Livro de Contos: Machado de Assis

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Copyright da seleção e capa Marília Sobral Capa e projeto gráfico Marília Sobral Edição de Referência Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.

Assis, Machado de Contos / Machado de Assis, 2015. 1. Contos brasileiros. 00-0000 CDD-000.00 Índice para catálogo sistemático: 1. Contos : Literatura brasileira 000.00


A Cartomante | 06 Identidade | 18 Flor An么nima | 32 Uns Bra莽os | 40 O Contrato | 52



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amlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! interrompeu Camilo, rindo.

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— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas cousas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

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Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagcm para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de

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alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femmina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram

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ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram- se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu- a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela

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começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem , em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamálo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil,

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viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. “Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...” Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-

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lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a ponco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: “Vem, já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar . Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... “Que perdia ele, se... ? Deu por si na calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

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A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não... — A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela curioso e ansioso. — As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou- lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendedo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...

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E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá, tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade...

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De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a ponco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

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onvenhamos que o fenômeno da semelhança completa entre dous indivíduos não parentes é cousa mui rara — talvez ainda mais rara que um mau poeta calado. Pela minha parte não achei nenhum. Tenho visto parecenças curiosas, mas nunca ao ponto de estabelecer identidade entre duas pessoas estranhas. Na família as semelhanças são naturais; e isso que fazia pasmar ao bom Montaigne não traz o menor espanto ao mais soez dos homens. Os Ausos, povo antigo, cujas mulheres eram comuns, tinham um processo sumário para restituir os filhos aos pais: era a semelhança que, ao cabo de três meses, apresentasse o menino com algum dos cidadãos. Vá por conta de Heródoto. A natureza era assim um tabelião muito mais seguro. Mas que entre dous indivíduos de família e casta diferentes (a não serem os Drômios e os

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Menecmas dos poetas) a igualdade das feições, da estatura, da fala, de tudo, seja tal que se não possam distinguir um do outro, é caso para ser posto em letra de forma, depois de ter vivido três mil anos em um papiro, achado em Tebas. Vá por conta do papiro. *** Era uma vez um faraó, cujo nome se perdeu na noite das velhas dinastias — mas suponhamos que se chamava Pha-Nohr. Teve notícia de que existia em certo lugar do Egito um homem tão parecido com ele que era difícil discriminá-los. A princípio ouviu a notícia com indiferença, mas, depois de uma grande melancolia que teve, achaque dos últimos tempos, lembrou-sede deputar três homens que fossem procurar esse milagre e trazê-lo ao paço. — Dêem-lhe o que pedir; se tiver dívidas, quero que as paguem; se amar alguma mulher, que a traga consigo. O essencial é que esteja cá e depressa, ou eu mando executar os três. A corte respirou jubilosa. Após vinte anos de governo, era a primeira ameaça de morte que saía da real boca. Toda ela aplaudiu a pena; alguns ousaram propor uma formalidade simbólica — que, antes de executar os três emissários, se lhes cortassem os pés para significar a pouca diligência empregada em cumprir os recados do faraó. Este, porém, sorriu de um modo mui particular. Não tardou que os emissários tornassem a Mênfis com o menecma do rei. Era um pobre escriba, por nome Bachtan, sem pais, nem mulher, nem filhos, nem dívidas, nem concubinas. A cidade e a corte ficaram alvoroçadas ao ver entrar o homem, que era a própria figura do faraó. Juntos, só se podiam reconhecer pelos vestidos, porque o escriba, se não tinha majestade grandeza, trazia certo ar tranqüilo e nobre, que as supria. Eram mais que dous homens pareci-

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dos; eram dous exemplares de uma só pessoa; eles mesmos não se distinguiam mais que pela consciência da personalidade. Pha-Nohr aposentou o escriba em uma câmara pegada à sua, dizendo que era para um trabalho de interesse público; e ninguém mais o viu durante dousmeses. No fim desse tempo, Pha-Nohr, que instruíra o escriba em todas as matérias da administração, declarou-lhe uma noite que ia pô-lo no trono do Egito por algum tempo, meses ou anos. Bachtan ficou sem entender nada. — Não entendes, escriba? O escriba agora sou eu. Tu és faraó. Fica aí com o meu nome, o meu poder e a minha figura. Não descobrirás a ninguém o segredo desta troca. Vou a negócios do Estado. — Mas, senhor... — Reinas ou morres. Antes reinar. Bachtan obedeceu à ordem, mas suplicou ao rei que a demora não fosse muita; faria justiça, mas não tinha gosto ao poder, menos ainda nascera para governar o Egito. Trocaram de aposentos. O escriba rolou durante a noite inteira, sem achar cômodo, no leito da vindoura Cleópatra. De manhã, segundo o ajustado, foi o rei despedido com as vestes do escriba, dando-lhe o escriba, que fazia de faraó, algum dinheiro e muitas pedras preciosas. Dez guardas do paço acompanharam o ex-faraó até os subúrbios de uma cidade distante. — Viva a vida! exclamou este, apenas perdeu de vista os soldados. Santo nome de Ísis e de Osíris! Viva a vida e a liberdade! Ninguém, exceto o vento bochorno do Egito, ouviu essas primeiras palavras ditas por ele a todo o universo. O vento foi andando indiferente; mas o leitor, que não é vento, pede explicação delas. Quando menos, supõe que este homem é doido. Tal era também a opinião de alguns

