Revista LCA

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Junho de 1959

Nº169

Cr$ 60

LCA LUZ, CÂMERA, AÇÃO




Índice Editorial

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Coluna do Convidado: Alexis Ferman

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Notícias

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Festival de Cannes

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A nova onda dos franceses

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Entrevista: François Truffaut

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Festival da Urca

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Macumba Para Turista

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Críticas

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Uma câmera na mão, uma idéia na cabeça

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Entrevista: Davi Garcia Lirio

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Tecnologia: Como será o amanhã?

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Nostalgia: Aconteceu naquele ano

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Arte

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Cartas

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Equipe

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Editorial

BONS VENTOS No mês passado o Brasil deu um grande passo

Freire Alvim, deve colocar em prática o plano de

para a criação de uma indústria cinematográfica mais

construção da estrada que leva à longínqua Barra da

forte: A realização do primeiro Festival da Urca.

Tijuca, onde há espaço o suficiente para se construir

Tal passo é fundamental para a criação de um

um complexo de estúdios. Deve-se cogitar também

calendário que é benéfico tanto para a Capital quanto

a isenção de impostos para a instalação de indústrias

para a indústria. É de senso comum que borbulha

que produzam materiais cinematográficos neste país.

pelos cantos dessa cidade arte. É parte da nossa

Dessa forma os custos das filmagens serão reduzidos

alma, parte do nosso ser carioca. Mas um pouco de

e viabilizar-se-á uma produção maior.

visibilidade faz bem, convenhamos. E o festival veio perfeitamente a calhar.

Temos todo o potencial, charme e talento para colocar a Capital Federal no mapa das grandes

Porém não é o único passo a ser dado. Se o

cidades cinematográficas. Mas não podemos esperar

governo pretende transformar esta cidadela em um

que isto se dê da noite para o dia. Novos ventos são

polo produtor da sétima arte, novos investimentos

sentidos na Baia de Guanabara, tenhamos esperanças

têm de ser feitos. O Sr. Prefeito José Joaquim de Sá

de que trazem boas novas.

Alberto Swintz no Festival da Urca e Davi Garcia Lirio em conversa com François Truffaut.

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Convidado

UMA

BELA SURPRESA ALEXIS FERMAN* Não me considero uma dessas pessoas que nasceu com um destino já pronto e decidido quanto à vida no cinema. Muito pelo contrário: acho que foi por simples questão de sorte mesmo, quase como uma epifania que se estendeu e, por acaso, se tornou essencial pra mim. Vim de uma família poderosa no mundo do capital - pelo menos na minha época de infância e adolescência - e meu caminho já tinha sido escolhido pelo meu pai no dia do meu nascimento: estudaria Direito e tomaria parte nos negócios da família. Nós morávamos, na verdade, em uma pequena cidade do interior da Inglaterra e meu pai sempre viajava para Londres a negócios. Um dia, quando eu tinha dezoito anos, ele me levou junto e eu passei o dia lá sozinho. Eu não era um grande conhecedor de cinema, mas acabei entrando em

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uma sala de exibição. O filme, por alguma razão, me causou um interesse muito grande. Ao lado, tinha uma livraria incrível, muito maior do que qualquer outra do interior, e comecei a folhear livros excelentes sobre a história do cinema, críticas, atores bem concebidos, e tudo mais relacionado ao assunto. Saí de lá cheio deles e passei a gastar uma boa parte do meu tempo estudando-os. Aliás, o máximo de tempo possível, na verdade. A partir disso, decidi que tomaria minhas próprias decisões - e não mais as do meu pai- e faria o que eu desejava. Algum tempo depois, saí da Inglaterra e fui morar nos EUA para ter mais liberdade, viver sem minha família tentando me convencer de algo que eu nunca faria parte. Depois, comecei a frequentar muito o Brasil e


me tornei quase nativo: aprendi a língua e fiquei fascinado pela cultura local. Nessas idas e vindas por tantos lugares, entrei em contato com gente de toda espécie, com muitos modos de pensar diferentes e vi que há muito material para o trabalho cinematográfico inexplorado ainda. As pessoas, suas vidas e suas histórias são, por si mesmas, esse objeto. Já se passaram trinta anos, mas não me arrependo e acredito que o cinema, variado e de qualidade, precisa conquistar cada vez mais pessoas. É por isso que eu sou a favor desse novo estilo que o Cinema Novo representa no Brasil. Acho que é muito válido porque traz mais realidade pro cinema, aproximando-o das pessoas,

da vida de verdade. “Rio, 40 graus”, há quatro anos, cumpriu esse objetivo muito bem e me agradou muito essa nova perspectiva. O cinema pode se tornar mais do que um objeto de cultura, sendo também uma ferramenta social para todo tipo de realidade. Estive em Portugal por uma temporada recentemente e vejo um potencial imenso por lá também: os filmes hão de explorar a profundidade social de um país de cultura tão antiga e rica. Debati sobre isso com algumas pessoas do meio e elas pensam da mesma forma. Acredito que isso ainda vá demorar um tempo para acontecer por lá, pois essa ideia ainda é um embrião; mas, definitivamente, seria um passo muito enriquecedor para o país. A conferir.

*Alexis Ferman, 55 anos, famoso e bem conceituado crítico e cineasta britânico de cinema no Brasil e na Europa.

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Notícias O AMOR ESTÁ NO AR

Parece que o mês em que comemoramos o dia dos namorados aqui no Brasil incentivou alguns famosos lá fora a se casarem. Veja quem trocou alianças nos últimos dias: Debora Kerr não perde tempo mesmo! Após o divórcio no início do ano do piloto britânico Anthony Charles Bartley, com quem tem duas filhas, ela se casou no último dia do mês com o escritor Peter Viertel.

