Camuflagens e desaparecimentos: ensaios fotográficos em narrativas visuais
Marília Lourenço Guimarães Zaitz Campinas, 2015
Camuflagens e desaparecimentos: ensaios fotográficos em narrativas visuais Marília Lourenço Guimarães Zaitz
Dissertacão apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, na área de Poéticas Visuais Orientadora: Profa. Dra. Luise Weiss Banca examinadora: Luise Weiss Fernanda Maria Macahiba Massagardi Luisa Angélica Paraguai Donati Lúcia Eustáchio Fonseca Ribeiro Paulo de Tarso Cheida Sans
Campinas, 2015
AGRADECIMENTOS Agradeço à professora Luise Weiss pelo acompanhamento, discussões e trocas durante todo este período de criação tanto das obras quanto desta dissertação. Ao meu marido, pela compreensão, ajuda e companheirismo durante este processo, e aos amigos que também participaram, seja em confidências, empréstimos de livros, conversas jogada fora e disponibilidade.
RESUMO Camuflagens e desaparecimentos: ensaios fotográficos em narrativas visuais reúne uma série de trabalhos e experimentações que baseadas na fotografia digital resultaram em vídeo, livro de artista e impressões em diferentes papéis e suportes. Tendo como ponto de partida episódios pessoais, ficcionais e de terceiros, as narrativas visuais propostas e executadas foram de encontro ao corpo da própria artista no momento em que os trabalhos passaram a ser executados no ambiente familiar, incorporando ações cotidianas da mesma. palavras-chave: camuflagem; fotografia; narrativa visual; corpo
ABSTRACT Camouflage and disappearances: photo essays on visual narratives that brings together a series of works and trials based on digital photography resulted in video, artist book and prints in different papers and supports. Taking as starting point on personal episodes, fictional and others, the visual narrative proposals were executed against the artist’s own body at the time that the work began to be performed in the home environment by incorporating everyday actions thereof. keywords: camouflage; photography; visual narratives; body
SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................. 11
1 NARRATIVAS VISUAIS: como contar uma história por meio de imagens...................... 16 1.1 Mimetismo e ações repetitivas..................................................................................................... 26 1.2 Ações artísticas e a incorporacão de fatos não previstos................................................. 37 1.3 O ir e vir: narrador-agente............................................................................................................ 55 2 A FOTOGRAFIA o jogo e as relações espaço/tempo.............................................................. 62
2.1 Breve introdução à fotografia e relações pictóricas........................................................... 62 2.1.2 A pesquisa fotográfica de Hippolytte Bayard.................................................................... 65
2.2. A fotografia como jogo................................................................................................................... 67
2.2.1 O jogo que se joga junta.............................................................................................................. 70 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................... 78
REFERÊNCIAS............................................................................................................................................ 84
a fotografia é um tempo morto fictício retorno à simetria secreto desejo do poema censura impossível do poeta Ana Cristina César
INTRODUÇÃO
Canton1 apresenta do termo “tramas fragmentadas” (2009, p. 15) como uma forma específica e contemporânea de contar histórias: o tradicional “começo-meio-fim” é substituído por ações fragmentadas, sobrepostas, repetidas e deslocadas. Para a autora, os artistas que investigam a propõem narrativas visuais narram, “mas não necessariamente resolvem as próprias tramas”. A aproximação com o ato de narrar se deu, de acordo com Canton, a partir da década de 1980, quando acontece um movimento de reaproximação entre realidade e arte e os artistas buscam se relacionar e comentar acontecimentos grandiosos e pequenos, íntimos, presentes na vida comum. No livro ‘Narrativas Enviesadas’, a
A elaboração de ensaios fotográficos, bem como livro de artista, vídeo e fotografias propriamente dita, caminhou lado a lado com este trabalho escrito, pensamento artístico colocado em palavras que juntos, compreenderam o mestrado em Poéticas Visuais. O processo artístico não ficou restrito apenas à elaboração fotográfica das experiências realizadas, a escrita deste volume, costurada e norteada pelas experimentações visuais caminharam juntas. O tema de “narrativas visuais”, determinado como ponto de partida da pesquisa esteve relacionado a experiências pessoais familiares, com contações de histórias e o incentivo à leitura de livros desde muito cedo. 1 Katia Canton é professora livre docente da Escola de Dentro deste tema, a pesquisadora Katia Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e organi-
zadora da coleção Temas da Arte Contemporânea, editada pela editora Martins Fontes.
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Ambos os ensaios partem daquilo pesquisadora ainda aponta temáticas que são que Benjamin chama de ‘perda comuns ou que norteiam a produção contemporânea ou declínio da experiência’ – no de artistas narradores, são elas: “o tempo e a sentido substancial do termo, que memória; o corpo, a identidade e o erotismo; o espaço repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada por e o lugar; as micropolíticas”. uma comunidade humana. E essa Contar uma história é se aproximar do tradição é retomada e transformada outro, segundo Canton, o mundo é ressignificado em cada geração, na continuidade de uma palavra transmitida de pai por intermédio das histórias e é nessa troca entre para filho. O que importa é algo que narrador e ouvinte/leitor, que se gera sentido entre passa adiante, que é maior que as si e no outro. pequenas experiências individuais A questão da experiência narrativa, particulares, algo maior que a simples existência individual, algo termo que será utilizado amplamente nos capítulos que transcende a vida e a morte que se seguem, está diretamente relacionada com particulares e que pertence a uma a referência benjaminiana apresentada por Katia memória viva e pulsante. (2009, p. 27) Canton no livro ‘Tempo e Memória’ na qual comenta os ensaios ‘Experiência e Pobreza’ e ‘O Narrador’ A perda da transmissão de uma história do filósofo alemão, dentro do volume 3 da coleção resulta na incapacidade de narrar, a experiência citada anteriormente: narrativa acontece, nas Artes Visuais, para 12
reforçar essa capacidade e transmitir, reforçar essa experiência. O narrador-artista é um artífice, que segundo Richard Sennet (2009, p. 20) dialoga com práticas concretas, o fazer, a criação propriamente dita; e ideias, conceitos. A escolha pela fotografia, ponto de convergência e partida para demais experiências em livro, e vídeo, não foi tomada de antemão, pressuposto do projeto anterior à pesquisa. Ela ocupou o lugar conhecido e explorado desde a graduação das artes gráficas, do desenho e da gravura em metal, mais especificamente. Outro ponto que integrou as experimentações aqui desenvolvidas foi a presença do corpo performático da própria propositora e de seu cotidiano em atividades pessoais, dentro de seu âmbito familiar, doméstico. A fotografia passou a ser registro de ações cotidianas de narrativas pessoais da artista
propositora, envolveu o espaço físico que habita, bem como interagiu com objetos, pessoas e animais que integram esse cotidiano. Contar e criar narrativas a partir e com o cotidiano nortearam a produção de fotografias e mais tarde, com as imagens já prontas, a escolha de como apresentá-las, sejam reunidas em um livro, ou em movimento, num vídeo, foi tomada de acordo com cada conjunto de imagens, parte de experimentações com as quais não havia intimidade ou grandes domínios. Intercambiar experiências, diria o filósofo Walter Benjamin, a respeito do ato de narrar é o que estava por trás desses conjuntos de imagens, contar histórias é partilhar, tirar de si mesmo a experiência vivida e dividir com o outro, seja no processo criativo, uma vez que houve a necessidade de assistentes durantes os processos fotográficos, ou com o leitor das imagens.
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A segunda parte da dissertação corresponde ao ato de narrar, apresenta a crise narrativa e a importância de criar e compartilhar histórias. Dentro disso, questões como a repetição, maneiras de contar e recontar uma história, e a sequencialidade, mimetismo e memória entram tanto como teoria, como acompanham o pensamento criativo e visual produzido. Ganha importância, neste momento do texto, a figura do narrador, que se coloca nas imagens fotográficas como narrador-agente, aquele que narra e atua na narrativa enquanto personagem. Dentro desse pensamento de narrador-agente, o ambiente doméstico ganha destaque e é incorporado às experimentações visuais, esse é o local ‘por’ e ‘de onde’ o narrador-agente se coloca, inicia sua narrativa. E, dentro desse contexto, os elementos que o compõem também passam a integrar as experimentações.
Alguns conjuntos fotográficos não têm como objetivo incluir ou partilhar com os leitores o contexto no qual as imagens foram feitas, há um momento em que esse padrão é rompido e novos conjuntos passam a se formar. Na parte três a fotografia é explorada com mais atenção, relacionando-a com a ideia de ‘jogo’, apresentada por Phillipe Dubois (2013) como sendo a fotografia, qualquer que seja ela, um golpe, uma jogada “exatamente como uma jogada de xadrez” e várias jogadas compreendem sequências de cortes de espaço e tempo, fixas, imóveis, mas que se repetem, se organizam, se relacionam. A presença do corpo também integra essa parte da dissertação e está relacionada diretamente à ideia do corpo performático, que é apresentado na parte dois, a partir da abordagem e definições de Regina Melim (2008) e a ideia de que a fotografia aqui desenvolvida, aproveitando-se da teoria de
Dubois, é um jogo que se joga junto. Também nesse momento do texto as escolhas entre fotografia propriamente dita, livro de artista, e vídeo são melhor definidas e comentadas, estando relacionadas às questões de espaço/tempo e leitores, bem como são aprofundados processo criativo e feitura dos trabalhos. Nas considerações finais são apresentados os próximos passos da pesquisa, a partir de então.
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1. NARRATIVAS VISUAIS: como contar uma história por meio de imagens
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“É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção” Walter Benjamin A paixão pela literatura me foi transmitida de pai para filha. Os primeiros livros guardo com zelo, como objetos preciosos, uma herança, que um dia serão passados adiante. As primeiras narrativas orais com as quais tive contato, foram inventadas e interpretadas também por meu pai e ainda estão presentes no meu imaginário, suas personagens, seus trejeitos, suas vozes, ações e papéis. Dessa maneira, a narrativa, o contar e o recontar uma história, tiveram um papel importante em minha formação. Tzvetan Todorov, em ‘A Literatura em Perigo’, discorre sobre sua também
paixão pela literatura e pelo narrar, e afirma que o principal objetivo da literatura é unir o leitor do autor de uma história, afirma que “a narrativa está necessariamente inserida num diálogo do qual os homens não são apenas o objeto, mas também protagonistas” (TODOROV, 2009, p.86), o narrador e o seu interlocutor, seja ele o leitor, ou o ouvinte, estão juntos neste momento, unidos pela narrativa e pela ação. O objeto livro é um importante ponto de partida para os trabalhos desenvolvidos durante o período que corresponde ao mestrado, desde a maneira como são contadas as histórias, o ponto de vista das personagens, a subordinação ao enredo, o papel do narrador, até a sua organização física em capa, contracapa, miolo, páginas e capítulos. O interesse pela narrativa escrita, proveniente dos livros, esteve presente em trabalhos desenvolvidos ainda na graduação, nos anos de 2007
a 2010, nos quais a palavra escrita se fez presente, passou a artista/narradora-agente. juntamente com desenhos e gravuras. Dessas Walter Benjamin apresenta a crise experiências, a cópia de frases prontas de autores narrativa, a escassez de bons narradores e da arte como Júlio Cortázar e Clarice Lispector, retiradas de narrar. Segundo o autor, de seus contextos originais e mescladas à palavras [...] contar histórias sempre foi a arte e desenhos meus, foram os primeiros passos em de contá-las de novo, e ela se perde direção a outras experiências em diferentes suportes quando as histórias não são mais e matérias. conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto Se, em um primeiro momento, o papel, ouve a história. Quanto mais o a tinta, o nanquim e as matrizes deram conta de ouvinte se esquece de si mesmo, apresentar narrativas visuais, a partir do momento mais profundamente se grava nele em que passei a dar atenção a ambientes pessoais o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele como a minha casa, meu jardim e a rua em que moro, escuta as histórias de tal maneira a fotografia e meu próprio corpo passaram a figurar que adquire espontaneamente o como novas possibilidades. dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o As narrativas deixaram quase que dom narrativo. E assim essa rede totalmente a ficção da literatura e voltaram-se se desfaz hoje em todas as pontas, para a vida e o cotidiano daquilo que me cercava depois de ser tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas no momento. O meu papel, de artista/narradora,
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de trabalho manual. (BENJAMIN, 1996, p.221)
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período, mas Ophelia foi a última delas. Colocada em uma banheira cheia de água, Lizzie permaneceu por horas a fio, imóvel, enquanto era retratada.
