Intervenções Urbanas: apropriação do meio através da arte

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI DESIGN DIGITAL TURMA MA7

Trabalho apresentado como exigência parcial para a disciplina Pesquisa e Projeto Transdisciplinar em Artes, Design e Moda, do curso Design Digital da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Carlos Alberto Barbosa.

São Paulo 2010/1


CLAUDIA GARCIA MARDEGAN MARCELO MORAES ACQUILINO MARINA CARDOSO MAURO STROCOVSKY RAFAEL CARDOSO DE ALMEIDA RAPHAEL FINELLI FABENI THIAGO STANZANI


UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI DESIGN DIGITAL TURMA MA7

Trabalho apresentado como exigência parcial para a disciplina Pesquisa e Projeto Transdisciplinar em Artes, Design e Moda, do curso Design Digital da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Carlos Alberto Barbosa.

São Paulo 2010/1


RESUMO

A busca pelo entendimento da natureza estende-se por séculos e já foi tema estudado por diversos

autores. Através de pesquisas bibliográficas referenciais e orientações, a construção da pesquisa baseouse em importantes autores que desenvolveram estudos sobre artes, linguagem, cultura e meios urbanos. Com isso o trabalho se desenvolveu de modo a explorar o meio urbano através de intervenções, como o grafite e a pichação, buscando entendimento sobre a cidade. Essas intervenções urbanas foram comparadas à arte rupestre, em que a busca pelo entendimento do meio através dos grafismos encontrados nas paredes das cavernas, que eram desenvolvidos pelos homens primitivos, era uma maneira dominar a natureza que o cercava. Na atualidade, com o desenvolvimento da tecnologia, as máquinas executam suas funções de maneira independente e agora o homem não possui mais controle sobre o meio que o cerca. Assim, encontra-se no grafite e na pichação uma maneira de intervir na cidade, procurando um entendimento sobre o espaço urbano. Palavras-chave: Arte. Linguagem. Rupestre. Urbano. Grafite.


Abstract

The search for nature understanding comes for centuries and it has already been a theme studied by

various authors. Through bibliographical references and lectures, the research was based on important authors who developed studies about arts, language, culture and urban environment. This research was intended to explore the urban environment through interventions, like the art on wall and graffiti, achieving understanding about the city. These urban interventions were compared to the primitive art, in wich the understanding of the environment was done through the drawings found on the caves walls, done by primitive men in order to rule the nature that surrounded them. Nowadays, with the technology, the machines execute its functions independently and now the man doesn’t have the control over the environment anymore. But then we figured in art on wall and graffiti a way to intervene in the city, looking for understanding of the urban space. Keywords: Art. Language. Primitive. Urban. Art on wall.


Lista de imagens 15 18 19 20

FIGURA 1 - Homem-Espírito Caçando Cangurus. Pintura aborígene de Western Arnhem Lan - Austrália Setentrional - Casca de árvore Figura 2 - Touro Negro. Parte de uma pintura rupestre, 15000-10000 a. C. Gruta de Lascaux, França

Figura 3 - Grafite - Os Gêmeos

Figura 4 - Graffiti Robert Rauschemberg

Figura 5 - Freestyle FIGURA 6 - Wild Style

21 24 28 29

Figura 7 - Throw Up FIGURA 6 - 3d Style

FIGURA 9 - Aldeia em culto religioso

FIGURA 10 - Grafite em parede de casa em Olinda - PE

FIGURA 10 - Grafite em prédio, em Lisboa Os Gêmeos


Agradecimentos

Agradecemos a todos os professores da Universidade Anhembi Morumbi que de certa forma auxi-

liaram e aconselharam desde o inĂ­cio da pesquisa transdisciplinar em Artes, Design e Moda, do curso Design Digital, principalmente ao professor Carlos Alberto Barbosa, que nos orientou de modo que esta pesquisa tenha se concluĂ­da.

Queremos agradecer especialmente ao grafiteiro Bruno Paiva, que contribuiu com o seu trabalho

para o desenvolvimento da etapa grĂĄfica dessa pesquisa.

a obrig

do

9



Sumário 12 14 15 16 17

INTRODUÇÃO

19 20 24 28 31

1.3.1 Abordagem Textual do Grafite 1.3.2 O Grafite dos Anos 80 ao 2000

CAPÍTULO 1 NATUREZA E ARTE

1.1 ARTE RUPESTRE 1.1.1 Mimese e Arte Rupestre

1.1.2 O homem – de caçador a coletor 1.2 HOMEM, ARTE E A TRANSFORMAÇÃO DA NATUREZA

1.3 ARTE URBANA

1.4 RELAÇÃO ENTRE ARTE, ARTE RUPESTRE E GRAFITE

CAPÍTULO 2 CULTURA E LINGUAGEM 2.1 CULTURA 2.1 ELEMENTOS DE LINGUAGEM

CAPÍTULO 3 A APROPRIAÇÃO DO MEIO PELO HOMEM, ATRAVÉS DA ARTE URBANA

CONCLUSÃO


INTRODUÇÃO

A pesquisa aborda o tema da apropriação do meio urbano através da arte como obtenção de entendimen-

to do mesmo.

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Em um primeiro momento, pode-se observar a arte sendo executada nas paredes das cavernas na pré-

história, em que o homem, através de rituais mágicos, buscava a compreensão da natureza e dos animais, com o objetivo de dominá-los, para posteriormente sobreviver através da caça. Com o desenvolvimento da sociedade e o surgimento das cidades, o homem transforma essa natureza pré-histórica em uma segunda natureza gerando um novo período de aprendizado, em que não se compreendia e sequer tinha-se domínio desse ambiente. Surgem assim, as primeiras intervenções urbanas, a fim de dominar o desconhecido, retomando os princípios dos desenhos pré-históricos.