Como tudo em sua vida é sempre comentado, seu casamento não poderia ser diferente: Elizabeth Taylor, a dona dos olhos mais bonitos de Hollywood foi alvo de uma quantidade surpreendente de fotógrafos em cerimônia de união com o cantor Eddie Fisher, também em maio de 1959.

E mais um sortudo obteve a honra de se casar com a sex symbol do momento! Divorciada de Vadim a pouco mais de um ano, Brigitte Bardot casou-se semana passada com o ator Jacques Charrier.

ANIVERSARIANTES DO MÊS Além do dia dos namorados e das festas juninas, em junho tem muita gente soprando a velinha! Veja quem está ficando mais velho esse mês: 01 Marilyn Monroe 03 Tony Curttis 07 Jessica Tandy

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10 Judy Garland 20 Errol Flynn 22 Billy Wilder


“Ben Hur”, filme dirigido por William Wyler, está na lista de potenciais ganhadores do Oscar no início do ano que vem. Outro filme que também pode entrar na disputa é “Quanto Mais Quente Melhor”, estrelado pela belíssima Marilyn Monroe. Porém, entre todos esses filmes, o que ganhou maior destaque até agora foi “Intriga Internacional”, de Alfred Hitchcock.

Boris Descaves, diretor famoso por “A Catarse da Alma” e outros grandes títulos, foi obrigado a abandonar seus trabalhos na adaptação mais esperada do ano, “A Metamorfose” de Franz Kafka, por motivos ocultos de saúde.

O grupo LS Mídia acaba de adquirir as dependências na Baixada de Jacarepaguá do estúdio Santos Rocha, que fechou suas portas por problemas de administração no verão passado.

VOCÊ SABIA QUE...

Hollywood, a meca do cinema, foi fundada em 1877 e teve seu nome tirado da fazenda da família Wilcox, que habitava a região? Foi transformada em O verdadeiro nome de John cidade em 1903 e em 1910, com 4 000 habitantes, Wayne é Marion Robert Morrison? era anexada a Los Angeles.

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Festival de Cannes Cobertura 1959

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A LCA foi até Cotê D’Azur para acompanhar a décima segunda edição do festival para que você possa saber de tudo no mundo do cinema. Este ano, como sempre, passaram pelas salas de exibição do festival vários filmes memoráveis e inúmeras personalidades do mundo cinematográfico.

A Palma de Ouro foi concedida a Marcel Camus, por “Orfeu Negro”, filmado no Brasil. A obra é baseada na peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, a qual é uma adaptação livre de Orfeu e Eurídice, o clássico grego. A película é ambientada em favelas cariocas durante o Carnaval. A LCA preparou uma crítica que você pode ler ainda nessa edição. O grande ganhador do Prêmio do Júri foi “Stern” do cineasta alemão Konrad Wolf. O filme retrata o romance entre um oficial nazista e uma judia grega enquanto o oficial escoltava prisioneiros judeus pela Bulgária para campos de concentração. “Stern” não foi o único filme inspirado nos horrores da segunda guerra; “Hiroshima mon amour” também utilizou de acontecimentos do horrendo evento para criar simbolismos e um momento único transmitido na película. Este filme foi, sem dúvida um dos grandes destaques nesta edição, tendo sido dirigido por Alain Resnais, cineasta francês e estrelado por Emmanuelle Riva. O filme é um retrato de uma conversa intensa entre uma atriz

francesa e um arquiteto japonês, que se tornam amantes e confidentes. Apesar da magnitude do filme ele não competiu em nenhuma categoria do festival, pela abordagem feita as bombas atômicas. Tal fraquejo obviamente só ocorreu para não irritar o governo americano. “Nazarín” de Luis Buñuel ganhou o prêmio internacional. O filme fala de Nazarín, um padre católico que tenta viver dentro dos princípios de sua religião, mas a triste realidade de sua vida traz desilusão e desconfiança. Apesar de ser um excelente filme, não trouxe nenhuma grande inovação técnica. O prêmio de melhor atuação masculina foi dividido por Dean Stockwell, Bradford Dillman e Orson Welles pelo filme americano “Compulsion” dirigido por Richard Fleischer – diretor de 20,000 Léguas Submarinas. Já o de melhor atuação feminina foi dado a Simone Signoret pela película britânica “Room at the Top”. Depois da premiação seguiu-se a Gala no Hotel Splendid, contando com a presença de aproximadamente três mil pessoas. Dentre os presentes destacam-se, além dos premiados e outras celebridades da indústria cinematográfica, O Príncipe de Mônaco, Rainier III, e sua esposa, Grace Kelly, Sophia Loren e Carlo Ponti – que foi jurado do festival ao lado de Gene Kelly –, Joaquina Guinle, filha de Glorinha Guinle, Coco Chanel, Yves St. Laurent, Christian Dior, a cineasta carioca Loretta Bendittini e outras personalidades.

