corpo e espaço: a transcriação em sete narrativas literárias
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Trabalho Final de Graduação
corpo e espaço: a transcriação em sete narrativas literárias
Marina Prado Sander Smit orientador Luís Antônio Jorge
1° semestre de 2012
narrativas
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poema sujo Ferreira Gullar
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O afogado mais bonito do mundo Gabriel García Márquez
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ninguém acendia as luzes Felisberto Hernández
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primeira dor Franz Kafka
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a morte da mulher do atirador de facas Naoya Shiga
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jardín de nubes Alberto Ruy Sánchez
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as cidades e as trocas 5 Italo Calvino
desenvolvimento
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introdução processo produto
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agradecimentos bibliografia
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fragmento do Poema Sujo Ferreira Gullar
Mas a poesia não existia ainda. Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas. Olhos. Braços. Seios. Bocas. Vidraça verde, jasmim. Bicicleta no domingo. Papagaios de papel. Retreta na praça. Luto. Homem morto no mercado sangue humano nos legumes. Mundo sem voz, coisa opaca. Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela? Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos Do corpo. Mas que é o corpo? Meu corpo feito de carne e de osso Esse osso que não vejo, maxilares, costelas, flexível armação que me sustenta no espaço que não me deixa desabar como um saco vazio que guarda as vísceras todas funcionando como retortas e tubos fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento e as palavras e as mentiras e os carinhos mais doces mais sacanas
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mais sentidos para explodir como uma galáxia de leite no centro de tuas coxas no fundo de tua noite ávida cheiros de umbigo e de vagina graves cheiros indecifráveis como símbolos do corpo do teu corpo do meu corpo corpo que pode um sabre rasgar um caco de vidro uma navalha meu corpo cheio de sangue que o irriga como a um continente ou um jardim circulando por meus braços por meus dedos enquanto discuto caminho lembro relembro meu sangue feito de gases que aspiro dos céus da cidade estrangeira com a ajuda dos plátanos e que pode – por um descuido – esvair-se por meu pulso aberto Meu corpo que deitado na cama vejo como um objeto no espaço que mede 1, 70m e que sou eu: essa coisa deitada barriga pernas e pés com cinco dedos cada um (por que não seis?)
joelhos e tornozelos para mover-se sentar-se levantar-se meu corpo de 1, 70m que é meu tamanho no mundo meu corpo feito de água e cinza que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio e me sentir misturado a toda essa massa de hidrogênio e hélio que se desintegra e reintegra sem se saber pra quê Corpo meu corpo corpo que tem um nariz assim uma boca dois olhos e um certo jeito de sorrir de falar que minha mãe identifica como sendo de seu filho que meu filho identifica como sendo de seu pai corpo que se pára de funcionar provoca um grave acontecimento na família: sem ele não há José Ribamar Ferreira não há Ferreira Gullar e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta estarão esquecidas para sempre corpo-facho corpo-fátuo corpo-fato atravessado de cheiros de galinheiros e rato na quitanda ninho de rato cocô de gato sal azinhavre sapato
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brilhantina anel barato língua no cu na buceta cavalo-de-crista chato nos pentelhos corpo meu corpo-falo insondável incompreendido meu cão domestico meu dono cheio de flor e de sono meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio de tudo como um monturo de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias sambas e frevos azuis de Fra Angelico verdes de Cézanne matéria-sonho de Volpi Mas sobretudo meu corpo nordestino mais que isso maranhense mais que isso sanluisense mais que isso ferreirense newtoniense alzirense meu corpo nascido numa porta-e-janela da rua dos Prazeres ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo sob as balas do 24° BC na revolução de 30 e que desde então segue pulsando como um relógio num tic tac que não se ouve (senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração) tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus entre vitrinas de roupas nas livrarias nos bares tic tac tic tac pulsando há 45 anos esse coração oculto pulsando no meio da noite, da neve, da chuva debaixo da capa, do paletó, da camisa debaixo da pele, da carne, combatente clandestino aliado da classe operária meu coração de menino
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O AFOGADO MAIS BONITO DO MUNDO Gabriel García Márquez
Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado. Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarma no povoado. Os homens que carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais do que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e se disseram que talvez tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe nos ossos. Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo. Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispersas no fim de um cabo desértico. A terra era tão
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escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava. Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens verificavam se não faltava alguém nos povoados vizinhos, as mulheres ficaram cuidando do afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto, desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que o faziam, notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado por entre labirintos de corais. Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário dos outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indigente dos afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpá-lo tiveram consciência da classe de homens que eram, e então ficaram sem respiração. Não só era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais tinham visto, senão que, embora o estivessem vendo, não lhes cabia na imaginação. Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para estendê-lo nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e sua beleza, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse continuar sua morte
com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em circo, contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz nem o Caribe estivesse tão ansioso como naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que se aquele homem magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizeram brotar mananciais entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo, com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-los, no fundo dos seus corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. Andavam perdidas por esses labirintos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha contemplara o afogado com menos paixão que compaixão, suspirou: -Tem cara de se chamar Estêvão. Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo estendido entre flores e com sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O lençol ficou curto, as calças, mal cortadas e pior costuradas, ficaram apertadas e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia-noite diminuíram os assovios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta-feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estêvão. As mulheres que o vestiram, as que o pentearam, as
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que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram que resignar-se a deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem saber o que fazer com suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas abrasadas de tanto repetir o mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aqueles que lhe diziam não se vá, Estêvão, espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que, depois, sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com os seus homens, que se abriram as primeiras gretas de lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As outras, consolando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada vez mais Estêvão, até que o choraram tanto que ficou sendo o homem mais desvalido da Terra, o mais manso e o mais serviçal, o pobre Estêvão. Assim que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados vizinhos, elas
sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas. -Bendito seja Deus – suspiraram: - é nosso! Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única coisa que queriam era descartar-se de uma vez do estorvo do intruso, antes que acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos tornozelos uma âncora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade, de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres lembraram para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira de orientação; e depois de tanto sai dai mulher, ponha-se onde não estorve, olhe que quase me fez cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de quinquilharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se exaltar, desde quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou o lenço do rosto do cadáver
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e também os homens perderam a respiração. Era Estêvão. Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Estêvão só podia ser único no mundo e ali estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe cabiam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar a faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estava envergonhado, de que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as longas noites no mar, temendo que suas mulheres se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estêvão. Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplendidos que se podiam conceber para um afogado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no que lhes contava, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e levaram mais e mais, até que ouve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às águas, e lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e os outros se fizeram seus irmãos, tios
e primos, de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o choro a distância perderam a segurança do rumo, e se soube de um que se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereia. Enquanto se disputavam o privilégio de levá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza de seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estêvão pudesse andar por toda a parte sem bater nas traves e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores alegres para eternizar a memória de Estêvão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar de seu castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfiada de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte do Caribe, dissesse em quatorze línguas, olhe lá, onde o vento é agora tão manso que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estêvão.
