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A Diferença que Faz a Experiência no “Bordel Filosófico”* Lisa Florman
Um dos aspectos mais notáveis em “O Bordel Filosófico”, o ensaio de 1972 que Leo Steinberg dedicou às Demoiselles d’Avignon, de Pablo Picasso, é o modo como esse texto permeou nosso entendimento do quadro.1 Hoje parece impossível escrever ou mesmo pensar sobre as Demoiselles d’Avignon sem levar em conta os termos da interpretação de Steinberg. A meu ver, isto se deve sobretudo à adequação do ensaio – ao fato de este ser uma interpretação do quadro, e não algo imposto de fora. Porém, também cabe notar que a natureza dessa interpretação, e por consequência a natureza do quadro, acabou por ser entendida de maneira amplamente equivocada. A tal ponto, com efeito, que essa situação hoje requer uma releitura atenta de “O Bordel Filosófico” – com uma atenção tão minuciosa quanto a do próprio Steinberg diante das insistentes demandas colocadas pelas Demoiselles. Portanto, os comentários a seguir são propostos como uma abertura ou um catalista desse processo de releitura, na expectativa de que nos seja possível explorar e portanto experimentar, coletivamente, tanto o ensaio como o quadro sobre bases ligeiramente distintas. * Este ensaio foi publicado em: The Art Bulletin, Vol. 85, No. 4, Dez., 2003, p. 769-783. Uma versão anterior foi apresentada em fevereiro de 2000 na reunião anual da College Art Association, na sessão dirigida por Michael Ann Holly, “Reading and Writing Art History”. Tenho uma dívida de gratidão para com todos aqueles que leram, ouviram e comentaram o ensaio na época. Também sou grata a Richard Brillant, cujas questões (e dúvidas) foram aguilhões cruciais para a recente revisão, e a Stephen Melville, pelas excelentes recomendações editoriais, assim como por partilhar seus pensamentos sobre a natureza da “experiência”. 1
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Uma ideia razoavelmente precisa da atual estima de que desfruta “O Bordel Filosófico” pode ser depreendida de uma antologia de textos sobre as Demoiselles publicada há pouco mais de um ano.2 Na introdução ao volume, a importância transformadora do ensaio de Steinberg é ressaltada: Antes do ensaio [de Steinberg], as Demoiselles d’Avignon eram o local de nascimento do cubismo, o marco de uma histórica passagem do conteúdo para a forma na pintura moderna; após o ensaio de Steinberg, o quadro tornou-se o marco de uma mudança histórica caracterizada por um novo tipo de confronto com a sexualidade, um confronto de imediaticidade sem precedente na história da pintura. O Picasso por trás desse quadro é um homem cuja biografia pode ser tão relevante quanto suas influências artísticas; e, tanto quanto a crítica prática, a psicanálise pode se mostrar igualmente importante na apreensão do significado dessa obra. E [...] tais significados são encontrados tanto no espectador quanto em Picasso, pois o espectador pressuposto no ensaio de Steinberg não é apenas um leitor implícito, a observar reflexivamente desde o exterior, mas [...] o derradeiro produtor de sentido – e, de certa maneira, o próprio centro de atenção do quadro.3
Diversos elementos são habilmente evocados por essa descrição, em especial a percepção de que “O Bordel Filosófico” não só nos proporcionou um novo contexto no qual considerar as Demoiselles; mas, antes, como sugere o parágrafo, alterou o modo pelo qual se manifestava a própria obra e, consequentemente, o próprio tipo de interesse que despertava em nós. A fusão (talvez não proposital) de espectadores e leitores na conclusão do parágrafo também se poderia ver como um reforço da questão que me serviu de partida – a saber, que ao contemplarmos as Demoiselles, inevitavelmente retomamos os termos de “O Bordel Filosófico”. De novo, vejo aí uma confirmação da propriedade ou da “adequação” essenciais na interpretação proposta por Steinberg. Infelizmente, outros aspectos daqueles comentários introdutórios são, em minha opinião, bem menos apropriados. Como exemplo dos estudos recentes sobre as Demoiselles, não resta dúvida de que são bastante acurados: desde a publicação do ensaio de Steinberg, as análises psicobiográficas do quadro tornaram-se corriqueiras, assim como a suposição de que a atenção direta das demoiselles de algum modo autoriza o espectador e, com isso, legitima sua reação subjetiva.4 Todavia, a implicação de que tais abordagens contam de fato com apoio ou sanção em “O Bordel Filosófico” baseia-se claramente em uma leitura (ou, antes, em distintas leituras) equivocada do texto. Afinal, as análises psicobiográficas desconsideram ou recalcam a colocação de Steinberg sobre o envolvimento do observador com a obra, ao passo que, em sentido inverso, as outras explicações valorizam em demasia a autoridade investida nesse papel. Considerar o observador do quadro como “o derradeiro produtor de sentido” é, fundamentalmente, equivocar-se quanto ao modo pelo qual, em “O Bordel Filosófico”, somos colocados em relação com as Demoiselles. Talvez seja possível fazer uma ideia melhor da posição efetiva de Steinberg se compararmos seu ensaio com outro texto, escrito na esteira daquele: penso aqui especificamente no relato sobre o quadro e sua “gênese” proposto por William Rubin.5 Embora o texto seja dedicado a Steinberg, e claramente deva seu ímpeto a muitas das observações deste, Rubin toma o cuidado de marcar sua distância perante algumas das concepções de “O Bordel Filosófico”. Com efeito, ao avaliarmos essa distância e depois examinarmos a posição reivindicada por Rubin vis-à-vis as Demoiselles, talvez sejamos capazes de chegar – por meio de uma espécie de triangulação – ao local aproximado onde “O Bordel Filosófico” preferiria nos situar. Antes, contudo, convém esboçar o panorama do terreno a ser percorrido, delineando os contornos gerais da argumentação exposta no ensaio de Steinberg. Em seu arrazoado, “O Bordel Filosófico” recorre com frequência aos numerosos desenhos preparatórios do artista, afirmando que “fosse qual fosse sua ideia inicial, Picasso não a abandonou, mas descobriu meios mais poderosos de colocá-la em prática”.6 Tais desenhos, de composição 2
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surpreendentemente acadêmica, mostram claramente o interior de um bordel, no qual duas figuras masculinas aparecem ao lado das mulheres. Detalhes nos esboços, assim como certos comentários de Picasso, nos permitem até mesmo atribuir ofícios a essas figuras: assim, há um marinheiro sentado à mesa no centro da sala, e, no limiar desta, vê-se um estudante de medicina, cujo afastamento contrasta nitidamente com a plena imersão na cena do outro personagem masculino. Como salientou Steinberg ao discutir o estudante de medicina (especificamente em um dos desenhos iniciais, no qual esse estudante empunhava um crânio): O fato de que, na concepção provisória de Picasso, um segundo desenho mostrava o sujeito carregando tanto um livro como um crânio, e depois apenas um livro, sugere que tais atributos serviam como símbolos do conhecimento, e de um tipo bem específico – ou seja, de um conhecimento não participativo e teórico. O que eles anunciam, portanto, é a gélida entrada em cena da análise. Daí a caveira na mão do estudante de medicina – como se contraposta ao símbolo vital e itifálico do marinheiro. Pois, enquanto o manso marujo por trás de seu porrón báquico encontra-se no meio na ação, seu correlato, o homem do conhecimento junto à cortina, é alguém que se mantém à parte. Não como personificador de uma consciência devota da morte, nem, tampouco (como sugeriu R. de la Souchère), como um homem em perigo ao entrar em contato com o pecado [...] mas bem o oposto – um homem isento, auto-exilado pela confiança na e pela dependência da dissecção aplicada; como alguém condenado a ficar de fora [...] Ele é o nãoparticipante, o excluído no derradeiro jogo de inclusão.7
Evidentemente, as figuras masculinas acabaram sendo descartadas na versão definitiva do quadro. Além disso, como ressaltou Steinberg, a composição toda foi simultaneamente reorientada – girada noventa graus para fora no espaço – de modo que nós, os assistentes, passamos a ocupar o lugar das figuras masculinas e nos tornamos o foco da atenção das demoiselles. As tão comentadas descontinuidades estilísticas do quadro e as várias disjunções espaciais (em alguns casos, protocubistas) serviram como meio de destacar umas das outras as figuras remanescentes, de modo a reforçar o fascínio que exercem sobre nós: “As cinco demoiselles [...] mantêm-se unidas como dedos tensos, e todo o cenário interno e desmoronante do quadro se encerra como um punho fechado”.8 “O que houve, então”, pergunta Steinberg, “com o drama original – a polarização entre conhecimento externo e iniciação? À medida que a ação gira noventa graus para confrontar o espectador, o quadro deixa de ser a representação de uma aventura desfrutada por um ou dois homens e, em vez disso, torna-se uma experiência nossa, isto é, uma experiência do quadro.”9 A esse respeito, cabe notar ainda de que maneira, nos desenhos preparatórios, as demoiselles parecem voltar as cabeças a fim de fitar especificamente o estudante de medicina, ao passo que o marinheiro mantém o olhar baixo, mais ou menos na direção da fruta sobre a mesa. Que nós, como espectadores do quadro, supostamente tenhamos de assumir ambas as posições descartadas pelas figuras masculinas parece estar indicado pelo fato de que as demoiselles nos fitam de frente, e também por que baixamos o olhar para a fruta, o que, de fato, nos coloca junto à mesa, entre as mulheres.10 O Diagnóstico de Rubin Ao escrever sobre as Demoiselles, William Rubin situou seu desacordo com a interpretação de Steinberg justamente nos desenhos preparatórios e, sobretudo, no crânio empunhado pelo estudante de medicina. Como se aludiu no longo trecho citado acima, Steinberg havia se 3
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empenhado bastante para arrancar esse crânio, e também os esboços iniciais das Demoiselles, do âmbito da interpretação de ambos proposta por Alfred Barr. Segundo este, o crânio sugeria que Picasso originalmente “concebera o quadro como uma espécie de memento mori – uma alegoria ou um enigma sobre as consequências do pecado”.11 Evidentemente cético quanto à possibilidade de se atribuir tais interesses moralizantes ao artista, Steinberg recorreu a Friedrich Nietzsche em defesa de sua posição: “Pois, sete décadas atrás, não eram os Padres da Igreja que soavam aos ouvidos de Picasso, e sim a voz do filósofo que havia escrito: ‘O cristianismo deu a Eros veneno para beber: não o bastante para que morresse, mas o suficiente para que degenerasse em vício’”.12 Em consequência, sustentava Steinberg, o crânio devia ter como propósito algo diferente de simbolizar a vanitas; e ressaltou que “um estudante de medicina é o único membro da sociedade que pode contemplar, e assim o faz, um crânio com outros pensamentos que não os da morte – isto é, que o olha como objeto de investigação científica”.13 Disto ele concluía – exatamente o ponto que Rubin considerou “o aspecto menos convincente da interpretação de Steinberg”14 – que “o projeto das Demoiselles não começou como uma charada sobre as consequências do pecado, mas como uma alegoria daqueles que estão incluídos e excluídos no confronto com as irredutíveis reivindicações do sexo”.15 De sua parte, Rubin estava ansioso para reter as associações de memento mori do crânio e assim preservar no quadro algumas de suas conotações anteriores de mortalidade. Mas agora tais conotações estava sujeitas a outra inflexão. “De importância crucial para o significado variável do motivo do crânio”, argumentou Rubin, “é o fato de o sexo prostibular envolver possibilidades de degeneração física e morte que, tradicionalmente, não estavam associadas ao símbolo da vanitas.”16 “A escolha por Picasso de um marinheiro como cliente nas Demoiselles”, acrescentava ele, não só caracterizava seu bordello como sendo do tipo popular, então conhecido corriqueiramente como “abatedouro”, mas aludia ao tema da doença venérea, na medida em que os marinheiros eram tidos universalmente como disseminadores da sífilis [...] Todavia, a inclusão do estudante de medicina nas Demoiselles para indicar a doença e a mortalidade no marinheiro – um contraste entre aquele que cura e o que contrai a sífilis – provavelmente pareceu então a Picasso anedótico e talvez até banal demais. A subsequente eliminação do estudante – e, pouco depois, do próprio marinheiro – pelo artista [...] não significou, contudo, o desaparecimento dos temas da doença e da morte. Picasso deu-se conta de que tais preocupações não precisavam ser incorporadas alegoricamente, mas podiam ser incluídas nas próprias figuras femininas – como ocorre vividamente na figura da prostituta agachada no canto inferior direito do quadro final.17