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Elke Sommer François Truffaut e Claude Chabrol Jean-Pierre Léaud, Truffaut e produtores Loretta Bendittini e Carlos Pessanha Yves Saint Laurent Joaquina Guinle Grace Kelly e Gene Kelly Kim Novak e Cary Grant Sophia Loren Jean-Pierre Léaud sendo carregado. Simone Signoret, Marilyn Monroe e Yves Montand

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a nova onda dos

FRANCESES Por Maria Antônia Bouvier Apagaram-se as luzes e assim começou no ano passado a mais pacífica das revoluções. Após os 98 minutos de espetáculo, “Nas Garras do Vício” (Le Beau Serge) confirmou a vitória dos cinéfilos da Cahiers du Cinéma contra os magnatas da indústria cinematográfica francesa. O golpe de mestre foi finalizado este ano com a consagração de François Truffaut, no Festival de Cannes com “Os incompreendidos” (Le quatre-cents coups) seguido da estréia de “Acossado” (À bout de souffle), de Jean-Luc Godard. Algum tempo atrás os jovens ambiciosos que conheci durante uma passagem de estudos por Paris falavam sobre o sonho de um cinema mais real, com personagens humanizados e narrativas que romperiam com a didática das tradicionais escolas de cinema, que me encheram de encanto, porém a realidade mostrava que os estúdios nunca arriscariam seu prestígio e seus cofres nas

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mãos de meros fãs da arte. Era preciso nome e sobrenome, com troféus na estante, para colocar em ação qualquer roteiro. A audácia e insistência deste grupo fez com que ares de esperança viessem pairar sobre nós este ano. O motivo: surgimento da Nouvelle Vague – como vem sendo chamada tal tendência. Esqueça os caráteres imaculados dos seus heróis favoritos, o previsível clímax seguido do final feliz e artifícios do gênero. A Nouvelle Vague rompe com os tradicionalismos da sétima arte vistos até aqui, com trabalhos que valorizam a psique de suas figuras centrais, mostrando um novo protagonista, que é cheio de contradições morais e defeitos. O que vemos nas grandes telas a partir de agora são retratos de vidas, fragmentos de sentimentos, valorizando a liberdade e a autorialidade do homem moderno. Todo o conteúdo é realístico –


Cenas dos filmes “Nas Garras do Vício”; “Os Incompreendidos”; “Acossado” e “Hiroshima Mon Amour” da raiva à sensualidade. Partimos quase de uma perspectiva autobiográfica, onde é fácil se deixar levar pelos fatos e fácil se identificar. Como em Acossado, onde nos sentimos voyeurs invadindo a intimidade daquele casal que mantêm uma dinâmica voraz durante toda a trama. Ou em “Os incompreendidos” onde presenciamos a marginalização da moral no auge da juventude de seu protagonista. A Nova Onda dos franceses se aproxima do público oferecendo um banquete de rotinas enquadradas em belos planos que são um verdadeiro deleite visual. Toda rejeição a este movimento só pode vir de um expectador que teme suas próprias emoções, pois com esta tendência, somos reprogramados, começamos a analisar a partir de nossa essência, de forma improvisada. É de interesse do autor exprimir a opinião individual, para atingir o significado

completo da obra. A unidade do expectador se torna indispensável. Estes jovens sonhadores, que hoje tenho como grandes amigos, estão fazendo revolução bem debaixo de nossos narizes. Talvez é disso que precisamos por aqui no Brasil. Existe uma aura fascinante na sinceridade desta forma de pensar, na literariedade da filmagem. A simplicidade da trama assusta a maior parte dos diretores “tupiniquins”, mas talvez se eles perdessem este medo poderiam imergir na imensa profundidade de conteúdo e significado desta tendência, falando a língua do expectador, sem rodeios. Os orçamentos foram repensados, a temática foi reformulada, mas ainda sim isto é cinema, cinema da melhor qualidade. Feito como se fosse uma carta de amor, escrita por um antigo amante, que só agora teve coragem de revelar seus sentimentos por tanto tempo acalentados.

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Entrevista

FRANÇOIS TRUFFAUT Por Davi Garcia Lirio

Você começou sua carreira como crítico. Como isso te afeta agora, como diretor? É difícil dizer, pois a maneira de um crítico assistir a um filme é muito diferente da de um diretor. Por exemplo, eu sempre amei ‘’Cidadão Kane’’, mas amei de modos diferentes ao longo da minha carreira. Quando eu assistia somente como crítico, eu admirava, por exemplo, o fato de raramente se ver a pessoa que entrevista todos os personagens, o

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fato de a linha cronológica não ser respeitada, esse tipo de coisa. Como diretor, eu presto mais atenção na técnica: todas as cenas são filmadas numa mesma tomada, entre outros fatores. E como um espectador comum, o filme passa a ser como uma droga, uma série de emoções e nenhuma tentativa de análise. Um crítico tem que resumir um filme em quinze linhas. Isso força-o a apreender a estrutura do filme e racionalizar seu gosto a esse fato.


