, aproveitando-se da atenção dada a elas –, rompeu com a codificação que se existia com relação às possibilidades de entreter-se na cidade. Como vimos, o cinema, como um fenômeno variável, flexível, facilmente absorvível por lazeres paralelos, modificou – a partir de seu surgimento em itinerância – a cena do entretenimento (e da arte) mundial. A hipotética “instabilidade” proporcionada pelos movimentos do cinema precipitou uma variação dos movimentos relacionados ao lazer: tanto da experiência deles, quanto dos espaços em que se davam esses eventos, já que o cinema, como também discutido anteriormente, desperta e estimula movimentos no território, devido à sua qualidade de inédito. A inércia, neste contexto é lida como uma convenção de vivências no espaço urbano, e é rompida pelo cinema graças ao acontecimento de uma alteração nesta conformação. Neste sentido, a inércia pode ser interpretada como uma imobilidade psíquica, como uma conformação pré-concebida de atividades, dinâmicas e valores atribuídos a elas. Se trataria da invariabilidade da rotina; dos movimentos regulados e motivados pelos hábitos e compromissos diários. No sentido do rompimento da inércia causado pelo Primeiro Cinema, os lazeres, mesmo que considerados uma “fuga da rotina”, podem ser também parte dela, se compreendermos que o tempo do lazer também é programado em dependência do tempo dessa rotina, como uma atividade que fazemos com o propósito de “escapar” da monotonia

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do cotidiano. Ou seja, a realização de uma atividade de lazer pode ser cumprida em um período de tempo reservado a ela dentro de um tempo previamente regulado, como fuga deliberada de uma conformidade. Entretanto, podemos compreender que essa regularidade de atividades não passa de uma sensação. Ao contrário da inércia física – da condição dos corpos –, a inércia psíquica se trata mais da nossa interpretação sobre a sequenciação das nossas atividades diárias do que de fato uma imutabilidade, já que cada momento de cada dia das nossas vidas é sempre diferente em relação ao que parece retornar como mesmo. O tempo acumulado no movimento do tempo o torna diferente mesmo em seu aparente retorno. A impressão de se viver uma rotina sistemática remete aos automatismos de ações e gestos que parecem nos conduzir como seres em um eterno movimento inercial, que nos fazem ter a sensação de que estamos sempre realizando as mesmas atividades, enquanto, na verdade, cada uma delas acontece de maneiras diferentes e, além disso, desencadeiam outras reações tanto no espaço quanto na consciência. Como exemplo, a ocupação de nosso corpo em determinado espaço, mesmo que momentânea, pode gerar algum tipo de recordação que perdurará para sempre na memória de alguém, ou nas nossas. A sequenciação de atividades de uma rotina nunca garantirá de fato os mesmos resultados enquanto estivermos atentos ao mundo a nossa volta, que sofre constantes variações independentes de qualquer tipo de programação que sejamos capazes de antever para nós mesmos, já que estamos sempre sujeitos a interferências de outros indivíduos e acontecimentos que não somos capazes de controlar. Desta forma, a inércia psíquica, que se trata simplesmente da sensação de mesmice que a rotina nos causa, se justifica por um tipo de estagnação física dos nossos corpos perante os espaços que ocupamos diariamente. Da mesmice do trajeto, dos destinos, das origens e até mesmo das ações que realizamos todos os dias. Esta inércia do cotidiano remete às nossas relações diárias com o espaço a nossa volta, que parecem ser sempre as mesmas, uma vez que estes espaços não mudam; são permanentes, num sentido de imobilidade material. A apreensão do território material como permanente, imóvel, é justamente o que intensifica a

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sensação de rotina: quando frequentamos os mesmos lugares e fazemos os mesmos percursos todos os dias realmente temos a sensação de que nada está diferente, devido à rigidez da materialidade do espaço. Portanto, a noção de inércia se verifica graças a uma apreensão espacial do que está a nossa volta, por meio de referenciações. Ou seja, nos damos conta das permanências na cidade graças aos movimentos que acontecem em torno delas. Como dito anteriormente, a inércia só é percebida em dependência de um referencial acelerado que, em comparação ao que está inerte, torna possível a apreensão de que o objeto observado conserva um estado constante. Desta maneira podemos destacar a noção da inércia com relação ao espaço. A inércia enquanto condição física é fundamentalmente verificada na dimensão espacial, uma vez que a modificação na relação entre o espaço e um corpo inerte resulta no rompimento de seu estado de inércia. É no espaço que se observa e se percebe a condição inerte, pois é a dimensão espacial que é materializada diante dos corpos. Diferente de uma dimensão imaterial, como o tempo, o espaço é palpável, pois se evidencia através da matéria, enquanto o tempo pode ser subjetivo, mental e, portanto, imensurável. O espaço, neste sentido de correlação com a matéria que o ocupa, é percebido graças à presença dos corpos. O espaço também depende de referências; entretanto, diferente do tempo, que depende de referências imateriais, o espaço depende da matéria para se evidenciar. É a presença do corpo que revela a presença do espaço. É o corpo que ocupa o lugar, não o inverso. Segundo Gold Schmidt1, “o lugar é intervalo do vazio – procede do corpo que ocupa o lugar, não do vazio que o abriga”.

1. apud PALLASMAA (1996, p.21)

A inércia dos corpos, portanto, diferente da inércia psíquica imaterial, remete à permanência da matéria no espaço. A mesma rigidez que justifica a apreensão do território urbano como uma imobilidade se trata de uma inércia física, uma estabilização do corpo, de modo a não sair do lugar, de não mover-se. Ou seja, a inércia física no espaço se trata, fundamentalmente, da estabilidade dos objetos. Na cidade, a inércia é verificada nos elementos

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do território que não se deslocam, apesar de possibilitarem e gerarem deslocamentos em torno de si. Estes são os edifícios, as vias urbanas e os monumentos. Contudo, o território urbano, lido como uma permanência, também está constantemente sujeito a sofrer alterações. O território está sempre em mutação, em renovação, devido às transformações socioculturais que nele tomam lugar. Desta forma, conserva tanto uma qualidade de ser instável quanto de ser estável. A instabilidade deriva das dinâmicas dos movimentos em torno dele – sejam eles físicos ou sociais –, e a estabilidade diz respeito ao seu espaço físico, material. É neste sentido, da compreensão de uma distinção entre a inércia psíquica, como uma conformidade aparente, e a inércia física, como a permanência dos espaços, que se pretende iniciar uma reflexão acerca do surgimento dos espaços de cinema – dos cinemas lugares – e do território em que eles se inserem – a cidade.

o cinema inerte Ao tratar do movimento do Primeiro Cinema, destacamos uma espacialidade caracterizada mais por uma variação do que por uma fixação, uma instabilidade em itinerância em detrimento de uma estabilidade espacial, devido ao não-pertencimento do cinema perante as artes e ao território urbano no início de sua história. Com o decorrer do tempo e do desenvolvimento do cinema como uma indústria de poder latente, vimos, inclusive, que os espaços de cinema foram surgindo em São Paulo para abrigarem especialmente (embora não exclusivamente) as exibições fílmicas. O processo de assentamento do cinema na cidade leva a uma noção de estabilidade, de firmamento de uma intenção de ocupação da cidade por este cinema, que ocorreu graças à sua consolidação como cultura, como arte. A partir da metade da primeira década do século XX o cinema já se apresentava no mundo como um tipo de negócio mais seguro do que em seu início. Surgidas inicialmente

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como produto de reformas de outros tipos arquitetônicos, como os music halls ingleses e teatros, as primeiras salas de cinema norte-americanas e europeias procuravam criar uma nova imagem para o cinema. Sobretudo buscava-se, através da construção do cinema numa materialidade espacial, representar, de maneira simbólica, como o cinema consolidava-se como arte. Com a sedimentação da linguagem cinematográfica a partir de Griffith2 (1915), que deu aos filmes condições de contar histórias mais longas e concatenadas narrativamente, é que foi possível a estabilização do negócio cinematográfico. A partir disso passou-se a construir a indústria do cinema e a produção em série, resultando, analogamente, no interesse dos empreendedores na construção de salas de cinema; que agora pareciam um investimento estável e promissor.

2. D. W. Griffith é um dos maiores nomes associados à ascensão do cinema como arte devido à sua vasta obra, que revolucionou a produção cinematográfica, moldando a indústria e desenvolvendo uma linguagem que posteriores realizadores continuariam a usar. Griffith aperfeiçoou técnicas fílmicas que já eram utilizadas e fez nascer a montagem, que tornou-se elemento essencial na construção de narrativas consistentes e envolventes. Antes da invenção da montagem, os filmes não possuíam regularidade suficiente que os fizessem ter credibilidade enquanto arte. 3. ANELLI, Renato Luiz Sobral. Arquitetura de cinemas na cidade de São Paulo. 1990. 3v. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas, Campinas, SP.

Além da fixação do cinema no território, buscava-se firmar justamente a noção de que o cinema era uma arte não apenas válida, mas notável, pertinente e dignificante. De acordo com Renato Anelli3 – acerca do surgimento e do desenvolvimento do cinema como arquitetura –, as novas edificações de salas de cinema buscavam atrair “melhores classes”, a fim de apagar a memória da origem do cinema entre as massas. A arquitetura revelava essa intenção, de forma que a aparência dos novos edifícios enfatizava a luxuosidade da nova arte:

“Tais esforços consistiram, por um lado, no aprimoramento da linguagem do cinema e, por outro, no refinamento dos prédios, melhorando assim seu conforto, segurança e aparência. Em relação ao conforto surgem os ‘foyers’ elegantes, as luzes indiretas, as atendentes uniformizadas, as poltronas acolchoadas e a fachada ricamente decorada no melhor estilo neoclássico. Os nomes refletiam essa intenção: Empire, Palace, Imperial, Jewel, Globe...” (ANELLI, 1990, p.16)

Segundo Anelli, o cinema em São Paulo – enquanto estrutura e elemento urbano – foi algo que acompanhou o desenvolvimento e as transformações urbanas. Desde a inauguração do Bijou-Palace em 1907 (a primeira sala de exibição regular paulistana), as salas de cinema que a sucederam foram símbolos fundamentais do processo de modernização da cidade,

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sobretudo no centro de São Paulo, no triângulo compreendido pelas ruas Direita, São Bento e XV de Novembro. O cinema tornou-se, para os paulistanos, “um hábito caracteristicamente moderno” (ANELLI, 1990, p.4), uma vez que as salas que surgiam na cidade representavam o desenvolvimento em comparação às grandes metrópoles internacionais, onde os cinemas já faziam parte da paisagem e do cotidiano urbano. Associava-se o cinema a uma ideia de personificação da atualidade, do progresso da cidade brasileira seguindo os moldes internacionais. Sempre houve, no Brasil, um desejo de pertencimento perante as grandes nações mundiais; e o cinema, enquanto símbolo de um desenvolvimento tecnológico e de uma cultura autêntica da época, era ainda mais fascinante ao público brasileiro na construção de um retrato de modernidade. “Ao lado dos viadutos, das avenidas, do automóvel com suas buzinas (Klaxon), os prédios dos cinemas simbolizavam que a cidade é moderna” (ANELLI, 1990, p.4).

Pôster de estreia do Bijou Palace em 1907. Fonte: Salas de Cinema de São Paulo

As grandes salas paulistanas eram respostas à necessidade de abrigar o novo tipo de lazer que lotaria os edifícios com multidões e transmitiria uma ideia de vida cosmopolita.

O Cine Alhambra (anos 20), localizado na Rua Direita. Fonte: São Paulo Antiga Ao lado, o Bijou Palace, a primeira sala de cinema paulistana. Fonte: São Paulo Antiga

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Os novos edifícios construídos sob o tipo de “cinema” não eram apenas salas que reuniam o público para assistir às produções cinematográficas cada vez mais inovadoras; também eram lugares de espetáculo e de evasão popular. Eram locais de encontro, de entretenimento e de vivência urbana. Simbolizavam, portanto, tanto uma ideia de cinema quanto uma ideia de cidade. A própria arquitetura escolhida para as salas de cinema paulistanas, tal como as grandes salas norte-americanas e europeias, construídas entre estilos historicistas e vanguardas modernistas, representavam, segundo Anelli, um interesse em adequar a paisagem brasileira à imagem que se tinha das metrópoles, a despeito da adoção desses estilos em nome de uma decisão arquitetônica com propósito maior.

O Cine Alhambra, um dos primeiros cinemas elegantes no Centro de São Paulo. Era Programa obrigatório da sociedade paulistana, junto com as casas de chá e os cafés. Fonte: Salas de Cinema de São Paulo

As salas de cinema paulistanas, enquanto materialidade pertencente ao território urbano, cumpriam seu papel de símbolo moderno em si próprias. A aparência das grandes salas perante a cidade e em seus interiores seguiam moldes hollywoodianos – uma somatória de estilos denominada posteriormente como Art Déco e International Style – num interesse de transformá-las em cenários de fantasia, sonho e encantamento popular, competindo com os cenários dos próprios filmes em exibição, já que, o cinema enquanto arte já representava, em si próprio, como conteúdo, justamente as imagens de modernidade tão valorizadas pelo público. Desde as nossas reflexões sobre o invento do cinema tem se considerado que as exibições de imagens triviais do cotidiano urbano foram primordiais para a construção do interesse dos espectadores pelo cinema. Com a sua consolidação enquanto arte, a reprodução da vida moderna nas metrópoles internacionais que as novas produções cinematográficas

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apresentavam servia, sobretudo, como uma referência de urbanidade. Desde a década de 1920, a estabilização do cinema no território paulistano implicou na construção de uma poderosa rede de salas de cinema que foi inquestionavelmente marcante nas vivências dos paulistanos. Segundo Inimá Simões (1990), acerca do desenvolvimento do panorama cinematográfico em São Paulo, a escassa oferta de diversões na cidade foi um dos principais motivos para o destaque do cinema entre os lazeres da cidade. O envolvimento profundo do paulistano com a “sétima arte” está intimamente interligado ao próprio desenvolvimento da cidade, que nunca dispôs de muitas opções de lazer aos habitantes.

“Durante mais de trinta anos, o cinema reinou absoluto em São Paulo enquanto forma de recreação coletiva, atraindo crianças, jovens, homens, mulheres e velhos indistintamente. Nem mesmo a inauguração do Estádio Municipal do Pacaembú, em 1940, causou algum defeito maior, pois ainda que se realizassem ali grandes espetáculos do ‘esporte das multidões’, tratava- se de um programa exclusivamente masculino. Enquanto isso, o cinema era para todos, formando uma massa crescente de aficionados que tinham à disposição um número cada vez maior de salas e até uma região nobre ou ‘chic’ no centro da cidade - a Cinelândia - cenário apropriado para o desfilar da elegância paulistana.” (SIMÕES, 1990, p.10)

Além da procura pelo entretenimento, a experiência do cinema em São Paulo era atrelada à experiência das ruas da cidade; sobretudo das ruas do Centro, onde estavam localizadas a maioria das salas de cinema: cerca de 80% das 119 salas em funcionamento em toda a cidade entre as décadas de 40 e 50. Os cinemas atraíam seus espectadores e as novas dinâmicas causadas pelos seus trajetos estimulavam o aparecimento de novos usos no território. Francisco Serrador, empresário afamado na indústria cinematográfica, foi o grande responsável pelo desenvolvimento das redes de salas de cinema brasileiras. Estabeleceu seus investimentos, a princípio, no Rio de Janeiro, a capital brasileira na época. Acreditava-se

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Cine Art Palacio, em noite de estreia em 1951. Fonte: Salas de Cinema de São Paulo


que a cidade deveria ser a primeira a receber as primeiras grandes salas que, consequentemente, formaram a Cinelândia carioca. Os registros levantados por Inimá Simões acerca das primeiras salas de cinema brasileiras revelam o potencial que os cinemas tinham de transformar a paisagem e as dinâmicas urbanas:

“Gastão Pereira da Silva, em Serrador - o criador da Cinelândia [carioca], conta: ‘-... Foram então aparecendo os primeiros bares da Cinelândia, as sorveterias, alguns pequenos cafés e, sobretudo, uma novidade que assinalou a época: o cachorro quente. Vinha gente de longe, até mesmo de bairros distantes, procurar o sanduíche famoso, que era um pedaço de linguiça quente num pãozinho macio... Acreditamos mesmo que o cachorro quente muito contribuiu para a formação da Cinelândia. E ele era mais uma inovação de Serrador’.” (SIMÕES, 1990, p.15, grifos do autor)

São Paulo passou por processo semelhante, em que a rede de salas de cinemas paulistanas atraíam e potencializavam usos em torno de si, dando origem a uma nova cultura de vivência urbana junto à cidade, em que o caminhar era preenchido por uma vasta diversidade de atividades coadjuvantes em comparação ao protagonismo do interesse dos paulistanos pelo cinema. Além das transformações no território, a grande quantidade de edifícios de cinemas ao longo do caminhar urbano criava uma rede de fantasia; um percurso de encantamento e possibilidades a serem exploradas. A procura pelo cinema representava uma procura pela vida através da imaginação. O desenvolvimento do homem se faz numa teia complexa de interações sociais, antropológicas, estéticas, psicológicas, históricas – ou culturais –, e oscila sempre entre o real, o irreal, a razão e o delírio. O cinema é construído pelo homem em construção, que se deixa levar por suas fantasias e as organizam numa linguagem cinematográfica, de palavra, som, tempo e espaço. Como obra material e imaterial, o cinema – arte e lugar – tem desdobramentos no desenvolvimento do que está ao seu redor.

