EUFORIA | moda sem gênero & techwear | agender techwear

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MODA SEM GÊNERO & TECHWEAR

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MODA SEM GÊNERO & TECHWEAR

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação | Departamento de Design

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MODA SEM GÊNERO & TECHWEAR

Marina de Araujo Alves da Silva Orientação: Prof. Dra. Paula da Cruz Landim Projeto de Conclusão de Curso Bacharelado em Design Gráfico Bauru | 2020

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SUMÁRIO 5

RESUMO & ABSTRACT

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AGRADECIMENTOS

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PREFÁCIO

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GLOSSÁRIO rótulos | ressignificação & diversidade

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PARTE 1 | FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA menino veste azul & menina veste rosa? moda e performance disforia por que moda & gênero? objetivos

18 19 20 21 26 27 29 33 41 42 43 48

PARTE 2 | PRODUÇÃO mapa da roupa processo criativo techwear moodboards desenhos | esboços, croquis & desenhos vetoriais modelagem & testes prototipagem materiais corte & costura recepção a marca: EUFORIA SUMÁRIO

58 59 62 65 68 70 73 75

RESULTADOS jaqueta cropped sobretudo macaquinho calça cargo camiseta bucket hat geral

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PHOTOSHOOT

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LOOKBOOK

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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BIBLIOGRAFIA


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RESUMO

ABSTR ACT

Euforia é uma coleção cápsula de seis peças do vestuário agender (sem gênero), inspiradas no techwear, um estilo de roupas e acessórios utilitários, resistentes e confortáveis. A proposta da coleção é dar às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído a elas no nascimento a possibilidade de sentirem-se bem com seus corpos, vestindo roupas que fujam dos estereótipos de gênero socialmente construídos e reforçados. As peças da coleção fogem da categorização compulsória de roupas masculinas e femininas, apresentando corte, caimento, acabamento e outros elementos que se aproximam da neutralidade de gênero. Na produção das roupas foram utilizadas técnicas artesanais de corte e costura, e o processo foi inteiramente registrado neste relatório. Além do produto, que é a coleção cápsula, foi desenvolvida uma identidade visual para devida aplicação no projeto gráfico do relatório e em outras futuras peças digitais ou impressas. Também foi realizado um ensaio fotográfico para demonstração conceitual e de usabilidade das peças.

Euforia is a pocket collection of six agender clothing pieces, inspired by techwear, a style that provides utilitarian, resistant and comfortable clothes and accessories. The purpose of this collection is making people feel better wearing clothes that don’t reproduce social constructed gender stereotypes, focusing on the people that don’t fit the gender attributed to them at birth. Euforia clothes don’t go along with the very known gender classification, such as “male clothing” and “female clothing”. This collection was built based on gender neutral clothing characteristics, using “handmade” sewing techniques, which were entirely described in this dissertation. Furthermore, a visual identity was developed to the collection, and all the pieces of clothing were photographed, as will be seen in this paper. Keywords: design; fashion; pocket collection; agender; techwear.

Palavras-chave: design; moda; coleção cápsula; sem gênero; techwear.

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AGR ADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço à minha família, Claudia, José, Mariana e Carmen (em memória), que além de me proporcionarem a oportunidade de ingressar em uma universidade pública e morar em Bauru durante os anos de graduação, são os grandes responsáveis pela pessoa que me tornei. À Edna, minha professora de corte e costura, um ser humano feito de amor e sabedoria que o universo colocou no meu caminho, e sem a qual esse projeto não teria se materializado. Aos meus amigos, que sempre me motivaram a correr atrás dos meus sonhos, que estiveram ao meu lado sempre que precisei e que nunca deixaram de me apoiar. Em especial ao Luís, meu amigo irmão gêmeo, que sempre esteve presente para ouvir minhas inquietudes e revisou este relatório. À Marília, que me mostra diariamente que eu não preciso ter medo de ser quem eu sou, que acompanha o turbilhão de ideias que existem na minha mente e me ajudou em todas as etapas do projeto. Ao Elias, amigo talentosíssimo que topou tirar as fotos das peças e fez um trabalho impecável.

Ao Inky Design, laboratório de Design Gráfico onde sempre tive o sonho de trabalhar e do qual fiz parte durante o 4º ano da faculdade, período de muito aprendizado e parcerias. Em especial, à Cássia e à Ferdi, nossas professoras orientadoras, e aos meus amigos e parceiros de gestão, Alana, Bianca, Vitor, Natália, Gabriel e Julia. A todos os professores que fizeram parte da minha graduação, que me passaram os ensinamentos necessários para que esse projeto pudesse existir. À Luana, que aceitou trocar uma ideia comigo sobre moda, corte e costura sem nem mesmo me conhecer, me deu dicas incríveis e, felizmente, topou fazer parte da minha banca. À Julia, presente na minha vida de várias formas, em organizações de eventos, em sala de aula, sendo minha amiga e conselheira e, no momento, fazendo parte da banca do meu TCC. À Paula, pela orientação, mesmo que à distância, devido à pandemia. Por fim, a todes que me deram apoio durante o desenvolvimento desse projeto. Vocês me trouxeram muita confiança e motivação!

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PREFÁCIO Esta dissertação é o relatório do meu projeto de conclusão do curso de Design Gráfico da Unesp, desenvolvido durante o ano de 2020, que teve como objetivo criar uma coleção cápsula de peças sem gênero inspiradas em um estilo de roupa utilitário, tendo como principal público os indivíduos que não se sentem contemplados pelas opções de roupas binárias existentes no mercado da moda atual. A fim de introduzir o texto ao leitor de maneira didática, produzi um glossário de termos da comunidade LGBTQI+ para facilitar no entendimento dos assuntos tratados ao longo da dissertação,.

Depois da abordagem teórica, a Parte 2 da dissertação apresenta toda a produção, desde as inspirações, os conceitos explorados, passando pelos primeiros esboços, pela identidade visual da coleção, pelo processo de modelagem, corte e costura, até revelar o resultado final por meio de um ensaio fotográfico, seguido das minhas considerações acerca de todo o projeto. Afinal, qual é a relação entre gênero e moda? Como o Design pode contribuir a essa discussão de maneira ativa? Estas serão algumas das questões abordadas a seguir.

Em seguida, desenvolvo a Parte 1, que consiste na fundamentação teórica do projeto, na qual apresento minha pesquisa, o embasamento científico, o contexto sociocultural, trago definições de conceitos chave, faço as devidas explicações e apresento as justificativas e os objetivos do projeto.

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GLOSSÁRIO

Sexo genitália. O gênero atribuído ao nascer está diretamente ligado ao sexo. Orientação sexual como a pessoa se relaciona e por quem sente afeto e desejo sexual. Identidade de gênero como a pessoa reconhece seu próprio gênero. Expressão ou Performance de gênero como a pessoa expressa/performa socialmente o gênero, não necessariamente ligado a seu sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Lésbicas mulheres que se relacionam com mulheres. Gays homens que se relacionam com homens. Bissexuais pessoas que se relacionam com indivíduos de gênero igual ao seu ou de outro(s), podendo ter preferência por algum.

Como membro da comunidade LGBTQI+, tenho a obrigação de citar meus companheiros de luta e resistência, sem os quais não teríamos conquistado a liberdade e os direitos dos quais desfrutamos hoje como classe. Por isso, com o objetivo de sanar quaisquer dúvidas semânticas acerca de determinadas colocações presentes neste relatório, e também para espalhar conhecimento a respeito da nossa existência, deixo aqui um glossário básico de termos que fazem parte do vocabulário LGBTQI+.

T dentro da sigla, refere-se a homens e mulheres transgênero, transexuais, travestis, genderqueer, gênero fluido, não-binário, sem gênero, agênero. Transgênero pessoas que não se identificam com o gênero atribuído no nascimento. Não necessariamente a pessoa precisa ter feito uma cirurgia ou ter sofrido mudanças corporais para se identificar como tal. Transexuais termo que ainda gera discussão dentro da classe, por se referir a pessoas trans que fizeram a cirurgia de redesignação sexual. Porém, muitos acreditam que é uma classificação desnecessária e excludente, ao ponto de que “uma pessoa não é mais trans do que a outra” apenas por ter realizado a mudança da genitália. Travesti pessoa que performa o gênero feminino, mas o gênero atribuído ao nascer é o masculino.

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Gênero fluido pessoas que transitam entre identidades de gênero. Não-binário não se enquadra exclusivamente em ser um homem ou ser uma mulher. Agênero não se reconhece tendo gênero algum. Queer termo da língua inglesa que pode significar qualquer pessoa da comunidade que não tenha uma orientação ou identidade definida. Existe também o genderqueer, muito utilizado por pessoas trans que, apesar de performar determinado gênero, não se enquadram exclusivamente nele. Intersexo pessoas que nascem com ambos os órgãos genitais masculinos e femininos. Geralmente, é realizada uma cirurgia no bebê para definir se ele terá um pênis ou uma vagina, mutilação que pode trazer diversos problemas de identidade para a pessoa ao longo da vida.

+ sinal que engloba todas as outras terminologias da comunidade em questão, como por exemplo, Queers, Panssexuais, Assexuais, etc. Panssexuais pessoas que se atraem ou se relacionam com outras independente da identidade de gênero. Assexuais pessoas que não sentem atração sexual por outras, e possuem pouco ou nenhum interesse em atividades sexuais. Homossexuais pessoas que se relacionam somente com pessoas do mesmo gênero. Heterossexuais pessoas que se relacionam somente com pessoas do gênero oposto. Cisgêneros pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento.

É importante ressaltar que todas essas classificações – e muito provavelmente a existência da comunidade LGBTQI+ – existem apenas porque vivemos em uma sociedade que ainda divide tudo entre masculino e feminino, macho e fêmea, pênis e vagina, azul e rosa; ou seja, é binária e heteronormativa.