O momento em que as sequências fotográficas surgiram como opção de experimentação artística se deu quando, pesquisando sobre o corpo feminino e as representações de morte nas Artes Visuais, me deparei com a pintura de Sir John Everett Millais, Ophelia2, 1851-1852. Mais do que a representação corporificada da morte no corpo feminino, a história por trás desse quadro ocupou as minhas pesquisas. A modelo que posou como Ophelia é Elizabeth Sidall, Lizzie, como era chamada pelo grupo de artistas pré-rafaelitas, composto por Figura 1 - Ophelia, 1851-1852, John Everete Millais. Millais, Dante Gabriel Rossetti e William Holman Fonte: Tate, Londres, Inglaterra. Hunt, para os quais posava frequentemente. Lâmpadas foram colocadas abaixo da Lizzie foi musa de várias pinturas desse banheira, para que a água não ficasse fria, mas por 2 Disponível em: <http://www.tate.org.uk/art/aralgum motivo, não funcionaram por muito tempo e tworks/millais-ophelia-n01506>. Acesso em: fev.2015.
dias depois, já com a saúde debilitada, Lizzie faleceu. deixando apenas, na cena final, o vazio desenhado Hélia Correia, autora portuguesa, escreveu a história pelas flores. da vida da musa desses pintores, no livro ‘Adoecer’ (CORREIA, 2010). O encontro dessas duas histórias, a história de Ophelia, narrada por William Shakespeare em Hamlet, que se suicida em um rio por conta de uma desilusão amorosa, e a vida de Elizabeth Sidall, seus vícios em ópio, sua condição de musa e sua saúde fragilizada, foi um dos pontos de partida da obra ‘O Retorno do Corpo que Sabe’, de 2013, feito com imagens fotográficas colocadas em sequência linear, na qual tenho meu corpo coberto por flores. O vídeo3, de 1 minuto e 54 segundos, até sua metade mostra a progressão do acúmulo de flores em meu corpo imóvel. Durante a segunda metade do vídeo, com as mãos, retiro pouco a pouco, as flores de cima de mim e, finalmente, saio da posição inicial, 3 Pode ser com/80067575>.
visto
no
link:
<https://vimeo.
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Figura 2 - Primeiros stills do vĂdeo O Retorno do Corpo que Sabe, agosto de 2013. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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Figura 3 - Stills finais do vĂdeo O Retorno do Corpo que Sabe, agosto de 2013. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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O vídeo tem como trilha sonora parte da obra Prelude to the afternoon of a faun, de Claude Debussy, compositor que viveu e produziu na mesma época em que Millais e Lizzie Sidall. Inicialmente, no projeto das fotografias que mais tarde dariam origem ao vídeo, me propus a fotografar apenas as progressões das flores cobrindo, foto a foto, meu corpo por inteiro. A segunda metade do vídeo, que é composta pelas imagens onde retiro as flores de cima de mim, não fazia parte da ideia inicial. Essa sequência continuou sendo fotografada por meu assistente, sem meu conhecimento, e foram incorporadas depois de visualizadas individualmente, juntando-se às primeiras fotos. A edição do vídeo foi realizada em São Paulo, com o auxílio do amigo e também artista visual e pesquisador Felipe Barros. Sua orientação, ao introduzir as ferramentas do software Final
Cut, foram fundamentais para que o vídeo fosse realizado. Além disso, o tempo passado em seu ateliê, enquanto editávamos o vídeo, foi de grande importância para esse trabalho e para os trabalhos que estavam por vir. Suas contribuições foram tantas que, ao fim do vídeo, há a legenda: ‘Campinas à São Paulo’, uma referência a esse trânsito geográfico e metafórico, de vivências, trocas e experiências ao longo do processo criativo e de finalização de um trabalho. Nesse momento da pesquisa me coloco como protagonista pela primeira vez. As fotos acompanham uma ação que acontece gradativamente, apresenta lentas transformações, lentas camuflagens onde o corpo é sobreposto por objetos. Essa mesma ação acompanha os trabalhos seguintes, sendo a fotografia o meio em comum entre eles que continua, trabalho a trabalho, a registrar ações gradativas e ou/de transformações.
Colocados em uma sequência linear (conforme a sobreposição das flores e a retirada das mesmas) e com o apoio das transições que a música apresenta, esse trabalho traz ao leitor uma forma única e contínua de narrativa, com ritmo e tempo interno, próprios. O título ‘O Retorno do Corpo que Sabe’ parte da ideia de que, para entender a morte, compreender os rituais envolvidos na morte, como o enterro, as flores, o cobrir do corpo, não é necessário morrer de verdade. A expressão ‘o retorno do corpo-quesabe’ foi apresentada por Suely Rolnik durante a palestra inaugural do ‘8o Encontro do Instituto Hemisférico: Cidade/Corpo/Ação: a política das paixões nas Américas’4 (entre os dias 12 e 19 janeiro 4 Disponível em: <http://hemisphericinstitute.org/hemi/pt/enc13-keynote-lectures/ item/2085-enc13-keynote-rolnik>. Acesso em: 10 set.2014.
de 2013, na Universidade de São Paulo, SESC Vila Mariana e SP Escola de Teatro). O termo ‘o retorno
do corpo-que-sabe’ é explicado pela autora como “o corpo que sabe dos efeitos do outro na própria textura, na própria consistência do ser”, sendo o ser vulnerável ao outro como uma presença viva, “como um campo de força que o afeta e que produz efeitos e que cria uma espécie de alteridade em si, a partir da qual, se houver uma possibilidade, o ser influenciado pode se reinventar”. Nesse sentido é que a experiência da morte é sentida e entendida sem que precise o corpo morrer, ser enterrado, coberto por flores. A partir da experiência do outro, podemos recriar esse entendimento, ou seja, a partir da experiência de Lizzie Sidal, relatada tanto por Hélia Correia, como por Francine Prose (2004, p.135), pude interpretar, à minha maneira, a experiência da modelo. 23
A lembrança da lição, enquanto Ao utilizar meu próprio corpo como aprendida de cor, tem todas as instrumento e suporte dos trabalhos que se seguiram características de um hábito. me aproprio de narrativas alheias e me aproximo de Como o hábito, ela é adquirida Henri Bergson (1999, p.12) quando, analisando a pela repetição, e um mesmo esforço. Como o hábito, ela exigiu seleção das imagens para a representação e o papel inicialmente a decomposição, e do corpo no capítulo 1 de seu livro, afirma que “nada depois a recomposição a ação total. se pudesse produzir de realmente novo a não ser Como todo exercício habitual do corpo, enfim, ela armazenou-se por intermédio de certas imagens particulares, cujo num mecanismo que estimula por modelo me é fornecido por meu corpo”, nesse sentido, inteiro um impulso inicial, num a experiência da representação se faz presente, se sistema fechado de movimentos ela de fato acontece no próprio corpo. automáticos que se sucedem na mesma ordem e ocupam o mesmo Cada corpo possui suas próprias tempo. lembranças, ideias e hábitos que se repetem. Dentro disso, Bergson apresenta, nos capítulos seguintes, No caso da memória que imagina ela a ideia de que há duas memórias dentro de cada seria relevante por registrar “sob forma de imagenspessoa: uma que imagina e outra que repete, no caso lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida da segunda, ele faz referência à memória advinda do cotidiana à medida que se desenrolam”, sem ignorar aprendizado. detalhes como datas, locais, pessoas etc. Esse tipo 24
de memória é responsável, segundo o autor, por representa o passado, o encena. Conservar a memória guardar o passado de forma natural, sem “segundas seria, portanto, misturar o sonho à realidade. intenções”. Dessa forma, imagens são fixadas em Nesse momento da produção artística nosso cérebro e desenvolvida, as narrativas passam da palavra e do desenho à ação corporal e, com este trabalho, [...] criam no corpo disposições novas para agir. As- outros elementos passaram a figurar em minhas sim se forma uma experiência de uma ordem bem experiências seguintes: a camuflagem do corpo por diferente e que se deposita no corpo, uma série de objetos pertencentes a um cotidiano pessoal meu, os mecanismos inteiramente montados, com reações indícios do corpo presente no momento da ausência cada vez mais numerosas e variadas às excitações corporal nas imagens fotográficas e a relação com exteriores, com réplicas prontas a um número inelementos da natureza como registros de uma ação cessantemente maior de interpelações possíveis. corporal passada. A memória, conclui Bergson, no final do segundo e quarto capítulos de seu livro5, não 5 No livro Matéria e Memória, Henri Bergson dedica o capítulo ‘Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro’, a discutir a maneira como formamos nossas experiências pessoais por meio de memórias geradas por nosso próprio corpo, que por sua vez, surgem a partir de ações ex-
ternas à nós. Já no capítulo 4 “Da delimitação e da fixação das imagens. Percepção e Matéria. Alma e Corpo”, Bergson apresenta sua conclusão a partir dos três primeiros capítulos de seu livro: “a de que o corpo, sempre orientado para a ação, tem por ação essencial limitar, em vista da ação, a vida do espírito.” p. 209.
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1.1 O Mimetismo e as Ações Repetitivas “A arte de fazer desaparecer o outro. Isso exige um cerimonial” Jean Baudrillard Jean Baudrillard (1929 – 2007), filósofo francês, analisa a obra da artista, também francesa, Sophie Calle. Suas fotografias, livros de artista e exposições apresentam imagens de pessoas comuns, muitas vezes, sem que soubessem que seriam fotografadas. Para o filósofo (MACIEL, 1997, p.46)
[...] sente-se que uma coisa quer ser fotografada, quer tornar-se imagem e que não é para durar: é, ao contrário, para melhor desaparecer. E o sujeito só é um bom medium fotográfico se ele entra nesse jogo,
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se exorciza seu próprio olhar e seu próprio juízo estético, se frui de sua própria ausência.
Em suas empreitadas Calle registra os movimentos cotidianos das pessoas escolhidas por ela, eleitas em meio à multidão e dentro de seus cotidianos. A rua é, muitas vezes, o local de seleção, o cenário de suas fotografias e assim, como na obra Suite Vénitienne, de 1980, a artista se camufla em meio à multidão quando se fantasia para seguir um homem durante o Carnaval de Veneza. Dessa forma, Calle deixa de habitar a si mesma, para ser o percurso e o destino do outro e, tanto os registros escritos, quanto os gravados em áudio, vídeos, ou as imagens fotográficas feitas em suas empreitadas, são registros da desaparição de alguém e este alguém é, ora a pessoa seguida e registrada, ora a
própria artista. Os rastros dos percursos e dos rituais cotidianos das pessoas registradas pela artista, quando transformadas em imagens, no caso, fotográficas, simbolizam o desaparecimento, a morte. No momento em que a artista segue, documenta e registra os hábitos cotidianos, as ações e as repetições de uma pessoa escolhida por ela, torna-se, ela mesma, agente dessas ações e repetições. Os percursos de uma pessoa seguida por Sophie Calle são percorridos pela artista e, durante esse trajeto percorrido, ocorre que a artista se ausenta de si mesma para ocupar o lugar, ou então, os vestígios do outro, do ser observado e seguido. Ainda a respeito da obra de Sophie Calle, Márcia Arbex (2012, p.263) afirma que além de fixar lembranças, a artista francesa inventa imagens que constituem tanto mitologias individuais como
coletivas “nas quais são encenadas histórias e situações que estabelecem uma relação paradoxal entre ficção, memória e invenção”, na medida em que, por meio da fotografia e do uso da palavra escrita a falada, realiza rituais que misturam o real com o ficcional de modo a permitir que o espectador de suas obras possa “tomar parte do fingimento lúdico encenado a cada vez”.