Foi estranha essa transição de crítico para diretor/ roteirista? Foi bastante estranho, sim, até porque, além de ser crítico, eu já tinha visto cerca de três mil filmes, então eu sempre pensava ‘’Espera, isso já foi feito em tal filme’’, ‘’Comparando com esse filme isso não está bom’’, etc. Além disso, sou muito rigoroso com meus roteiros, refaço eles diversas vezes na minha cabeça, até o ponto de, às vezes, no último minuto desistir de filmá-los. No meu primeiro longa, muita gente achou que eu não deveria começar a fazer filmes e continuar sendo crítico. Gostaria agora que você falasse um pouco sobre seu último filme, ‘’Os Incompreendidos’’, vencedor do prêmio de melhor direção no Festival de Cannnes desse ano. Poderia nos dar uma breve sinopse? O filme conta a história de um jovem parisiense de 14 anos, que se rebela contra o autoritarismo na escola e o desprezo dos pais. Com esse sentimento de rejeição, ele passa a faltar as aulas para freqüentar cinemas e brincar com os amigos. Com o passar do tempo, ele vai vivenciando algumas descobertas e comete pequenos delitos em busca de atenção. Até que, um dia, ele é pego pelos pais, que o levam para ser aprisionado em um reformatório. Como surgiu o filme? Como foi todo o processo de filmagem? A ideia do filme surgiu enquanto eu filmava ‘’Os Pivetes’’, mas veio como um curta, que eu nomeei ‘’Antoine Runs Away’’. Gostei muito da ideia e resolvi tornar ‘’Os Pivetes’’ em um curta e investir no ‘’Antoine Runs Away’’. Escrevi o roteiro e percebi que daria um longa, que chamei de ‘’Les quatre cent coups”. O tema central do filme seria mostrar a passagem para a adolescência como uma fase dolorosa e não cair na ideia de nostalgia da infância. Para mim, a infância foi uma série de acontecimentos ruins. Hoje em dia, quando me lembro dela e me sinto mal, penso ‘’Sou adulto, faço o que quero’’ e isso me anima. Mesmo assim, a infância é uma época difícil, você não pode cometer erros. Cometer um erro é um crime: você quebra um prato sem querer e isso é uma grande ofensa. Essa é minha ideia em ‘’Os Incompreendidos’’, usando um roteiro bem flexível, aberto a improvisações, principalmente por parte

dos atores. Nesse aspecto fiquei muito contente com Jean-Pierre Léaud, que fez o protagonista de uma maneira muito diferente da que eu imaginei para o papel. Ficou incrível. Quanto mais improvisávamos, mais interessante e cheia de espírito eu sentia a coisa ficando. O filme tem sido bem recebido fora da França? Não, foi um grande fracasso na Itália, talvez por ser muito parecido com os filmes neorrealistas italianos, que são um fracasso por lá também! ‘’Os Incompreendidos’’ também não fez muito sucesso na Alemanha e na Espanha. Não quiseram nem distribuir lá, apesar do prêmio. De alguma maneira, o roteiro de ‘’Os Incompreendidos’’ constitui aspectos de sua autobiografia? Tem sido dito que o personagem Antoine Doinel seria, de algum modo, uma projeção de você mesmo. Poderia esclarecer isso? Sim, mas parcialmente. Posso garantir que nada ali é inventado. O que não aconteceu comigo, pessoalmente, aconteceu com pessoas da minha idade que eu conheci ou li em histórias no jornal. Nada em ‘’Os Incompreendidos’’ é puramente ficcional, mas também não chega a ser inteiramente um trabalho autobiográfico. Quanto ao personagem Antoine Doinel, existe, sim, uma semelhança do personagem comigo na infância, mas não sei definila exatamente. Eu não sei muito bem quem ele é, ele é um tipo de mistura entre Jean-Pierre Léaud e eu. O personagem é um menino solitário, que pode fazer você rir de sua desgraça. Através dele posso tocar em assuntos difíceis, mas de maneira leve, sem melodrama ou sentimentalismo, pois Antoine possui uma grande coragem dentro de si. E por agora, algum novo filme já em mente? Tenho pensado em fazer um roteiro voltado para o gênero de romance policial, um filme mais noir, baseado em uma história de David Goodes. Há pouco tempo convidei Marcel Moussy e o próprio David para me ajudarem a escrever e montar o roteiro. Os dois gostaram da ideia e, agora, falta resolvermos algumas pequenas questões. Com tudo acertado, escreveremos o roteiro e, se tudo correr bem, quero começar a filmar assim que estiver finalizado. Pretendo lançar o filme já ano que vem.

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FESTIVAL DA URCA

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“Uma vitória para o cinema brasileiro”

Daphné Litsz

O festival da Urca foi um sucesso. Isso é uma feliz unanimidade no mundo cinematográfico da capital federal. O festival nasceu da urgência de criar um meio maior de visibilidade para a cultura cinematográfica nacional, que se encontrava dispersa e sem seu próprio “projetor”. Idealizado por Guido J.J. P. Trucci e por Mirna Salvattore-Riguett – neta de Santiago Salvattore-Riguet, socio do Litzs-Riguett Bank – foi realizado de forma audaciosa e em pouquíssimo tempo. O evento é o único do país, sendo o primeiro festival nacional de filmes. Ele segue parâmetros de outros festivais internacionais como Cannes e Veneza. Incrivelmente a falta de tempo não ditou a organização do evento, que foi impecável, como nossa redação pode acompanhar durante a premiação e na festa de gala que se deu depois. Ambas as partes foram realizadas em uma locação cinematográfica, digna de prêmios, o Cassino da Urca, e foram realizadas no dia 19 de Maio, um sábado. As premiações tomaram a tarde, a noite a grande festa se estendeu pela Praia da Urca. A premiação se organizou em seis categorias: O Redentor de Ouro – Prêmio de melhor filme; o Redentor de Prata – Prêmio de melhor direção; Melhor atuação masculina; Melhor atuação feminina; Melhor roteiro e o Redentor de Bronze – Prêmio do júri. Concorreram cinco filmes ou artistas em cada modalidade, o que totaliza trinta indicados ao todo.