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RÓTULOS | RESSIGNIFICAÇÃO & DIVERSIDADE Dia e noite, luz e escuridão, bem e mal. Muitas das coisas as quais conhecemos são frutos de uma oposição semântica. Em outras palavras, acredita-se que algo só é entendido a partir da existência do outro, oposto a ele, e vice-versa. A dicotomia homem x mulher é uma das mais eminentes; sempre foi base para que determinadas ações e características fossem atribuídas a um lado, e que tudo que era contrário àquilo pertencesse ao outro lado. Da mesma maneira, em meados do século XX, quando se começou a ter um entendimento generalizado da existência de pessoas as quais hoje em dia reconhecemos como parte da comunidade LGBTQI+, prontamente a sociedade se encarregou de rotular aqueles indivíduos. Foi assim que o termo “gay”, a princípio uma palavra da língua inglesa que significa “alegre”, começou a ser usado pejorativamente para definir indivíduos que sentem atração sexual por pessoas do mesmo gênero. Tempos depois, sabemos que essa palavra não é mais tida como um insulto; pelo contrário, foi apropriada pela nossa comunidade, e hoje ser gay é algo do qual muita gente se orgulha. #pride

E assim como gay, termos como sapatão, viado, bicha, nasceram com um teor depreciativo e hoje são amplamente usados com orgulho e como símbolo de empoderamento. Mas, voltando às oposições semânticas, o ser humano sempre as utilizou para compreender e classificar as coisas, e com a orientação sexual e a identidade de gênero não seria diferente. As pessoas que se entendiam heterossexuais por se atraírem por pessoas do gênero oposto, chamavam as que eram diferentes delas de gay para criar uma espécie de barreira social. Esses cidadãos, excluídos por serem homossexuais, viram a apropriação do termo como uma forma de autoafirmação e consolidação de uma luta por direitos e respeito. É como se o outro precisasse me enxergar como oposto a ele para perceber que eu existo. Ora, se ser atraída por pessoas do mesmo gênero me coloca em uma certa posição social, e se essa posição me priva da liberdade de ser quem eu sou, então vou vestir essa camisa para lutar pelos que são iguais a mim. E é dessa maneira que um rótulo funciona como ferramenta de militância, assim como ocorre em outras lutas sociais, como nos movimentos Negro e Feminista, por exemplo.

Porém, é sabido que existem muitas letras dentro da sigla LGBTQI+, algo que ainda gera muitos comentários e posicionamentos contrários. As letras, além de identificarem as múltiplas orientações e identidades do movimento, também servem para evidenciar que mesmo dentro da comunidade existem diferentes lutas e, portanto, diferentes demandas a serem atendidas. As pautas das pessoas transgênero, por exemplo, são diferentes das pautas de uma mulher lésbica, o que requer que em algum momento essas discussões se deem de maneira “separada”. Entretanto, a demanda pelo respeito à diversidade une todas as letras, fazendo da sigla um instrumento de luta ainda mais forte. E é por isso que a fala “somos todos iguais” se torna problemática na medida em que ignora as diferenças estruturais da sociedade e os privilégios e vantagens que determinadas classes têm sobre outras.

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M EN INO VEST E A ZUL & M EN INA VEST E ROSA ? Para muitas pessoas, sexo e identidade de gênero são sinônimos. Um dos exemplos disso mais evidentes na sociedade é o tratamento dado aos recém nascidos. Antes mesmo de nascerem, existe a ansiedade dos amigos e familiares para descobrir o “sexo” da criança. A partir de um exame, da constatação de um certo órgão genital, toda a vida daquela criança será determinada a partir de um gênero imposto a ela. Todos nós passamos por essa primeira mesa de operações performativa: “é uma menina!” ou “é um menino!” O nome próprio e seu caráter de moeda de troca tornarão efetiva a reiteração constante dessa interpelação performativa. Mas o processo não para aí. Seus efeitos delimitam os órgãos e suas funções, sua utilização ”normal” ou “perversa”. A interpolação não é só performativa. Seus efeitos são prostéticos: faz corpos. (PRECIADO, 2017, p. 130) Se o médico vir um pênis, será um menino; se vir uma vagina, será uma menina; se não for nenhum dos dois órgãos, ou os dois ao mesmo tempo, os médicos “escolhem” o gênero do bebê, como no caso de crianças interssexo, assim como afirma Preciado em Manifesto Contrassexual, quando diz que na nossa sociedade “é preciso escolher, obrigatória e unicamente, entre duas variáveis, ou masculina ou feminina”.

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Tal como mostram os casos de reatribuição para o gênero feminino dos recém-nascidos geneticamente “masculinos” sem pênis ou dotados de um pênis excessivamente pequeno, a verdade do sexo é decidida em função da adequação a critérios heterossociais normativos (...) (PRECIADO, 2017, p. 138) Há milênios, as sociedades humanas são baseadas no binarismo dos gêneros: homens e mulheres. O órgão genital do bebê determinará o gênero daquele ser humano, como ele será criado e qual será a sua relação com o mundo. Para grande parte das pessoas, essa é uma premissa inquestionável, como é o caso da atual ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, em sua polêmica e ultrapassada fala feita em janeiro de 2019, “Menino veste azul e menina veste rosa”. A ministra foi alvo de diversas críticas por parte da comunidade LGBTQI+, mas ainda assim, tem-se conhecimento de que grande parte da população brasileira acredita nesses ideais conservadores. Porém, após muitas análises e estudos, é sabido que não é bem assim. O sexo não passa de um órgão genital biologicamente formado, enquanto o gênero é um “artifício flutuante” (BUTLER, 2019, p. 26), socialmente construído, produto de um frequente exercício de significação social. Sexo e gênero, portanto, não teriam

relação direta, sendo o primeiro apenas uma categorização biológica, enquanto o segundo é um meio de reprodução de normas de comportamento reverberadas numa sociedade específica, num período de tempo específico. É por isso que ser uma mulher no Brasil no ano de 2020 é muito diferente do que ser uma mulher na China 3.000 A.C. E é por isso também que é possível identificar-se como um homem mesmo tendo nascido com uma vagina. Porém, a realidade é que ainda vivemos em uma sociedade binária, ou seja, pautada em cima de dois gêneros, o masculino e o feminino, e que quaisquer transgressões além dessas categorias são extremamente mal vistas. Homens e mulheres transgênero, pessoas não-binárias, travestis, interssexo… Todas essas identidades de gênero/performances sociais vão de encontro a todo um roteiro binário e heteronormativo compulsório que foi construído por um patriarcado que luta pela manutenção dessa dicotomia homem x mulher através das chamadas “instituições definidoras” (BUTLER, 2019, p. 10). Dentre essas instituições, que se beneficiam de regimes de poder para a construção de uma mentalidade binária, patriarcal e heteronormativa, podemos enumerar: a Igreja, a família, a política... e aqui eu tomo a liberdade de adicionar mais uma à lista: a MODA.

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MODA & PERFORMANCE

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Roupas – entende-se por esse termo qualquer tipo de vestimenta que cubra o corpo – são utilizadas pelos seres humanos desde os primórdios do Planeta Terra, seja pelo simples fato de cobrir as partes íntimas ou até por razões climáticas, principalmente para proteger o corpo do frio intenso. Houve a época em que era comum o uso de pele de animais no vestir, até mais tarde ser descoberta a tecelagem, permitindo diferentes usos e aplicações dos tecidos.

A moda transforma o corpo humano por intermédio da apropriação do corpo biológico do sujeito, de modo a agregar a esse, novos sentidos, num jogo entre o ser e o parecer que se renova a cada época. (VICENTINI, 2005 apud. VICENTINI, 2010, p.62) A roupa pode ser considerada um texto-objeto, que possui uma organização textual específica, na qual a relação entre a modelagem, o corte e a costura, realizada no tecido que a constitui, produz sentido em situação, ou seja, no interagir com o corpo, que, por sua vez, é ‘o seu possível meio de ser e estar no mundo’. (OLIVEIRA, 2006 apud. VICENTINI, 2010, p. 63)

Em muitas civilizações, carregando significados até os dias de hoje, as roupas não só eram vestimentas cotidianas, como também poderiam ser classificadas como indumentárias. Isso quer dizer que as roupas ganharam significados de acordo com o povo, com a religião, com a cultura do local. Essa ressignificação mostra como as vestimentas são capazes de, desde muito tempo, transmitir determinadas ideias. Após milhares de anos de inovações na confecção de tecidos e no uso das vestimentas como adornos corporais e indumentárias religiosas, em meados da Idade Média foi introduzida ao mundo a burguesia. Entende-se que, nesse período, teve início o que hoje conhecemos como “moda”. A burguesia, além de querer se diferenciar esteticamente das outras classes, viu na confecção de roupas uma oportunidade de lucro. E foi dessa maneira que, estação após estação, era introduzida uma nova “tendência” de roupas e acessórios, transformando de uma vez por todas as vestimentas não só em mercadoria, mas em objeto de desejo.

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E foi nesse período também que consolidou-se a estruturação dos papéis sociais de homens e mulheres, opondo completamente o masculino do feminino, relacionando a cada um dos polos um conjunto de características específicas e completamente opostas ao outro. Isso se deu por conta do fortalecimento da instituição “família” – o casal heterossexual e seus filhos – para reforçar o papel do homem como o provedor do lar, a força de trabalho. (SANCHEZ; SCHMITT, 2016) Desde então, homem e mulher têm um lugar bastante marcado na sociedade. Como ferramenta de expressão ideológica, a roupa/moda é um objeto chave na manutenção dessa ditadura de gênero. As roupas são alguns dos códigos utilizados como ferramentas para a manutenção de uma sociedade binária e heteronormativa. Como a moda (re)produz a construção fictícia de “sexo” (gênero) que sustenta esses diversos regimes de poder? Através de modelagens, cortes, comprimentos, cores, acabamentos, acessórios e calçados que foram convencionados como “masculinos” ou “femininos”.

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Para exemplificar a problemática presente na generificação da moda, podemos citar a questão – crescente no mundo ocidental desde os últimos séculos – das roupas mais curvas serem feitas para o corpo feminino, a fim de ressaltar as partes mais protuberantes (busto e quadris) dos corpos das mulheres e sexualizá-las para mera apreciação masculina. Enquanto isso, para os homens foram projetadas roupas confortáveis, práticas e funcionais, uma vez que estes são os “provedores do lar”, saem para trabalhar e precisam de roupas que os auxiliem nessas tarefas. Mesmo após a inserção da mulher no mercado de trabalho e uma crescente adaptação das roupas femininas ao guarda roupa masculino, itens como as “calças skinny” foram inventados pela indústria a fim de evidenciar as curvas e categorizar a peça como feminina. Inclusive, a calça skinny é um excelente exemplo da transformação de uma vestimenta essencialmente funcional (calça masculina) em uma peça desconfortável, “ornamental” e sem espaço para bolsos; o que nos leva a um ponto ainda mais assustador, a indústria voltada para o consumo feito para as mulheres, no qual é mais lucrativo vender uma calça sem bolsos, somada a uma bolsa, do que apenas uma peça com várias funções.