Figura 4 - Suite Vénitienne, 1980, Sophie Calle. Fonte: ARBEX, Marcia, 2012, p.263. 27
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Essa colocação de Arbex elenca pontos importantes da obra de Sophie Calle que aproximam as produções feitas pela artista da produção realizada durante esta pós-graduação. É ponto importante da feitura de narrativas nas quais são encenadas histórias, reais ou não, que se estabelecem a partir da junção das imagens fotográficas à palavra, escrita ou falada e que surge primeiramente de ações e mitologias individuais e/ou coletivas. Em outro trabalho o corpo feminino se faz presente na ausência de sua representação fotográfica, a partir da camuflagem gradual. ‘Sobre o que é meu que sobra dele’, de 2014, é uma série de nove fotografias que apresenta a progressiva, porém não linear, cobertura de meu corpo por folhas de um livro que seguro em minhas mãos. As fotografias fizeram parte da exposição ‘Livro de Artista: Produção, Pesquisa e Reflexão’,
que aconteceu em março de 2014, na galeria Casa Contemporânea em São Paulo6, e, nessa obra, o livro torna-se corpo e sintetiza a ideia de que estamos todos cobertos por palavras, frases, histórias, narrativas, ora visíveis, ora invisíveis, e que compõem o que somos. Esse trabalho foi resultado da pesquisa desenvolvida dentro do Grupo de Pesquisa Livros de Artista: narrativas visuais e memória, coordenado pela artista pesquisadora Dra. Luise Weiss e, dentro desse contexto, o livro como objeto comunicador e extensor da memória e da imaginação foram o interesse central da pesquisa. Jorge Luis Borges, em Cinco Visões Pessoais (BORGES, 1985, p.5), dedica um capítulo ao livro. Afirma que ler um livro é eternizar a memória, misturar esquecimentos e lembranças 6 Disponível em: <http://casacontemporanea370.com/article/LIVRO-DE-ARTISTA-producao-pesquisa-e-reflexao.html>. Acesso em: 19 jun.2014.
daquilo que fomos, ou acreditamos que fomos. O livro e a narrativa que o integra são capazes de atingir tão profundamente um leitor que o mesmo não consegue, por vezes, distinguir se aquilo que leu de fato aconteceu com ele, ou foi apenas fruto de sua leitura e criação. Essa passagem de Borges está alinhada com a maneira como me aproprio de mitos e histórias, contadas e repetidas há anos, e a como as aplico ao meu universo, aos meus cenários e corpo. Essa camuflagem faz com que meu corpo se torne livro e que o livro se torne corpo. Nesse processo, os dois elementos, livro e corpo, se integram, se misturam, formam um outro elemento, o corpo-livro, ou o livro-corpo. A presença do corpo humano se dá ausência do próprio corpo, a partir da camuflagem criada por meio da sobreposição das páginas dos livros. 29
Figura 5 - Sobre o que ĂŠ meu que sobra dele, em sequĂŞncia linear, fevereiro de 2014. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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Na série de gravuras da artista brasileira Regina Silveira, chamada ‘Camuflagem’, a sobreposição de imagens diferentes gera um terceiro elemento gráfico, que não é resultado do apagamento de uma das imagens sobrepostas, mas da junção de ambas.
Figura 6 - Camuflagem, 1983, Regina Silveira. Fonte: Galeria Auriflama, São Paulo, Brasil. 31
Em ‘Espera (,) Penélope’, de 2013 (Figura 8), parto da leitura do mito de Penélope, que na mitologia grega é esposa de Ulisses e filha de Ícaro. Seu marido é tido como morto durante a Guerra de Troia e seu pai exige que ela se case novamente. Com a esperança de que seu amado retorne, Penélope afirma que se casará novamente apenas quando terminar de tecer um sudário, que é feito durante os dias e desfeito, secretamente, durante as noites. Dessa forma, não termina nunca o trabalho e ganha tempo, até que finalmente Ulisses Figura 7 - Penélope e Súditos, 1912, John William Waretorna. terhouse. O registro fotográfico da ação de ‘Espera Fonte: Arbadeen Art Gallery, Reino Unido. (,) Penélope’ (Figura 8) apresenta o corpo feminino sendo gradualmente coberto por cachecóis, luvas Para esse trabalho foram tiradas mais de noventa e toucas de lã, à medida em que a ação de tricotar fotografias que registraram meu corpo sendo coberto por objetos feitos com lã, enquanto a ação acontece. de tricotar e desfazer o tricô acontecia. No momento da edição dessas imagens, uma seleção foi proposta 32
e apenas dez imagens foram escolhidas para compor o trabalho. As sequências entre uma e outra foto das selecionadas deu lugar para o imaginário do leitor do trabalho, ou seja, cabe a aquele que vê as imagens preencher essa lacuna, esse silêncio entre uma imagem e outra, completar a sequência, nesse momento, fica a cargo daquele que observa e se envolve com o trabalho. O gesto de tricotar é repetido à exaustão, acompanhado por uma avalanche de objetos produzidos enquanto o tempo passa, da mesma maneira que ocorre com a personagem principal da narrativa grega, que repete o gesto de tecer por anos a fio. A experiência artística não é encerrada quando o corpo está todo coberto por esses objetos, há a retirada dos mesmos, assim como é desfeito o tricô nas agulhas. Essa ruptura é a negação da avalanche desses objetos, é a saída da própria
ação – ação essa, cotidiana e feminina. No ápice da sequência fotográfica todo o corpo está coberto pelos acessórios de tricô e, nesse momento, há a camuflagem total do corpo por meio da sobreposição desses objetos, e o corpo torna-se ausente da imagem fotográfica. Essa ausência, figurada, faz com que o corpo, na verdade, esteja presente na imagem. A camuflagem permite que o corpo esteja ausente fisicamente e presente em seus contornos. Os objetos que fizeram parte das ações executadas, as flores, os livros, os cachecóis, toucas e luvas de lã, foram pensados e elaborados, em sua maior parte, para os trabalhos.
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Figura 8 - Espera (,) PenĂŠlope, outubro de 2013.
Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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Em ‘O Retorno do Corpo que Sabe’ (Figuras 2 e 3) as flores foram escolhidas de forma a criarem uma composição cromática que correspondesse ao vestido utilizado nas fotografias, no qual predominam tons de amarelo e roxo. Essa correspondência gera a sensação de as flores estarem saindo do próprio vestido. Depois de compradas, as flores foram separadas de seus caules e agrupadas em uma bacia para serem misturadas, e não separadas por tons. Essa mistura facilitou a mescla de cores durante a sobreposição das mesmas sob meu corpo. Todo esse processo de compra, separação das flores de seus caules e mistura de tons foi executado por mim. Infelizmente não efetuei nenhum registro dessas ações, uma vez que ainda não havia me dado conta da importância dessa preparação em meus trabalhos. No caso de ‘Sobre o que é meu que sobre
dele’ (Figura 5) todo o processo que precedeu as fotografias também foi realizado por mim, a escolha do ‘sebo’ na cidade de Campinas que poderia ter mais livros antigos, a ida a esse ‘sebo’, a escolha dos livros que seriam utilizados e o umedecer das folhas de um dos livros comprados, todo o processo, igualmente não registrado visualmente, se mostrou importante dentro de minha pesquisa. A sequência fotográfica adquire mais liberdade nesse trabalho uma vez que, dada a independência das fotografias, pode-se expor o trabalho de diversas maneiras. Em ocasião da exposição coletiva ‘Livro de Artista: produção, pesquisa e reflexão’, na galeria Casa Contemporânea, em São Paulo, ‘Sobre o que é meu que sobra dele’ ocupou a parede de entrada da galeria e as fotografias foram dispostas linearmente, uma ao lado da outra, porém, as imagens não apresentam o movimento lógico, etapa por etapa, da camuflagem
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realizada (Figura 24), a sequência está fora de No último trabalho apresentado até ordem e permite que o leitor transite por elas afim este capítulo, ‘Espera (,) Penélope’, utilizei objetos de que ele próprio encontre um sentido lógico, se de tricô feitos em sua grande maioria por mim, assim o desejar. ao longo dos anos. Tricotar é parte da história da minha família, assim como costurar, por isso, não há registros da feitura dos objetos utilizados nas fotografias, eles foram tecidos ao longo da minha própria narrativa. Richard Sennett, ao longo do livro ‘O Artífice’, apresenta argumentos que aproximam os conceitos de ideia e execução, aquele que cria, pode ser também, segundo o autor, aquele que executa, o artesão é também um criador no sentido que identifica erros e os corrige, deixando de ser somente um reprodutor de instruções. Figura 9 - Vista do trabalho Sobre o que é meu que sobra
dele, 2014 durante a exposição “Livro de Artista: produção, pesquisa e reflexão”. Fonte: Casa Contemporânea, fotógrafa Márcia Gadioli.
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Todo bom artífice sustenta um diálogo entre práticas concretas e ideias; esse diálogo evolui para o estabelecimento de hábitos
prolongados, que por sua vez criam um ritmo entre a solução de problemas e a detecção de problemas. [...] A capacitação para a habilidade nada tem de inevitável, assim como nada há de descuidadamente mecânico na própria técnica (SENNETT, 2009, p.20).
Enquanto comprava flores, enquanto separava e molhava páginas de um livro amarelado ou enquanto cobria meu corpo com objetos tecidos por mim, não me passou pela cabeça quão importante é, dentro do meu processo criativo, a aproximação com esses objetos e processos anteriores à imagem fotográfica. Se, em um primeiro momento, camuflei, metaforicamente, todo esse processo que envolve e diz respeito ao meu cotidiano pessoal, no que vou chamar de segunda fase dos trabalhos, isso não aconteceu.
1.2 Ações artísticas e a incorporação de fatos não previstos Nas obras criadas nesse contexto, episódios presentes no dia a dia são incorporados às ações. Das imagens geradas nesse processo surgiram livros e fotografias propriamente ditas. Em dois dos trabalhos, citados até então, mitos antigos foram a base e o ponto de partida das criações, e o corpo sempre retorna, passa pelo mito, mas retoma sua posição inicial. Da ideia de retorno a algum lugar, ou posição inicial e de origem, Mircea Eliade aproxima os rituais contemporâneos aos rituais de Criação (primordial, divina), em ‘O Mito do Eterno Retorno’, tomando como exemplo a conquista de um novo território. O processo de povoação de uma
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nova região, não-cultivada e desconhecida, equivale a um verdadeiro ato de Criação. [...] uma conquista territorial só é considerada real quando se realiza um ritual de tomada de posse mais precisamente, através - da realização de um tal ritual, que representa apenas uma cópia do ato primordial da criação do mundo.
Em todos os trabalhos citados anteriormente o corpo participa da transformação e retoma sua condição inicial, muito ligados, ainda, às ideias de morte e renascimento. As obras desenvolvidas até então sugerem a ideia de permanência e ausência corporal a partir de elementos externos, que cobrem o corpo e o camuflam diante do cenário que ocupa. A experiência em ‘O Retorno do Corpo que Sabe’ envolveu mais do que ter o corpo coberto 38
pelas flores. Ir à floricultura, passear por meio de flores variadas e escolher quais seriam utilizadas na ação fizeram parte da preparação corporal préfotografias. As flores foram escolhidas pelas suas cores e combinações cromáticas, pensando a fotografia como um todo, pictoricamente, mas além disso, e que não é captado pela imagem fotográfica, a combinação olfativa foi levada em consideração, uma vez que estariam repousando sobre meu rosto. Como citado anteriormente, depois de escolhidos os buquês, as flores foram separadas de seus caules e misturadas, cuidadosamente, para que não desmanchassem, em uma bacia. Na bacia foi possível decidir quais tons predominavam e quais flores deveriam ser retiradas ou adicionadas para, só depois, criarem as composições e os quadros fotográficos. Esse processo de escolhas, separações
e combinações também faz parte do processo do o trabalho abaixo. artista britânico Andy Goldsworthy, que se utiliza de elementos naturais e do espaço natural para criar suas obras. As fotografias apresentadas em suas exposições não dão conta de mostrar o processo de seleção e de acúmulo de materiais para que sejam, por fim, fotografadas, mas são parte fundamental do trabalho, e foram apresentadas a mim após a exibição do vídeo ‘O Retorno do Corpo que Sabe’, em sala de aula. Outro aspecto, também relevante, da obra de Goldsworthy é a natureza e seus elementos como rastros da passagem humana, seja na escolha Figura 10 - Rain Shadow, 1984, Andy Goldsworthy. e junção de folhas e flores, como no caso da obra a Fonte: Andy Goldsworthy Digital Catalogue. seguir, onde, muito próxima à ação do vídeo feito por mim, a fotografia registra o rastro do corpo em meio Nascido em 1956, o artista britânico aos elementos naturais e a ação da natureza não Andy Goldsworthy, trabalhou em fazendas durante controlada ou prevista, como a chuva, que originou a adolescência, o que, segundo o próprio, foi
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fundamental para a formação de sua poética, uma vez que o juntar e transportar coisas fez parte de suas jornadas diárias de trabalho. Aluno de Richard Long, um dos precursores da Land Art, Goldsworthy, apesar de seus últimos trabalhos estarem voltados para grandes instalações, ainda explora as relações entre seu próprio corpo e a natureza, segundo o artista, essas são ocasiões baseadas no espírito das descobertas e abrem seus olhos para o que há na paisagem.7 Em ‘Sobre o que é meu que sobra dele’ o processo de escolha dos livros seguiu o mesmo ritual da escolha das flores na obra anterior. Visitei alguns ‘sebos’ na cidade de Campinas e decidi pelo livro mais antigo, que não tivesse identificação clara nas capas, e cujas folhas estivessem amareladas.
