Kafka à beira-mar - Haruki Murakami [capítulo dois]

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2. O documento em anexo, classificado como «ultrassecreto» pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, foi dado a conhecer ao público em 1986 através da Ata de Liberdade de Informação. O documento encontra-se no Arquivo Nacional, em Washington, D.C., e aí pode ser consultado. As investigações aqui registadas foram desenvolvidas sob a orientação do Major James P. Warren, entre março e abril de 1946. A investigação no terreno, no condado de (rasurado), Prefeitura de Yamanashi, foi conduzida pelo segundo-tenente Robert O’Connor e pelo sargento-mor Harold Katayama. As entrevistas foram todas conduzidas pelo tenente O’Connor. O sargento Katayama teve a seu cargo a tradução do japonês e o soldado William Cohen foi responsável pela elaboração do relatório. As entrevistas foram conduzidas durante um período de doze dias na sala de reuniões da Câmara de (rasurado), na Prefeitura de Yamanashi. Foram estas as testemunhas que responderam individualmente às questões colocadas pelo tenente O’Connor: uma professora da escola secundária do condado de (rasurado), da cidade de (rasurado), um médico residente na mesma cidade, dois polícias de serviço na esquadra local e seis crianças. Os mapas da área em questão à escala de 1:10 000 e 1:2000 foram fornecidos pelo Serviço de Cartografia do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Relatório dos Serviços de Informação do Exército dos Estados Unidos (MIS) Data: 12 de Maio de 1946 Título: Relatório sobre o Incidente na Colina da Tigela de Arroz, 1944 Número do documento: PTYX-722-8936745-42216-WWN


Gravação da entrevista com Satsuko Okamochi (26), professora que tinha a seu cargo a turma B do quarto ano da escola secundária pública da cidade de (rasurado), condado de (rasurado). O acesso a toda a informação adicional relativa à entrevista pode ser feito através do número PTYX-722SQ-118 Observações do entrevistador, tenente Robert O’Connor: «Satsuko Okamochi é uma mulher elegante, de feições corretas. Inteligente e responsável, respondeu às perguntas com precisão e honestidade. Apesar disso, e na sequência do acidente, apresenta sinais de encontrar ainda em estado de choque. Por vezes, ao recapitular os acontecimentos, deu mostras de grande nervosismo, revelando nessas ocasiões tendências para se exprimir com maior lentidão.» Julgo que deve ter sido pouco depois das dez da manhã que avistei uma coisa prateada a brilhar no céu. Uma espécie de clarão brilhante com reflexos prateados. É isso mesmo, aquilo que vi foi sem sombra de dúvida um reflexo metálico. Esse clarão percorria o céu muito devagar e movimentava-se de leste para oeste. Pensámos todos que só podia ser um B29. Encontrava-se mesmo por cima de nós, por isso bastava-nos olhar para cima para podermos vê-lo. O céu estava muito límpido e a luz era de tal maneira ofuscante que só conseguimos perceber que se tratava de um material prateado, parecido com duralumínio. Mas não conseguimos ver que forma tinha, uma vez que nos encontrávamos muito longe. Parti do princípio de que eles também não conseguiam ver-nos, por isso não receámos ser atacados nem ficámos à espera de ver cair uma bomba em cima de nós. De resto, que sentido faria andar a largar bombas no meio das montanhas? Calculei que o avião se preparasse para bombardear uma grande cidade, ou então que estaria de regresso de alguma missão. Por isso, continuámos o nosso caminho. Só me lembro de pensar na estranha beleza que emanava daquela luz.

Segundo os registos militares, nenhum bombardeiro americano nem (ou) qualquer outro avião sobrevoaram aquela região na altura mencionada, ou seja, por volta das dez da manhã. Mas eu vi-o claramente, o mesmo acontecendo com todas as dezasseis crianças que estavam comigo. E todos ficámos com a impressão de se tratar de um B-29. Estávamos fartos de observar muitas formações de B29, e sabíamos que um avião capaz de voar assim tão alto só podia ser um B29. Havia uma pequena base aérea instalada na nossa prefeitura e já por mais de uma vez eu tinha observado os aviões japoneses no ar, mas eram todos mais pequenos e nunca poderiam voar tão alto como aquele que eu


vi. Além disso, o duralumínio reflete a luz de forma diferente da que se vê nos outros tipos de metal, e os únicos aviões feitos disso são os B-29. No entanto, achei um tanto ou quanto estranho andar por ali um avião isolado a voar, sem fazer parte de nenhum esquadrão.

Nasceu aqui, nesta região? Não. Nasci em Hiroxima. Casei-me em 1941, e só depois disso é que vim para cá. O meu marido era professor de música numa escola secundária desta prefeitura. Foi mobilizado em 1943 e morreu em combate em Luzon, em junho de 1945. Por aquilo que vim mais tarde a saber, ele estava de guarda a um depósito de munições à saída de Manila quando este foi bombardeado pelos americanos e explodiu, causando a sua morte. Não tínhamos filhos.