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Ninguém acendia as luzes Felisberto Hernández
Faz muito tempo, lia eu um conto numa sala antiga. A princípio um pouco de sol entrava por uma das persianas. Depois ia se estendendo lentamente sobre algumas pessoas até alcançar a mesa onde ficavam os retratos dos mortos queridos. Tirar as palavras do corpo era tão custoso quanto de um instrumento de foles em frangalhos. Nas cadeiras da frente estavam duas viúvas, donas de casa; eram bem idosas, mas ainda tinham bastante cabelo nos grossos coques. Eu lia sem vontade e volta e meia levantava a cabeça do papel, mas precisava tomar cuidado para não olhar sempre para a mesma pessoa; meus olhos já estavam acostumados a ir, a cada momento, à região pálida que ficava entre o vestido e o coque de uma das viúvas. Era uma cara quieta, que continuaria recordando um mesmo passado ainda por um bom tempo. Por alguns instantes, seus olhos pareciam vidros esfumaçados, sem ninguém por trás. Eu logo pensava na importância de alguns dos presentes e me esforçava para entrar na vida do conto. Numa das vezes em que me distraí, vi através das persianas pombas se mexendo em cima de uma estátua. Depois vi, no fundo da sala, uma jovem com a cabeça recostada na parede; os fios ondulados de seus cabelos se espalhavam muito, e eu passava os olhos por eles como se visse uma planta que tivesse crescido contra o muro de uma casa abandonada. Dava-me preguiça ter de compreender de novo aquele
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conto e transmitir seu significado; mas, às vezes, só as palavras e o costume de dizê-las surtiam efeito sem que eu interviesse, e as risadas dos ouvintes me surpreendiam. Já tornara a passar os olhos pela cabeça recostada na parede e pensei que a mulher talvez tivesse percebido; então, para não ser indiscreto, olhei na direção da estátua. Embora continuasse lendo, pensava na inocência com que a estátua tinha que representar uma personagem que ela própria não compreenderia. Talvez se entendesse melhor com as pombas: parecia consentir que dessem voltas ao redor de sua cabeça e pousassem no cilindro que estava recostado ao corpo da personagem. De repente percebi que tornara a olhar para a cabeça recostada na parede e que, nesse instante, ela havia fechado os olhos. Depois me esforcei para recordar o entusiasmo que sentira nas primeiras vezes que tinha lido aquele conto; nele havia uma mulher que todo dia ia até uma ponte, com a esperança de poder se suicidar. Mas todo dia surgiam obstáculos. Meus ouvintes riram quando, numa das noites, alguém lhe fez uma proposta e a mulher, assustada, saiu correndo para casa. A mulher da parede também ria e dava voltas com a cabeça no muro, como se tivesse recostada numa almofada. Eu já havia me acostumado a tirar os olhos daquela cabeça para pô-los na estátua. Quis pensar na personagem que a estátua representava, mas nada sério me ocorria; talvez a alma da personagem também houvesse perdido a seriedade que tivera em vida e agora andasse brincando com as pombas. Surpreendi-me quando voltaram a achar graça em algumas das minhas palavras; olhei para as viúvas e vi que alguém havia assomado aos olhos esfumaçados da que parecia mais triste. Numa das vezes em que tirei os olhos da cabeça recostada na parede, não olhei para a estátua, mas para o outro cômodo, onde julguei ver chamas em cima da mesa; algumas pessoas seguiram meu movimento;
mas em cima da mesa só havia uma jarra com flores vermelhas e amarelas em que batia um pouco de sol. Ao terminar meu conto, acendeu-se o barulho, e a pessoas me rodearam; faziam comentários; um senhor começou a me contar um conto de outra mulher que se suicidara. Ele queria se expressar bem, mas demorava a encontrar as palavras; além do mais, fazia rodeios e digressões. Olhei para os demais e vi que escutavam impacientes; estávamos todos parados e não sabíamos o que fazer com as mãos. Aproximara-se a mulher que tinha as ondas do cabelo espalhadas. Depois de olhar para ela, olhei para a estátua. Eu não queria ouvir o conto porque o esforço daquele homem perseguindo as palavras me fazia sofrer: era como se a estátua tivesse começado a esmurrar as pombas. As pessoas à minha volta não podiam deixar de ouvir o senhor do conto; ele continuava, obstinado e sem jeito, como se quisesse dizer: “Sou político, sei improvisar um discurso e também contar um conto que tenha algum interesse”. Havia, entre os que ouvíamos, um jovem que tinha algo estranho na testa: era uma franja escura no lugar onde aparece o cabelo; e essa mesma cor – a de uma barba cerrada feita a pouco e coberta de pó – formava nele grandes entradas. Olhei para a mulher de cabelo esparramado e vi, com surpresa, que também ela olhava para o meu cabelo. E foi então que o político terminou o conto e todos aplaudiram. Não me animei a felicitá-lo, e uma das viúvas disse: “Sente-se, por favor”. Foi o que fizemos, e sentiu-se um suspiro geral; mas tive de me levantar de novo porque uma das viúvas me apresentou a jovem de cabelo ondulado: era sobrinha dela. Convidaram-me a sentar num grande sofá de três lugares; a sobrinha se instalou de um lado, e do outro, o jovem da testa pelada. A sobrinha ia falar, mas o jovem a interrompeu. Tinha levantado uma das mãos com os
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dedos para cima – como o esqueleto de um guarda-chuva que o vento tivesse dobrado – e disse: - Adivinho no senhor um personagem solitário, que se conformaria com a amizade de uma árvore. Achei que tinha se barbeado assim para que a testa ficasse mais ampla, e tive a maldade de lhe responder: - Não creia; eu não poderia convidar uma árvore para passear. Rimos os três. Ele inclinou para trás sua testa pelada e continuou: - É verdade; a árvore é o amigo que sempre fica. As viúvas chamaram a sobrinha. Ela se levantou, fazendo um gesto de desagrado; eu a olhava indo embora, e só então percebi que era fornida e violenta. Ao virar a cabeça me deparei com um jovem que me fora apresentado pelo testa pelada. Acabara de se pentear e tinha gotas d’água nas pontas do cabelo. Uma vez me penteei assim, quando era criança, e minha avó me disse: “Parece que as vacas te lamberam”. O recémchegado sentou-se no lugar da sobrinha e se pôs a falar: - Ai, meu Deus, esse senhor do conto, tão recalcitrante! Tive vontade de lhe dizer: “E o senhor, tão feminino?!”. Mas perguntei: - Como se chama? - Quem? - O senhor... recalcitrante. - Ah, não me lembro. Tem um nome patrício. É um político, sempre o colocam como membro do júri nos concursos literários. Olhei para o da testa pelada e ele me fez um gesto, como quem diz: “Fazer o que com ele?!”. Quando voltou a sobrinha das viúvas, tirou o “feminino” do sofá, sacudindo-o pelo braço e fazendo respingar gotas d’água no paletó. Em seguida, disse: - Não concordo com os senhores. - Por quê?
- ... e acho estranho que não saibam como a árvore faz para passear conosco. - Como? - Repete-se ao longo dos passos. Elogiamos a idéia dela, e ela se entusiasmou: - Repete-se numa avenida, indicando-nos o caminho; depois, todas se juntam ao longe e se mostram para nos ver; e, à medida que nos aproximamos, se separam e nos deixam passar. Disse tudo isso com um certo ar de piada e como que dissimulando uma idéia romântica. O pudor e o prazer a fizeram corar. Aquele encanto foi interrompido pelo feminino: - Mas quando é noite no bosque, as árvores nos assaltam por todos os lados; algumas se inclinam, como que para dar um passo e cair em cima da gente; e ainda nos interrompem o caminho e nos assustam, abrindo e fechando os galhos. A sobrinha das viúvas não pôde se conter: - Jesus! Você parece a Branca de Neve! Enquanto ríamos, ela me disse que desejava me fazer uma pergunta, e fomos ao cômodo onde estava a jarra com flores. Ela se recostou na mesa até afundar o tampo no corpo; e enquanto enfiava as mãos nos cabelos, perguntou-me: - Diga-me a verdade: por que a mulher do seu conto se suicidou? - Oh, seria preciso perguntar para ela. - E o senhor não poderia fazer isso? - Seria tão impossível quanto perguntar alguma coisa à imagem de um sonho. Ela sorriu, baixando os olhos. Então pude olhar toda a sua boca, que era muito grande. O movimento dos lábios, estirando-se em direção às bordas, parecia não ter fim; mas meus olhos percorriam com gosto toda aquela distância de vermelho úmido. Talvez
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ela enxergasse através das pálpebras, ou pensasse que naquele silêncio eu não estivesse fazendo nada de bom, porque baixou muito a cabeça e escondeu o rosto. Agora mostrava toda a massa do cabelo; no redemoinho das ondas se via um pouco de pele, e me lembrei de uma galinha a que o vento revolvesse as penas, deixando ver a carne. Eu tinha prazer em imaginar que aquela cabeça era de uma galinha humana, grande e quente; sua cor seria muito delicada, e o cabelo, uma forma muito fina de pena. Veio uma das tias – a que não tinha olhos esfumaçados – trazer-nos cálices de licor. A sobrinha levantou a cabeça e a tia lhe disse: - É preciso tomar cuidado com este aqui; repare que tem olhos de raposa. Tornei a pensar na galinha e lhe respondi: - Senhora! Não estamos num galinheiro! Quando voltamos a ficar a sós, e enquanto eu provava o licor – era doce demais, me dava náusea – ela me perguntou: - O senhor nunca teve curiosidade quanto ao futuro? Tinha encolhido a boca como se quisesse guardar o cálice lá dentro. -Não; tenho mais curiosidade em saber o que está acontecendo com outra pessoa neste exato instante; ou o que eu faria se estivesse noutro lugar. - Diga-me: o que o senhor faria se eu não estivesse aqui? - Por acaso eu sei: derramaria este licor na jarra das flores. Pediram que eu tocasse piano. Ao voltar à sala, a viúva dos olhos esfumaçados estava com a cabeça baixa e recebia no ouvido o que a irmã lhe dizia com insistência. O piano era pequeno, velho e desafinado. Eu não sabia o que tocar; mal comecei a experimentá-lo e a viúva dos olhos esfumaçados caiu no choro, e todos nós nos calamos. A irmã e a sobrinha levaram-na para
dentro; num instante, a sobrinha voltou e nos disse que a tia não queria ouvir música desde a morte do marido – tinham se amado até chegar à inocência. Os convidados começaram a ir embora. E os que ficamos falávamos em voz cada vez mais baixa, à medida que a claridade ia acabando. Ninguém acendia as luzes. Eu ia entre os últimos, tropeçando nos móveis, quando a sobrinha me deteve: - Tenho de lhe pedir um favor. Mas não disse nada: recostou a cabeça na parede do saguão e me agarrou pela manga do paletó.