No segundo capítulo, aborda-se sobre a identidade da sociedade que habita na segunda natureza, defi-

nindo sua cultura e as formas de se expressarem, através dos elementos de linguagem, proporcionando uma maneira de dialogar com a cidade, reparando o espaço urbano como uma forma de comunicação e expressão.

Por fim, no terceiro capítulo, é discutida a razão da intervenção urbana e como ela se relaciona com o

conceito da arte rupestre, abordando o seu valor de culto, considerada por seu valor único e não apenas por estar exposta em um ambiente público, onde todos podem apreciá-la.


CAPíTULO 1

NATUREZA E ARTE


Quando falamos sobre natureza, o que

pré-histórico e seus desenhos rupestres. O ser

de imediato pensamos são as florestas e seu

humano tenta transformar as paisagens a fim

verde, paisagens deslumbrantes e seus ani-

de lhes proporcionar um ambiente com carac-

mais. Porém, como objeto de estudo, a nature-

terísticas produtivas e familiares (MORAN,

za apresenta outros aspectos que devem ser

2006).

levados em consideração.

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À primeira vista, a casa, ou ainda a ca-

Em seu curso do Collège de France,

verna nas quais os homens pré-históricos habi-

Merlau-Ponty (2000) analisou diversos filóso-

tavam, seria a primeira tentativa de controlar

fos cujo estudo da natureza se apresentava de

o ambiente que nos cerca. No entanto, pode-

forma profunda. A partir dos relatos propostos

mos ir um pouco além dessa questão, verifi-

por ele pode-se observar um aspecto em co-

cando o porquê da existência dos próprios

mum: a natureza é um conjunto de fenôme-

desenhos encontrados dentro dessas ‘casas’ e

nos, sobre os quais não temos controle algum.

como eles influenciavam o modo de vida e a própria natureza dos homens primitivos.

Independente desse fato, incluído em

seu ciclo de fenômenos, o ser humano busca incessantemente controlar esta natureza, através de suas criações, assim como o homem


1.1. Arte Rupestre Embora haja objeto de estudo em vários campos do conhecimento, a arte rupestre, ou primitiva, revela pouco sobre os homens primitivos e a função real de tais desenhos. De acordo com Janson (2001), inicialmente os desenhos tinham aspecto de ritual, onde os homens pintavam a presa com o intuito de diminuir o medo dos caçadores no momento da caça. Fazendo isso, eles acreditavam estar ‘matando o próprio espírito do animal’, encontrando dominação sobre o indivíduo que foi pintado e, por conseguinte, o ambiente, a natureza. Para Martins e Calabria (1997, p.16), “a teoria mais aceita é a de que esses desenhos eram feitos por caçadores. Tudo o que conseguissem desenhar poderia interferir na captura de um animal, desenhando-o ferido mortalmente, podendo desta forma dominá-lo com facilidade”. Pode-se dizer que mesmo de maneira inconsciente o homem pré-histórico já praticava o ato da mimese. De acordo com Dondis (1997, p. 168) “a pintura das cavernas é uma tentativa humana de olhar para a natureza e representá-la com o máximo de realismo possível”.

realizada” que remete a aparência dos corpos, criando “as coisas sensíveis, tomando por modelo as essências imutáveis” e a “imitação moral” que tem por importância a reabilitação espiritual do homem e os valores do Bem e do Belo, a fim de assemelhar-se ao que se contemplava intelecutalmente. A esta segunda observação podemos acrescentar o modo com o qual os homens primitivos tomavam a arte: imitação espiritual. Deste modo, mais uma vez, podemos verificar a vontade do ser humano em se apropriar da natureza de modo sobrenatural. Numa breve análise, pode-se entender a mímese destes homens primitivos como uma tentativa de retratar a essência dos seres e das coisas a fim de se tomar posse delas e, uma vez possuída e tendo seu co- nhecimento, obter sucesso em suas caças. Além disso, pode-se verificar a existência de um fator de planejamento através da arte, algo que, sugere-se como um tipo de design. Isto posto, podemos afirmar que a forma com a qual o homem primitivo tratava os seus desenhos, além de outros rituais artísticos, ia além da arte comum e imitativa: ela buscava entendimento.

1.1.1 Mimese e a Arte Rupestre Os homens primitivos não queriam retratar os animais com perfeição, e sim sua essência, ao contrário dos escultores ou pintores mais recentes que, imitando a natureza, apenas retratam a concha externa aparente a todos que possam enxergar. Nunes (2001), lembrando os entendimentos de mímese adotados por Platão, apresenta que existem apenas dois atos miméticos: a “imitação primeiro

Figura 2 - Touro Negro. Parte de uma pintura rupestre, 15000-10000 a. C. Gruta de Lascaux, França. Fonte: JANSON, 2001, p. 66. Figura 1 – Homem-Espírito Caçando Cangurus. Pintura aborígene de Western Arnhem Lan - Austrália Setentrional - Casca de árvore. Fonte: JANSON, 2001, p. 46.

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1.1.2. o homem - de cacador a coletor

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Depois da produção de ferramentas e o cultivo de plantas e animais, o homem evoluiu mais em 5000 anos do que em toda sua existência anterior a este evento. Entender este salto evolutivo é essencial para que entendamos alguns aspectos a serem apresentados no decorrer da pesquisa. . No período que era caçador, o homem se mantinha fiel aos desenhos rupestres com o intuito de gerar proteção contra o desconhecido. Porém, com a “[...] domesticação de animais e a cultura de plantas alimentícias conseguiu-se uma vitória decisiva [...] pela sobrevivência” (JANSON, 2001, p.72). Em adição a isto, através de suas ferramentas o homem começa a alterar de modo mais apropriado o meio que o cerca, estabelecendo assentamentos e não mais sendo nômade. Além disso, o ser humano passa a ter conhecimento sobre os fenômenos, não mais se escondendo dos mesmos, mas tomando posse destes em prol da própria existência. Como afirma Janson (2001, p.72) “[...] as forças da natureza nunca mais o ameaçariam”. Essa sensação de segurança foi vital para a criação de pequenos povoados. O ser humano, nesse momento, não necessitava mais possuir os apurados sentidos do caçador Paleolítico, e o seu poder de observação foi substituído pela abstração e racionalização. Ocorreram também mudanças na maneira de desenhar e pintar e, os próprios temas das artes começaram a mudar (PROENÇA, 2000). Apesar da importância dos desenhos, Hauser (1998) assume que os ‘profissionais’ que eram responsáveis por tais rituais foram deixados de lado por algum tempo.

1.2 Homem, Arte e a transformacão da Natureza

A revolução industrial serviu de transição do Feudalismo ao Capitalismo, e tem como principal aspecto a grande utilização de maquinário e o surgimento do trabalho assalariado. Neste período a demanda de produção tornou-se cada vez maior, obrigando as empresas a trabalhar mais e de forma automatizada. Neste período a população mais pobre não teve escolha a não ser abandonar seu estilo de vida tradicional e adotar automaticamente por qualquer outra coisa que fosse oferecida como alternativa de sustento. Este é o cerne da questão dos efeitos sociais da industrialização, que de certo modo reflete como o homem começou a tratar a natureza desde então (MARQUES; BERUTTI; FARIA, 2001). O proletariado passou a viver uma ‘rotina’, sobre a qual não poderia fugir, pois sua única fonte de renda tinha origem no trabalho em fábricas. O trabalhador foi inserido num novo ciclo de fenômenos sobre os quais detinha pouco conhecimento, bem diferente do que estava acostumado no período pré-industrial. Se recuperarmos a história do homem primitivo, discutido alguns parágrafos acima, podemos entender que esta transição do campo para as cidades e suas fábricas gerou um novo período de aprendizado humano, mesmo que mais sutil. O homem não compreendia todo o processo e estava suscetível a um novo ambiente. Mesmo que artificial, a cidade lhe era estranha, assim como os fenômenos que foram dominados por ele séculos atrás. Pode-se dizer que se tratou de uma questão de tempo e de oportunidade para que os povoados que estavam em crescimento se desenvolvessem em algo maior e consequentemente mais complexo, transformando-se assim no que chamamos atualmente de


cidades. (MORAN, 2006). Dentro desta expansão foram introduzidos diversos elementos que não estavam sob o domínio da população. Apesar das mudanças ocorridas com o passar dos anos, podemos citar entre estes elementos a criação do transporte coletivo, sistemas de gerenciamento de trânsito e o sistema de iluminação pública. A estas atividades pode-se considerar que seja uma nova natureza, pois se tratam de atividades cíclicas e independentes da vontade humana. Grande parte dessas atividades é gerada por tecnologia criada pelo homem e, apesar de facilmente serem reprogramadas, depois de sê-lo temos que nos adaptar a elas, do mesmo modo como os homens primitivos se adaptavam às estações do ano ou ao movimento de rotação do planeta, o dia.

1.3 Arte Urbana Como visto, na época pré-histórica os homens desenhavam nas paredes das cavernas cenas que vivenciavam. Esses desenhos representavam animais e caçadores, invocações de deuses, além de outros símbolos que ainda são considerados enigmas para os arqueólogos. Assim como na arte rupestre em que o homem se ocupava registrando desenhos sobre seu cotidiano e acontecimentos por motivo de sobrevivência e domínio do desconhecido, os artistas urbanos encontraram na cidade uma maneira de compreendê-la através de expressões artísticas, apropriando-se do meio como suporte para seu próprio entendimento. Para melhor leitura dos parágrafos que seguem, é necessária a apresentação de um

conceito do que é cidade e o que é urbano. Analisando Moreno (2001), podemos conceber a cidade como um espaço que contém os cidadãos, os quais não se mantêm apenas ao papel de moradores, onde exercem suas atividades culturais, financeiras e sociais, e não somente ao seu espaço físico geográfico. Além disso, urbano provém do latim urbs, o que podemos tomar por civilidade, em contraponto ao rústico, o rural, o campestre. A partir disso, por arte urbana pode-se entender toda e qualquer manifestação que exalta os conceitos e costumes característicos dos centros urbanos, e não da cidade como um todo. No entanto, como se pode observar em grandes cidades, através de grafites e pichações, ainda encontramos aspectos rupestres da arte, se não rústicos, a nível fundamental, se baseando no que já foi apresentado. Este é o propósito que devemos observar no decorrer dos próximos parágrafos. Pintar em muros e paredes é uma atividade que o homem pratica desde o início do século XX. Tendo seus primeiros registros no México, país que na época lutava para con-

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quistar sua identidade cultural, essa arte urbana, tinha como objetivo tirar a arte dos museus e levá-la ao povo através dos muros e paredes das ruas (ZUIN, 2003).

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Mesmo quando não há propósito artístico, o ato de pintar paredes exemplifica a necessidade do homem em conquistar seu próprio espaço, como observado por Moreno (2001), nos textos de William J. Mitchell. Esta necessidade gera certo conflito por parte dos pichadores e grafiteiros, buscando aquele que julgam ser o melhor espaço. Isto não altera o fato de que nem sempre a tais lugares é dada a devida atenção, pois a quantidade de informação transmitida atualmente para a sociedade é cada vez maior. Essa sociedade que habita o meio urbano não se mantém apenas ao papel de moradores. Eles exercem suas atividades culturais, financeiras e sociais também. Pode-se citar os acontecimentos de maio de 1968 em Paris que, de acordo com Sumiya (1992), relacionavam-se a uma ação ‘anti-sistema’, uma vez que a ação praticada - no caso, a ‘pichação’ praticada pelos estudantes - era algo condenado aos banheiros públicos e terrenos baldios e, que traziam à tona os manifestos dos mesmos em relação à situação que encontrava-se Paris naquela época. Os muros da cidade já haviam recebido inscrições, anteriormente, no entanto somente relacionadas às

Figura 3 - Grafite - Os Gêmeos Fonte: http://nuvemsobreoatlantico.blogspot.com

campanhas político-eleitorais e, freqüentemente acompanhadas de cartazes dos candidatos. No Brasil não foi diferente. Uma pequena comunidade de estudantes, pintores e jovens, escolhiam pontos estratégicos da cidade para transmitir mensagens contra o sistema, na época, a ditadura militar. Foi a partir deste ponto que, no Brasil, esses desenhos passaram a ser conhecidos como grafite ou pichação. No entanto, de acordo com Zuin (2003, p. 33), “ambos são diferentes quanto aos temas, às técnicas, aos objetos e os valores sociais que os constituem”. Muitos pensam que o grafite difere da pichação, mas o que muitos não sabem é que a pichação ajudou no surgimento do grafite. Segundo Gitahy (1999) tanto a pichação como o grafite utilizam do mesmo suporte para suas intervenções, a cidade, assim como o mesmo material (tintas). Tanto como o grafite, a pichação também interfere no espaço, subverte valores, é espontânea, gratuita e efêmera. Uma das principais diferenças entre o grafite e a pichação é que o primeiro advém das artes plásticas e o segundo da escrita, ou seja, o grafite privilegia a imagem, tanto paisagem como uma escrita bem trabalhada; a pichação, a palavra e/ou a letra’ com traços característicos, muitas vezes ilegíveis.


Surgida anteriormente ao grafite, na pichação “[...] o que importa é transgredir e até agredir; marcar a presença, provocar e chamar a atenção sobre si sobre o suporte” (ZUIN, 2003, p. 36). Pode se dizer que a pichação passou por algumas fases: a primeira delas consistia em ‘carimbar’ e xaustivamente o próprio nome, com o desejo de chamar atenção para si mesmo. Na segunda fase, muitos usavam apelidos, abreviações, ou marcas que pudessem identificar certos grupos, como se fosse uma delimitação de território. Na terceira fase, pode-se dizer que a história intensificou, nesta época da prática, os pichadores decidiram driblar porteiros e zeladores de edifícios públicos. Agora o mais importante não era a quantidade, e nem o território, e sim o picho mais difícil. Já na quarta fase, a prática atinge seu auge, que era gerar maior polêmica na mídia, Aparecer, acontecer, desafiar autoridades ou realizar obras inusitadas (GITAHY, 1999). Há um motivo muito forte para que a prática da pichação seja em lugares públicos, e casas de classe média e alta. Esta é a maneira de demonstrar seu sentimento quanto às desigualdades sociais. O fato de cada piche superar o outro, em questões de localização, seja em lugares altos, vencendo obstáculos perigosos, é uma das maneiras de manifestar o quão valorosos são os textos da pichação. É de conhecimento popular que o piche é utilizado para a pavimentação de ruas das cidades. No entanto, quando este material é

riscado nos muros, aparece a pichação, onde paredes recebem uma marca preta. “Tem-se aqui uma interpretação ‘simbólica’ da cor para sugerir que a pichação é ‘preta’ porque o piche é preto e, conseqüentemente, toda sua manifestação pode ser marcada por traços negativos atribuídos culturalmente em relação à cor preta” (ZUIN, 2003, p.38). O grafite cada vez mais está inserido na sociedade. Entretanto de acordo com Dieguez (2008), esse tipo de manifestação artística é muitas vezes confundido com pichação e atos de vandalismo, principalmente no Brasil. Na Europa e até mesmo nos Estados Unidos, a coisa não é diferente. Apesar de ser reconhecido como ‘manifestação artística’, o grafite está muitas vezes relacionado como algo clandestino e passível de prisão. Com o surgimento do grafite, os muros das cidades passaram a receber um pouco mais de vida, e não mais somente aquela camada cinzenta que muitas ofereciam. O grafite veio para ‘decorar’ o espaço urbano com desenhos alegres e coloridos. Depois de ser marginalizada, a prática ganhou status na sociedade de forma que passou a ser utilizada em escolas como prática contra o vandalismo e a pichação. De acordo com Gitahy (1999) até mesmo os rabiscos que fazemos enquanto estamos ao telefone, e os encontrados em bancos de praças e portas de banheiro podem ser classificados como grafite. Poato (2006, p.86) dá seqüência ao pensamento dizendo que “qualquer pessoa pode fazer um grafite, colar um sticker ou um lambe-lambe e se dizer grafiteiro ou artista urbano”. Porém, isto é um grande indício de que a arte realizada por tais ‘artistas’ em suma, é semelhante a arte realizada pelos homens primitivos, que se apropriam do meio que habitam para entendê-lo ou fazer entender-se. Ambos são proibidos, mas o grafite, depois de inúmeras práticas, passou a ser reconhecido como arte plástica, por prezar a boa escrita, a imagem e a cor.