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doutores; mas, graças ao regime especialista da terra, outros queriam que o mal dele viesse do estômago, outros do ventre, outros do coração. Que mal? Uma cousa esquisita. Imagine-se que Pha-Nohr começara a governar com vinte e dous anos, tão alegre, expansivo e resoluto, que encantou a toda a gente; tinha idéias grandes, úteis e profundas. No fim, porém, de dous anos, mudou completamente de gênio. Tédio, desconfiança, aversão às pessoas,sarcasmos amiudados e, finalmente, umas crises melancólicas, que lhe levavam dias e dias. Durou isto dezoito anos. Já sabemos que foi ao sair de uma daquelas crises que ele entregou o Egito ao escriba. A causa, porém, deste ato inexplicável é a mesma da singular troca de gênio. Pha-Nohr persuadira-se de que não podia conhecer o caráter nem o coração dos homens, através da linguagem curial, ataviada naturalmente, e que lhe parecia oblíqua, dúbia, sem vida própria nem contrastes. Vá que lhe não dissessem cousas rudes, nem ainda as verdades inteiras; mas, por que lhe não mostrariam a alma toda, menos esses desvãos secretos, que há em toda a casa? Desde que isto se lhe meteu em cabeça, caiu na ruim tristeza e longas hipocondrias; e, se lhe não aparece o menecma que pôs no trono, provavelmente morreria de desespero. Agora tinha ímpetos de voar, de correr toda aquela abóbada de estanho que lá ficava acima dele, ou então ir conversar com os crocodilos, trepar aos hipopótamos, disputar as serpentes aos íbis. Pelo boi Ápis! pensava ele andando e gesticulando, ruim ofício era o meu. Cá levo agora a minha boa alegria e não a dou a troco de nada, nem do Egito nem de Babilônia. *** — Charmion, quem será aquele homem que vem tão alegre? perguntou um tecelão, jantando à porta de casa

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com a mulher. Charmion voltou os olhos cheios de mistérios do Nilo para o lado que o marido indicava. Pha-Nohr, logo que os viu, correu para eles. Era à entrada da cidade; podia ir buscar pousada e comida. Mas tão ansioso estava por sentir que não era rei e meter a mão nos corações e nos caracteres, que não hesitou em pedir-lhes algum bocado para matar a fome. — Sou um pobre escriba, disse ele. Trago uma caixa de pedras preciosas, que me deu o faraó por achar que era parecido com ele; mas pedras não se comem. — Comerás do nosso peixe e beberás do nosso vinho, disse-lhe o tecelão. O vinho era ruim; o peixe fora mal crestado ao sol; mas para ele valiam mais que os banquetes de Mênfis, era o primeiro jantar da liberdade. Expandia-se o ex-faraó; ria, falava, interrogava, queria saber isto e aquilo, batia no ombro ao tecelão, e este ria-se também e contava-lhe tudo. — A cidade é um covil de sacripantes; mais ruins que eles só os meus vizinhos aqui da entrada. Contarei a história de um ou dous e bastará para conhecer o resto. Contou umas cousas juntamente ridículas e execráveis, que o hóspede ouviu aborrecido. Este, para desanojar-se, olhou para Charmion e notou que ela pouco mais fazia que fitá-lo com os seus grandes olhos cheios de mistérios do Nilo. Não amara a outra mulher; esta reduziu os seus quarenta e dous anos a vinte e cinco, ao passo que o tecelão prosseguia em dizer a mácasta de vizinhos que a fortuna lhe dera. Uns perversos! e os que não eram perversos eram asnos, como um tal Phtataghuruh que... “Que poder misterioso fez nascer tão linda criatura entre mecânicos?” dizia Pha-Nohr consigo. Caiu a tarde. Pha-Nohr agradeceu o obséquio e quis ir-se embora; mas o tecelão não consentiu em deixá-lo;

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passaria ali a noite. Deu-lhe um bom aposento, ainda que pobre. Charmion foi adereçá-lo com as melhores cousas que tinha, deitando-lhe sobre a cama uma bonita colcha bordada — daquelas famosas colchas do Egito citadas por Salomão — e encheu-lhe o ar de aromas finíssimos. Era pobre, mas gostava do luxo. Pha-Nohr deitou-se pensando nela. Era virtuoso; parecia-lhe que estava pagando mal os obséquios do marido e sacudia de si a imagem da moça. Os olhos, porém, ficavam; viu-os na escuridão, fitos nele, como dous fachos noturnos, e ouviu-lhe também a voz terna e súplice. Saltou da cama, os olhos desapareceram, mas a voz continuava, e, cousa extraordinária, intercalada com a do marido. Não podiam estar longe; colou o ouvido à parede. Ouviu que o tecelão propunha à mulher ficarem com a caixa das pedras preciosas do hóspede, indo buscá-la ao quarto; fariam depois alarido e diriam que eram ladrões. Charmion opunha-se; ele teimava, ela suplicava... Pha-Nohr ficou embasbacado. Quem diria que o bom tecelão, tão obsequioso?... Não dormiu o resto da noite; gastou-a a andar e a agitar-se para que o homem lá não fosse. De manhã, dispôs-se a andar. O tecelão quis retê-lo, pediu-lhe um dia mais, ou dous, algumas horas; não alcançou nada. Charmion não ajudou o marido; trazia, porém, os mesmos olhos da véspera,fitos no hóspede, teimosos e enigmáticos. Pha-Nohr deu-lhe em lembrança uns brincos de cristal e um bracelete de ouro. — Até um dia! murmurou-lhe ela ao ouvido. Pha-Nohr entrou na cidade, achou pousada, deixou as suas cousas a bom recado e saiu para a rua. Morria por andar à toa, desconhecido, misturado à outra gente, falar e ouvir a todos, com franqueza, sem os atilhos do formalismo nem as composturas do paço. Toda a cidade estava em al-