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Primeira dor Franz Kafka
Um artista do trapézio – como se sabe, esta arte que se pratica no alto da cúpula dos grandes teatros de variedades é uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens – tinha organizado sua vida de tal maneira, primeiro pelo esforço de perfeição, mais tarde pelo hábito que se tornou tirânico, que enquanto trabalhava na mesma empresa permanecia dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades, aliás bem ínfimas, eram atendidas por criados que se revezavam, vigiavam embaixo e faziam subir e descer, em recipientes construídos especificamente para esses fins, tudo o que era preciso lá em cima. Esse modo de viver não causava aos outros dificuldades especiais; era apenas um pouco incômodo que durante os demais números do programa ele ficasse lá no alto, o que não se podia ocultar: apesar de, nesses momentos, na maioria das vezes se conservar quieto, de quando em quando um olhar do público se desviava para ele. Mas os diretores o perdoavam por isso porque era um artista extraordinário e insubstituível. Além do que admitia-se com naturalidade que ele não vivia assim por capricho e que só podia preservar a perfeição da sua arte mantendo-se em exercício constante. De mais a mais, lá no alto também era saudável, e quando nas épocas mais quentes do ano eram abertas as janelas laterais em toda a extensão da cúpula e junto com o ar fresco o sol entrava poderoso no espaço
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crepuscular, então era até bonito lá em cima. Sem dúvida seu convívio humano estava reduzido; só uma vez ou outra um colega de acrobacia subia até ele pela escada de corda; então os dois se sentavam no trapézio, inclinavam-se à esquerda e à direita sobre as cordas de sustentação e proseavam. Ou então os operários que consertavam o teto trocavam algumas palavras com ele através de uma janela aberta; ou o bombeiro examinava a iluminação de emergência na galeria superior e lhe gritava algo respeitoso mas pouco inteligível. De resto o silêncio o cercava; algumas vezes um funcionário qualquer, que porventura errava à tarde pelo teatro vazio, erguia o olhar para a altura – que quase fugia à vista – onde o artista do trapézio, sem poder adivinhar que alguém o observava, exercia sua arte ou descansava. O trapezista teria podido assim viver tranquilamente, não fossem as inevitáveis viagens de lugar em lugar que lhe eram extremamente molestas. É verdade que o empresário providenciava para que ele ficasse a salvo de qualquer prolongamento desnecessário desses sofrimentos: para as viagens nas cidades usavam-se automóveis de corrida com os quais se disparava, se possível à noite ou de madrugada, pelas ruas desertas na mais alta velocidade, que certamente era muito lenta para a nostalgia do artista do trapézio; no trem era reservado todo um compartimento onde ele passava a viagem na rede destinada à bagagem, numa substituição lamentável mas ainda possível da sua maneira habitual de viver; no local da apresentação seguinte o trapézio já estava colocado no teatro muito antes da chegada do artista; mantinham-se também abertas todas as portas que davam para o palco e livres todos os corredores. Mas os momentos mais belos na vida do empresário eram sempre aqueles em que o artista punha o pé na escada de corda e finalmente, num instante, estava de novo pendurado no alto de seu trapézio.
Por mais bem-sucedidas que essas viagens fossem para o empresário, cada nova excursão lhe era penosa, pois a despeito de tudo perturbavam seriamente os nervos do trapezista. Certa vez em que ambos viajavam juntos – o trapezista sonhando na rede da bagagem e o empresário no canto da janela lendo um livro – o artista do trapézio dirigiu-se a ele em voz baixa. O empresário deu-lhe imediatamente atenção. O artista disse, mordendo os lábios, que de agora em diante ele ia precisar para sua acrobacia sempre de dois trapézios ao invés de um – dois trapézios, um em frente ao outro. O empresário concordou rapidamente. Mas, como se estivesse querendo mostrar que a anuência do empresário tinha aqui tão pouco sentido quanto sua negação, o artista acrescentou que nunca mais e em circunstância alguma trabalharia com apenas um trapézio. Parecia estremecer só com a idéia de que isso acontecesse outra vez. Hesitante, o empresário observou o trapezista e se declarou novamente de pleno acordo com o fato de que dois trapézios eram melhor que um; além disso essa nova disposição apresentava a vantagem de tornar o número mais variado. De repente o artista do trapézio começou a chorar. Profundamente assustado, o empresário deu um salto e perguntou o que havia acontecido; por não receber resposta, subiu no acento, acariciou-o e apertou o rosto dele contra o seu, de tal modo que as lágrimas do trapezista lhe escorreram sobre a pele. Mas só depois de muitas perguntas e palavras de carinho o artista do trapézio disse soluçando: “Só com esta barra na mão, como é que posso viver?”. Agora era mais fácil para o empresário consolar o artista; prometeu telegrafar da primeira estação para o lugar da apresentação seguinte, pedindo o segundo trapézio; censurou-se por ter deixado o trapezista trabalhar tanto tempo com apenas um
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trapézio, agradeceu-lhe e elogiou-o muito por ter afinal chamado sua atenção para o erro. Foi assim que o empresário pôde aos poucos acalmar o artista e voltar ao seu canto. Mas ele mesmo não estava tranqüilo e com grave preocupação examinava secretamente o trapezista por cima do livro. Se pensamentos como esse começassem a atormentá-lo, poderiam cessar por completo? Não continuariam aumentando sempre? Não ameaçariam sua existência? E de fato o empresário acreditou ver, no sono aparentemente calmo em que o choro tinha terminado, como as primeiras rugas começavam a se desenhar na lisa testa de criança do artista do trapézio.
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A morte da mulher do atirador de facas Naoya Shiga
Para espanto de todos, o jovem prestidigitador chinês Han cortou a carótida da mulher com uma de suas pesadas facas, durante um espetáculo. A jovem senhora morreu ali mesmo, e ele foi preso em seguida. No lugar do acontecimento estavam o diretor do teatro, o assistente chinês de Han, o apresentador e mais de trezentos espectadores. Havia também um policial, postado por trás da assistência. Não obstante a presença de todas essas testemunhas, era um completo mistério se a morte fora intencional ou acidental. O número de Han se produzia do seguinte modo: sua mulher ficava em frente de uma tábua mais ou menos do tamanho de uma porta, e ele duma distância de cerca de quatro jardas atirava seus facões de modo que se cravassem na tábua formando o contorno do corpo com uma distância de duas polegadas da mulher. Quando cada uma das facas partia de sua mão, ele soltava uma exclamação em staccato como para ressaltar sua atuação. O juiz encarregado interrogou primeiro o diretor do teatro: - O senhor diria que esse número é muito difícil? - Não, Excelência; não é nada difícil para uma pessoa experiente. Mas para fazê-lo direito é preciso estar com os nervos firmes e a concentração perfeita. - Compreendo. Então, aceitando que o acontecido foi um acidente, seria o tipo do acidente improvável?
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- Na verdade, Excelência, é. Se os acidentes não fossem tão improváveis, eu nunca permitiria esse número no meu teatro. - Bem, então você acha que foi de propósito... - Não, Excelência, não acho. E pela simples razão de que um número desta espécie, executado a uma distância de doze pés requer não apenas habilidade, mas, ao mesmo tempo, um certo... digamos, um certo senso de intuição. É verdade que nós todos sempre pensamos que um erro fosse virtualmente impossível; porém, depois do que aconteceu, devemos admitir que sempre havia a possibilidade dum erro. - Então, que é que o senhor acha? Foi erro ou propósito? - Isso é que eu não sei dizer, Excelência. O juiz sentiu-se desorientado. Era um caso evidente de homicídio; mas impossível afirmar se fora homicídio involuntário ou premeditado. Se tinha sido assassinato, fora, sem dúvida, muito inteligente – pensou o juiz. Em seguida, decidiu interrogar o assistente chinês, que desde muitos anos trabalhava com Han: - Como se comportava Han normalmente? - Foi sempre muito correto, Excelência: não jogava, não bebia, nem vivia atrás de mulheres. Além do mais, no ano passado converteu-se ao catolicismo. Estudava inglês, e nas horas vagas sempre parecia estar lendo seleções de sermões – a Bíblia e coisas desse gênero. - E a conduta de sua mulher? - Também muito correta, Excelência. Como sabe V. Exª, nem sempre os artistas ambulantes são as pessoas mais decentes. A Sra. Han era uma mulherzinha bem bonita, e de vez em quando lhe faziam propostas, porém ela nunca deu a menor atenção a essas coisas. - E qual era o tipo de temperamento dos dois? - Bondosos e gentis, Excelência. Eram extremamente bons para com todos os amigos e conhecidos, e nunca
discutiam com ninguém. Mas – parou e refletiu um instante antes de continuar –, Excelência, temo que, se eu lhe contar isto, Han venha a ser prejudicado. Mas, para dizer a verdade, essas duas pessoas tão bondosas e desprendidas para com os outros, eram surpreendentemente cruéis uma com a outra. - Por quê? - Não sei, Excelência. - E sempre foi assim, desde que os conheceu? - Não, Excelência. Há uns dois anos a Sra. Han ficou grávida. A criança nasceu antes do tempo e morreu uns três dias depois. Isso determinou uma mudança em suas relações. Começaram a ter brigas terríveis pelas coisas mais fúteis, e o rosto de Han ficava branco feito papel. Ele sempre terminava calando-se de repente. Nem uma vez levantou a mão, ou fez coisa parecida, contra ela – acho que isso era contrário aos seus princípios. Mas, quando se olhava para ele, Excelência, podia-se ver a raiva terrível nos seus olhos! Dava medo, às vezes! Certo dia perguntei a Han por que não se separava da mulher, dado que as coisas iam tão mal entre os dois. Bem, ele me respondeu que não tinha um motivo real para divórcio, apesar de seu amor por ela haver morrido. Naturalmente ela sentia isso e aos poucos também deixou de amá-lo. Ele mesmo me contou tudo isso. Acho que a razão por que deu para ler a Bíblia e todos aqueles sermões foi o desejo de acalmar a violência no seu coração e defender-se de odiar a mulher, a quem não tinha por que odiar. A Sra. Han era, em verdade, uma mulher impressionante. Estava desde quase três anos com Han, e percorreu com ele todo o país como artista ambulante. Se ela deixasse Han e voltasse para sua terra, não creio que se casasse facilmente. Quantos homens acreditariam numa mulher que tivesse passado todo aquele tempo viajando? Acho que foi por isso que ela ficou com Han, embora se dessem tão mal.