1.3.1 A abordagem textual do grafite

Figura 4 - Graffiti Robert Rauschemberg. Fonte: http://clairereilly.files.wordpress.com

A principal base para a leitura de um

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grafite é, fazer uma breve análise de cores, formatos, imagens e conjunções. Desta maneira, é possível imaginar ou até mesmo desvendar o que o artista intencionava passar com aquele desenho: um fato cotidiano, um pensamento, um sentimento ou apenas uma simples ilustração. É claro que tentar interpretar um grafite está longe de ser uma tarefa simples, ainda mais pelo fato de muitos detalhes poderem passar despercebido, o que pode alterar o significado do todo da obra. “Neste jogo de situações, o texto através de suas figuras manifesta o inesperado, e aproveitam das suas expressões para espalhar poesia, mensagens e compor o visual da cidade, deixando-a carregada de sentidos” (ZUIN, 2003, p.67) .

1.3.2 O grafite dos anos 80 aoS 2000 Na década de 80 muitos problemas quase fizeram com que o grafite desaparecesse. Como cada vez mais, pelos problemas públicos, a marginalidade crescia atrelada a venda e consumo de drogas e a ocorrência de assaltos, o grafite, anteriormente utilizado como ferramenta de agressão, também sofreu repressão. Muitos dos artistas que grafitavam desistiram de lutar pela causa, outros dedicaram-se ao estudo da arte. Neste intervalo de tempo, muitos praticantes lutavam para provar que o grafite não fazia parte desta minoria

‘mal intencionada’, muito pelo contrário, pôde-se comprovar que a arte tem a capacidade de retirar inúmeras crianças das ruas e da criminalidade, através de centros de reabilitações e centros culturais. Por volta do ano 2000, o grafite se aprimorou, para simplificar o ato de grafitar, e não ‘exigir’ que o praticante tivesse algum conhecimento sobre a prática. A partir disso um novo estilo foi criado, “o throw-up, que no inglês significa ‘vomitar’, foi o estilo que teve início para inovar as anteriores, também foi o estilo que primeiro surgiu nos anos 2000, sendo considerado o modo mais simplificado para se grafitar. As vantagens desse estilo são de ordem econômica e de praticidade: utiliza-se pouca tinta, e seus adeptos não precisam ser grafiteiros treinados, pois o throw-up é constituído por traços e letras bem simples, o que levou a torná-lo para a maioria dos grafiteiros novatos, a prática mais utilizada” (ZUIN, 2003, p.84). Um jeito bem simples de reconhecer este estilo é que geralmente ele é produzido com poucas cores, mas com bastante contraste entre si. O fundo é deixado para trás, uma vez que neste estilo seus ‘rabiscos’ são realizados com muita rapidez, e muitas vezes as letras são confeccionadas com formatos arredondados, como

Figura 6 – Wild Style. Fonte: ttp://www.duncancumming.co.uk

Figura 5 – Freestyle. Fonte: ttp://farm3.static.flickr.com


se tivessem um caminho a seguir, ora, sobrepondo uma letra na outra. Outros estilos foram criados como o ’freestyle’ – estilo livre – e o ‘wild style’. No primeiro observa-se a mescla de desenhos, letras ou assinaturas em uma única composição. Já no segundo, também chamado de estilo selvagem de grafitar, o que se nota é a presença de letras trançadas, embaralhadas, o que muitas vezes dificulta a leitura, principalmente para a pessoa que não está acostumada a esses textos. Por fim, surge um novo estilo inovador, o 3-D style, onde as imagens parecem verdadeiras, dando sensação de volume e espaços-reais. Para obter resultado nesta técnica, exige-se um amplo conhecimento de técnicas como a de alto contraste e de luz e sombra por parte do grafiteiro (ZUIN, 2003).

1.4 Relacão entre Arte, Arte Rupestre e Grafite Ao atribuirmos a classificação de arte ao grafite, devemos buscar um propósito. Se falharmos na procura do mesmo, temos então um ato de vandalismo. Sumiya (1992) apresenta tais propósitos nas primeiras manifestações de grafites brasileiros, tendo inicio em meados de 1970, trazendo mensagens enigmáticas. Estes grafites eram realizados em paredes de banheiros e tinham teor semelhante aos grafites cont e m p o r â n e o s nova-iorquinos.

Em 1977, os bairros

próximos a USP presenciaram um surto de grafites. Nessa mesma época, no Rio de Janeiro, podemos observar o movimento ‘poesia nas ruas’, oriunda da Escola de Belas artes, responsável por diversos murais e painéis. Sumiya (1992) ainda estabelece que nesta época foi introduzido um ‘elemento chave: o spray’ e ainda observa o slogan: ‘Um spray na mão e uma idéia na cabeça’, inspirada em Glauber Rocha, diretor de cinema, que dizia: ‘Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça’. Esta preocupação em ter uma idéia ao realizar os grafites é o fator que diferencia a arte do vandalismo. Da mesma forma, o grafite é a língua utilizada para documentar, seja essa documentação consciente, ou não, muitos ainda dizem ser uma atividade que diz respeito a uma necessidade humana, como dançar, falar, dormir, ou até mesmo comer. De acordo com Poato (2006, p. 49) “[...] o grafite não seria somente a inflação que apresenta o sintoma de uma urbanidade corrompida e banalizada pelos diversos meios contemporâneos, mas também a própria arte nas ruas”. Mas onde está a relação entre o grafite e a arte rupestre? Pode-se estabelecer esta relação entre as artes urbana e rupestre na demarcação de território, em prática nas duas. Enquanto as pinturas rupestres [pré-históricas], na sua grande maioria são símbolos abstratos que são interpretados como uma demarcação de território (GONTIJO, 2004), na arte urbana nota-se essa mesma característica, principalmente na prática da pichação. E se quisermos ir um pouco mais além, e estabelecermos a relação do grafite com a arte exposta em museus, se pode citar Zuin (2003), afirmando que “mesmo que o grafite não seja apresentado como movimento artístico [...]” o mesmo passou a ganhar “os espaços das galerias de arte”. Alguns artistas dos anos 80 que grafitavam se direcionaram para as artes plásticas. A exposição de Keith Hering na XVII Bienal de São Paulo apresenta uma abertura das grandes exposições a todos os grafiteiros, incluindo os nacionais como Alex Vallauri, Zaidler e Matuck, apesar de ser encarado como ato marginal pelo então prefeito Jânio Quadros.