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voroço, por causa da grande festa anual de Ísis. Grupos na rua, ou às portas, mulheres, homens, crianças, muito riso, muita conversa, uma algazarra de todos os diabos. PhaNohr ia a toda parte; foi ver aparelhar os barcos, entrou nos mercados, interrogando a todos. A linguagem era naturalmente rude — às vezes obscena. No meio do tumulto recebeu alguns encontrões. Eram os primeiros, e mais lhe doeu a dignidade que a pessoa. Parece que chegou a desandar para casa; mas riu-se logo do melindre e tornou à multidão. Na primeira rua em que entrou, viu duas mulheres que brigavam, agarradas uma à outra, com palavras e murros. Eram robustas e descaradas. Em volta, a gente fazia círculo, e animava-as, como se pratica ainda hoje com os cães. Pha-Nohr não pôde sofrer o espetáculo; primeiro, quis sair dali; mas tal pena teve das duas criaturas, que rompeu a multidão, penetrou no espaço em que elas estavam e separou-as. Resistiram; ele, não menos robusto, meteu-se de permeio. Então elas, vendo que não podiam ir uma à outra, despejaram nele a raiva; Pha-Nohr afasta-se, atravessa a multidão, elas perseguem-no, entre a risota pública, ele corre, elas correm, e, a pedrada e nome cru, o acompanham até longe. Uma das pedras feriu-lhe o pescoço. “Vou-me daqui, pensou ele, entrando em casa. Em curando a ferida, embarco. Parece, na verdade, uma cidade de sacripantes.” Nisto ouviu vozes na rua, e daí a pouco entrava-lhe em casa um magistrado acompanhado das duas mulheres e de umas vinte pessoas. As mulheres queixavam-se de que esse homem investira contra elas. As vinte pessoas juraram a mesma cousa. O magistrado ouviu a explicação de PhaNohr; e, dizendo este que a sua melhor defesa era a ferida que trazia no pescoço, retorquiu-lhe o magistrado que as duas agravadas naturalmente haviam de defender-se, e

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multou-o. Pha-Nohr, esquecendo a abdicação temporária, gritou que lhe prendessem o magistrado. — Outra multa, respondeu este gravemente; e o ferido não teve mais que pagar para se não descobrir. Estava em casa, triste e acabrunhado, quando viu entrar, daí a dous dias, a bela Charmion debulhada em lágrimas. Sabendo da aventura, desamparou tudo, casa e marido, para vir tratar dele. Doía-lhe muito? Queria que ela lhe bebesse o sangue da ferida, como o melhor vinho do Egito e do mundo? Trazia um pacote com os objetos de uso pessoal. — Teu marido? perguntou Pha-Nohr. — Meu marido és tu! Pha-Nohr quis replicar; mas os olhos da moça encerravam, mais que nunca, todos os mistérios do Egito. Além dos mistérios, tinha ela um plano. Dissera ao marido que ia com uma família amiga à festa de Ísis, e foi assim que saiu de casa. — Olha, concluiu, para mais captar-lhe a confiança, aqui trouxe o meu par ae crótalos, com que uso acompanhar as danças e as flautas. Os barcos saem amanhã. Alugarás um e iremos, não a Busíris, mas ao lugar mais ermo e áspero, que será para mim o seio da própria Ísis divina. Cegueira do amor, em vão Pha-Nohr quis recuar e dissuadi-la. Tudo ficou ajustado. Como precisassem dinheiro, saiu ele a vender duas pedras preciosas. Nunca soubera o valor de tais cousas; umas foram-lhe dadas, outras foramlhe compradas pelos seus mordomos. Contudo, tal foi o preço que lhe ofereceu por elas o primeiro comprador, que ele voltou as costas, por mais que este o chamasse para fazer negócio. Chegou-se a outro e contou-lhe o que se dera com o primeiro. — Como se há de impedir que os velhacos abusem da

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boa-fé dos homens de bem? disse este com voz melíflua. E, depois de examinar as pedras, declarou que eram boas, e perguntou se o dono lhes tinha alguma afeição particular. — Para mim, acrescentou, é fora de dúvida que a afeição que se tem a um objeto torna-o mais vendável. Não me pergunte a razão; é um mistério. — Não tenho a estas nenhuma afeição particular, acudiu Pha-Nohr. — Bem, deixe-me avaliá-las. Calculou baixinho, olhando para o ar, e acabou oferecendo metade do valor das pedras. Era tão superior esta segunda oferta à primeira, que Pha-Nohr aceitou-a com grandes alegrias. Comprou um barco, de boa acácia, calafetado de fresco, e voltou à pousada, onde Charmion lhe ouviu toda a história. — A consciência daquele homem, concluiu Pha-Nohr, é em si mesma uma rara pedra preciosa. — Não digas isso, meu divino sol. As pedras valiam o dobro. Pha-Nohr, indignado, quis ir ter com o homem; mas a formosa Charmion reteve-o, era tarde e inútil. Tinham de embarcar na manhã seguinte. Veio a manhã, embarcaram, e no meio de tantos barcos que iam a Busíris puderam eles escapar-se e foram dar a outra cidade distante, onde acharam casa estreita e graciosa, um ninho de amor. — Viveremos aqui até à morte, disse-lhe a bela Charmion. *** Já não era a pobre namorada sem adornos; podia agora desbancar as ricas donas de Mênfis. Jóias, finas túnicas, vasos de aromas, espelhos de bronze, alcatifas por toda a parte e mulheres que a servissem, umas do Egito, outras