Por falar em crianças: quantas é que tinha a seu cargo nesse passeio? Dezasseis ao todo, entre rapazes e raparigas. Tirando duas, que estavam doentes, tinha comigo a turma inteira. Cinco eram miúdos que tinham sido evacuados de Tóquio. Deixámos a escola deviam ser umas nove da manhã. Era um passeio escolar igual aos outros e, como tal, toda a gente levava os termos e lancheiras com o almoço. Não havia nenhum assunto em concreto que tivéssemos em mente investigar; tratava-se apenas de uma excursão pela montanha para apanhar cogumelos e plantas selvagens comestíveis. Vivíamos numa zona rural, povoada de quintas, por isso não se pode dizer que tivéssemos falta de alimentos, o que não é propriamente o mesmo que dizer que tínhamos comida em abundância. O sistema de racionamento, então em vigor, era extremamente rigoroso e a grande maioria dos habitantes passava fome muitas vezes. Por isso, os mais novos eram encorajados a ir por ali fora à procura de tudo o que fosse bom para comer. Afinal de contas, o país estava em guerra, e a subsistência era mais importante do que os estudos. Toda a gente participava nestes passeios organizados pela escola - «aulas ao ar livre», como então lhes chamavam. Uma vez que a nossa escola estava rodeada de montanhas e bosques, havia muitos locais aprazíveis por onde escolher. Não se pode dizer que estivéssemos mal servidos nessa matéria. Isto porque, verdade seja dita, as pessoas que viviam nas cidades passavam fome. As rotas de abastecimento a partir de Taiwan e do continente tinham sido cortadas e as áreas urbanas estavam a sofrer horrores com a falta de alimentos e de combustível.

Referiu que cinco dos seus alunos tinham sido evacuados de Tóquio. E eles entendiam-se bem com as crianças locais?


Na minha turma, pelo menos, davam-se bem. Claro está que existia uma grande diferença entre um grupo e outro, entres aqueles que tinham crescido no meio do campo e os que sempre haviam sido educados em plena cidade de Tóquio. Falavam de maneira diferente e até a maneira de vestir era outra. Enquanto a maior parte dos que ali residiam eram filhos de agricultores pobres, a maioria das crianças vindas de Tóquio tinham pais que trabalhavam em empresas ou que eram funcionários públicos. Por isso não posso dizer que se entendessem por aí além. Sobretudo no princípio, verificou-se que existia uma certa tensão entre os dois grupos. Não quero com isto dizer que eles brigassem uns com os outros ou andassem à pancada, porque não era verdade que isso acontecesse. Estou a dizer que um grupo parecia não compreender o que ia na cabeça do outro grupo. Por isso, a tendência era ficarem cada um na sua, os miúdos que eram dali brincavam entre e os que vinham de Tóquio faziam um grupinho à parte. Mas isto foi só durante os primeiros meses. Depois disso começaram a dar-se bem melhor. Sabes como são as coisas. Quando as crianças começam a brincas juntas e se entretêm com o que estão a fazer, as barreiras quebram-se e deixam de ligar importância ao resto.

Gostaria agora que descrevesse, tão detalhadamente quanto possível, o local para onde levou as crianças naquele dia. Ficava numa colina onde íamos muitas vezes em passeio. Tinha um cabeço redondo, que parecia uma tigela virada ao contrário. Costumávamos chamar-lhe Colina da Tigela de Arroz. Ficava para oeste, não muito longe da escola, e como era pouco íngreme toda a gente podia subir facilmente até lá acima. Quando íamos com os miúdos levávamos cerca de duas horas a chegar ao topo. Pelo caminho eles metiam-se pelo meio do bosque à procura de cogumelos e quando chegava a hora do almoço comíamos qualquer coisa. Claro que estas crianças preferiam mil vezes essas excursões a terem de ficar fechadas na sala de aulas a estudar. Por momentos, o avião reluzente que vimos passar lá em cima trouxenos à memória a guerra, mas essa impressão não tardou a desvanecer-se, e a boa disposição voltou a reinar. Não havia uma nuvem no céu, não soprava nem uma aragem, e à nossa volta reinava a tranquilidade. Tudo o que ouvíamos eram os pássaros a chilrear nas árvores. Era como se a guerra fosse algo que estava a acontecer num país distante, nada tendo que ver connosco. Íamos cantando à medida que subíamos a encosta, por vezes imitando o canto dos pássaros que conseguíamos distinguir. Tirando o facto de ainda haver guerra, podíamos dizer que era uma manhã perfeita.

Foi pouco depois de ter avistado aquilo que lhe pareceu ser um avião que correu a esconder-se nos boques, correto?