Rubin prossegue argumentando que as “distorções” assimétricas no rosto dessa figura tinham a intenção de evocar – ainda que não de ilustrar, nos assegura – as atrozes deformações estruturais da cabeça que marcam a etapa avançada da syphilis osseuse.18 Muito da inovação formal da obra pode assim ser considerada, de acordo com Rubin, como derivada do arraigado temor de Picasso em relação à sífilis e à gonorreia. Ao avaliar o quanto se afastava de Steinberg, Rubin sugeriu que aquilo que os distinguia era, no fundo, um desacordo a respeito do conteúdo, do significado inerente das várias figuras e motivos do quadro. “A dissociação, por Steinberg, entre, de um lado, o estudante de medicina e o crânio, e, de outro, qualquer simbolismo relativo à doença e à morte”, afirmou Rubin, é função do que me parece ser a visão excessivamente restrita das Demoiselles como, em essência, uma imagem de “imersão orgiástica” e “liberação dionisíaca”. [...] Ao enfocar o vigoroso aspecto erótico das Demoiselles, Steinberg lidou 4
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apenas com um dos lados da equação. Para mim, o quadro final é menos uma orgia dionisíaca do que um campo de batalha sexual, no qual tanto Eros como Tânatos lutam pela psique de Picasso.19 Rubin sem dúvida tem razão ao alegar que a “liberação dionisíaca” – uma expressão extraída diretamente do Nascimento da Tragédia, de Nietzsche – é crucial para a interpretação das Demoiselles por Steinberg. Com efeito, Rubin merece todo o crédito por ter sido um dos primeiros estudiosos a reconhecer e ressaltar o acentuado víes nietzschiano em “O Bordel Filosófico”. Todavia, ele se engana ao pressupor que a “liberação dionisíaca” não seja portadora de nenhuma das implicações de mortalidade e desintegração do eu que seu próprio ensaio busca com tanta diligência situar no âmbito das imagens do quadro. Pois, segundo Nietzsche, era justamente na arte dionisíaca, na música e tragédia antigas, que se consumava o “aniquilamento do indivíduo”.20 A tragédia ática induzia em cada membro individual da plateia um estado de ekstasis: uma sensação de ser sobrepujado, dilacerado e até arrebatado para fora de si pela força dos acontecimentos – ainda que não uma experiência da morte per se, pelo menos uma experiência de algo inerente ao âmbito da pulsão de morte.21 Na realidade, diz Nietzsche, trata-se de um tipo de experiência no qual mal se pode falar de membros “individuais” do público. Era Apolo, e não Dioniso, o representante do principium individuationis; a potência simbólica de Apolo visava preservar a ilusão da individualidade distinta, com o intuito específico de camuflar a verdade “dionisíaca”, segundo a qual o mundo era excessivo, ilimitado seja pela moderação, seja pelo sentido.22 Na mitologia antiga, o deus Dioniso havia sido destroçado pelos Titãs, e dispersos os pedaços individuais de seu corpo; assim, a reunião dos participantes nos festivais trágicos de Dioniso pode ser vista como reencenação desse momento em que se juntam de novo os fragmentos dispersos da divindade. A tragédia grega visava, segundo Nietzsche, alcançar um momento de “júbilo dionisíaco”, no qual o indivíduo conseguia sentir-se reunido a uma “unidade primal”, integrado a essa realidade mais profunda por trás de todos os fenômenos, e anterior a toda individuação. Como disse Georges Bataille, no que é claramente um reflexo do relato nietzschiano da “liberação dionisíaca”:
Somos seres descontínuos, indivíduos [...], mas ansiamos por nossa continuidade perdida. Difícil para nós é suportar o estado que nos vincula a uma individualidade aleatória e efêmera. Juntamente com o tormentoso desejo de que perdure essa coisa evanescente, também há nossa obsessão por uma continuidade primal que nos vincula a tudo o que existe.23
E essa obsessão, alega Bataille, é o fundamento de todo erotismo. Ele então acrescenta: Sem uma violação do ser constituído – e que se constituiu na descontinuidade – não conseguimos imaginar a passagem de um estado a outro essencialmente distinto. [...] Que significa o erotismo dos corpos se não uma violação do próprio ser dos participantes? uma violação no limiar da morte – no limiar do homicídio.24
Por mais distintamente que Rubin possa conceber essas questões, é evidente que, para Bataille – e para Nietzsche –, tanto Eros como Tânatos são filhos de Dioniso. E tudo isso, a meu ver, está implícito na invocação por Steinberg da “liberação dionisíaca” como termo descritivo do encontro erótico encenado nas Demoiselles. Com efeito, porém, tratase de uma referência ainda mais arraigada; caberia aqui citar (e de maneira extensa) o trecho específico do “Bordel Filosófico” ao qual alude o texto de Rubin. 5
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Qualquer que tenha sido o tema original – as consequências do pecado ou o afastamento contraposto ao comprometimento –, esse tema parece suplantado quando o confronto passa a ser entre a obra de arte ali delimitada e aquele que a observa de fora. Todavia, creio que o quadro diz outra coisa. Ele declara que se você aceitar plenamente e submeter-se à experiência estética, se permitir que esta o envolva e o espante – como Gertrude Stein relatou o espanto de Alice B. Toklas diante das Demoiselles –, só aí você tem acesso a ela. É no contágio da arte que os tipos de conhecimento, o isento e o comprometido, se mesclam, e desaparece a distinção entre o que tem e o que não tem acesso à obra. Nem todo quadro conta com essa força irresistível de contágio. Poucas obras de arte impõem o modo de experiência estética que o jovem Nietzsche chamou de “confronto com a realidade nua”. E este, sem dúvida, é o motivo pelo qual Picasso empenhou-se em fazer de sua criação um pedaço de “natureza crua e selvagem com o intrépido semblante da verdade”. Ele buscava a imersão orgiástica e a liberação dionisíaca.25
É evidente nesses parágrafos que o apelo de Steinberg ao Nascimento da Tragédia serve para sublinhar o modo como as Demoiselles conseguem sobrepujar e “arrebatar” seus espectadores. De acordo com Nietzsche, nas primeiras festas dionisíacas, a partir das quais surgiriam depois as tragédias, apenas o coro estava sempre presente, ou seja, não havia distinção entre os atores – ou a atuação deles – e os assistentes. Em certo nível, essa indistinção inicial perdurou mesmo quando, ao se desenvolver, a forma da tragédia ática tornou-se cada vez mais submetida ao controle e à diferenciação apolíneos. “No fundo, não se dava nenhuma contraposição entre público e coro”, afirmou Nietzsche, “pois tudo era somente um grande e sublime coro de sátiros bailando e cantando ou daqueles que se faziam representar através desses sátiros.”26 Ou seja, todos os presentes participavam igualmente do estado dionisíaco de ekstasis; e esta era justamente a “experiência” da tragédia, com os atores, a encenação e a própria peça escrita não passando de meios para sua realização. Considero que algo similar seja o principal motivo da invocação, por Steinberg, da tragédia dionisíaca diante das Demoiselles: de maneira fundamental, nós, os espectadores do quadro, estamos implicados na obra. Como participantes, mais do que espectadores, nosso lugar não é concebido como sendo afastado nem contraposto à obra, como se fôssemos sujeitos diante de um objeto. E seria até mesmo o caso de dizer que somos, como atores no palco, simplesmente o modo como ocorre a obra, o veículo pelo qual ela vem a existir.27 Com efeito, é justamente isso o que diz “O Bordel Filosófico”: “Sem a mútua dependência entre assistente excitado e estrutura pictórica não existe o quatro”.28 Precedentes na História da Arte Mais do que qualquer desacordo sobre a importância relativa de Eros e Tânatos, o que distingue as interpretações de Steinberg e Rubin é o empenho deste para isolar as Demoiselles de seus espectadores. Ainda que enfatize o desaparecimento das figuras masculinas na composição, no fundo ele não leva em conta o redirecionamento simultâneo dos olhares das mulheres.29 Na melhor das hipóteses, podemos imaginar que tenha feito uma alusão oblíqua a esse redirecionamento ao alegar, no princípio do ensaio, que as Demoiselles serviram como veículo para a “incessante confrontação consigo mesmo” de Picasso.30 Neste caso, contudo, mais vale considerar o quadro como tendo se voltado, não em nossa direção, a de seus espectadores 6
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(como afirmava Steinberg), mas na direção do artista. E a ênfase na relação de Picasso com as Demoiselles por Rubin efetivamente nos protege, em sua explicação, de qualquer envolvimento direto com a obra.31 Será conveniente aqui aguçar essa distinção entre ambos os ensaios se também levarmos em conta as respectivas tradições de história da arte a que pertencem. O artigo de Rubin, parece-me razoável afirmar, mantêm-se inteiramente no âmbito da tradição interpretativa de Erwin Panofsky, no sentido de que seus métodos poderiam ser geralmente descritos como iconológicos – e não, ressalte-se, meramente iconográficos. A distinção é evidente no objetivo de Rubin de recuperar para as Demoiselles não só quaisquer significados convencionais ou preestabelecidos passíveis de serem identificados no quadro, mas também, e sobretudo, aqueles condicionados pela psicologia individual de Picasso, assim como pelas predisposições culturais da Paris do início do século XX.32 A compreensão de Rubin quanto aos aspectos da obra portadores de significado é igualmente abrangente, estendendo-se muito além do tema e abrangendo características que se poderiam considerar mais propriamente estilísticas. Rubin chega até mesmo a afirmar que, nas Demoiselles, “pela primeira vez, o estilo toma o lugar do tema como portador de conteúdo”. “Estamos numa altura da trajetória de Picasso”, diz ele, “na qual o estilo deixa de ser uma linguagem ou um meio fixo, a priori [...] [e em vez disso torna-se] uma série de modos de representação opcionais que podem, por si mesmos, transmitir minúcias de sua mensagem.”33 O mais relevante a se reter de tais comentários, e aquilo que os vincula à tradição de Panofsky, é o pressuposto básico de que a função da pintura é, sobretudo, a de transmitir uma mensagem – de ser, nas palavras de Rubin, uma “portadora de conteúdo”. Em contraste, o “Bordel Filosófico” de Steinberg está bem mais próximo, no campo da história da arte, do legado de Aloïs Riegl. Ao discutir a reorientação por que passaram as Demoiselles entre os esboços prévios e o quadro final, Steinberg refere-se explicitamente ao estudo de Riegl sobre o retrato de grupo holandês.34 Seu intuito era nos chamar a atenção para o fato de a coerência interna, tão evidente nos primeiros esboços das Demoiselles, ter sido desenfatizada no quadro final, em grande parte substituída por uma coesão externa. Enquanto a coesão inicial era unificada por uma narrativa implícita – e pela ação coordenada das mulheres que giravam as cabeças (ou pelo menos se inclinavam) como reação à entrada do estudante de medicina –, o quadro, sustentava Steinberg, segue “um contraprincípio antinarrativo”, bem similar ao dos primeiros retratos de grupo holandeses que tanto interesse despertaram em Riegl. De novo, essa reorientação da composição fez com que, no dizer de Steinberg, as Demoiselles deixassem de ser “a representação de uma aventura desfrutada por um ou dois homens e [tenham se tornado] uma experiência nossa, ou seja, uma experiência do quadro”.35 E isto, a meu ver, sugere ainda outra maneira pela qual se poderia marcar a diferença entre os ensaios de Rubin e de Steinberg: para o primeiro, o que o quadro propõe é um significado, ao passo que, para este último, o que se propõe é uma experiência. Valeria ainda a pena acrescentar que, ao fazer essa distinção, não estou sugerindo que Steinberg considerava o quadro desprovido de significado. Trata-se, simplesmente, do fato de ele conceber o significado não como atributo do quadro, e sim como um de seus efeitos. Dada a natureza dionisíaca das Demoiselles, contudo, devemos evitar supor que aquilo que é proposto pelo quadro seja uma experiência subjetiva – no mínimo, deveríamos evitar supor que sabemos o que está implicado nesse termo.36 Até mesmo Riegl, por sua vez, teve o cuidado de distinguir entre três modos distintos de subjetividade, ou, melhor dizendo, três maneiras distintas pelas quais um indivíduo poderia se posicionar seja em relação à obra de arte, seja em relação ao mundo. A vontade (Wille), explicou ele, requer uma exibição de autonomia e poder na qual o sujeito busca subordinar ou assimilar algo que lhe é externo; não menos absorta em si é a emoção (Gefühl), ocasionada seja pelo pathos, seja pela busca deliberada do prazer. Todavia, a atenção (Aufmerksamkeit) – a atitude 7
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que, para Riegl, os retratos holandeses tanto representavam como estimulavam em seus assistentes – “permite-se ser afetada, e não subjugada, pelos objetos externos”.37 É um “estado mental”, colocou Steinberg, parafraseando Riegl, “que dissolve a distinção entre ativo e passivo”,38 pois envolve uma deliberada abdicação do poder, uma colocação de lado das vãs ilusões de Wille e Gefühl.39 No caso das Demoiselles, poderíamos dizer, nossa atenção é o que permite ao quadro exercer plenamente seu efeito; e, também, o que primeiro nos abre (e assim nos torna disponíveis) para a radical experiência dionisíaca da obra, na qual se confundem todas as nossas relações usuais enquanto sujeitos diante de objetos, e onde tem início o próprio desmoronamento dessa oposição. Igualmente memorável é que o método panofskiano atuante na abordagem das Demoiselles por Rubin foi desenvolvido, em medida nada desprezível, como reação ao impacto de Riegl na disciplina.40 Tanto o estudo do retrato em grupo holandês por Riegl, como sua discussão anterior do jogo entre o “háptico” e o “óptico” na arte romana tardia refletiam uma convicção que o estudioso vienense exprimiu pela primeira vez bem no início de sua carreira – a saber, a de que o estudo da relação entre o observador e a obra era a própria matéria da história da arte, justamente aquilo que deveria constituir o futuro da disciplina.41 Em contraste, em seu ensaio de 1920 sobre a noção de Kunstwollen proposta por Riegl, Panofsky afirmou, em óbvia contradição com o próprio Riegl, que “a intenção artística da arte tem de ser rigidamente separada [...] do reflexo dos fenômenos artísticos na consciência contemporânea, ou, na verdade, do conteúdo mediado pela experiência de observadores mais recentes”.42 Panofsky estava convencido de que o estudo rigoroso da arte só deveria proceder em conformidade com princípios que não derivassem, de maneira nenhuma, de uma experiência da obra, mas fossem, pelo contrário, aduzidos a essa experiência de modo a lhe conferir inteligibilidade. O que se precisava, afirmou, era algo similar aos conceitos a priori da “razão pura”, os quais na epistemologia kantiana proporcionavam os fundamentos das ciências naturais.43 Evidentemente, há aí certa ironia nesse apelo de Panofsky a Kant, uma vez que o próprio Kant insistia que as experiências estéticas eram justamente aquelas para as quais eram inadequados os conceitos determinantes. E Kant até mesmo sustentava que, em determinados encontros estéticos (aqueles que associava ao “sublime”), nossa capacidade conceitual existente era completamente sobrepujada, uma vez que a coisa em questão era simplesmente espantosa ou poderosa demais para ser assimilada por nós.44 Assim, a discussão mais geral da arte e da estética não foi incluída por Kant na primeira Crítica (a da Razão Pura), e sim na terceira, A Crítica do Juízo. Ao basear seu método iconológico em uma epistemologia kantiana da Razão Pura, Panofsky especificamente o fechou para a possibilidade de que uma obra de arte pudesse exceder ou existir para além de seu significado. O intuito de Panofsky era sobretudo escapar às indeterminações do juízo e assegurar para a história da arte um “ponto arquimediano”, a partir do qual ela pudesse apreender o “sentido derradeiro presente no fenômeno artístico (não para nós, mas objetivamente)”.45 Como nos esclareceram Michael Ann Holly e outros, ele acabou por encontrar um modelo desse tão desejado ponto arquimediano no sistema renascentista da perspectiva linear.46 Afinal, o triunfo desse sistema fora sua aparente objetificação do subjetivo – sua racionalização das coordenadas do espaço psicofisiológico –, um feito alcançado por meio do estabelecimento do que se poderia chamar de “distância apropriada” entre o observador e seu campo de interesse (fig. 5). 47 E é aí onde esta longa digressão sobre Panofsky nos conduz de volta a nosso tema, as Demoiselles d’Avignon: pois, na medida em que se atém ao sentido imanente desse quadro e de seus esboços prévios, Rubin pode ser visto como assumindo um ponto de observação em relação à obra mais ou menos análogo à posição delimitada por Panofsky. Aderindo mais aos termos preparados para nós pelo próprio quadro – e considerando o diagnóstico de Rubin deste como estando relacionado ao simbolismo da enfermidade e da degeneração física –, talvez com efeito fosse mais apropriado afirmar que ele assumiu um ponto de observação análogo ao do estudante de medicina. Essa 8
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perspectiva é, claro, bem específica, mas sua distância ainda assim permite a Rubin imaginar que não está em nenhum lugar em particular ou, de qualquer modo, que está fora do quadro. Ele é o observador desinteressado, o homem à parte, que não corre nenhum risco: nem o de contagiar as demoiselles, nem o de ser por elas contagiado.48 À essa luz, o fato de Rubin ter caracterizado a concepção do quadro por Steinberg de “excessivamente restrita” – e de ter lidado “apenas com um dos lados da equação” – parece bastante irônico. Uma leitura cuidadosa sugere que, na verdade, Rubin é que restringiu seu foco e ateve-se estritamente a apenas metade da experiência que as Demoiselles têm a oferecer. E isto, a despeito de Steinberg ter alertado explicitamente contra a adoção de tal visão parcial: A obra [...] não é uma abstração que existe por si mesma, uma vez que o observador solicitado é um fator constituinte. E nenhuma análise das Demoiselles como estrutura pictórica delimitada faz jus à obra em toda a sua plenitude. O quadro é uma onda de maré de agressão feminina; trata-se de experimentar as Demoiselles como um ataque, ou de se proteger contra ele.49
A Escrita contra o Método Quase todas as várias e recentes leituras equivocadas de “O Bordel Filosófico” partiram, a meu ver, do pressuposto errôneo de que a perspectiva que este oferecia sobre as Demoiselles era capaz de acomodar uma gama de metodologias – o que então tornava relevante a questão de quais métodos e procedimentos seriam aplicáveis ao quadro de modo a torná-lo mais plenamente inteligível. Em função desse entendimento, a distinção entre os ensaios de Steinberg e de Rubin mostra-se por si mesma em grande parte metodológica, uma consequência dos diferentes enquadramentos conceituais adotados pelos autores em suas respectivas abordagens da obra. Que isto não passa de um entendimento equivocado da situação talvez seja mais perceptível pelo fato de que não há como afirmar propriamente que “O Bordel Filosófico” adote algum método – pelo menos, não quando se entende o “método” no sentido da iconologia de Panofsky, ou seja, como um procedimento sistemático e estabelecido, passível de ser dominado e em seguida aplicado a uma variedade de objetos distintos. Uma vez mais, Panofsky estava convencido de que a interpretação histórica da arte só era possível a partir de princípios a priori que fossem aplicados à obra, e de maneira nenhuma derivados da experiência dela. Em contraste, “O Bordel Filosófico” é quase todo uma articulação da experiência, e portanto não uma questão de método, mas de descrição e juízo – ou seja, de escrita.50 Daí que a abordagem das Demoiselles por Steinberg possa, ela mesma, ser ajuizada apenas no plano da linguagem específica, nas cadências variadas de sua prosa efetiva. Basta ouvir, por exemplo, o trecho a seguir, relativo às figuras e ao espaço na porção esquerda do quadro: O que [Picasso] busca é uma pulsação incessante e uma presença reativa. Assim a dobra ao fundo na cortina é firmada por aquela que a segura. O rígido perfil dessa figura confina com uma gisante rampante, emparelhada com um nu colunar, o qual por sua vez se sobrepõe à quina projetante da mesa. Nossa visão arqueja para dentro e para fora; uma pressão variável, como o balanço de um bote em alto mar, ou uma similitude de energia sexual.51
O tom quase extático do final do trecho sugere que Steinberg assumiu, com efeito, o papel do “marinheiro”, do participante ou do iniciado. E no entanto esse tom e as imagens que 9