Figura 7 - Throw Up. Fonte:http://farm3.static.flickr.com

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CAPíTULO 2

CULTURA E LINGUAGEM


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2.1 Cultura

lo anterior.

A cada dia que passa o mundo sofre modificações, transmitidas de geração para geração, e a capacidade do ser humano de entender e responder ao meio em que vive gera mudança de hábitos. Assim se dá início ao desenvolvimento de uma cultura de determinado lugar ou comunidade.

Moreno (2001) retrata a cidade como o centro no qual as pessoas (cidadãos) se reúnem para realizar atividades específicas de determinados centros. Cada indivíduo passa seu conhecimento como um instrumento de aprendizado, independente de nível social. Além disso, podemos observar Arantes, dizendo que “o que define cultura popular [...] é a consciência de que a cultura tanto pode ser instrumento de conservação, como de transformação social” (1998, p. 54).

Cultura está relacionada ao “[...] todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costume ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (LARAIA, 1986, p. 25). Cultura também pode ser entendida como identidade. Todo povo de uma determinada região age conforme seus costumes, sendo “[...] um processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores” (LARAIA, 1986, p.48). Essa definição pode ser classificada como a que possui a participação do povo, ou seja, o que é dividido pela maioria das pessoas em uma região. Esta região se define, em nosso escopo, como os centros urbanos já citados no capítu-

Podemos observar esses atos desde a pré-história, quando surgem as primeiras aldeias que posteriormente tornaram-se povoados, quando nesse período, o homem pré-histórico observava a ação dos animais e dos fenômenos da natureza e utilizava-se dessas ações como forma de aprendizado para se proteger e conseguir alimento. Pode-se dizer que estes atos faziam parte da cultura do homem pré-histórico. A partir desse momento o ser humano começa a interagir com o meio e inevitavelmente dá-se inicio à transformação social. Neste momento o trabalho já é dividido por sexo e idade e, em algumas aldeias, cultuavam-se a natureza crendo que seus elementos eram deuses por lhes garantir a vida. A bagagem cultural e social de cada indivíduo interfere intensamente no que se diz respeito ao entendimento de arte e sua construção.

2.2 Elementos de Linguagem Os atos da cultura de uma sociedade são definidos por uma parte essencial da linguagem: a língua. Segundo Saussure, ela é “[...] um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa linguagem nos indivíduos”. Sendo assim, a língua se faz necessária para expressar qualquer tipo de linguagem, bem como o grafite é uma ferramenta para exercer a arte urbana. É uma maneira de dialogar com a cidade, na qual o artista repara o espaço urbano como uma forma de comunicação, e a escolha do lugar podem ser definidas como a assinatura do artista, como se pode observar nos grafites do Zezão, que encontrou nas galerias de esgotos uma forma de se expressar, inFigura 9 – Aldeia em culto religioso. Fonte: http://www.coiab.com.br


tervindo em um lugar onde a maioria classifica como sujo e desagradável, interagindo a arte com o meio urbano. A linguagem é um ato que sempre transforma a matéria, logo, a língua é a ferramenta que o homem utiliza para a transformação da matéria falada que estabelece relações entre a matéria fônica e as idéias, evoluindo sob a influência de sons e significados. Porém, podemos observar que “isto não significa, entretanto, que a língua deva ser identificada com a fala. Deve-se estabelecer uma diferença entre os sinais lingüísticos e o meio que tais sinais se realizam” (LYONS, 1987, p.8). Isto é o que de fato ocorria entre os homens primitivos, não importando qual o meio, neste caso os desenhos, a linguagem utilizada era de fácil entendimento. Já na arte urbana, o grafite é a língua que transforma as idéias, relacionando as com a matéria, deixando de lado a matéria fônica, utilizando-se em grande parte de desenhos mais trabalhados, que oferecem, àqueles que se importarem, uma nova consciência sobre a cidade e seus cidadãos. A existência da civilização humana só se tornou possível com o surgimento da língua, em que Bassani (2003) afirma que o homem passou a organizar seus próprios pensamentos e compartilhar isso com os outros, amplificando-os a partir dessa troca de informações.

Considerando o tema desta pesquisa, a língua é tida como um código que substancia o ato da linguagem, transformando os pensamentos através da manipulação de signos, presentes tanto na arte rupestre, quanto na arte urbana dos dias atuais, na qual, concordando com Bassani, a cidade é a linguagem em questão, que se oferece para ser lida nos limites de sua operacionalidade, na qual é preciso elaborar novos códigos que substituem a referência absoluta da natureza por algo artificial. A linguagem observada nas intervenções urbanas é substanciada por diferentes tipos de signos, como o grafite a pichação, os stickers e o stencil, que se utilizam de uma mesma matéria: a tinta, atualmente sendo utilizado o ‘spray’, sobre um muro; podendo assim observar que esta língua é uma ferramenta da linguagem, a qual não é possível a sua existência sem a manipulação dessa ferramenta e também que, em relação a arte rupestre, a língua não se alterou, mudaram apenas as ferramentas. Trazendo para o âmbito urbano, Bassani (2003) afirma que a linguagem manifestase em qualquer tipo de expressão humana com a proposta de comunicar algo, ou seja, além de ato ela é produto. Sendo assim, pode-se considerar que as artes visuais urbanas

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são atos de linguagem definidos através da comunicação entre o homem e a sociedade que o cerca.