Sim. Julgo que ainda não deviam ter passado cinco minutos quando chegámos ao bosque. Saímos do trilho principal e seguimos ao longo de um carreiro de terra batida, por sinal mais íngreme, que levava ao cimo do monte. Depois de dez minutos sempre a subir, chegámos a uma clareira, uma área lisa como o tampo de uma mesa. Assim que mergulhámos no bosque fez-se o mais absoluto silêncio e ficou mais fresco, visto que o sol ali não conseguia penetrar, mas depois, quando entrámos na clareira, sentimonos como se tivéssemos chegado a uma pequena praça em plena cidade, com o sol a brilhar lá no alto. A minha turma para sempre naquele sítio quando subíamos a Colina da Tigela de Arroz. O lugar possuía uma espécie de efeito calmante e, vá-se lá saber porquê, transmitia-nos um sentimento de calma e paz. Uma vez chegados àquele «sítio», fizemos uma pausa para descansar, pousámos as mochilas e os miúdos organizaram-se em grupos de três ou quatro e meteram-se dentro da mata à procura de cogumelos. Eu insistia sempre na necessidade de eles nunca se perderem de vista. Antes de eles se dispersarem, juntei-os todos e fiz questão de verificar se tinham entendido isso mesmo. Conhecíamos bem o sítio, mas não deixávamos de estar metidos no meio do bosque, e caso algum deles se separasse do grupo e dicasse perdido, depois ia ser um carga de trabalhos para o encontrar. Contudo, é preciso não esquecer que estamos a falar de crianças. Entretidas a procurar cogumelos, o mais provável é esquecerem-se de uma regra desse género. Por isso é que eu faço sempre questão de os ter debaixo de olho quando andamos a apanhar cogumelos, isto para além de passar o tempo a contalos para ver se estão todos. Andávamos à procura de cogumelos há coisa de dez minutos quando as crianças começaram a perder os sentidos. Assim que vi um grupo de três crianças desmaiadas no chão, pensei logo que tinham comido cogumelos venenosos. Naquelas bandas o que há mais são cogumelos altamente venenosos, e existe mesmo uma espécie que pode revelar-se fatal. As crianças da região sabem os que podem ser apanhados, mas o certo é que algumas variedades mal se distinguem. Foi por isso que eu sempre avisei as crianças para nunca levarem diretamente os cogumelos à boca até chegarmos à escola e podermos examiná-los com a ajuda de quem saiba. Mas não podemos estar sempre à espera de que os mais novos deem ouvidos, pois não? Corri para o local e peguei, uma a uma, nas crianças caídas por terra. Tinham o corpo mole, pareciam feitas de borracha quando é deixada ao sol. Era como se estivéssemos a carregar conchas vazias – toda a energia parecia ter sido sugada. Mas continuavam a respirar normalmente. Verifiquei que o pulso também batia normalmente e nenhuma delas revelava ponta de febre. Estavam com um ar calmo, o que não aconteceria se sentissem dores. Vi


logo que não tinham sido mordidas por abelhas nem cobras. As crianças estavam pura e simplesmente inconscientes. O mais estranho de tudo eram os olhos. Tinham o corpo tão frouxo como se estivessem em coma e, contudo, os olhos continuavam abertos, como se olhassem para alguma coisa. Volta e meia pestanejavam, por isso dava para ver que não estavam a dormir. E os olhos mexiam-se muito devagarinho para a esquerda e para a direita, como se eles observassem uma cena ao longe. Pelo menos o olhar deles dava a entender que tinham consciência do que se passava. Mas não estavam propriamente a olhar para algo de concreto, pelo menos que me parecesse. Por mais de uma vez abanei as mãos à frente deles, mas sem obter qualquer reação. Peguei em cada uma das crianças, à vez, e todas elas estavam na mesma. Que é como quem diz, todas inconscientes, ao mesmo tempo que os olhos se moviam devagar de um lado para o outro. Foi a coisa mais estranha que alguma vez vi na minha vida.

Lembra-se de quem caiu primeiro? Foi um grupo de raparigas, todas amigas umas das outras. Chamei-as alto pelo seu nome e bati-lhes na cara, e com bastante força, mas não reagiram. Pelos vistos não sentiam nada. Foi uma sensação estranha, como se estivesse a tocar no vazio. A minha primeira reação foi mandar alguém a correr à escola a fim de pedir ajuda. Não havia qualquer hipótese de carregar sozinhas as três crianças inconscientes. Por isso tratei de ver se encontrava um dos rapazes, que era o mais rápido da turma. Mas quando me levantei e olhei à minha volta, reparei que todas as crianças tinham desmaiado. Sem exceção, todos os dezasseis alunos estavam caídos no chão, sem sentidos. A única pessoa, ali, ainda consciente e de pé era eu. Parecia que estava… num campo de

batalha.

Reparou em algo de inusitado no local? Algum cheiro esquisito, alguma luz estranha? [Depois de refletir um bocado]. Não, como já disse, estava tudo muito calmo e sossegado. Não havia nada que se parecesse com sons ou luzes ou cheiros esquisitos. A única coisa estranha era o facto de todos os meus alunos terem perdido os sentidos e jazerem ali inconscientes. Senti-me terrivelmente sozinha, como se fosse a única pessoa viva no mundo. Nem consigo descrever esse sentimento da mais absoluta solidão. Só queria desaparecer, evaporar-me no ar, sem pensar em nada. Mas claro que não podia fazer isso. Na qualidade de professora, tinhas as minhas responsabilidades. Lá me consegui recompor e desci a


encosta o mais depressa que as pernas me permitiram, atĂŠ Ă escola, a fim de buscar ajuda.


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