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- E o que acha realmente dessa morte? - Quer saber, Excelência, se eu acho se foi acidental ou proposital? - Sim, senhor. - Bem, Excelência, tenho pensado nela, de todos os pontos de vista, desde o dia em que aconteceu. Quanto mais penso menos sei o que dizer. Conversei a respeito do caso com o apresentador, e ele também diz que não compreende o que aconteceu. - Muito bem. Mas diga-me uma coisa: no momento exato em que se deu o fato, ocorreu-lhe imaginar se era acidental ou propositado? - Sim. Senhor, ocorreu. Pensei, pensei: afinal de contas, ele a matou. - De propósito, então? - Sim, Excelência. Entretanto, o apresentador do número diz que pensou assim: “A mão de Han escorregou!” - Bem. Porém ele não conhecia, como é o seu caso, as relações quotidianas dos dois. - Isto pode ser, Excelência. Mas, em seguida, fiquei pensando se não seria exatamente porque eu sabia o que havia entre os dois que pensei: “Afinal de contas, ele a matou.” - Qual foi, no momento, a reação de Han? - Gritou: “Ah!” logo que o escutei, olhei para cima e vi o sangue esguichando do pescoço da mulher. Por alguns segundos ela se conservou de pé, depois os joelhos pareceram dobrar sob o seu peso, e o corpo oscilou para a frente. Ao cair a faca, ela foi ao chão, como um fardo. Naturalmente nada havia que pudéssemos fazer; ficamos sentados, petrificados, fitando-a... Quanto a Han, na verdade não posso descrever-lhe as reações, pois não estava olhando para ele. Só quando o pensamento me atingiu: –“Afinal de contas, ele a matou” –, é que olhei para ele. Tinha o rosto branco como o de um morto e os olhos fechados.
O encarregado desceu a cortina. Quando levantaram o corpo de Sra. Han, já ela estava morta. Então Han caiu de joelhos e por um longo espaço rezou em silêncio. - Ele parecia estar muito perturbado? - Sim, Excelência, estava muito perturbado. - Muito bem. Se eu tiver mais alguma coisa para lhe perguntar, mandarei chamá-lo. O juiz dispensou o auxiliar chinês e convocou a depor o próprio Han. O rosto inteligente do prestidigitador estava contraído e pálido; podia-se afirmar desde logo que se achava em estado de exaustão nervosa. - Já interroguei o diretor do teatro e seu auxiliar – disse o juiz quando Han tomou o seu lugar no banco das testemunhas. – Agora, proponho-me interrogá-lo. Han baixou a cabeça. - Você nunca amou sua mulher? – perguntou o juiz. - Desde o dia de nosso casamento até que a criança nasceu, eu amei-a de todo o coração. - E por que é que o nascimento da criança mudou as coisas? - Porque eu sabia que não era minha. - Sabe quem era o outro homem? - Tinha fortes desconfianças. Acho que era o primo de minha mulher. - Você o conhecia pessoalmente? - Era um amigo íntimo. Foi ele quem primeiro sugeriu que nós nos casássemos. Foi ele quem me instigou a casar com ela. - Presumo que as relações entre os dois se deram antes do casamento. - É verdade. A criança nasceu oito meses depois que nos casamos. - Segundo o seu auxiliar, foi um nascimento prematuro. - Foi o que eu disse a todo o mundo. - A criança morreu logo depois de nascer, não é verdade? Qual foi a causa da morte?
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- Foi sufocada pelo seio da mãe. - Sua mulher o fez de propósito? - Ela disse que foi acidente. O juiz mantinha-se calado e olhava fixo para o rosto de Han. Han levantou a cabeça, mas conservou os olhos abaixados enquanto esperava a pergunta seguinte. O juiz continuou: - Sua mulher confessou a você essa ligação? - Não confessou, nem eu nunca lhe perguntei nada. A morte da criança parecia uma desforra de tudo, e decidi ser o mais generoso possível, mas... - Mas afinal não lhe foi possível ser generoso? - Não foi. Não pude deixar de pensar que a morte da criança fora uma desforra insuficiente. Quando eu estava longe de minha mulher, conseguia raciocinar calmamente, mas, logo que a via, algo se passava no meu íntimo. Se eu via o seu corpo, a irritação tomava conta de mim. - Não lhe ocorreu o divórcio? - Muitas vezes pensei que gostaria de me divorciar, mas nunca disse nada a minha mulher. Ela costumava dizer que, se eu a deixasse, deixaria de existir. - Ela o amava? - Ela não me amava. - Então por que dizia tais coisas? - Acho que se referia aos meios materiais de existência. Sua casa tinha sido arruinada pelo irmão mais velho, e ela sabia que nenhum homem sério quereria casar com uma mulher que fora esposa de um prestidigitador ambulante. E, por outro lado, seus pés eram pequenos demais para lhe permitirem fazer qualquer trabalho comum. - Que tipo de relações físicas tinham vocês? - Acho que as mesmas que a maioria dos casais. - Sua mulher tinha algum afeto a você? - Não creio que ela me tivesse nenhum afeto. Na
realidade, acho que era muito penoso para ela viver comigo como minha mulher. Contudo, ela o suportava. Suportava com um grau de paciência quase inacreditável para um homem. Costumava observarme com um olhar frio e cruel, enquanto minha vida se reduzia a pedaços. Não demonstrava nem um pingo de simpatia quando me via lutando penosamente para fugir em busca de uma existência melhor, mais razoável. - Por que não teve uma atitude decisiva – não procurou ter uma explicação com ela, ou até deixá-la, se fosse necessário? - Porque a minha cabeça estava cheia de toda a espécie de ideais. - Que ideais? - Queria me conduzir com minha mulher de tal modo que do meu lado não houvesse erro... Mas, no fim, não deu certo. - Você nunca pensou em matá-la? Han não respondeu, e o juiz repetiu a pergunta. Após longa pausa, Han respondeu: - Antes de me haver ocorrido a idéia de matá-la, eu costumava pensar que seria uma boa coisa se ela morresse. - Bem, neste caso, se não fosse contra a lei, você não acha que poderia tê-la matado? - Eu não estava pensando em termos de lei, senhor. Não seria isso o que me impediria. O caso é que eu era fraco. Ao mesmo tempo, eu tinha o dominante desejo de entrar num modo de vida mais correto. - Contudo, você pensou em matá-la, não pensou – quero dizer, mais tarde? - Nunca me decidi a isto. Mas, sim, é verdade que pensei nisto uma vez. - Quanto tempo antes do que sucedeu? - Na noite anterior... Ou talvez na própria manhã. - Vocês tinham discutido?