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“Uma ótima conquista para o calendário oficial da cidade” Sr. Prefeito

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O grande ganhador da noite foi “Desconhecida”, filme de Davi Garcia Lirio – Coeditor da LCA. O filme foi indicado a todas as categorias e levou nada menos que três dos seis prêmios do Festival da Urca: O Redentor de Ouro e a premiação de melhor atuação masculina e feminina. Alberto Swintz - à esquerda, em cena do filme - fez o papel de Aurélio, jovem paulistano que ao se mudar para a capital fluminense avista Letícia, interpretada por Marília Sabornato - com seu marido na foto à direita -, na Estação Central do Brasil e se apaixona imediatamente por ela, sem nem a conhecer. Durante o filme fica em suspenso o tempo todo se os acontecimentos são reais ou apenas fantasias de Aurélio. Tal recurso conferiu originalidade e manteve o expectador absolutamente embebido no filme até os créditos. O casal de atores e o diretor compareceram na premiação para receber as honras da mão do próprio Prefeito, José Joaquim de Sá Freire Alvim. O Redentor de prata foi vencido pela ítalobrasileira Loretta Bendittini - à direita em foto do momento em que foi anunciado seu prêmio. Ela foi a primeira mulher brasileira a ser premiada por sua direção num festival de tal porte. “Amores Sazonais” encantou a critica com suas cenas filmadas na Armação de Búzios. O filme também levou o prêmio de Melhor roteiro, concedido a Carlos Pessanha, marido de Loretta e jornalista do Jornal do Brasil. Heitor Paranhos, neto do Barão do Rio Branco, foi o ganhador do Redentor de Bronze pelo filme “Sonhos Vívidos de Noites de Inverno” adaptação livre do clássico de Shakespeare “Sonhos de uma Noite de Verão”. O filme estrelado por Glorinha Guinle, neta de Eduardo Guinle, foi um sucesso de público, tendo sido exibido em 120 salas de


“Esse prêmio brilha mais que os diamantes da Glorinha Guinle” Loretta Bendittini

cinemas no país. Contudo o diretor não compareceu a premiação e Glorinha subiu ao palco para receber o prêmio em seu nome. Aparentemente o propósito do festival foi alcançado: François Truffaut veio ao Rio cobrir o evento para a revista francesa Cahiers du Cinema. A LCA conseguiu uma entrevista exclusiva com ele que você pode ler ainda nesta edição. Além disso, veículos de Buenos Aires, New York, Londres e Barcelona mandaram seus representantes para cobrir o acontecimento, que foi amplamente divulgado no Jornal do Brasil e no A Noite, tendo mobilizado a cidade inteira.

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Diversas personalidades nacionais compareceram ao evento como Emilinha Borba, Daphné Litsz, Linda Batista, Tom Jobim, Dorival Caymmi e grandes famílias da alta sociedade brasileira como os Guinle, os Matarazzo, os Lins e Silva, os PolignacTrucci, os Riguett e os Jaquardettes, entre outros. Compareceram ainda o Prefeito do Distrito Federal e Sarah Kubistchek, primeira dama da república. A grande gala reuniu cerca de 1000 pessoas e contou com um esquema de segurança enorme. Segundo estimativas foram usadas mais de mil garrafas de champanhe. A redação da LCA parabenizou os realizadores pelo evento e indagou sobre a continuidade do festival. Segundo Mirna Salvattore-Riguett, pretende-se em manter a premiação de forma anual e cogita-se uma parceria com o governo distrital para patrocínio do evento.

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Notícias

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Notícias

MACUMBA PARA TURISTA Por Davi Garcia Lirio

Orfeu do Carnaval, como foi nomeado aqui por se passar durante a festa, Orfeu Negro foi sucesso absoluto de críticas em boa parte da Europa. Derrotando as estréias de Os Incompreendidos de François Truffaut e de Nazarín de Buñuel, o diretor Marcel Camus ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com um filme sustentado por sambistas e mulatas na conhecida animação carnavalesca. Nada contra a imagem que passa o Rio na época do Carnaval, porém, tanto brasileiros quanto alguns estrangeiros conseguem compreender o caráter apelativo. O produtor Sacha Gordine sabia do amor de Marcel Camus pelo Rio de Janeiro e lhe entregou o projeto. Empolgado, o diretor subiu o morro sem pestanejar. Orfeu (Breno Mello) é o estereótipo do malandro conquistador adorado por todos. Com o violão mais afinado do morro, o protagonista toca canções de Tom Jobim e Carlos Lyra, como Manhã de Carnaval e A Felicidade. Impossível esperar mais de um Brasil para exportação. E sem sombra de dúvidas foi nesse formato que o filme nasceu. Marpessa Dawn, mulher de Camus, interpretando Eurídice, literalmente some com as ótimas atuações de Lourdes de Oliveira, como Mira, a namorada ciumenta de Orfeu, e de Léa Garcia, a fogosa prima de Eurídice. São verdadeiras cabrochas. Há indicações de que Camus tenha se arrependido não só deste, mas de muitos equívocos, mesmo tendo colhido sucesso pelo mundo. O diretor alegou que só depois das filmagens conheceu bem a cidade. Os deslizes transparecem nos movimentos da protagonista até chegar à favela, nos diálogos muitas vezes descuidados e sem sentido, nos recursos escolhidos para momentos fundamentais da trama. É uma sucessão de imagens clichês que, aos poucos, vai acabando com a boa intenção de pintar um retrato honesto e comovente da vida brasileira. São ilusões de um estrangeiro que se esforçou em ser da terra. O filme é o clássico ''macumba para turista''. O mundo precisava ver gente feliz, bonita e orgulhosa de seu universo. Não é à toa que Jean-Luc Godard denuncia, nas páginas da revista Cahiers du Cinéma, o exotismo "cartão-postal" de "Orfeu Negro". O renomado diretor aponta, com detalhes, todos os erros absurdos de roteiro e de continuidade. Isso porque esteve no Rio de Janeiro uma vez na juventude. Não entende também como o hábil diretor de fotografia Jean Bourgoin foi inventar de competir com a suavidade da luz natural do Rio por meio de tantos filtros coloridos e rígidos.