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Mapa de salas de cinema ao longo da Avenida São João em São Paulo, na década de 1950. Haviam 24 salas que formavam a rede cinematográfica no Centro da cidade – a Cinelândia paulistana. A cartografia ao lado salienta que a presença dos edifícios gerava percursos e conexões no território; sendo eles imaginários (representados pelas linhas azuis) ou físicos (representados pelas linhas vermelhas).



Cine Art-Palacio, em 1957. Um dos "templos" da Cinelândia; sala de maior público de São Paulo entre as décadas de 40 e 60. Era famoso por exibir filmes do ator e cineasta brasileiro Amácio Mazzaropi. Fonte: Arquivo Arq

Entrada principal do Art-Palacio. O edifício, projeto de Rino Levi, teve grande importância na construção da arquitetura moderna em São Paulo. Expõe-se uma preocupação com a escala do pedestre; as grandes marquises eram símbolos da Cinelândia, onde o público frequentemente se reunia para aguardar as sessões. Fonte: Quando as Luzes das Marquises se Apagam


Cine Opera, "o Coração da Cinelândia", década de 1940. Fonte: São Paulo Antiga

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A construção do panorama cinematográfico em São Paulo precipitou, como já dito, uma construção de urbanidade, de interpretar o território como uma existência comum, em que os cotidianos se entrelaçam e acabam por solidificar uma dinâmica singular, totalmente urbana. Os espectadores, em contato uns com os outros, criam uma rede de interações sociais, de sociabilidade, e analogamente de proximidade com a cidade – o espaço comum em que essas experiências tomam lugar. O cinema, em seu papel de estabelecimento de um imaginário urbano coletivo relacionado ao progresso, do culto à modernidade, acabou por ressignificar a cidade, de maneira que a experiência do lazer estava intimamente relacionada à experiência dessa cidade. Os cinemas, símbolos autênticos do desenvolvimento, davam ao território urbano tanto a aparência quanto o valor de ser moderno. A estabilização de um espaço como o cinema, resultou, portanto, na estabilização de um imaginário urbano, por sua vez estimulado pela desestabilização de uma conformação da rotina e dos costumes. Através da inércia física do espaço dos cinemas – das grandes salas que constituíam a paisagem urbana paulistana – é que a cultura, o cotidiano, os hábitos e os padrões de comportamento na cidade de São Paulo se alteraram para sempre. A Cinelândia estabelecida no Centro foi tão importante para que se criasse uma noção de urbanidade quanto o próprio desenvolvimento da cidade. Entretanto, esta inconformação logo transformou-se em outra conformação. As grandes salas de cinema e as dinâmicas urbanas precipitadas por elas transformaram-se em outro tipo de rotina, uma vez que as construções se estabilizaram no território e passaram a fazer parte de uma paisagem não mais tão atual, e sim ultrapassada com relação às novas transformações socioculturais que se sucederam. O cinema se assentou como uma permanência física, por meio de uma nova materialidade arquitetônica que, com o tempo, foi superada. O mesmo acontece com a inércia psíquica que refletimos anteriormente. Trata-se de um processo de alternação constante entre estabilidade e instabilidade e, com relação ao espaço, de territorialização e desterritorialização. As rotinas e permanências urbanas se transformam ao passo que a vida se transforma. O espaço do cinema acompanha essas transformações, da mesma maneira que

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provoca algumas delas, como à época do surgimento das grandes salas. Justifica-se, então, o fato de a inércia ser uma condicional; um estado que não é eterno, apesar de dar a impressão de ser imutável. A inércia, sendo percebida somente graças a um referencial acelerado, representa as conformações a que nos habituamos e que são alteradas ao longo do tempo. A estabilização do cinema no território urbano, portanto, se trata de um processo constante, que oscila entre transformações e adaptações, a inovações e envelhecimentos, inércias e movimentos. Esta compreensão servirá para que possamos compreender adiante as transições sofridas pelo cinema no espaço urbano.

o interno A estabilização do cinema no território urbano, como vimos, fez criar uma nova noção de vivência da cidade. O cinema, como objeto urbano, foi, em São Paulo, um tipo de espaço valioso na construção de uma noção de urbanidade. Tanto o significado atrelado aos grandes edifícios de cinemas quanto a reprodução da aparência urbana através dos filmes exibidos nestes lugares foram essenciais para a construção de um entendimento sobre o que era a cidade, sobretudo o que era (ou deveria ser) a cidade moderna. Graças à popularidade de um entretenimento que tanto cresceu perante as afeições da sociedade, as salas de cinemas foram firmadas no território urbano com a intenção de que a exibição cinematográfica acontecesse em seus espaços próprios, como abrigos particulares da experiência do cinema. A empreitada da materialização de um espaço especificamente destinado ao consumo

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do cinema resultou da intenção de receber e acomodar o público – um grupo de pessoas interessado em participar do mesmo evento – em um espaço estável, seguro e acolhedor. Contudo, a construção dos edifícios de cinema revelou uma tendência da ocupação do espaço urbano de maneira a torná-lo particular e restrito, circunscrito dentro de um território maior constituído por outras unidades de territórios individuais. Como visto, a intenção de materializar o cinema numa espacialidade urbana derivou do interesse em dignificar o cinema como arte. As grandes salas de cinema sobretudo propunham-se a ser espaços de evasão e fantasia, através da opulência da arquitetura e das decorações dos edifícios. Estava implícita uma intenção segregacionista, de elevar a imagem da experiência do cinema a um nível nobre, de maneira que ficasse nítida uma distinção entre o cinema e os demais tipos de lazeres nas cidades. Essa elitização dos espaços de cinema remete a um processo de interiorização das atividades públicas já iniciado no século XIX, com o surgimento das primeiras galerias comerciais parisienses que, como os cinemas, também representaram tanto uma ideia de progresso na construção do território urbano moderno quanto um novo modo de ocupá-lo. Surgidas no âmbito do desenvolvimento do sistema capitalista e das mudanças socioeconômicas que sucederam a Primeira Revolução Industrial e a Revolução Francesa, as galerias parisienses estiveram embebidas num conjunto de valores e práticas resultantes das novas dinâmicas geradas pela mercantilização da vida coletiva e pela ascensão de um senso de modernidade. Segundo Wagnervalter Dutra Júnior (2016)5 – sobre a construção do espaço urbano relacionada ao capitalismo –, as ruas parisienses expressavam em si próprias as contradições do século: das relações entre capital e trabalho, das estruturas e dinâmicas, das matérias e das formas; o que fora ainda abordado na obra de Marx, como entenderemos adiante. A cultura parisiense estava, então, ainda segundo Dutra, constituída por um conjunto de fetiches em torno da produção da vida material; destacada sobretudo pelas notáveis exposições internacionais que ocorriam também neste contexto, pelo hábito do flanêur – o

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5. DUTRA JÚNIOR, W. (2016). Breve leitura do espaço-tempo nas passagens de Walter Benjamin: contribuições para compreensão geográfica do capitalismo. Boletim Goiano de Geografia, 36(2), 378.


transeunte errático –, pelo nascimento da indústria da moda, pelo jogo, pela prostituição... Atividades essencialmente modernas e derivadas das relações capitalistas. Entre o fim do século XIX e a instauração do Plano Haussmann em Paris, a urbanidade passou a ser o cerne das vivências sociais, as quais foram amplamente expressadas em um grande número de obras literárias. Walter Benjamin, em Passagens (Das Passegen-Werk) – considerada a obra que melhor expressou o pensamento benjaminiano – buscou analisar o espírito do século XIX através da extração de fragmentos textuais de centenas dessas obras, que ilustrariam tão bem o cenário ocidental da modernidade, tal como os diversos aspectos do surgimento das galerias comerciais, as passagens de Paris. Para Benjamin, as galerias representavam uma materialização da ascensão do período marcado pelo capital, dos sonhos utópicos das massas, da multidão que estaria por trás do consumo das mercadorias modernas. Encantados pelas vitrines, os consumidores transitavam por estas passagens como se fossem espaços de sonho, de embriaguez, de alucinação, de um mundo destacado do trivial. Um dos fragmentos expostos por Benjamin, datado de 1852, descreve tais espaços:

Galeria Vivienne, Paris, França, 1919. Corredor e cobertura envidraçada. Construída em 1823, foi uma das galerias mais conhecidas da cidade. Fonte: The Image Works

“Essas passagens, uma recente invenção do luxo industrial, são galerias cobertas de vidro e com paredes revestidas de mármore, que atravessam quarteirões inteiros, e cujos proprietários se uniram para esse tipo de especulação. Em ambos os lados dessas galerias, que recebem sua luz do alto, alinham-se as lojas mais elegantes, de modo que uma tal passagem é uma cidade, um mundo em miniatura.” (BENJAMIN, 2006, p. 77).

Graças ao desenvolvimento tecnológico, o emprego do aço e do vidro nas construções modernas era, também, símbolo de progresso para os modernos. Como abrigo dos comércios e serviços varejistas, os protagonistas do interesse das massas, materializado através desses novos

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sistemas construtivos, essas travessias comerciais se tornavam pura expressão de modernidade no espaço urbano. Benjamin ressalta que o ferro e o vidro foram utilizados no século XIX como maneira de renovar a arquitetura e emancipá-la das artes, de modo a fazê-la anunciar a modernidade na própria paisagem urbana. Os edifícios tornam-se símbolos do distanciamento e da superação do passado imperfeito e fortuito. Acerca da implantação da imagem de modernidade provocada pelos novos edifícios, Benjamin escreve:

“À forma do novo meio de produção, que no início ainda é dominada por aquela do antigo (Marx), correspondem na consciência coletiva imagens nas quais se interpenetram o novo e o antigo. Estas imagens são imagens do desejo e nelas o coletivo procura tanto superar quanto transfigurar as imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção. Ao lado disso, nestas imagens de desejo vem à tona a vontade expressa de distanciar-se daquilo que se tornou antiquado – isso significa, do passado mais recente. Estas tendências remetem a fantasia imagética, impulsionada pelo novo, de volta ao passado mais remoto.” (BENJAMIN, 2006, p.41)

Desta forma, a arquitetura junto à condição de vitrine das passagens seriam uma convergência entre funcionalidade e consumismo, as qualidades responsáveis pelo fetiche dos consumidores pelas galerias. A expressão de modernidade através das passagens parisienses assemelha-se à intenção da estabilização das grandes salas de cinema nas grandes metrópoles posteriormente. Os cinemas, enquanto abrigo da contemplação cinematográfica – como lazer autenticamente moderno – seriam equivalentes às galerias parisienses no que se refere à pretensão da construção de uma imagem urbana também moderna. As passagens parisienses, enquanto objetos de fascínio dos pedestres, representavam uma certa descontinuação da cidade; uma pausa para o sonho e para a imaginação das

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Paul Gavarni, Le Flanêur, 1842. Fonte: Wikimedia


massas, que se deixam levar pelo aspecto requintado dos espaços e se permitem transportar para um mundo destacado da rotina da cidade; esse “mundo em miniatura”, como descreve Benjamin. Havia, graças às galerias, uma certa atmosfera de utopia, uma idealização da vida através da aparência e da distinção dos territórios triviais, da mesma maneira pretendida pela estruturação dos cinemas nas metrópoles, depois de mais de um século. Ademais, associa-se às galerias parisienses, sobretudo na obra de Benjamin, a alegoria dos transeuntes que compunham a paisagem da cidade moderna tanto quanto o espaço urbano e os edifícios. São estes o flanêur, o trapeiro, a prostituta, o detetive, dentre outros personagens urbanos; como figuras que representam a presença na cidade – o espaço pleno da atividade desses sujeitos. Esse mundo repleto de alegorias “permite a Benjamin tornar a experiência de um mundo em fragmentos visivelmente palpável” (BUCK-MORSS, 2002, p. 41).

“O olhar que o engenho alegórico lança sobre a cidade expressa bem mais o sentimento de uma profunda alienação. É o olhar do flanêur, cujo gênero de vida dissimula, por trás de uma miragem benfazeja, a miséria dos futuros habitantes de nossas metrópoles. O flanêur procura refúgio na multidão. A multidão é o véu através do qual a cidade familiar se transforma, para o flanêur em fantasmagoria. Essa fantasmagoria, em que a cidade aparece ora como paisagem, ora como aposento, parece ter inspirado a decoração das lojas de departamentos que põem, assim, a própria flanêrie a serviço de seus negócios. De qualquer forma, as lojas de departamentos são a última paragem da flanêrie.” (BENJAMIN, 2006, p.62)

Para Benjamin, o flanêur, como um caminhante, um boêmio em devir, representa todos esses personagens da cidade em si próprio, pois a sua experiência é a experiência das ruas em sua totalidade, e a indefinição de seu papel perante a sociedade é que o torna uma figura alegórica. É na liberdade do caminhar que o flanêur descobre a cidade e a apreende em sua

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plenitude. Graças a ele, na obra de Benjamin, a vivência urbana se torna um instrumento para a compreensão da cidade em si. Como habitat da flanêrie, a rua é o ambiente em que essa prática se sucede, já que é o espaço integral de todas as atividades urbanas que atraem o caminhante.

“Uma embriaguez apodera-se daquele que, por um longo tempo, caminha a esmo pelas ruas. A cada passo, o andar adquire um poder crescente; as seduções das lojas, dos bistrôs e das mulheres vão diminuindo, cada vez mais irresistível torna-se o magnetismo da próxima esquina, de uma longínqua massa de folhagem, de um nome de rua.” (BENJAMIN, 2006, p.462)

Apresenta-se, então, a noção da “rua como intérieur” (BENJAMIN, 2006, p.462); da rua como espaço que guarda a vida coletiva, as massas, as pessoas e as suas experiências. O homem moderno, resguardado na classe da burguesia, faz da cidade o seu intérieur, oposto ao seu mundo privado, do local do trabalho, do escritório, que passa a ser apenas um complemento da vida plena junto à cidade.

“Para o homem privado, o espaço em que se vive se opõe pela primeira vez ao local de trabalho. O primeiro constitui-se com o intérieur. O escritório é seu complemento. O homem privado, que no escritório presta contas à realidade, exige que o intérieur o sustente em suas ilusões.” (BENJAMIN, 2006, p.45)

O caminhar na cidade e, sobretudo, a experiência desse caminhar como algo singular, especial – como uma atividade em que o único propósito é perambular e viver a cidade – são o que tornam as ruas um ambiente “interno”, no sentido de que o ambiente urbano é o território que abriga a urbanidade. A cidade não é compreendida apenas como o território vago em que se guardam outros territórios individuais, contidos em si próprios, em que as

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Passage Choiseul, Paris. Transeuntes da nova paisagem urbana. Fonte: Revista Bitรกcora Arquitectura

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verdadeiras atividades tomam lugar. Pelo hábito do flanêur, apreende-se que a cidade é, por si própria, um território legítimo, cuja totalidade é o palco da urbanidade, enquanto vivência total dos espaços urbanos e das dinâmicas resultantes e precipitadas por eles.