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da Etiópia; mas a melhor jóia de todas, a melhor alcatifa, o melhor espelho és tu, dizia ela a Pha-Nohr. Não faltaram também amigos nem amigas, por mais que quisessem viver reclusos. Entre os homens, havia dous mais particularmente aceitos a ambos, um velho letrado e um rapaz que andara por Babilônia e outras partes. Na conversação, era natural queCharmion e as amigas ouvissem com prazer as narrativas do moço. Pha-Nohr deleitavase com as palestras do letrado. Desde longos anos que este compunha um livro sobre as origens do Nilo; e, conquanto ninguém o tivesse lido, a opinião geral é que era admirável. Pha-Nohr quis ter a glória de ouvir-lhe algum trecho; o letrado levou-o à casa dele, um dia, aos primeiros raios do sol. Abria o livro por uma longa dissertação sobre a origem da terra e do céu; depois vinha outra sobre a origem das estações e dos ventos; outra sobre a origem dos ritos, dos oráculos e do sacerdócio. No fim de três horas, pararam, comeram alguma cousa e entraram na segunda parte, que tratava da origem da vida e da morte, matéria de tanta ponderação, que não acabou mais, porque a noite os tomou em meio. Pha-Nohr levantouse desesperado. — Amanhã continuaremos, disse o letrado; acabada esta parte, trato logo da origem dos homens, da origem dos reinos, da origem do Egito, da origem dos faraós, da minha própria origem, da origem das origens, e entramos na matéria particular do livro, que são as origens do Nilo, antecedendo-as, porém, das origens de todos os rios do universo. Mas que lhe parece o queli? Pha-Nohr não pôde responder; saiu furioso. Na rua teve uma vertigem e caiu. Quando voltou a si, a lua clareava o caminho, ergueu-se a custo e foi para casa. — Maroto! serpente! dizia ele. Se eu fosse rei, não me

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aborrecias mais de meia hora. Vã liberdade, que me condenas à escravidão! E assim pensando, ia cheio de saudades de Mênfis, do poder que emprestara ao escriba e até dos homens que lhe falavam tremendo e aos quais fugira. Trocara tudo por nada... Aqui emendou-se. Charmion valia por tudo. Já lá iam meses que viviam juntos; os indiscretos é que lhe empanavam a felicidade. Murmurações de mulheres, disputas de homens eram realmente matéria estranha ao amor de ambos. Construiu novo plano de vida; deixariam aquela cidade, onde não podiam viver para si. Iriam para algum lugar pobre e de pouca gente. Para que luxo externo, amigos, conversações frívolas? E ele cantarolava, andando: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...” Chegou à casa, correu ao aposento comum, para enxugar as lágrimas à bela Charmion. Não achou nada, nem a moça, nem as pedras preciosas, nem as jóias, túnicas, espelhos, muitas outras cousas de valia. Não achou sequer o moço viajante, que provavelmente, à força de falar de Babilônia, despertou na dama o desejo de irem visitá-la juntos... Pha-Nohr chorou de raiva e de amor. Não dormiu; no dia seguinte indagou, mas ninguém sabia de nada. Vendeu os poucos móveis e tapetes que lhe ficaram, e foi para uma cidadezinha próxima, no mesmo distrito. Levava esperanças de encontrá-la. Estava abatido e lúgubre. Para ocupar o tempo e sarar do abalo, meteu-se a aprendiz de embalsamador. A morte me ajudará a suportar a vida, disse ele. A casa era das mais célebres. Não embalsamava só os cadáveres das pessoas ricas, mas também os das menos abastadas e até da gente pobre. Como os preços de segunda e terceira classes eram os mesmos de outras partes, muitas famílias mandavam para ali os seus cadáveres, para que os embalsamassem com os das pessoas nobres. Pha-Nohr

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começou pela gente ínfima, cujo processo de embalsamamento era mais sumário. Notou logo que ele e os companheiros de classe eram vistos com desdém pelos embalsamadores da segunda classe; estes chegavam-se muito aos da primeira, mas os da primeira não faziam caso de uns nem de outros. Não se mortificou com isso. Sacar ou não os intestinos do cadáver, ingerir-lhe óleode cedro ou vinho de palma, mirra e canela, era diferença de operação e de preço. Outra cousa o mortificou deveras. Tinha ido ali buscar uma oficina de melancolia e deu com um bazar de chufas e anedotas. Certamente havia respeito, quando entrava uma encomenda; o cadáver era recebido com muitas atenções, gestos graves, caras lúgubres. Logo, porém, que os parentes o deixavam, recomeçavam as alegrias. As mulheres, se faleciam moças e bonitas, eram longamente vistase admiradas por todos. A biografia dos mortos conhecidos era feita ali mesmo, lembrando este um caso, aquele outro. Operavam os corpos, gracejando, falando cada um dos seus negócios, planos, idéias, puxando daqui e dali, como se cortam sapatos. Pha-Nohr compreendeu que o uso encruara naquela gente a piedade e a sensibilidade. “Talvez eu mesmo acabe assim”, pensou ele. Deixou o ofício, depois de esperar algum tempo a ver se entrava o cadáver da bela Charmion. Exerceu outros, foi barbeiro, bateleiro, caçador de aves aquáticas. Cansado, exausto, aborrecido, apertaram-lhe as saudades do trono; resolveu tornar a Mênfis e ocupá-lo. Toda a cidade, logo que o viu, clamou que era chegado o escriba parecido com o faraó, que ali estivera tempos atrás; e faziam-se grupos na rua e uma grande multidão o seguiu até ao paço. — Muito parecido! exclamavam de um lado e de outro. — Sim? perguntava Pha-Nohr, sorrindo.