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o acompanham são bruscamente descartados na linha seguinte – “Símiles permissivos”, diz o texto – e retorna-se a uma linguagem mais equilibrada. E seria possível apontar outros trechos similares; ao longo de todo o “Bordel Filosófico”, alternam-se constantemente duas ou mais vozes distintas. Reiteradamente topamos com trechos nos quais, às vezes de maneira breve, em outras mais extensa, um tom “poético” e claramente vago interrompe e aviva rigor dos procedimentos eruditos. Se quisermos ser um tanto prosaicos e literais a esse respeito, podemos associar tais vozes às duas figuras masculinas dos desenhos preparatórios e ouvi-las como resquícios das intenções originais perante as Demoiselles. Mais ou menos no mesmo sentido, poderíamos também querer ouvir essas vozes como uma reação ao que Yve-Alain Bois, ao comentar o “Bordel Filosófico”, descreveu como os movimentos contraditórios de “protensão” e “retenção” incentivados pelo quadro.52 De tais movimentos é emblemática, afirma ele, a assustadora figura agachada no canto direito inferior: a mesma que Steinberg descrevera como uma “anfibologia espacial”, ao mesmo tempo voltada para o interior do aposento e fitando diretamente para fora. Também poderíamos apontar a “gisante rampante”, a segunda figura a partir da esquerda. Como demonstrou Steinberg, ela parece convidadoramente reclinada, mas também poderíamos vê-la como rigidamente ereta – e aí, “liberta da atração gravitacional, ela chega como um projetil”.53 Se o espaço pulsante e latejante engendrado por essas figuras é com efeito uma “similitude de energia sexual”, ele também modela a alternância de atração e repulsão – de absorção e de afastamento compensador –despertada em nosso encontro com as Demoiselles.54 O “Bordel Filosófico” menciona explicitamente o preço da admissão: você precisa deixar que o quadro “o arrebate e o espante – tal como Gertrude Stein disse que Alice B. Toklas ficou espantada com as Demoiselles [...]”. De maneira mais sutil, as vozes alternantes do ensaio sugerem que, na verdade, esse preço de admissão deve ser pago repetidas vezes ou, de qualquer modo, em mais de uma ocasião. Elas sugerem, em outros termos, que, por maior que seja nossa atração pelo quadro, sempre ficaremos um tanto abalados pela alteridade radical das Demoiselles. Claramente, tal efeito se deve, de modo mais explícito, aos semblantes femininos que lembram máscaras; tendo sido convocados pelo quadro, acabamos paralisados pelo próprio retraimento inumano das demoiselles, pelo modo evidente com que se esquivam. Ao escrever a respeito desses rostos – “máscaras de paixão impessoal sem a menor interferência da personalidade” –, Steinberg as compara especificamente às máscaras da antiga tragédia grega.55 De acordo com Nietzsche, estas originalmente tinham como objetivo conferir um semblante ao dionisíaco e, portanto, um foco visual ao frenesi extático do coro. Mas o efetivo aparecimento das máscaras foi uma contribuição apolínea ao drama, uma vez que Dioniso, incompreensível e fundamentalmente elusivo, não era em si mesmo passível de representação visual.56 Algo muito parecido poderia ser dito a respeito das máscaras africanas que tão intensamente impressionaram Picasso quando as viu na coleção etnográfica do Trocadéro: o propósito delas (mesmo, ou sobretudo, em seus contextos originais) era o de conferir uma forma material a seres tão radicalmente distintos que não se podiam manifestar de outro modo. Nesse sentido, os rostos similares a máscaras das demoiselles também podem ser tidos como emblemáticos de “protensão” e “retenção” – da tangibilidade e do retraimento simultâneos – que parecem característicos do quadro como um todo. Além disso, seria possível dizer que a questão das máscaras está no próprio cerne (e na própria escrita) de O Nascimento da Tragédia – e este é o motivo pelo qual Steinberg o invoca, tanto no ensaio como em sua discussão das Demoiselles em geral. Afinal, o objetivo explícito de Nietzsche fora o de proporcionar visibilidade ao dionisíaco. Desde o aparecimento de Sócrates (e de seu co-conspirador, Eurípides), o dionisíaco, segundo Nietzsche, havia sido deliberadamente obscurecido. Não que o jogo do apolíneo e do dionisíaco houvesse cessado – o que era 10
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impossível –, mas a razão socrática conseguira voltar a ocultação dionisíaca contra si mesma. O dionisíaco persistia, sem ser reconhecido – até que O Nascimento da Tragédia nos despertou outra vez para sua existência. O problema com que se defrontou Nietzsche (e o que confrontou Steinberg ao se colocar diante das Demoiselles) era o de como evocar o aspecto dionisíaco da arte, a que linguagem recorrer?57 De novo, qualquer tentativa de articular os traços do dionisíaco envolveriam necessariamente uma imposição de limites (apolíneos), de modo que sua expressão somente poderia ser parcial e deslocada. Mas a linguagem poética ou metafórica – a linguagem, em outros termos, que reconhecia tanto sua parcialidade como sua condição de deslocamento – era vista por Nietzsche como imensamente preferível à linguagem socrática dos conceitos, cuja reivindicação a compreender as coisas em si efetivamente ocultava a natureza metafórica do pensamento.58 É por isto que, em sua “Tentativa de Autocrítica” posterior, Nietzsche exprimiu pesar pelo que lhe parecia, em O Nascimento da Tragédia, uma abordagem demasiadamente conceitual do dionisíaco. Até chegou a mencionar a “voz estranha” à qual se conformara sua argumentação, a voz de um “discípulo de um ‘deus ainda desconhecido’, disfarçado sob o manto do erudito”: “Ela deveria ter cantado, essa “alma nova” – e não falado! O que na época tinha a dizer – é uma pena que não tive a coragem de o dizer como poeta”.59 Não podemos deixar de notar, porém, que a “Autocrítica” também não é “cantada”, o que nos leva a supor que não há como eliminar de todo o tom socrático, que com efeito ele se tornou inextricavelmente ligado ao qualquer empenho atual em filosofia (ou, mesmo, em história da arte).60 A despeito disso, ainda ouvimos em O Nascimento da Tragédia uma voz passional e marcadamente “poética”, que reiteradas vezes emerge do discurso filosófico mais sóbrio por meio do qual procede a argumentação lógica do livro. Os próprios termos “apolíneo” e “dionisíaco” são pronunciados especificamente nessa voz, e Nietzsche explica de que modo “tomou emprestado esses adjetivos dos gregos, os quais revelaram os mistérios profundos de suas doutrinas artísticas por meio de figurações, e não por meios estritamente conceituais”.61 De fato, a linguagem figurada – a metáfora – parece uma caracterização apta de todas as tentativas de articular o dionisíaco por parte de Nietzsche.62 Seria possível dizer quase o mesmo, evidentemente, da voz “poética” de “O Bordel Filosófico”. Também ela busca descrever uma experiência da arte em uma linguagem metafórica de figuração, e não apenas de apreensão conceitual.63 Além disso, ela parece se mostrar de maior eficácia apenas naqueles passos onde o que se articula é, ao mesmo tempo, nossa continuidade com ou vinculação à obra e a sua alteridade alienante. Considere-se, por exemplo, o trecho a seguir, que se refere ao “espaço quase cubista” à direita das Demoiselles: Nenhum termo aproveitado de outra arte – seja da pintura anterior, seja do cubismo subsequente do próprio Picasso – descreve o drama de tanta profundidade sob tensão. Esse é um espaço interno comprimido, como o interior de um fole dobrado, como a sensação de um bolso habitado, uma bainha que se contrai pelo calor do apinhamento humano.64
Seria difícil imaginar uma descrição do espaço pictórico mais vividamente figurada do que “a sensação de um bolso habitado”. Os parágrafos seguintes continuam mais ou menos no mesmo teor, mesmo quando atribuem a origem dessas metáforas à estrutura da própria obra: As Demoiselles d’Avignon parecem-me ter um tema insistente, para o qual tudo no quadro contribui: o interior despojado do bordel, a cumplicidade masculina em uma orgia de exibição feminina, o engajamento direto, a ação espasmódica, a liberação explosiva em um espaço constringido e a reciprocidade de envolvimento e penetração. O quadro é ao mesmo tempo abrangente e transfixado; ele arremete, sobrepuja e se trespassa. E deve ser visto tal como foi pintado – pendurado 11
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baixo em um aposento pequeno, no qual transborda, penetrando com a cunha protuberante da mesa. Em certo sentido, o quadro todo é uma metáfora sexual, e toda a arte de Picasso concorreu para articular o erotismo do quadro. Mas também é o oposto, uma união forçada de imagem onírica e efetividade. O quadro trata da imagem em sua alteridade imbricada ao mundo real. E tal como os místicos do passado, que usavam a metáfora sexual para expressar a união com o divino, também Picasso recorreu à sexualidade para tornar visível a imediaticidade da comunhão com a arte. A forma explosiva e o conteúdo erótico tornam-se metáforas recíprocas.65
Esses parágrafos são, deve-se salientar, da conclusão de “O Bordel Filosófico”, constituindo um resumo final de sua interpretação que também serve como uma espécie de clímax do texto. Aqui nota-se muito pouco do tom erudito que marcara algumas das passagens anteriores – e em consequência somos convidados a imaginar que a voz do “estudante” acabou afinal sendo afogada pelos devaneios extáticos do iniciado “dionisíaco”. O Dionisíaco e o Sublime Nesta altura, sem dúvida alguns leitores devem estar achando que me apoiei demais em O Nascimento da Tragédia ao fazer minha defesa de “O Bordel Filosófico”. Provavelmente vão me lembrar que Steinberg só se referiu explicitamente a Nietzsche em três ocasiões durante o ensaio – algo que dificilmente eu poderia negar. Mesmo assim, gostaria de insistir no papel central dessas três passagens para a interpretação das Demoiselles cada vez mais expansiva proposta por Steinberg.66 Minha suspeita é que Steinberg atenuou deliberadamente os aspectos nietzschianos de seu ensaio por temor de que o Nascimento da Tragédia viesse a ser considerado a “chave” interpretativa do quadro, e que se empreendesse uma exaustiva busca nos desenhos preparatórios por “temas” dionisíacos disfarçados.67 Imagino ainda que, para Steinberg, a experiência das antigas festas dionisíacas, tal como descrita por Nietzsche, não passava de uma metáfora ou uma analogia para a experiência distinta proporcionada pelas Demoiselles, e que não lhe interessava nem um pouco ofuscar o confronto direto com esta obra. Ainda que na discussão precedente eu mesma tenha insistido em apelar a Nietzsche, também procurei compensar isto com referências a outros que defenderam posições similares sobre a arte e sua relação com o mundo: Bataille, por exemplo, e (em uma nota) Jacques Lacan – e certamente Martin Heidegger também poderia ser incluído nesse rol.68 Minha esperança é que, dessa maneira, pudéssemos vir a considerar tanto “O Bordel Filosófico” como as Demoiselles d’Avignon não como dependentes do Nascimento da Tragédia, mas, em vez disso, tal como as obras de Bataille e Lacan, como referindo-se a este texto ao levarem em conta a natureza da experiência artística.69 Todavia, a fim de avaliarmos plenamente tal comprometimento – assim como as demandas que, de modo implícito, este coloca ao leitor do “Bordel Filosófico” e ao espectador das Demoiselles –, precisamos agora retomar alguns dos fios que ficaram soltos em passagens anteriores deste ensaio. Alguns deles nos levam diretamente de volta a Kant, assim como a várias questões relacionadas com as escolhas feitas por Panofsky ao reforçar sua visão particular da história da arte. Acima de tudo, gostaria de retomar o relato feito por Kant da experiência do sublime. A meu ver, essa experiência, tal como ele a descreve, tem muito em comum com as tragédias gregas antigas que cativaram Nietzsche, e também com o que Steinberg queria nos dizer a respeito das Demoiselles de Picasso.70 Para Kant, o sublime é o que caracteriza nossos encontros com algo tremendo (uma tempestade no mar, por exemplo) e diante do qual nos sentimos quase assoberbados. Todas 12
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as categorias conceituais ao nosso alcance, toda a nossa capacidade mental, se mostram completamente inadequadas para assimilar isso. Trata-se, segundo Kant, de uma experiência em princípio quase intolerável – que nos faz recuar –, e no entanto ela termina em algo muito parecido com o prazer.71 Tal mudança não se dá, porém, por que afinal acabamos encontrando os conceitos que nos permitem absorver o poder do mar; permanecemos impotentes, e com efeito toda a experiência tende a se perder caso insistirmos a enfocá-la de um ponto de vista “científico” ou erudito. Em vez disso, temos de ser capazes de contemplar o oceano como os poetas, apenas em termos do que se manifesta ao olhar – isto é, se o observamos enquanto está calmo, como um límpido espelho limitado apenas pelo céu; ou, quando turbulento, como um abismo ameaçando engolir tudo – e no entanto o achamos sublime.72