“Pois assim como a flanêrie pode transformar Paris em um interiéur, em uma moradia cujos aposentos são os bairros e onde estes não se separam claramente por limiares, como os aposentos propriamente ditos, assim também a cidade pode, por sua vez, abrir-se diante do transeunte como uma paisagem sem limiares” (BENJAMIN, 2006, p.466)

A vivência da rede de salas de cinema na cidade de São Paulo seria também como um ambiente de flanêrie; dos devaneios e do vagar na cidade que se destacaram pela criação da atmosfera de sonho e de excentricidade dos cinemas ao longo do território paulistano. Refletíamos anteriormente sobre uma experiência da cidade atrelada à experiência do cinema, enquanto o lugar da experiência artística, cinematográfica, que também têm seus desdobramentos na noção de urbanidade. Teríamos como equivalente da flanêrie da época das passagens parisienses o grande público do cinema na época de ouro das grandes salas paulistanas. Havia, na ida ao cinema, uma intenção de ver e ser visto; de participar de um evento como a exibição cinematográfica e, nela, observar – no ato de assistir ao filme – o excêntrico, o novo, o internacional, e envolver-se num ambiente coletivo (comum) a todos que compartilham do interesse em envolverem-se no delírio da contemplação cinematográfica. Frequentar o cinema era um ato cultural, tanto no sentido de ir de encontro à cultura apresentada nas grandes telas, quanto de participar de um costume moderno, inovador, atraente por guardar em si um vigor relacionado às revoluções da tecnologia; que anunciavam um mundo completamente novo. A construção de uma relação entre a vivência da cidade e a imagem do cinema para o público urbano seria ainda mais acentuada devido à distinção do cinema perante as artes; imagem que foi propositadamente desejada, sobretudo em nome de um interesse financeiro – o que revelará, para nós, também um fetiche em torno do cinema como produto.

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Como anunciado anteriormente, Marx trataria da fetichização da mercadoria e da relação do desenvolvimento do setor comercial com base em preceitos capitalistas e mercadológicos e a construção do território do comércio no espaço urbano. A seguir refletiremos sobre esta questão, abordada em O Capital e exposta por Benjamin em Passagens, a fim de traçar paralelos entre o tal fetiche capitalista que embebia a sociedade no contexto do surgimento das grandes salas de cinema, como um parêntese para elucidar a comoção em torno do cinema como produto e seu efeito na construção da noção de modernidade.

fetiche e alienação No marxismo, a compreensão de que fetichização das mercadorias seria uma efetivação da produção dessas mercadorias é o que, segundo Benjamin, para Marx, justificaria a capitalização do espaço urbano e público da maneira que se deu no surgimento das passagens parisienses. Ou seja, a admissão do valor do produto estaria relacionada – e só seria possível – graças a um enaltecimento dele; um engrandecimento que o tornaria objeto de apreciação, mais pelo seu caráter glorificado do que pela sua funcionalidade ou sua serventia para o consumidor.

“Auto-alienação: ‘O operário produz o capital, o capital o produz; portanto, ele produz a si mesmo e suas qualidades humanas existem apenas na medida em que elas existem para o capital alheio a ele. O operário existe como operário apenas enquanto ele existe para si como capital, e ele existe como capital apenas enquanto algum capital existe para ele. A existência do capital é a sua existência, e esta determina o conteúdo de sua vida de uma maneira que lhe é indiferente. A produção produz o homem como um ser desumanizado” (MARX apud BENJAMIN, 2006, p.694).

A alienação do sistema capitalista, portanto, seria constituída por uma indefinição do papel do homem na sociedade perante o objeto que ele produz, na medida que o ser e a coisa

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se confundem, num processo mediado pelo capital. A fetichização da mercadoria esconde as verdadeiras relações entre a produção e o trabalho, o objeto e o consumo; de maneira que a mercadoria parece ter vida própria, ocultando sua verdadeira origem ao expressar, em si própria, uma imagem que fascina e esconde as desigualdades sociais envolvidas em sua produção, devido ao brilho misterioso que emana. Quando entra no mercado, separada dos trabalhadores que a produziram, a mercadoria adquire uma “objetividade espectral”, uma vida autônoma, cheia de “sutileza metafísica e manhas teológicas”, escreve Marx em O Capital (1983, p.70).

“É somente sob a forma mercadoria que a coisa exerce sua influência alienante sobre os homens que ela torna estranhos uns aos outros. Essa influência ela exerce por seu preço. A identificação ao valor de troca da mercadoria, com seu substrato igualizante, é o elemento decisivo. (A igualdade qualitativa absoluta do tempo, no qual se desenvolve o trabalho que produz o valor de troca, é o fundo opaco contra o qual se ressaltam as cores escandalosas da sensação)” (BENJAMIN, 1993 [J 92, 4], p.488).

A inversão de valores entre o produto e o indivíduo, transformando o primeiro em um objeto de apreciação e desejo do segundo, é o que fariam tão populares as galerias e mais ainda os outros estabelecimentos comerciais que surgiriam nas cidades depois delas. Tendo isso em vista, a compreensão de uma certa fetichização pelo cinema durante a sua consolidação como arte se justificaria ao considerarmos que, além do enaltecimento do espaço do cinema por meio de uma distinção superficial – da luxuosa ornamentação dos edifícios –, o significado do cinema na sociedade moldou-se em torno do fascínio das massas. O encanto pelas grandes estrelas dos filmes e o deslumbre pelas produções eram resultado de uma sedução dos espectadores devido à glamourização construída em torno da indústria cinematográfica.

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Marilyn Monroe e Rock Hudson, estrelas de Hollywood produtos do star-system. Monroe foi moldada para ser uma "loira fatal", apesar de ser originalmente ruiva. Hudson, cujo nome verdadeiro era Roy Fitzgerald, deveria esconder sua verdadeira sexualidade, sendo o "cavalheiro perfeito" dos sonhos das jovens espectadoras. Foto de 1962. Fonte: Film and Television Memorabilia


O star-system foi, em grande parte, responsável por essa construção da idealização do cinema enquanto arte distinta, magnética e sublime. Segundo Zenaide Bassi Ribeiro Soares6, em discussão acerca da relação entre o star-system e a construção da imagem do cinema na cidade de São Paulo, a prática se tratava de um sistema cuja criação deu-se em 1910 e que entrou em declínio ao final dos anos 50. Segundo a autora, o star-system “constituiu-se num sistema que adotava a estrela – atriz ou ator – como centro do filme, exigindo-se das moças, especialmente, singular beleza e perfeição física, aliadas a muito charme, simpatia e capacidade de sedução” (SOARES, 1996, p.7). Os artistas transformavam-se, eles próprios, em objetos de consumo por meio do desejo das massas; e a idealização em torno de suas vidas e trabalhos junto à indústria cinematográfica tiveram, segundo Soares, interferências no cotidiano e no modo de conceber o mundo dos paulistanos. Desta forma, pode-se considerar que havia, literalmente, uma fetichização construída em torno do cinema e, sobretudo, por quem o protagonizava. O encantamento dos espectadores pelas grandes salas de cinema, portanto, não foi por acaso. Houve, tanto na estabilização do cinema – arte e lugar – quanto no surgimento das primeiras galerias comerciais, uma estratégia ditada pelos ideais capitalistas de atração de lucro por meio da sedução dos consumidores. Nas galerias, o consumo era estimulado pela possibilidade do caminhar por alamedas extravagantes; no cinema arte, houve a criação e a divulgação da ideia da indústria cinematográfica como um estilo de vida glamouroso; e no cinema lugar, a mesma intenção sedutora por meio do requinte dos edifícios.

6. SOARES, Z. B. R., A Cidade e o Cinema: Memória do star system norte-americano e influência do cinema no comportamento da população de São Paulo.

Ao longo do tempo, o desenvolvimento dos espaços de consumo seguiram a mesma intenção de interiorização da vida pública; da fetichização da mercadoria e da elitização do consumo por meio do distanciamento progressivo entre o público e o privado. Veremos adiante como os cinemas, tanto quanto os espaços comerciais – surgidos desde as galerias parisienses –, foram gradualmente se modificando junto ao desenvolvimento do capitalismo e tendo seus significados alterados no espaço urbano.

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heterotopias As galerias parisienses entraram em decadência quando, com a instauração do Plano Haussmann, as ruas tiveram seu significado mais uma vez alterado. Segundo Cynthia Aleixo7 (2005) a reestruturação de Paris por meio da ampliação do viário, por sua vez feita possível pela demolição de centenas de edifícios históricos, havia descaracterizado o ambiente nas quais as galerias comerciais surgiram. As passagens, que antes serviam como artérias de tráfego para a fuga das aglomerações formadas nas pequenas ruas parisienses perderam a sua função social, de atalhos prazerosos entre ruas estreitas. Perante o espaço urbano reformado, “a cidade seguia pelas largas perspectivas e longas avenidas, definindo uma nova dimensão para o espaço público” (GEIST apud ALEIXO, 2005, p.32). A obsolescência das galerias perante o espaço urbano parisiense representou também uma necessidade de readequação do comércio varejista. A reprodução do tipo das passagens comerciais de Paris foi modificada em outras cidades europeias e norte-americanas, onde essas galerias teriam uma relação diferente entre a cidade e os pedestres. Segundo Aleixo, nestas cidades as galerias estariam mais próximas da ideia dos grands magasins, “verdadeiros pedaços de cidade reproduzidos para o consumo e guiados pelas novas técnicas de venda e pela funcionalidade do espaço” (ALEIXO, 2005, p.33).

“A partir de 1880 e até a sua descaracterização as arcadas sofreram várias modificações: na escala, na forma de se organizarem, em seu programa e conceito. Todavia, elas eram apenas uma das várias formas de realização das transações comerciais capitalistas, aquela que por princípio priorizava o espaço como o meio para se comercializar.” (ALEIXO, 2005, p.34)

Na Itália, por exemplo, as galerias comerciais chegaram a ter uma escala monumental que as assemelhariam mais aos futuros shoppings centers surgidos no século XX do que à ideia da passagem casual e da urbanidade das novas metrópoles do século XIX.

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7. ALEIXO, Cynthia Augusta Poleto. Edifícios e galerias comerciais: arquitetura e comércio na cidade de São Paulo, anos 50 e 60. 2005. Dissertação (Mestrado em Tecnologia do Ambiente Construído) - Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2005.


Os shoppings, por sua vez, surgiram no contexto do crescimento da industrialização e da produção em massa. A competição entre as lojas e a uniformização e derrubada dos preços tornavam o consumidor cada vez mais anônimo. A demanda por métodos de atração da clientela fez com que o comércio se tornasse um tipo de instituição de grande valor de investimento de capital. Segundo Aleixo (2005), o surgimento dos shoppings também está associado ao esvaziamento das cidades europeias no início do século XX que decorreu da redução da qualidade de vida e do congestionamento de pessoas causado pelo estabelecimento das indústrias nas grandes metrópoles (idem, p.35). A fuga das cidades industriais e a construção de subúrbios residenciais fez com que o comércio precisasse, ainda mais, de um novo tipo de estabelecimento espacial; devido inclusive à preferência dada ao automóvel como modo de locomoção em direção a estes espaços comerciais, graças ao distanciamento entre as zonas residenciais e os centros urbanos. O shopping center, enquanto tipologia, surge nos EUA na primeira metade do século XX, sob grandes e altos edifícios designados ao abrigo do comércio varejista e da internalização do setor comercial, voltando-se a si próprio. Ainda segundo Aleixo, diferente das galerias, abertas para a rua e para o livre trânsito dos pedestres, os shoppings fechavam-se em si próprios, canalizando o fluxo dos consumidores em um único espaço, de maneira que se pretendia um aumento da área útil das lojas e a melhoria do sistema de segurança. Além de que a “ausência de vitrines para a rua reduziria a concorrência externa” (ALEIXO, 2005, p.36). Galeria Vittorio Emanuele, 1856-77, Milão, Itália. Em escala monumental, a galeria se tornou um importante símbolo para o país, frente a um processo de afirmação das cidades italianas. Fonte: Wikimedia

O desenvolvimento da tipologia – e da estratégia comercial – dos shoppings centers os levou a tornarem-se paulatinamente mais fechados e interiorizados. Estes edifícios passaram a reproduzir (e substituir) o ambiente externo em um espaço interno, por meio do condicionamento ambiental e da agregação de programas que retomariam a ideia de sociabilidade presente nas praças, fóruns e mercados (ALEIXO, 2005, p.37). Fontes, pistas de patinação, teatros e cinemas são exemplos de elementos incorporados a esses shopping centers de maneira a torná-los completamente independentes de qualquer contato com as ruas da cidade. Vale ressaltar que a valorização comercial – e cultural – dada a esses espaços gerou transformações consideráveis no ambiente urbano e na apreensão da urbanidade:

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“Como centros de atração de pessoas, esses edifícios passaram a canalizar vários outros investimentos, que, por sua vez, construíram novos estacionamentos e ruas de acesso, tornando o espaço ao redor novamente hostil e desprovido de funcionalidade. Na maior parte das vezes, para se locomover nesses espaços é preciso atravessar estacionamentos, vias de acesso e vias públicas sem nenhum atrativo ao pedestre ou circular por longas distâncias até chegar de carro ao local desejado.” (ALEIXO, 2005, p.38)

No que se refere à “independência” dos shopping centers de qualquer contextualização urbana externa, faz-se possível a interpretação desses lugares como “ilhas” emancipadas do território urbano, em que a autonomia do lugar em relação ao todo (a cidade) o torna, simultaneamente, paisagem e protagonista de sua própria atividade. Ao contrário das galerias parisienses, cujo contato com a cidade – a relação com a rua – estaria intrínseco ao uso e à vivência desses espaços, os shoppings, isolados em si próprios, não dependem da experiência da cidade para serem utilizados. Os shoppings tornam-se suas próprias cidades, subordinadores e subordinados de suas próprias práticas, por sua vez determinadas pelo que dita o capital. A intenção de locais como os shoppings é de serem aglutinadores de atividades, serviços e experiências, de maneira que estejam tão próximas, adjacentes, que dariam ao usuário a possibilidade de consumi-las prontamente. A convergência de todas as práticas em um único espaço remete ao imediatismo do consumismo, à velocidade do mundo capitalista. Acerca da justaposição de relações em espaços singulares, Foucault8 aborda em sua obra o que ele denomina como heterotopias, como espaços onde a utopia, enquanto a idealização irreal da sociedade através de aperfeiçoamentos do mundo real, se efetivaria. As heterotopias, diferentes das utopias, onde o lugar real deixa de existir, estariam concretizadas no espaço real propriamente dito, como lugares que estão fora de todos os outros lugares, mas são totalmente localizáveis e identificáveis culturalmente. Essas heterotopias seriam, segundo o filósofo, alocações, como um tipo de apreensão territorial que se pauta na relação de vizinhança entre pontos e elementos, como “séries, árvores, grades, etc” (FOUCAULT, 1984, p.114). Para ele, “estamos em uma época onde o

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8. Em registro de uma conferência proferida pelo filósofo no Cercle d’Études Architecturales em 14 de março de 1967, e publicada originalmente em Architecture, Mouvement, Continuité, n.5, outubro 1984, p.46-9. Foucault somente autorizou a publicação do texto, escrito na Tunísia em 1967, na primavera de 1984.


espaço se apresenta sob a forma de relações de alocação”, cujos acontecimentos são dispersos, simultâneos, justapostos:

“Estamos na época da simultaneidade, estamos na época da justaposição, na época do próximo e do distante, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo é experimentado, creio, menos como uma grande vida que se desenvolveria através do tempo, do que como uma rede que liga pontos e entrecruza seu emaranhado.” (FOUCAULT, 1984, p.113)

O filósofo justifica que o espaço em que vivemos é heterogêneo, carregado de qualidades opostas que são identificadas simultaneamente perante a sociedade, e que ainda seguem uma hierarquia “sacralizada”, na qual não se pode tocar, nunca tendo sido atacadas:

“oposições que admitimos como inteiramente dadas – por exemplo, entre o espaço privado e o espaço público, entre o espaço da família e o espaço social, entre o espaço cultural e o espaço útil, entre o espaço de lazeres e o espaço de trabalho; todas elas são animadas ainda por uma surda sacralização.” (FOUCAULT, 1984, p.114)

The Southdale Center, Minnesota, EUA, 1956. Projeto de Victor Gruen, arquiteto pioneiro dos shoppings centers estadounidenses. As lojas voltavam suas vitrines para as ruas internas cobertas do edifício. Fonte: Minnesota Historical Society