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— A única diferença, explicou-lhe um velho, é que o faraó está muito gordo. Pha-Nohr estremeceu. Correu-lhe um frio pela espinha. Muito gordo? Era então impossível a permuta das pessoas. Deteve-se alguns instantes; mas acudiu-lhe logo ir assim mesmo ao paço, e, destronando o escriba, descobrir o segredo. Para que encobrilo mais? Entrou; a corte esperava-o, em redor do faraó, e reconheceu logo que era impossível agora confundi-los, à vista da diferença na grossura dos corpos; mas a cara, a fala, o gesto eram ainda os mesmos. Bachtan perguntou-lhe placidamente o que é que queria; Pha-Nohr sentiu-se rei e declarou-lhe que o trono. — Sai daí, escriba, concluiu; o teu papel está acabado. Bachtan riu-se para os outros, os outros riram-se e o paço estremeceu com a gargalhada universal. Pha-Nohr fechou as mãos e ameaçou a todos; mas a corte continuou a rir. Bachtan, porém, fez-se sério e declarou que esse homem sedicioso era um perigo para o Estado. Pha-Nohr foi ali mesmo preso, julgado e condenado à morte. Na manhã seguinte, cumpriu-se a sentença diante do faraó e grande multidão. Pha-Nohr morreu tranqüilo, rindo do escriba e de toda a gente, menos talvez de Charmion: “Bela Charmion, palmeira única, posta ao sol do Egito...” A multidão, logo que ele expirou, soltou uma formidável aclamação: — Viva Pha-Nohr! E Bachtan, sorrindo, agradeceu.

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anha clara. A alma de Martinha é que acordou escura. Tinha ido na véspera a um casamento; e, ao tornar para casa, com a tia que mora com ela, não podia encobrir a tristeza que lhe dera a alegria dos outros e particularmente dos noivos. Martinha ia nos seus... Nascera há muitos anos. Toda a gente que estava em casa, quando ela nasceu, anunciou que seria a felicidade da família. O pai não cabia em si de contente. — Há de ser linda! — Há de ser boa! — Há de ser condessa! — Há de ser rainha! Essas e outras profecias iam ocorrendo aos parentes e amigos da casa. Lá vão... Aqui pega a alma escura de Martinha. Lá vão quarenta e três anos — ou quarenta e cinco, segundo a tia; Martinha, porém, afirma que são quarenta e três. Adote-

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mos este número. Para ti, moça de vinte anos, a diferença é nada; mas deixa-te ir aos quarenta, nas mesmas circunstâncias que ela, e verás se não te cerceias uns dous anos. E depois nada obsta que marches um pouco para trás. Quarenta e três, quarenta e dous, fazem tão pouca diferença... Naturalmente a leitora espera que o marido de Martinha apareça, depois de ter lido os jornais ou enxugado do banho. Mas é que não há marido, nem nada. Martinha é solteira, e daí vem a alma escura desta bela manhã clara e fresca, posterior à noite de bodas. Só, tão só, provavelmente só até a morte; e Martinha morrerá tarde, porque é robusta como um trabalhador e sã como um pero. Não teve mais que a tia velha. Pai e mãe morreram, e cedo. A culpa dessa solidão a quem pertence? ao destino ou a ela? Martinha crê, às vezes, que ao destino; às vezes, acusa-se a si própria. Nós podemos descobrir a verdade, indo com ela abrir a gaveta, a caixa, e na caixa a bolsa de veludo verde e velha, em que estão guardadas todas as suas lembranças amorosas. Agora que assistira ao casamento da outra, teve idéia de inventariar o passado. Contudo hesitou: — Não, para que ver isto? É pior: deixemos recordações aborrecidas. Mas o gosto de remoçar levou-a a abrir a gaveta, a caixa, e a bolsa; pegou da bolsa, e foi sentar-se ao pé da cama. Há que anos não via aqueles despojos da mocidade! Pegou-lhes comovida, e entrou a revê-los. De quem é esta carta? pensou ela ao ver a primeira. Teu Juca. Que Juca? Ah! o filho do Brito Brandão. “Crê que o meu amor será eterno!”. E casou pouco depois com aquela moça da Lapa. Eu era capaz de pôr a mão no fogo por ele. Foi no baile do Club Fluminense que o encontrei pela primeira vez. Que bonito moço! Alto, bigode fino, e

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uns olhos como nunca mais achei outros. Dançamos essa noite não sei quantas vezes. Depois começou a passar todas as tardes pela Rua dos Inválidos, até que nos foi apresentado. Poucas visitas, a princípio, depois mais e mais. Que tempo durou? Não me lembra; seis meses, nem tanto. Um dia começou a fugir, a fugir, até que de todo desapareceu. Não se demorou o casamento com a outra... “Crê que o meu amor será eterno!” Martinha leu a carta toda e pô-la de lado. — Qual! é impossível que a outra tenha sido feliz. Homens daqueles só fazem desgraçadas... Outra carta. Gonçalves era o nome deste. Um Gonçalves louro, que chegou de S. Paulo, bacharelado de fresco, e fez tontear muita moça. O papel estava encardido e feio, como provavelmente estaria o autor. Outra carta, outras cartas. Martinha relia a maior parte delas. Não eram muitos os namorados; mas cada um deles deixara meia dúzia pelo menos, de lindas epístolas. “Tudo perdido”, pensava ela. E, uma palavra daqui, outra dali, fazia recordar tantos episódios deslembrados... “desde domingo (dizia um) que não me esquece o caso da bengala”. Que bengala? Martinha não atinou logo. Que bengala podia ser que fizesse ao autor da carta (um moço que principiava a negociar, e era agora abastado e comendador) não poder esquecê-la desde domingo? Afinal deu com o que era; foi uma noite, ao sair da casa dela, que indo procurar a bengala, não a achou, porque uma criança de casa a levara para dentro; ela é que lha entregara à porta, e então trocaram um beijo... Martinha ao lembrá-lo estremeceu. Mas refletindo que tudo agora estava esquecido, o domingo, a bengala e o beijo (o comendador tem agora três filhos), passou depressa a