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- Sim, senhor. - Sobre quê? - Sobre uma coisa tão insignificante que nem sei se vale a pena mencionar. - Procure contar-me. - Foi uma questão de comida. Eu fico meio irritado quando passo certo tempo sem comer. Bem, naquela tarde minha mulher tinha ficado zaranzando e o jantar não estava pronto na hora. Fiquei zangadíssimo. - Ficou mais violento que de costume? - Não, mas depois continuei irritado, o que não era comum. Acho que foi porque eu me havia preocupado demais, durante as últimas semanas, em melhorar o tipo de vida que levava, e compreendera que nada podia fazer. Fui para a cama, e não consegui dormir. Todo tipo de pensamentos perturbadores vinham-me à cabeça... Comecei a perceber que, fizesse o que fizesse, nunca seria capaz de conseguir as coisas que realmente queria – que, por mais que eu tentasse, não conseguiria nunca fugir aos aspectos odiosos da minha vida atual. Esse estado de coisas triste e desesperador parecia estar ligado ao meu casamento. Desejava com desespero encontrar uma fresta de luz que me guiasse na minha escuridão, porém mesmo esse desejo aos poucos se extinguia. A esperança de fugir ainda bruxuleava e crepitava em mim, e eu sabia que, se nunca se extinguisse, eu seria, para todos os efeitos, um homem morto. “E então o horrível pensamento começou a me rondar: – ‘Se ao menos ela morresse! Se ao menos ela morresse! Por que é que eu não a matava? A essa altura, já a conseqüência prática de tal crime nada significava para mim. Sem dúvida eu iria para a prisão, mas a vida na prisão não poderia ser pior – seria até melhor – do que semelhante existência. E, contudo, eu tinha o sentimento de que matar minha mulher não resolveria
nada. Seria uma evasão, como o suicídio. – Devo continuar os meus dias sofrendo – disse a mim mesmo –; não há como evitar.’ Aquilo se tornara a minha verdadeira vida: sofrer. “Enquanto minha mente percorria tais caminhos, eu quase esqueci que a causa dos meus sofrimentos estava ali ao meu lado. Inteiramente exausto, continuava incapaz de dormir. Caí num estado confuso de estupefação, e, enquanto a minha torturada mente se tornava entorpecida, a idéia de matar minha mulher aos poucos se apagou. Então fui tomado pelo sentimento de tristeza e de vazio que segue a um pesadelo. Pensei em todas as minhas belas resoluções para uma vida melhor, e compreendi que o meu coração era fraco demais para consegui-lo. Quando, enfim, a madrugada surgiu, vi que minha mulher também não tinha dormido... - Quando se levantaram, procederam normalmente um com o outro? - Não trocamos uma única palavra. - Mas por que não pensou em deixá-la quando as coisas chegaram a esse ponto? - Quer dizer, Excelência, que isso teria sido uma solução para o meu problema? Não, não, seria uma saída! Como eu lhe disse, estava determinado a agir com minha mulher de modo que não houvesse nenhuma culpa do meu lado. Han fitou seriamente o juiz, que assentiu com a cabeça como se o convidasse a prosseguir. - No dia seguinte eu estava fisicamente exausto, e tinha, é natural, os nervos em trapos. Era para mim uma agonia ficar parado, e, apenas me vesti, abandonei a casa e fiquei vagueando a esmo pelas partes desertas da cidade. A cada passo me voltava o pensamento de que eu devia fazer alguma coisa para dar solução à minha vida, mas a idéia de matar não me voltou mais. O certo
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é que havia um abismo entre os meus pensamentos de assassinato da noite anterior e qualquer decisão efetiva de cometer um crime. Em verdade, nem sequer pensei no espetáculo da noite! Se tivesse, decerto haveria decidido deixar de lado o número de atirar as facas. Havia dezenas de outros números que o poderiam ter substituído. “Bem, chegou a noite, e enfim chegou a nossa vez de aparecer no palco. Eu não tinha o menor pressentimento de que alguma coisa fora do normal fosse acontecer. Segundo a praxe, mostrei aos espectadores como as minhas facas estavam amoladas picando pedaços de papel e atirando algumas delas nas tábuas do chão. Chegou a vez de minha mulher aparecer, bastante maquilada e vestindo um primoroso traje chinês; depois de saudar os espectadores com o seu encantador sorriso, tomou seu lugar na frente da tábua. Eu peguei uma das facas e coloquei-me a certa distância dela. “Foi então que os nossos olhos se encontraram pela primeira vez desde a noite anterior. De pronto compreendi o risco de haver escolhido exatamente aquele número para o espetáculo daquela noite! Claro que eu teria de ser senhor dos meus nervos, porém a exaustão que me penetrava na medula dos ossos o impedia. Senti que já não podia confiar no meu próprio braço. Para me acalmar, fechei os olhos por um momento, e senti que todo o corpo me tremia. “Tinha chegado a hora! Apontei minha primeira faca acima de sua cabeça; ela fincou-se exatamente uma polegada acima do habitual. Minha esposa levantou os braços, e preparei-me para atirar as duas facas seguintes sob cada um deles. Quando a primeira deixou a ponta de meus dedos, senti como se alguma coisa a segurasse; já não tinha a consciência de ser capaz de determinar o destino exato das minhas facas. Agora, seria realmente pura sorte a faca atingir o
ponto pretendido; cada um dos meus movimentos se tomara premeditado e consciente. “Atirei uma faca à esquerda do pescoço de minha mulher, e já ia atirar outra à direita, quando percebi uma estranha expressão nos olhos dela. Parecia tomada de um acesso de medo! Teria ela o pressentimento de que a faca, que numa questão de segundos seria arremessada na sua direção, iria alojar-se na garganta? Senti-me tonto, como se fosse desmaiar. Expulsando deliberadamente a faca da minha mão, eu a bem dizer apontei-a para o espaço.” O juiz permanecia calado, fitando Han penetrantemente. - Num abrir e fechar de olhos me veio o pensamento: - “Eu a matei” – disse Han de chofre. - De propósito? - Sim. De repente notei que a tinha morto de propósito. - Ouvi dizer que depois disso você se ajoelhou ao lado do corpo de sua mulher e orou em silêncio. - Sim, senhor. Isto foi um plano habilidoso que me ocorreu. Percebi que todos me conheciam como um crente do cristianismo. Mas, enquanto eu fingia rezar, estava, na realidade, era calculando que atitude adotaria. - De modo que você estava absolutamente convencido de tê-la matado de propósito? - Estava. Mas logo percebi que seria capaz de fingir que fora um acidente. - E por que pensa que foi de propósito? - Perdi toda a capacidade de raciocinar. - Achou que conseguiria dar a impressão de que foi acidente? - Achei, apesar de que, quando pensei no caso, em seguida fiquei com a pele arrepiada. Fingi do modo mais convincente possível estar abalado pela dor, mas, se houvesse ali alguém verdadeiramente perspicaz, não tardaria a notar que eu estava apenas representando. Pois bem, naquela noite decidi que não havia nenhuma
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razão para eu não ser absolvido; disse a mim mesmo, com muita calma, que não havia nem sombra de uma prova material contra mim. Sem dúvida, todo o mundo sabia como eu me dava mal com minha mulher, mas, se persistisse em dizer que fora um acidente, ninguém poderia provar o contrário. Recordando tudo quanto se passara, eu via que a morte de minha mulher poderia ser explicada bem razoavelmente como acidental. E então estranha pergunta me veio à cabeça: por que eu mesmo acreditava que não fora acidente? Na noite anterior eu tinha pensado em matá-la, mas não seria exatamente isso que agora me fazia pensar no meu ato como coisa deliberada? Aos poucos cheguei ao ponto de eu mesmo não saber o que de fato acontecera! Senti-me então muito feliz – quase insuportavelmente feliz. Queria gritar a plenos pulmões. - Por que conseguira considerar o fato um acidente? - Não, isto eu não posso dizer. Porque já não tinha a menor idéia sobre se fora ou não intencional. Então decidi que o melhor meio de me inocentar seria confessar tudo. Em vez de enganar a mim mesmo e a todos dizendo que fora acidente, por que não ser completamente honesto e dizer que não sabia o que acontecera? Não posso afirmar que tenha sido um engano; por outro lado, não posso admitir que tenha sido intencional. Na realidade, não posso confessar-me “culpado” nem “inocente”. Han calou-se. O juiz, por sua vez, também permaneceu calado um longo momento antes de murmurar, pensativo: - Acho que me disse a verdade. Quero fazer-lhe mais uma pergunta: não sente a menor tristeza com a morte de sua mulher? - Absolutamente não! Mesmo quando, no passado, eu odiava minha mulher com mais rancor, nunca teria imaginado sentir tal felicidade ao falar de sua morte. - Muito bem – disse o juiz. – Pode sair.
Han abaixou silenciosamente a cabeça e deixou a sala. Com estranha emoção o juiz pegou da pena. No documento que estava à sua frente, na mesa, escreveu: “Inocente”.
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El jardín de nubes Alberto Ruy Sánchez
Más allá del conocido fervor de los jardineros de Mogador por las fuentes. Más allá de su capacidad de modularlas sutilmente como instrumentos musicales. Más allá de la belleza espectacular de sus albercas en los jardines, de sus riachuelos y acequias. Más allá del dramático y necesario culto al agua en el desierto, a todos nos impresiona el caso de un jardinero de Mogador que se decidió a cultivar agua y cosecharla, no de pozos en el suelo sino de las nubes mismas. Inspirado en un extraño jardín del desierto chileno de Atacama, se decidió a montar una torre que llegara hasta las nubes. La gente comenzó a pensar que estaba loco cuando encargó a los tejedores de redes del puerto que le hicieran una muy especial, hecha de triángulos invertidos. Cuando le preguntaron en qué barco la usaría dijo que no era para pescar peces sino para atrapar nubes. Nadie podía creerle. Era tonto o se burlaba de todos cínicamente. Aunque era literalmente verdad lo que decía. El tenía un terreno en una zona costera del Sahara donde era imposible sembrar cualquier cosa. No había agua y la del mar era inutilizable. Leyó en una revista dedicada a lo insólito la historia de un chileno que tenía un jardín en el pueblo, Chugungo, donde escaseaba el agua. Finalmente el agua se acabó y el jardinero no sabía que hacer, su jardín moriría, como todo lo sembrado en el pueblo. El chileno cuenta como estaban
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en una franja de desierto frente al mar y tenían un acantilado gigantesco a sus espaldas. Tan alto que su final se confundía con las nubes que venían del mar. Entonces construyó en la punta del acantilado una red de triángulos invertidos donde la humedad de las nubes se impregnaba, en forma de rocío, a cada hilo. Se condensaba cayendo hacia el vértice de cada triángulo que a su vez recibe el agua de los triángulos que lo preceden arriba. El resultado: más de sesenta mil litros diarios en un pueblo que estaba condenado a la muerte por sequía. Lo más impresionante para mí es que este jardinero haya ideado este mecanismo de cultivar o pescar agua porque su jardín iba a morir si él no encontraba una solución. La necesidad suya y la del pueblo podrían haber sido motivación suficiente pero no lo fueron. Él reconoce, en esa entrevista, que tal vez no hubiera podido afinar su ingenio a tal punto si no hubiera estado la vida de su jardín en peligro. Los jardineros, como cualquier coleccionista, son capaces de acciones inusitadas. Más de una vez ponen encima de su vida la de sus plantas. Hablan de él como un loco subido a una escalera altísima y ridícula tirando su red de pescador hacia la primera nube que pase por ahí. Si llega a pasar algún día. Por lo pronto el jardinero nebuloso de Mogador construye su torre lo más alto que puede, ya que él no tiene acantilado del cual servirse. Mientras más avanza hacia arriba más se da cuenta de que tampoco hay muchas nubes que crucen por su desierto. El continúa, con las redes a su espalda. Subiendo hacia el cielo. Busca el agua para su jardín como un amante desesperado persigue locamente la mirada de su amada. Así me siento tras de ti, construyendo una torre hacia el cielo, dudando y gozando cada instante que avanzo hacia tu humedad, la que siempre suavemente me trastorna.