As heterotopias, segundo Foucault, como parte desse espaço heterogêneo e constituído por oposições, teriam a propriedade de estar em relação com todas as demais alocações que as cercam, “mas, de um modo tal, que elas suspendem, neutralizam, ou invertem o conjunto das relações que são por elas designadas, refletidas ou reflexionadas.”. As heterotopias, caracterizadas pelo filósofo de pelo menos 6 maneiras diferentes (que não são relevantes à nossa reflexão neste momento), teriam como característica principal o fato de representarem uma certa contradição, uma materialização da possibilidade de condensação das oposições que constituem a sociedade, tendo como princípio a justaposição de vários lugares ou alocações incompatíveis. Seriam como os bordéis, os cruzeiros, os cemitérios; ambientes de

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um tempo que pode se acumular, ou então se dissolver. O cinema, por sua vez, seria considerado por Foucault como heterotopia tanto quanto os teatros, devido ao poder desses locais de justaporem em um único lugar real várias alocações que são em si mesmas discordantes. O teatro, através do palco, e o cinema, através da tela, fazem suceder uma série de lugares que são estranhos uns aos outros, e também diferentes do espaço em que estão sendo mostrados. Através da tela de duas dimensões “em que se faz projetar o espaço de três dimensões”, a sala de cinema se torna a possibilidade de apreensão de uma outra realidade. Outros exemplos apontados por Foucault acerca das heterotopias são os colégios militares, as viagens de núpcias, caracterizados por um desejo de fuga do ambiente familiar, como heterotopias de crise. E as heterotopias de desvio, como as casas de repouso, as clínicas psiquiátricas e as prisões, espaços onde “se alocam os indivíduos cujo comportamento é desviante em relação à média, ou à norma exigida”. As heterotopias, de maneira geral, são locais onde os acontecimentos se abrem e fecham simultaneamente, com uma permissão de efetuarem-se em isolamento, em ambientes afastados da sociedade. Sob a luz dessa conceituação, faz-se possível a compreensão dos shopping centers como lugares de condensação de atividades, da efetivação de uma utopia comercial espacializada de maneira plena; de uma heterotopia onde a execução das estratégias comerciais são despudoradas e, na verdade, são a essência desses locais. Os shoppings negam – e abominam – a relação direta com a rua (ou com a cidade), de maneira que preferem a internalização de todas as suas atividades em um perímetro bem demarcado e evidente, seja ele o do edifício ou de todo o lote, considerando que, muitas vezes, os grandes estacionamentos fazem papel de soleira entre a rua e o prédio, anunciando uma completa distinção entre o ambiente externo e o interno. Os shoppings, como heterotopias do comércio, réplicas em miniatura da vida coletiva e da fetichização do consumo em torno dela, aspiram pela resignação dos usuários às seduções do mercado em um ambiente que propicie o máximo de vivências possível, hermética e estrategicamente calculadas, de modo que a atenção e a presença dos consumidores

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The Southdale Center, em Minnesota, EUA. Os estacionamentos favorecem o automóvel como meio de transporte urbano e isolam o edifício do restante da cidade. Fonte: Minnesota Historical Society


estejam sempre garantidas, independentes de qualquer referenciação externa ou temporal (cronológica). A incorporação dos cinemas aos shopping centers, como naturalmente pode-se concluir a essa altura, fez parte da intenção da composição dessa tipologia como um centro de consumo múltiplo – de experiências e de mercadorias. Contudo, antes de verificarmos a presença dos cinemas junto aos shoppings, exploraremos, graças à compreensão da espacialização do setor comercial até agora, os motivos que levaram à drástica transformação do espaço de exibição cinematográfica (dos cinemas) nas cidades, ou seja, a decadência das grandes salas de cinema nas metrópoles modernas.

degeneração A preferência pela vida interiorizada, pela condensação dos usos em espaços individuais, revelava uma intenção que se prolongou nos anos subsequentes da implantação dos primeiros shopping centers nas cidades e da tomada do território urbano por estes edifícios. No contexto da distinção entre a cidade como ambiente externo e os ambientes internos que a compõem, houve uma violenta supressão da relação entre as ruas e os cinemas. Anunciou-se a decadência das salas de cinema, sobretudo em São Paulo, onde a redução do público foi tão brutal quanto a consequente transformação do intenso vínculo entre o público paulistano e o cinema, que havia sido marcante a ponto de fazer parte do processo de significação da urbanidade paulistana. De maneira semelhante ao que ocorreu com as passagens parisienses desde as transformações que sucederam o plano Haussmann, os cinemas também passaram por um processo de descaracterização, até serem completamente ressignificados, desprezados ou demolidos em São Paulo.

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Pode-se considerar que a tendência interiorizadora das atividades no século XX esteve atrelada a um sentido de individualização, de distinção e segregação particular, de um desejo de se estar emancipado do caos da cidade moderna e das transformações resultantes do desenvolvimento industrial e urbano. Inclusive justifica-se, por isso, o êxodo urbano das cidades industriais europeias que fizeram surgir os subúrbios, por exemplo, como já mencionado anteriormente. Analogamente à implantação dos primeiros shopping centers em São Paulo – com a inauguração do Shopping Iguatemi em 1966 –, anunciou-se a decadência das as grandes salas de cinema de paulistanas. Os investimentos destinados à região compreendida entre a Paulista e o rio Pinheiros desde 1960 teria sido resposta a um inchaço do centro da cidade, que, congestionado e impossibilitado de ser expandido por novos negócios, fez com que os próximos investimentos imobiliários na cidade acontecessem nos bairros periféricos. Penha, Santana, Santo Amaro e Pinheiros seriam exemplos de novos “centros regionais”, que serviriam de suporte às necessidades dos paulistanos e evitariam o completo colapso do centro (SIMÕES, 1990, p.106). Tal sucessão de eventos fez com que a rede de salas de cinema, como um núcleo de entretenimento, ficasse comprometida e, inclusive, fosse dissolvida entre estas novas centralidades. Já existia em São Paulo uma clara distinção entre cinemas do centro e cinemas de bairro, como locais – geralmente galpões – que nunca conheceram a luxuosidade executada nos grandes edifícios do centro. Estes cinemas de bairro eram pacatos e abarcadores de um público popular, diferente da elite familiar que frequentava a Cinelândia central. Entretanto, os novos cinemas dissolvidos entre as novas centralidades preservariam certa sofisticação da atividade contemplativa do cinema. Como veremos um pouco adiante, essa intenção estaria atrelada mais à valorização dos novos empreendimentos comerciais – como os shoppings e galerias –, do que do cinema em si, como fora pretendido com a construção das luxuosas salas no início do século. Além do inchaço e do consequente esvaziamento do centro, com a chegada da televisão,

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Propaganda de Televisor Sanyo (com controle remoto), 1970. Fonte: Oswaldo Hernandez


o enorme público fiel à Cinelândia paulistana reduziu consideravelmente e cada vez mais. Desde 1957, o decréscimo de espectadores presentes nas salas de cinema deixaria evidente a extensão da crise cinematográfica. Entretanto, segundo Simões (1990), os motivos pelos quais a decadência da rede cinematográfica que se sucedeu em São Paulo não se reduziam somente ao advento da televisão:

“Há uma conjugação de fatores negativos, incluindo desde a própria crise de Hollywood, que testemunha o desmantelamento do seu sistema de estúdios, passando pelas novas prioridades que se estabelecem na produção (quase extinguindo os filmes de censura livre), pelo circuito exibidor paulistano despreparado para uma reversão e, naturalmente, a televisão, que supera uma fase de ‘hibernação’ para se lançar à conquista do mercado do lazer e recreação.” (SIMÕES, 1990, p.106)

Quando a cidade encerra a fase de “utopia” com a consolidação enquanto metrópole, o sonho coletivo vai se desfazendo e o que ganha destaque são as dificuldades: trânsito congestionado, violência nas ruas, problemas de estacionamento, carestia de vida, transporte coletivo deficiente, perda das relações de vizinhança etc. – motivos que contribuem para “prender o paulistano em casa”. (SIMÕES, 1990, p.143) É claro que, no mundo todo, a invenção da televisão havia forjado, além de tudo, a oportunidade de se consumir entretenimento de maneira independente, em casa, junto ao conforto das acomodações residenciais e graças à possibilidade de escolha, do poder do espectador de decidir o que seria assistido. Tal conveniência seria, indubitavelmente, uma das explicações da preferência do público paulistano pela TV, e não mais pelo cinema:

“Estima-se que em 1965 existiam no município cerca de 600 mil receptores e quatro telespectadores por aparelho, o que leva à conclusão de que 2,4 milhões de pessoas - entre as quais estariam centenas de milhares de frequentadores em potencial dos cinemas

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permanecem em casa, deixando de comparecer às casas exibidoras. O artigo de O Estado de S. Paulo arrola algumas razões para o abandono do cinema, entre elas as dificuldades de transporte, de estacionamento, além das vantagens de se permanecer em casa; conforto, ausência de filas, possibilidade de escolher os programas distribuídos por cinco canais em funcionamento, a cervejinha na geladeira etc. Estas considerações fazem sentido. Afinal, a televisão traz para o telespectador o futebol praticado nos estádios, a novela que substitui o antigo seriado cinematográfico, o desenho animado ou a programação infantil das gloriosas vesperais, atendendo a todas as faixas de público de uma vez só.” (SIMÕES, 1990, p.110)

Até então, a indústria cinematográfica estava intimamente relacionada aos espaços exibidores, dando a eles tanta importância quanto aos filmes como produto da grande indústria do entretenimento. A crise do cinema seria até mais grave ao se considerar que, junto à decadência do espaço do cinema, a obra cinematográfica também sofreria uma desvalorização. A individualização da contemplação cinematográfica causada pela chegada da TV ilustrava bem a tendência à internalização das atividades públicas anunciada pelo comércio já há décadas. Outro fator levantado por Simões acerca do esvaziamento das salas seria a valorização dada ao automóvel; outro símbolo do individualismo da denominada classe média da segunda metade do século XX. Desde 1970 as salas de cinema paulistanas estavam evidentemente decadentes, em constante batalha para manter suas portas abertas ao público. Já que os paulistanos, que antes só tinham o cinema como lazer, agora tinham inúmeros motivos para não frequentá-los – como “a TV, o trânsito, e até a loteria esportiva, que proporciona, a partir de 1970, emoções mais reais, acenando para a faixa da população de menor renda com a ‘possibilidade’ de enriquecimento instantâneo” (SIMÕES, 1990, p.113). Devido à redução da frequência dos espectadores, a maioria das grandes salas foram fechadas, sendo economicamente inviáveis de serem mantidas; e as que mantiveram-se abertas, passaram por uma ressignificação brusca, sobretudo as mais antigas que constituíam

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Cine Art-Palacio na década de 1980. Uma das mais populares salas nos anos de ouro do cinema passa a exibir entretenimento adulto no fim do século XX. Fonte: Secretaria Municipal de Cultura


a Cinelândia paulistana, tornando-se abrigos de entretenimento adulto, ou, ironicamente, de igrejas evangélicas. Alguns deles também se dedicavam majoritariamente à exibição de lutas marciais. As lutas e as chamadas pornochanchadas eram tipos de lazeres marginalizados e opostos a qualquer resquício da sofisticação atrelada a esses locais durante a época de ouro do cinema em São Paulo.

Cine Marabá, sala de maior bilheteria do centro, se torna tradicional lançadora das grandes produções eróticas nacionais ou de superproduções americanas de aventura e terror. Fonte: Inimá Simões

“A esta altura, ao final da década passada [1980], o circuito cinematográfico paulistano está nitidamente demarcado, polarizado enfim. No centro ficam as salas destinadas à programação popular, pela definição dos próprios exibidores, onde a pornochanchada e as lutas marciais mantêm um público cativo que garante uma boa taxa de ocupação nos cinemas. Enquanto isso, na região dos Jardins, onde se considera existir um público mais sofisticado e onde funciona a maior parte dos cinemas de luxo prevalece a produção estrangeira. De qualquer forma, o perfil do público cinematográfico mostra a presença absoluta do espectador adulto, ao contrário do que se via nas décadas anteriores, quando a distribuição do público era mais ou menos homogênea pelas diversas faixas etárias e sociais. No centro tradicional, pode-se dizer que o público adulto é também destacadamente masculino em algumas salas como o AUREA, CAN-CAN, LOS ANGELES, ALAMO etc., atraído pela possibilidade de ver - além dos filmes - a rápidos espetáculos de strip ou shows pornográficos que se tornam a principal atração. Neste caso o filme é deslocado para um plano secundário, algo que bate na tela no intervalo entre os programas principais.” (SIMÕES, 1990, p.122)

A resposta dada pelos exibidores à crescente redução de interesse do público pelos cinemas foi a iniciativa de incorporá-los aos shoppings; os edifícios que, àquela altura, já tinham conquistado o interesse da população, cada vez mais atraída por programas confortáveis e seguros perante o caos da metrópole. A saída de casa deveria estar justificada por uma necessidade substancial ou por uma conveniência, coisas que os shoppings certamente ofereceriam graças à vasta gama de possibilidades de lazer e de consumo acomodadas por suas instalações. Os cinemas dos shoppings – agora sob o tipo de multiplex, com mais de uma sala de cinema integradas ao espaço interno do edifício –, além de estarem avizinhados de todas essas oportunidades de experiências e de consumo, também contavam com iniciativas

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de modernização que os distinguiam da imagem atrelada aos cinemas de rua obsoletos:

“Entre elas estão uma programação mais atenta às tendências de gosto das diferentes faixas da população, gastos com equipamentos para melhoria da qualidade de projeção, abertura de salas em pontos movimentados e com maior segurança (shoppings principalmente), incorporação de avanços tecnológicos, como o som dolby que aproxima o cinema da sensibilidade do espectador, familiarizado com a sofisticação da aparelhagem de última geração.” (SIMÕES, 1990, p.144)

Como tratado anteriormente, o aspecto de performance do cinema sempre foi uma característica valiosa para a legitimação do cinema como produto, como uma efetivação da obra cinematográfica. O que antes havia estado intimamente atrelado à arquitetura, como materialização da distinção do cinema como arte, agora é vinculado à tecnologia, à excelência do espetáculo do estímulo dos sentidos; da visão, da audição, e tantas outras sensações, se considerarmos as invenções mais recentes de cinemas que exploram o olfato, o movimento físico dos assentos. Contudo, apesar do ganho na experiência do cinema como atividade de lazer, a perda da vivência das ruas através da vivência das salas de cinema é inequívoca e melancólica. A ausência da possibilidade de descoberta do caminhar urbano era a virtude da existência de tantas salas de cinema no centro paulistano até 1960, graças à experiência das calçadas e das marquises dos grandes edifícios, pois, naquele contexto

“ir ao cinema é o que todos querem fazer, e as pessoas se deslocam ávidas até a Cinelândia para se envolver na magia do mundo moderno em meio aos prédios gigantescos, se misturando às multidões que circulam pelas calçadas antes (ou depois) do mergulho no escurinho do cinema.” (SIMÕES, 1990, p.143)

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Ao lado, sala de cinema VIP no Shopping JK. As exibidoras investem na distinção da experiência da ida ao cinema. As salas VIP são exemplo de especificidades das novas salas de cinema que competem com o cinema virtual. Fonte: Domínio público

Abaixo, o luxuoso Cine Marrocos, 1950. Em comparação à imagem ao lado, evidencia-se certa conservação na intenção de distinção da experiência do cinema por meio da luxosidade. Fonte: Secretaria Municipal de São Paulo


A verificação dos motivos que levaram ao distanciamento do cinema em relação à cidade nos levam a crer que a interdependência do cinema e a rua na verdade foi o que levou os espectadores a preferirem não mais frequentá-lo. Contudo, como defendido desde o início desta pesquisa, a experiência do cinema como possibilidade de apreensão do mundo – como uma janela do desconhecido – e das nossas afecções pessoais, seria intensificada graças à experiência da urbanidade. O panorama da antiga rede cinematográfica em São Paulo e o poder que a Cinelândia tinha sob o imaginário paulistano exemplifica o potencial que o cinema teria como catalisador de urbanidade. A situação dos cinemas de shoppings, como mera unidade integrante de um programa maior, que por sua vez é desconexo das relações urbanas como um todo – como entidades aberrantes e isoladas de qualquer contexto de unidade urbana – denuncia, por sua vez, uma dificuldade do cenário da exibição cinematográfica; que por si só já enfrenta os desafios da competição com os novos modos de consumo de filmes por meio digital. A perda do contato com a rua enfraqueceu o cinema enquanto espacialidade urbana, o reduzindo a um programa dentro de edifícios maiores que compreendem tantas possibilidades de atividades que retiram grande parte do interesse do público pelo cinema como experiência singular de lazer. A aproximação da cidade poderia ser um motivo pela preferência da experiência presencial da contemplação cinematográfica pelos espectadores, como um dia foi, ao invés de ser um dos motivos pelos quais o público atual escolhe se manter afastado dela? Esta é a questão que buscaremos responder – ou ponderar – a partir de agora. A possibilidade de exploração da vivência urbana – do contato do indivíduo com a rua – como virtude das cidades, será o assunto tratado nas páginas seguintes, através da leitura de autores como Jane Jacobs, Richard Sennet, Paola Berenstein, Milton Santos e dos situacionistas; que defendem a construção da cidade a partir da valorização da vida pública, da coletividade, da atenção aos indivíduos que usufruem do espaço urbano, em detrimento das políticas de planejamento urbano modernas, que segregam as vivências em setores e edifícios, desconsiderando a vitalidade das ruas.