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7 Tradução livre feita a partir do texto de Ann Landi para o Wall Street Journal em 2013. Disponível em: <http://www.galerielelong.com/sites/default/files/wall_ street_journal_june_2013_on_letterhead.pdf>. Acesso em: 17 mar.2015.
Cuidadosamente separei algumas folhas do miolo do livro e, em um balde com água, elas foram, uma a uma, molhadas, para que pudessem aderir ao corpo. Em ambos os casos o ritual que envolveu a feitura das obras fez parte da preparação para as fotografias finais. As escolhas, tanto das flores, como dos livros utilizados, fizeram com que uma identificação entre o corpo e os materiais fosse estabelecida. O período de preparo das fotos não foi automático, rápido e eficiente. Antecedeu, nas duas sessões fotográficas, um breve período de maturação do conceito das obras, um estudo dos materiais e elementos que seriam utilizados e de reconhecimento sensorial, corporal, para finalmente fotografar. Nas obras citadas até então, houve um certo controle e reconhecimento dos procedimentos. Os rituais, simbolizados pelas fotos
e que antecederam os cliques, foram controlados, estudados. O mesmo não aconteceu nas obras que se sucederam. Algumas ‘precauções’ foram tomadas para criar ambientes, de certa forma, controlados, nos processos das obras realizadas até então. Essas precauções foram, desde tirar o telefone do gancho, posicionar criteriosamente a câmera, a fim de captar a luz de maneira específica, a prender a cadela da família do lado de fora da casa. As desaparições, controladas, foram colocadas em cheque durante a primeira tentativa de realizar uma ação fora do âmbito do interior da casa, no quintal. Essa primeira tentativa não resultou em nenhuma obra, mas mudou os procedimentos de criação a partir de então. As interferências externas à ação pessoal
impuseram um ritmo próprio e descontrolaram, desvirtuaram o propósito inicial do trabalho, que seria o de mostrar a progressão do acúmulo de folhas secas pelo meu corpo, enquanto tricotava. Preta, a cadela da família, insistiu em participar da cena; a luz natural foi coberta por uma nuvem preta e a ventania, seguida pela chuva, fez que as folhas que haviam sido dispostas uma a uma no chão se dissipassem. Dessa tentativa ‘frustrada’ surgiram os outros trabalhos. Em ‘Tentativas Caseiras de Desaparição’, de 2014 (Figuras 12 e 13), com a ajuda de dois assistentes, bexigas foram amarradas e colocadas em minha cabeça, cobrindo quase que totalmente meu campo de visão. Um dos assistentes posicionou meu corpo de acordo com poucas instruções prévias, em locais, frestas e possíveis ‘esconderijos’ dentro de minha casa. As fotografias foram tiradas e fugiram
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Figura 11 - Primeira tentativa ao ar livre, novembro de 2013. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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do r铆gido controle da artista propositora; a obra Essas fotografias deram origem a um ganhou autonomia e incorporou elementos locais, livro de artista, de 15 cm por 75 cm. como o vento, a arquitetura da casa, os m贸veis e Preta, a cadela.
Figura 12 - Fotografias que compõem livro Tentativas Caseiras de Desaparição, maio de 2014. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora. (percorrem as páginas 43, 44, 45 e 46)
Nesse trabalho, a incorporação de elementos do cotidiano pessoal e a falta de controle das ações, enquadramentos e fotografias não foram os únicos pontos de mudança com relação às ações e obras anteriores. O desaparecer como brincadeira, como ‘querer aparecer’, na verdade, surge como uma tentativa fadada ao fracasso de desaparição. O que ocorre é a camuflagem do corpo por meio de objetos
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pessoais, mas, ainda assim, fazendo referência ao desaparecer para ser encontrado, como em brincadeiras infantis, onde a criança, brincando de esconde-esconde, não pode se camuflar ou desaparecer totalmente, ela precisa dar indícios do seu esconderijo para que seja encontrada, caso contrário, a brincadeira não acontece. É preciso que a criança escondida seja encontrada para que a brincadeira recomece e,
dessa vez, a criança que primeiro buscou a que estava escondida tome seu lugar e se camufle para ser descoberta e assim por diante. Walter Benjamin, no artigo Brinquedo e Brincadeira (BENJAMIN, 1996, p.267), comenta o livro ‘Brinquedos infantis dos velhos tempos. Uma história do brinquedo’, do autor alemão Karl Gröber, de 1928. Nesse artigo Benjamin elenca a “grande lei” que rege as brincadeiras infantis como um todo: a
repetição.
Segundo o autor, a repetição é a essência do brincar, e nada dá mais prazer a uma criança do que “brincar outra vez”. Dessa maneira, na brincadeira de polícia e ladrão, citada por Benjamin, mas que pode ser exemplificada aqui como a brincadeira de esconde-esconde, é necessário que os seguintes rituais sejam cumpridos: “repetição e retorno, restauração de uma situação original, que
foi seu ponto de partida” (BENJAMIN, 1996, p.271). As ações e repetições como retorno, recomeço, são pontos que norteiam a produção artística apresentada até aqui, mas, a partir do livro de artista ‘Tentativas Caseiras de Desaparição’ (Figura 13), incorporam um outro aspecto do camuflar, as relações infantis com o brincar. No mesmo dia, outro trabalho também foi realizado, ‘Hidden Mother’, de 2014 (Figura
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14). São três fotografias em que o corpo humano está coberto por uma toalha de mesa e, no colo, a cadela Preta. Nessa série o corpo se faz presente na disformia da camuflagem, no hibridismo com o corpo da Preta.
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Figura 13 - Livro Tentativas Caseiras de Desaparição, maio de 2014. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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Figura 14 - Hidden Mother, maio de 2014. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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Essas três fotografias, inspiradas na série de retratos vitorianos, homônimos, trazem, junto com o trabalho citado anteriormente, o sinistro e o desconforto, explícito nas imagens abaixo, no olhar assustado das crianças retratadas.
Figura 15 e 16- Fotografias da era vitoriana incorporadas ao livro The Hidden Mother, de autoria da pesquisadora Linda Fregni Nagler. Fonte: The Guardian.
Ao incorporar elementos do cotidiano e aceitar suas imprevisibilidades, as ações do dia a dia, que são reproduzidas quase que sem atenção, mecanicamente, passam a fazer parte das ações artísticas e criadoras nesse processo. Em ambos os casos a repetição e a sequência de imagens produzidas, e apresentadas em séries, indicam a ideia de que a ação não tem fim. Diferente das séries anteriores, como em ‘O Retorno do Corpo que Sabe’ (Figuras 2 e 3), ou em ‘Sobre o que é meu que sobra dele’ (Figura 5), não há, nas obras que aqui se apresentam, o corpo totalmente descoberto, livre da camuflagem; nessas duas séries, o corpo aparece já camuflado, e essa ação não cessa. Na natureza animais se camuflam como forma de proteção, defesa, na vida cotidiana a camuflagem se dá na tentativa de escapar da rotina, dos afazeres, das ações repetitivas que perderam seu sentido, do ‘fazer pelo fazer’. As ações que
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fazem parte do dia a dia são mecânicas, cansativas e obrigatórias, precisam ser feitas para que ‘tudo ande bem’, para que ‘tudo funcione perfeitamente’, como nas primeiras fábricas.
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Caseiras de Desaparição’ (Figuras 12 e 13) interage com o cenário, interage com os objetos e tenta desaparecer, apesar de se camuflar, e a incorporação das bexigas, coloridas e volumosas, e a presença denunciativa da Preta são os impeditivos dessa possível camuflagem e, por fim, desaparição. Em ‘Hidden Mother’ (Figura 14) a tentativa de simular um retrato vitoriano, por si só, chama a atenção para o corpo camuflado: o corpo tenta sumir por baixo de uma toalha de mesa xadrez e colorida. A cadela, que participa da cena, figurando Figura 17 - Imagem do filme Tempos Modernos de Charlie como ‘filha’, uma vez que o título da obra é “mãe Chaplin, 1936. escondida”, contribui para o não desaparecimento Fonte: The Chaplin Office, França. do corpo que tenta se camuflar. Sua inquietação, própria de sua condição de animal de estimação, A camuflagem e o desaparecimento movimenta o tecido da toalha, exibe partes do corpo do corpo acompanham outras situações e ações que tenta desaparecer e, juntos, o corpo do animal, independentes. O corpo camuflado em ‘Tentativas o corpo humano e a toalha xadrez, formam um ser
híbrido.
Artistas surrealistas, segundo Elaine Robert Moraes, executavam suas obras de modo que tudo o que se passasse durante a criação poética surpreendesse tanto os leitores da obra em questão, quanto seu próprio criador. O “encontro fortuito”, chamado por este grupo de artistas de “acaso objetivo”, foi um dos pilares da criação surrealista, como no caso de Max Ernest, cita a autora (MORAES, 2002, p.42). A colagem, outro pilar de criação para uma parte dos artistas surrealistas, foi para Ernest, “o encontro fortuito de duas realidades distantes em um plano não pertinente”, na qual cada objeto colado é desviado de seu sentido original “[...] a fim de despertá-lo para uma realidade nova e desconhecida” (2002, p.44). Esse procedimento que Max Ernest estabelece para as suas criações muito se aproxima
da maneira como os últimos trabalhos apresentados até então, ‘Hidden Mother’ (Figura 14) e ‘Tentativas Caseiras de Desaparição’ (Figuras 12 e 13), se apresentam. Diferente da colagem cubista, ao invés de desfigurar e produzir alterações, Ernest opera metamorfoses de seres e objetos a fim de transfigurá-los, propõe assim, a conversão dos objetos que utiliza, em outra realidade. Georges Bataille, escritor francês, ao investigar as obras dos surrealistas parceiros de Max Ernest, afirma: “à fusão dos corpos corresponde a violação das identidades: dissolução de formas constituídas, destruição da ordem descontínua das individualidades”. Em ambos os trabalhos citados no parágrafo anterior, este procedimento se apresenta, pelo meu rosto coberto e pela sobreposição, pela “colagem” de objetos alheios à minha constituição física natural. No caso da escolha e ordenação dos
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objetos escolhidos para as ações executadas por Outros artistas incorporam elementos mim, me aproximo mais uma vez do texto de cotidianos em suas camuflagens corporais, como Elaine R. Moraes e a análise feita a respeito da obra o artista brasileiro Nino Cais e o artista japonês de artistas surrealistas, os objetos e elementos Tatsumi Orimoto. presentes em uma colagem surrealista podem ser reordenados para representar algo diferente do que representam isoladamente, ou “para representar aquilo que já haviam representado”8.
Figura 19 - Sem título, 2014, Nino Cais. Fonte: Paço das Artes, fotografia: Marcelo Amorim. Figura 18 - Água, 1933, Max Ernest. Fonte: Museu de Arte de São Paulo, MASP.