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outras cartas. Concluiu o inventário. Depois, acudindo-lhe que cada uma das cartas tivera resposta, perguntou a si mesma onde andariam as suas letras. Perdidas, todas perdidas; rasgadas nas vésperas do casamento de cada um dos namorados, ou então varridas com o cisco, entre contas de alfaiates... Abanou a cabeça para sacudir tão tristes idéias. Pobre Martinha! Teve ímpetos de rasgar todas aquelas velhas epístolas; mas sentia que era como se rasgasse uma parte da vida de si mesma, e recolheu-as. Não haveria mais alguma na bolsa? Meteu os olhos pela bolsa, não havia carta; havia apenas uma flor seca. — Que flor é esta? Descolorida, ressequida, a flor parecia trazer em si um bom par de dúzias de anos. Martinha não distinguia que espécie de flor era; mas fosse qual fosse, o principal era a história. Quem lha deu? Provavelmente alguns dos autores das cartas, mas qual deles? e como? e quando? A flor estava tão velha que se desfazia se não houvesse cuidado em lhe tocar. Pobre flor anônima! Vejam a vantagem de escrever. O escrito traz a assinatura dos amores, dos ciúmes, das esperanças e das lágrimas. A flor não trazia data nem nome. Era uma testemunha que emudeceu. Os próprios sepulcros conservam o nome do pó guardado. Pobre flor anônima! — Mas que flor é esta? repetiu Martinha. Aos quarenta e cinco anos não admira que a gente esqueça uma flor. Martinha mirou-a, remirou-a, fechou os olhos a ver se atinava com a origem daquele despojo mudo. Na história dos seus amores escritos não achou semelhante prenda; mas quem podia afirmar que não fosse dada

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de passagem, sem nenhum episódio importante a que se ligasse? Martinha guardou as cartas para colocar a flor por cima, e impedir que o peso a desfibrasse mais depressa, quando uma recordação a assaltou: — Há de ser... é... parece que é... É isso mesmo. Lembrara-se do primeiro namorado que tivera, um bom rapaz de vinte e três anos; contava ela então dezenove. Era primo de umas amigas. Julião nunca lhe escrevera cartas. Um dia, depois de muita familiaridade com ela, por causa das primas, entrou a amá-la, a não pensar em outra cousa, e não o pôde encobrir, ao menos da própria Martinha. Esta davalhe alguns olhares, mais ou menos longos e risonhos; mas em verdade, não parecia aceitá-lo. Julião teimava, esperava, suspirava. Fazia verdadeiros sacrifícios, ia a toda parte onde presumia encontrá-la, gastava horas, perdia sonos. Tinha um emprego público e era hábil; com certeza subiria na escala administrativa, se pudesse cuidar somente dos seus deveres; mas o demônio da moça interpunha-se entre ele e os regulamentos. Esquecia-se, faltava à repartição, não tinha zelo nem estímulo. Ela era tudo para ele, e ele nada para ela. Nada; uma distração quando muito. Um dia falara-se em não sei que flor bonita e rara no Rio de Janeiro. Alguém sabia de uma chácara onde a flor podia ser encontrada, quando a árvore a produzisse; mas, por enquanto, não produzia nada. Não havia outra, Martinha contava então vinte e um anos, e ia no dia seguinte ao baile do Club Fluminense; pediu a flor, queria a flor. — Mas, se não há... — Talvez haja, interveio Julião. — Onde? — Procurando-se. — Crê que haja? perguntou Martinha.

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— Pode haver. — Sabe de alguma? — Não, mas procurando-se... Deseja a flor para o baile de amanhã? — Desejava. Julião acordou no dia seguinte muito cedo; não foi à repartição e deitou-se a andar pelas chácaras dos arrabaldes. Da flor tinha apenas o nome e uma leve descrição. Percorreu mais de um arrabalde; ao meio-dia, urgido pela fome, almoçou rapidamente em uma casa de pasto. Tornou a andar, a andar, a andar. Em algumas chácaras era mal recebido, em outras gastava tempo antes que viesse alguém, em outras os cães latiam- lhe às pernas. Mas o pobre namorado não perdia a esperança de achar a flor. Duas, três, quatro horas da tarde. Eram cinco horas quando em uma chácara do Andaraí Grande pôde achar a flor tão rara. Quis pagar dez, vinte ou trinta mil-réis por ela; mas a dona da casa, uma boa velha, que adivinhava amores a muitas léguas de distância, disse-lhe, rindo, que não custava nada. — Vá, vá, leve o presente à moça, e seja feliz. Martinha estava ainda a pentear-se quando Julião lhe levou a flor. Não lhe contou nada do que fizera, embora ela lho perguntasse. Martinha porém compreendeu que ele teria feito algum esforço, apertou-lhe muito a mão, e, à noite, dançou com ele uma valsa. No dia seguinte, guardou a flor, menos pelas circunstâncias do achado que pela raridade e beleza dela; e como era uma prenda de amor, meteu-a entre as cartas. O rapaz, dentro de duas semanas, tornou a perder algumas esperanças que lhe haviam renascido. Martinha principiava o namoro do futuro comendador. Desesperado, Julião meteu-se para a roça, da roça para o sertão, e nunca mais houve notícia dele. — Foi o único que deveras gostou de mim, suspirou