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Críticas “Anatomia de um Crime”

Um drama de tribunal de Otto Preminger, que conta com a atuação sensacional de James Stewart no papel de Paul Biegler, um advogado de Michigan que trava uma batalha para defender seu cliente, Frederick Manion – interpretado por Bem Gazzara – num julgamento de assassinato. O suspense envolvente do filme mantém os espectadores atentos durante todos os duzentos minutos. O filme foi indicado para seis categorias do Oscar e duas do Festival de Veneza, tendo James Stewart levado o prêmio de melhor atuação masculina no festival.

“Quanto Mais Quente Melhor”

Billy Wilder criou uma agradável comédia-musical, estrelada pela belíssima Marilyn Monroe. Apesar de ótimas atuações de Marilyn e de Jack Lemon, ambos ganhadores do BAFTA, o filme não se destaca tecnicamente. Divertido e ótimo para entreter, mas não passa disso. O filme, que estreou dia quatro nos cinemas brasileiros, mostra sinais de grande sucesso de público.

“Hiroshima mon amour”

Maravilhoso drama de Alain Resnais retrata a estória de amor entre uma atriz francesa, interpretada pela incrível Emmanuelle Riva, e um arquiteto japonês, Eiji Okada. A produção é de uma sensibilidade avassaladora, cheia de simbolismos. A fotografia estonteante e o uso de flashbacks de forma inovadora asseguram que, um dia, este filme será um marco do cinema. Indicado a Palma de Ouro em Cannes e a outros seis prêmios internacionais, é um filme que deve, absolutamente, ser visto.

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UMA CÂMERA NA MÃO UMA IDÉIA NA CABEÇA Por Davi Garcia Lirio Tudo começa em 1952 com o 1º Congresso Paulista de Cinema Brasileiro e o 1º Congresso Nacional do Cinema Brasileiro. Lá foram discutidas novas abordagens e um novo caminho para o cinema nacional. A partir disto, já é possível notar alguns dos filmes e nomes que vêm se mostrando absolutamente fiéis a uma reestruturação da produção cinematográfica brasileira que, desde o declínio da Vera Cruz, havia sido considerada perdida. Entre esses nomes, os que mais chamam minha atenção: Nelson Pereira dos Santos (“Rio 40 Graus” e “Rio, Zona Norte”), Glauber Rocha (Curtas “O Pátio” e “A Cruz na Praça”), Carlos Diegues (Curta “Fuga”) e Roberto Santos (“O Grande Momento”). Como eu, todos frustrados com a falência das grandes companhias cinematográficas paulistas, buscando fazer algo novo. É nítido que estão no caminho certo, lutando por um cinema com mais realidade e mais conteúdo. Seguindo esse modelo, destaque especial para Nelson Pereira dos Santos com o filme “Rio 40 Graus”. É uma obra-prima. Com uma linguagem extremamente simples, mostra sem pudores o povo ao povo. Ambientado em cenários naturais do Rio de Janeiro como o Maracanã, o Corcovado, as favelas e as pracinhas, o filme é totalmente fiel a realidade brasileira, ou seja, o oposto de ''Orfeu Negro'' (recentemente premiado em Cannes e analisado nesta edição pela LCA). Formulando brilhantemente uma linguagem subdesenvolvida para abordar uma situação de subdesenvolvimento, Nelson parece ter entendido e absorvido perfeitamente as correntes realista e neorrealistas europeias, que trazem em si grandes nomes como Jean Renoir, Roberto Rossellini, Luchino Visconti, Marcel Carné, Frederico Fellini e Michelangelo Antonioni. Tenho grande fé no trabalho que virá desses jovens extremamente talentosos. Eles parecem focados em alertar, informar e divulgar problemas sociais. Buscando renovar a linguagem e romper seus conceitos através dessas recentes produções, mais do que valorizar o brasileiro e mostrar que estão totalmente comprometidos com a cultura nacional, tentam despertar a população de sua inércia cultural e política.

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UMA BREVE CONVERSA com Davi Garcia Lirio

Por Guido J. J. P. Trucci Conte-nos mais sobre a sua história, onde você nasceu, o que fez nos últimos anos, onde morou... Pois, então, nasci em Paris e bem novinho vim morar aqui no Rio, por conta de uma pesquisa que minha mãe veio fazer aqui. Ela era antropóloga e adorava o Brasil. Meu pai nasceu aqui no Brasil mesmo, em Recife, apesar de ser filho de franceses, e adorou a idéia de voltar para cá. Estudei no Liceu Franco-Brasileiro até os 18 anos, quando me formei, e tenho ótimas lembranças daquele lugar. Bom, no final desse ano de 48, minha mãe, Yonah, faleceu e, no dia seguinte, voamos para Lyon, cidade em que ela nasceu, para seu velório. Algumas semanas depois, eu e meu pai retornamos para organizar as coisas, pois, enquanto estávamos na França, decidimos que voltaríamos a morar em Paris. Ingressei na Escola Nacional Superior de Belas Artes em 49 para estudar pintura e lá conheci meu grande amigo Jacques Rivette, que, em pouquíssimo tempo, me despertou um interesse louco por cinema.