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8 Aragon apud MORAES, Elaine Robert. O Corpo Impossível, p. 47: citado por CHÉNIEUX, Jacqueline. O surrealismo, op. cit., p.80.
sua maioria, a conexão mãe-filho, ou a perda dessa conexão que com o passar dos anos se agravou devido a doença de sua mãe de forma alegre, e não melancólica ou triste9. Orimoto realiza ações performáticas durante exposições como ‘O Homem Pão’ (Figura 20). Oferece jantares em vernissages e sua camuflagem tem, sem dúvida alguma, um tom cômico, de brincadeira infantil, daquele corpo que Figura 20 - Da série O Homem Pão Filho + a mãe com Alnão quer e não pode desaparecer por completo, que zheimer, 1996/2007, Tatsumi Orimoto. precisa ser visto, para que a brincadeira aconteça. Fonte: Galeria DNA, Berlim, Alemanha. Nas fotografias de Nino Cais (Figura 19), em especial nesta acima, que integrou a exposição Os pontos que norteiam a obra de Tatsumi ‘A Imagem na Imagem’, no Paço das Artes, em São Orimoto são comunicação e interação. A maior parte Paulo, o artista incorpora elementos do cotidiano de suas obras é voltada para a vida e a doença de como louças, mesa, toalhas, para fazer deles a sua mãe, que fez com que ela perdesse a capacidade 9 Tradução livre feita a partir do texto de Matde reconhecer ou se lembrar de familiares e de thias Harder para a galeria berlinense DNA Galerie. Disponível ações corriqueiras. Suas imagens apresentam, em em: <http://www.dna-galerie.de/en/artists/tatsumi-orimoto/tatsumi-orimoto--text.php>. Acesso em: 17 mar.2015.
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extensão de seu próprio corpo. O desaparecer, aqui, se dá por conta dessa sublimação de parte do corpo do artista, em contraposição à justaposição e ao acúmulo de objetos como se fossem parte do corpo do artista. O crítico e curador brasileiro Cauê Alves descreve a trajetória de Nino Cais, para a edição número 7, da revista eletrônica Performatus, como um artista que faz uso de seu próprio corpo para se relacionar com os objetos de sua intimidade, de seus afetos. O corpo, nas obras do artista brasileiro, não se distingue dos objetos acoplados a ele e, mesmo quando esses objetos estão colocados de maneira a cobrir o rosto do artista, sua identidade não é sublimada, há, segundo Alves, uma tentativa de auto ironia por parte do artista, que “forja ficções, fantasias e outras identidades”10.
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A própria posição do corpo de Nino Cais nas fotografias (Figura 19), de bruços, por baixo dos objetos e móveis, difere do tom cômico e jocoso das obras do artista japonês Orimoto (Figura 20). As desaparições do corpo do artista brasileiro têm outra conotação, apesar de ambos trazerem, em suas obras, objetos e elementos cotidianos comuns a ambos. Além disso, outro aspecto se faz presente nas obras citadas acima: a incorporação do aspecto surreal, absurdo, que se faz presente também nas obras ‘Tentativas Caseiras de Desaparição’ (Figuras 12 e 13) e ‘Hidden Mother’ (Figura 14). Sobre o uso do corpo em ações artísticas Regina Melim explica que a palavra ‘performance’ está diretamente relacionada aos anos de 1960 e 1970, nos quais o corpo exerceu parte fundamental e constitutiva de obras de arte (MELIM, 2008, p.7). O termo, segundo a autora, foi cunhado 10 “O corpo no trabalho de Nino Cais”, por Cauê Alves, Disponível em: <http://performatus.net/corpo-ninodurante estes anos, mas novos procedimentos -cais/>. Acesso em: 17 mar.2015.
geraram uma expansão dele, a performance se faz presente em trabalhos apresentados em “vídeos, instalações, desenhos, filmes, textos, fotografias, esculturas e pinturas” (2008, p.8). O aspecto performativo se faz presente dentro dessas variantes artísticas citadas, de tal forma que o corpo do artista se torna matéria e o lugar performativo, que até então se referia aos palcos teatrais, ou às galerias e museus de arte, ganham outras dimensões, desde o ateliê do próprio artista, como a rua e os espaços coletivos, independentemente de terem espectadores ou não. Esta é uma outra característica das performances contemporâneas, segundo Melim, a não necessidade de espectadores presentes durante a ação performática. O corpo do artista, para a autora do livro Performance nas Artes Visuais, está impregnado pelo espaço que ocupa, assim como por suas
experimentações dentro desses espaços, por este motivo, tantos artistas optaram for realizar suas performances sozinhos em seus espaços privados, como cita Regina Melim: Vito Acconti e Amílcar Parker (2008, p.54). 1.3 O ir e vir: narrador-agente O antigo hábito de contar uma história modificou-se ao longo dos anos e perdeu ou conquistou espaço em meio às populações, acompanhando o ritmo de vida das pessoas. Esse hábito, lembrado por Walter Benjamin no início deste capítulo, como a arte da repetição, a arte de contar novamente, floresceu, segundo o autor, no meio artesão e, por esse motivo, é uma forma artesanal de transmitir uma mensagem. Por essa razão a narrativa “não está 55
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interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada, como uma informação ou um relatório”. O narrador, ou o contador da história narrada, imprime suas marcas na narrativa. A história passa por dentro da vida do narrador, para, segundo Benjamin, em seguida retirá-la dele. Essas relações, acima descritas, dizem respeito especialmente às narrativas orais, que, segundo o autor alemão, perdeu espaço ainda no século XX para as chamadas “short story” emancipadas da tradição oral. Narrar, para ele, é entrar em contato com suas próprias impressões, é transmitir a quem escuta visões de si mesmo. Quem escuta compartilha dessa experiência, da companhia do narrador. Ainda sobre as mudanças pelas quais a narrativa passou ao longo dos anos, Walter Benjamin encerra suas considerações a respeito da obra de Nikolai Leskov (BENJAMIN, 1996, p.239), retomando
a ideia de que o ato narrativo está intimamente ligado, em sua essência, à prática manual.
O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito).
Ainda a respeito das práticas manuais, Richard Sennett, dedica um capítulo de seu livro à mão (SENNETT, 2009, p.169) visando identificar as relações entre práticas manuais e expressão e, partindo do pressuposto científico que diz que os diferentes movimentos que as mãos são capazes
de realizar, “aliados ao tato e às diferentes maneiras de segurar com as mãos, afetam à nossa maneira de pensar”. Essa experiência primária, de tocar com as mãos determinado objeto, é fundamental para desenvolver e criar pensamentos e conexões novas. É a partir do manual que me coloco como narrador/ agente de minhas experimentações artísticas. A figura de narrador se torna importante diante das obras desenvolvidas na medida em que não só figuro como narrador, propriamente dito, mas como agente, aquele que conduz as ações que compõem as narrativas. Esse narrador, que não apenas narra, mas que também age, é comentado por Tzvetan Todorov ao escrever sobre a tipologia do romance policial (TODOROV, 2013, p.93). Para discutir sobre os tipos de romances policiais o autor apresenta dois aspectos de toda e
qualquer obra literária, que são a trama e a fábula. A fábula, segundo Todorov, corresponde ao que “se passou na vida”, já a trama, “a maneira como o autor” nos apresenta essa passagem. Ainda sobre esses dois aspectos, Todorov os diferencia ao dizer que a fábula diz respeito “à realidade evocada, a acontecimentos semelhantes àqueles que se desenrolam em nossas vidas” e a trama diz respeito ao próprio livro, à narrativa propriamente dita, aos processos literários utilizados pelo autor. Enquanto na fábula não é possível inverter a ordem e o tempo dos acontecimentos, na trama, o autor pode trocar a ordem natural das ações, e começar a narrativa pelos acontecimentos que naturalmente e cronologicamente estariam no final. Existem, então, seguindo esse pensamento, duas histórias diferentes dentro de uma
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única narrativa, no caso das obras apresentadas, que tomarei novamente como exemplo. Em ‹Espera (,) Penélope› e ‹O Retorno do Corpo que Sabe› assumo a posição de narrador e personagem, agindo sob dois pontos de vista: o que narra a história e o que vive a história contada. Nessas duas obras citadas, duas histórias estão ausentes, que são pano de fundo: a mitologia de Penélope e a história de Ophelia, respectivamente. É a partir dessas duas referências, dessas duas narrativas, que a segunda acontece visualmente, em fotografias e vídeo. Um detetive, por exemplo, personagem de um romance policial, conta a história de um crime e, por ele, passa a função de narrar os acontecimentos e o desfecho da história, como também intermediar as informações que receber durante a investigação que se desenrola ao longo do romance. O detetive age como narrador e como personagem ao mesmo tempo nesse tipo de
romance policial. Seguindo essa linha de raciocínio, apresentada por Todorov, o detetive de um romance policial precisa narrar uma história ausente (o crime que investiga) e, para isso, ele se coloca na própria narrativa, interpreta, desvenda, narra e recria aquilo que seria o “pano de fundo”. O narrador está presente, porque narra uma história ausente. Então, narrar pressupõe entrar em contato com visões pessoais de si mesmo e de forma artesanal, manual, transmitir uma história. O narrar não se faz apenas em palavras, mas em gestos e ações corporais simbólicas, pessoais, reinterpretadas e revisitadas pelo narrador, que está sempre presente, recriando e recontando uma história que se fez ausente. Denilson Lopes, em ‘A Delicadeza: estética, experiência e paisagem’, volta-se para o que
ele vai chamar de “poética do cotidiano” e observa, em artistas contemporâneos, a incorporação de elementos pessoais e “banais” em dois caminhos: “a volta do Real como trauma, trazido em corpos violados e numa estética do excesso e do abjeto”, ou “a volta do referente vinculado a uma comunidade ou identidade dentro da perspectiva dos Estudos culturais” (LOPES, 2008, p.93). O autor ainda aponta uma terceira via, que mais se alinha às obras desenvolvidas até então, na qual o cotidiano passa a ser um
[...] espaço de conciliação, possibilidade de encontro, habitado por um corpo que se dissolve na paisagem, nem mero observador, nem agente, apenas fazendo parte do quadro, da cena; o repouso ativo do devaneio em que o mundo e a paisagem implodem o sujeito, seus dramas íntimos e psicológicos. Trata-se de trazer o fora para
dentro, não ir para dentro, nem colocar o eu para fora. Não mais a dor, a catástrofe, o trauma, mas a plenitude do vazio do real.
O cotidiano, incorporado pelas obras de arte em questão, apresenta características comuns à própria existência humana e pessoal, que são a fragmentação e a repetição de ações heterogêneas e hierárquicas, presentes na vida de todo homem. Apesar de marcado pelo ritmo das ações repetitivas, o individual não desaparece, mas se articula com a incorporação do acaso e da espontaneidade. Quando são apresentadas obras que se utilizam do espaço da casa, da moradia, com o intuito de apontar o cotidiano, a casa transita entre o espaço da opressão e do isolamento, da repetição desenfreada e do tédio; e o espaço poético da afetividade, da memória e da intimidade. Gaston Bachelard, no capítulo ‘Casa e
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Universo’, do livro ‘A Poética do Espaço’ (2012, p.55), afazeres, experiências e repetições, às narrativas analisa as casas descritas por romancistas e poetas íntimas, repletas de afeto, comuns e banais. e apresenta a seguinte conclusão. O espaço privado, a casa, corresponde, segundo Luce Giard e Michel de Certeau (2003), ao Com efeito, a casa é, à primeira vista, local onde quase não se trabalha, onde “[...] a criança um objeto rigidamente geométrico. cresce e acumula na memória mil fragmentos de Somos tentados a analisá-la racionalmente. Sua realidade saber e de discurso que, mais tarde, determinarão sua inicial é visível e tangível. É feita de maneira de agir, de sofrer e de desejar”, e essa é a casa sólidos bem talhados, de vigas bem que se faz presente nas últimas obras desenvolvidas encaixadas. A linha reta predomina. O fio de prumo deixou-lhe a marca no ano de 2014, a casa como universo da memória, de sua sabedoria, de seu equilíbrio. da afetividade e da repetição, do jogo, do ritual. Tal objeto geométrico deveria O universo do jogo, da repetição no resistir a metáforas que acolhem o corpo humano, a alma humana. Mas a transposição para o humano ocorre de imediato, assim que encaramos a casa como um espaço que deve condensar e defender a intimidade.