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agora Martinha, olhando para a pobre flor mirrada e anônima. E, lembrando-se que podia estar casada com ele, feliz, considerada, com filhos — talvez avó — (foi a primeira ocasião em que admitiu esta graduação sem pejo) Martinha concluiu que a culpa era sua, toda sua; queimou todas as cartas e guardou a flor. Quis pedir à tia que lhe pusesse a flor no caixão, sobre o seu cadáver; mas era romântico demais. A negrinha chegara à porta: — Nhanhã, o almoço está na mesa!

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I

nácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco. — Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! maluco! — Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos. Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos.. . Deixe; amanhã hei de acordá-lo a

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pau de vassoura! D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens. Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870. Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração com um golpe de vinho e continuava logo calado. Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo. Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos

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de mangas compridas. De pé, era muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que só a via à mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos. Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira, comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele podia devanear à larga. Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa. Vá que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada. Via só os braços de D. Severina, — ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou porque andasse com eles impressos na memória. — Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador. Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam

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para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada. “Deixe estar, — pensou ele um dia — fujo daqui e não volto mais.” Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços. Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a idéia

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logo, uma criança! Mas há idéias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra idéia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim. — Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa. — Não tenho nada. — Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . . E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a visitavam desde o Natal; por que não iriam lá uma daquelas noites? Borges redargüia que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, já sabia ler, escrever e contar, não muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: — vadio, e o covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo. D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado

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do dia, pois era realrnente um trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a só na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer. Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposção, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das cousas. Já nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D. Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança. Já se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali, ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da

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voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto. — Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias. Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam- lhe um parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração intercalada trazia uma idéia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele. Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui como e porquê. D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria. A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D. Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando dava com ela no topo da escada, olhando

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através das grades de pau da cancela, como tendo acudido a ver quem era. Um domingo, — nunca ele esqueceu esse domingo, — estava só no quarto, à janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou pairavam em cima d’água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era só um domingo cristão; era um imenso domingo universal. Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina, mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os seus mesmos braços. É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e só se recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca; levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo lugar; depois

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caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano. Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até que estivesse muito mal. Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho, cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede, dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um grande ar de riso e de beatitude. D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril. “Uma criança!” disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco. E esta idéia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a turvação dos sentidos. “Uma criança!” E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez sequer

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mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, — dormir e talvez sonhar. Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava- se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinandose, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca. Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e só depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade. Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na idéia de que era uma criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa,

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irritada, aborrecida mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia apontou-lhe na alma e deu- lhe um calefrio. Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e só acordou para jantar. Sentou-se à mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na segunda-feira, e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída: — Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me. — Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . . — Está lá para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois despedir-se dela. Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem! falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . . Tanto pensou que acabou supondo de sua parte algurn olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes, sem saber que se engana: E foi um sonho! um simples sonho!

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uem quiser celebrar um consórcio, examine primeiro as condições, depois as forças próprias, e, finalmente, faça um cálculo de probabilidades. Foi o que não cumpriram estas duas meninas de colégio, cuja história vou contar em três folhas de almaço. Eram amigas, e não se conheciam antes. Conheceram-se ali, simpatizaram uma com a outra, e travaram uma dessas amizades que resistem aos anos, e são muita vez a melhor recordação do passado. Josefa tinha mais um ano que Laura; era a diferença. No mais as mesmas. Igual estatura, igual índole, iguais olhos e igual nascimento. Eram filhas de funcionários públicos, ambas dispondo de um certo legado, que lhes deixara o padrinho. Para que a semelhança seja completa, o padrinho era o mesmo, um certo comendador Brás, capitalista. Com tal ajuste de condições e circunstâncias, não pre-

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cisavam mais nada para serem amigas. O colégio ligou-as desde tenros anos. No fim de poucos meses de freqüência, eram as mais unidas criaturas de todo ele, a ponto de causar inveja às outras, e até desconfiança, porque como cochichavam muita vez sozinhas, as outras imaginavam que diziam mal das companheiras. Naturalmente, as relações continuaram cá fora, durante o colégio, e as famílias vieram a ligar-se, graças às meninas. Não digo nada das famílias, porque não é o principal do escrito, e eu prometi escrever isto em três folhas de almaço; basta saber que tinham ainda pai e mãe. Um dia, no colégio, contavam elas onze e doze anos, lembrou-se Laura de propor à outra, adivinhem o quê? Vamos ver se são capazes de adivinhar o que foi. Falavam do casamento de uma prima de Josefa, e que há de lembrar a outra? — Vamos fazer um contrato? — Que é? — Mas diga se você quer... — Mas se eu não sei o que é? — Vamos fazer um contrato: — casar no mesmo dia, na mesma igreja... — Valeu! nem você casa primeiro nem eu; mas há de ser no mesmo dia. — Justamente. Bem pouco valor teria este convênio, celebrado aos onze anos, no jardim do colégio, se ficasse naquilo; mas não ficou. Elas foram crescendo e aludindo a ele. Antes dos treze anos já o tinham ratificado sete ou oito vezes. Aos quinze, aos dezesseis, aos dezessete tornavam às cláusulas, com uma certa insistência que era tanto da amizade que as unia como do próprio objeto da conversação, que deleita naturalmente os corações de dezessete anos. Daí um efeito certo. Não só a conversação as ia obrigando uma para a