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o urbano Como exposto anteriormente ao falarmos da espacialização do setor comercial nas metrópoles modernas, a intenção internalizadora das atividades públicas revelou, na verdade, um desejo de individualização, de segregação e afastamento proposital da coletividade. O capitalismo, como sórdido carrasco da espacialização do comércio na cidade, seria o vilão por trás das estratégias de sedução do público, levando ao empobrecimento da vitalidade dos espaços comerciais que antes favoreciam a vivência das ruas e acabaram por voltarem-se a si próprios, em nome de uma intensificação máxima do consumo. O cinema, no sentido de ser tanto um produto quanto uma atividade de lazer, tanto se beneficiou dessa tendência à internalização, com a estabilização das grandes salas e da construção das redes de cinema nas metrópoles – o que havia sido promissor enquanto duraram os anos de ouro do cinema –, quanto foi prejudicado no decorrer do tempo e das transformações da cidade, que desvincularam os cinemas das ruas, que muito enriqueciam a experiência do público.

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Tais transformações seriam, segundo os autores mencionados no fim do último capítulo e que serão explorados ao longo deste texto, resultado de planos urbanos pautados em princípios e objetivos considerados por Jane Jacobs, por exemplo, como “ortodoxos”; frutos do desejo de estruturação modernista idealmente funcional, setorizada, monótona e padronizada. Os planos urbanos como a reforma de Haussmann em Paris, e a construção de Brasília são exemplos de concepções modernas idealizadas num contexto de pós-Reforma Industrial e da situação da cidade em um cenário técnico-científico (SANTOS, 2012); cujas consequentes transformações socioeconômicas seriam motivo do interesse dos modernistas na (re) estruturação da construção do território urbano. Essas propostas tentariam resolver todos os problemas que surgiam na cidade pós-industrial, através da estabilização de princípios pragmáticos, idealmente funcionais, que, na tentativa de tornar a cidade autônoma e prática, desprezavam a vitalidade, a diversidade e as virtudes da urbanidade. Tais considerações são feitas por Jacobs, que critica veementemente, na obra Morte e Vida das Grandes Cidades (1961), os princípios de planejamento urbano e de reurbanização que estavam sendo realizados no século XX; como o da Ville Radieuse, de Le Corbusier e as cidades-jardins de Ebenezer Howard. A Internacional Situacionista, ou a I.S.9 – uma vanguarda que atuou na Europa a partir de 1957 – , em afirmações mais radicais10, dizia que o urbanismo moderno por si só não passaria de uma ideologia construída pelo capitalismo, em que os princípios de utilidade e funcionalidade são reducionistas e segregadores, considerando que a planificação urbana é, em si, um processo “falsamente participativo”. Não é possível controlá-lo nem entendêlo plenamente. Trata-se, para os situacionistas, de um urbanismo que não leva em conta os acontecimentos que se dão no espaço informal da cidade; que são, verdadeiramente, onde se encontra a essência das relações urbanas – onde há encontros, expressões diversas e experiências. Os situacionistas atentam à pretensão da arquitetura moderna: o desejo impossível de organizar e resolver todas as necessidades urbanas através de edifícios que preenchem plenamente os espaços.

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9. A I.S. surgiu da união dos seguintes grupos: a Internacional Letrista (I. L.), o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (IMIB) – uma dissidência do Grupo CoBrA (Copenhague, Bruxelas e Amsterdã) –, e a Associação psicogeográfica de Londres (LPA), que já vinham há alguns anos discutindo os assuntos em questão. 10. Em texto de Attila Kotanyi e Raul Vaneigem, publicado no #6 de Internationale Situationniste, 1961.


Ville Radieuse, 1924, plano urbano modelo de Le Corbusier para as cidades modernas. Para o arquiteto, "a cidade de hoje [séc. XIX] vem morrendo porque seu planejamento não está na proporção geométrica de um quarto. O resultado de um verdadeiro layout geométrico é a repetição, o resultado da repetição é um padrão. A forma perfeita" Fonte: Archdaily

Cena do filme Playtime (1967), do diretor francês Jacques Tati. Contemporâneo ao clima da revisão do modernismo, faz uma crítica distópica e cômica aos padrões e o modo de vida do mundo moderno, cuja racionalidade e excessividade funcional são retratadas como incovenientes da rotina comum. Fonte: Frame do filme


Ville Radieuse, 1924, Le Corbusier. A padronização, a repetição e a monotonia do desenho urbano moderno. Fonte: Archdaily

Playtime, 1967, "O carrossel dos carros": a cidade como um circo. Automóveis coloridos circulam sem sair do lugar ao redor de uma rotatória urbana. Uma das críticas à indiferenciação e à privação da cidade moderna. Fonte: Frame do filme


Contemporaneamente ao movimento dos situacionistas, Jacobs advertia à necessidade de que os urbanistas dessem atenção ao “funcionamento das cidades na prática” em detrimento de “princípios e objetivos que moldaram o planejamento urbano e a reurbanização modernos e ortodoxos” (JACOBS, 1961, p.14), que seriam façanhas de soluções incertas, visto que as cidades erguidas sob essas premissas não deixaram de ser problemáticas e, inclusive, para a autora, “mostram-se ainda mais pobres que suas pobres pretensões”. Os edifícios com grandes áreas subutilizadas, a segregação gerada pelo distanciamento dos conjuntos habitacionais dos centros urbanos e a priorização do automóvel como transporte individual pelo território urbano são exemplos de decisões tomadas pelos urbanistas modernos que tornariam as metrópoles tão “monótonas”, sem diferenciação, sem possibilidade de descoberta e sem diversidade. Segundo Ermínia Maricato (2001), Jacobs defenderia o planejamento da cidade que buscasse esta diversidade, através do uso múltiplo dos edifícios e dos espaços públicos, da priorização do pedestre em detrimento do automóvel, da autogestão das ruas por meio dos pequenos comércios – considerados por Jacobs como os “proprietários naturais da rua”, os “’olhos atentos’, mais eficazes que a iluminação pública” (MARICATO, 2001, p.3) para a garantia da segurança das ruas. Um ponto crucial levantado por Jacobs, e relevante à nossa discussão sobre a urbanidade em torno dos cinemas, é o da vitalidade das ruas enquanto possibilidade de encontro, integração e coletividade. Segundo a autora, “aparentemente despretensiosos, despropositados e aleatórios, os contatos nas ruas constituem a pequena mudança a partir da qual pode florescer a vida pública exuberante da cidade.” (JACOBS, 1990, p.57). Conforme Jacobs, o estímulo a essa vitalidade deveria vir da própria cidade, através do dinamismo do caminhar, da pluralidade do espaço urbano, da presença constante dos pedestres nas calçadas que, inclusive, é defendida pela autora como outra medida de prevenção da violência urbana, considerando que, às vistas da população, seria evitada ou impedida, de maneira mais provável do que em locais isolados.

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A vivência das ruas e das calçadas seria o cerne das discussões destas novas propostas do urbanismo contrapostas ao moderno. Especialmente para o situacionismo, a defesa da experiência das ruas significaria uma libertação da rotina em direção à diversão, ao lúdico, como a alegria que motiva a sociedade a se mover e se aprimorar; fazer progressos sobre seu próprio progresso. A ludicidade como estímulo é uma noção elucidada por Johan Huizinga, em Homo Ludens (1938), onde o jogo é analisado como elemento até mais primitivo que a cultura na humanidade, por fazer parte da natureza humana, assim como o instinto dos animais que competem entre si por diversão. O jogo, como atividade em que se explora o lúdico, seria caracterizado por Huizinga como

“uma atividade ou ocupação voluntária, exercida num certo nível de tempo e espaço, segundo regras livremente consentidas e absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, atividade acompanhada de um sentimento de tensão e alegria, e de uma consciência de ser que é diferente daquela da vida cotidiana” (HUIZINGA, 1938, p. 33).

O jogo, ou o lúdico, no sentido da cultura, seria mais do que uma atividade de evasão para uma esfera temporária de atividade com regras próprias, que dá satisfação e distrai o indivíduo; mas um elemento presente na construção da cultura em si.

“O ritual teve origem no jogo sagrado, a poesia nasceu do jogo e dele se nutriu, a música e a dança eram puro jogo. O saber e a filosofia encontram expressão em palavras e formas derivadas das competições religiosas. As regras da guerra e as convenções da vida aristocráticas eram baseadas em modelos lúdicos. Daí se conclui necessariamente que em suas fases primitivas a cultura é um jogo” (HUIZINGA, 1938, p.21).

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Em consideração do prof. Igor Guatelli, o jogo, independente do estado corpóreo, seria “a garantia de uma vida psíquica em eterno movimento, um tempo do seguinte, de um devir imprevisível como desdobramento ou resultado. No jogo, o encadeamento imprevisível de instantes garante o corte de um fluxo que não se naturaliza no mesmo”. A retomada deste caráter lúdico às cidades era considerada pelos situacionistas parte essencial do novo urbanismo que se propunha. O situacionismo, como a exploração das situações urbanas, tinha como princípio a valorização da exploração da cidade da maneira como ela é, e da intervenção urbanística por meio da interação entre a racionalidade e a brincadeira. No situacionismo o jogo é tão importante quanto a funcionalidade e a praticidade para os modernos, de maneira que uma aproximação entre a rotina, o trabalho e o lazer resultaria na construção de um território muito mais propenso a ser ativo, dinâmico, vivo. Destas considerações situacionistas surgiu a proposição de um urbanismo unitário, como produto de uma revolução artística, filosófica e política voltada para a descoberta de possibilidades de uso do ambiente urbano, induzindo à participação transformadora da vida cotidiana, afastando-a da alienação e da submissão às conformidades modernas. Seria esse urbanismo, segundo Paola Berenstein Jacques11 (2003, p.54), o “emprego do conjunto das artes e técnicas, como meios de ação que convergem para uma composição integral do ambiente”. Com o viés empírico deste urbanismo unitário em ação – em detrimento de meras teorizações –, priorizando a cidade como objeto temático fundamental, os situacionistas resgatam ainda o conceito da psicogeografia e da teoria das derivas, ambos surgidos na década de 1950 e demonstrados na obra individual de Guy Debord, um dos fundadores da I.S. e um de seus principais intelectuais. A psicogeografia, coincidindo com a ideia da “arquitetura de 11. JACQUES, Paola Berenstein (org.) Apologia da Deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

situação”, envolve uma indistinção entre a arte e a rotina, tendo como premissa a renovação das relações individuais e coletivas com a cidade e a ação política. Conforme explanação de Debord,

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“A palavra psicogeografia, [...] Faz parte da perspectiva materialista do condicionamento da vida e do pensamento pela natureza objetiva […]. A psicogeografia seria o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos. O adjetivo psicogeográfico, que guarda uma imprecisão interessante, pode, portanto, ser aplicado aos dados estabelecidos por esse gênero de pesquisa, aos resultados de sua influência sobre os sentimentos humanos e até, de um modo mais geral, a qualquer situação ou conduta que pareçam provir do mesmo espírito de descoberta.” (DEBORD, 2003a, p. 39, grifos do autor)

A psicogeografia, para Debord mais como prática do que como especulação, se trataria do fundamento que levou à teoria da deriva, como a materialização dos aspectos desejados para uma nova articulação do território urbano:

“A deriva se apresenta como uma técnica de passagem rápida por ambiências variadas. O conceito de deriva está indissoluvelmente ligado ao reconhecimento de efeitos de natureza psicogeográfica e a afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, o que o torna absolutamente oposto às tradicionais noções de viagem e passeio […]. A deriva contém ao mesmo tempo esse deixar-se levar e sua contradição necessária: o domínio das variações psicogeográficas exercido por meio do conhecimento e do cálculo de suas possibilidades.” (DEBORD, 2003c, p.87)

Resumidamente, a deriva seria uma estratégia metodológica da psicogeografia e do situacionismo, sendo uma atividade já praticada pelas vanguardas que originaram a I.S.. É um tipo de experiência semelhante à flanêrie parisiense, mas que iria além da mera contemplação do espaço; tendo como objetivo a transformação e a recriação do cotidiano de forma participativa e lúdica efetivamente. Segundo Jacques, a deriva seria uma “técnica de passagem rápida por ambiências variadas”, cujo propósito é reconhecer efeitos de natureza psicogeográfica e afirmar um

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comportamento lúdico-construtivo” (JACQUES, 2003, p.87). Trata-se de subordinar o caminhar à experiência do imediato, de se deixar levar pelo momento vivido, em oposição ao deslocamento do trajeto com destino pré-definido, que se caracteriza mais por um caminhar por obrigação do que por desejo. O território da deriva se torna passional, uma vez que o percurso é determinado pelo acaso, pela própria morfologia social e espacial descoberta, em detrimento do conhecimento genérico, obtido por outros meios, “como a leitura de fotos aéreas e mapas, o estudo da estatística, de gráficos ou de resultados de pesquisas sociológicas, que são teóricos e não possuem este lado ativo e direto que pertence à deriva experimental” (JACQUES, 2003, p.80). A teoria da deriva se trata da defesa de que o território urbano não é determinado apenas por fatores geográficos e econômicos, mas também pela representação que os seus moradores e usuários têm dele. A proposição das derivas por Guy Debord é, na verdade, um incentivo da apreensão psicológica do ambiente urbano, de maneira que as fronteiras, as delimitações fictícias dos mapas, sejam diminuídas até “sua completa supressão”. A intenção de um urbanismo que se paute mais nas particularidades de um território relacionadas ao afeto dos seus usuários por ele seria, então, uma investida por soluções mais próximas da realidade, das verdadeiras necessidades, virtudes e potências de uma cidade.

12. SENNETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. [Building and Dwelling: ethics for the city]. Rio de Janeiro: Record, 2018.

Richard Sennett, em discussões mais atuais (2018)12, faria uma crítica sutil a Jacobs, por não ter exposto em sua obra “uma ideia clara sobre como extrapolar do local para o urbano”, mas elogiaria a deriva, o ato de caminhar despropositadamente como um hábito de conhecer a cidade e, assim “abri-la”. A este respeito, Sennett também defende que as intenções modernas teriam afastado a prática urbanista das realidades urbanas. A proposta central de sua obra seria a da cidade “aberta”, cuja vivência e apreensão pelos “urbanitas” (os habitantes) deve ser independente, emancipada de intenções excessivamente funcionais, que geram descompassos entre o que se constrói e o que se vive. Sennett considera que o trabalho dos arquitetos e urbanistas deveria ser “modesto”

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no sentido de que nos é impossível prever as significações dadas aos nossos projetos. É defendida, então, a consideração de uma realização mais espontânea, que considere as variáveis existenciais presentes no ambiente urbano. Do desenho de uma cidade que seja capaz de incorporar a informalidade prática do dia-a-dia. Acerca disto, ainda critica a figuratividade dos mapas virtuais, como o Google Maps que, ao prontificar a informação sobre um trajeto, o reduz a um mero traçado, não mais um percurso. A distinção entre o caminhar e o conhecimento superficial disposto nas mídias virtuais é relacionada mais uma vez à flanêrie:

“O flanêur viandante [o viajante que viaja a pé] é um espírito mais aberto, eu diria, que o caminhante munido de um propósito, pois o seu conhecimento dos lugares e das pessoas pode se expandir de maneiras imprevistas. Mas o que exatamente ele está aprendendo? [...], como poderão romper os limites do local, caminhando pela cidade – e não simplesmente recorrendo ao Google ou ao Youtube?” (SENNETT, 2018, p.210, grifos do autor)

Esta apreensão benéfica do caminhar seria possível graças ao que Sennett denomina “conhecimento corporificado”, resultante das interações materiais dos corpos com o ambiente em que se encontram. O uso dos sentidos, das referenciações, dos afetos, da mensuração de escalas – as dimensões relacionadas ao corpo –, do posicionamento, seriam as características defendidas como essenciais para uma aproximação entre o urbanita e o urbano.