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A casa está diretamente ligada aos
universo da infância, segundo Jeanne Marie Gagnebin (1997, p.181) é “releitura crítica do presente da vida adulta”: no universo adulto, o cotidiano é repetitivo, e muitas vezes suas ações perdem o sentido à medida que se repetem. A experiência da infância
[...] remete sempre à reflexão do
adulto que, ao lembrar o passado, não o lembra tal como realmente foi, mas, sim, somente através do prisma do presente projetado sobre ele. Essa reflexão sobre o passado visto através do presente descobre na infância perdida signos, sinais que o presente deve decifrar, caminhos e sendas que ele pode retomar, apelos aos quais deve responder pois, justamente, não se realizaram, foram pistas abandonadas, trilhas não percorridas.
As crianças não compreendem totalmente certas palavras ou como certos objetos devem ser manipulados, por esse motivo, afirma Jeanne Marie, as crianças mostram aos adultos que as palavras e os objetos podem ser reinventados uma vez que nos escapam, nos questionam. Ao inventar histórias a criança “retira
os elementos de sua fabulação de experiências reais vividas anteriormente” (SOUZA, 2003, p.148) e os recombina, inventando algo novo. A repetição está diretamente relacionada à experiência de selecionar e recombinar elementos da vida cotidiana. Para Benjamin, como já apresentado, o que define o caráter da “modernidade” é a escassez de acontecimentos memoráveis e, por consequência, da criação de experiências memoráveis. Portanto, a dificuldade de traduzir o cotidiano em experiências narráveis. As experiências realizadas que compreendem esta dissertação tiveram como base a fotografia. Mesmo que expandidas para outros suportes como o vídeo e o livro de artista, o registro fotográfico foi a principal ferramenta empregada nesses processos.
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2 A FOTOGRAFIA: o jogo e as relações espaço/ tempo A escolha da fotografia como suporte para os trabalhos realizados, até então, não foi feita de forma segura, com familiaridade e intimidade. Em trabalhos anteriores a fotografia esteve como figurante, como registro para experimentações em desenho e gravura, e, por esse motivo, por ter adotado a imagem fotográfica como suporte para todos os trabalhos que compõem a dissertação, surgiu a necessidade de estudar e investigar esse meio. Este capítulo tem como objetivos, apresentar uma breve discussão sobre as origens da fotografia, e quais particularidades se mostraram fundamentais para sua escolha.
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2.1 Breve introdução à fotografia e relações pictóricas “A fotografia não possui uma história própria unificada e coerente, mas uma documentação de seus usos e efeitos” dependente dos contextos dos quais faz parte, afirma John Tagg, crítico norte americano11. Dessa forma, a câmera nunca é neutra, está sempre sujeita há quem a manipula. Vilém Flusser, em ‘Filosofia da Caixa Preta’, aborda de maneira similar a negativa de neutralidade da câmera fotográfica e vai além, apresenta o conceito de que a fotografia é mensagem que articula dois elementos:
11 Geoffrey Batchen reúne em Burning with desire: the conception os photography, críticos e fotógrafos norte-americanos que se apoiam no pós-moderno para afirmar que a fotografia nunca fala por si mesma, está sempre vinculada a um contexto, a um pensamento e a uma determinada posição político-social-econômica. Dentro deste pensamento estão John Tagg e Allan Sekula. Todas as citações e aspas presentes nesta dissertação, referentes ao livro de Batchen, foram traduzidas por mim.
a câmera enquanto aparelho programador da sociedade; e o fotógrafo que tem como objetivo se fazer eterno nos outros por meio da fotografia12. Allan Sekula, outro crítico e fotógrafo
12 No ensaio Filosofia da Caixa Preta, o filósofo tcheco Vilém Flusser analisa a crise cultural que se estabeleceu após o período pós-industrial com o surgimento das chamadas “imagens técnicas” produzidas automaticamente por aparelhos criados industrialmente. Ao fazer referência especificamente à fotografia, o autor analisa que as imagens técnicas funcionam como um espelho aos olhos do espectador, que por sua vez não se dá conta de que tais imagens são mensagens codificadas em imagens, ou seja, texto transformado em imagem. Segundo palavras do próprio Flusser: “a intenção que move este ensaio é contribuir para um diálogo filosófico sobre o aparelho em função do qual vive a atualidade, tomando por pretexto o tema fotografia”. Desse modo, e segundo o autor, a imagem técnica produzida por meio de aparelhos (câmeras fotográficas) serve somente para que a sociedade se sinta livre de pensar conceitualmente, uma vez que elas foram inventadas no século XIX, no momento de crise do texto escrito. Esta é uma discussão que permite muitos argumentos e fugiria da proposta desta dissertação, por este motivo, ao buscar proximidade com o discurso de Flusser, escrevo como artista visual, pensando enquanto processo criativo dentro da minha própria pesquisa pessoal.
norte americano, concorda com o pensamento de Tagg e vai além, ao apresentar a ideia de que, na fotografia, existe um paradoxo: “a fotografia surge para confirmar a subjetividade individual daqueles capturados, mesmo que os reduzindo enquanto indivíduos, a algo puramente visual, a um objetoimagem”13 (BATCHEN, 1999, p.8). Há para o crítico e fotógrafo a confluência de não apenas um discurso atrelado à fotografia, mas vários, produzindo o que ele mesmo chama de “cacofonia de discursos”, sendo assim, a fotografia é sempre o traço de algo externo a ela. Já que há essa relação indicial14 entre 13 Tradução livre feita a partir da citação presente no livro de Batchen. 14 Não pretendo discutir nessa dissertação sobre os aspectos semiológicos da fotografia, para isso, me apoio na breve discussão apresentada por Philippe Dubois em O ato fotográfico, mais especificamente ao início do capítulo 3: Histórias de sombras e mitologias de espelhos: os índices na história da arte, que corresponde a: “[...] a análise da fotografia como índice foi considerada na perspectiva de uma abordagem
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a imagem fotográfica e aquilo a que se refere, ao que retrata, podemos aqui, criar um paralelo entre a imagem fotográfica e a pintura, que “em sua fase primitiva [...] era inteiramente trabalhada pela questão do índice, ou seja, pela questão da presença e da contiguidade do referente, tanto quanto, senão mais, do que pela questão da semelhança” (DUBOIS, 2013, p.115). Ao nos aproximarmos das relações entre pintura e fotografia nos aproximamos das origens das representações que, apresentadas por Philippe Dubois como “mitologia de espelhos”, tem sua origem puramente teórica. Tratou-se de abordar o fato fotográfico em seu princípio, definir seu estatuto teórico particular a partir de suas condições de existência mais elementares. Isso nos deu a oportunidade de balizar bem tudo o que constituía a originalidade da relação do signo fotográfico com seu referente, destacando os traços característicos – da noção de índice aplicada à foto, assinalando os limites e os perigos dessa concepção e insistindo particularmente nos jogos que esse fato revelava e que finalmente nos permitiram mostrar que a fotografia constitui uma verdadeira categoria epistêmica, uma categoria de pensamento por inteiro”. 64
na história das sombras. Diz o autor que a pintura surge quando o homem percebe que pode registrar um corpo por meio da projeção de sua sombra. Para isso, evoca o a fábula de Dibutades, contada por Plínio, em História Naturalis, na qual a filha de um oleiro se apaixona por um jovem que precisa partir para uma longa viagem. Dibutades percebe que a chama de uma vela projeta a sombra de seu amante na parede e, para preservar uma memória física, a presença dele, ela representa com carvão sua silhueta. Mais tarde, Dibutades faz o relevo dessa silhueta em terracota. Dessa fábula Dubois nos mostra o desejo de representar com detalhes e exatidão, aquilo que vemos e uma das possíveis “origens” da pintura. Sabemos que grandes mestres da pintura europeia faziam uso de aparatos cujo sistema óptico era fundamental para projetar por meio de luz e sombras, paisagens e pessoas que seriam retratadas
fielmente depois, em pinturas. A câmara escura que, utilizada “para captar imagens para pintá-las depois, servia igualmente para projetar sobre uma tela imagens preliminarmente pintadas ou desenhadas”, era utilizada desde o início do século XVIII e, um século mais tarde, a câmara clara, mais eficaz em termos de transporte, não passava de um “olhinho de telescópio munido de um prisma, de um jogo de espelho e de lente, fixado à extremidade de uma haste imóvel” (1999, p.131). De qualquer forma, nenhum desses dispositivos foi capaz de fixar imagens e a ‘corrida’ por este objetivo esteve bastante acirrada durante meados do século XIX. Em se tratando das imagens fotográficas produzidas em meados do século XIX Flusser apresenta a ideia de imagens técnicas, imagens produzidas por aparelhos programados em
processos industriais. Por supostamente se tratar de imagens “objetivas”, aquele que observa fotografias as observa como se elas fossem janelas do mundo, quando na verdade, as imagens técnicas apresentam “conceitos relativos ao mundo” (FLUSSER, 1985, p.10). Para Flusser, pelo fato de que, no processo de criação de imagens tradicionais, como a pintura, é fácil que o observador encontre nelas símbolos, como o agente humano, por exemplo. Ainda sobre as imagens fotográficas o filósofo tcheco afirma que, assim como em se tratando de imagens tradicionais, a fotografia, ou imagens produzidas por aparelhos, são igualmente carregadas de poética. 2.1.2 A pesquisa fotográfica de Hippolytte Bayard
Ao mesmo tempo em que Luis Jacques Mande Daguerre (1787-1851), considerado o
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primeiro autor da patente de processos fotográficos, o também francês Hippolytte Bayard (18011887) encontrava-se próximo de identificar quais elementos químicos seriam necessários para fixar imagens produzidas pela luz. Ele perdeu, por pouco, a patente de seu invento, mas não por isso deixou de ser reconhecido como um importante fotógrafo do século XIX, especialmente por produzir séries fotográficas de autorretratos. A série mais famosa corresponde a ‘Autoportrait en Noyé’ (autorretrato de um afogado), produzida em 1840, e que possui três variações de uma mesma composição. Geoffrey Batchen analisa essa série de retratos partindo do princípio de que as imagens foram criteriosamente pensadas.
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Figura 21 - Autorretrato de um afogado, 1840, Hippolytte Bayard.
Fonte:
Société
Françaisse
de
Photografhie, França.