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As cidades e as trocas Italo Calvino
Em Esmeraldina, cidade aquática, uma rede de canais e uma rede de ruas sobrepõe-se e entrecruza-se. Para ir de um lugar a outro, pode-se sempre escolher entre o percurso terrestre e o de barco: e, como em Esmeraldina a linha mais curta entre dois pontos não é uma reta mas um ziguezague que se ramifica em tortuosas variantes, os caminhos que se abrem para o transeunte não são dois mas muitos, e aumentam ainda mais para quem alterna trajetos de barco e trasbordos em terra firme. Deste modo, os habitantes de Esmeraldina são poupados do tédio de percorrer todos os dias os mesmos caminhos. E não é tudo: a rede de trajetos não é disposta numa única camada; segue um sobe-desce de escadas, bailéus, pontes arqueadas, ruas suspensas. Combinando segmentos dos diversos percursos elevados ou de superfície, os habitantes se dão o divertimento diário de um novo itinerário para ir aos mesmos lugares. Em Esmeraldina, mesmo as vidas mais rotineiras e tranqüilas transcorrem sem se repetir. A maiores constrições são expostas, como em todos os lugares, as vidas secretas e aventurosas. Os gatos de Esmeraldina, os ladrões, os amantes clandestinos, locomovem-se pelas ruas mais elevadas e descontínuas, saltando de um telhado para outro, descendo de uma sacada para uma varanda, contornando beirais com passo de equilibrista.
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Mais abaixo, os ratos correm nas escuras cloacas, um atrás do rabo do outro, juntamente com os conspiradores e os contrabandistas: espreitam através de fossos e esgotos, escapam por interstícios e vielas, arrastam de um esconderijo para outro cascas de queijo, mercadorias ilícitas e barris de pólvora, atravessam a compacta cidade perfurada pela rede de covas subterrâneas. Um mapa de Esmeraldina deveria conter, assinalados com tintas de diferentes cores, todos esses trajetos, sólidos ou líquidos, patentes ou escondidos. Mas é difícil fixar no papel os caminhos das andorinhas, que cortam o ar acima dos telhados, perfazem parábolas invisíveis com as asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a um pináculo, sobranceiam todos os pontos de suas trilhas aéreas.
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Corpo e espaço: a transcriação em sete narrativas literárias
introdução
Como ponto de partida tinha vontade de representar graficamente a cidade. A partir dos primeiros experimentos, o caminho tomado foi distanciando daquele previsto, até mesmo pelo caráter incerto e experimental da proposta inicial. Ao longo do percurso, a ideia de estudar um imaginário urbano, em uma visão generalizada das relações cidade-cidade e homemcidade, foi gradualmente perdendo espaço para uma leitura bastante pessoal destas mesmas relações. As experimentações gráficas, presentes desde o início do processo investigativo, buscaram no campo da semiótica, subsídios teóricos para a realização do trabalho que, em sua concepção final, caracteriza-se como um estudo acerca do corpo e do espaço através da seleção e tradução intersemiótica de sete contos literários. A tradução intersemiótica ou transmutação na definição de Roman Jakobson1 é a passagem de um sistema sígnico para outro. No caso, uma interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais. Este tipo de tradução exige um estudo da função poética do texto, procurando, em outro meio, exponenciar as suas qualidades e 1 JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 2003
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informações de natureza estética. Tal transmutação é operada por similaridade, isto é, no campo das analogias, estimulando a consciência icônica e o pensamento sobre formas. A tradução intersemiótica enfatiza a dimensão poética, justifica-se pela sua natureza icônica e fundamenta-se como metalinguagem. O sentido poético do texto é expresso pela sua materialidade na mudança de suporte.
processo
A escolha do tema do trabalho se deu inicialmente em razão da experiência que tive no ano de intercâmbio passado na Alemanha e das viagens que fiz neste período. A idéia era trabalhar a representação de cidades, a partir das impressões que nos fazem ver de certa maneira determinada ‘formação urbana’ e como essas vivências em determinado lugar ficam impressas em outros. O início do trabalho se deu com leituras acerca do crescimento das cidades no século XIX e das mudanças na relação espaço-tempo daí derivadas. Este período é marcado pelas transformações sociais e pelo desenvolvimento de novas tecnologias, como processos concomitantes, que fazem com que o homem se veja em um espaço nunca antes experimentado. A idéia de ciclos dá lugar a idéia de um espaço-tempo que se desenvolve de maneira linear e “o tempo deixou de ser qualquer coisa além de velocidade, instantaneidade e simultaneidade”2 , contrapondo-se à noção de tempo entendido como história.
2 Heidegger apud Harvey, em HARVEY, David: Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 2009, pg. 192
Devido a grande quantidade de inovações e de informações presentes neste novo mundo o que importa é o presente, efêmero e fugidio, e o viver neste ambiente saturado requer do homem moderno um novo repertório de comportamentos. Os avanços ocorridos no campo da fotografia a dispõe como novo dispositivo técnico que permite justamente captar e representar esse momento efêmero, o instante. A representação das cidades por meio de fotos passa a ser difundida. Ligada a fotografia está também a idéia de memória, que permite a reunião desordenada de temporalidades e espacialidades, sendo o tempo memorizado não como fluxo, mas como lembranças de lugares e espaços vividos, isto é, experiências contidas dentro destes.3 Como reflexão desta primeira etapa ressalta-se a necessidade da época em entender e inserir o homem nesse novo contexto. Ele passa a viver com o choque dos novos acontecimentos, o tempo ‘está acelerado’. O que importa não é mais o passado, mas sim o momento atual, o fugidio agora. As mudanças se dão de forma tão rápida, que o presente deve ser vivido sem a (inviável) preocupação de apreender todas as informações desse espaço ínfimo de tempo. O caráter inédito dos fatos que então ocorrem é exposto por Walter Benjamin, que defende ser a Experiência (Erfahrung), construída sobre gerações precedentes, substituída pela Vivência (Erlebnis), que é “circunscrita ao instante, descolada de uma continuidade temporal,
3 Harvey sobre Bachelard, em HARVEY, David: Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 2009, pg. 200
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experimentada como cacos justapostos que se anunciam como novos um após o outro”.4
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Para Charles Baudelaire a modernidade representa a ruptura com a tradição e é composta de um sentimento de novidade e de vertigem do que passa. O transitório e o fugidio expõem a dificuldade de recuperar algo eterno que não pode ser revivido do passado ou procurado no futuro, pois se encontra no instante presente.5 O homem vive agora em meio à multidão. Esse novo habitat e a quantidade de informações dele intrínsecos produzem os novos ‘tipos urbanos’ representados pelo flâneur, pelo dândi e pela atitude blasè. Georg Simmel descreve esse Großstadttyp, o ‘tipo da cidade grande’, como um homem que, a fim de sobreviver, tem que manter a emoção enraizada nas camadas mais interiores da alma e protegida pelas mais exteriores, onde a razão está contida. Assim ele consegue adaptar-se às novas noções de sociabilidade e comportamentos.6 As primeiras experiências gráficas foram então desenvolvidas baseadas nessa inserção do homem na multidão. Foram utilizados fragmentos de uma série de fotografias por mim tiradas durante o período de intercâmbio a fim de relacionar esta experiência à
4 COSTA, Luciano Bernardino da. Imagem Dialética e Imagem Crítica: Fotografia e Percepção nas Metrópoles Moderna e Contemporânea. Tese de Doutorado FAU-USP, 2010. Orientadora: Vera Pallamin, p. 69 5 Foucault sobre Baudelaire, FOUCAULT, Michel. O que são as Luzes? In: Ditos e escritos – arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 335-351. 6 SIMMEL, Georg: Die Großstädte und das Geistesleben, no livro anual da Gehe-Stiftung Dresden, Dresden, 1903
que eu tive, à minha inserção em um contexto/cidade novo. O resultado são cenários onde se pretendia perceber as personagens inseridas na multidão, sem termos uma idéia clara de lugares, ou uma determinada relação de espaço e tempo. O mapa também se mostrou como um possível meio para a representação das cidades e essa brincadeira com as relações de espaço e tempo. A tentativa seguinte se deu a partir da junção de mapas de diferentes cidades, a fim de criar uma topografia que reforçasse a noção de espaço já presente no mapa e a noção de tempo, do percurso, ao mesmo tempo em que uma relação inexistente destas duas dimensões fosse criada. Esses ensaios baseiam-se nos mapas criados pelos situacionistas, que desenvolvem a psicogeografia como meio de estudar o ambiente urbano. Tendo como metodologia de trabalho a deriva (as deambulações), criavam cartografias afetivas – subjetivas – da cidade. The Naked City, illustration de l’hypothèse des plaques tournantes produzido em 1957 por Guy Debord, traz pedaços do mapa de Paris justapostos e relacionados entre eles com setas vermelhas que ilustram o modo proposto pelos situacionistas de percepção e apreensão e do espaço de maneira pessoal e afetiva através da experiência direta com o mesmo. O forte caráter de memória tanto destes mapas criados quanto dos fragmentos das fotos montadas em novos cenários foi algo que chamou atenção durante as orientações e levou-me ao passo seguinte, numa
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tentativa de ligar essas imagens a uma narrativa pessoal. Edgar Allan Poe faz uma trajetória parecida no conto “O homem da multidão”.7