“Deduzo daí que a escala humana não é estabelecida simplesmente pelo movimento, mas por um movimento intrigante, como no caso do labirinto; um movimento que encontre obstáculos, como deslocar-se lentamente numa multidão; ou que tenha a ver com uma pesada carga sensorial, como na visão lateral. O planejador urbano que criasse um ambiente sem quaisquer obstáculos para os pedestres não estaria contribuindo para a sua vivência e experiência. [...] a experiência da escala humana se dá em termos de enfrentamento das resistências.” (SENNETT, 2018, p.217)

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Tais considerações acerca da apreensão corporificada do espaço urbano serão essenciais para a proposição do Cinema em Movimento, de maneira que torna palpável a compreensão de que a presença do corpo em um espaço físico tem desdobramentos completamente diferentes de uma “presença virtual”, por sua vez atrelada mais à cognição, a uma atenção momentânea, do que com a totalidade dos sentidos; entretanto, voltaremos a este assunto adiante, enquanto apresentarmos o Cinema em Movimento como proposta projetual. Apenas pretende-se que se esclareça que há um grande interesse destes novos urbanismos em considerar a experiência subjetiva tanto psicológica quanto corporificada da cidade como ela é, em detrimento de uma ilusória generalização das coisas como deveriam ser, entre representações e simulacros do ambiente urbano idealizado; e que essa questão nos interessa à medida em que estamos considerando a relevância do espaço do cinema nas cidades. A contestação ao urbanismo moderno proposta por estes novos estudiosos expostos aqui, então, se torna pertinente à continuidade das nossas reflexões acerca dos espaços de cinema na cidade de São Paulo. Considerando que houve, sem dúvida, uma perda significativa do interesse do público em frequentar cinemas em geral – sobretudo os cinemas de rua, cuja frequência depende, como vimos, de uma harmonia saudável com as ruas propriamente ditas –, estas novas proposições urbanas servem, a partir de agora, como alicerce para a argumentação realizada nesta pesquisa de que; sim, os cinemas ainda são relevantes ao espaço urbano, e tanto enriquecem uma vivência de cidade quanto usufruem da vivacidade dela. O contato com a noção de que os cinemas foram internalizados em espaços que progressivamente os afastaram cada vez mais das ruas e, como consequência, da própria experiência cinematográfica como uma atividade de lazer na cidade, se revelaria, neste momento, como não mais que uma amostra de uma tendência degeneradora massiva do espaço urbano. O cinema, neste sentido, se esclarece ainda mais, para nós, como o cerne de uma investigação que extrapola a compreensão da experiência do cinema por si só, mas que também faz parte de uma discussão sobre a qualidade do território urbano em sua totalidade. O resgate das vivências urbanas discutido pelos urbanistas a partir da década de 60 será, portanto, defendido e usado como fundamento urbano da proposição do Cinema em

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Movimento; um cinema que se revelará ao longo das próximas páginas como um ensaio sobre a possibilidade – e a enfatização dessa possibilidade – de que o cinema, ou o espaço do cinema, é valoroso para a urbanidade quando permite experiências diversas. O cinema, como um dos tantos programas que têm este mesmo potencial de enriquecer o espaço urbano, como os teatros, centros culturais, museus, parques, por exemplo – que são, essencialmente, espaços públicos de lazer, em que há troca, diversidade, encontros, enfim, sociabilidades –, torna-se um instrumento de estímulo de vivências urbanas que, em grande número, qualificam o território urbano como um todo. A defesa de uma conduta urbanística que considere a diversidade, a vivência das ruas, as particularidades do ambiente urbano e, sobretudo, a noção de que não é possível – nem desejado – prever todas as interações dos indivíduos com este ambiente, uma vez que a riqueza da urbanidade consiste justamente na autonomia dos usuários em relação ao espaço, e não o inverso; é o que se defende, mais uma vez, como um mecanismo que favorece e engrandece a noção da experiência da cidade através do cinema. Conforme proposto desde o início, o Cinema em Movimento se trata da conjunção entre a potencialidade da experiência cinematográfica e a experiência urbana, de maneira que este novo cinema sirva como uma verificação da afirmação da importância da urbanidade. Graças ao conjunto de reflexões expostas nestes dois primeiros capítulos, se faz possível a apresentação da proposta do Cinema em Movimento em sua totalidade. Ao longo das próximas páginas retomaremos as questões que tumultuam a problemática dos espaços de cinema atuais, agora em relação à materialidade da proposta em si.

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o efêmero A abordagem do cinema através da dissecação do significado do cinema em si e das qualidades que constituem a experiência cinematográfica foram essenciais para a verificação de que há diversos assuntos que flutuam em torno da existência do cinema e, dentre deles – o mais importante para nós – a experiência urbana, a vivência da cidade. O motivo pelo qual o projeto do Cinema em Movimento não tenha sido apresentado até agora – a chegada a este último capítulo – foi de gerar, propositalmente, reflexões sobre o cinema como uma existência que nos toca em diversos aspectos que não necessariamente estão próximos da consciência, por estarem relacionados a convenções, conformidades relacionadas inclusive ao propósito inerente do cinema; de envolver o público em sensações pré-definidas, demarcadas pela narrativa do filme, pelo objetivo do cineasta executado no próprio fazer cinematográfico. Entretanto, como vimos, a experiência cinematográfica vai além do seu sentido em

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conformidade ao passo que evoca subjetividades, afecções pessoais de cada indivíduo que constitui o público. E analogamente, acontecimentos externos a esta experiência também influenciam nela, como o desenvolvimento urbano que, elaborado de uma maneira ou outra, deriva dinâmicas diferentes associadas à experiência das salas de cinema nas cidades. Em um dos primeiros momentos desta pesquisa, buscou-se fazer claro que a abordagem do cinema a partir de uma essência – a que consideramos como o movimento – seria um assunto tratado em todos os momentos. Espera-se que esteja clara, inclusive, a presença do movimento em cada um destes aspectos que pairam em torno do cinema, tanto quanto a relação entre a espacialidade da experiência cinematográfica e a experiência em si. Ao tratarmos, portanto, de movimento e espaço, podemos finalmente refletir sobre uma condição em que ambos estejam relacionados, em um estado de movimento espacial, como o que já havia sido tratado como itinerância. Entretanto, na equação da relação entre o movimento e o espaço resta ainda uma variável: a do tempo. O tratamento do tempo feito anteriormente como uma propriedade relacionada especialmente à contemplação cinematográfica, como atividade que possui desdobramentos que perduram num tempo subjetivo, na memória, tanto quanto é eventual, temporária, demarcada pelo período de duração de um filme; nos levaria à dualidade de que este tempo tanto seria permanente quanto passageiro. Evoca-se, então, o sentido do efêmero. Caracterizado como a brevidade de um acontecimento, que será, justamente, a ação de um movimento no espaço, a itinerância do Cinema em Movimento que será apresentado ao longo das próximas páginas. A mérito de ilustração deste pensamento, demonstram-se ao lado frames do filme italiano Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, cuja trama perpassa a vida de um garoto e seu fascínio pelo cinema. Em um dos momentos do filme, as portas do Cinema

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Cena do filme Cinema Paradiso (1988), momento em que a projeção é voltada à fachada de um prédio. Fonte: Frame do filme


Paradiso ficam abarrotadas com o público ainda insatisfeito mesmo depois de já se terem encerrado todas as sessões do dia. É quando Alfredo, o projecionista do cinema, têm a ideia de voltar o aparelho de projeção para fora da cabine, fazendo com que a imagem encontre a fachada de um edifício na praça da cidade. O público fica extasiado e, apesar dos tristes desdobramentos desta ação de Alfredo (cabe assistir ao filme para saber o que acontece), o momento da exibição na rua, livre a todo o público, gratuitamente, é tão simbólico que é revisitado no filme. Com o garoto já crescido e trabalhando como o novo projecionista do cinema, o Cinema Paradiso investe na itinerância e carrega o grande aparelho projetor a um espaço ao ar livre, em que o público, mais uma vez, demonstra grande interesse. Em livre interpretação, as cenas tratam do ato espontâneo, da efemeridade que se desdobra em lembranças significativas, afetuosas, cujo tempo de duração psicológico é perpétuo e solene. O efêmero remete, ainda, para nós, a uma tendência debatida nos tempos contemporâneos acerca de arquiteturas temporárias, denominadas justamente como efêmeras; como instalações artísticas, abrigos temporários e emergenciais, por exemplo, através da espacialização de ambientes por meio de materiais, estruturas e técnicas desmontáveis e transportáveis. Pretende-se elucidar também os efeitos desta arquitetura no espaço urbano e no cinema, considerando que esta experiência efêmera afetaria tanto a convenção da experiência cinematográfica quanto as dinâmicas no espaço em que ela seria inserida.

Cena do filme Cinema Paradiso (1988), exibição ao ar livre. Fonte: Frame do filme

O Cinema em Movimento, portanto, será demonstrado a seguir como a proposta de uma arquitetura itinerante, efêmera, incessantemente montada, desmontada e deslocada por territórios, espaços urbanos (na cidade de São Paulo, especificamente). É a efetivação de um movimento espacial que contém em si todos os movimentos e tempos do cinema.

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o movimento do lugar Ao longo desta pesquisa tratamos frequentemente do cinema como lugar, como espaço da exibição cinematográfica, constituído por convenções materiais que fazem com que o público o reconheça como tal; como salas de cinema, as caixas escuras que guardam dois elementos principais: a plateia e a tela. E também tratamos do espaço como integralidade, como matéria física e existência corporificada e geográfica; como o espaço urbano, abrigo da urbanidade. A partir de agora, entretanto, para tratarmos de movimento espacial como ação, torna-se necessário compreender efetivamente a distinção entre espaço e lugar. A questão da conceituação do espaço na geografia, embora não seja consentida entre as correntes da ciência geográfica – a Geografia Tradicional ou Clássica, a Geografia Quantitativa ou Teorética, Geografia Humanista ou Cultural Renovada e Geografia Crítica ou Radical –, é analisada por meio de conceitos socioespaciais que o constituem, dentre eles a paisagem,

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o território, as redes e o lugar, por exemplo (CORRÊA, 1995). Na obra de Milton Santos, o geógrafo faz uso de três escalas conceituais para compreender a totalidade socioespacial: o espaço geográfico, o território usado e o lugar; os quais faremos uso para compreendermos o que se trataria, de fato, de um movimento espacial que resultaria no movimento de um lugar. A princípio, o espaço geográfico é caracterizado por Milton Santos como a totalidade do mundo; sendo esta totalidade a “realidade em sua integridade” (SANTOS, 1996, p.74). Se trata de uma junção entre o espaço material e o espaço social; entre o espaço físico e o espaço das interações sociais, dos lugares e das representações sociais. O território usado, por sua vez, se tornaria um sinônimo de espaço geográfico, ao passo que também é considerado por Santos como uma simultaneidade material e social, composta por uma dialética entre o físico e a sua apropriação, realizada não somente pelo Estado – em uma organização de relações de poder, de delimitação de fronteiras, por exemplo – mas também por outros agentes, das relações simbólicas entre as estruturas econômicas, políticas e culturais (SANTOS, 1994). O lugar, em diferente escala, também seria para Santos como algo simultaneamente material e social, sendo vivido e percebido na “dimensão espacial do cotidiano” (SANTOS, 1996, p.217). É no lugar que ocorrem as dialéticas entre os agentes e as escalas verticais, das hierarquias sociais, e das escalas horizontais, das vizinhanças, proximidades, das pessoas que vivem neste lugar efetivamente.

“No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.” (SANTOS, 1996, p.218)

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A partir disto podemos refletir que a ideia de movimento de um lugar remete a fazer com que determinadas atividades, acontecimentos e dinâmicas sejam deslocadas pelo território; não somente o espaço em si, como corpo material e territorial que compreende tais situações, mas o que é possibilitado, garantido ou pretendido por ele, como disposição imaterial – social e cultural. Ou seja, o desejo do deslocamento e estabelecimento de um tipo de lugar num espaço diz respeito à implantação do efeito deste lugar como consequência. O transporte de um lugar da maneira como se faz pela itinerância seria o deslocamento de dinâmicas pré-estabelecidas na configuração de seu corpo material, ao mesmo tempo em que a sua inserção em lugares já construídos, já firmados na totalidade do espaço geográfico, o tornaria um agente da construção contínua deste espaço geográfico no cotidiano; já que ele é, como vimos em Santos, composto por dialéticas – estas ilimitadas, as relações sociais em elaboração constante. O movimento deste lugar se trataria, portanto, não apenas da realização deste movimento enquanto dure sua atividade num sentido cronológico. Se trataria, também, das modificações provocadas por esta movimentação na progressão do desenvolvimento do espaço como um todo, como um agente territorial de dinâmicas previamente territorializadas neste lugar em deslocamento. Analogamente, a interação entre as dinâmicas estabelecidas no lugar que recebe o lugar em movimento e dinâmicas novas também influi no desempenho do lugar em movimento. Se realizaria uma troca de interações, em que ambos são agentes das transformações de cada um. Como pretendido, se alcançaria a relação entre a experiência da rua e da experiência do cinema simultâneas de forma que uma enriquecesse e estimulasse a outra, no caso do Cinema em Movimento. Trata-se, em linhas gerais, da reflexão sobre um lugar como propulsor de transformações em lugares. Do movimento deliberado, calculado, previsto da itinerância, que gera condições outras, instigadas pela condição primordial de uma existência completamente nova, e, desde que iniciadas, se tornam imprevistas, uma vez que suas determinações dependerão das relações sociais específicas que se dão em cada lugar.

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O Cinema em Movimento torna-se, então, também um ensaio sobre a fluidez do lugar como formulação. Da efemeridade da conformação do espaço percebida graças à efemeridade da arquitetura.

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dissolução A proposta do Cinema em Movimento se demonstra, a partir de agora, como uma completa reinterpretação do cinema enquanto lugar. Demonstraremos nas páginas seguintes, através de desenhos e diagramas realizados ao longo do exercício projetual, as características que envolvem o funcionamento do nosso Cinema em Movimento. Acima de tudo, consideremos que o Cinema em Movimento se trata de uma espacialidade inspirada pela condição dissolvida do cinema na contemporaneidade, em relação à virtualidade da ação contemplativa cinematográfica. A própria revisitação à condição itinerante, como anunciada anteriormente, seria um tipo de intenção resgatada da ida do cinema em direção ao público, como um movimento efetivo, e não da espera deste público, do cinema em estado inerte. A dissolução seria, então, atingida na arquitetura através da itinerância e da efemeridade deste cinema junto aos espaços urbanos. Para tanto, foram traçados objetivos com relação à materialidade desta proposta, a

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fim de que a arquitetura resultante abarcasse, muito evidentemente, todas as ponderações realizadas nesta pesquisa acerca da experiência cinematográfica em conjunção à vivência urbana:

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À direita, diagramas conceituais de construção de partido projetual. Partindo da forma de um cubo, devido à modularidade das estruturas de andaimes, fez-se uma exploração dos componentes funcionais do cinema itinerante: 1. Cubo: A forma inicial 2. Esqueleto: Idealização da estrutura 3. Interior: O espaço delineado pela estrutura 4. Abertura: A possibilidade de desobstrução do acesso e do uso. 5. Cobertura: Retrátil; proteção contra intempéries, insolação e possibilidade de abertura. 6. Telas: No perímetro da estrutura; exibição em todas as faces do Cubo.

À esquerda e abaixo, croquis de desenvolvimento do partido projetual, estudando possibilidades de fluxos e de aberura da estrutura. Como intenção fundamental, considerou-se a garantia do fluxo desimpedido do pedestre no térreo.

7. Arquibancada: Possibilidade de subida e descida para funcionamento dinâmico 8. Plataformas: Função de mirante e instigação da contemplação por ângulos diversos.