Há, nessas imagens, uma preocupação artística (BATCHEN, 1999, p.158), desde a posição do corpo do autor, quanto à disposição dos objetos que variam imagem a imagem. O mesmo corpo está nu, sentado em um banco, com o tronco quase que totalmente voltado para o espectador. Seus olhos estão fechados e os braços cruzados, o que, segundo Batchen, refere-se à tradição clássica, que, por sua
vez, está associada à Academia de Belas Artes. O tom artístico, ainda segundo o pesquisador, se dá pela escolha e arranjo dos objetos que fazem referência à pintura: o chapéu, o vaso de cerâmica, a estatueta de ninfa... Bayard posa como “coisa entre coisas” (1999, 1962), principalmente quando escolhe como cenário de outros retratos o seu local de trabalho, o Ministério de Finanças Francês. O fotógrafo tinha grande interesse no teatro francês, como aponta outra pesquisadora citada por Batchen, Julia Ballerini. Por conta desse interesse suas imagens demonstram-no ao reproduzir, interpretar, substituir e reconstruir cenários, personagens, e por fim, a si próprio. Na série ‘Autorretrato de um afogado’ Bayard se apresenta como objeto e assunto ao mesmo tempo, como representação, que é também realidade, como a si próprio e como um outro, como
presença e ausência, como morto e vivo. Esses paradoxos colocados por Bayard por meio de suas experimentações fotográficas parecem muito próximas de nosso tempo, dois séculos mais tarde. 2.2 A fotografia como jogo A fotografia enquanto jogo é uma analogia apresentada por Philippe Dubois no capítulo quatro de seu livro, quando se aproxima de questões acerca dos cortes (temporal e espacial) e da compulsão pela repetição do ato de fotografar (DUBOIS, 2013, p.162). Esse mesmo termo e analogia aparece no ensaio de Flusser. Dubois se refere ao ato de fotografar como “golpe”, “jogada”, “clic”, “bater da foto”. Esse ato é assim considerado uma vez que golpeia, fatia o 67
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espaço e o tempo na tentativa de “fazer uma jogada”. Dessa analogia vem a ideia de que as sequências fotográficas estão sempre relacionadas à compulsão pelo jogo: “não se tira uma foto, a não ser por frustração; tira-se sempre uma série – metralhemos em primeiro lugar, a seleção vem depois -; só há satisfação em fotografar a esse preço [...] recomeçar todo o tempo” (2013, p.162). Desde ir e vir fotográfico, do eterno recomeço, a fotografia ganha caráter performático, de sequências de ações que são ao mesmo tempo locais, transitórias e singulares. O espectador ou observador de imagens fotográfica vagueia com o olhar pela fotografia, estabelece relações e conexões espaço-temporais entre os elementos que compõem a superfície imagética. Esse vaguear, segundo Vilém Flusser, se dá de forma circular, retorna os elementos já visitados, desta maneira, o “tempo projetado pelo
olhar sobre a imagem é o eterno retorno” (FLUSSER, 1985, p.7). Esse tempo circular é o tempo da magia. Tendo em vista essa relação temporal que é própria à fotografia, para o filósofo, apenas séries fotográficas dão conta de indicar, ou de apresentar indícios, da real intenção do fotógrafo, uma vez que apenas séries fotográficas indicam as decisões tomadas diante do gesto fotográfico. Ainda no capítulo quatro Dubois afasta a fotografia da pintura, colocando-as como modalidades artísticas opostas: a pintura é feita ao longo de um determinado tempo, a fotografia, “vítima” de um golpe é criada de uma só vez, à seco; as manipulações estão destinadas somente aos fotógrafos pictorialistas, enquanto na pintura, acontecem o tempo todo. Pois bem, tendo em vista meus próprios procedimentos fotográficos, a começar pelo uso da fotografia digital, penso que a fotografia
está bastante próxima tanto da pintura como da ideia performática proposta pelo próprio Dubois inicialmente. O jogo fotográfico apresentado por Flusser é ainda mais complexo, fotografar é “brincar com o aparelho”, e brincar de acordo com as regras que o aparelho apresenta. O objetivo do fotógrafo é encontrar uma nova função, dentre as inúmeras que a câmera dispõe. Essa busca parece findável, mas não é, o aparelho apresenta possibilidades infinitas e o jogo só acontece porque é impossível, para o autor, penetrar no aparelho, por isso se refere a ele como “caixa preta”. Dentro deste pensamento, O fotógrafo “escolhe”, dentre as categorias disponíveis, as que lhe parecem mais convenientes. Nesse sentido, o aparelho funciona em função da intenção do fotógrafo. Mas sua “escolha” é limitada pelo
número de categorias, a não ser que deixe de fotografar a passe a funcionar na fábrica que programa aparelhos. Neste sentido, a própria escolha do fotógrafo funciona em função do programa do aparelho (FLUSSER, 1985, p. 19).
Aproximo meus procedimentos e experimentações, guardadas as devidas proporções e espaço/tempo, das empreendidas por Bayard. Os enquadramentos realizados levam em consideração todos os objetos colocados “em cena” e, principalmente, pictoricamente. As imagens em sequência não são necessariamente feitas de uma só vez. Para as ações, como já dito anteriormente, foi necessário a ajuda de mais de uma pessoa para fotografar ou me “dirigir”, me orientar, como no caso de ‘Tentativas Caseiras de Desaparição’ (Figura 13). Contar com essas pessoas fez com 69
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que o trabalho ganhasse outras proporções, desde poder compartilhar da experiência e decisões de pessoas que não estavam inicialmente ligadas ao trabalho e selecionar e editar imagens fotográficas não “golpeadas”, “jogadas” pela própria autora dos trabalhos. Além disso, a seleção acontece ao mesmo tempo em que as imagens são feitas, a imagem digital possibilita a visualização dos ‘clics’ e o descarte de imagens que por ventura saíram desfocadas. Outra seleção, já com as imagens impressas é feita a fim de determinar a sequência nas quais estarão dispostas, ou qual delas integrará um vídeo, livro ou exposição. Retoques e correções de cores e luzes também tão revistos neste momento. Tendo em vista essas relações apresentadas tanto por Dubois como Flusser, penso a produção fotográfica desenvolvida durante o período do mestrado, como um jogo coletivo.
2.2.1 O jogo que se joga junto A fotografia enquanto jogo é, ao que parece no discurso de Dubois e Flusser, um jogo que se joga solitariamente: o fotógrafo e o equipamento. Tendo em vista a participação ativa de mais de uma pessoa durante o ato fotográfico, o jogo proposto pelas fotografias realizadas neste percurso é um jogo jogado em grupo: a experiência narrativa se faz no coletivo, é necessário que uma pessoa narre e outra escute, o locutor e o interlocutor são sempre imprescindíveis para que uma história seja propagada. Enquanto processo criativo e elaboração das fotografias, vídeo e livro de artista, as ideias nunca surgiram sozinhas. Elas vieram de livros, histórias escutadas em aulas, ou por amigos e familiares, foram anotadas em frases soltas, pequenos parágrafos em cadernos diversos, aqueles
que estivessem à mão no momento da leitura ou da escuta. Essas frases e parágrafos anotados ficaram um tempo guardados, apenas grafados nas páginas dos cadernos (Figura 20), ganhando corpo sozinhos, enquanto outras leituras e escutas aconteciam. O gesto fotográfico foi, em todos os trabalhos desenvolvidos, executado por uma outra pessoa, e, dentro desse processo, posso estabelecer as seguintes relações poético-narrativas: as histórias escutadas ou lidas são assimiladas, reelaboradas por mim e transmitidas verbalmente para aqueles que serão responsáveis pelo ato de fotografar. As imagens são produzidas, então, a partir do olhar de uma outra pessoa, após escutar algumas orientações técnicas (posições corporais e enquadramentos) e reelaborar, dentro de si, a narrativa contada por mim. Além disso, e levando em consideração
as discussões propostas por Philippe Dubois e Vilém Flusser, há outro elemento que deve ser levado em consideração na análise dessas imagens especificamente, a pessoa que fotografa também está sujeita às regras e ao jogo proposto pela câmera fotográfica. Em suma, a narrativa inicial, aquela lida ou escutada antes de se tornar imagem, é transmitida e reelaborada por outra pessoa além de mim, que, seguindo algumas orientações e direcionamentos, devolve, em forma de imagens, aquilo que ouviu e elaborou. O fato de meu rosto estar coberto em grande parte das imagens, faz com que o executor do ato fotográfico tenha uma liberdade considerável para interpretar minhas orientações. Por esse motivo, a seleção de imagens para compor finalmente os trabalhos, por vezes apresente sequências não antes previstas, ou que incorporem elementos e
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gestos daquele que fotografou. A narrativa se repete e se transforma diversas vezes e de maneiras diferentes, ora texto e fala, ora imagem, sempre acompanhada de um movimento de ir e vir, um primeiro narra, o outro, escuta, elabora e devolve de outra forma a narrativa, e por fim, há a seleção e finalização dos trabalhos em sequências fotográficas, vídeo ou livro de artista, que são então, o resultado dessa contação de histórias. A repetição de uma narrativa está diretamente relacionada à ideia de brincar proposta e apresentada por Benjamin (1996, p.271) na qual relaciona o desejo e a concretização da experiência no seu retorno, na restauração de seu ponto de partida. Para o autor, o adulto se alivia e regozija quando narra sua própria experiência, já a criança recria tudo partindo do “mais uma vez”, de seu início. Nesse sentido, a repetição, que para o adulto se dá no ato de narrar e para a criança no recomeço faz
com que o jogo e a narrativa estejam relacionados. Durante o período da graduação (2007- 2010) as histórias e frases anotadas eram literalmente incorporadas nos trabalhos gráficos, integravam as gravuras, os desenhos como ruídos visuais e como frases para serem lidas pelo espectador, como aconteceu no conjunto de desenhos ‘Estudos para o meu corpo’ (Figura 22) e na série de gravuras ‘Instruções para subir escada I, II e III – homenagem à Cortazar’. A fotografia, que passou a figurar como principal meio de experimentação, colocou o corpo em primeiro plano, incorporou o ambiente e o espaços de criação e elaboração da artista e, por esse motivo, deu à escrita, um outro papel, o de esboço, de ponto de partida, de fagulha para a criação visual. Se, por um lado, a criação fotográfica não esteve presente em outros momentos da criação, e exploração artística, a literatura e a escrita, sim,
a fotografia, surge com equipamentos caseiros, com edições também caseiras, sem profundos conhecimentos de técnica e de softwares.
Figura 23 - “Instruções para subir escada I”, 2009. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
Figura 22 - Fragmento de “Estudos para o meu corpo”, 2012.
Figura 24 - Detalhe do texto de “Instruções para subir
Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
escada I”, 2009. Fonte: Acervo pessoal, imagens da autora.
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Toda a produção visual continua sendo, assim como foi nos trabalhos de escrita presente, pessoal, dentro do que era possível fazer a partir dos equipamentos que estavam disponíveis, isso por que não houve grandes preparações para as sessões fotográficas. Alguns “cuidados” foram tomados nas primeiras sessões, nas primeiras experiências, como prender a cadela no quintal da casa, mas a decisão de antemão de fotografar em um dia específico, não foi feita. Todas as sessões foram decididas com pouco tempo entre a tomada de decisão e a foto, por esse motivo não temos registros do processo, dos “bastidores” das fotografias. As anotações e a reflexão a respeito das frases e parágrafos anotados tiveram um tempo de maturação onde foi pensado o que seria fotografado, onde e como, mas a ação propriamente, aconteceu a partir de algumas
variantes, como a disponibilidade do(s) assistente(s) e a presença dos materiais utilizados, como no caso de ‘O Retorno do Corpo que Sabe’ (Figuras 2 e 3), as flores. Apesar de ainda manter uma ordem linear fixa, diferente do que acontece com as fotografias de ‘Sobre o que é meu que sobra dele’ (Figura 5), o tempo de leitura e o ritmo de movimento das imagens depende neste caso, exclusivamente do leitor. Esse trabalho sintetiza em fotografias a influência da narrativa e da palavra escrita em minhas pesquisas, onde mais uma vez meu corpo é coberto gradativamente, desta vez, por páginas de um livro segurado em mãos. Como já apresentado em capítulos anteriores, os trabalhos que seguem envolvem e incorporam ações e espaços habitados cotidianamente. Nessas experimentações, o corpo é
camuflado de forma a agregar o volume dos objetos, diferente dos trabalhos anteriores, onde os objetos se moldam ao corpo. As cenas fotográficas presentes em ‘Hidden Mother’ (Figura 14) e ‘Tentativas caseiras de desaparição’ (Figuras 12 e 13), funcionam como artimanhas, jogos de desaparições e propõem um outro questionamento: é possível se esconder do próprio cotidiano? Conforme comentado anteriormente, em uma primeira tentativa de produzir ao ar livre (Figura 11), me dei conta de elementos incontroláveis, como o vento, a passagem das nuvens e o escurecer do dia, bem como das ações da Preta, minha cachorra. Nessa tentativa foi percebido que, por mais que se tente organizar o espaço, controlar algumas adversidades, não é possível ter o controle do todo. A incorporação desses elementos foi um ponto de virada na pesquisa e a observação
do espaço e dos elementos que fazem parte dele, fomentou um novo direcionamento do olhar para o meu próprio cotidiano e as minhas ações e funções dentro do espaço que habito. Apesar de partir de uma ótica essencialmente pessoal, uma vez que me fotografo dentro do meu espaço e com tudo o que preenche esse espaço e a minha experiência cotidiana, não se trata, aqui, de afirmar que apresento uma visão específica e única, como se apenas a minha pessoa sentisse a necessidade de me camuflar e desaparecer vez ou outra da rotina cotidiana. Ao passo em que apresento essas imagens e essas camuflagens utilizando objetos espalhafatosos e chamativos, apresento justamente a incapacidade de desaparecer totalmente, o camuflar permite o desaparecer momentâneo e a escolha dos objetos para camuflagem estão fadados ao fracasso. Essas pequenas ironias propostas, ora
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com uma toalha xadrez colorida e uma cachorra no colo, ora com muitos balões coloridos juntos em volta da cabeça, mostram que, por mais que haja a vontade de sumir, de abandonar algumas situações rotineiras, isso não é totalmente possível, e sempre vai haver alguma coisa, algum objeto, alguma ação que nos traga de volta para o lugar onde estamos, seja os balões, seja a Preta. Em ‘Hidden Mother’ (Figura 14) três fotografias são colocadas lado a lado, sendo a primeira e a última da tríade, muito parecidas em suas composições. A imagem central denuncia o corpo humano coberto pela toalha, ao mesmo tempo em que prolonga e une as pernas humana e canina. É essa imagem central, ao lado das outras duas que sugere o fracasso da camuflagem. O movimento dos pés e a posição do cachorro, assim como as posições corporais dentro do espaço da casa no livro de artista, ou a quantidade
de flores no vídeo, ou ainda a quantidade de tricôs e folhas de um livro está fixado em cada fotografia. Nada impede que elas sejam vistas individualmente, porém, devido ao fato de estarem organizadas em conjuntos, é o que organiza em imagens, as palavras ouvidas e lidas de antemão e que, por sua vez, originaram tais imagens. Mesmo em se tratando de lentas variações de movimento, como acontece similarmente às sequências fotográficas de Muybridge, ‘Animal Locomotion’, de 1887, o fato de uma foto estar ao lado da outra evidencia a real intenção do fotógrafo, capturar, fixar em imagens, aquilo que dificilmente veríamos a olho nu. O livro de artista ‘Tentativas caseiras de desaparição’ (Figura 13) pode ser visto de algumas maneiras, as imagens sequenciadas em formato sanfona permitem que o leitor manipule desdobrando e dobrando as páginas, ora para a
direita, ora para a esquerda. Outra possibilidade é deixá-lo como objeto, já que há uma abertura em uma das páginas que permite dobrá-lo e deixá-lo em pé. Isso permite que o leitor ande em volta do livro e percorra suas imagens com o próprio corpo, o livro não se move, o leitor sim, como aconteceu durante a exposição coletiva ‘Arte Impressa: ação e produção’, na Galeria de Artes do Instituto de Artes da Unicamp.