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A partir de uma primeira leitura geral de fisionomias urbanas, Poe chega numa figura misteriosa, um velho decrépito que desperta o interesse do narrador de maneira tão forte, que este começa a segui-lo. O velho comporta-se de fato de maneira bastante peculiar, perambulando de um lado para o outro durante a noite toda. Ao amanhecer, o protagonista cansa-se da perseguição, chegando à conclusão que aquele outro é explicitamente um gênio do crime profundo, do tipo que não aceita estar só. Sua perseguição não faz sentido, aquele é um homem da multidão, que “não se deixa ler”8 Como contraponto a este processo de perda da identidade do qual sofre o homem da multidão, o trabalho procurou então uma aproximação maior da imagem individual. Ao contrário da personagem que não se deixa ser lida, comecei a buscar memórias que pudessem ser atreladas aos fragmentos das fotografias, partindo da leitura de textos de Gaston Bachelard, que afirma em “A poética do espaço” que “memória e imaginação não se deixam dissociar. Uma e outra trabalham para seu aprofundamento mútuo.”9 Ao trabalhar com a memória envolvida nas imagens recortadas pode-se tomar partido de que estas não são
7 POE, Edgar Allan. O Homem da Multidão. in: Histórias extraordinárias. São Paulo: Cultrix, 1958 8 originalmente em alemão no conto: “Lässt sich nicht lesen” 9 BACHELARD, Gaston, A poética do espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 200
mais o fato em si. A memória se afasta, também com relação ao tempo, do ‘acontecimento real’, e podemos fazer uso do caráter criativo da mesma. A re-utilização de uma memória para criação de outra foi então experimentada. O material de base utilizado nesse momento foi o texto literário com o propósito de vivenciar, através de personagens fictícios, fantasias únicas que estabelecem uma relação também única entre homem e espaço vivido. Neste ponto foram feitas as primeiras experiências gráficas que exploravam as características poéticas do texto e traduziam o conto em objetos, ainda como produtos distintos, mas que levaram ao trabalho atual de tradução intersemiótica. Segundo Décio Pignatari, essa extrapolação de um código para outro é caracterizada pela saturação do mesmo, e constitui uma operação intersemiótica. A exploração do signo em profundidade afasta-o do automatismo verbal e permite uma imersão em suas camadas de significado, rompendo uma hierarquização das informações (tende à parataxe) e exaltando o valor icônico. Quanto ao uso de materiais e formas que se assemelham ao objeto a que se referem: “A des-verbalização da palavra não ocorre tão-somente pela metáfora comum. A paronomásia (paramorfismo) deve ocorrer. Mais ainda, o paramorfismo por ele mesmo pode desempenhar todo o papel, rejeitando por completo as metáforas (daí a música poética). Segue-se, ou assim me parece, que ao nível verbal seria a paronomásia (o paramorfismo), e não a metáfora, a responsável pela caracterização do eixo paradigmático.”10
10 PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 181
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Para Décio Pignatari, a metáfora pode ser entendida como uma semelhança de significados enquanto a paronomásia vai além dela alcançando uma semelhança de significantes. Por desprezar a expansão de um termo lingüístico para outros campos, Pignatari cunha a expressão paramorfismo, que designa os processos de similaridade presentes e decorrentes do mundo icônico. 122
O processo de tradução poético-icônica que o trabalho se propõe a fazer é fundamentado pelo acréscimo de sentido no eixo paradigmático presente no texto, na medida em que ocorre sua extrapolação em ícone, que o texto é transposto para uma estrutura visual-háptica. Não por acaso usa-se o texto literário uma vez que ele permite trabalhar com as palavras em seu sentido poético. As palavras são mais do que as palavras, novos significados são agregados ao signo inicial, seu sentido é enriquecido. O critério para a seleção dos textos a serem traduzidos é relativo às suas qualidades icônicas e poéticas e baseia-se numa escolha por empatia, tendo em vista o que eles expressam como vivência/leitura do corpo e do espaço. Houve uma preocupação de encontrar textos que, dentro desta mesma temática, pudessem ser relacionados por sua proximidade ou afastamento no modo em que tratam destes dois pontos. Assim, não há nos textos escolhidos uma preocupação de ordem geográfica e nem mesmo cronológica, e sim um diálogo intertextual, uma espécie de complementaridade imaginária, ou melhor, imaginante.
Para acentuar as características icônicas ou estéticas dos contos, eles foram transcritos integralmente nos objetos, ou ainda, em um novo corpo-espaço do texto literário. “Traduz-se aquilo que nos interessa dentro de um projeto criativo (tradução como arte), aquilo que em nós suscita empatia e simpatia como primeira qualidade de sentimento, presente à consciência de modo instantâneo e inexaminável, no sentido que uma coisa está a outra conforme os princípios da analogia e da ressonância. Pela empatia, possuímos a totalidade sem partes do signo por instantes imperceptíveis. Não se traduz qualquer coisa, mas aquilo que conosco sintoniza como eleição de sensibilidade, como ‘afinidade eletiva’.”11
11 PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.34
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produto
1. Poema Sujo (trecho)
Ferreira Gullar, maio/outubro de 1975 2. O afogado mais bonito do mundo Gabriel García Márquez, 1968 3. Ninguém acendia as luzes Felisberto Hernández, 1947 4. P rimeira dor Franz Kafka, 1922 5. A morte da mulher do atirador de facas Naoya Shiga, 1913 6. E l jardín de nubes Alberto Ruy Sánchez, 2001 7. A s cidades e as trocas 5 Italo Calvino, 1972 A temática dos textos escolhidos está ligada a uma proposta de leitura em torno da compreensão do corpo e do espaço. Ora é um corpo silenciado, ora um corpo que fala e sente. Os contos escolhidos, ora mostram esse corpo mais como volume físico, que ocupa o espaço, ora o corpo aparece mais como mente, como possuidor de dúvidas e angústia, mas sempre com forte caráter expressivo, indicando sugestões de uma operação poética tradutiva. Assim como o espaço é ora ocupado pelo corpo, ora representativo por si só. No trecho selecionado do Poema Sujo o corpo é coisa
composta de pele, osso, carne e sangue, que pode ser aberto ou rasgado. Este volume, que ocupa seus 1,70m deitado, possui dimensões físicas e características íntimas, individuais, funcionais e sentimentais. Ferreira Gullar escancara no poema a brutalidade da situação em que se encontrava, exilado em Buenos Aires durante a ditadura militar. A tradução é feita na tentativa de trazer esta sensação de violência e exploração à tona. O papel utilizado provoca, ao tato, sensação semelhante da própria pele e os pontos criam relevos que conversam com a palavra escrita. Este corpo frio do Poema Sujo é o corpo que misteriosamente chega à praia no início d’O afogado mais bonito do mundo: um defunto estranho que é trazido pelo mar, e que porém, com suas proporções descomunais, ganha no povoado um significado igualmente descomunal ao longo da narrativa, transformando, para sempre, a história local. O cadáver é confundido logo no início com baleia, comparado por causa do peso com um cavalo, ridicularizado pelo tamanho de suas rosadas mãos de boi marinho. Porém, após o estranhamento, cria-se uma identificação com o morto, que é adotado como pessoa querida e torna-se parente de todos do povoado. Uma situação extraordinária é desencadeada, provocada por sua própria aparência, e o corpo torna-se cada vez menos estorvo e mais Estevão. A assimilação deste corpo estranho parece até contagiar o próprio narrador, que no meio do conto faz uma breve passagem de onisciente para personagem: “Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estava envergonhado, que não tinha a culpa de ser tão grande, nem tão pesado,
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nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo numa âncora de galeão no pescoço e teria tropeçado como quem não quer nada nas escarpas, para não andar agora estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, temendo que suas mulheres se cansassem de sonhar com eles (...)”12 126
O objeto procura, por meio de sua dimensão, transmitir a sensação daquele corpo que, como no conto, é desproporcional em relação aos outros e, desengonçado, apresenta dificuldade no manejo. Sua superfície repele, as pontas metálicas que cobrem as duas faces do papel são um estorvo, mas, ao mesmo tempo, há uma beleza na composição. A escrita acompanhada das tachinhas criam uma paisagem cartográfica, uma visão do povoado insignificante em meio à grandeza do mundo. A história fantástica, quase mitológica, criada por Gabriel García Márquez, é contada através da criação, no suporte, de uma topografia fantasiosa. As curvas delineadas pelo texto, assim como a variação no tamanho da letra ao longo da escrita, enfatizam determinadas passagens e também procuram desenhar um espaço que passe a impressão de vastidão, das correntes marítimas que percorrem um longo caminho, do corpo afogado que depois de muito ficar à deriva, chega a um lugar qualquer.
12 MÁRQUEZ, Gabriel García. O afogado mais bonito do mundo. In: A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada. Rio de Janeiro: . Editora Record, 1972, p.53
Ninguém acendia as luzes se passa em sua maior parte na sala da casa de uma viúva, provavelmente no velório de seu marido. A cerimônia é marcada pela leitura, por parte do narrador personagem, de um conto sobre uma mulher que inúmeras vezes tentou o suicídio, sendo este dificultado devido a diversos contratempos. O narrador, de tempo em tempo, detem-se nas peculiaridades que caracterizam os cabelos daqueles ali presentes – dentre eles, as viúvas com seus grossos coques, um jovem com “uma franja escura no lugar onde aparece o cabelo”13 e outro com gotas d’água que pingam das pontas do cabelo – e há uma alternância desta descrição para uma demonstração, através dos diálogos, das correspondentes personalidades. Metonimicamente o cabelo assume a representação do corpo, dos personagens, mas é também o registro de um protagonista perturbado e obsessivo na sua forma peculiar de registro da situação banal, mas, paradoxalmente, tornada improvável, justamente por esta forma de registro. A tradução explora essa maneira de retratar a situação. O conto é apresentado em uma superfície que lembra a textura do cabelo, mais especificamente, o da jovem dos cabelos ondulados. O narrador é atraído pelos fios que se espalham pela parede na qual estão recostados, para mais tarde percorrer com os olhos seus lábios vermelhos e carnudos.