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Jaques me apresentou a Godard, Claude (Chabrol) e a François (Truffaut), e logo comecei a frequentar todas as reuniões, a cinemateca e a entender todo aquele sentimento que surgia na alma desse pessoal que respirava cinema e sentia que ele deveria mudar. Bom, o resto você sabe: voltei ao Brasil cheio de ideias e fiz meu primeiro filme. E quando você decidiu que o cinema era algo que queria fazer para sua vida? Bom, larguei a faculdade pouco tempo depois, só conseguia pensar em cinema e fui seguindo cada vez mais fundo nesse mundo dos filmes. Assistia a filmes todos os dias, às vezes mais de um por dia, e só sabia falar sobre cinema, como se nada mais me interessasse. Coisa de louco, de verdade. Assim, não foi muito difícil perceber que eu queria fazer cinema (risos). Mas hoje em dia consigo falar sobre outras coisas (risos).


“Essa história realmente aconteceu comigo.” E de onde surgiu a inspiração para o filme “Desconhecida”, ganhador do Redentor de Ouro deste Festival da Urca? Olha, sempre digo que o filme foi incrivelmente fácil de escrever, porque ele foi totalmente verdadeiro. Essa história realmente aconteceu comigo. Um belo dia caminhando pela praia de Ipanema, vi essa moça linda passar. Na hora parei, mas não consegui falar uma palavra, só acompanhei com o olhar. Passei uns dois ou três meses sonhando com essa moça, dia sim, dia não. Veja que engraçado: há pouco tempo estive na casa de Vinicius de Moraes e, contando sobre esse caso, ele me disse: ''Rapaz, isso me aconteceu outro dia, estava tomando umas aqui em baixo no Veloso e me passa essa menina linda de morrer, fiquei paralisado. Ainda escrevo uma canção pra essa mocinha! E tenho que descobrir quem ela é!''(Risos). Mas, bom, assim que percebi que isso tudo poderia resultar num filme, comecei a escrever o roteiro e em um mês estava pronto. Depois foi só filmar. Acho que teve um belo resultado.

todo esse reconhecimento repentino? Veja bem, é um pouco estranho. Tudo isso é novo pra mim e tem sido uma experiência interessante. Tenho recebido cartas de gente de todo lugar elogiando meu trabalho. É incrível pensar que meu filme tocou pessoas pelo mundo todo e é ótimo receber esse carinho delas. Esse filme só tem me trazido coisas boas. O que devemos esperar de Davi Zylbersztajan Garcia Lirio daqui para frente? Tem novos projetos em mente? Se sim, quais são? Bom, é como se esse filme ainda estivesse dentro de mim, ainda estou digerindo toda essa minha primeira experiência de um longa-metragem. Não tenho nenhum filme novo na cabeça, não, apesar de andar pensado bastante nisso. Assim que eu me apegar a uma nova ideia, sairá alguma coisa (risos).

Como você se sentiu ao ganhar o prêmio? Você esperava toda essa repercussão? Sinceramente, eu não esperava nada disso. Eu tinha consciência de que era um filme bonito e sabia que estava bem feito, mas jamais pensei em ganhar prêmios com ele, assim como não esperava uma bilheteria tão grande, entende? Acho que foi uma grande surpresa pra todos. Estou muito feliz e satisfeito. O seu filme teve bastante notoriedade fora do país, inclusive com um artigo elogiando-o bastante na Cahier du Cinema, escrito por seu amigo Truffaut. Além disso, o público também compareceu em massa aos cinemas para assistilo. Você, certamente, está ganhando um grande reconhecimento e seu nome tem chamado bastante atenção. Como você tem lidado com

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Tecnologia

COMO SERÁ

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AMANHÃ? Por Amélie Chevalier

A década que passou e, possivelmente, a próxima foram e vão ser anos de profundas transformações, tanto no modo de se fazer filmes, como na liberdade quanto à linguagem e, também, nas inovações tecnológicas. No Brasil, estes anos vêm correspondendo ao surgimento e ao fracasso das tentativas industriais baseadas em grandes estúdios, como a Vera Cruz, Maristela e Atlântida (esta com certo sucesso, o que faltou foi continuidade). A resposta veio com o chamado cinema independente, representado mais facilmente pelo chamado Cinema Novo. Uma previsão é certa: essas duas décadas serão marcadas pelo despontamento do cinema europeu como um cinema de qualidade, de referência cultural; um cinema menos preso às rígidas regras. Além da temática e do drama em si, o que gera uma grande atração pelo cinema europeu é uma certa liberdade formal e a presença cada vez mais constante dos filmes realizados em locação. Por um lado, agrega naturalismo aos tipos de dramas que os filmes narram; por outro, filmar em cenários naturais permite às cinematografias mais pobres terem o insight de que uma forma mais barata de cinema é possível. Para permitir essa liberdade de escolha, um fator fundamental é que o aparecimento de novos equipamentos está facilitando essa tomada de posição. Não podemos esquecer que uma câmera , a câmera clássica do cinema de Hollywood, em seu modelo BNC pode facilmente pesar cerca de 65 kg, o que, convenhamos, é um grande incômodo quando em ambientes reais, seja pelo transporte, seja pelo tamanho que ocupa. A difusão

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Ilustração de câmera do modelo Arri II

das câmeras da Arriflex e Éclair, com os modelos Arri II (e suas variantes) e Cameflex, permite o uso destas câmeras de modo diferenciado, como o uso da câmera na mão e uma facilidade maior para se filmar em locações. Em relação à sonoridade, estão aparecendo os primeiros gravadores portáteis para cinema, como o Nagras, mais uma vez tornando a filmagem em locação facilitada. Também surgem os formatos de tela larga 1:1,85 (EUA) / 1:1,66 (Europa) e o Cinemascope, numa reação à introdução da televisão colorida nos EUA. Contra uma ASA máxima de 160 (em preto e branco), nos anos trinta, salta-se para uma ASA de 400 na filmagem de “Acossado” (À bout de souffle, 1959), de JeanLuc Godard, e para a maior difusão do colorido através do processo Eastmancolor, que é muito mais barato que o Technicolor. Então, podemos esperar que nesses próximos anos, em continuidade à década passada, cada vez mais a indústria cinematográfica cresça. O seu progresso deve ser tão grande que proporcionará aos telespectadores e amantes da sétima arte uma maior qualidade e variedade em filmes e tecnologia.