Além da forma e da função, as roupas mais coloridas eram majoritariamente destinadas às mulheres, pois elas precisavam “chamar a atenção” dos homens. Dessa maneira, desenvolveu-se uma moda pautada em roupas essencialmente diferenciadas por uma questão social de gênero, e esses detalhes que categorizam as peças como femininas ou masculinas permanecem até hoje na moda. Porém, existem pessoas que não performam gênero da maneira que a sociedade espera, e esses seres humanos são prejudicados ao não encontrarem peças de roupas que exprimem quem eles realmente são. A vestimenta de uma pessoa possivelmente é o canal pelo qual a sociedade lê mais rapidamente quem aquela pessoa é. Dessa maneira, muitas pessoas são erroneamente lidas por “não estarem utilizando uma roupa de acordo com o gênero delas”. Esse problema atinge ainda mais as pessoas de gênero fluido, sem gênero e não-binárias, pois estas muitas vezes performam um gênero flutuante e dificilmente encontram uma peça de roupa que não irá categorizá-las como homem ou mulher.

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DISFORIA Entende-se como disforia um estado repentino de desconforto, tristeza, angústia ou mal-estar, podendo causar ansiedade, depressão e até mesmo pensamentos suicidas. Existe uma segmentação do significado do termo disforia, a chamada “disforia de gênero”, uma condição caracterizada pelo desconforto de um indivíduo com quaisquer marcas de gênero que não correspondem à sua identidade de gênero; em outras palavras, uma angústia relacionada à forma como seu corpo demonstra ser, como por exemplo, à presença de seios em uma pessoa que não se identifica como uma mulher. Porém, é importante lembrar de dois pontos principais. O primeiro sendo que nem todos os indivíduos transgêneros sofreram ou sofrem com disforia de gênero, e que ter ou não ter disforia não é um critério decisivo para a autodesignação da identidade de gênero de uma pessoa. Existem muitos trans que não se incomodam em ter em seus corpos as marcas de gênero que correspondem ao atribuído no nascimento, que as vêem como simples fatores biológicos e não como categorizadores de gênero. Ao mesmo tempo, existem os que recorrem a cirurgias para alterarem a forma como seus corpos transparecem, dessa maneira, muitas vezes buscando reduzir a disforia de gênero. O segundo ponto a ser levantado é que não são apenas os indivíduos transgêneros que sofrem de disforia de gênero. É importante compreender que a ditadura de gênero imposta socialmente sobre todos os seres humanos é extremamente prejudicial

de maneira generalizada. Alguns exemplos que podemos citar brevemente são: o tabu acerca do seios femininos, fato que vai da hipersexualização sobre a parte do corpo à proibição de que mulheres amamentem seus bebês em público; a masculinidade tóxica que, dentre muitas consequências, faz com que o homem repudie qualquer característica “feminina” em seu próprio corpo, como cabelos longos ou depilação, e transforma o órgão sexual masculino em uma espécie de arma. Para muitos indivíduos, mesmo os cis, essa ressignificação que a sociedade traz, por meio do binarismo exagerado de gênero, pode ser muito prejudicial. É comum, por exemplo, que uma mulher cis sinta disforia em relação aos seus seios e quadris, e que não queira usar roupas “femininas” para não ressaltar essas áreas do corpo. Isso faz dela uma pessoa trans? Não. Mas é uma demonstração de como a disforia de gênero pode atuar mesmo entre as pessoas cis, uma vez que os estigmas socialmente reforçados sobre as marcas de gênero são tão fortes que podem chegar a causar desconforto mesmo em uma pessoa que se identifique com o gênero atribuído no nascimento. Portanto, entende-se que peças de roupa sem gênero beneficiariam tanto pessoas trans (não-binárias, agêneros, etc) quanto pessoas cis; e não apenas como uma forma de amenizar uma possível disforia, mas como uma ferramenta de combate à generificação compulsória.

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POR QUE MODA & GÊN ERO? (...) as identidades binárias homem/mulher tem se tornado mais flexíveis, não se limitando à extensão da androginia, mas contemplando também as representações queer. Seria possível existir e viver em sociedade fora dos padrões da divisão binária? E, nesse caso, onde se encaixariam os sujeitos não binários? (SANCHEZ e SCHMITT, 2016, p. 8)

Eu sempre gostei da moda como expressão corporal. Sempre admirei a capacidade que uma roupa tem de identificar um grupo social e de diferenciar as pessoas entre si. Sempre acompanhei editoriais de moda, tendências, desfiles, novas coleções, das que vão para as lojas às de alta costura. Mas demorei muito para começar a realmente me preocupar com o que eu vestia, e esse crédito eu dou à faculdade. Sair da casa dos meus pais e entrar na faculdade aos 17 anos desencadeou muitas mudanças na minha vida, e uma delas foi descobrir quem eu realmente era.

É daí que vem a minha motivação para explorar a moda, de maneira entusiasta, no meu trabalho de conclusão de curso: a consciência de que a moda é uma ferramenta de expressão pessoal, e muito além disso, é uma das características mais notáveis em uma pessoa, portanto, um dos canais mais rápidos pelo qual um ser humano será julgado pelo outro. Assim, surge a vontade de tornar esse canal menos nocivo para as pessoas que não se encaixam no binarismo que a moda sugere, permitindo que elas se expressem e trazendo a elas visibilidade e empoderamento.

Se eu for tratar de liberdade, creio que alcancei uma liberdade muito maior do que morar sozinha. Minha libertação mais significativa com certeza foi no âmbito da sexualidade e do gênero. Encontrei-me em um espaço no qual eu poderia ser eu mesma e compartilhar experiências com pessoas que têm uma vivência parecida com a minha. Finalmente eu pude sair do armário. E não me refiro apenas a assumir minha orientação sexual, mas também às minhas experimentações estéticas; sobre como cortar o cabelo mais curto ano após ano e usar roupas que a sociedade ainda categoriza como “masculinas” foi mudando a forma como eu me enxergava e moldando o meu pensamento, levando-me a refletir sobre questões de identidade de gênero e performance social, e questionando quem eu realmente sou, ou como eu me vejo no espelho, ou como a sociedade me enxerga e me classifica. Dessa maneira, minha aparência foi se tornando para mim o mais acessível e explícito meio pelo qual eu expresso como eu me sinto e me enxergo.

A moda, assim como o Design, constrói discursos e comunica ideias. A união de ambos nesse projeto se mostra inevitável a fim de desenvolver um produto relacionado à uma expressão tão específica como a de gênero. Nesse projeto, o Design não é só o resultado. É metodologia; é o meio pelo qual o problema é analisado e é a articulação necessária para trazer a melhor solução para ele, com técnica, criatividade, e sempre pensando em como levar a melhor experiência ao usuário. Muito além do produto final, seja ele físico ou digital, o Design permite um melhor gerenciamento do projeto como um todo, abrangendo as áreas da moda e do gráfico. Segundo Glória Dal Bosco (2016, p. 12), “unir conceito, técnica e informação, é a receita ideal para que a sociedade se abra para novos ideais e, aceite que o tipo de roupa que se usa não seja uma imposição e sim uma escolha”.

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O B J E T I VOS O agender (agênero) tem se tornado uma tendência na moda e ainda vem sendo trabalhado de maneira tímida. Porém, muitas marcas tentam levantar a bandeira da equidade entre os gêneros lançando coleções de roupas ditas “unissex”, mas que não passam de roupas “masculinas” – largas, de modelagem reta, básicas – sendo disponibilizadas em variadas cores e tamanhos. Como afirma Dal Bosco (2016, p. 6), “há um medo real da diminuição das vendas, uma insegurança quanto à imagem das mesmas diante de seus consumidores, da aceitação de um modo geral”. Enquanto o termo unissex refere-se a peças desenhadas para se ajustar e favorecer tanto corpos masculinos quanto femininos e é, geralmente, associado a um produto já pertencente ao guarda-roupa dos homens, de modelagem básica e sem apelo fashion, peças sem gênero são mais complexas: sugerem a eliminação de qualquer rastro de símbolos associados culturalmente a feminino ou masculino. Trata-se de peças neutras, que fogem de estereótipos históricos e culturais – roupas que se desconectam também da antiga ideia de unissex. (SANCHEZ e SCHMITT, 2016, p. 10)

Meu intuito é oferecer ao público uma coleção de roupas que transcendam ao binarismo de gênero, causando ao receptor uma reação de dúvida ao tentar classificar as peças como masculinas ou femininas. Pretendo produzir vestimentas que ressignificam traços femininos e masculinos presentes nas roupas, peças capazes de vestir tanto um corpo socialmente masculinizado quanto outro, da mesma maneira, feminilizado; peças que transmitam dois gêneros e nenhum, simultaneamente. Quero experimentar cortes, acabamentos, estéticas, modelagens, a fim de transmitir a mensagem de que “roupa não tem gênero”, e que o corpo que veste aquela roupa também não precisa ter, dando-lhe a possibilidade de usar peças que não irão colocá-lo na caixinha rosa ou na caixinha azul. O binarismo compulsório dos gêneros, socialmente construído, não poderia ser mais uma vez reafirmado em um projeto. Criar uma coleção de roupas cujo público seriam “ambos os homens e as mulheres” descarta os indivíduos que não se encaixam nessas categorias. Portanto, ao invés de utilizar a ideia de que existem dois gêneros, prefiro explorar o viés agênero, a não-binariedade, a ideia de que não precisa existir um gênero específico; os conceitos de fluidez e liberdade. O objetivo deste projeto foi criar 6 peças de vestuário sem gênero (agender), as quais foram definidas e apresentadas ao longo desta dissertação. Também realizei um ensaio de fotos para registro e divulgação da coleção cápsula.