De acordo com Kant, o prazer que auferimos em tais experiências surge sobretudo de uma autodescoberta – a descoberta em nós de uma capacidade da qual não sabíamos possuir, ou, ao menos, possuir nesse grau. Ao tentar entender a natureza dessa capacidade, especificamente no que tange ao trecho acima citado, Stephen Melville escreveu: O que atinge o olho – e, sem encontrar acesso, evidentemente refratase e permanece externo – também é aproveitado por nós, e essa transição é qualificada pelo “como”: a imensidão do mar do mar nos escapa e, ainda assim, nós a vemos diante de nós como [...] um límpido espelho limitado pelo céu. A infinitude do céu estrelado nos escapa e, ainda assim, ele continua ali estendido como [...] uma imensa abóbada abrangendo tudo. Com efeito, o que se revela nesses exemplos parece muito com [...] no sentido mais concreto, uma capacidade para a metáfora.73
Desenvolvendo essas implicações, seria possível afirmar que, em nosso encontro com a extrema alteridade do sublime, descobrimos em nós mesmos uma voz poética, jamais ouvida, que é capaz de articular (ainda que por meio de certa vinculação e deslocamento) algo da experiência que, de outro modo, nos eludiu. Autodescobertas “Há uma noção espanhola clássica de que a autodescoberta ocorre no trato com o outro, de que um encontro de pessoas é um espelhamento recíproco.”74 Steinberg faz essa observação na metade final de “O Bordel Filosófico”, em uma seção na qual examina a possível relação entre as Demoiselles e o último quadro importante que as precedeu na obra de Picasso, as Duas Mulheres, de 1906. Na verdade, Steinberg está empenhado em uma espécie de fantasia, imaginando que as duas mulheres do quadro anterior sejam efetivamente uma única, idêntica a si mesma – até que a primeira dá um passo através da cortina aberta e, nesse momento do “trato” com a alteridade que nós representamos, transforma-se na figura assombrada e assombradora que, nas Demoiselles, espia desde o fundo. Embora reconhecendo tratar-se de uma fantasia, Steinberg persiste: “Pois tanto as Duas Mulheres como as Demoiselles tratam da condição humana, daquele momento perpétuo no qual o conhecimento de si mesmo manifesta-se no confronto sexual”.75 Poderia ter acrescentado – e suponho que este seja o ponto principal da fantasia em toda a sua 13
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amplitude – que o conhecimento de si também pode surgir do confronto com um quadro que emprega uma metáfora sexual para nos mostrar o modo como nos colocamos diante dele, face a face, nós mesmos igualmente expostos. “Mas cumpre ter sempre presente no espírito”, escreveu Nietzsche, “que o público da tragédia ática reencontrava a si mesmo no coro da orquestra.”76 Este era o motivo pelo qual “a assistência e o coro jamais eram fundamentalmente colocados em oposição um ao outro”; aí estava, de fato, a própria raison d’être da arte dionisíaca. Não estando plenamente presentes para eles mesmos, os membros da assistência voltavam-se para a extrema alteridade da tragédia como para uma espécie de espelho no qual podiam se ver refletidos.77 Todavia, evidentemente não saíam ilesos da experiência – o que significa dizer, nunca era exatamente o mesmo eu que estava envolvido nesse processo de autodescoberta especular. Steinberg ressalta em grande parte o mesmo ponto ao conceder que a figura nas Demoiselles “não é o ‘mesmo’ personagem que aquele que se move para fora nas Duas Mulheres”: “Para Picasso, mais importante do que uma identidade subjacente é justamente a mudança de caráter implícita nos dois estados – da simplicidade direta à articulação com arestas aguçadas”.78 No meu entendimento, esta é outra vez uma maneira de dizer que o processo de descoberta de si sempre é um processo de vir-a-ser (e, assim, de se tornar algo distinto) – daí a referência de Steinberg a “esse momento perpétuo no qual se manifesta do conhecimento de si mesmo”. Do mesmo modo, o jogo de vozes em “O Bordel Filosófico” é mais bem entendido não como um diálogo entre dois interlocutores, mas como um monólogo no interior de um personagem cindido. Todo o ensaio pode ser lido, assim, como uma narração ou encenação da descoberta de si: a transformação do observador indiferente através de seu encontro (ou, ousaria dizer, dela) com as Demoiselles. A diferença entre as duas vozes do ensaio, portanto, seria precisamente a diferença estabelecida pela própria obra. “O Bordel Filosófico” nos mostra como os esboços originais para as Demoiselles haviam tentado expor (externamente, por assim dizer) um contraste entre “conhecimento externo” e “iniciação” – e, em seguida, de que modo o quadro se reorientava, reinfundindo esse drama na própria substância da nossa experiência. As demoiselles não nos confrontam como observadores desinteressados, e tampouco nos proporcionam seja a inteligibilidade, seja o controle. Pelo contrário, parece que existem especificamente para nos afastar desse tipo de relação com a visão e o conhecimento, para nos fazer lembrar de nosso olhar “descontínuo”. Através da experiência da obra, somos forçados a admitir a inadequação da análise conceitual e, assim, a confrontar o quadro em um terreno perceptivelmente alterado.79 Decerto, é possível afirmar que as Demoiselles nos permitem ver que, na realidade, nossa imparcialidade acadêmica não passa, ou não passou, de um desvio – de um meio de nos esquivar – da cisão em nós mesmos insistentemente requerida pelo quadro. É justamente essa cisão, esse processo de vir-a-ser, de que trata essa obra. Claro que podemos recusar toda a experiência e simplesmente continuar como antes, mas aí teremos perdido justamente aquilo que mais diferencia o quadro de seus esboços preparatórios convencionais e um tanto banais. Ficaríamos intocados pelas Demoiselles.80 Aqui me ocorre a tentação de citar Hans-Georg Gadamer, para quem essa é a estrutura de todo encontro hermenêutico legítimo – o pensar com o outro, “e retornar a si mesmo como se fosse a um outro”.81 Todavia, dada a natureza dionisíaca das Demoiselles, parece mais apropriado retornar mais uma vez às palavras de Nietzsche: O que ocorre no coro dramático é o fenômeno dramático fundamental: projetar-se para fora de si mesmo [...] Não se trata mais da arte do rapsodo, que não se funde a suas imagens, mas [...] as contempla como algo que lhe é externo; o que temos aqui é o indivíduo que se anula por meio da entrada em um ser estranho. É preciso esclarecer que tal fenômeno não é singular, mas epidêmico: toda uma multidão é arrebatada dessa maneira.82 14
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Espero que tudo isso tenha explicitado a importância de se ter – e se ouvir – o jogo de vozes em “O Bordel Filosófico”. E talvez nos reste apenas lembrar que, se essas vozes devem ser tidas como articulando algo como um processo de autodescoberta, essa “descoberta” não envolve tanto a descoberta de si mesmo, mas antes sua abnegação ou perda.83 (“O que temos aqui”, como disse Nietzsche, “é o indivíduo se aniquilando por meio de uma entrada em um ser estranho.”) Decerto, ainda há estudiosos para quem a linguagem metafórica de “O Bordel Filosófico” é “explicitamente subjetiva”. Mais acurado, porém, me parece considerá-lo, pelo contrário, como exemplo daquela rara “objetividade” que permanece vinculada a seu objeto, atenta a sua especificidade.84 Seria um equívoco, em consequência, equiparar qualquer uma das vozes do ensaio com a voz do próprio Steinberg. Antes, caberia ver de que modo o ensaio dá voz a posições efetivamente articuladas no próprio quadro. Com efeito, nosso entendimento das Demoiselles depende, em grau acentuado, de considerarmos tais vozes não como as de um indivíduo particular, mas, pelo contrário, em certo sentido como algo comunal ou representativo – de tal modo que nos predisponha a tomá-las (ao menos provisoriamente) como nossas, e a nos imaginar aproximadamente colocados nos locais a partir dos quais parecem ter surgido. Se conseguirmos fazer isso, teremos então descoberto algo importante tanto sobre nós mesmos como sobre as obras de arte que nos convocam – e, também diria eu, não menos sobre a disciplina auto-imposta da história da arte.
Fontes Mais Citadas Nietzsche, Friedrich, Die Geburt der Tragödie, in Gesammelte Werke (Munique: Musarion, 1920), vol. 3, pp. 3-165. Kaufmann, Walter (trad.), The Birth of Tragedy (Nova York: Random House, 1967).
Rubin, William, “The Genesis of Les Demoiselles d’Avignon”, Les Demoiselles d’Avignon, ed. especial de Studies of Modern Art, no. 3 (Nova York: Museum of Modern Art, 1994), pp. 13-144. Steinberg, Leo, “The Philosophical Brothel”, October 14 (primavera de 1988): 7-74. 15
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1. “The Philosophical Brothel” foi originalmente publicado em Art News 71, nos. 5-6 (set.-out. 1972): 22-29, 38-47; uma versão revista foi traduzida ao francês para o catálogo da exposição sobre Les demoiselles (Hélène Seckel [ed.], Les demoiselles d’Avignon, 2 vols. [Paris: Réunion des Musées Nationaux, 1988]), organizada em 1988 pelo Musée Picasso, antes de aparecer em inglês, em October 44 (primavera de 1988): 7-74. Todas as citações remetem à paginação desta última versão.
2. Christopher Green (ed.), Picasso’s “Les Demoiselles d’Avignon” (Cambridge: Cambridge University Press, 2001). Infelizmente, devido a sua extensão, o próprio “Bordel Filosófico” não consta da antologia – algo que sem dúvida pouco contribui para facilitar a releitura cerrada do texto que espero estimular.
3. Christopher Green, “An Introduction to Les Demoiselles d’Avignon”, in Green, op. cit., p. 9. Em outro trecho do ensaio citado à nota 2, diz Green: “Sua imediaticidade, a forma direta pela qual os olhares de cada uma das prostitutas convidam o espectador, ressalta seu papel em um dos principais desenvolvimentos da arte no século XX: o reconhecimento do poder do espectador”.
4. O exemplo mais antigo do tipo psicobiográfico é Mary Matthews Gedo, “Art as Exorcism: Picasso’s Demoiselles d’Avignon”, Arts Magazine 55, no. 2 (out. 1980): 70-83. “The MoMA’s Hot Mamas”, de Carol Duncan (Art Journal 48, no. 2 [verão de 1989]: 171-78), e “New Encounters with Les Demoiselles d’Avignon: Gender, Race, and the Origins of Cubism”, de Anna Chave (Art Bulletin 76 [1994]: 596-611), são os exemplos mais conhecidos de textos que retomam a questão das Demoiselles pressupondo que o espectador está investido de certo poder ou autoridade sobre a imagem. Talvez seja o caso de ressaltar aqui que estes dois artigos empenham-se em uma crítica explicitamente feminista do quadro, direta ou indiretamente influenciada pelo difundido ensaio de Laura Mulvey, “Visual Pleasure and Narrative Cinema”, Screen 16, no. 3 (outono de 1975), publicado apenas três anos depois de “O Bordel Filosófico”. Que o espectador das Demoiselles (explicitamente não narrativo) não pode ser simplesmente equiparado ao espectador pressuposto no ensaio de Mulvey – e que a experiência proporcionada pela pintura é bem distinta do “gozo visual” – é algo que espero deixar claro mais adiante. Seja como for, uma maneira de se pensar sobre as diferenças entre a interpretação que extraí do texto de Steinberg e aquelas citadas acima gira em torno da diferença fundamental no modo como é entendido o que veio a ser chamado de “o Olhar”. Ver o verbete de Stephen Melville sobre “o Olhar”, em Michael Kelly (ed.), The Encyclopedia of Aesthetics (Oxford: Oxford University Press, 1998), vol. 2, pp. 284-86. 5. William Rubin, “La genèse des Demoiselles d’Avignon”, in Seckel (ver nota 1), vol. 2, pp. 368-487; uma versão revisada em inglês foi publicada como “The Genesis of Les Demoiselles d’Avignon”. 6.
Steinberg, p. 12.
8.
Ibid., pp. 63.
7.
9.
Ibid., pp. 41-43.