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Considera-se, portanto, que o Cinema em Movimento é uma estrutura que parte de uma geometria cúbica, em que elementos programáticos, funcionais e estruturais que vão além da necessidade básica de uma sala de cinema genérica (constituída por tela + plateia, essencialmente) se associam para originar este espaço dinâmico de experiência cinematográfica. A dissolução do Cinema em Movimento, portanto, é revelada também sob a forma destas novas qualidades materiais aplicadas à experiência cinematográfica, já que reformula completamente a conformação do que é um espaço de cinema, apresentando-se à cidade e ao público como um tipo de espaço completamente diferente do habitual. Conforme anunciados, estes elementos estão associados à efetuação dos objetivos delimitados para a proposição deste novo cinema junto à cidade. Vale salientar que todos estes elementos estão relacionados à possibilidade de mutação constante tanto da estrutura, quanto de seu uso. Todos eles fazem uso de movimentos ou procuram instigá-los. Com relação à abertura da estrutura – ou do que chamamos de movimento parcial, em comparação ao movimento total da itinerância –, propõe-se que este movimento resulte numa total desobstrução de fluxo e de visibilidade entre a parte interna e a parte externa deste cinema. As telas, por sua vez, com a intenção de que sejam transparentes – característica que será tratada adiante, junto aos detalhamentos específicos da estrutura –, também fazem parte deste interesse pela desobstrução, associado à cativação e à democratização deste cinema perante os pedestres. As quatro telas, em contradição às salas de cinema comuns com apenas uma grande tela, estarão fixadas nos planos internos do Cinema em Movimento, e possibilitam o uso deste espaço como uma ambiência panorâmica de exibição cinematográfica. Porém, como mencionado ao falar-se de uma possibilidade de mutação constante desta estrutura, não procura-se desta forma limitar o uso das telas à simultaneidade, já que a exibição usual não deixa de ser possível, ao fazer-se o uso de apenas uma dessas telas – a que se encontra à frente da arquibancada dinâmica, que por sua vez pode estar ora abaixada, ora elevada.

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A planta do térreo do Cinema em Movimento demonstra a desobstrução do fluxo do pedestre garantida por uma estrutura esquelética de andaimes sem fechamentos laterais. Ao lado da estrutura principal, são estabilizados os "satélites", como estruturas de apoio a microssociabilidades.

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A estrutura aberta ainda garante o fluxo do pedestre que caminha dentro e fora do cinema; porém, a parte interna deixa de ser uma espacialidade delimitada pelas "paredes" da estrutura principal, tornando-se dois planos deslocados. Os pormenores da realização do movimento da abertura, tal como seu funcionamento estrutural, serão demonstrados no decorrer deste capítulo.

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A movimentação do espectador, da mesma forma, não acontece de maneira habitual. Conforme proposto, a oferta de percursos diversos e de diferentes ângulos de visão da apreensão da experiência cinematográfica é possibilitada por plataformas assentadas em patamares diferentes. As plantas ao lado demonstram que estes percursos são estimulados por uma irregularidade na composição da superfície caminhável de cada nível da estrutura. Entre cheios e vazios, os pedestres são obrigados a procurar pelas escadas que dão acesso aos patamares a que desejam chegar, assim sendo instigados a percorrer todo o perímetro do cinema. Tal intenção se relaciona à deriva, à errância pelo espaço como ferramenta de descoberta subjetiva, da criação de uma relação de intimidade entre o indivíduo e o território desbravado por ele. As plataformas, os percursos labirínticos possibilitados por elas, são também uma maneira de estimular a apreensão através do corpo; a promoção de uma capacidade perceptiva integral da experiência cinematográfica, extrapolando a priorização do sentido da visão na contemplação fílmica comum. A proposição de estruturas labirínticas é inspirada pela série de 16 gravuras produzidas entre 1745 e 1750 por Giovanni Baptista Piranesi (Veneza 1720-Roma 1778): os Carceris d’Invenzione (Cárceres de invenção). Nas palavras de Marguerite Yourcenar, os Cárceres representam a “negação do tempo, a incoerência do espaço, a levitação pretendida, a intoxicação do impossível reconciliado ou transcendido”. Tratam-se de “prisões imaginárias”, claustros sem pontos de fuga, que se desdobram sobre si mesmos; entre escadas que levam a lugar algum, pontes levadiças suspensas no ar, instrumentos de suplício sem carrasco nem condenado, são arquiteturas de confinamento vazio. Representam a dominação da mente, da memória, suas ruínas, a melancolia eu-interior.

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Carceri d'Invenzione, lãmina VII, "Il ponte levatoio" (A ponte levadiça) Giovanni Battista Piranesi, c. 1761. Fonte: Met Museum

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Carceri d'Invenzioni, lâmina XVI, "Il molo con catene" (O píer com correntes), Giovanni Battista Piranesi, c. 1761. Fonte: Met Museum

Carceri d'Invenzioni, lâmina III, "La torre circolare" (A torre circular), Giovanni Battista Piranesi, c. 1761. Fonte: Met Museum


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A respeito da movimentação da estrutura, procura-se ressaltar junto às plantas acima um dos atributos cruciais deste movimento: o do embasamento da arquitetura sob carrocerias de caminhões. Esta foi a solução melhor desenvolvida para a execução da abertura do cubo. Ao longo do exercício projetual, outras considerações foram feitas a respeito deste funcionamento; ponderou-se a instalação de roldanas sobre trilhos, por exemplo, entretanto, o firmamento sob carrocerias tornou-se a melhor resolução, à medida que possibilita também o transporte integral da estrutura desmontada. Nas plantas ao lado também se destaca a fixação da cobertura retrátil por meio de cabos de aço, fixados nas “paredes” de andaimes que não realizam o movimento de abertura. Tal estratégia mantém o vínculo entre as duas partes da estrutura de andaimes que, ao se moverem, rompem a consistência da geometria do cubo fechado.

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O desenho ao lado demonstra, por fim, a realização de todos os elementos desenvolvidos do Cinema em Movimento, conforme propostos desde o início. Seria interessante analisar cada proposta do “programa qualitativo” apresentado junto a este esquema, para que se possa traçar correlações entre o que foi proposto e o que foi realizado. Considera-se, em síntese, que a proposta de uma arquitetura efêmera foi realizada sob uma composição de estrutura de andaimes e componentes funcionais e construtivos que também possibilitam fácil montagem e desmontagem, tal como movimentações individuais, como a retratibilidade da cobertura e a possibilidade de variação de altura das arquibancadas dinâmicas. Cada elemento integrado ao cubo principal complexifica a finalidade da estrutura como um todo. As particularidades do funcionamento de cada um agrega qualidades cada vez mais diferentes ao Cinema em Movimento, que por sua vez aproxima-se do desejo de realização de uma experiência cinematográfica imprevista, cuja prática estaria intimamente relacionada ao instante específico em que ela aconteceria. Por exemplo, o percurso do espectador entre os níveis de observação seria instigado por sua vontade subjetiva de conhecer o ambiente à sua volta; que pode ser tanto o filme exibido, quanto o acontecimento da exibição cinematográfica em si – compreendendo que isto seria a percepção de seu caráter coletivo, da atenção retirada do filme e voltada ao público que transpassa pelo horizonte das telas transparentes, por exemplo – e da própria cidade como paisagem, como o espaço total de todas estas atividades. A disposição de tantas possibilidades do Cinema em Movimento faria o espectador se submeter à experiência conforme os acontecimentos que a comprometem – internos, externos, subjetivos ou coletivos –, relacionados ao ritmo da cidade que o compreende. A proposta se relaciona, ainda, a intenções arquitetônicas relacionadas à exploração do dinamismo do espaço urbano. O principal exemplo explorado na execução do Cinema em Movimento foi a obra de Bernard Tschumi, cujo discurso urbanístico e arquitetônico é a reflexão sobre disjunções; teorias desconstrutivistas acerca de noções levantadas na

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contemporaneidade da crítica do urbanismo moderno, em que o arquiteto considera que não há arquitetura sem evento, sem programa e sem ação, mas que “nunca é autônoma, nunca é pura, e, da mesma forma, não se reduz a um problema estilístico nem pode ser reduzida a uma linguagem” (TSCHUMI, 1994). O arquiteto critica, desta maneira, a arquitetura como forma, considerando a importância da priorização da função não apenas como suposição de uso, mas como a abertura da possibilidade de movimentos no espaço, entre pessoas, ações e eventos.

“O paradigma do arquiteto transmitido a nós através do período moderno é aquele do inventor de formas, o criador de estruturas hierárquicas e simbólicas caracterizadas, por um lado, por sua unidade de partes e, por outro, pela transparência da forma ao significado. [...] Um número de correlatos bem conhecidos elabora esses termos: a fusão de forma e função, programa e contexto, estrutura e significado. Sob eles, está a crença no objeto unificado, centrado, e auto-generativo, cuja própria autonomia é refletida na autonomia formal da obra. Contudo, em certo ponto, essa prática corrente, que acentua a síntese, a harmonia, a composição de elementos e a aparente coincidência de partes potencialmente distintas, se torna alienada da sua cultura externa, das condições culturais contemporâneas.” (TSCHUMI, 1994, p.208)

Tschumi argumenta, em linhas gerais, sobre a necessidade da arquitetura se voltar ao “contexto cultural imediato”, da necessidade de se contemplar o caráter imprevisível do cotidiano.

“Em arquitetura, tal disjunção implica que a qualquer momento qualquer parte pode se tornar uma síntese ou totalidade auto-suficiente, cada parte leva à outra, e toda construção é desequilibrada, constituída pelos traços de outra construção. Poderia ser também constituída pelos traços de um evento, de um programa. Isso pode levar a novos conceitos, como o que se pretende aqui, entender um novo conceito de cidade, de arquitetura.” (TSCHUMI, 1994, p.10)

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1. A folie é um tipo de construção que teve origem no século XVI e que se popularizou no século XIX. Trata-se, em geral, de uma pequena construção que abriga funções variadas, normalmente vinculadas ao ócio, e que tinham por objetivo destacar pontos de interesse na paisagem, ao longo de um determinado caminho.

Emblema da obra de Tschumi, o Parc de la Villette, como a proposta de reabilitação de uma área de 55 hectares antes ocupada pelo matadouro municipal da cidade de Paris em um parque dinâmico, se trata da construção de um espaço descontínuo e modular, onde se possa fazer a sobreposição de vários elementos numa única estrutura, através de uma “desconstrução programática”, segundo o próprio arquiteto. Se trata de “uma tipologia de parque baseada na acumulação, na promiscuidade interativa, onde, o que importa não é o desenho, mas a quantidade de situações justapostas e superpostas” (GUATELLI, p.18). O parque fora organizado em uma malha ortogonal composta por pontos, ou folies , que demarcam percursos retilíneos para o usuário ao longo do espaço. Além de 1

funcionarem como pontos de referência e conferirem unidade ao parque, os folies abrigam variadas atividades culturais e sociais; dispersas pelo território graças a este gesto projetual de “explosão” do programa de necessidades.

À direita, esquema da concepção das folies no Parc de la Villette. Segundo Tschumi, em entrevista, “o projeto do Parc de la Villette pode assim ser visto para incentivar o conflito sobre a síntese, a fragmentação sobre a unidade, a loucura e o jogo sobre a gerência cuidadosa. Este projeto subverte um número de ideais que lhe eram sacrificados no período moderno – desta maneira, pode ser aliado a uma visão específica de pósmodernidade”.

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A proposta do Cinema em Movimento se assemelha a esta intenção de “explosão programática” não apenas no sentido da dispersão da arquitetura itinerante pelo território urbano, mas pela amplitude de possibilidades do emprego desta estrutura por si própria e pela cidade. Com relação aos satélites, considera-se ainda que a sua disposição pelo espaço circundante da estrutura não seja antecipada projetualmente. Os elementos estruturais do Cinema em Movimento foram, não somente previstos, como calculados e detalhados para funcionamentos específicos; porém, o arranjo e o uso dos satélites será condicionado pelas necessidades específicas de cada local de montagem do Cinema. Como mencionado anteriormente, estes satélites servirão como apoio da estrutura principal, ou o “cubo”. Ao lado demonstra-se algumas possibilidades de ocupação de uso destes espaços, cuja única limitação será o dimensionamento estrutural e especificidades de construção, que já se pode adiantar que acompanhará a modulação dos andaimes e será executada da mesma forma. A intenção pretendida é de que esses espaços menores também abriguem as microssociabilidades que serão geradas em torno do Cinema em Movimento; como as interações entre o público, o comércio ambulante que aproveita a aglomeração de pessoas que esperam um espetáculo, enfim, as microdinâmicas que podem ser suscitadas graças à presença deste cinema. A projeção destes espaços surgiu como resposta à necessidade programática de um espaço como o cinema que, além da tela e da plateia, como seus componentes principais, ainda necessitaria de ambientes específicos como banheiros, bilheteria, abrigos para a espera do público, etc. A opção por estruturas de apoio que orbitam no entorno de uma estrutura principal foi inspirada pela disposição espacial dos circos itinerantes, cujo espaço cênico e público é separado de espaços privados como a habitação dos circenses, os depósitos, as bilheterias e as instalações sanitárias;

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performance A reflexão sobre o cinema como evento qualificado por uma performatividade será abordada aqui sob o caráter ativo e reativo do Cinema em Movimento. A consideração de que os cinemas lugares sempre fizeram uso do estímulo do fascínio do público nos serviu, até agora, para que pudéssemos iniciar a compreensão deste ensaio projetual como uma proposta de experiência reformada do cinema. O novo caráter performático – deste cinema dissoluto –, como se pode compreender a esta altura, estaria relacionado ao ato da itinerância; da efemeridade da presença da arquitetura no território que, por sua vez, instiga acontecimentos também efêmeros e imprevistos no ritmo cotidiano habitual. Além do mais, resgata-se ainda a regência de Aión sobre tempo da experiência psicológica do cinema; elevada no contexto do Cinema em Movimento à medida que se considerasse esta subversão cotidiana.

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A performance se trata agora de uma ação completamente essencial da experiência do Cinema em Movimento. Está associada a cada momento de sua permanência espacial, ao considerar-se que o funcionamento incomum da estrutura, de seus movimentos parciais e de sua inconstância física, sempre sujeita a transformações e adaptações, está associado a um caráter de constância do inédito. A mutabilidade constante da estrutura faz com que a experiência do Cinema em Movimento definitivamente não seja a mesma a cada momento que se transcorra. Pelo contrário, o decorrer do tempo de existência do Cinema em Movimento em determinado espaço é que determinará o que dele será feito neste espaço. Pretende-se, é claro, que haja certa regularidade no funcionamento da estrutura, como a consideração de que o movimento de abertura seja realizado apenas uma vez em cada inserção, justamente como um tipo de performance fascinante; um espetáculo simbólico da democratização do acesso ao cinema como objetivo não apenas pretendido pelo alcance do público por meio da viagem territorial, como também pela abertura literal das “portas” deste cinema ao público e à cidade. Contudo, procura-se frisar que o uso e a ocupação do Cinema em Movimento dependerá fundamentalmente das dinâmicas resultantes da interação entre ele e cada lugar onde seria montado. Ou seja, considera-se que o aproveitamento da estrutura pelos usuários em cada território de inserção poderá ser completamente desconforme ao que se deu no território anterior. A existência do Cinema em Movimento conta fundamentalmente com o subjetivo de cada usuário e da totalidade destas diferentes apreensões e interpretações do território cotidiano então transformado. Através da corporificação da percepção dos espaços, como abordado em Sennet como “conhecimento corporificado”, pondera-se também sobre a performatividade do Cinema em Movimento com relação aos próprios espectadores. Conforme mencionado, a transparência das telas de exibição materializariam uma possibilidade de contemplação simultânea da cidade e do cinema, do espaço interno e do espaço externo, dos eventos apresentados em filme e em realidade, ou seja, da observação das pessoas que transitam por entre os patamares da estrutura. Os espectadores tornam-se protagonistas de suas próprias experiências não

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apenas com relação a si próprios, de suas próprias percepções e percursos no espaço em que se encontram, mas como personagens essenciais da experiência coletiva, como parte do que caracteriza o seu caráter público; uma vez que, uma contemplação cinematográfica solitária é completamente diferente da experiência coletiva, sobretudo se estiver atrelada à urbanidade. Tais condições performáticas estariam associadas à apreensão do espaço urbano, por sua vez, à medida que perturbam conformações gerais sobre o próprio corpo, o corpo do outro e os corpos urbanos, como as materialidades físicas componentes do território urbano integral. À medida que se aproxima a percepção do espaço a uma experiência corpórea, individual, as relações entre o indivíduo e este espaço se aprofundam, devido à constituição de uma familiaridade reminiscente. Pretende criar-se, por fim, uma reafetividade a um espaço primário – um território de inserção – graças à sua transformação antes física e perduravelmente psicológica. Consideramos anteriormente que a presença de um objeto como o Cinema em Movimento provocaria modificações permanentes com relação à apreensão do território urbano da maneira como ele era. Demonstraram-se, aqui, portanto, algumas das características que resultariam nesta alteração psicológica do espaço. O Cinema em Movimento, então, está associado a um devir de suas próprias condições. Mais do que provoca devires com relação à vivência de seu próprio espaço e do espaço à sua volta, ele próprio se tornaria uma existência em construção, dependente mais do que está por vir do que pelo seu comportamento pressuposto.

as inserções Com relação ao espaço urbano e os territórios de montagem da estrutura, considerouse primordialmente o levantamento atual de cinemas e de espaços relacionados ao consumo e à cultura cinematográfica.