13 HERNÁNDEZ, Felisberto. O cavalo perdido e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 70
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Da-lhe prazer imaginá-la como uma grande galinha, cujo cabelo se assemelha a um tipo peculiar de penas, muito finas. Na transcriação, o texto aparece sobre uma trama de linhas embaraçadas; o papel é carimbado inúmeras vezes, criando uma textura que remete ao cabelo ondulado, que prende a atenção com a quantidade excessiva de informação, e exige cuidado para que se perceba a imagem do carimbo em forma de galinha que, sobreposta, compõe a trama. Há dois pares de contos que estabelecem um diálogo mais direto (e a ideia é reforçar essa relação através da escolha dos materiais do produto final): o trapezista, do Primeira Dor e o atirador de facas, em A morte da mulher do atirador de facas; e entre o Jardín de nubes e o conto de Italo Calvino, As cidades e as trocas 5. Com eles procura-se fazer a passagem do corpo retratado como matéria física, para o corpo como consciência, que, no fim, é derrotado, restando o espaço como cenografia, sua capacidade de mobilidade e mutabilidade. No primeiro caso, os personagens circenses compartilham a angústia do homem de certa maneira impotente, preso ao seu mundo repleto de dúvidas e incertezas. O artista de Kafka possui tal obsessão em atingir a perfeição, que passa a viver montado no trapézio. Porém, diz-se no texto, ele não vive assim por capricho, mas por necessidade. O trapezista abre mão do convívio com outras pessoas, nutrindo-se de sua arte. Tocar o chão é impensável, praticamente insuportável, sendo o momento mais bonito da vida do empresário justamente quando, após longa viagem, o trapezista volta ao topo do picadeiro. Faz parte de sua condição viver assim, o fato não é questionável, sua existência faz sentido ao ser totalmente dedicada
ao aperfeiçoamento de uma mesma técnica. Até o momento crítico em que percebe não ser isso suficiente, quando exige mais um trapézio. A crise existencial do trapezista abala também seu empresário, que percebe, naquele corpo ainda jovem, as primeiras marcas da angústia e da preocupação. O texto foi impresso em placas retangulares de cobre, com 7x21 cm, que são mantidas suspensas dentro de uma caixa, uma carapaça, que as sustentam e, assim como o trapezista, não tocam o solo. As paredes espessas desta estrutura protegem as finas folhas de cobre, oxidadas pelo tempo. O conjunto de placas, perfurado e unido por uma peça que as transpassa, deve ser retirado do interior da luva para a leitura. Ao pendular as placas para ler o conto, reproduz-se, no objeto, o movimento característico do trapézio. A escolha de materiais para a estrutura busca uma referência ao circo. Seu interior é revestido com um padrão colorido, azul e vermelho, sendo o exterior recoberto por um papel bastante rígido, com textura que lembra uma couraça, que tem em si algo de animalesco, selvagem. Em A morte da mulher do atirador de facas, acompanha-se o julgamento de Han. Artista de circo, o atirador de facas, mata, durante o espetáculo, sua mulher. A narrativa joga com a agonia da dúvida, com a incerteza e a oscilação de Han entre dois pólos, culpado e inocente. Sua profissão envolve perigo, mas até que ponto pode-se considerar o fato acidente? Desiludido amorosamente, traído, aproveita-se da situação para se livrar de um peso?
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O próprio atirador de facas encontra-se mergulhado em dúvidas. Questiona, ele mesmo, se o fez de propósito ou acidentalmente. A tradução busca reproduzir no manuseio essa tensão. O conto fica guardado dentro de uma caixa, como um punhal em sua bainha. A transcrição foi feita em uma grande faixa de papel, modulada em pequenas porções de texto. 130
Para a leitura, é necessário segurar a tampa e puxar, aos poucos, o texto do interior da estrutura. O gesto é significativo, retira-se a faca da bainha. Módulos em branco são introduzidos entre o texto, mais para o final do conto, e atrasam a leitura, dificultam, para o leitor, a descoberta do veredicto. Além disso, o atrito da faixa de papel, ao ser retirada de dentro da estrutura, produz uma sonoridade que acentua a ideia de tensão. Os materiais escolhidos para a confecção da bainha ligam-na ao conto anterior. A ideia é justamente ressaltar a relação entre os dois textos. Ambos os contos aproximam-se na narrativa, retratam a angústia do corpo, através da experiência dos artistas de circo, e, vistos no conjunto dos textos escolhidos, são uma pausa antes do corpo perder lugar para o espaço em que o homem é pequeno, frágil demais, ou para o espaço labiríntico e transitório, representado por Esmeraldina. O outro par de textos relaciona-se mais pela questão espacial que coloca. O jardineiro é entendido como corpo-que-não-alcança; insuficiente, impotente e pequeno demais na escala que busca transpor, em meio ao deserto em que vive. Inspirado em uma lenda chilena que ouvira, o personagem não mede esforços a fim de acumular água suficiente para cultivar uma preciosidade: seu jardim. Vive, porém, no Saara, e mesmo construindo uma torre cada vez mais alta,
não alcança nunca as nuvens. O objeto que traduz este texto (capítulo retirado do livro) mostra esta relação em que o espaço vence o corpo; do esforço que não importa quanto reproduzido, não é suficiente. O módulo triangular – uma referência à ‘rede de triângulos invertidos’ que o personagem manda fabricar – é repetido ao longo do objeto/texto, cada vez menor, mais distante. 131
No conto de Calvino o corpo aparece como personagem secundário, utilizado para descrever o espaço de maneira mais detalhada. Apesar de estarem ali descritas, ele praticamente elimina a importância das relações humanas, a fim de enfatizar a descrição espacial. O que é apreendido do texto são as inúmeras camadas, as passagens e os caminhos infinitos que podem ser seguidos em Esmeraldina. Este conto fecha a “narrativa transcriativa” apresentada, ou seja, a intenção de que a sequência de traduções intersemióticas realizadas sejam o desenho de uma narrativa realizada pela operação da leitura poética. A tradução é feita com folhas quadradas justapostas, unidas por recortes que criam, do bidimensional ao tridimensional. O texto perpassa e costura estas diferentes camadas, fazendo uso, assim como os habitantes desta cidade, das diferentes possibilidades que a trama permite e quebrando a monotonia. O objeto, para sua leitura, precisa ser manipulado de forma que componha um giro. O movimento de alguém inserido em um espaço, olhando a sua volta para compreendê-lo, é reproduzido pelo leitor que, através do texto, visita Esmeraldina. Assim é tecida a narrativa, através do corpo e do espaço que transitam e transmutam ao longo dos contos.
O corpo de carne e osso, esta estrutura com flexível armação que abriga, em seu interior, as vísceras todas, sai do Poema Sujo e chega ao pequeno povoado no Caribe, onde o afogado de proporções descomunais – o mais alto, o mais belo, o mais viril – desencadeia nos habitantes uma relação de afeto, de identificação com o morto, aquele ser que, de tão fantástico, “não lhes cabia na imaginação”. 132
O corpo é representado, em Ninguém acendia as luzes, pelo cabelo. Com seus olhos de raposa, o narrador percorre a sala e observa toda a massa de cabelo da sobrinha, o coque das viúvas e o jovem da testa pelada. Essa maneira peculiar e obsessiva de descrever os personagens, que marca a narrativa, transfere o foco do corpo como volume, para o corpo pensante, e assim, para as angústias de um artista que, por perfeccionismo, isolou-se do mundo, dedica-se integralmente à arte do trapézio, “uma das mais difíceis entre todas as acessíveis aos homens”. A agonia vivenciada pelo trapezista, sua crise existencial, prolonga-se para a exaustiva dúvida na qual o atirador de facas está imerso. O quanto ele desejava livrar-se da própria mulher? Foi por acidente que a matou? Ou não? O corpo, então já cansado, pode ser visto ao longe, sobe até o céu com uma rede nas costas, em busca das nuvens que não aparecem, como um amante desesperado, não mede esforços para salvar seu jardim. O espaço, visto em perspectiva no Jardín de Nubes, é sondado em suas mais diversas camadas em As cidades e as trocas. Esmeraldina, com seus fossos, esgotos, vielas, escadas, ruas suspensas, pontes, bailéus, possui rotina mutante, cria-se a cada dia em si mesma. As relações humanas parecem perder-se nesse espaço labiríntico, restando assim, o espaço transitório.
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Agradeço àqueles que me ajudaram a realizar este trabalho. Em especial, ao meu orientador, Luís Antônio Jorge, pela orientação, pelas idéias e conversas, ao Ricardo e ao Sidão, pela importante ajuda com o silk, às amigas Cata, Sandra, Luisa e Denise, pelos palpites, e ao Luiz a à Helena não só pela ajuda, mas também pela paciência.
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