Ibid., pp. 45-46.
10. Este não é um ponto muito enfatizado pelo próprio Steinberg. Na verdade, seus comentários mais explícitos sobre o tema poderiam nos levar a crer que nosso ponto de vista é o do marinheiro. Porém, vou argumentar – como se verá adiante – que o fato de ocuparmos ambas as posições está implicíto de maneira geral na forma como Steinberg escreve sobre as Demoiselles. 11.
Alfred H. Barr Jr., Picasso: Forty Years of His Art (Nova York: Museum of Modern Art, 1939), p. 60.
13.
Steinberg, p. 41.
12. Steinberg, p. 43. A citação é de Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal, seção 168. ”O cristianismo deu a Eros veneno para beber – ele não morreu, é verdade, mas degenerou em Vício.” F. Nietzsche, Além do Bem e do Mal – Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad., notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 82. 14. 15. 16. 17.
Rubin, p. 45.
Steinberg, p. 43 Rubin, p. 56.
Ibid., pp. 57-58.
18. Ibid., p. 58. À p. 131, Rubin chega a incluir – presumivelmente com o intuito de estabelecer uma comparação formal – fotos de pacientes sifilíticos horrivelmente desfigurados pela doença. 16
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19. 20.
Ibid., p. 49.
Nietzsche, seção 16.
21. David B. Allison propôs uma interpretação especificamente freudiana da ekstasis da tragédia dionisíaca: “Esse estado vivenciado de [...] intensidade e dissociação emocionais, no qual já não mais se contêm nossas próprias pulsões – aquilo que mais tarde Freud descreveria como o nível psicológico de formação dos processos primários – é precisamente o estado dionisíaco de desindividuação ou desapossamento”. Ver Allison, Reading the New Nietzsche (Oxford: Rowman and Littlefield, 2001), p. 66. 22.
Nietzsche, seção 1; sobre essa questão, ver, por exemplo, Allison (nota 21), pp. 34-43.
23. Georges Bataille, Eroticism, trad. Mary Dalwood (Londres: Penguin Books, 2001), p. 15. “Nous sommes des êtres discontinus, individus mourant isolément dans une aventure inintelligible, mais nous avons la nostalgie de la continuité perdue. Nous supportons mal la situation qui nous rive à l’individualité de hasard, à l’individualité périssable que nous sommes.” Georges Bataille, L’érotisme [Paris: Minuit, 1957], col. 10/18, p. 20. 24. Ibid., p. 17. ”Sans une violation de l’être constitué – qui s’est constitué dans la discontinuité – nous ne pouvon nous représenter le passage d’un état à un autre essentiellement distinct. [...] Que signifie l’érotisme des corpos sinon une violation de l’être des partenaires? une violation qui confine à la mort? qui confine au meurtre?” [Idem, p. 22]. Vale a pena notar nesse contexto que Bataille também foi um admirador franco da obra de Picasso. Ver, em especial, seu ensaio sobre o artista: “Soleil pourri”, Documents, no. 3 (1930): 174, traduzido como “Rotten Sun”, por Allan Stoekl, in Georges Bataille, Visions of Excess: Selected Writings, 1927–1939 (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985), p. 57.
25. Steinberg, 46. Uma nota de rodapé menciona a popularidade do Nascimento da Tragédia, de Nietzsche, entre os artistas de Barcelona e de Paris na virada do século, sugerindo que Picasso provavelmente tinha conhecimento do texto.
26. Nietzsche, seção 8 (trad. J. Guinsburg, op. cit., p. 58). Tal ainda seria o caso, nos diz Nietzsche, até a entrada no palco de Eurípides que, em uma aposta para tornar mais compreensível a tragédia, restringiu o papel do coro. Apoiando-se em um “Socratismo estético, cuja suprema lei soa mais ou menos assim: Tudo deve ser inteligível para ser belo“, as peças de Eurípides também incluíam um prólogo resumindo os acontecimentos que haviam previamente transpirado, assim como tudo o que estava por vir; em consequência dessas mudanças, o público foi transformado, de participantes trágicos em meros espectadores do drama. Sobre tais questões, ver O Nascimento da Tragédia, seções 11-12.
27. Nietzsche escreve (seção 5), “Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação, tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro criador [Dioniso] desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte [...]” (trad. J. Guinsburg, op. cit., p. 47). Hans-Georg Gadamer faz uma alegação similar ao insistir em que a ontologia da obra de arte é melhor entendida por meio do modelo do jogo e, especificamente, do jogo dramático; ver Gadamer, Truth and Method, trad. Joel Weinscheimer e Donald Marshall (Nova York: Crossroads, 1989), esp. a seção 1.2.1.B. Igualmente pertinentes para nossa compreensão de “O Bordel Filosófico” e suas referências ao Nascimento da Tragédia são as observações seguintes, de uma leitura de Verdade e Método: “O que a obra faz ao espectador, sua Wirkung, foi desde Aristóteles incluído na definição do drama trágico. Que a tragédia representa os espectadores não é algo incidental, mas crucial para sua condição de tragédia, e o mesmo vale para a obra de arte em geral”. Ver Joel C. Weinsheimer, Gadamer’s Hermeneutics (New Haven: Yale University Press, 1985), p. 116. 28.
Steinberg, p. 47.
30.
Rubin, p. 13.
29. Nesse sentido, Rubin segue a argumentação de um ensaio anterior, no qual havia caracterizado as diferenças entre a composição dos esboços prévios das Demoiselles e a do quadro acabado como refletindo um movimento da narrativa para o “icônico” – este último sendo definido simplesmente como “um progressivo descomprometimento com o anedótico –, uma ênfase crescente na frontalidade e um desvio da dispersão para a concentração intensa no jogo das forças pictóricas”. Ver Rubin, “From Narrative to ‘Iconic’ in Picasso: The Buried Allegory in Bread and Fruitdish on a Table and the Role of Les Demoiselles d’Avignon”, Art Bulletin 65 (1983): 615-49. 31. Em relação a isso, talvez seja interessante ressaltar que Rubin (p. 44) também compara a uma peça de teatro, ainda que não à própria versão acabada das Demoiselles, pelo menos os desenhos prévios. Trata-se, porém, de uma concepção do drama muito pouco nietzschiana: “Tais desenhos deixam claro, creio eu, que desde o príncipio, o papel do estudante não era o de apresentar a peça, por assim dizer, abrindo a cortina, mas assinalar o finis com seu 17
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fechamento. Uma ação assim é mais coerente com o súbito olhar do marinheiro no primeiro esboço, e com a natureza de pelo menos um dos atributos simbólicos [do estudante], o crânio. Nessa medida, o estudante é o dramaturgo – o substituto do pintor – e, assim, detém nas mãos o destino das outras figuras”. Na tragédia grega, claro, o destino dos personagens não está nas mãos do dramaturgo (mais ou menos compelido ao resultado delineado no mito); em vez disso, estava sob o poder de algo profundamente inumano e excessivo, um fado trágico cuja escala superava em muito toda razão e compreensão.
32. É certo que, no ensaio “Der Begriff des Kunstwollens” (O conceito de Kunstwollens), de 1920, Erwin Panofsky argumentou com veemência contra o que via como “formas psicologísticas de interpretação”, e afirmou que a “intenção artística alcançada em uma obra de arte [...] não é uma realidade (psicológica)” (ver Panofsky, Aufsätze zu Grundfragen der Kunstwissenschaft, ed. de H. Oberer e E. Verheyn [Berlim: Hessling, 1964], pp. 199-208). Todavia, em sua posterior introdução a Studies in Iconology (Oxford: Oxford University Press, 1939), ele reconsiderou a possibilidade de uma análise psicológica. Como revela o famoso diagrama que acompanha esse ensaio (pp. 14-15), a interpretação no nível iconológico procede especificamente por meio de uma “intuição sintética (a familiaridade com as tendências essenciais da mente humana), condicionada por uma psicologia pessoal e a Weltanschauung”. 33.
Rubin, p. 59.
35.
Ibid., pp. 45-46.
34.
Steinberg, pp. 13-14.
36. Isto vale sobretudo no caso em que Steinberg (p. 13) caracteriza a unidade do retrato em grupo holandês como “não objetiva-interna, mas externalizada na experiência subjetiva do observador”.
37. Aloïs Riegl, The Group Portraiture of Holland, trad. de Evelyn M. Kain e David Britt (Los Angeles: Getty Research Institute, 1999), p. 75. Sobre essas questões, ver Margaret Olin, Forms of Representation in Aloïs Riegl’s Theory of Art (University Park, Pa.: Penn State University Press, 1992), pp. 165ss. Também caberia notar de passagem que algo muito parecido com Wille e Gefühl, segundo Nietzsche, foi justamente o que Eurípides introduziu na tragédia grega.
38. Steinberg, p. 13. Steinberg emprega um fraseado muito similar em um ensaio sobre a Anunciação de Filippo Lippi, na National Gallery, de Londres. Especificamente, ela aparece em sua descrição da teoria da visão de Roger Bacon, que, sugere Steinberg, Lippi adotou como uma espécie de modelo ao representar a impregnação da Virgem Maria pelo Espírito Santo. Resumidamente, Bacon sustentava que, ao contemplarmos algo, uma força ou “espécie” emana de nossos olhos e “altera e enobrece o meio interposto, tornando-o comensurável à visão, e preparando-o assim para a aproximação da espécie do objeto visível”. Essa teoria oferecia uma alternativa aos modelos existentes de introversão (na qual o olho apenas recebia passivamente a impressão da espécie vinda de fora) e de extroversão (que explicava a visão como resultado de uma emissão irradiante do olho que saía e apreendia os objetos no mundo). Não há talvez exagero excessivo se considerarmos a teoria baconiana como, grosso modo, análoga ao Aufmerksamkeit de Reigl, pois a visão tal como é descrita por Bacon parece moldar com perfeição uma atenção ativa mas desinteressada. É isto, conclui Steinberg, o que faz dela uma metáfora tão apropriada da recepção do Espírito Santo pela Virgem Maria, mostrada por Lippi como um ato de reciprocidade: os raios da pomba descendente encontram-se com outros que aparentemente saem do ventre da Virgem. Essa atenção desinteressada também é, sou tentada a acrescentar, o que faz da teoria baconiana um modelo apropriado para a contemplação pelo espectador da Anunciação – e, evidentemente, do olhar observador do próprio Steinberg. Ver Leo Steinberg, “ ‘How Shall This Be?’ Reflections on Filippo Lippi’s Annunciation in London”, 1a. parte, Artibus et Historiae 16 (1987): 25-53.
39. É importante no contexto da nossa discussão notar que Riegl sentia (de muitas maneiras como Nietzsche) o mundo moderno afligido por uma subjetividade excessiva. “A tendência dominante hoje”, escreveu ele, “é deixar a obra de arte desaparecer enquanto objeto físico e ser absorvida na experiência subjetiva interna do observador” (ver Riegl [nota 37], p. 64). Claramente, sua obra sobre os retratos holandeses foi concebida para mostrar que nem sempre este fora o caso, e também para abrir possibilidades alternativas de imaginação na arte contemporânea.