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Retomando a definição de Saussure (2000) quanto aos atos de linguagem, ele afirma que a língua é um sistema de signos que exprimem idéias. Conforme foi observado no segundo capítulo, estes signos, na era primitiva, eram os animais caçados, a própria essência e idéia, portanto seriam estes signos objetos reais. Estes objetos são apropriados como uma ciência abstrata, que a lingüística se ocupa em criar relações do meio com o conceito. “(...) sem o recurso dos signos seríamos incapazes de distinguir duas idéias de modo claro e constante. Tomado em si, o pensamento é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado. Não existem idéias pré-estabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua” (SAUSSURE, 2000, p. 130). Segundo Bassani (2003) a cidade tem um ambiente criado de uma aparente realidade paralela ao mundo natural, precisando elaborar novos códigos. A referência absoluta da natureza é substituída pela relativa do artifício, do cultural. Bassani (2003) ainda afirma que a arte se desenvolve, a partir do século XX, sobre dois pontos:

“1 - a interação com os processos construtivos, técnicos e semânticos, que a partir de agora [passam a ser] comunicativos na cidade; 2 - A auto-referência urbana torna-se também, autoreferente, vasculha seu interior lingüístico, meta-linguagem, aprofunda-se nas suas qualidades de materialidade lingüística para, assim, alcançar seu potencial comunicativo numa sociedade baseada na informação e na reprodução técnica”. Tendo estes aspectos como entendidos, podemos observar que a arte, em um ambiente urbano, exercita uma interação entre a vida humana e os espaços projetados como os prédios, muros, etc., além de apresentar os aspectos rupestres da arte, criando identidade da arte humana que pouco se alterou como linguagem no decorrer dos períodos histórico artísticos. Ainda pode-se considerar que esses espaços projetados servem de suporte para o exercício da linguagem urbana, os quais, segundo Magnani e Souza (2007) podem ser classificados como não-lugares, em que o espaço não pode ser definido como identitário, nem como relacional, muito menos como histórico, mas, a partir do momento que se intervém nele, o espaço que não era observado por ninguém, passa a ser de todos.


CAPíTULO 3

A APROPRIAÇÃO DA NATUREZA PELO HOMEM, ATRAVÉS DA ARTE URBANA -


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Sabe-se que o homem primitivo utilizava a arte como forma de apropriação do meio a fim de dominá-lo e ainda comunicava-se com outros indivíduos trocando informações, estabelecendo um significado para aquela natureza. Em outras palavras, o homem, através da arte, como se observa nas representações de pinturas nas paredes das cavernas pré-históricas, tinha como objetivo tentar dominar o desconhecido para, a partir disso, dominar o que temia. Não somente durante o período rupestre tal aspecto se apresentava. Durante os séculos e os diversos movimentos artísticos, esta apropriação esteve presente e esta prática serviu como pilar de criação de elementos simbólicos socioculturais de um povo ou classe social em diversas ações prazerosas que buscavam a transformação, ou ainda: sua apropriação. No renascimento, o modelo grego foi retomado, e a utilização de medidas tornou-se padrão na criação de obras. No romantismo, apropriando-se de uma realidade, o artista propunha algo com maior perfeição. No impressionismo e, posteriormente em algumas vanguardas, a tradução da técnica em forma de arte, se utilizava da apropriação de um fenômeno, neste caso a luz – natureza – para representação artística.

Em todos os momentos a natureza esteve presente, seja como modelo, seja como prática. Não é diferente no que se toca a arte urbana atual, na qual se observa o regionalismo e a sociedade em suas produções que visam à apropriação da cidade, que podemos analisar como uma nova natureza a fim de obter entendimento. Enquanto não podemos analisar os ‘por quês’ das diversas obras, podemos observar como elas foram executadas, e é quando verificamos a semelhança entre a linguagem da arte urbana com a arte rupestre, através da apropriação da natureza, em que o homem pintava as paredes de suas cavernas, ou seja, seus muros. Os homens pré-históricos desenvolviam grafismos nas paredes das cavernas com a finalidade de dominar o meio que o cercava. Esse domínio, através de uma ligação espiritual, era uma maneira de perder o medo do que era considerado perigoso, como um animal que tinham a intenção de caçá-lo. Através de sua arte, o homem conhecia os aspectos de sua presa. Porem, quando ele começou a se estabelecer em determinados territórios, ainda utilizava-se da arte buscando melhor entendimento dos elementos cíclicos da natureza.

Figura 10 – Grafite em parede de casa em Olinda - Pernambuco. Fonte: http://www.pvv.org/~bct/brasil3/


Além da proteção, o homem registrava nas paredes o animal que temia para assegurar assim uma caça bem sucedida. Estas imagens não eram criadas com o objetivo de serem expostas para apreciação de todos. Com isso, podemos observar o valor de culto definido por Walter Benjamin: “A produção artística começa com imagens a serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas. O alce, copiado pelo homem paleolítico nas paredes de sua caverna, é um instrumento de magia, só ocasionalmente exposto aos olhos dos outros homens: no máximo, ele deve ser visto pelos espíritos.” (BENJAMIN, 1994, p. 173) Os principais temas que os homens primitivos desenvolviam em seus grafismos nas paredes das cavernas eram o próprio indivíduo e o meio que esse habitava. Na atualidade esse tema se diferencia na arte urbana, já que a técnica age de forma praticamente independente. Assim, torna-se evidente um conflito entre a sociedade e o meio, pois a tecnologia avançou a tal ponto em que as máquinas independem do homem para executar suas funções, e assim, ele passa a compreender o meio como uma nova natureza. Nesse ponto, a arte serve novamente como ferramenta para esse aprendizado, só que, dessa vez, o meio não é mais o tema, ele passa a ser suporte.