originalmente, sejam como livro de artista, vídeo ou fotografia propriamente ditas, esbarram na seguinte noção de movimento: “sucessão simultânea” de imagens (NICOLAJEVA; SCOTT, 2014, p.196) utilizada amplamente durante a idade medieval, baseada em uma figura/personagem central que retratada em momentos desconexos, ao serem dispostas uma ao lado da outra indicam tempo e ritmo, ou seja, movimento. Apesar de, muitas vezes, as imagens isoladas representarem momentos e períodos de tempo muito distantes, o fato de elas estarem juntas gera um “tempo narrativo” único que abarca muitos anos. O intervalo entre uma imagem e outra, o ritmo que indica o movimento e a passagem de uma fotografia a outra, no caso das fotografias Figura 25 - Da série Animal Locomotion, 1887. ampliadas ou no caso dos livros de artista indicam Fonte: Getty Museum, Estados Unidos. uma sucessão de acontecimentos que por sua vez, As sequências das imagens, criam a narrativa.
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Todas essas relações sequenciais, de ritmo e movimento, presentes no objeto livro foram ampliadas e experimentadas artisticamente ao logo dos trabalhos desenvolvidos, há, no entanto, algumas questões que continuam em aberto, pulsando para novos trabalhos, que serão apontadas a seguir. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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O livro, objeto de primeira potência narrativa, com o qual tive contato ainda na infância, foi, sem dúvidas, o grande ponto de partida das pesquisas que aqui se apresentaram, por outro lado, pouco explorado enquanto objeto artístico em potência. Algumas questões inerentes ao livro estiveram presente nos ensaios fotográficos, mas, foram pouco aprofundados, tendo em vista o curto prazo para o desenvolvimento dos mesmos e a
escritura deste volume. A palavra escrita não se fez presente nos trabalhos desenvolvidos nos últimos dois anos, e é desconsiderada visualmente nos trabalhos, abriu possibilidades de interpretações para eles. Tendo em vista a relação pessoal que tenho com o objeto livro busquei investigar as relações sequenciais e possíveis narrativas visuais sem que a palavra escrita liderasse ou indicasse possíveis caminhos, essa ausência abriu-se para representações não miméticas (NICOLAJEVA; SCOTT, 2014, p.237) ou simbólica, que estimula o leitor a decodificar as imagens como expressões de possibilidade, impossibilidade, desejo ou necessidade, diferente da representação mimética, que estimula o leitor a decodificar um texto ou imagem como indicativa de veracidade. As imagens, quando desacompanhadas do texto, argumentam Maria Nikolajeva e Carole
Scott (2014, p.238) não deixam explícito se o que está sendo retratado é real, se trata de um sonho, desejo, ordem ou dúvida. Essa abertura de significados faz com que sejam atribuídas às sequências visuais, a ideia da fantasia, da brincadeira. Apesar de as imagens abrirem a possibilidade da dúvida, colocada pelas autoras do citadas anteriormente, a palavra não me parece tão limitadora e comprometida com o verdadeiro. A combinação dos dois elementos, em especial, da imagem fotográfica, é um dos desdobramentos que pretendo explorar em novos trabalhos. A camuflagem foi um dos nortes da produção, mas dentro desse conceito, outra forma se mantém em todos os trabalhos, apesar de ainda não ter sido abordada com afinco, o fato de primordialmente o rosto ser sempre o foco das transformações e tentativas de desaparições.
Cobrir o rosto é tentar ocultar uma identidade e utilizar objetos para fazê-lo poderia indicar a tentativa de criar máscaras para este rosto/identidade. Para Gaston Bachelard (1985, p.164), mascarar ou encobrir um rosto estaria relacionado à ideia de “dissimulação”, que, de acordo com a fenomenologia, remonta “à raiz da vontade de ser outro que se é”. E ainda, “[...] a máscara é a vontade de ter um futuro novo, vontade não somente de comandar o próprio semblante, mas de reformar o rosto, de ter doravante um novo rosto”. Mesmo que a ideia de se transformar em outra pessoa esteja diretamente relacionada com as camuflagens propostas nos trabalhos desenvolvidos até então, a possibilidade de criar novos seres por meio da camuflagem está sinalizada em alguns dos trabalhos, como na imagem central de ‘Hidden Mother’ (Figura 13), onde há a possibilidade de hibridizar o corpo humano com o canino por meio
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de suas sobreposições, formas e cores. Essa sinalização, atrelada à discussão proposta por Bachelar, é um dos possíveis desdobramentos da produção, uma vez que não há meios de escapar ao cotidiano buscar outras alternativas de escape, aponta para novos desdobramentos. O camuflar deu-se em propostas distintas e tornou-se um dos fios condutores dessa produção. Nos primeiros trabalhos a camuflagem ocorreu em ambientes “neutros”, sem identificações, cenários e objetos. Houve, nesse primeiro momento, o desejo de refletir e criar artisticamente, a partir de narrativas literárias, como no vídeo ‘O retorno do corpo que sabe’ (Figuras 2 e 3), na série de fotografias ‘Espera (,) Penélope’ (Figura8), até o limite da relação corpo e narrativa escrita, apresentado em ‘Sobre o que é meu que sobra dele’ (Figura 5). Dentro desta pesquisa houve uma
predileção pela presença do corpo feminino e de narrativas que estivessem diretamente relacionadas a ele. Segundo o sociólogo francês Michel Maffesoli o feminino está diretamente relacionado com o fluxo vital e com o conceito de eterno, uma vez que esse é o responsável pela perduração da espécie e, em última instância, de conexão com a natureza. Ophelia shakespeariana deixa sua cabeleira flutuando livremente na água (MAFFESOLI, 2003, p. 168) enquanto que não só conta com a natureza, mas “faz com ela”. O feminino carrega junto de si essa ideia, de que vida e morte estão nele conjugados, as mulheres seriam as guardiãs, ligadas à “Grande Mãe” e o universo feminino, bem como os afazeres tipicamente atribuídos ao universo feminino estariam relacionados a esse paradoxo de viver plenamente, em comunhão com a natureza, no tempo presente. O novo caminho traçado pela produção
com os trabalhos finais desse processo, ‘Hidden Mother’ (Figura 14) e ‘Tentativas caseiras de desaparição’ (Figura 13), apontam para um desdobramento da pesquisa que invoca novas perspectivas e trabalhos futuros. O olhar sobre a vida cotidiana, sobre os hábitos e rituais constantes da vida comum estão diretamente relacionados à ideia do instante eterno, apresentado por Michel Maffesoli (2003), no qual discute os rituais do dia a dia com relação à produção artística de nosso tempo. Sobre os artistas de maneira geral, Maffesoli fala: “daquele que pretende fazer de sua vida uma obra de arte. É dizer, reformulando ou não deste modo, daquele que, no cotidiano, dá valor ao aspecto qualitativo da existência” (2003, p. 21). Citando Oskar Kokoschka o autor segue: “Não podemos escapar a uma vida que devemos fatalmente viver”.
A vida cotidiana é, por si só, considerada alienada, como retratou Charles Chaplin, citado em capítulos anteriores, porém, as atividades rotineiras do dia a dia favorecem o aparecimento de rituais e de repetições. As repetições fazem com que entremos em um tempo mítico, afirma Michel Maffesoli, ou, então, parafraseando Gilbert Durand, um “não-tempo mítico”. As repetições de rituais, ou o que o autor chamará de rotina cotidiana, “são maneiras idênticas de expressar e viver o retorno do mito e, portanto, de escapar de uma temporalidade muito marcada pela utilidade e linearidade”, as ações rotineiras não têm sentido específico, são ‘porque são’ e é justamente nessa ausência de sentido que devem ser vistas como paralisantes do tempo, como presentificantes, como agentes de suspensão do tempo. A redundância, tônica das ações ritualísticas cotidianas, carrega em si o trágico,
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o inevitável eterno recomeço, que por mais que individualizado, transita à esfera coletiva justamente por levar junto de si as sensações do “já visto”, “sentido” ou “ouvido”. Para Maffesoli (2003) a criação artística acontece justamente nos momentos de redundância e repetições, uma vez que são para ele considerados “momentos de existência plena”. É nesses momentos, em que estamos presentes, executando ações repetidas que vivemos plenamente, e que por isso, vivenciamos a morte. Segundo o mesmo, há algo de divino nas ações de repetições cotidianas. Elas acentuam o presente, de uma mentira divina e ao mesmo tempo trágica e, porque não, cruel, não projetam no futuro a solução de problemas do tempo presente. Nessas ações vive-se ‘porquê sim’, porque aqui a vida, de fato, se faz presente. A imagem, dentro desse pensamento, e levando-se em consideração a pesquisa e os textos de
Walter Benjamin, é uma “sedimentação da história” (2003, p. 67) na qual o eterno e o efêmero dividem espaço, o movimento é detido e, junto com ele, o anedótico, o rito, os detalhes, ou seja, a poesia que preenche o cotidiano, poesia que segundo Maffesoli
[...] não é reivindicada como tal, mas que se encontra presente na ironia para com toda a instância dominante, no humor próprio das múltiplas discussões anódinas ou, em especial, nas comunicações não verbais pelas quais se expressa a paixão social (2003, p. 56)
Nesse sentido o ritual nada mais é do que o suspender do tempo, assim como a fotografia, e daí sua relação imediata. Dentro da esfera poética na qual nos localizamos há muito ainda a ser pesquisado e experienciado. Me apropriando da fala de Dr.
Volpius, amigo pessoal de José Ortega y Gasset, citado no livro Adão no Paraíso e outros ensaios de estética (GASSET, 2002), termino este texto. Não há forma de aprisionar em um conceito a emoção do belo que foge pelas juntas, flui, liberta-se como os espíritos inferiores a quem o cultivador da magia negra tentava em vão caçar para prendê-lo no interior das redomas. Em estética sempre alguém esquece alguma coisa depois de fechar penosamente o baú, e é mister voltar a abrir e voltar a fechá-lo, e ao fim, começar de novo. Com uma peculiaridade: isso que havíamos esquecido é sempre o mais importante (2002, p.29)
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REFERÊNCIAS
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________. Tempo e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
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