40. Na realidade, o “sentido imanente [immanenten Sinn]” que Panofsky como objetivo do estudo histórico da arte é uma deliberada reescritura do termo Kunstwollen de Riegl. Sobre isso, ver, por exemplo, Michael Ann Holly, Panofsky and the Foundations of Art History (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1984), pp. 79ss; Margaret Iversen, Aloïs Riegl: Art History and Theory (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1993), pp. 149-56; e Georges Didi-Huberman, Devant l’image (Paris: Éditions de Minuit, 1990), pp. 131ss. 41. Em nota para si mesmo, achada entre seus papeis relacionados com a obra Spätromische Kunstindustrie, Riegl escreveu: “Estética: relação das partes com o todo. Relação das partes entre elas. Não levou em conta a relação com o observador. A relação com o observador constitui história da arte. Seus princípios gerais constituem a estética histórica” (Riegl, Nachlass, caixa 9, pasta 2, cit e trad. in Olin [nota 37], p. 156). A nota deixa claro o fato de que Das Höllandische Gruppenporträt fora concebido, como o “Bordel Filosófico” de Steinberg, contra a estética formalista predominante. 42.
Panofsky, 1964 [nota 32], p. 38, cit. e trad. in Iversen (nota 40), p. 154. 18
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43. Sobre a virada de Panofsky para a epistemologia kantiana, ver Iversen (nota 40), pp. 152-56; e Didi-Huberman (nota 40), pp. 107 ss.
44. Mesmo assim conseguimos extrair algo de nossa experiência do sublime, segundo Kant. Mais adiante vou retomar essa questão. 45. 46.
Panofsky, 1964 (nota 32), p. 39.
Ver Holly (nota 40); e Michael Podro, The Critical Historians of Art (New Haven: Yale University Press, 1982).
47. Os paralelos entre a perspectiva renascentista tal como apresentada por Panofsky e o drama de Eurípides são inescapáveis. De ambos seria possível dizer que dependem de modo crucial do reposicionamento do espectador a certa distância da ação. De modo similar, a admiração de Panofsky pela perspectiva renascentista pode ser vista como uma manifestação do que Nietzsche denominou “Socratismo estético, cuja suprema lei soa mais ou menos assim: Tudo deve ser inteligível para ser belo” (ver nota 26 acima).
48. Claro o mesmo se poderia dizer das posições assumidas por vários outros estudiosos. É o caso, em especial de Michael Leja, em “’Le Vieux Marcheur’ and ‘Les Deux Risques’: Picasso, Prostitution, Venereal Disease and Maternity, 1899-1907”, Art History 8, no. 1 (mar. 1985): 66-81; e David Lomas (que chegou a ser de fato um estudante de medicina). Ver os dois ensaios de Lomas: “A Canon of Deformity: Les Demoiselles d’Avignon and Physical Anthropology”, Art History 16, no. 3 (set. 1993): 424-46, e “In Another Frame: Les Demoiselles d’Avignon and Physical Anthropology”, in Green (ver nota 2), pp. 104-27. 49.
Steinberg, p. 15.
51.
Steinberg, p. 33.
53.
Steinberg, p. 33.
50. “Juízo” aqui, como no restante deste ensaio, deve ser entendido no sentido kantiano de juízo reflexivo, que procede de um dado particular e busca, sem jamais alcançar, um a priori universal sob o qual esse particular poderia ser subsumido. É o fracasso de se apresentar como um universal adequado que relega tais juízos a uma linguagem descritiva (e não conceitual), e também deixa essa linguagem, nas palavras de Michael Baxandall, “heroicamente expostas”. Ver Baxandall, Patterns of Intention (New Haven: Yale University Press, 1985), p. 11. 52. Ao concluir sua resenha de “O Bordel Filosófico”, e sobretudo da explicação deste ensaio sobre como opera o quadro para nos atrair a ele, Yve-Alain Bois pergunta: “E no entanto, ao caracterizar esse quadro, não podemos falar de uma radical exclusão do espectador?” Em seguida, ele passa a descrever os “movimentos contraditórios de protensão/retenção visuais”, e de como poderiam ser tidos “como uma metáfora do coito”. Ver Bois, “Painting as Trauma”, Art in America 76, no. 6 (jun. 1988): 130 ss; republicado em Green (ver nota 2), pp. 31-54, com as referências à protensão e retenção a partir da p. 41. 54. Uma vez mais, poderíamos pensar no ensaio Erotismo, de Bataille (ver nota 23), e sobretudo sua discussão de como, enquanto seres descontínuos, ansiamos por nos livrar de nossa individualidade (e assim retomar nossa continuidade com o mundo), mesmo quando percebemos qualquer perspectiva de continuidade como uma violência voltada contra a nossa própria existência. Sob tal luz, seria possível dizer que aquilo que Bois como a “protensão” e a “retenção” estimuladas pelas Demoiselles é justamente uma manifestação do jogo batailliano da “continuidade” e “descontinuidade” colocado em prática no erotismo.
55. Steinberg, pp. 53-54. O trecho relevante é o seguinte: “[Os] rostos das mulheres deveriam ser orgiásticos; máscaras de paixão impessoal sem nenhuma interferência da personalidade. Como o coro original de sátiros que, para Nietzsche, deram à luz a tragédia grega, as rameiras de Picasso deveriam ser ‘seres da natureza que vivem atrás de toda civilização e preservam sua identidade através de cada mudança de geração e movimento histórico’. E a assimilação das formas africanas não passava de um derradeiro passo na incessante concretização de uma ideia – o trauma do encontro sexual vivenciado como choque animalístico, como um abandono até mesmo do amor pessoal – de novo, a sala de visitas revertendo à selva; de novo, a “natureza nua e selvagem com o intrépido semblante da verdade” de Nietzsche.
56. Existem, a meu ver, paralelos interessantes a ser traçados entre, de um lado, a discussão de Nietzsche sobre a relação entre o apolíneo e o dionisíaco, e, de outro, o relato de Jacques Lacan sobre o que denomina o Simbólico e o Real. (Presumivelmente, os textos de Bataille foram aí intermediários relevantes.) O Real de Lacan designa algo como a existência bruta – ou o que Maurice Merleau-Ponty, à sua maneira, descreveu como “a carne do mundo” (ver esp. Merleau-Ponty, The Visible and the Invisible, ed. Claude Lefort, trad. Alphonso Lingis [Evanston, Ill.: Northwestern University Press, 1968]). Ele é essencialmente pleno e contínuo consigo mesmo, mas 19
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não pode ser expresso ou articulado sem que se introduza a descontinuidade – ou seja, sem que imediatamente se entregue à significação e ao Simbólico. Assim, as máscaras da tragédia antiga poderiam ser descritas como uma expressão Simbólica (apolínea) do Real dionisíaco. E assim como ninguém será jamais capaz de chegar “atrás” do Simbólico para um encontro direito com o Real, também não há como se retirar a máscara do dionisíaco. Ela encobre justamente aquilo que manifesta, sem jamais nos permitir a dissociação de ambos. Sobre essas questões, ver Jean Granier, “Nietzsche’s Conception of Chaos”, in The New Nietzsche, ed. David B. Allison (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1977), pp. 135-41.
57. Que isto constituísse um problema para Steinberg é, evidentemente, se deve apenas ao fato de que também era um problema para Picasso. Este, como vimos, encontrou uma solução na “linguagem” das máscaras africanas e no espaço estranhamente descontínuo que criou nas Demoiselles. A resposta do próprio Steinberg, para que fosse ainda que parcialmente bem sucedida, teria não só de eleger aquelas características específicas do quadro, mas também fazer isso de um modo que pudesse ser visto como análogo em termos estruturais ou funcionais.
58. Nietzsche está convicto de que até mesmo o que viemos a considerar como os conceitos a priori do raciocínio lógico não passam de metáforas do dionisíaco, “retidas e solidificadas na memória”. Além disso, esses conceitos são metáforas particularmente fracas, uma vez que são “compatíveis com uma quantidade muito grande de fenômenos e, por esse motivo, [são] extremamente aproximadas e inadequadas para cada aparência particular” (Nietzsche, “The Philosopher: Reflections on the Struggle between Art and Knowledge”, in Philosophy and Truth: Selections from Nietzsche’s Notebooks, trad. Daniel Breazeale [Atlantic Highlands, N.J.: Harvester Press, 1979], p. 144). Traduzindo os comentários de Nietzsche sobre a linguagem para os termos das Demoiselles, poderíamos acrescentar que, ainda que todas as metáforas sejam máscaras, também há aquelas que conseguem justamente ocultar esse fato. Sobre essas questões, ver Sarah Kofman, Nietzsche and Metaphor, trad. Duncan Large (Stanford: Stanford University Press, 1993), esp. o cap. 3, “The Forgetting of Metaphor”, pp. 23-58. 59.
Nietzsche, seção 3, “Tentativa de Autocrítica”; trad. Kaufmann, p. 20.
61.
Nietzsche, seção 1.
60. O próprio Nietzsche parece ter chegado a conclusão similar: “Grande dilema: a filosofia é uma arte ou uma ciência? Tanto em seus propósitos como em seus resultados é uma arte. Mas usa o mesmo meio da ciência – a representação conceitual. A filosofia é uma forma de invenção artística. Não há uma categoria apropriada para a filosofia; em consequência, precisamos inventar e definir para ela uma espécie”. Nietzsche (ver nota 58), p. 53, “The Philosopher”, cit. em Kofman (ver nota 58), p. 1. 62.
Ver Kofman (nota 58), esp. o cap. 2, “Metaphor, Symbol, Metamorphosis”, pp. 6-21.
63. Sobre a questão da corporificação, ver a “Editorial Note”, pp. 3-6, de Rosalind Krauss, que antecede “O Bordel Filosófico” quando foi republicado em October. Krauss remete a uma passagem específica à p. 50 (4-5): “Tendo contrastado as posturas em Duas Mulheres (1906) [fig. 6] com aquelas nas Demoiselles, Steinberg comenta: ‘Basta ao leitor repetir esses movimentos respectivos para experimentar o efeito psíquico explosivo dos cotovelos abruptamente liberados’. Pois Steinberg está falando aqui da diferença na significação engendrada por meio do corpo – como se fosse um significado vivido – ao comparar os “cotovelos que aderem ao tronco” nas Duas Mulheres de Picasso e o subsequente abandono efetuado nas Demoiselles. Na análise de Steinberg, o significado das Demoiselles em toda a sua profundidade e “contágio” é confirmado vez após outra em relação à experiência do corpo habitado do observador, um corpo entendido como reencenando esses significados – ‘basta ao leitor repetir...’ – no momento mesmo em que experimenta a obra. E é evidentemente por intermédio dessa reencenação que o significado é arrancado de todos aqueles textos que precederam a imagem, para se tornar, em vez disso, uma função da recepção da obra, pois a ressonância corporal sobre a qual se mostra dependente o significado estrutura tal significado em termos de presença e co-presença relativa à imagem”. 64. 65.
Steinberg, p. 64. Ibid.
66. Apesar de já ter citado cada uma delas em algum momento anterior, talvez seja conveniente relacionar aqui todas as três passagens. A primeira ocorre à p. 43, quando Steinberg faz uma citação direta de Além do Bem e do Mal ao caracterizar as atitudes de Picasso perante o sexo, tal como elas se configuram nos desenhos preparatórios para as Demoiselles. A nota de rodapé respectiva envia o leitor à citação seguinte, à p. 46, para um entendimento mais completo da “relevância de Nietzsche”. E é nessa página que topamos com várias citações de O Nascimento da Tragédia (entre as quais a referência à “imersão orgiástica e liberação dionisíaca”) e com a nota de rodapé que menciona a popularidade desse texto entre “os artistas e os poetas de Barcelona e Paris na virada do século”; nessa altura, Steinberg também agradece a Mark Rosenthal “por suas percepções da relação entre Picasso e Nietzsche”. Por fim, às pp. 53-54, há o trecho que descreve os rostos parecidos com máscaras das demoiselles à direita, no qual mais uma vez se encontram citações diretas e referências mais gerais ao Nascimento da Tragédia. (Reproduzo esse trecho inteiro na nota 55 acima.) Talvez valha a pena observar que Steinberg decidiu intitular seu ensaio com o mesmo nome que Picasso pensou originalmente em dar ao quadro, “O Bordel Filosófico” – uma designação superficialmente 20
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incongruente cujo tratamento brutal da “filosofia” sem dúvida seria aplaudido por Nietzsche.