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MAPA DA ROUPA EUFORIA

gola

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corpo da peça

cós presilha

cava

gancho

punho

CASO VOCÊ ESTEJA LENDO ESTE RELATÓRIO E NÃO TENHA NENHUM CONHECIMENTO PRÉVIO SOBRE A ANATOMIA DE UMA PEÇA DE ROUPA, FIZ ESTE INFOGRÁFICO BÁSICO PARA QUE VOCÊ CONSIGA RECONHECER ALGUNS DOS TERMOS USADOS A SEGUIR!

barra

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PROCESSO C R I AT I V O

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Desde o momento em que decidi projetar roupas agênero, comecei a me questionar sobre quais elementos categorizam uma peça dessa maneira. Pesquisando marcas que já se propuseram a explorar esse campo da moda, percebi que a maioria delas disponibiliza roupas de corte masculino (reto), de modelagem básica e cores neutras. Queria fazer algo diferente disso, explorando outros cortes e modelagens em roupas que fugissem desse padrão. Minha ideia, então, foi me aproveitar de elementos que definem socialmente se uma roupa é masculina ou feminina e ressignificá-los a ponto de torná-los utilizáveis a ambos os gêneros, sem que haja uma categorização compulsória sobre aquela peça. Em outras palavras, o que pensei foi o seguinte: “Como posso tornar possível que um homem use um vestido, uma saia ou uma roupa assimétrica e com fendas? Como consigo resolver o problema da falta de bolsos nas roupas femininas? Como modifico um corte masculino a fim de não deixá-lo tão masculino assim?”

Partindo dessas diferenciações intrínsecas a nós que dividem a moda entre masculina e feminina, listei as peças de roupa consideradas “binárias”, listei os elementos categorizadores dessas peças e listei também algumas peças de roupas que podem ser vistas como “sem gênero”, que são comumente usadas por ambos homens e mulheres. A partir desta última, cheguei à lista de peças que queria produzir e listei os elementos que essas peças deveriam ter para expressar a estética que eu desejava. Depois disso, era hora de escolher o estilo a ser explorado, que posteriormente me levaria aos esboços, ao caimento, aos tecidos e à modelagem das peças.

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Techwear é um estilo que caracteriza roupas e acessórios principalmente utilitários, dispondo tecidos, acabamentos e outros atributos que confere às peças conforto, alta resistência e usabilidade. Contando com uma pegada minimalista, as roupas Techwear podem ser peças chave para compor um visual de muito estilo e personalidade, ou até mesmo mais gótico e sombrio, com uma pegada Cyberpunk. Com uma estética que passa pelo militar (roupas e equipamentos táticos) e pela ficção científica, muitas marcas apostam em cores neutras, valorizando os aspectos utilitários das peças e trazendo versatilidade nas aplicações no dia-a-dia (LI, 2019).

As principais características das roupas Techwear são: a) resistência à água, b) conforto e movimento, c) capacidade de carga. Sempre trazendo pelo menos um desses atributos nas peças, as marcas que apostam no estilo variam em suas abordagens. Algumas exploram o viés clássico do Techwear, trazendo roupas de cores escuras e completamente funcionais (Imagens 1 a 6). Outras marcas se apropriam apenas da modelagem e da capacidade de carga, explorando variadas cores e tecidos, podendo compor looks que vão do esportivo ao social (Imagens 7 a 12). Há, ainda, marcas que ressignificam a funcionalidade das peças e apresentam roupas bastante inovadoras e transgressoras, abusando de cortes inusitados, bolsos sobrepostos e até mudando a maneira de vestir a peça (Imagens 13 a 19).

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Imagens 1 a 6: peças de roupas Techwear das marcas Enfin Levé, Guerrilla Group e Acronym, respectivamente. Perceba que essas marcas exploram um viés mais clássico do estilo em questão. Fonte: clique nas imagens.

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Imagens 7 a 12: peças de Yohji Yamamoto, designer japonês que une elementos do Techwear e Sportswear a uma estética elegante e com grande influência da moda oriental. Além disso, as peças criadas por Yamamoto não são classificadas por gênero. As imagens 7 e 8 apresentam um paletó resistente à água, cujo bolso interno funciona como uma bolsa para a própria peça, proporcionando fácil transporte e armazenamento. As imagens 9 a 12 mostram um paletó e um sobretudo parka que têm um design inteligente ao oferecer ao usuário duas formas diferentes de usar a gola da peça. Fonte: clique nas imagens.

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Imagens 13 a 19: A marca OBlanc mistura o utilitário a uma linguagem extremamente atual. A designer Olivia LeBlanc abusa dos bolsos e da estética modular e os exibe, ora através de tecidos populares como o jeans, ora sobre tecidos inusitados e impermeáveis, sempre bastante coloridos e chamativos. Todas as peças são sem-gênero. Fonte: clique nas imagens.

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Pretendo explorar o Techwear por um viés estético, utilizando suas formas, cortes, e modelagens modulares a fim de criar peças confortáveis, versáteis e, de certo modo, minimalistas. Farei uso da terceira característica citada (capacidade de carga) com uma finalidade bem específica ao tema do projeto, a de “colocar bolsos em roupas femininas”. Popularmente, um dos problemas mais apontados em roupas femininas é a falta de bolsos; e mesmo quando eles existem, são pequenos e estreitos demais, impedindo que qualquer objeto seja guardado neles. Não trabalharei, nesse projeto, com a primeira característica citada (resistência à água), devido à sua complexidade em termos de material e acabamento. Além disso, quero produzir roupas de outono-inverno para serem usadas no Brasil; portanto, não existe uma necessidade de roupas à prova de chuva e de neve.

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Em relação à paleta de cores da coleção, decidi explorar um viés conceitual. Minha ideia inicial era fazer roupas pretas, tanto por questão de gosto pessoal quanto por se tratar de uma cor neutra, salientando a ideia do gênero neutro. Porém, fazendo um paralelo com a dicotomia de gênero, percebi que podia tratar as cores da mesma maneira: masculino x feminino; branco x preto. E foi assim que optei por utilizar tecidos em tons de cinza, por não querer destacar nenhum dos pólos do espectro, mas sim tudo o que está entre dele. Os acabamentos em metal nas peças são símbolo de ousadia e subversão, inspirado pela estética do movimento punk, surgido na década de 70 dentro de um contexto de contracultura. “O punk apoiava a individualidade e a independência.” (BIANCHIN, 2018)

Entre os tecidos escolhidos para confeccionar as peças, o que se destaca é a Sarja (ou Brim), tecido comumente utilizado em peças como calças cargo, casacos parka e outras roupas de meia estação. A Sarja será utilizada em todas as peças menos na camiseta, a qual irei confeccionar em Malha, para dar mais mobilidade e facilitar na hora de vestir.

Para auxiliar na idealização das peças, montei 2 moodboards (painéis semânticos). O primeiro (Imagem 20) exibe a moda Techwear junto à estética de correntes e argolas. O segundo moodboard (Imagem 21) explora os corpos e vestimentas sem gênero, buscando demonstrar a versatilidade das peças e aplicações.

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Imagem 20: Moodboard Techwear + Punk. Fonte: a autora.

Imagem 21: Moodboard Moda Sem-Gênero. Fonte: a autora.

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DES E N H O S esboços, croquis & desenhos vetoriais

Após decidir quais peças eu queria confeccionar, fiz os primeiros croquis (Imagens 22 e 23), exibindo a peça de frente, de costas e com todos os elementos que eu queria inserir. Ao chegar a um esboço que me agradava, peguei alguns moldes de corpo para que eu pudesse desenhar as peças em corpos femininos e masculinos, possibilitando uma comparação entre as medidas e uma adaptação do caimento para que ele ficasse agradável em diferentes corpos. Respeitando as mesmas dimensões do desenho das peças em ambos os tipos de corpo, consegui chegar a um resultado visual satisfatório e simultaneamente desenhei alguns conjuntos entre diferentes peças da coleção (Imagem 24). Quando cheguei aos desenhos que me agradavam, decidi reproduzi-los digitalmente (Imagens 25 a 30). Para isso, utilizei o software Adobe Illustrator. Dessa maneira, seria possível fazer futuras modificações projetuais com mais facilidade, além de permitir que eu experimentasse as cores nas peças de maneira rápida, apenas mudando a cor do preenchimento da forma.

Imagens 22 e 23: Primeiros desenhos das peças. Fonte: a autora. Imagem 24: Croquis nos moldes de corpos femininos e masculinos. Fonte: a autora.

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Imagens 25 a 30: desenhos vetoriais das peรงas, feitos no Adobe Illustrator. Fonte: a autora.

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MODEL AGEM & TESTES

Dada a sua estreita ligação com o corpo humano, os produtos de moda devem estabelecer com o usuário vinculações do tipo: conforto térmico, conforto visual, mobilidade e facilidade de uso como, por exemplo, pessoas com algum tipo de limitação física, vestir e desvestir a roupa. Boueri (2008) atenta para o fato de que o conhecimento de escala, proporções e dimensões do corpo, sua anatomia, estrutura e movimentos, forma e medidas são muito importantes para o dimensionamento adequado do vestuário. (VICENTINI, 2010, p. 55)

(...) a modelagem nada mais é que o processo que transforma projetos em duas dimensões (croquis e desenhos técnicos), em produtos em três dimensões (a roupa). É ela que estuda a antropometria, baseada em estudos feitos da mensuração do corpo humano, levando em consideração fatores climáticos e culturais, sexo e idade, bem como qualquer fator que venha a interferir no modo de como indivíduos agem por determinado período. (DAL BOSCO, 2016, p. 7)

Nessa etapa, meu maior desafio era aprender as técnicas para poder realizar essa tarefa. Para tal, inicialmente recorri a muitos tutoriais no YouTube e no Instagram para tentar aprender o básico de modelagem. Como eu poderia projetar uma peça que não seria classificada como feminina ou masculina, e ainda garantir conforto ao usuário? Alguns recursos de modelagem seriam cruciais para que as peças tivessem caimento e tamanhos ideais para servirem em diferentes corpos. Um conceito notável nessa etapa é a antropometria, um conjunto de técnicas aliado à ergonomia que trata das medidas do corpo humano e suas particularidades físicas. Explorando essa área, eu poderia comparar medidas dos corpos masculinos e femininos e chegar a uma “média”, que me auxiliaria na mensuração dos moldes para produção de peças que não serviriam a um gênero específico.