ACONTECEU NAQUELE ANO Por Domitila Santos Rocha Imaginem um filme com papéis rejeitados por diversos atores devido à péssima qualidade do roteiro. A atriz principal odeia o diretor e o ator principal está sendo obrigado a participar da produção. Depois quando lançado, não foi um sucesso de bilheteria. Facilmente esse filme poderia ser classificado como um fracasso, correto? Mas não foi. Aconteceu Naquela Noite (1934) acabou se tornando um clássico, sendo o único filme a conquistar os cinco principais prêmios do Oscar. Aconteceu Naquela Noite é uma comédia romântica do diretor Frank Capra. Claudette Colbert interpreta Ellie Andrews, herdeira de um milionário, que decide casar contra a vontade de seu pai (Walter Connolly). Ela então foge de casa para encontrar seu noivo em Nova York. No ônibus, ela conhece o jornalista Peter Warne, interpretado por Clark Gable, que decide ajudá-la em troca da publicação da história de seu casamento.

A produção do filme inicialmente foi marcada por problemas de relacionamento entre Colbert e Capra, a relutante participação de Gable e a insatisfação de ambos com a qualidade do roteiro. Colbert chegou a dizer para uma amiga “Acabei de terminar o pior filme do mundo!”. Apenas certo tempo depois de lançado o filme fez sucesso, o maior do estúdio Columbia na época. Foi indicado para as cinco categorias principais do Oscar - melhor filme; melhor diretor; melhor atriz; melhor ator e melhor roteiro adaptado - e ganhou em todas. Feito inédito que não se repetiu nesses últimos 25 anos. Claudette Colbert havia desistido de participar da cerimônia, pois tinha certeza que não ganharia, e teve que ser buscada às pressas em uma estação de trem para receber seu Oscar. No final, ela acabou por agradecer Frank Capra por ter feito o filme. O filme é uma comédia deliciosa de assistir, e está em cartaz novamente esse mês na rede de cinemas LS.

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Arte

Gianbattista Castiglione, 46 anos, é italiano e se mudou para o Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro, durante a Segunda Guerra, quando fugiu de navio de Veneza. Ele foi convidado a fazer uma representação do filme Desconhecida, grande vencedor do Festival da Urca.

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Cartas

Especial Oscar Maio de 1959

“Gostaria de dizer que aguardo ansiosamente o lançamento do filme Desconhecida. Davi Garcia Lirio faz um ótimo trabalho junto com a equipe da LCA, e se seu filme seguir o nível de qualidade da revista, será um clássico do cinema nacional. Precisamos de mais cineastas visionários assim em nosso país! Também escrevo para saber se haverá exibições dos filmes concorrentes para o público durante o Festival da Urca.” Gabriel Belfort, Rio de Janeiro - RJ R: Haverá sim exibições dos filmes concorrentes e vencedores do Festival durante todo o mês de Junho, assim como uma seleção especial de filmes nacionais e estrangeiros. Esperamos também que Desconhecida tenha feito jus às expectativas do senhor. “Recordo-me vagamente da crítica feita sobre Gigi, aproximadamente um ano atrás, quando o filme foi lançado. Acredito que a equipe da LCA compartilhou do meu sentimento diante da escolha de Leslie Caron no lugar de Audrey Hepburn. Sinto que apenas aqueles que puderam ver o primor da atuação de Audrey na Broadway entendem o grave erro que foi cometido na adaptação para o cinema. É uma pena, já que certamente Gigi realmente mereceria todos os prêmios e Audrey ganharia o Oscar de Melhor Atriz se assim fosse. Desabafo por encontrar um grupo de pessoas que compartilham da minha visão, mas como algo útil deixo apenas uma sugestão para o próximo ano: recordar a crítica feita sobre o futuro vencedor antes da premiação para aqueles de memória mais fraca.” Helena Magalhães, Sâo Paulo - SP

“É meu desejo parabenizar a equipe da LCA por nos fornecer todo mês uma revista de qualidade, comprometida com o cinema enquanto arte, diferente de tantas outras revistas que apenas prezam pelas fofocas e o potencial de lucro. Minha única crítica é feita ao distanciamento da revista das camadas mais populares. Apesar do cinema, principalmente as vertentes valorizadas pela LCA, no momento estar restrito às elites, acho necessário que todos possam participar da construção dessa nova visão cinematográfica na América Latina. O cinema é uma arte e também um veículo muito eficiente de conscientização social, econômica e política, podendo ser a porta de entrada para uma transformação da mentalidade dos povos americanos. Eu bem sei que isso é extremamente necessário aqui na Argentina.” Pola Ortega, Buenos Aires - Argentina

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Equipe

DAVI ZYLBERSZTAJN GARCIA LIRIO GUIDO J. J. P. TRUCCI

Editores

DOMITILA SANTOS ROCHA RUTH FERNANDES

Direção de Arte

AMÉLIE CHEVALIER CARMEN BRECHERET

Produção

ZHANA PHKEIANDOSY

Coordenação

CAMILA MUNDI MARIA ANTÔNIA BOUVIER

Revisão

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