Figuras 11 e 12 –Grafite em prédio em Lisboa – Os Gêmeos. Fonte: http://www.zupi.com.br/index.php/site_zupi/view/os_gemeos_blu1/

Este entendimento da natureza se manteve no decorrer da história, sendo observado em diversos períodos (movimentos) artísticos, utilizando a natureza como técnica, como no impressionismo, ou a proporção encontrada na mesma para criar suas obras, como no renascimento. Nos dias atuais, de acordo com Cannevacci (2004) a cidade estabelece uma forte relação com o ser humano, onde este não é mais apenas um espectador urbano e, agora passa a ser um ator que dialoga continuamente com os muros da cidade. Ainda pode-se citar Moreno (2001) que afirma que a cidade seria a grande casa do homem, enquanto a sua própria casa seria sua pequena cidade. Nas ruas dos grandes centros urbanos, é possível observar as pessoas caminhando distraídas, lendo jornais ou com fones de ouvido, sem perceber o ambiente que as cerca. Assim, a informação que está presente nesses centros, enquanto casa do homem, disponível para quem quiser observar, acaba sendo descartada. É comum nos dias de hoje que as pessoas selecionem o tipo de informação que desejam recepcionar, e, com isso, acabam

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descartando e não dando a atenção devida ao que não é de seu interesse.

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A partir disso, pode-se citar a apropriação da cidade pela arte urbana. Esse tipo de manifestação, que intervém na cidade ao usála como suporte para o exercício da arte, possibilita a transformação de um espaço que era considerado irrelevante pelo fato não ser observado por ninguém e que, com a apropriação do mesmo, passa a ser de todos. Com isso, pode-se entender a arte urbana como toda e qualquer manifestação que exalta os conceitos e costumes característicos dos centros urbanos. Essa relação da cidade com o ser humano é reforçada por Moreno (2001, p. 16) afirmando que, “a cidade é um produto da natureza. Tal e qual uma caverna ou um formigueiro. A cidade é também uma obra de arte consciente. Uma obra coletiva e complexa, que contém muitas infinitas obras de arte mais simples e mais pessoais”. Tendo por base o pensamento de Moreno, se a grande casa do homem é a cidade e, a mesma é um produto da natureza, o homem acaba por ter a natureza como sua própria casa e, assim apropriase da mesma. Esse novo ator, citado por Cannevacci, passa a apropriar-se de locais urbanos, através da arte, que antes passavam despercebidos por grande parte da população - muros, viadutos, galerias de esgoto, etc. Peixoto (2002), acrescentando a essa idéia, afirma que no mundo atual as coisas acabaram adquirindo uma velocidade cada vez maior. O ser humano anda pela cidade numa velocidade acelerada e, repara cada vez menos nas belezas urbanas que a cidade pode oferecer. A arte acaba se perdendo no caos urbanos. Estes locais citados, e, comumente coadjuvantes na paisagem urbana, são muito utilizados pela técnica do grafite, que de acordo com Rosa (2009), reforça a relação entre a sociedade e o ser humano e, muitas vezes retratando o registro de experiência urbana, esse tipo de arte, acaba ganhando valor social.

Essa apropriação de locais urbanos pela arte conseqüentemente acaba causando uma transformação da paisagem urbana. Moran afirma que “[...] as pessoas transformam as paisagens para lhes proporcionar um ambiente produtivo e familiar, capaz de satisfazer sua imagem de como uma paisagem esteticamente agradável deve parecer” (2006, p. 92). Analisando Peixoto (2002) de uma forma mais profunda, pode-se dizer que apesar das intervenções urbanas tentarem, através da arte, promover determinados lugares como únicos e a conseqüente valorização da identidade urbana, estas intervenções vão contra as idéias de arte propostas por Janson (2001, p. 12) que afirma que “a arte é um objeto estético, feito para ser visto e apreciado pelo seu valor intrínseco. As suas características gerais fazem da arte um objeto a aparte, por isso mesmo muitas vezes é colocada à parte, longe da vida cotidiana, em museus, igrejas ou cavernas”. Essas intervenções urbanas através da arte contribuem para redefinir o espaço urbano, ao criarem novas relações com a sociedade e, com a arquitetura e o urbanismo ao redor dos espaços. De acordo com Benjamin, houve uma transformação em relação ao valor das obras de arte. Se no século XX, as obras eram valorizadas por serem guardadas a sete chaves, preservando sua aura e, consequentemente o seu valor de culto, atualmente, é difícil existirem obras que não sejam abertas à sociedade. Quanto mais a obra é exposta, mais ela é valorizada. Pode-se dizer do declínio do valor de culto e da aura em troca da ascensão do valor de exposição da obra. No entanto, essa troca de valores, não implica necessariamente qualidade artística.


CONCLUSÃO Através do assunto discutido ao longo da pesquisa, pode-se concluir que a arte urbana apropria-se do meio, na qual a cidade serve de suporte para o seu desenvolvimento. Outro ponto levantado seria a semelhança entre a arte rupestre e as intervenções urbanas, como o grafite e a pichação, em relação à demarcação de território. Pode-se admitir que tal apropriação discutida no decorrer do trabalho, existe de maneira concreta em nossos centros urbanos e está intimamente ligada aos conceitos de arte rupestre e ao valor de culto apresentado por Walter Benjamin, em que a intervenção não é importante por seu valor de exposição, devido ao alto volume de manifestações grafiteiras, e sim por seu valor único e o que pretende se expressar nele.

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