Graças a um estudo feito por Rafael Pessoa Costa, obtive acesso a uma Tabela de Medidas Agênero (Tabela 1). Costa realizou uma pesquisa na qual comparou as medidas padrões dos corpos femininos e masculinos, segundo a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), e a partir delas elaborou uma terceira tabela, com a média das medidas e uma taxa de variação para cada parte do corpo, como pode ser visto a seguir: Tabela 1: Tabela de Medidas Agênero. Fonte: Rafael Pessoa Costa.

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Nessa altura do projeto, levando em consideração as medidas observadas na planilha anterior, optei por confeccionar os protótipos no tamanho M, uma vez que o tamanho médio se adequa melhor a diferentes corpos. Além das medidas, tive a ideia de aplicar às peças alguns elementos que tornam seus tamanhos “ajustáveis”, como elásticos, cintos, alças, entre outros. Inicialmente, a minha ideia de produção das peças era realizar a modelagem utilizando o aprendizado que obtive por meio de tutoriais no YouTube e no Instagram, num estilo mais autodidata, baseando-me em moldes do blog da Marlene Mukai e tendo a ajuda de uma pessoa que entende de costura para confeccionar de fato as peças, utilizando as máquinas de costura dos laboratórios da Unesp Bauru.

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Porém, em meio à pandemia Covid-19, fui para a cidade que meus pais moram em Minas Gerais. E, sem previsão de retorno a Bauru, resolvi produzir as roupas em São Lourenço mesmo, para ganhar tempo. Sem muita experiência na área, pedi ajuda ao meu pai, para que ele me ensinasse a manusear uma máquina de costura, pois ele tem a costura como hobby e aprendeu a costurar vendo seus pais realizando o ofício. Após fazer os moldes das peças, resolvi procurar a ajuda de alguém que entendesse do assunto, para me dizer se meus moldes estavam adequados. Encontrei, por meio de amigos em comum, uma modelista e costureira da cidade, a senhora Edna Moreira da Silva, e marquei uma visita a seu ateliê. Na época, o número de casos confirmados de Coronavírus em São Lourenço-MG era 73, e até então havia tido apenas 1 óbito na cidade. Portanto, era seguro que eu fosse até o ateliê, realizando todas as medidas de prevenção como distanciamento, uso de máscara, higienização e ventilação do espaço.

Assim, no dia 24 de Junho de 2020, fui pela primeira vez ao ateliê da Edna. Chegando lá, o que eu imaginava ser apenas uma visita para tirar dúvidas sobre a modelagem das peças, tornou-se uma aula de corte e costura. Conversamos bastante sobre as medidas das peças, uma vez que minha intenção era confeccionar roupas que coubessem em diferentes corpos. Porém, em meio à pandemia e sem acesso aos possíveis modelos da coleção, e também com a ideia de ficar com as roupas para mim depois de apresentar meu trabalho de conclusão de curso, decidi produzir peças que serviriam no meu corpo. Isso otimizaria a confecção, pois o tamanho das peças seria condizente ao meu corpo, e durante o processo eu poderia experimentar os protótipos para avaliar se estavam de acordo com o que eu queria fazer. Dessa maneira, escolhi utilizar o tamanho P do manequim masculino (modelagem reta) como base (Tabela 2), e ao longo do processo de modelagem, eu poderia ir ajustando as medidas para dar o caimento e a forma que eu quisesse. Além disso, eu sou uma pessoa pequena, e no meu corpo o P masculino se torna oversized, o que se aproxima da proposta de roupas que se adequam a diferentes corpos.

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Tabela 2: Tabela de medidas masculinas utilizada como base. Fonte: Edna Moreira da Silva.

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Durante o nosso primeiro encontro de 3 horas, tracei em papel pardo um molde de camisa para entender como funcionam as medidas e a modelagem na prática. Aquele molde serviria de base para a confecção do protótipo da primeira peça, o qual produzimos utilizando algodão cru, uma vez que este tecido possui caimento e dureza similares ao da sarja, tecido que utilizaria na maioria das peças finais. A etapa de prototipagem “é de muita importância, uma vez que, dependendo dos resultados dos testes, possam ser corrigidas eventuais falhas de projeto.” (VICENTINI, 2010, p.100)

Porém, antes de prosseguir para a minha segunda aula de corte e costura, pratiquei usar a máquina de costura em casa (Imagem 31), com a ajuda do meu pai, que me ensinou o básico sobre como manusear o aparelho. Pratiquei fazer várias linhas retas e curvas, para estar mais familiarizada com a máquina quando eu fosse confeccionar as peças finais do meu trabalho. Além das linhas, testei fazer alguns bolsos (Imagens 32 a 35), com base nos desenhos que eu já havia feito, para avaliar se o tamanho estava adequado para se encaixar nas peças em questão, e se havia espaço suficiente dentro deles para armazenar objetos.

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Imagem 31: Máquina de costura Singer. Pertencia à minha avó, hoje em dia é utilizada por meu pai. Graças a essa máquina, foi possível que eu treinasse costura em casa, não apenas no ateliê da minha professora, e também pude adiantar várias etapas da confecção dos protótipos e das peças finais. Fonte: a autora.

Imagens 32 a 35: Treino de bolsos. Fonte: a autora.

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Minhas próximas aulas de corte e costura foram dedicadas à confecção do protótipo da jaqueta cropped. A escolha desta peça para o primeiro teste se deu por dois motivos. O primeiro é porque a jaqueta cropped é uma das peças mais complexas, com mais detalhes e acabamentos. Dessa maneira, começar treinando costura por ela seria um tanto desafiador, tiraria-me da zona de conforto e me traria muito aprendizado. O segundo motivo é o tipo da peça. Inicialmente, escolhi fazer dois protótipos, um de uma peça da parte de cima do corpo, e o outro de uma peça de baixo. Decidi, então, prototipar a jaqueta cropped e a calça cargo. Assim, as medidas dos moldes finais de ambas serviram de base para as demais peças da coleção.

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Comecei utilizando como base as medidas do molde de camisa masculina que havia feito, adequando os cortes e caimentos ao meu projeto. Os principais ajustes foram a retirada da cava, para resultar em uma peça mais reta, e o encurtamento do comprimento, para transformar em uma peça cropped. À modelagem da peça em questão, adicionei quatro bolsos, sendo dois com zíper, e uma gola. Outros acabamentos não foram incluídos no protótipo. Após riscar o molde no tecido e cortá-lo, comecei costurando os bolsos. Primeiro, fiz os bolsos simples (bolso + tampa) e em seguida fiz os de zíper. Depois de praticar bastante, consegui finalizar os quatro bolsos, e fixei dois na parte da frente da jaqueta e os outros dois nas mangas. Depois, conectei o zíper central da jaqueta às peças da frente, e em seguida costurei o forro a elas. Uni a parte das costas, costurei os punhos nas mangas e uni uma delas ao corpo da peça. Nesse momento, vesti a jaqueta para visualizar o caimento e as dimensões no meu corpo.

Com essa primeira prova, identifiquei algumas modificações que seriam aplicadas na peça final:

A largura do corpo estava muito grande, dando um caimento estranho na parte do ombro, e criando uma “barriga” nas costas. Lembrando que optei por utilizar uma modelagem retangular, sem cava; então a largura do corpo interfere tanto na medida do ombro como na cintura; Os bolsos estavam pequenos para o uso que eu havia pensado. Seria necessário aumentá-los consideravelmente; A gola teria que ser costurada à parte; não poderia estar no mesmo molde do corpo da peça. No protótipo, ela ficou bastante curta e apertada, além de não ficar “armada” como eu imaginava.

Antes de costurar a segunda manga na peça, decidi descosturar os lados e cortar um pedaço, para diminuir a largura do corpo. Porém, após finalizar o protótipo da jaqueta e experimentá-la, percebi que acabei diminuindo demais, deixando a peça muito justa no meu corpo, quando eu buscava uma modelagem mais larga. Dessa maneira, fui capaz de identificar com maior precisão o tamanho que a peça final teria, uma medida de largura de corpo entre o tamanho do protótipo na primeira prova e na segunda prova.

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Imagens 36 a 40: Prototipagem da jaqueta. Corte do tecido, marcaçþes, costura. Fonte: a autora.

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Imagens 41 e 42: Provas do protรณtipo da jaqueta. Antes de pregar a segunda manga e depois de finalizar o protรณtipo, com a largura do corpo menor, respectivamente. Fonte: a autora.

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Minha próxima missão foi fazer o protótipo da calça cargo. Comecei utilizando como base um molde de calça masculina tamanho P, assim como fiz para a jaqueta. A confecção desse protótipo foi ainda mais experimental que a da jaqueta, e me rendeu muitas observações acerca do processo de costura. Pratiquei colocar os bolsos comuns, os que ficam na parte superior da calça. Coloquei também os bolsos maiores, respeitando a altura do joelho, e mais uma vez pude treinar a costura do zíper, dessa vez com bastante sucesso. Não coloquei pences na parte traseira, mas costurei três presilhas de cinto para conseguir posicionar a calça no meu corpo. Também não coloquei a malha sanfonada na barra da calça, algo que terá na peça final.

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As observações da confecção do protótipo da calça foram as seguintes:

A cintura da peça final será um pouco mais alta, para deixá-la mais “sem gênero”, permitindo que ela seja usada mais para cima ou mais para baixo; Três presilhas de cinto não são suficientes, pelo menos cinco são necessárias; Talvez o bolso inferior deva ficar um pouco mais abaixo, para que ele não dobre junto com o joelho; Costure os bolsos antes de fechar os dois lados da perna da calça!

Imagens 43 a 45: Prototipagem da calça e prova. Fonte: a autora.

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Depois de prototipar a jaqueta cropped e a calça cargo, percebi que eu teria um resultado muito melhor se também fizesse os protótipos das demais peças da coleção, não só para testar os moldes e identificar problemas e fazer alterações, mas também como uma oportunidade de praticar ainda mais o corte e a costura. A peça seguinte a ser testada foi o bucket hat, ou chapéu de pescador. Uma peça pequena, de modelagem simples, cujo protótipo realizei com bastante facilidade, resultando em um acessório com acabamento excelente, digno de uma peça final. Após o primeiro protótipo, fiz pequenas alterações nas dimensões do molde inicial e confeccionei um bucket hat dupla face para a minha irmã, utilizando retalhos de jeans e de um tecido que ela havia serigrafado. #upcycling

Imagens 46 a 48: Prototipagem do chapéu. Moldes, corte e protótipo finalizado. Fonte: a autora.