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outra como consigo mesmas. Aos dezoito anos, cada uma delas tinha aquele acordo infantil como um preceito religioso. Não digo se elas andavam ansiosas de cumpri-lo, porque uma tal disposição de ânimo pertence ao número das cousas prováveis e quase certas; de maneira que, no espírito do leitor, podemos crer que é uma questão vencida. Restava só que aparecessem os noivos, e eles não apareciam; mas, aos dezenove anos é fácil esperar, e elas esperavam. No entanto, andavam sempre juntas, iam juntas ao teatro, aos bailes, aos passeios; Josefa ia passar com Laura oito dias, quinze dias; Laura ia depois passá-los com Josefa. Dormiam juntas. Tinham confidências íntimas; uma referia à outra a impressão que lhe causara um certo bigode, e ouvia a narração que a outra lhe fazia do mundo de cousas que achara em tais ou tais olhos masculinos. Deste modo punham em comum as impressões e partiam entre si o fruto da experiência. Um dia, um dos tais bigodes deteve-se alguns instantes, espetou as guias no coração de Josefa, que desfaleceu, e não era para menos; quero dizer, deixou-se apaixonar. Pela comoção dela ao contar o caso, pareceu a Laura que era uma impressão mais profunda e duradoura do que as do costume. Com efeito, o bigode voltou com as guias ainda mais agudas, e deu outro golpe ainda maior que o primeiro. Laura recebeu a amiga, beijou-lhe as feridas, talvez com a idéia de sorver o mal com o sangue, e animou-a muito a pedir ao céu muitos mais golpes como aquele. — Eu cá, acrescentou ela; quero ver se me acontece a mesma cousa... — Com o Caetano? — Qual Caetano! — Outro?

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— Outro, sim, senhora. — Ingrata! Mas você não me disse nada? — Como, se é fresquinho de ontem? — Quem é? Laura contou à outra o encontro de uns certos olhos pretos, muito bonitos, mas um tanto distraídos, pertencentes a um corpo muito elegante, e tudo junto fazendo um bacharel. Estava encantada; não sonhava outra cousa. Josefa (falemos a verdade) não ouviu nada do que a amiga lhe dissera; pôs os olhos no bigode assassino e deixou-a falar. No fim disse distintamente: — Muito bem. — De maneira que pode ser que em breve estejamos cumprindo o nosso contrato. No mesmo dia, na mesma igreja... — Justamente, murmurou Josefa. A outra dentro de poucos dias perdeu a confiança nos olhos negros. Ou eles não tinham pensado nela, ou eram distraídos, ou volúveis. A verdade é que Laura tirou-os do pensamento, e espreitou outros. Não os achou logo; mas os primeiros que achou, prendeu-os bem, e cuidou que eram para toda a eternidade; a prova de que era ilusão é que, tendo eles de ir à Europa, em comissão do governo, não choraram uma lágrima de saudade; Laura entendeu trocálos por outros, e raros, dous olhos azuis muito bonitos. Estes, sim, eram dóceis, fiéis, amigos e prometiam ir até o fim, se a doença os não colhe — uma tuberculose galopante que os levou aos Campos do Jordão, e dali ao cemitério. Em tudo isso, gastou a moça uns seis meses. Durante o mesmo prazo, a amiga não mudou de bigode, trocou muitas cartas com ele, ele relacionou-se na casa, e ninguém ignorava mais que entre ambos existia um laço íntimo. O bigode perguntou-lhe muita vez se lhe dava autorização de

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a pedir, ao que Josefa respondia que não, que esperasse um pouco. — Mas esperar, o quê? inquiria ele, sem entender nada. — Uma cousa. Sabemos o que era a cousa; era o convênio colegial. Josefa ia contar à amiga as impaciências do namorado, e dizia-lhe rindo: — Você apresse-se... Laura apressava-se. Olhava para a direita, para a esquerda, mas não via nada, e o tempo ia passando seis, sete, oito meses. No fim de oito meses, Josefa estava impaciente; tinha gasto cinqüenta dias a dizer ao namorado que esperasse, e a outra não adiantou cousa nenhuma. Erro de Josefa; a outra adiantou alguma cousa. No meio daquele tempo apareceu uma gravata no horizonte com todos os visos conjugais. Laura confiou a notícia à amiga, que exultou muito ou mais que ela; mostrou-lhe a gravata, e Josefa aprovou-a, tanto pela cor, como pelo laço, que era uma perfeição. — Havemos de ser dous casais... — Acaba: dous casais lindos. — Eu ia dizer lindíssimos. E riam ambas. Uma tratava de conter as impaciências do bigode, outra de animar o acanhamento da gravata, uma das mais tímidas gravatas que tem andado por este mundo. Não se atrevia a nada, ou atrevia-se pouco. Josefa esperou, esperou, cansou de esperar; parecia-lhe brincadeira de criança; mandou a outra ao diabo, arre-pendeu-se do convênio, achou-o estúpido, tolo, cousa de criança; esfriou com a amiga, brigou com ela por causa de uma fita ou de um chapéu; um mês depois estava casada.

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O projeto da capa e miolo foi feito por Marília Sobral. Impressão offset sobre papel pólen soft 80g. O texto é composto pela família tipográfica Baskerville e pela tipografia de inspiração vernacular desenhada por Marília Sobral.

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