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O mapa da página seguinte destaca os cinemas de rua, os cinemas de shopping e os “lugares de cinema”, que a princípio serviram para traçar-se a compreensão da situação dos cinemas na cidade de São Paulo atualmente. A produção destaca, também, o levantamento de espaços considerados possíveis para a inserção de uma estrutura como a do Cinema em Movimento, que ocupa, individualmente, 20x20 metros. Este estudo realça, sobretudo, a proximidade dos “espaços de cinema” em relação a estes territórios urbanos desejados para a inserção da estrutura. A intenção da promoção de um estímulo urbano através da presença do Cinema em Movimento foi, desde o princípio, pretendida no sentido de que este cinema fosse inserido em ambientes em que se pudesse fazer uso de uma certa urbanidade já existente, tanto quanto pudesse estendê-la, transformando as dinâmicas destes territórios em prol de um enriquecimento da vivência urbana pública. Contudo, no desenvolver da proposta, foi considerada também a possibilidade de que este cinema fosse incorporado a outros tipos de territórios; nos quais houvesse certa vitalidade, apesar de não estarem fundamentalmente associados à urbanidade no sentido de interligação direta com as dinâmicas urbanas adjacentes, como acontece em praças públicas como o Largo da Batata, por exemplo. Tratariam-se, então, de inserções em espaços tais como estacionamentos de shopping centers, que indubitavelmente são territórios de aglomeração pública, mas que se distanciam deliberadamente do espaço coletivo da cidade, onde há troca, dinâmica, vitalidade urbana da maneira como defende-se que seja positiva para a cidade como um todo. O Cinema em Movimento inserido em tais espaços seria, portanto, uma intervenção agressiva e profunda na conformação das funções atribuídas a eles normalmente.

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A expansão do itinerário do Cinema em Movimento pretende, então, desenvolver um tipo de festival de cinema itinerante, em que no mínimo 5 estruturas poderiam viajar pelas 5 zonas principais da cidade de São Paulo: Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro. O trajeto destes cinemas pela cidade poderá se desenvolver entre territórios como os descritos abaixo, de maneira que se pretende que a vivência dos espaços urbanos seja sempre estimulada, aproveitada e desejada. Estima-se, então, uma certa errância do próprio Cinema em Movimento, que tanto instiga os devires urbanos quanto está também, constantemente, em devir.

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matéria e objeto A estrutura do Cinema em Movimento, se tratando de uma arquitetura itinerante, conforme mencionado, deveria atender às necessidades de fácil montagem e desmontagem, ao mesmo tempo em que fossem empregados sistemas construtivos específicos que possibilitassem o dinamismo desejado. Com relação ao funcionamento e à tectônica do Cinema em Movimento, evoca-se o sentido da matéria e do objeto, sendo o primeiro o que compõe o segundo em sua totalidade. A matéria, como constituição de algo, será demonstrada a seguir à luz do projeto estrutural como um todo e do detalhamento construtivo dos elementos que compõem o Cinema em Movimento. Conforme mencionado, a estrutura geral é constituída por andaimes, cuja especificação técnica segue padrões de fábrica comuns, padronizados para modulações previstas em projeto, que considera, ao mesmo tempo, possibilidades de singularizar cada situação de montagem.

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Os demais elementos que integram o objeto, por outro lado, seguem funcionamento e instalação previstos em catálogo, porém deverão ser fabricados de acordo com a necessidade dimensional proposta. A princípio, a definição da estrutura de andaimes foi modulada entre cubos pequenos de 2,5 x 2,5 x 2,5 metros, que, fixados uns aos outros, integram o “cubo” maior: o Cinema como “edifício”, de 20 x 20 metros de comprimento por 12,5 metros de altura.

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Este “cubo”, por sua vez, é composto por “paredes” destes módulos de andaimes, projetadas sob dois tipos, denominados como eixo x e eixo y. A diferenciação do desenho estrutural destas “paredes” deu-se devido à necessidade de torná-las independentes umas das outras, visto que seria feito o deslocamento de dois destes eixos em algum momento da instalação arquitetônica. A variação consiste na instalação, ou não, de barras diagonais no plano horizontal da estrutura. A presença dessas barras garantiriam a estabilidade de cada eixo após serem retiradas algumas barras horizontais comuns que fixariam o cubo integralmente em prol da realização do movimento de abertura. Nos desenhos da página anterior demonstra-se, em linhas tracejadas, quais barras deveriam ser retiradas. Conforme justificado anteriormente, esta abertura da estrutura se tornaria um espetáculo protagonizado pelo próprio Cinema em Movimento. Considera-se que não haja perda nesta retirada de peças para que o movimento se faça possível, visto que se trata de uma preparação que possibilita a performance. Os componentes metálicos que constituem a estrutura de andaimes, conforme mencionado, são padronizados por fabricação. Demonstra-se nos desenhos a seguir os sistemas que a constituem, em acordo com a modulação proposta.

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Para a realização do movimento da estrutura, o desafio consistiu na articulação das paredes dos eixos x junto às do eixo y, de maneira que ainda se preservasse a estabilidade estrutural do conjunto. A solução encontrada foi a substituição do sistema de fixação em rosetas nos pontos de encontro entre as barras de andaimes de uma parede e outra por um elemento de conexão customizado. O projeto deste elemento, no entanto, não passa de um ensaio sobre a materialização da proposta da abertura do Cinema em Movimento. Considera-se que, para a elaboração de um projeto efetivamente funcional deveria ser produzido um estudo detalhado de mecânica e de resistência da estrutura como um todo. Busca-se frisar, portanto, que esta proposta foi realizada sob orientação de professores orientadores e com base no funcionamento de outras estruturas metálicas rotatórias, porém, não é sabido ao certo – dada a fase projetual que se finalizou o projeto para a apresentação deste trabalho – se esta articulação, da forma como é demonstrada aqui, funcionaria de fato. Junta giratória metálica fixa; Afixação rotatória para duas barras horizontais; Afixação estável para outras duas barras horizontais; Barras horizontais fixadas por sistema de rosqueamento macho/fêmea; Eixo central de rotação em barras verticais (hastes) comuns;

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Acerca do movimento da abertura, conforme também mencionado anteriormente, a ação seria possibilitada através das carrocerias de caminhões sob as quais as bases dos andaimes são fixadas. Bastaria um caminhão acoplar-se e movimentar o eixo que se abre, ou então, excluindo-se a necessidade do caminhão voltar e ser o responsável por este movimento, prevê-se também a possibilidade de que cabos de aço e força de tração humana também sejam suficientes para tanto. Com relação aos caminhões, considera-se que sejam utilizadas oito carrocerias de caminhões de 8 metros de comprimento. Tal definição justifica-se pela necessidade de que a estrutura percorra espaços da cidade facilmente. Foi estudada no desenvolvimento do projeto a possibilidade de que apenas 4 carrocerias fossem utilizadas, visto que o comprimento de caminhões de carga podem até ultrapassar os 20 metros de cada parede do cubo. Entretanto, se tornou imprescindível que esta dimensão fosse dividida em duas para que o transporte da estrutura desmontada fosse realizado entre o viário regular dos bairros da cidade, considerandose que carrocerias que ultrapassam 8 metros de comprimento não são autorizadas na maioria das vias urbanas.

8 carrocerias de base tipo truck para contêineres (contém encaixe para fixação)

4 carrocerias de transporte fechamento em lona (para maior flexibilidade de desmonte)

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Acerca das fixações das estruturas secundárias agregadas ao “cubo”, demonstra-se nos desenhos seguintes os métodos construtivos adotados. As telas de LED transparentes seguem uma modulação que encontra os eixos estruturais da estrutura total. Para tanto, dividiu-se a dimensão entre um eixo outro, a fim de que tanto o transporte quanto a instalação destas telas de LED fossem facilitadas. Portanto, tratam-se de 4 telas de LED transparente constituídas por telas menores de 1,25 x 2,5 metros. Mais uma vez, a padronização da montagem é seguida conforme orientações de fabricante. Utilizaria-se telas de tecnologia de alta-definição, conforme ilustrado na imagem ao lado. As coberturas retráteis, por sua vez, estarão fixadas em cabos de aço diretamente conectados aos andaimes verticais das paredes de eixo y.

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E as arquibancadas, conforme também mencionado, estarão afixadas em estruturas levadiças sobre eixos verticais. Tal tecnologia têm sido utilizada em projetos de auditórios e teatros contemporâneos, como a Fondation Louis Vuitton, do arquiteto canadense Frank Gehry. No Cinema em Movimento utiliza-se a mesma tecnologia, demonstrada abaixo:

Fachada de edifício com telas de LED transparente. Loja da Nike em Nova York. Fonte: Archdaily

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A respeito do consumo energético – questão que fez parte continuamente da discussão acerca da utilização de telas de LED – considera-se que as coberturas de ambas a estrutura principal e as estruturas satélite contenham células de energia fotovoltaica. Alguns cálculos foram realizados acerca do consumo e da economia energética que seria alcançada graças a essa tecnologia. Consideram-se os seguintes dados:

Portanto, apesar de os dados coletados acerca da capacidade energética das membranas fotovoltaicas serem datados de 2010, considera-se que, mesmo a tecnologia tendo possivelmente avançado excepcionalmente em um período de 10 anos até hoje, estes cálculos já revelam uma redução considerável no consumo energético das telas de LED se considerada a produção individual da cobertura do Cinema em Movimento. A título de conhecimento, também integra-se aqui a quantificação de itens que constituem o Cinema em Movimento, sem levar em conta as estruturas satélite, já que, como anunciado, sua instalação dependerá das necessidades específicas de cada local de inserção.

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Vista lateral

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Estruturas satĂŠlite e estrutura principal

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Vista interna sobre plataformas

Vista interna tĂŠrrea

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Abertura da estrutura

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0 epĂ­logo



considerações finais "Eu confronto a cidade com meu corpo; minhas pernas medem o comprimento da arcada e a largura da praça; meus olhos fixos inconscientemente projetam meu corpo na fachada da catedral, onde ele perambula sobre molduras e curvas, sentindo o tamanho de recuos e projeções; meu peso encontra a massa da porta da catedral e minha mão agarra a maçaneta enquanto mergulho na escuridão do interior. Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio de minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade e a cidade mora em mim." Juhani Pallasmaa

A finalização deste trabalho em meio à pandemia do novo coronavírus, no ano de 2020, originou novas reflexões acerca da pertinência de um estudo como este, que se presta a divagar e especular sobre a experiência das ruas das cidades associada a um tipo de afecção passional pelo território estimulada pela arte cinematográfica. Considerou-se junto aos professores Valter Caldana e Igor Guatelli, muitas vezes, ao longo do desenvolvimento do projeto e desta pesquisa, a coincidência das problemáticas levantadas aqui – acerca da grande perda de vitalidade dos espaços urbanos no decorrer das transformações sociais, culturais e econômicas – em relação ao confinamento no período de isolamento social. De uma forma ou outra, a sucessão de eventos que leva ao empobrecimento do território urbano de maneira deliberada, como as grandes reformas urbanas, as alterações estruturais e conjunturais que progridem do decorrer do tempo, é essencialmente e completamente diferente da situação em que (ainda) nos encontramos no momento da publicação deste texto. A vivência urbana deixou de ser uma possibilidade por um tempo considerável das nossas vidas. Talvez agora possamos, todos, reconhecer que precisamos – mais do que nunca

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– de espaços que permitam o encontro, a socialização, o contato positivo com o externo. A experiência corporal, a investigação subjetiva das capacidades espaciais do território urbano, como abrigo de todas as relações sociais, culturais, políticas, enfim, humanas, é incessantemente defendida neste trabalho como o aspecto intrínseco à qualidade das cidades em sua totalidade. O Cinema em Movimento, além de tudo, também se ensaia como uma proposta de reinvenção dos espaços cinematográficos não apenas com relação à experiência da arte e da cidade, mas como arquitetura que pode indicar respostas a necessidades espaciais que surgiram em meio à pandemia. Como bem apontado pelo prof. Dr. Igor Guatelli ao fim de nossas discussões, o Cinema em Movimento trata ainda de novas dinâmicas internas, novas qualidades ambientais – devido à livre circulação de pessoas e o não-confinamento interno propiciado pelos vazios da estrutura – que poderiam concordar às práticas de distanciamento social como medida preventiva à contração de doenças. Por fim, espera-se que a amplitude de possibilidades do Cinema em Movimento se faça compreendida. O projeto final da estrutura, abarcadora de múltiplos funcionamentos e dissipadora de dinâmicas urbanas imprevistas, por mais complexa que seja em suas particularidades, tornou-se a materialização da compreensão que se fez desde o início da pesquisa com relação à pertinência tanto do cinema, quanto da experiência física deste cinema em meio à cidade. O Cinema em Movimento, apesar de deixar de ser um cinema propriamente dito, enquanto pode abrigar quaisquer tipos de atividades culturais, é um entendimento sobre a potencialidade das dinâmicas sociais no território urbano como um todo.

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referências projetuais the shed Conectado ao High Line Park a partir da 30th Street, o Shed fornece um espaço flexível para a realização de variados eventos culturais e artísticos. Conta com estruturas dinâmicas de expansão e recolhimento de acordo com as necessidades empregadas ao edifício. A proposta é de ser um espaço prático, funcional e flexível à adaptação das demandas dos artistas e todas as atividades que não são necessariamente previstas. arquitetos: Diller Scofidio+Renfro e Rockwell Group localização: Hudson Yards, Nova York, EUA área construída: 18.500m² ano de projeto: 2008 ano de inauguração: 2019

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fav pavilion Uma instalação de 16 dias de duração para o Festival de Artes de Valparaíso. A estrutura de andaimes e faixas de poliéster conferiam transparência e fruição ao volume arquitetônico. O estudo do projeto foi de grande valia para a proposição do Cinema em Movimento, uma vez que o esclarecimento sobre as especificidades construtivas dos andaimes em arquitetura serviu como apoio técnico para a exploração que já vinha sendo feita com os andaimes do Cinema em Movimento. arquitetos: República Portátil localização: Plaza Sotomayor, Valparaíso, Chile área construída: 220m² ano de projeto: 2014 ano de inauguração: jan-fev. 2014 (durante 16 dias)

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cinema garage screen O pavilhão para o cinema do Garage Museum of Contemporary Art foi o projeto vencedor de um concurso organizado pelo museu e a empresa de consultoria de urbanismo Strelka KB. A estrutura em formato de pirâmide é um "cinema pop-up" que reinterpreta o processo de assistir a um filme e oferece uma nova maneira de vivenciar o espaço do cinema. Seu conceito-chave é de ser um "cinema aberto" que, ao invés de se fechar em si mesmo, considera os fatores ambientais à sua volta.

arquitetos: SYNDICATE Architects localização: Parque Gorky, Moscou, Rússia ano de projeto: 2018 ano de inauguração: 2019

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cinema em movimento autora: mariana cavalcanti taffarel orientação: prof. dr. igor guatelli e prof. dr. valter caldana faculdade de arquitetura e urbanismo universidade presbiteriana mackenzie trabalho final de graduação agosto de 2020 mari-taffarel@hotmail.com




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