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O próximo teste foi o macaquinho. Utilizei os moldes da jaqueta e da calça como base, aproveitando as medidas de ambos para confecção da peça “geminada”. Nessa fase de produção, eu já estava bastante familiarizada com o processo, e a velocidade aumentou também. Tracei o molde no tecido, cortei todas as partes e costurei. Meus maiores aprendizados ao produzir o protótipo do macaquinho foram:

Revel. Essencial para o acabamento de uma peça com zíper frontal e sem forro; A medida do ombro até o gancho ficou curta demais. Quando vesti o macaquinho pronto, não consegui esticar meu corpo. Fica o aprendizado de sempre conferir essa altura; A largura no corpo ficou boa, mas ficou justa. Como eu me propus a produzir peças oversized, também irei aumentar essa medida no próximo molde.. Com base nas observações do protótipo do macaquinho, resolvi fazer um segundo, aumentando todas as medidas citadas. Porém, aumentei-o demais e ele acabou ficando muito grande, mas isso possibilitou que eu pregasse alfinetes nele para deixá-lo do tamanho desejado, e que então eu pudesse medí-lo para produzir o molde da peça final com as dimensões ideais.

Imagens 49 a 52: Primeiro protótipo do macaquinho. Moldes, colocação do revés, processo e protótipo finalizado (visivelmente apertado no quadril e na altura do corpo). Fonte: a autora.

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Imagens 53 e 54: Segundo protótipo do macaquinho. Moldes e prova final (a peça ficou bem grande, o que possibilitou prendê-la com alfinetes para chegar ao tamanho ideal para a peça final). Fonte: a autora.


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A peça seguinte a ser prototipada foi o sobretudo. Com base no molde da jaqueta, fiz o molde da peça em questão somente aumentando a altura. Porém, isso não é algo que deve ser feito, uma vez que ele ficou extremamente reto, sem caimento, e quando eu colocava as mãos nos bolsos, ficava apertado no quadril. O molde do sobretudo requer um aumento na medida da parte de baixo, para que o comprimento da circunferência vá aumentando sutilmente até a barra, como uma saia, e permita um movimento livre das pernas. Com base nessas observações, desenhei o molde da peça final. A camiseta foi a única peça da qual eu não fiz um protótipo, porque já estava muito próximo da data que eu me propus para iniciar a produção das peças finais, e porque eu não tinha um tecido adequado para prototipar uma peça que seria de malha. Portanto, decidi confiar nas minhas habilidades adquiridas até ali e na avaliação da minha professora de costura acerca do meu molde.

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A fase de prototipagem, além de me ajudar a compreender a modelagem das roupas para fazê-las da melhor forma possível, permitiu que eu testasse o formato e o tamanho dos bolsos, as presilhas para cinto, os zíperes e todos os outros detalhes das peças. Descartei alguns acabamentos que eu percebi que seriam trabalhosos demais ou que não fariam tanta diferença na peça final, e troquei por outros, que faziam ainda mais sentido com o conceito da coleção.

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M AT E R I A I S Enquanto eu finalizava a fase de prototipagem, fui em busca da compra de todos os materiais necessários para a confecção das peças finais. Nesse momento, eu tinha duas opções. A primeira era comprar em lojas online, onde eu provavelmente conseguiria preços mais baixos, porém compraria tudo somente à base de fotos dos produtos, sem ter certeza do que estava realmente comprando, e ainda teria um gasto com frete. A segunda opção era comprar em lojas físicas, o que ficaria um pouco mais caro pois eu estava em uma cidade pequena onde esse tipo de material sofre um aumento no preço em relação às cidades maiores, mas eu tinha a vantagem de ir pessoalmente, tocar os materiais e comparar as cores, e sairia da loja com tudo já comprado, sem precisar esperar chegar uma encomenda em meio à pandemia. A opção escolhida foi a segunda, e então, busquei o telefone de algumas lojas da região (nas cidades de São Lourenço, Baependi, Lambari e Itanhandu) e fiz o orçamento dos materiais dos quais eu precisava. Na cidade onde meus pais moram, São Lourenço, o tecido que eu escolhi comprar era o dobro do preço das lojas de Baependi, e portanto resolvi fazer uma viagem de trinta minutos de carro até lá para comprar os materiais. O metro do Brim em São Lourenço era R$33,00; já em Baependi, comprei por R$17,70 o metro. Fiquei muito satisfeita com tudo o que encontrei lá, e as poucas coisas que restaram na minha lista, terminei comprando em São Lourenço.

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Resumindo, em Baependi eu comprei o Brim na cor cinza chumbo, linhas (fio reto e overloque), alguns zíperes, fivelas de plástico e alça de bolsa. Em São Lourenço, comprei alguns zíperes que faltavam, meia luas de metal, malha sanfonada e Malha cinza chumbo para a confecção da camiseta. Na fase das compras, meu maior desafio foi as cores. Quando esse projeto ainda era apenas uma ideia, minha vontade era que cada peça da coleção fosse em um tom de cinza diferente. Porém, como eu estava lidando com produção artesanal, em pequena escala, e com uma pequena variedade de tecidos e materiais à minha disposição, tive que abandonar essa ideia e decidi fazer todas as peças em um mesmo tom de cinza. Ainda assim, eu queria que cada peça fosse completamente de uma cor só, do zíper ao punho, da linha ao tecido. E isso também não é algo fácil de se fazer fora da indústria, uma vez que em cada loja visitada eu encontrava diferentes tons de cinza, nunca um exatamente igual ao outro. Minha saída, então, foi aceitar o fato de que dentro de uma mesma peça eu teria vários tons de cinza. E tudo bem, porque ela ainda seria uma peça monocromática!

Tabela 3: Tabela de custos dos materiais das peças finais da coleção. Fonte: a autora.

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C O RT E & C O ST U R A Após a prototipagem e a compra dos materiais, eu já tinha tudo o que precisava para entrar na fase de confecção das peças finais da coleção. Então, o primeiro passo foi mapear o tecido (Imagem 55), técnica que consiste em esticar todo o tecido em uma superfície grande, posicionar todos os moldes no sentido do fio e riscar com giz em volta dos moldes, deixando uma margem de costura de 1cm. Depois de mapear, o tecido foi cortado nas devidas marcações. Em seguida, preparei todos os bolsos para adiantar a montagem final das peças (Imagens 56 e 57) . Basicamente, o que fiz foi listar todos os bolsos de cada peça, enumerá-los, vincar o tecido, preparar as tampas dos bolsos, as costuras de acabamento da boca, os zíperes… tudo isso para que quando eu fosse produzir cada peça final, eu não precisasse ficar boa parte do tempo apenas montando bolsos.

Imagem 55: Mapeamento do tecido. Fonte: a autora.

Imagens 56 e 57: Confecção dos bolsos das peças finais. Fonte: a autora.

A primeira peça final a ser produzida, seguindo a mesma ordem da prototipagem, foi a jaqueta cropped. Imaginei que começar por uma das peças mais difíceis me traria aprendizado e prática suficiente para enfrentar as demais peças. Depois da jaqueta, produzi o bucket hat. Em seguida, produzi a camiseta, depois a calça cargo e, por último, o macaquinho e o sobretudo. As ferramentas utilizadas na produção das peças foram: máquina de costura, overloque, galoneira, tesoura, régua, fita métrica, alfinetes, giz, isqueiro, papel pardo, lápis, ferro de passar, entre outras.

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R E C E P Ç ÃO A partir do momento em que comecei a fazer o curso de corte e costura e, por consequência, a produzir os protótipos das peças, passei a divulgar o processo nos Stories da minha conta pessoal no Instagram. A recepção foi melhor do que eu poderia imaginar; a cada etapa do processo que eu compartilhava, mais pessoas iam me enviando mensagens de apreciação e apoio. Isso foi uma das coisas que mais me motivou durante todo o desenvolvimento do meu projeto, e agradeço profundamente a todes que compartilharam esse momento comigo. Principalmente nos momentos em que eu não estava acreditando muito na minha capacidade de produzir peças com tal complexidade tendo tão pouca experiência, as mensagens me deram energia para seguir em frente com a produção.

Aproveitando a boa recepção das pessoas e o interesse de muitas em futuramente até comprar algumas peças que eu viesse produzir em maior escala, resolvi pensar em algo que pudesse ser vendido. Tendo em vista que sobrariam materiais mesmo após a produção das peças finais, decidi utilizá-los para confeccionar alguns bucket hats além do que eu fiz para a coleção. Minha ideia era vendê-los como forma de divulgação da minha coleção/marca, e o valor arrecadado também cobriria parte dos gastos que tive com a produção do meu projeto de conclusão de curso. E então, com o tempo que eu tinha sobrando, consegui confeccionar 5 chapéus para vender.

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A MARCA


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EUFORIA é sinônimo de alegria intensa, de satisfação, sentimentos que quero causar às pessoas que usem as peças que projetei. Não obstante, euforia é o oposto de disforia, que remete à disforia de gênero, condição na qual a pessoa se sente desconfortável com características sexuais ou marcas de gênero que remetem ao gênero atribuído ao nascer; quero fazer com que a pessoa se sinta bem com seu corpo usando as peças que criei. Além disso, era de minha vontade incluir “eu” ou “ego” ao nome, como uma maneira de demonstrar auto-estima e empoderamento. Palavra de origem grega [euphoria], significa “capacidade de carregar/ aguentar facilmente”, de “euphoros”: “eu” = bem e “phoros” = o que carrega. A etimologia da palavra euforia também remete ao Techwear, estilo que serviu de inspiração para a elaboração das peças. O Techwear é utilitário, resistente, confortável; possui muitos bolsos, alças e outros elementos que expressam muito bem a etimologia de euforia.

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Mesmo que o foco do meu projeto de conclusão fosse a produção de peças de roupa, eu não poderia deixar de dar a ele um “rosto”, utilizando os conhecimentos sobre Design Gráfico absorvidos durante os anos de curso, por meio de uma identidade visual que lhe trouxesse uma representação aplicável e reconhecível em diversos meios de comunicação e suportes. Frente ao desafio de desenvolver a marca Euforia, foi necessária uma abstração dos conceitos que já representavam a minha coleção e tudo o que ela significava. Inicialmente, listei os conceitos que eu gostaria que a identidade expressasse e tentei traduzi-los em uma linguagem gráfico-visual, ou seja, em estéticas que nos remetem semioticamente a determinados sentimentos e impressões. Alguns conceitos foram presentes desde a concepção do projeto gráfico até seu resultado, e logicamente foram mantidos na versão final. Dentre eles, a fluidez e a neutralidade, fazendo referência direta às principais ideias representadas pela coleção, o gênero fluido e neutro. A forma pela qual esses e outros conceitos foram ilustrados, desde o grid, serão explanadas a seguir, na apresentação da identidade visual da coleção cápsula EUFORIA.

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EUFORIA é uma coleção cápsula de peças de roupa sem gênero inspiradas no Techwear, um estilo de roupas e acessórios utilitários, resistentes e confortáveis. A estética sóbria, simples e minimalista do logo evidencia os atributos do Techwear, do Streetwear e da moda atual, nos quais a marca não grita mais alto do que o manifesto por trás das peças. Essa neutralidade está presente tanto na escolha tipográfica quanto na paleta de cores da coleção, mas também se manifesta de maneira simbólica. O uso de pronomes neutros e palavras sem gênero (sem estarem classificadas no masculino ou no feminino) têm se popularizado, tanto como meio de inclusão quanto na autoafirmação de indivíduos que não se identificam dentro do binarismo de gênero, e a letra E é uma das principais protagonistas dessa reformulação orgânica da língua. Além de neutralizadora, a letra E aparece como inicial do nome da coleção, e seu uso como símbolo da marca é indispensável. A junção de um E maiúsculo e um e minúsculo reforça a ideia de diversidade, de inclusão, de junção, além do fato de que a letra e é uma conjunção aditiva na língua portuguesa.

NEUTR A LIDADE | INCLUSÃO | FLUIDEZ | CONFORTO | DIVERSIDADE

Não obstante, a união dos Es resulta em um formato muito próximo a um ampersand (&), caractere que frequentemente substitui a conjunção e, consolidando ainda mais a presença dessa letra como destaque na identidade visual. A fluidez de gênero e o conforto do techwear foram conceitos explorados através da circularidade e da organicidade das formas, trazendo movimento à identidade. As diferentes assinaturas visuais foram construídas sobre um grid circular, a fim de conferir essa linguagem ao máximo às versões do logo. A circularidade e o movimento também se fazem presentes na onda que escreve EUFORIA através do símbolo da marca, o qual por si só é bastante orgânico e fluido, naturalmente fazendo referência à fluidez de gênero, interligando todos os conceitos presentes na identidade visual. Por último, mas não menos importante, a paleta de cores traz inicialmente 6 cores, utilizando como referência a Bandeira do Orgulho LGBT, símbolo de diversidade, modificando um pouco os tons e transformando-lhes em um gradiente extremamente fluido. Além das 6 cores, 2 tons de cinza compõem as cores da identidade visual, não apenas criando o contraste necessário para as aplicações, como também fazendo jus ao uso de tons que são neutros e fluidos, assim como o gênero pode ser.

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GRID CIRCUL AR | FLUIDEZ | CONFORTO | MOVIMENTO

UNIÃO | JUNÇÃO | DIVERSIDADE | INCLUSÃO | ADIÇÃO | NEUTR ALIDADE

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CORES

ADAPTAÇÃO DA BANDEIRA LGBT + TONS DE CINZA

C 10 M 70 Y 10 K 0 C 0 M 60 Y 90 K 0 C 5 M 0 Y 90 K 0 C 70 M 0 Y 50 K 0 C 60 M 20 Y 0 K 0 C 25 M 40 Y 0 K 0

C 0 M 0 Y 0 K 5

C 0 M 0 Y 0 K 95

CORES

DIVERSIDADE + FLUIDEZ + NEUTRALIDADE

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R E S U LTA D O S Obtive resultados muito satisfatórios ao ver as peças finalizadas. Mesmo sem ter uma experiência prévia com corte e costura e dispondo de um prazo não tão longo para terminar de confeccionar as peças, consegui chegar a resultados muito próximos dos que eu havia idealizado no início do projeto. Obviamente, tenho algumas considerações sobre as peças, e posso ressaltar algumas partes do desenvolvimento e da produção que poderiam ser diferentes para que eu obtivesse resultados ainda melhores, ou mesmo alguns detalhes e acabamentos das peças que eu faria diferente numa próxima oportunidade.

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JAQUETA CROPPED EM BRIM CINZA CHUMBO; GOLA VERSÁTIL - PODE SER USADA DOBRADA OU NÃO; BOLSOS FRONTAIS COM FECHAMENTO EM ALÇA DE NYLON E FIVELA PLÁSTICA; BOLSOS INTERNOS SEM FECHAMENTO; BOLSOS NAS MANGAS COM FECHAMENTO EM ZÍPER DE PLÁSTICO NA COR CINZA; PUNHOS DE MALHA SANFONADA; ZÍPER FRONTAL DE PLÁSTICO NA COR CINZA; DETALHE EM MEIA-LUA DE METAL NOS OMBROS.

Como foi a primeira peça que confeccionei dentre as peças finais, ainda estava um pouco receosa e com medo de desperdiçar material ou fazer algum acabamento muito ruim. Em questão de acabamento, a única coisa que eu tenho ressaltar é a costura na axila, pois eu tive um pouco de dificuldade para costurar a manga ao corpo da peça e, quando a jaqueta já estava pronta, percebi que estava descosturada nas axilas. Então, ao invés de costurar na máquina, resolvi fazer alguns pontos à mão. Ficaram algumas linhas aparentes, mas pelo menos fechou os buracos, e agora sei que é um acabamento que devo praticar mais.

rém, quando não se tem cava, o corpo da peça pode ficar um pouco justo, mesmo que o ombro já esteja bem largo visualmente. Foi o que aconteceu com a jaqueta cropped, a qual eu havia idealizado como uma peça oversized, porém acabou ficando não tão larga no corpo e com os ombros caídos. Mesmo assim, visualmente, o resultado ficou bastante agradável e, conceitualmente, a peça ficou com uma pegada bastante agênero ao ter um corpo não tão largo quanto o que seria comum numa modelagem masculina. Identificar as vantagens e as desvantagens de fazer uma modelagem sem cava com certeza foi um aprendizado muito interessante.

Em relação ao desenvolvimento da peça, eu resolvi testar uma modelagem diferenciada, sem cava, o que deixaria a peça mais retangular. Po-

Em relação ao caimento e à usabilidade (movimentação, funcionalidade dos bolsos), fiquei bastante satisfeita.

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SOBRETUDO EM BRIM CINZA CHUMBO; GOLA VERSÁTIL - PODE SER USADA DOBRADA OU NÃO; BOLSOS FRONTAIS E INTERNOS SEM FECHAMENTO; ZÍPER FRONTAL DE PLÁSTICO NA COR CINZA; FENDA FRONTAL; PRESILHAS PARA CINTO; DETALHE EM MEIA-LUA DE METAL NOS OMBROS. É uma peça com acabamento bastante similar ao da jaqueta, e foi a última que confeccionei, o que me ajudou em ambos os fatores. Principalmente em relação ao acabamento do forro embutido e à colocação das mangas, a finalização do sobretudo ficou bem melhor do que a da jaqueta. Isso demonstra que a obtenção de bons resultados só se dá a partir de muita prática. Quanto aos detalhes finais, minha consideração é em relação ao zíper e, consequentemente, à fenda frontal. No meu planejamento inicial, o sobretudo teria fendas laterais para facilitar a movimentação do usuário. Porém, na compra dos materiais, o zíper destacável mais longo que eu encontrei tinha 75 cm de comprimento, e a altura do sobretudo era perto de 1 m. A solução encontrada na confecção da peça foi se apropriar dessa extensão que ficaria faltando fechar na frente e deixar uma fenda frontal. Em questão de movimentação, o sobretudo ficou ótimo, e tornou-se desnecessário acrescentar fendas laterais. Em relação ao caimento e à funcionalidade dos bolsos, fiquei muito satisfeita.

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MACAQUINHO EM BRIM CINZA CHUMBO; MEIA MANGA E PERNAS TAMANHO BERMUDA; GOLA VERSÁTIL - PODE SER USADA DOBRADA OU NÃO; BOLSOS FRONTAIS COM FECHAMENTO EM ALÇA DE NYLON E FIVELA PLÁSTICA; BOLSOS DA BERMUDA COM FECHAMENTO EM ZÍPER DE PLÁSTICO NA COR CINZA; ZÍPER FRONTAL DE PLÁSTICO NA COR CINZA; PRESILHAS PARA CINTO.

Os problemas relatados na fase de prototipagem dessa peça me deixaram um pouco apreensiva com a confecção da versão final. Porém, graças ao auxílio da minha professora de costura Edna, a modelagem ficou excelente. O caimento ficou perfeito no meu corpo e o acabamento também ficou muito bom. O zíper ficou numa altura boa, a gola ficou muito interessante e os bolsos não apertam no corpo quando estão cheios. Com certeza é uma das minhas peças preferidas.

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CALÇA CARGO EM BRIM CINZA CHUMBO; CINTURA COM ALTURA MEDIANA; BOLSOS SIMPLES NA ALTURA DO CÓS; 2 BOLSOS COM FECHAMENTO EM ALÇA DE NYLON E FIVELA PLÁSTICA; 2 BOLSOS COM FECHAMENTO EM ZÍPER DE PLÁSTICO NA COR CINZA; PRESILHAS PARA CINTO; DETALHE EM MEIA-LUA DE METAL NAS PRESILHAS; BARRA EM MALHA SANFONADA. Uma peça relativamente fácil porém com muitos detalhes, e que requer muita atenção na confecção. Apesar de alguns erros no acabamento e de algumas costuras que tive que refazer, o resultado ficou muito bom. A calça cargo resultou em uma peça elegante, sem tantas costuras aparentes, com exceção dos bolsos e do cós. Minha maior dúvida na finalização era se eu colocava a sanfona ou se eu só costurava a barra normalmente. Acabei optando por colocar a sanfona, porém a calça ficou bastante longa para o meu corpo, e a sanfona não aparece quando estou de pé, somente quando estou sentada. Em questão de caimento, a calça ficou excelente. Mesmo estando levemente larga na minha cintura, o uso de um cinto já resolve. Os bolsos ficaram com uma usabilidade excelente.

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CAMISETA EM MALHA FRIA (67% POLIÉSTER, 33% VISCOSE) NA COR CINZA CHUMBO; MANGAS LARGAS 3/4; GOLA ALTA EM MALHA SANFONADA; DETALHE EM MEIA-LUA DE METAL NA BARRA.

Essa foi uma peça feita sem teste prévio, mas que ficou muito próxima de como eu havia imaginado. Inicialmente, pensei em comprar uma camiseta pronta e um pouco de tecido extra para customizá-la: adicionar mangas mais longas, colocar uma gola alta e os devidos detalhes. Porém, percebi que seria uma peça muito simples e rápida de confeccionar, então fiz do zero, utilizando a modelagem que eu mesma havia desenhado. E deu muito certo! A minha única consideração em relação à peça final é sobre o tecido, uma vez que eu tive que trabalhar com o que estava ao meu alcance, e eu só encontrei à venda uma malha sintética, quando inicialmente eu planejei utilizar malha 100% algodão, pois o caimento deste tecido no meu corpo fica muito mais agradável. Tirando esse detalhe, a camiseta se tornou a peça mais “chique” da coleção, devido à gola alta que lhe conferiu outra abordagem de estilo, além de muito confortável. É importante ressaltar que eu não conseguiria ter um bom acabamento se eu não tivesse à minha disposição uma overloque e uma galoneira. Obrigada, Edna!

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BUCKET HAT EM BRIM CINZA CHUMBO; DUPLA FACE: O BOLSO PODE SER USADO NA PARTE DE DENTRO DO CHAPÉU; BOLSO COM FECHAMENTO EM ZÍPER DE PLÁSTICO NA COR CINZA; DETALHE EM MEIA-LUA DE METAL NA ABA.

A peça mais fácil de todas, desde a fase de testes, e provavelmente a mais divertida de fazer e usar. Fiquei apaixonada pelo processo e pelo resultado, e adoraria fazer dezenas de chapéus para vender! O bucket hat da coleção ficou bem acabado e bastante elegante, por não conter tantas costuras quanto um bucket hat comum. O bolso com certeza é um diferencial que se destaca muito, assim como a meia lua de metal. Um dos pontos mais interessantes do chapéu é que ele é dupla face, então ele pode ser utilizado com o bolsinho virado para dentro, garantindo mais segurança e liberdade ao usuário. A modelagem “grande” do chapéu também é um ponto muito forte, uma vez que, conversando com alguns amigos, muitos deles se queixaram de que os bucket hats comprados nas lojas são muito pequenos e não cabem na cabeça da maioria das pessoas. Portanto, fiz um chapéu mais largo, mas não a ponto de cair da cabeça. A usabilidade e a funcionalidade do bucket hat ficaram excelentes.

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Mesmo com pouco tempo de experiência e depois de muito treinar fazer costura reta na máquina, eu estava tendo um bom resultado. As costuras visíveis das peças, principalmente as dos bolsos, ficaram visualmente agradáveis. Porém, como sou muito perfeccionista, sei que ainda tenho muito o que melhorar. Outro olhar que ainda tenho que desenvolver é em relação às questões técnicas da costura, como por exemplo, o tamanho do ponto aliado à tensão e à grossura da linha na máquina de costura. Mas isso ainda vai me custar muito treino e costuras desfeitas e refeitas…

Meu conselho hoje é: cuidado com os alfinetes! Se eles forem de qualidade ruim, será difícil espetar o tecido e você pode até puxar um fio sem querer. E mesmo que você use alfinetes de boa qualidade, procure furar em lugares não tão visíveis! Em relação ao prazo que eu mesma estipulei para finalizar a coleção, acredito que também seja um fator decisivo para a qualidade dos acabamentos, uma vez que se eu tivesse alguns meses a mais para produzir, provavelmente eu teria resultados ainda mais satisfatórios. Porém, acredito que tanto o meu prazo quanto os resultados ficaram muito dentro do aceitável.

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PH OTO S H O OT No dia 10 de outubro de 2020, com o trabalho do fotógrafo e designer Gabriel Elias e o auxílio da designer Marília Ribeiro Favaron, realizei um sessão de fotos para registrar todas as peças da coleção em imagens de alta qualidade, dentro de uma estética muito próxima da que as marcas de streetwear e techwear utilizam, e também explorando ângulos mais frontais para focar nos detalhes das peças, como um ensaio para e-commerce. Para conseguirmos fazer fotos de estúdio em casa, comprei 3 metros de Percal branco, com 2,5 metros de largura. Estendemos ele na parede de modo que fizesse uma curva próximo ao chão, simulando um fundo infinito.

Durante o processo de desenvolvimento do meu projeto de conclusão, minha ideia era chamar pessoas não-binárias/trans para serem modelos da coleção, fazendo jus ao público alvo. Porém, em decorrência da pandemia Covid-19, muitos colegas da faculdade que poderiam ter sido os modelos não estavam em Bauru. Frente a isso, comecei a pensar em uma forma de solucionar esse ponto, e me dei conta de que as peças foram confeccionadas sob as minhas medidas, e de que, na verdade, desde o início, esse projeto foi resultado de um auto descontentamento em relação a todas as questões que relacionam moda e gênero. Nesse momento, eu decidi que eu mesma seria a modelo da coleção, pois, além da questão prática, ser a modelo da minha própria coleção seria meu grito de militância e existência.

DIREÇÃO DE ARTE Marina de Araujo DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA Gabriel Elias e Marina de Araujo FOTOS Gabriel Elias MAQUIAGEM E CABELO Marília Ribeiro Favaron ASSISTÊNCIA Marília Ribeiro Favaron MODELO Marina de Araujo

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CONSI DE R AÇÕES F I NA IS Nunca imaginei que em meio a uma pandemia mundial eu faria um curso de corte e costura, e que a partir desse aprendizado eu mesma seria capaz de confeccionar as peças do meu projeto, sem ter o mínimo de experiência com modelagem e costura na máquina. Realizar o processo completo de confecção de uma roupa me proporcionou entender como o trabalho de uma costureira é árduo, e como envolve muito mais do que o labor manual, pois exige uma grande carga de pensamento lógico. Também me possibilitou compreender, numa menor escala, o processo de produção da industrial têxtil, levando-me a refletir sobre a indústria da moda como um todo, e revelando os porquês de diversas características que as roupas têm, do tecido no qual ela é confeccionada ao preço pelo qual ela é vendida numa loja.

Na verdade, o que classifica uma peça de roupa como “sem gênero”? Acredito que seja algo que vai além da eliminação dos elementos categorizadores de gênero. É uma roupa que não diz “sou uma peça masculina” ou “sou uma peça feminina”, mas que transmite a ideia de vestir, de proteger, de cobrir. É uma peça que não pretende ressaltar determinadas partes do corpo ou esconder outras. É uma peça que tem a simples função de vestir. Quaisquer elementos ornamentadores que a enfeitam terão o puro propósito de estilizá-la dentro do mundo da moda; quaisquer acessórios como bolsos, zíperes e fivelas irão apenas transformá-la numa peça utilitária (como é o caso de muitos uniformes); mas esses elementos adicionais nunca irão generificá-la. Afinal, é a sociedade quem determina o gênero de tudo. Portanto, ao utilizar elementos neutros na criação de uma peça, não existirá informação suficiente para categorizá-la como feminina ou masculina.

Acredito que este projeto me proporcionou a oportunidade de aprender muito sobre assuntos que já me chamavam muito a atenção, e foi importante a ponto de eu entender melhor a mim mesma. Também pude relacionar esse conteúdo ao Design, e melhor ainda, à Moda, e foi uma experiência inesquecível, a qual eu só me dei conta que poderia explorar no final do curso de Design. Fico muito honrada de poder trazer essa temática à tona, e possibilitar que a discussão sobre gênero ocupe ainda mais espaços e seja plano de fundo para outros projetos de Design de Moda. Também desejo que esse projeto seja uma semente no curso de Design para os estudantes amantes da Moda, para que eles se sintam capazes de criarem suas próprias coleções, nunca duvidando de seu potencial, mesmo tendo feito uma graduação em Design Gráfico. Finalmente, gostaria de espalhar uma mensagem de aceitação: tenha orgulho de quem você é e seja a sua versão mais autêntica; nunca deixe que outras pessoas digam quem você deve ser!

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BIBLIOGRAFIA BIANCHIN, Victor. O que foi o movimento punk?. Superinteressante, 2018. Disponível em <Link>. Acesso em 19 de mar. de 2020. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 18ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. COSTA, Rafael Pessoa. Modelagem do vestuário para a moda sem gênero. 14º Colóquio de Moda - 11ª Edição Internacional. 5º Congresso de Iniciação Científica em Design e Moda. 2018. DAL BOSCO, Glória Lopes da Silva. A importância da modelagem na unificação de gêneros. 12º Colóquio de Moda – 9ª Edição Internacional. 3º Congresso de Iniciação Científica em Design e Moda. 2016. LI, Rocky. An Introduction to Techwear. GRAILED, 2019. Disponível em <Link>. Acesso em 19 de mar. de 2020. PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2017. SANCHEZ, Gabriel; SCHMITT, Juliana. Moda sem gênero: conceituação e contextualização das tendências não binárias. 12º Colóquio de Moda – 9ª Edição Internacional. 3º Congresso de Iniciação Científica em Design e Moda. 2016. VICENTINI, Cláudia Regina Garcia. Estudo semiótico das lingeries na construção dos regimes de visibilidade da mulher brasileira: conceituações do formante matérico. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – São Paulo. 2005 VICENTINI, Cláudia Regina Garcia. Ferramentas e metodologia de projeto aplicados na criação de produtos para a indústria têxtil-confecção. Tese de Doutorado - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia Mecânica. Campinas, SP. 2010.

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