67. Embora isto não tenha ocorrido, vários estudiosos se concentraram nos aspectos nietzschianos de “O Bordel Filosófico” e tentaram associar, de modo ainda explícito do que Steinberg, tanto a obra de Picasso em geral como as Demoiselles em particular, a O Nascimento da Tragédia. Ver, por exemplo, Karen Kleinfelder, “Monstrous Oppositions”, in Picasso and the Mediterranean (Humlebaek, Dinamarca: Louisiana, 1996), pp. 22-33; e Mark Rosenthal, “The Nietzschean Character of Picasso’s Early Development”, pp. 87-91, e Ron Johnson, “The Demoiselles d’Avignon and Dionysian Destruction”, pp. 102-03, ambos em Arts Magazine 55, no. 2 (out. 1980).
68. O que Heidegger tenta apontar em “A Origem da Obra de Arte”, ao tratar da interação entre “mundo” e “terra”, parece estar estreitamente relacionado com o que Nietzsche queria nos mostrar sob as rubricas do “apolíneo” e do “dionisíaco”. Como notou um comentarista recente de Heidegger, “terra é um pseudônimo para o sem-nome. Não corresponde nem ao material, nem ao sensível, nem tampouco ao elementar (ou ao a-histórico), e resiste a toda apropriação pelo sentido, de modo que dizer terra como tal é propriamente desfigurá-la. Mesmo assim, isto é o que ocorre no projeto do mundo. A terra aparece, então, como um resquício inapropriável. A terra quer dizer/significar o indizível, que justamente não pode e não quer dizer (ou ser dito), e que mesmo assim será dito, mas como não-dito, na obra e através dela”. Marc FromentMeurice, That Is to Say: Heidegger’s Poetics, trad. Jan Plug (Stanford: Stanford University Press, 1998), p. 154. 69. A esse respeito, este artigo poderia ser comparado a Stephen Melville, “Positionality, Objectivity, Judgment”, no qual são traçados paralelos entre O Nascimento da Tragédia e o relato por Michael Fried do desenvolvimento da arte moderna. Ver Melville, Seams: Art as Philosophical Context (Amsterdã: G and B Arts International, 1996), pp. 68-88.
70. Devo admitir que essa interpretação do sublime kantiano confere a ele uma inflexão nitidamente heideggeriana. (Primeiro, por imaginar que as obras de arte poderiam oferecer instâncias do sublime, ao passo que Kant insiste que isto se restringe à natureza, uma vez que tais coisas estão, por definição, além da medida humana.) Caso sentíssemos a necessidade de obter permissão para conduzir Kant por essa direção, poderíamos encontrá-la, de todos os lugares possíveis, em um artigo de Panofsky (nunca traduzido para o inglês e aparentemente esquecido na mudança de seu autor para os Estados Unidos): “Em sua obra sobre Kant, Heidegger incluiu algumas frases notáveis sobre a natureza da interpretação, frases que à primeira vista referem-se tão somente à interpretação de textos filosóficos, mas que no fundo caracterizam o problema de qualquer interpretação. ‘Ainda assim, uma interpretação restrita a uma recapitulação do que Kant disse explicitamente jamais poderá ser uma explicação efetiva, se o propósito desta é trazer à luz o que Kant, a despeito de sua formulação expressa, desvelou enquanto estabelecia o fundamento. Sem dúvida, o próprio Kant não é mais capaz de dizer nada a esse respeito, mas o essencial em todo discurso filosófico não se encontra nas proposições específicas de que se compõe, e sim naquilo que, embora não declarado como tal, é evidenciado por meio dessas proposições [...] É certo que, a fim de extrair das palavras efetivas o que elas “pretendem dizer”, toda interpretação deve necessariamente recorrer à violência.’ Fazemos bem em reconhecer que essas frases também interessam a nossas modestas descrições de quadros e às interpretações que propomos para seus conteúdos, na medida em que não permaneçam no nível de meras declarações, mas constituam já interpretações” (Panofsky, “Zum Problem der Beschreibung und Inhaltsdeutung von Werken der bildenden Kunst”, Logos 21 [1932]: 103 ss). Para uma discussão relacionada de Kant e do sublime, ver Stephen Melville, “Counting / As / Painting”, in Philip Armstrong, Laura Lisbon e Stephen Melville, As Painting: Division and Displacement (Columbus: Wexner Center for the Arts; Cambridge, Mass.: MIT Press, 2001), p. 13. Melville também discute a referência de Panofsky a Heidegger em seu ensaio “Attachments of Art History”, In[]visible Culture: An Electronic Journal for Visual Studies (Rochester, N.Y.) 1 (1999), em www.rochester.edu/in_visible_culture/issue1/melville/melville.html; assim como Didi-Huberman (ver nota 40), p. 126-27. 71.
Tal prazer poderia ser visto como afim ao que Nietzsche chama de “júbilo trágico”.
73.
Melville, 2001 (ver nota 70), p. 13.
72. 74. 75. 76.
Imannuel Kant, Critique of Judgment, trad. Werner Pluhar (Indianapolis: Hackett, 1987), p. 130. Steinberg, p. 51. Ibid., p. 52.
Nietzsche, seção 8, grifos meus. <trad. Guinsburg, op. cit., p. 58>
77. Na seção 8, Nietzsche afirma especificamente que “devemos considerar o coro, na sua fase primitiva de prototragédia, como o autoespelhamento do próprio homem dionisíaco”; trad. Guinsburg, p. 58. 78. 79.
Steinberg, pp. 52-53.
Na medida em que as Demoiselles conseguem nos recordar de nosso olhar isento ou “descontínuo”, o quadro 21
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pode ser comparado a grande parte do que Merleau-Ponty tem a dizer sobre a visão e a pintura. As similaridades são ainda mais impressionantes pelo fato de que, tal como as Demoiselles, os escritos de Merleau-Ponty foram produzidos a partir de um prolongado confronto com a arte de Paul Cézanne. Em particular, o interesse de MerleauPonty visa o “toque” de Cézanne e o modo pelo qual, ao menos em suas paisagens e naturezas-mortas, esses toques exploratórios de tinta parecem enfatizar uma continuidade entre o visual e o tátil (ou, recorrendo à terminologia de Riegl, ao óptico e ao háptico), o que por sua vez sublinha a continuidade do próprio pintor com a “carne” do mundo. Isto está em acentuado contraste com nossa maneira costumeira de imaginar a visão, que tende a considerá-la como substituto do contato direto, mais do que como outra modalidade deste. (Como colocou Stephen Melville [ver nota 4], para Merleau-Ponty a visão humana é um meio pelo qual “o mundo se toca e imagina esse toque como distância”.) Nesse sentido, o desenvolvimento tanto da perspectiva renascentista como do método iconológico de Panofsky poderiam ser tidos como sintomáticos de nossa propensão a reconhecer equivocadamente nossa relação com o visual – ou, mais uma vez, como maneiras nas quais nossa continuidade (dionisíaca) com o mundo viu-se obrigada a se ocultar.
80. No ensaio “The ‘Primitive’ Unconscious of Modern Art”, Hal Foster escreve sobre as Demoiselles como se o quadro fosse deliberadamente pintado com a intenção de nos induzir a esse estado. Ele descreve Picasso como um artista que “transformou o ‘trauma’ do outro em uma ‘epifania’ do mesmo”, sustentando que, “se, nas Demoiselles, Picasso transgride, ele o faz a fim de mediar o primitivo em nome do Ocidente (e é em parte por isso que ele continua sendo o heroi da narrativa do MoMA sobre o triunfo da arte moderna). Nesse aspecto, as Demoiselles são de fato uma cena originária de primitivismo, na qual se revela a relação estruturada de narcisismo e agressividade. Tal identificação beligerante é peculiar ao imaginário lacaniano, o domínio ao qual retorna o sujeito ao ser confrontado com a ameaça da diferença”. A mim, parece significativo, contudo, que o ensaio de Foster seja, sobretudo, uma resenha da exposição “Primitivism” in Twentieth-Century Art, organizada em 1982 pelo Museu de Arte Moderna, e cujo curador foi William Rubin. Se, então, para Foster, as Demoiselles refletem apenas o imaginário lacaniano (em vez de um entrelaçamento do Simbólico e do Real, como argumentei na nota 56, acima), talvez isto se dê por ele estar reagindo primariamente à apresentação do quadro na exposição e no ensaio de Rubin sobre Picasso publicado em seu catálogo. Ver Foster, “The ‘Primitive’ Unconscious in Modern Art”, October 34 (outono de 1985): 45-70; e Rubin, “Picasso”, in William Rubin (ed.), “Primitivism in 20 th Century Art: Affinity of the Tribal and the Modern (Nova York: Museum of Modern Art, 1984). 81. Hans-Georg Gadamer, Dialogue and Deconstruction: The Gadamer-Derrida Encounter, ed. Diane Michelfelder e Richard Palmer (Albany: SUNY Press, 1989), p. 110, citado em James Risser, Hermeneutics and the Voice of the Other (Albany: SUNY Press, 1997), p. 182.
82. Nietzsche, seção 8. Na realidade, Nietzsche diz: “Aqui há algo que difere do rapsodo, o qual não se confunde com suas imagens, mas que, semelhante ao pintor, as vê fora de si, com olhar escrutante [...]” (grifos meus; trad. Guinsburg, op. cit., p. 60). Se omiti a referência à pintura em minha citação original do texto, isto se deve ao fato – e espero que seja suficientemente óbvio – de que as Demoiselles não são uma obra desse tipo. Porém, é claro, o entendimento da pintura implícito no comentário de Nietzsche também tem seu lugar na presente argumentação: o que faz das Demoiselles uma obra tão atraente é que a maioria dos outros quadros nos permitem imaginar com mais facilidade que os contemplamos como algo inteiramente fora de nós mesmos.
83. Talvez seja aqui o local para ressaltar que, apesar de seu porrón – uma vasilha espanhola para se tomar vinho – agressivamente fálico, o marinheiro dos esboços prévios parece ser (e assim é de fato caracterizado por Steinberg) “estranhamente recatado”, ofuscado pelas demoiselles e, nesse sentido, “inundado pela feminilidade”; ver Steinberg, pp. 37-38.
84. Nietzsche, na seção 5, faz uma observação similar a respeito da objetividade da poesia lírica de Arquíloco, cujos primeiros estudiosos haviam qualificado de completamente subjetiva. A questão da própria voz “subjetiva” de Steinberg é provavelmente levantada com frequência um tanto menor entre os modernistas do que pelos historiadores da arte renascentista, que estão mais acostumados a um tom panofskiano intensionalmente distante. Talvez nos seja perdoado que a crítica deles nos volte a lembrar de novo uma passagem do Nascimento da Tragédia (seção 2, trad. Guinsburg, p. 35): “Para captar esse desencadeamento simultâneo de todas as forças simbólicas, o homem já deve ter arribado ao nível de desprendimento de si próprio que deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças: o servidor ditirâmbico de Dionísio só é portanto entendido por seus iguais! Com que assombro devia mirá-lo o grego apolíneo! Com um assombro que era tanto maior quanto em seu íntimo se lhe misturava o temor de que, afinal, aquilo uto não lhe era na realidade tão estranho, que sua consciência apolínea apenas lhe cobria como um véu esse mundo dionisíaco”.
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