4 minute read

1- António Mora

80 anos da morte de Fernando Pessoa. E o poeta não se foi sozinho, com ele se foram muitos: em seu arquivo, ainda sendo escavado, já foram encontrados 127 heterônimos no total. A morte de Pessoa, então, é quase um genocídio. O maior poeta português de todos os tempos (que me perdoe Camões) e o melhor da língua portuguesa (que me perdoem os brasileiros), Pessoa consegue ser moderno e afetivo, entender as máquinas e os campos, o amor e a dor de existir.

Ao contrário do que se acha, os heterônimos não serviam para que Fernando Pessoa habitasse o mundo de outros. Ele não tinha a intenção de “ser outro”, pelo contrário, a maior intenção de Pessoa era, no fundo, apagar-se, tanto que não assinava seus poemas quando não eram de heterônimos. O balanço final é: o Pessoa quase não existe, os heterônimos, existem demais.

Advertisement

Uma coisa queremos Outra coisa fazemos. Quem quer somos nós sós Quem faz não somos nós.

Quem somos tem o intuito Quem não somos o fruto Alheio à intenção. Todos não são quem são.

Uma coisa é a verdade, Outra a realidade. O que existe não tem Que ver com haver alguém. Alheio a nós o mundo, Num sentido profundo, Por leis e reis se guia Em que a nossa energia, O nosso sentimento, O nosso pensamento São elementos falsos…

Assim, a pedra incerta Que a criança irrequieta Atira ao vácuo do ar Vai às vezes parar

Onde magoa ou fere Não o que a criança quer Mas o que o Fado quis Por isso a pedra infeliz O Destino atirou, Nunca quem a lançou.

Outros somos. Morremos A vida que vivemos. Quem é nós não é nada. Passa quem és na estrada Da nossa consciência. Para isto não há ciência.

2- Carlos Otto

EPIGR[AMA]

A um entendedor…

Um dia, tendo comichões De nos fazer maior partida A Asneira fez as religiões.

Tempos depois, estando de vê-las Um tanto ou quanto aborrecida, A Asneira pôs-se a desfazê-las.

3- Coelho Pacheco

PARA ALÉM DOUTRO OCEANO (trecho)

Num sentimento de febre de ser para além doutro oceano Houve posições dum viver mais claro e mais límpido E aparências duma cidade de seres Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em pureza e em nudez Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro Todos viviam na vida dos restantes E a maneira de sentir estava no modo de se viver Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser E houve pasmos de toda a realidade ser só isto Mas a vida era a vida e só era a vida O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho Como uma máquina untada movida por uma correia E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu Mas dizem que lhes doi a cabeça ou sentem tonturas Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer Como por exemplo a de que eles n„o sentem esse deslizar E não pensam em que o não sentem

Leia o poema completo AQUI!

4- Joaquim Moura Costa

Vejo que rimas sem custo E que o verso que te sai justo Sem confusão se interpreta. P’ra seres poeta, Augusto, Só te falta ser poeta.

5- Pantaleão

E para mim, idealista integral, o próprio mundo, o universo inteiro, não é senão um boato e um boato falso. …… A vida, toda a vida, é o eterno boato, e a morte, toda a morte, o eterno desmentido. Esperança, amor, ilusão, a crença ansiada no futuro, a confiança trémula no presente, tudo isto cessa nos seus objectos e em si. Passar é desmentir-se. Não há mais para mim do que a superfície das coisas –essa superfície forja-se nas realidades. …… Todos os caminhos do pensamento levam àquela Roma da dor, cujo supremo pontífice não dá audiências ao raciocínio, nem bulas ao sentimento. …… A mim é-me familiar o que a outros, e a raros outros, apenas em horrorosos acasos é de algum modo vagamente experiência –o sentimento do mistério e do horror intelectual do mundo. É minha inimiga do meu sangue e na minha alma quotidiana a sensação ôca de que o universo é uma pavorosa ilusão. Passou já o tempo em que este medo me era ocasional e, como um relâmpago, uma coisa de um horroroso instante. Hoje consubstancia-se com a minha vida espiritual ao ponto de me parecer estranha e não de mim a hora do espírito em que de algum modo me desenvencilho da consciência do mistério do mundo.

6 – Vicente Guedes

NUNC EST BIBENDUM

Quando o Tédio, invencível e infecundo, Nos faz sentir a solidão de ser, E uma monotonia ocupa o mundo, Que mais tem o espírito a fazer

Do que ensinar ao corpo que o profundo Desgosto da existência lhe requere Que veja sempre ao cálix o seu fundo E sempre tome o cálix a encher?

Assim a nós os pensadores mortos Para o prazer e a quem a saciedade Na própria ideia já nos dissuade,

Se não beber até que a vida esqueça Aos nossos olhos sem pensar absortos O sonho que é, o mundo em fim pareça.

Ficha técnica

Autor - Maria Pena

Imagem - Maria Pena

Som - Maria Pena

Realização - Maria Pena

This article is from: