Comédia de enganos mario filipe cavalcanti

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MARIO FILIPE CAVALCANTI

COMÉDIA DE ENGANOS

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Livro Semifinalista no PrĂŞmio SESC de Literatura 2014

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A meus pais Maria e Artur. A Catarina. Aos amigos Saulo, Rodrigo e Michell.

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“O desejo é a essência mesma do homem” BARUCH DE SPINOZA, Ética.

“Mundo contraditório, alegria e tristeza, tudo misturado”. JORGE AMADO, Tereza Batista cansada de guerra.

“Ôh! esse vácuo abominando entre aquilo que existe e a sua imagem, na certa é o único empecilho que nos impede de aferrar com nitidez a realidade!” MÁRIO DE ANDRADE, Prefácio à terceira versão d‘Os Contos de Belazarte.

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“Satisfeito mesmo quem, em todo o mundo, já foi?” O DANTE COUTO, pensando no sofrimento do mundo, pensando em Lara.

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SUMÁRIO

1. Prosa de entrada (prefácio): A Comédia e Os Enganos 2. Olho de Gato 3. O namorado de Vivi 4. Menino do olho junto e trela no meio 5. Lara 6. Olga 7. Comédia do vira 8. O marido, a mulher e as panelas 9. A carta 10. Aprendizado 11. Ossos do ofício 12. Do Letreiro (poesia) 13. Posfácio – por Guto Stresser

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PROSA DE ENTRADA (prefácio): A COMÉDIA E OS ENGANOS

ESSES CONTOS ao que me parece não intentam bancar a comédia divina que não faz ninguém rir... Alguma graça deve de ter, pra alguém, alguém no mundo, o que escrito aqui está. Mas é que o segundo nome conjugado com o primeiro é capaz de suplantá-lo e muito! – tornar a tal da comédia meio capenga! ENGANOS... Será? É de enganos que se faz uma vida mais interessante, me disseram certa vez em ocasião que agora não lembro. Mas será mesmo? O estagirita orgulhoso vivia dizendo que sem uma peripécia o teatro ficava morto. Se é! E os enganos nada mais me parecem ser que as peripécias da vida.

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Esses calungas de séquito de maracatu que pari se enganaram ora ou outra e tiraram suas lições variadas... Ah, essa mania esopiana de tirar lição... vixe! Mas no fim das quantas é isso, a gente vai vivendo e enfeitando essa nossa vegetação de cada dia, e vai tirando lições que achamos inquestionáveis e imprescindíveis pra se evitar as lástimas da vida. Mas as lástimas vêm, como o riso. E parece que em toda lástima há certo gracejo, meio maroto e meio irônico, da vida. Parece mesmo que sem elas o próprio ato de rir seria um saco! Um mundo de babacas. Mas o pior é que quem em todo o mundo gosta das lástimas? Ô mundo complicado, tanto vasto quanto contraditório! A tal da pedra constante no meio do caminho, tão chata quanto necessária – sem ela, não existiria a poesia... Pois então, uma verdadeira comédia de enganos onde o viver de cada um no fito de perseguir

o

interesse

próprio

é

tomado

e

suplantado aqui e ali por essas coisas inesperadas 10


que mudam os rumos da vida, às vezes totalmente, outras apenas confundindo o intento originário. E mudanças são essas coisas novas nem sempre pedidas... Parece-me que toda compreensão do homem é embriagada! Não acho que prefacio um livro novel com o intento de quem prefacia uma obra prima sua que estourará por aí – hoje em dia as coisas que estouram são literaturas de quinta, auto-ajuda ao outro, coisas do tipo. Falo como leitor que sou – voraz,

confesso

não

como

um

autocrítico

sorumbático que se acha grande. O fato mesmo é que um dia as coisas poderão ser diferentes. Serão? Bem, não podemos dizer... Talvez a coisa que mais me tenha encantado nesses calungas, que às vezes duvido se criei ou se realmente são almas viventes em algum lugar, é o fato de que suas vidas, com todas as insatisfações e desenlaces estranhos, quase nunca harmônicos, quase nunca alinhados, numa rebelde revolta ao antigo ―felizes para sempre‖ é, nada mais e menos 11


que o espelho mágico da vida verdadeira. Essa vida que se vive por aí, como diria o Christopher Lee, meio que fazendo a história e não se dando conta disso. Vida pouca, meio café com leite, como alguns diriam, mas vida. Completa e transbordante. Uma coisa enorme de importante – embora a depender do

ponto

de

vista

sejamos

tão

pequenos

e

franzinos. Aliás, aqueles versos de Goethe muito bem couberam a esse livro, nos quais dizia que ―quem, em três milênios/ é incapaz de se dar conta/ vive na ignorância/ a mercê dos dias, dos tempos‖, e é justamente esse viver na ignorância de tudo que faz dessa nossa vida de enganos, uma comédia!

Brasília – DF, agosto de 2013.

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OLHO DE GATO

AQUELA SEMANA de janeiro tinha entrado pros anais da família como um dia bem mais especial que os dias santos ou feriados, e olhe que não há coisa que brasileiro mais goste que dia santo ou feriado – talvez por isso seja considerado um povo religioso, não que a fé seja seu ofício por natureza, mas, porque é devoto dos dias santos, por causa, justamente, dos feriados! Pois nem dia santo, ou feriado muito menos, seriam tão especiais como aquele dia, quando ainda pela madrugada a pequena Amália rasgando a madre de sua pobre mãe em chamas, nasceu. Dizem que depois de um berro tão alto quanto as duas torres insossas do Cais de Santa Rita, dado por Paula, a mãe da pequena Amália, seguiu-se um riso calmo e tranquilo como um 14


braço do Capibaribe.Eram sinais do nascimento de uma menina com personalidade forte. Fábio, pai de segunda temporada, tinha ficado tão alegre que publicou o nascimento da filha na edição daquele dia no Diário de Pernambuco –– ―Um dinheiro gasto à toa, oxente! Mas fazer o quê, morreu o boi!‖, insistia D. Mariana, a avó, fazendo seu eterno papel de sogra ingrata. Amália era, como disse, a segunda filha do casal Fábio e Paula, talvez não restasse realmente necessidade para tantos alardes, afinal, os casais costumam ser muito bobos com os primeiros filhos, mimam, mimam, e mais ainda mimam, mas depois relegam o ato de parir à normalidade da vida. Aí vêm os gritos, os palavrões e as ameaças nunca cumpridas, do tipo: ―vou pôr um ovo quente na sua boca!‖. Mas não era assim na família Santana. Para eles o nascimento de cada filha foi tão louvável quanto o nascimento do cristo. Paula, que ainda jovem se casara com o Fábio esperando Marina na barriga, não sabia 15


muito da vida ao atar-se, mas agora, após o nascimento da segunda, esse planejado, era uma felicidade só.Ele, o Fábio, era o homem que ela tinha pedido a Deus, e certeza, certeza mesmo dessas coisas a gente só tem na travessia, passar do tempo. Idas e vindas, coisa de transeunte. Mas D. Mariana, que já naquela época tinha sido mortífera com a união repentina do casal por conta do acidente da gravidez, tornava-se cada vez mais ácida. O tempo parecia lhe tirar o riso ou qualquer coisa que lhe reportasse alegria –– era a iminência da morte, essa grande máscara com boca caída. D. Mariana via a cuja e fingia que não via. Até o formato da lua minguante lhe agoniava de noite, por parecer com o de uma foice... E a velha envelhecia com chatices e chatezas. No mais, o casal, por ausência de melhores oportunidades tinha ido morar justamente na casa de D. Mariana, na Várzea, para alegria de Paula que não teria de se acostumar com um lugar diferente,

longe

dos

quitutes

e

carinhos 16


(implicâncias também) da mãe –– tão grande era esse seu apego pernambucano às barras da saia materna. Contudo, para Fábio aquilo não se mostrava muito apetitoso, embora fosse, e ele sempre reconhecia isso, o único jeito. –– Oxe, Fábio! Não sei como tu aguenta essa velha! Dizia um amigo, num bar. –– Em campo de guerra a gente não escolhe o que come, Manuel; quem não tem cão, caça com gato. Sibilava. Todavia o tempo, esse grande relógio sem ponteiros, que apenas gira, fez com que os ânimos ácidos

da

velha

senhora

se

acalmassem,

principalmente quando do nascimento de Marina, a primogênita. ―Essa menina é a minha cara, Nossa Senhora da Conceição!‖, berrou contente a avó. E dali em diante foi bordado em toalha, camisas

de

crochê,

presentes

e

presentes

à

pequena Marina. Nos olhos de Fábio um brilho redentor. 17


Isso durou até aquela semana de janeiro que abriu esta estória.A vida, pra não se achar tão chata e tediosa, quis pregar mais essa peça. D. Mariana, estranhamente, tinha sido a única da família inteira que tão logo pondo os olhos na pequena Amália, enjoou-se de vez. Pra nunca mais. Enquanto a alegria perfazia os cômodos da casa, D. Mariana em sua cadeira de balanço,

fumando

enquanto rodopiava

seu

cachimbo

centenário,

a bengala no solado de

madeira antiga, fazia caras e bocas de quem não gostava de nada daquilo. ―Não se preocupe, amor, mainha é assim mesmo, você não sabe?! Banca a durona, depois se derrete toda. Foi assim com a Marina, não será diferente com a Amalinha, que acaba de nascer!‖. Aquelas previsões de fim de noite vindas de Paula, acalmavam os ânimos de Fábio, contudo, não os de D. Mariana...

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E o tempo também foi passando, passando, enquanto a anciã murchava e diminuía e a pequena Amália crescia e crescia. E a velha se entediava da ciência que tinha dessa marcha troncha do circo da vida. Enquanto a menina desabrochava os botões, ela murchava como a papoula seca e sem cor. Até que um dia, inesperadamente, a própria menina tomou ciência daquele comportamento de sua avó, quando, solicitada a ajudar a velha senhora que se levantava com dificuldade da cadeira de balanço por conta da chuva que já varria o terraço, foi recebida com um ―Vá s‘embora daqui sua insuportável! Olho de gato! Em tu, confiar, confio não!‖. Não é preciso dizer o quanto os ânimos ficaram tensos na casa dos Santana naquela noite, quando Fábio chegando do trabalho deparou-se com a filha mais nova aos prantos no colo da mãe, amparada por sua irmã, enquanto a velha D.

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Mariana da sala de estar murmurava algo como ―Num gosto dessa aí, tem o olho de gato!‖. Conversas

se

seguiram,

família

inteira

reunida, mas não tinha jeito, D. Mariana tinha verdadeira aversão à menina. Cogitou-se mesmo em mudarem de casa, mas Paula já não podia deixar a mãe idosa sozinha. –– Por que não colocamos ela num asilo, Paula? Tem um aqui na Várzea, próximo à Praça, as condições são boas e... –– Fábio, pare com isso já! Quero ver se seus pais estivessem vivos e dando trabalho como um dia você deu, se iria mandar pô-los num asilo! Dali

nada

mais

saía

a

não

ser

um

―precisamos fazer alguma coisa...‖ e nisso eles, angustiados, concordavam. –– Mas vó, por que cargas d‘água a senhora não gosta da Amalinha? Dizia a Marina numa daquelas manhãs de inverno antes de ir à escola.

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–– Simples, querida: não confie em quem tem olho de gato. Olhe lá, sua irmã, diferentemente de você, puxou esse olho ridículo, amarelado e com uma pupila estranha, só pode ter vindo da família de seu pai! Uma aberração! E de aberrações, querida, a gente mantém distância pro mói de não se machucar! Durante tudo isso, Amália assustou-se no início, traumatizou-se depois, e no fim, como tudo na vida, conformou-se àquela falta de deferência com um ―vovó tá é caduca!‖. No percurso do tempo, que, como uma roda gigante estúpida continuava a rodar mesmo sem ter ninguém por cima, a adolescência das duas irmãs chegara. D. Mariana, que àquela altura já contava mais de oitenta, já tinha feito testamento e tudo.

Era

muita

coisa

não,

o

suficiente

à

sobrevivência daquela geração e da que viesse, desde que o trabalho fosse contínuo e paralelo à mirrada herdade.

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É óbvio que naquele testamento a Amália não tinha entrado tranquilamente, ―só dou alguma coisa àquela olho de gato porque nasceu das entranhas da minha filha e eu vi o parto, por que se não tivesse visto, nem acreditar que do meu sangue

fosse

eu

acreditaria!‖.

O

advogado,

acanhado, uma vez que a menina estava presente àquela declaração tão infamante, se resignou a fazer a anciã assinar os papéis, para, enfim, sair daquela situação constrangedora com a desculpa de levá-los para registro. O coração de Amália batia como uma alfaia louca nos dias de maracatu... Em sua mente uma nuvem espessa surgia. * * Na

semana

*

seguinte

enquanto

todos

jantavam contentes num sábado à noite, D. Mariana veio com uma história de estar com um ossinho de galinha atravessado na goela.

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Vira e mexe, olhou-se daqui e dali e ninguém constatou na garganta da velha mais que as seculares cordas do corpo. –– Estou entalada, minha Nossa Senhora da Conceição! Insistia a anciã. Façam alguma coisa bando de cabeça de bagre! Vocês ficam aí na caixa prego enquanto eu me laio! Acudam aqui! Sibilava truculenta. Ninguém, contudo, dava mais bola àquilo. ―Isso é invencionice sua, mainha. Pare já!‖, dizia Paula. A própria Marina teria dito ―oxe, isso é coisa de velho!‖. Amália, contudo, preocupada, chamou o médico da família que, examinando a velha, pois fora o ossinho, pequeno e fino que àquela altura tentava fazer parte de sua garganta. A velha quando soube quem chamara o médico, deu um mixoxo gigantesco e pôs-se a pitar o

seu

cachimbo

secular,

olhando

os

prados

sumidos da Várzea...

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No mês seguinte a velha já não andava mais e precisava de cuidados para tudo, desde para alimentar-se

até

para

as

mais

básicas

necessidades... A gente envelhece e volta ao mesmo estado da infância – só que não sabendo mesmo das coisas... Fábio, coitado, trabalhava o dia inteiro, Paula, também, Marina cogitava até em ir morar numa república, só tinha cabeça pra seu curso de Educação Física na Universidade Federal, Amália tinha acabado de passar no vestibular de Enfermagem, estando já no segundo período e não teria tempo para cuidar da avó, dadas suas aulas integrais. Cogitou-se de contratar uma enfermeira, mas o dinheiro não daria, foi aí que Amália resolveu trancar o curso, mesmo com todo o ônus disso decorrente, e cuidar o mais que pôde da avó. Em sua mente, contudo, a nuvem negra persistia... Foram dias escuros, aquele quarto mais parecia um porão, tão reclusa estava sua avó, e tão fraca, sem forças ou ânimo para tomar sol ou ar. 24


Pior ainda era o silêncio sepulcral com o qual D. Mariana agradecia aos cuidados da neta. ―Essa olho de gato pensa que me engana!‖, interiorizava. Dalia uns dias, contudo, o silêncio foi quebrado.A velha D. Mariana, num dos dias quentes de janeiro, pediu baixinho com sua voz rouca de muitos anos ultrapassados para que Amália abrisse a janela do quarto. –– Mas vó... –– Não titubeie! Sibilou fanhosa a velha de cima da cama entre tosses agigantadas. Aquelas

tinham

sido

as

palavras

mais

amenas que a velha já tinha reportado à pobre neta, que de espantada com uma resposta (já que nunca havia respostas), resolveu não titubear. A

janela

foi

aberta

e

quase

que

imediatamente os raios de sol entraram porta adentro espantando sombras e cheiros de passados sombrios. Um beija-flor parado no ar batia suas

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asas infindamente, o jardim estava florido. Era uma daquelas semanas de janeiro... A jovem sentou-se ao lado do leito da velha, que numa atitude inesperada, ainda ordenou: –– Leia pra mim, minha filha, aquela página marcada do livro em cima da mesinha! –– Mas vó, a senhora tá tão fraca e... –– Leia! Amália,

ainda

relutando,

sentindo

um

calafrio estranho, da morte que se esgueirava a um canto do quarto do lado da janela, tomou do livro em mãos, abriu na página amarelada, se riu marotamente,

o

autor

lhe

era

conhecido...

Respirou, leu:

―O menino doente (Manuel Bandeira)

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O menino dorme. Para que o menino Durma sossegado Sentada ao seu lado A mãezinha canta: — ‗Dodói, vai-te embora! ‗Deixa o meu filhinho, ‗Dorme . . . dorme . . . meu . . .‘ Morta de fadiga, Ela adormeceu. Então, no ombro dela, Um vulto de santa, Na mesma cantiga, Na mesma voz dela, Se debruça e canta: — ‗Dorme, meu amor. ‗Dorme, meu benzinho . . .‘

E o menino dorme‖.

Sobre a cama do velho quarto, D. Mariana dormiu. Amália não sentia nem mais aquele calafrio,

apenas

uma

paz

intensa,

estranha,

gostosa de sentir... D. Mariana, enfim, perdoara a 27


sua pobre mãe, que tinha aquele tão vivo, tão belo, brilhante e intenso olho de gato, por ter morrido justamente naquele momento em que contente, a pobre e pequena Mariana adormecia no colo materno, embalada por uma cantiga que se interrompeu e nunca mais se cantou. O vulto de Amália atou-lhe o fio daquela velha canção num leve farfalhar como a brisa do venusto poema. Aquele vulto, como o da santa... Na mente de Amália as densas nuvens dissolveram-se. Seu coração batia como uma alfaia louca nos dias de maracatu...

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O NAMORADO DE VIVI

–– ORA, MAS VIVI era praticamente da família! E não me venha com essa estória de que ―todo mundo diz isso!‖. Vivi era, sim, praticamente da família! Lembro-me ainda do dia em que fomos para Lagoa de Itaenga, onde fica a fazenda de vovô e naquele dia ensolarado, debaixo da cachoeira friíssima, conheci a Vivi. Eu tinha escorregado, sabe?, era uma criança ainda, uma menina de meus lá oito anos, dos quais os oito tinham transcorrido em Recife. A única coisa que eu sabia da vida aventureira de criança era o que me diziam os parques da Jaqueira e o Sítio da Trindade.

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Não, não mesmo, nunca frequentei o Parque Treze de Maio... Mainha e painho não deixavam, diziam que lá só tinham crianças pobrezinhas e gente se esfregando, uma pouca vergonha! Enfim, tudo o que eu sabia de uma vida aventureira se encontrava naqueles parques que acabo de lhe dizer; demais disso, vivia nos Shopping Centers, dentro dos cinemas e Game Stations... Essa era toda minha vida de criança no Recife. Quando encontrei a Vivi na cachoeira lá em Lagoa

de

Itaenga

eu

estava

numa

situação

inusitada, ao menos para mim naquela época, sabe? Calma, vou dizer. Aliás, já disse.Eu tinha escorregado e me relei todinha nas pedras da cachoeira, se não fosse a Vivi... Ah, meu Deus, Vivi era praticamente da família! Tudo bem, vou contar, ela ali, estava na cachoeira, me olhando de rabo de olho, era que eu, menina da cidade grande, queria não junto de mim os matutos da roça, mas veja, não me leve tão a mal, isso era o que me tinham incutido mainha e 30


painho, eles, grandes médicos, me diziam que as perebas dos ricos e a dos pobres eram diferentes, veja só! Eu só podia crer como verdade... Além do mais, minha própria avó dizia que quando rico morre, morre diferente de pobre. Confesso que morremos sim, diferentes.Nós no luxo, eles na penúria sofrendo sofrimento horrível... Caixão e vela preta. Não que eu queira dizer que vamos para lugares

diferentes...,

sim,

eu

conheço

a

tal

parábola do rico e do pobre... Mas não era pra menos, sendo Jesus filho de carpinteiro, achas mesmo que ele ia colocar o pobre no inferno e o rico no seio de Abraão? Ah, meu filho se toque! Você não acha que estamos fugindo muito do foco? Tenho amigas que vivem me dizendo que gosto tanto de digressões que barro aquele meu velho ex-professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado. O fato é que Vivi veio nova ainda aqui pra casa, todo mundo tinha gostado do que ela tinha 31


feito –– pulou na cachoeira e foi nadando no fito de me socorrer lá em baixo... Pie só, eu estava sendo puxada pelas águas da cachoeira, e mais em baixo tinha outra... Seria mortal. Vivi me salvou. Em troca disso, painho considerou dar-lhe um prêmio: uma oportunidade de viver na capital do Estado. Veja bem, você não acha inusitado, algo bom por demais da conta para uma pessoa tão pobre e desajustada na vida? Os pais de Vivi cortavam

cana,

trabalho

braçal

insuportável

naquela usina duns tais Campellos... Sabes qual seria sua maior herdade? Cortar cana como os pais e irmãos... Lembrando disso eu até sinto que painho deve de estar agora no céu ao lado da Virgem Maria ouvindo essa história que estou lhe contando e se arrepiando todo... Deus que lhe ilumine a alma! A caridade que fizemos ninguém faz hoje em dia. Vivemos tempos de mentes secas, duma seca pior que a do sertão.

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Daí Vivi cresceu comigo, estudou numa escola daqui mesmo da capital. Como? Particular? Não, não, mainha a colocou numa escola pública boa. Isso bastava não? Considerando que ela não ia sequer estudar em Lagoa de Itaenga! O que ela virou? Ora, claro que Vivi era nossa empregada! Ela foi por nós empregada para poder ter o dinheiro dela, para poder usar como bem lhe apetecesse, para poder ser alguém, entende? Ah, mas se eu ganhava mesada era porque era filha, se Vivi ganhava o dinheiro dela, era porque era trabalhadeira, e isso a ninguém repugna! E daí, com a morte de painho, que Deus o tenha em firmes tronos, mainha já estava bastante velha e eu já casada e morando na mesma casa nossa no bairro do Poço da Panela. Vivi, grande, tornou-se

minha

ajudante

sem

igual.

Uma

ajudante número um, sem falar que ganhou lá uns aumentos salariais...

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Claro que foi por conta do plano real. Mas foram aumentos! Não diga que não foram, que importa o aumento das coisas? Vivi morava comigo, comia do meu pão, bebia do meu vinho, quer dizer, vinho mesmo ela num bebia não, não tinha costume, mas bebia da minha água, nunca precisou comprar uma bolacha sequer, como disse, era praticamente da família! Meus filhos nasceram, e tanto eu quanto o Adalberto ficamos felizes da vida, nossa vida seria ainda melhor, e Vivi, ora, Vivi era a única pessoa em quem nós confiávamos para cuidar deles, para gerir seu carinho e cuidado... Vivi foi nossa babá. Mas veja só como o tempo passou! Estou eu agora com meus quarenta anos e minha filha mais velha com vinte! Vivi? Acho que deve ter minha idade,

sempre

foi

maiorzinha,

sabe?,

nunca

perguntei nem nada. Carteira de trabalho? Ora, já não falei que era quase da família?! Você assinaria a carteira da sua mãe? E não obstante ela sempre trabalhou pra você! 34


Mas o problema veio quando Vivi arrumou aquele namorado... Quem já se viu, uma mulher de seus quarenta anos arrumando namorado?E foi numa folga que eu dei a ela para ela brincar o São João – ah, meu Deus como eu me arrependo disso! Arrumou um traste de um namorado pelos lugares aí em que foi e, o que é pior:engravidou! Sim, querido, isso mesmo, EN-GRA-VI-DOU! O que eu poderia fazer, meu Deus?! Criar o filho de Vivi? Mas é claro que não! Já criei a própria Vivi, junto com minha mãe, ela era praticamente da família, tinha quarto, tinha cama, mesa e banho, tinha tudo, família e carinho, e jogou tudo por cima da janela como se fosse nada. Espaço? Mas é claro que minha casa tem espaço, mas a questão não é espaço, meu caro, é de espaço que vem o dinheiro que se gasta com comida,

médico,

consultas,

escola,

educação,

moral e bons costumes e outras coisas mais que criança precisa? E veja, Vivi não era um bebê, tinha lá seus oito ou nove anos, como eu, quando 35


veio. Além do mais, na minha casa mando eu e meu marido, mas quando Adalberto cisma com alguma coisa, só posso fazer meu papel de boa diplomata. Adalberto disse categórico: ―Não quero saber de menino chorando por aqui. Meus filhos já criei; essa daí que crie os dela!‖. Ora, não recrimine o Adalberto por dizer ―essa daí‖ de Vivi, é que os homens são mais estourados, não sabe? E ele, como quase um pai que foi pra Vivi não podia ficar calado... Não, não, Vivi não foi minha madrinha de casamento, pra seu governo tenho grandes amigas, como poderia chamar Vivi? Falamos pra ela sobre esse problema e ela mesma resolveu voltar pra Lagoa de Itaenga, pra criar o filho lá. Disse ela, DIS-SE-E-LA, que o tal namorado ia ajudar.Quero ver como.Só pode ser cortando cana! Não temo ter demitido Vivi, ou melhor, que conste que ela mesma é que se despediu. Só dói

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aqui no peito, sabe? Vivi era praticamente da família. Minha filha? Que tem minha filha? Sim, sim, minha filha está grávida do namorado... Mas veja, ele é estudante de Direito da Universidade Federal, os pais são uma advogada e o outro procurador, têm escritório próprio, etc., boas relações na alta sociedade recifense, o rapaz faz despachos com desembargadores federais e estaduais..., não é a mesma coisa! Minha filha está bem assistida, e fez o que era certo, não foi com um desses quaisquer que ficam dançando forró por aí... Entenda, a mulher precisa mesmo de quem lhe dê de tudo. Homem sem dinheiro num pode ter mulher. Só tem mulher quem pode. Além do mais, já disse mil vezes, parece que você ainda não entendeu: Vivi era pra-ti-ca-men-te, da família... Nunca disse que ela e-ra da família.

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MENINO DO OLHO JUNTO E TRELA NO MEIO

ERA UMA TARDE de janeiro, daquelas em que o azul do céu de tão intenso encandeava a visão do recifense que se atrevesse a erguer os olhos. O sol impingia o suor na pele como um castigo, a cidade inteira parecia um prelúdio aos círculos do inferno. ―Um calor dos diabos!‖, como se diz. Momento daquele, em dias de outrora, num passado bem perto, coisa de uns poucos anos – tempo que engatinha –, ela estaria sem sombra de dúvidas numa das belas praias, Pina ou BoaViagem,

Casa

Caiada

ou

Bairro

Novo,

movimentando o comércio do peixe frito e da cerveja gelada, com o corpo sob os protetores e os óculos escuros na cara. Os tempos mudaram... 38


Os tempos, aliás, mudam muito rápido. Isso ela tinha atestado muito mal, coisas da vida. Aquele menino mesmo, que ali em sua frente fazia das suas trelas, como poderia ter imaginado? ―Ah, minha filha, essas coisas hoje ninguém mais imagina!‖, tinha dito a tia Martinha. Aliás, a tal da tia Martinha tinha sido dessas que contrariam todas as leis da natureza e, o que soa muito estranho, ainda continuou devota. Ela nasceu de sete meses, cresceu bem pouco, nunca se reproduziu e com seus lá setenta anos de solteirice, já devia uns anos ao caixão. A velha Martinha vivia de se lembrar como eram os namoros de antanho. –– Você jura, minha filha, você jura mesmo que naquela época a gente embuchava assim como você, agora? Ah há! Não mesmo. A gente sabia era de nada, minha filha, a gente sabia era de nada! Você acredita que a gente jurava de pé junto que embuchava tão só sentasse no quente da cadeira do noivo? Oxe, era um azougue! Lembro-me da 39


prima Marocas que foi pedindo perdão aos berros pra mãe por ter perdido a honra... Tio Bernardino deu-lhe umas tapas tão cheias no meio da cara que a pobre ficou de duas cores! E no fim das contas o quê? Ela disse que tinha sentado bem no quente da cadeira do Marsílio, noivo dela! Oxe, uma arretação dos diabos... E o pior, a tia e o tio se riram, mas explicar que é bom pra menina que o quente da cadeira num pega, explicaram foi nada. Isso porque, a gente namorava era sentado cada qual num canto dum mesmo sofá, painho na nossa frente pitando cachimbo e o

irmão pequeno

brincando no meio. A coisa mais excitante que poderia haver, era a gente namorar da janela, sabe?, e mesmo assim, só era essas coisas porque a gente fazia escondido, mas ficava ele lá recitando uns versos e a gente de cá só a olhar e fazer caras e bocas. Hoje, é uma coisa de ficar se esfregando... Isso antes era coisa de puta! Coisa do Chanteclair, o cabaré do Recife Antigo que, graças à Virgem, fechou suas portas!

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Claro que aqueles comentários não ajudavam em nada. A pobre da Márcia não queria o menino, é bem verdade, contudo veio.Que fazer? Além do mais, se as mulheres daquele tempo não tinham seus meninos não era por falta de sem-vergonhice, mas pelo simples fato de que um namoro assim tão casto não daria, realmente, em nada. A própria tia Martinha que tanto namorou e escolheu, escolheu, escolheu os homens, acabando sem nenhum, teria seu filhinho de quebra se fosse mais moderna, pensava. E, além disso, não era mais tempo de ficar ouvindo aquelas baboseiras de tia Martinha, ela, a Márcia, estava ali com seu filho pequeno e se isso era coisa de puta, e daí? Ela dizia pra si mesma: ―Parabéns, senhora dona puta!‖. Pois é, os tempos mudaram... Nesses tempos de calor infernal em Recife não podia mais ir a Boa Viagem, a Candeias, a Piedade ou às praias de Bairro Novo ou Casa Caiada,

como

costumava.

Itamaracá?Nem

se 41


fale!Tinha que guardar o dinheiro contado do leite do filho. O menino tinha alergia à lactose, pra terminar de danar as coisas! –– Ah, minha filha, se prepare que desgraça, desgraça mesmo, só acontece com filho de pobre. Completava a tia Martinha enquanto se ajoelhava ante ao oratório para fazer suas preces diárias – o telefone grudado no ouvido. O ruim de tudo eram os preços.Sabe quanto que custa uma lata de leite pra menino com esse problema alérgico? O olho da cara! Coisa que a Márcia sabia muito bem, já que não mais tinha seus próprios olhos, os olhos que tinha eram postiços, já não enxergavam mais belezas, tinha uma visão de leoa, via tudo cinzento, sua vida era um poema de Álvares de Azevedo. –– E o pior, minha filha, o pior mesmo é esse pai, né? Por que, vou te dizer, viu!, com um pai desses menino num devia nem de nascer vivo! Preciso dizer que esse bordão era da tia Martinha?

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Mas o fato, o fato mesmo é que Márcia ia vivendo aquela sua vida de caranguejo atolado no mangue, num mangue lamacento e viscoso como os do Capibaribe ou Beberibe, cheio de seres zumbis; mas tinha como único alívio olhar para o céu acima, o céu azul... Era quase a liberdade. Uma liberdade pequena que parecia afligir mais do que a ausência total de liberdade... Isso porque à sua mente não bastava apenas alguma liberdade. Ela precisava se sentir livre. Precisava se sentir livre pra achar nisso alguma prisão que lhe desse qualquer

vontade

de

mudança;

e

as

coisas

seguiriam o curso das insatisfações, o curso das razões de viver. Insatisfação de insatisfações, tudo insatisfaz e é justamente isso que dá à vida algum sentido. Voltava seus olhos justamente daquele céu tão azul, naquela tarde de janeiro, quando viu o menino brincar naquela alegria só de menino invencionista que brinca sozinho como quem brinca com a Terra inteira de meninos. Menino que mete as mãos na terra e tira um palmo cheio de 43


areia, destino da boca. Uma trabalheira dos diabos! Tira-se um olho de vista, e o menino se explode! Santo Amaro não era o lugar mais adequado pro menino brincar, pensava ela. Justo ela que fora ensinada em outros ares, e que por ter sido expulsa de casa por causa da gravidez teve de morar onde pôde pagar..., tinha sempre o alerta ligado e o cuidado dobrado; era certo que os meninos não nasciam ruins ou sabendo dos crimes, mas as vielas do crime eram muito largas para crianças tão pobres e rejeitadas dum convívio mínimo, ela tinha estas certezas ao passo em que vivia, ali mesmo, imergida em tanta sofreguidão. E o menino crescia brincando sozinho... A vida toda era ele, a terra, a boca, o catarro escorrendo, a terra e mais e mais coisas pra brincar. Da família só tinha a companhia de alguns telefonemas da tia Martinha, que falava essas coisas que já contamos bastante animadoras. Ela mesma se sentia rejuvenescida ao ouvir aquelas pérolas da velha, mas tolerava; afinal de contas a 44


tia Martinha tinha sido a única, a única mesmo que ainda lhe chamava de ―filha‖. O menino era nem belo nem feio e tinha como marca do pai aquele olho junto que fazia todo mundo dizer, principalmente as professoras na escola: ―Ih, com um olho junto desse só pode ser da turma dos sonsos!‖. Ela ria. Achava graça.Era o tipo de coisa que ela pensava antes... Antes de conhecer o pai. O pai do menino. Mesmo

com

toda

aquela

realidade

que

passou a sufocar sua vida, e ainda o fato de ter que começar a trabalhar precocemente pra sustentar sua própria existência, coisas que teriam feito qualquer um de juízo mais frouxo saltar do décimo quinto andar de um CFCH1, ela não se arrependia de nada.E ria, como quem ri de um louco, como quem ri da comédia por trás dos enganos da vida. Aquele cara do olho junto tinha lhe ensinado, das poucas coisas pra que prestara, que amar é o 1

Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Famoso pelos suicídios corriqueiros de pessoas que se lançavam de seu 15º andar. (Nota do Autor).

45


tipo de coisa que a gente sente sem saber falar sobre.Não tinha nada a ver com aquelas baboseiras da tia Martinha. E ensinou também que homem bom não dá mais. Tempos secos. Amar, verbo transitivo direto, sem quê nem pra quê, nem com o quê, muito menos por quê. Ela sentiu, foi e fez, e daí? Daí ela tinha liberdade, aquela, pequenina, de que ela mesma sentia raiva... Uma raiva doida que dava, sem quê nem porque, e ela metia a mão no menino. ―Tira essa mão da areia, menino! Olha pra isso, pondo a mão na boca... Vai ficar cheio de germe e eu não vou levar ao pronto socorro coisa nenhuma!‖. Lepte, lepte! E o menino berrava uma enchente de lágrimas de crocodilo. ―É sonso feito o pai!‖. Num relance, o menino nasceu. O pai nem soube. Precisava? Diria que não era culpado de um flerte, de uma noitada. Ela que tinha aquela paixão como

um

possível,

amor, não

se

uma

modalidade

importava

muito.

qualquer E

fora

justamente aquela ausência de preocupações que 46


fizera o pai dela, um intransigente milico, mandá-la embora. Filha de coronel não pode ser uma mulher apaixonada. Ela era uma mulher apaixonada. Sentia no peito bater muito forte a martelada da paixão do existir. ―Tenho filha mais não. Filha? Tenho não!São coisas muito das diferentes filha e puta!‖, sibilou o velho com o cajado de Moisés na mão, abrindo o mar vermelho na cabeça da moça. Vida parece não deixa ninguém tentar nela mais que o feijão com o arroz ou o pão com manteiga;

quem

mandou

ela

tentar

uma

modalidade nova de amar? Quem mesmo foi que mandou ela se aventurar e entregar um pedaço de pele que todo mundo achava ser mais precioso que ela mesma, inteirinha? Quem mandou ter essa ideia de jerico? Vida parece não deixa ninguém ir além das ideias de jerico de todo mundo, não. Ah, mas ela valia muito mais, seu velho coronel filho da jia! ―Menino, tira essa mão da boca antes que eu meta a mão em você!‖. 47


Lepte! Lepte! E lá vinha o rio sem água, choro de menino amarelo. E ali, naquela tarde de janeiro, embebida em todos esses pensamentos e mais aqueles que não se deitam ao papel, olhava aquele menino dela, saído de suas entranhas debaixo de grito e força descomunal e pensava nos sentidos tantos e mais variados de felicidade. ―Ser feliz é coisa de rico!‖. Ao menos alguém com o olho junto ela poderia chamar de ―seu‖, e engraçado que até aquele momento não tinha chamado o menino assim... ―Meu menino...‖ Seria mais uma afirmação de que tinha algo de valor inestimável, sim, ao menos uma coisa na vida. O menino gostasse? E interessava! Menino foi feito pra atender mãe e pai, e prestar diligência, em grande. Enquanto o pequeno brincava pisou sem querer na bola de futebol de plástico, tombou e enfiou a testa na parede. O choro, inevitável, estrondou a tarde. Ela correu, foi socorrer aquela dor. Pôs o menino no colo, massageou com gelo. Os 48


olhos do pequeno diminuíram as cheias lacrimais, no colo materno a certeza do alento. E olhou para ela, com aquela ternura de olhar típica de quem retribui carinho, e assim, com o olho junto mesmo, e o sinal da trela no meio (uma roncha que de tão escura fazia jus ao nome), disse ―te amo, mainha!‖. Ela, surpresa com aquela afirmação tão veraz, tão inédita até então, respondeu com aquele ―meu menino!‖, que tinha pensado... E riu. Sim, algo no mundo era dela. Algo no mundo existia nos braços dela e pela primeira vez em sua vida viu o menino como um presente. ―Só tem esse olho junto igual o do pai... Bem dizem que em cavalo dado não se olham os dentes!‖. De repente, ―ueber!‖, ―ueber!‖, ―ueber!‖, do bolso do menino, em cima de seu colo, parte aos pulos uma rã verde da cor do mato, tão grande foi o susto que só se ouviu um ―lepte‖, mas tão forte que o menino borrou-se, chorou e entendeu. Foi 49


até a rã de cuja amizade sentia-se ganhador e varou-lhe as costas até a barriga, deixando-a morta no chão de barro. –– Pra você aprender a não assustar a mamãe,Coronel filho duma jia!

50


LARA

LARA

ERA

FATAL

no

mal.

Percebia-se

facilmente. No seminário teológico era sempre motivo certo de comentários, risinhos, virada de olhos, apostas e esconjurações. As irmãs da Sagrada Soledade da Virgem Maria viviam de repreender o santo Cura a respeito daquela jovem despertadora de tão malignos desígnios nos pobres seminaristas... –– Jesus, Maria e José, padre! O senhor bem sabe que os desígnios dessa jovem também não podem ser outros... Uma devassidão sem tamanhos nem freios! Além do mais, os votos de nossos irmãos ficam prejudicados... Jesus, Maria e José! Não intentamos falar à Santa Sé, notificar essa conduta, sabemos que o senhor poderá resolver...

51


––

Irmãs,

que

prova

têm

contra

a

bibliotecária? O fato d‘ela ser jovem atiça seus mais secretos venenos? Ora, irmãs, vigiem e orem, pois o diabo bate às suas portas... Peçam ajuda à virgem Maria, rezem com fé, a ajuda virá. No mais, não posso cometer injustiças, não posso expulsar do seio de Abraão essa jovem valorosa que com tão útil trabalho tem catalogado todos os livros desse Seminário a troco de tão mirrado salário. As irmãs, nunca desistentes, vigiavam Lara em todos os seus passos, em todos os seus gestos, em busca da tão sonhada prova. ―Jesus, Maria e José, irmãs, quem já viu isso? E parece que tem parte com o cujo que provar mesmo a gente consegue é nunca?! Deus é maior! Valei-nos Nossa Senhora da Soledade!‖ Era inútil. Lara era, em campo aberto única flor de rígidas raízes, bela e inflexível no fazer de seu labor.

Já o Dante, coitado, sofria dissolvendo seu bem naquele rio maligno... E, aliás, maligno 52


mesmo era olhar para Lara e não vislumbrar naquele demônio sensual nada mais que um anjo alado cheio de leveza e graciosidade. É que Lara era assim, inexplicável. De uma coisa o jovem seminarista estava certo –– num de seus constantes pensamentos em como tomar Lara nos braços ––:tivesse um dia de catar aquela mulher em qualquer lugar além, não seria no céu onde o seu xará florentino encontrou Beatrix clamando em santo coro ao orgulhoso Agnus Dei. Devia de encontrá-la mesmo era no círculo dos luxuriosos bem no cone do inferno –– isso cria. É que embora o rosto e o agir da bela Lara induzissem seu expectador a pensar ver um anjo celeste, seu corpo torneado, seus lábios vermelhos e pedintes, seu passo firme e decidido, todo o seu exterior era coisa de anjo decaído. O cupido ao que parece, com a malícia de sua volúpia, mascarara de negras vendas a face de Lara, e essas eram as mesmas máscaras que 53


sempre usou para esconder sua devassidão... Todo o ar angelical do cupido é um engano, uma comédia de enganos. Eis, pois, Lara. No entanto, verdade seja dita, toda aquela periculosidade típica dos reinos abissais não se encontrava apenas na bela jovem, mas também no arder do próprio amor, que, malgrado seja lindo, expressão máxima da divindade –– afinal de contas, não dizem tanto que Deus teria se dito amor? –– queima mais que as labaredas do inferno! E era assim que Dante se sentia, queimando, amando, nos campos Elíseos do céu, porém caindo e caindo na direção do inferno... Contudo, ele mesmo não podia incitar na jovem mais do que o platonismo de seu sadismo retraído –– Lara não era dele. Era mesmo é de ninguém. Soube de uma centena de colegas do seminário que ainda que tentassem em Lara nada mais que um madrigal imitado dos livros de literatura, não tinham conseguido nem sequer um soslaio dos olhos da criatura venusta. Era o tipo 54


de coisa que deixava os ânimos excitados, e não só eles... Enquanto tudo isso ia e vinha na mente cada vez mais (per)vertida em delírios de Dante, a jovem morena

de

sobrancelhas

olhos cheias,

jabuticabais, mãos

de

tez

ceda,

macia, pés

de

algodão, seios eriçados e agudos, corpo de viola, ancas generosas, despertadora dos maiores anseios com o mero olhar, passava seus dias em desdém completo às suas tímidas investidas. Sim, das investidas ainda não falamos... Havia mais investimentos em Lara do que no mercado imobiliário. E o melhor, não havia CVM certa! Lara era investimento de risco –– todos queriam a mesma coisa e o recurso sendo escasso (afinal, era apenas uma), e a demanda grande demais, sobrevinham as habituais crises. Mas isso não importava, homem parece já nasceu com esse instinto de cão que quanto mais difícil tarefa a conquista se mostra, mais imperiosa 55


fica. E quando a seleção é por cima ainda melhor – – quem não gostaria de ao menos uma vez na vida sentir-se acima de tudo e todos, de Deus e dos homens? E assim, Lara era disputada por todos, enquanto, na verdade dos fatos, desdenhava a banalização de sua imagem como a freira idosa desdenha a do corpo. As mulheres foram feitas para a beleza. Pensava ela. Mas não para o mero desfrute. Exigia-se algo mais. Alguma coisa que os homens

––

feitos

para

a

cópula

––

não

vislumbravam sequer de longe. Qual era a exigência daquele ser? Dante ficava doente, pobre diabo, tinha sonhos fornicários terminados num gozar na soledade. Coisa pungente. Queria mesmo era voltar à puerilidade para poder pedir amamentação daqueles seios duros, certo de que Lara, com ar maternal, o deitaria em seu colo quente para darlhe os mamilos enquanto lhe fazia algum cafuné.

56


―Felizes aqueles que são como crianças‖ –– dizia, dando ao dito sacro novas interpretações... Lara? Ora, que podemos mais dizer? Era simplesmente ela mesma, sem nenhum apego de outrem. Mulher do mal, involuntariamente. Feita para completar a obra de Eva. Era, sozinha, muito mais do que toda a prova supostamente imposta pelo anjo de luz ao pobre do Jó, nos sonhos virulentos de Moisés –– talvez nem ele mesmo, exemplo judaico de paciência e perseverança, por isso onírico, tivesse humor suficiente para esperar Lara querer alguma coisa, até porque biblicamente conhecer, deitar e copular já são verbos irmãos... E era nesse ponto que surgiam as dúvidas maiores sobre Lara na cabeça de Dante. Afinal, se no tempo dos antigos hebreus deitava-se com tanta facilidade e o verbo conhecer não significasse nada além de penetrar, por que cargas d‘água nossa sociedade cristobajuladora tem de seguir à risca o padrão de Maria? Seria por acaso mais moderno?

57


Não sendo, seria o quê, mais antigo? Certamente que não. Isso tudo não passava sempre de uma justificativa pecaminosos

contínua que

de

Dante

praticava

em

aos sua

atos solidão

religiosa, enquanto pensava em Lara. Certa vez, disse Marcena, seu amigo, que não havendo celibato algum como regra mor, não havia pecado desejar Lara. Lara era ser desejável, fruta desfrutável, senão comida. Mas havia pecados flagrantes para o ato de gostar de Lara... A luxúria, a fornicação, o desejo sexual intenso, o desrespeito, a

falta

de

santidade,

a

falta

de

unção,

a

fornicação... É, dela já falamos duas vezes..., santa fornicação!Pensando nela Dante esquecia até da correta

pronúncia

do

latim,

gaguejando

lastimosamente ao recitar em plena missa: ―Usque et dixi huc venies et non procedes amplius et hic confringes tumentes fluctus...‖2.

2

Trecho de Jó 38:11. A ironia reside no fato de se tratar do dito suposto do Deus a Jó (para frustrar seus anseios de conhecimento): “Virás até aqui

58


Enquanto

isso

a

pobre

musa

somente

contava seus livros nas prateleiras teológicas e filosóficas do seminário, sem sentir em seu coração sequer a agitação que no mundo exterior ao seu causava. Lara era efeito sem causa. * *

*

Findo o curso e diplomados os teólogos, inclusive Dante Couto, nosso ilustre sofredor dos decotes de Lara, restava a tórrida pergunta: por que diabos o reverendo padre Moreira fizera, por questão sua anunciada, acontecerem as aulas derradeiras em plena sala reservada da biblioteca? Acaso não sabia ele que dali, através dos vidros acusticamente estucados, é que dava para ver Lara, os seios de Lara, a bunda de Lara, o corpo de Lara, os soluços intensos de Lara, o suor de Lara, os gritos de Lara, o palpitar do coração de Lara, o gozo de Lara? Tudo isso nas mentes em crise dos jovens seminaristas? e não irás mais longe”. Dante gagueja por tomar pra si o dito do Deus, como se para ele Lara fosse objeto inalcançável. (Nota do Autor).

59


O reverendo padre Moreira sabia o efeito de Lara. Ela era como a rainha de Sabá a um Salomão da vida. O que queria mesmo era ver se frente àquele

turbilhão

os

seminaristas

escreveriam

Cânticos de cânticos ou Eclesiastes. No fim das contas eram os ossos do ofício que tornavam cada seminarista presente um reverendo

jovem.

Cheio

de

santidade.

Claro,

faltosos de Lara. E, pior, seria essa a justificativa de serem todos pregadores radicais contra a fornicação e as concupiscências da carne... Dante mesmo certa vez dissera já na sua maturidade pastoral em um sermão na igreja cuja paróquia ele tinha ganas de presidir: –– O pecado jaz à porta... Cumpre a nós cerrarmos a porta ainda mais. Cumpre não abrir. Cumpre não deitar com Lara... Instante em que todos os fiéis, mesmo sem entender, tomaram aquilo por um mistério revelado por Deus e disseram:

60


–– Amém! E

Dante,

surpreso

por

tamanha

concordância, descrente nas meras coincidências, teria ainda pensado: ―satisfeito mesmo quem, em todo o mundo, já foi?‖. Do alto da abóbada do templo, o rosto do pequeno cupido ri.

61


OLGA

OLGA ERA de porcelana branca. Intocável. Boneca russa. Se abrisse saía outra, mais outra, mais outra. Repetitiva sem enfado. Olga era algo mais que ela mesma. Era pianista dos melhores pianíssimos que já ouvi. Olga acabou comigo. Na escola de artes visão melhor não se tinha. Olga ao piano tocando Schumann. Mirou pra mim (canto da sala) e me viu. Veja só! Ergui olhos baixos depois de muito recalcitrar mirados no chão, fitei-a. Olga era a próxima a dispor do piano, sozinha, sala fechada, cabina pequena, cheiro de lírios. Perguntou se queria tocar com ela. Ah, Olga era fatal! E

sentamos

ao

piano

a

quatro

mãos,

mexendo dedos ágeis de paixão iniciada. Era 62


também eu fatal. Olga ruíra ao meu piano a quatro mãos –– subterfúgio de sentir textura da pele, sem riscar a porcelana, querência que eu tinha. Senti sentença do juiz. Era pra ser com Olga! E foi. Fiquei depois por saber palavreados maiores, Olga era moça de mais abastada família, garota dada ao Carlinhos, filho do Juiz de Direito... Ora! Dei de ombros. O Juiz de Direito que, achando ruim, vá pro inferno! Olga era algo que me dizia ―vem!‖, e eu ia... Festival

teve

na

Escola.Mestre

pianista

adivinhou-nos sem querência –– seriam, ao piano, todos os alunos apresentados a quatro mãos. Olga pediu, solicitância dum amor roxo, tocar comigo a quatro mãos e vinte dedos, música audível-bela de Robert Schumann antes da loucura. De querência que eu tinha morria... A sabença feminina é mortal. Olga olhou com olho trivial, escolha a dedo do

mestre

pianista.

O

velho

gordo,

cabelos

beethovenianos, cheio de lordesas, atendeu à diva. Como não atender pedido de boneca russa? 63


―Olga Weruska Sacarova Carvalhal e José João Cavalcanti, piano a quatro mãos do Träumerei de Schumann‖.

Anúncio porta de sala, quarta à tarde. Vibraram-se as cordas de nosso desejo. Todos os fins

de

semana

até

a

apresentação

recital

treinávamos piano a quatro mãos como se a peça a tocar de Schumann fosse uma sinfonia difícil! Importância tem isso? Não quando se ama. Éramos nós dois Robert e Clara Schumann reencarnados, se é que esse troço existe, juntos a despeito de tudo. O Carlinhos aparecera, querência do pai... Olga era filha do médico da família do juiz. Bons intentos, coisas negociais, mas a boneca russa à venda não queria estar pela estima da família... Afinal de contas, o Carlinhos era um bobo da corte! Éramos guris adolescentes no intento da púbere 64


flor, confessar, confesso logo, mas sabia eu dar a Olga pormenores dum amor pequeno a crescer no já e no já. Olga amava. Amor era coisa dela, mais vantajosa que as bonecas antigas de porcelana na penteadeira de jacarandá. Mais do que o piano onde tocávamos a quatro mãos e quatro braços, vinte dedos e duas bocas... Olga trazia bolinhos, avó dela trouxera da Rússia receita caseira. ―A Rússia fica muito longe?‖ Dava um cheiro para cada quilômetro da distância incerta. E ficava-se naquela incerteza de chamego reiterado tarde toda. O piano ficava sem as nossas quatro mãos que empregadas em melhor engenho, lapidavam a vontade crescente Olga e eu. Eu e Olga. Mas ora! Eu já não era mais eu. Eu era Olga. Olga era eu. O Carlinhos continuava a insistir com Olga... Estaria ele insistindo no meu eu? Desatei-lhe uns tapas na cara branca assustada da covardia dele natural. Enfezou-se. Disse ter paga. Paga pagou. 65


Esperou-me ao fim das aulas, co‘ele mais três, dez vezes mais que ele. Prometeu-me surra, pediu largar a Olga. Ora, pois! Olga se larga, larga? Nada! Olga era eu. Eu era Olga. Largar, na morte somente no apenas. Tava eu amando Olga, não sabia direito. Era a graça, a fala mansa, o piano a quatro mãos, os bolinhos, a avó russa, as bonecas da infância enfileiradas na penteadeira de jacarandá... Era tudo dela q‘eu gostava. Era já amor amante. Podia ver e crer. Pai de Olga teve em consultório, consulta inusitada. Chegou em casa estremecido. ―Mas, ora...‖ pensava, ―é Olga moça tão nova...‖. E daí? Dizia o juiz –– filho dele querendo é vencer o embate co‘a ajuda do papai, do painho, do paizinho... Arre! Excrementos de menino! Pai de Olga era homem duro, feitio estranho. Senhor grande médico! Hipócrates hipócrita. Disse certa vez querer ver a apresentação, sabença de como seria. Olga disse que era implicância. Ciúmes 66


de filha que tinha –– perturbara muito as filhas dos outros na juventude –– mal de pai de mulher... Pensava com meus botões não querer ter filha mulher, pra como Olga não ficar sendo cortejada por marmanjo homem. Prosuê que tinha sozinho vendo Olga dedilhar o piano pianíssimo, Chopin, Debussy, Àlbeniz... * *

*

Conversa do pai de Olga com ela sobre mim, tascando, me ausentando: –– Olga, minha filha... Sabe não do gosto do Carlos Freire, filho do juiz meu amigo de anos? –– Do que fala, papai? De gosto? Como assim? –– Falo de querência, filhinha, vontade de marmanjo tem ele... Enfim, falo de amor!Disse após lembrar-se do juiz e do peso de sua caneta.

67


–– Painho mande ele falar comigo, fará sua parte, se não me convencer, e não vou, mando ele pro inferno e quero saber se o juiz me põe a ferros! Carlinhos fazia o jus ao diminutivo do nome –– sabia não amar. Já havia eu mudado a alma de casa. Olga tava era ocupada dos meus pensares... Amores caídos na cama de menina moça... Amara eu Olga ainda mais. Crescera junto a ideia do deitar. Deitamos Olga e eu. Eu era Olga. Olga era eu. Os dois. Um só. Dentro de um, dentro do outro nas literalidades... Aquilo quente e úmido era não o clima de Recife, era eu e era Olga, era eu em Olga e Olga em mim... Dissera ela à mãe, novidade de moça amiga do ser materno. O pai ouvira. Expulsar-me-ia do conservatório a ferro e a fogo. Soube até que com a ajuda do Carlos, o filho do juiz, aquele bunda suja, bebê de homem da lei, Sua Excelência, excelente pai de palerma... * 68


*

*

Chegara dia. Teatro lotado, Escola de Artes aberta. Vinha de fora gente assaz. Fez-se plateia. Solicitou-se presença ao palco. Subimos Olga e eu. Não se podia fazer muita coisa. Ela deslumbrava, vestido florido branco –– cara de primavera cara. Eu cheirava o perfume que emanava das dobras atadas com laço róseo-avermelhado. Olga ria, estava..., era linda! Träumerei, opus... Qual o quê! Larguei do piano que ficara a duas mãos apenas e dei em Olga o último beijo. Teatro de pé gritou: –– Bravo! –– Bravíssimo! Bravo beijo durou os instantes do träumerei eles todinhos. Mestre pianista surpreso dizia nada. Pai de Olga tava lá sabença não se tinha. Na plateia, um bando de artista subversivo do CAC,

69


CFCH3

da

Federal,

Escola

de

Artes

João

Pernambuco de pé. Os aplausos se eternizaram na memória, se brincar ainda ouço... Semana seguinte namoro desfeito: Olga fora para a Rússia virar boneca porcelanada no frio.

3

Centro de Artes e Criatividade e Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco, famosos por seus alunos com “estilo alternativo”. (Nota do Autor).

70


COMÉDIA DO VIRA

–– NUM GOSTO de veado. Pronto, tá dito! Assim sem mais nem meio mais, sem os titubeios

comuns

a

tantos

que

seu

Ricardo

decretou seu ódio à ―raça dos frangos‖, como costumava dizer, e aquilo, ali, assim pronunciado, a um amigo de longa data que em meio às confissões

de

pinga,

caipirosca

no

juízo,

consciência no chão, tinha dito que o filho mais velho, um tal José Fernando, tinha saído do armário em poucos dias. –– Porra nenhuma!Essa peste merecia nem sequer teu auxílio, que dirá teu chororô, homem! Merecia mesmo era uma pisa de cipó de goiaba e depois caixão e vela preta.

71


Era uma excitação sem tamanho que se notava naquelas palavras; seu Ricardo era homem de ―sim, sim, não, não‖, fiel seguidor do livro de capa preta e peixe na frente. Gostava não de titubear, o homem quando via gente vacilando na dúvida de uma escolha perguntava logo: ―Tás feito frango, é?! Oxe! T‘emenda!‖. Era um cabrão daqueles: pau que nasce torto e morre envergado.E o pai, antigo nas sendas do sertão, com aquela moral arraigada,da fé no padre Cícero Romão, padim de todos, e a certeza do castigo do céu, terminava de entortar. Homem sem arrodeio nem atropelo, dado a um xingamento antes e depois da cachaça; depois, muito pior, verdade seja dita, ganhava quando bebo a fama de tupinambá.Dava uma de pugilista– – era pau no bar inteiro. ―Parece que guarda raiva dos outros, escondida...Só sai quando bebe. Filho de‘uma mãe!‖, dizia D. Mariinha, quando o via de gaiato batendo bar adentro com voz de policial: ―Todo mundo prá fora, o pau vai comer no centro!‖. Sádico às escondidas. 72


Enfim, um doce de pessoa... –– Mas compadre, você vem dizendo assim, na minha cara, tascando um ―veado‖, e ficando por isso mesmo, é? –– Tu vai fazer o quê? Pai de veado.Tu és pai de veado! Vou ficar enrolando, é? Porra nenhuma! Num gosto de veado, pronto, tá dito! E se tiver arretado, venha tirar na tapa! –– Mas compadre, a gente se conhece há tanto tempo... Num precisa dessas coisas não... –– A gente se conhece muito tempo mesmo, compadre, a gente jogava junto lá no campo da BR/101, bairro da Macaxeira, e tal, mas agora estou vendo que o compadre num soube criar o filho, o compadre num soube. Menino se cria é na tapa quando começa a afeminar, e, pelo jeito, o seu deve de ter começado cedo... Vige Maria! Uma negação... –– Só digo uma coisa pra tu, compadre... Disse o amigo, alterado, se levantando. Só torço 73


pra não acontecer contigo o mesminho que me aconteceu, porque aí é que são elas! –– Tu tás me rogando praga, capiroto? Tu tás me rogando as pragas da macumba, filho duma pombagira?! E daí a luta começava, terminada quando a polícia apontava na Rua 2 de arma e cassetete na mão, quando saíam correndo todos Vasco da Gama adentro. Seu Ricardo? Ora, esse aí é que dava uma de ninja quando a cana apontava na esquina, sumia que ninguém via, era uma coisa de santo: corpo fechado. Aparecia em segundos no Largo Dom Luís, depois suprassumo. Uma vez, ao que consta dos anais dos baderneiros

do

bairro

de

Casa

Amarela

e

proximidades, bateu até sangrar num cabra que lhe tinha perguntado se por acaso não comia ―um frango‖ por detrás. –– E tenho mulher pra quê, seu quengo!

74


–– Oxe, meu velho, mulher direita, correta, dessas que se tem gostam não da arte de detrás... –– Daí você vai se refugiar nos frangos? Vá pra porra, seu capiroto! Daí era guerra declarada, honra lavada no sangue, alma redimida num Agnus Dei às avessas. O sangue do cordeiro. Uma danação! Isso tudo até a mulher vir com aquela conversa... –– Ricardo, querido, é caso sério.Precisas sentar, te acalmar e manter o ouvido atento... –– Mulher, gosto não de arrodeio. Trate logo de desembuchar sem essa frescalhice idiota! –– Ô homem, é que não é assunto de se contar na afobação não, rapaz! É caso dos mais sérios que já te contei... Enfim, vamos suspender por aqui que há por enquanto, coisa mais importante pra contar. O primeiro de três filhos nasceu menina. O segundo, 75


menina. O terceiro... O homem já tava ficando louco, queria porque queria um menino já que achava que esse negócio de ser pai de menina era o cão! –– É só pra nego ficar de preocupação com as filhas, enquanto os outros ficam de ensinar aos filhos como pegar as meninas por detrás do muro do colégio, é uma droga! Seu Ricardo fez novena, lembrou-se de que tinha lá na mente guardadas umas rezas antigas aprendidas com a mãe, beata carmelita, ―mulher de verdade, digna, honrada!‖, segundo dizia. E fez de tudo, acendeu vela no quarto das filhas, deixou queimando por semanas, mandinga ensinada num terreiro de jurema; diz-se que até cem reais em moeda o homem jogou na fonte dos desejos do Castelo de São João, terras dos Brennand, tudo por um filho, filho homem, cabra macho feito o pai, arretador, tupinambá quando bebo. O tempo foi passando e o homem ficando de cabelos

brancos,

quando

a

mulher

apareceu 76


grávida de novo... ―Prenha?Menino ou menina?‖. ―Dá pra ver não, Ricardo..., tá com as perninhas cruzadas.‖. ―Pois trate logo de ver!Faça o fedelho descruzar as pernas!‖. Vou logo dizendo que se fosse romano, o diabo do Ricardo faria aquilo que os romanos faziam quando do nascimento dos filhos. Olharia as meninas recém-nascidas, postas no chão, de um lado para outro procurando uma ―pitoca‖, como se diz, e não encontrando ou deixaria a mãe se virar com a pequena, ou viraria as costas e mandaria

alguém

levar

pra

floresta,

pras

montanhas, para o Deus dará, para o raio que lhe partisse, desde que tirasse aquele ser de frente dele... Só ergueria ao céu, mostraria à cidade e diria ―meu filho‖, se fosse homem. Engraçado que mesmo com tudo isso Ricardo era um ser humano, por certo, o que estranha mais ainda essa vida perigosa que se tem aqui na Terra-Água.

Um

constante

aprendizado

na

travessia, enquanto a vida trama e pula no 77


playground da morte. Seres humanos com tudo de humano dentro, até essas coisas sufocantes e ruins, nada alheio. Se não fazia o que acabamos de dizer ser ele capaz, não fazia era por medo da lei, medo de ser preso, ―aí é a treva!‖, os tempos outros. A lei sem o pau não é nada. Daí foi que quando a mulher fez a força descomunal e pôs à luz o pequeno ser, quase que arrancou das mãos do médico, pra ver se tinha o ―bilau‖! –– É menino, doutor?É menino? –– Tome aqui em mãos, seu Ricardo, seu filho. Teve uma tontura, um malestar, quase cai duro no chão, tiveram de levá-lo à sala de reanimação quando, ladeado por gente lhe dando choque, despertou já perguntando: ―cadê meu filho HOMEM?‖.

No

Hospital

Getúlio

Vargas

ficou

conhecido como ―O pai do HOMEM‖, trocadilho da 78


tal autodesignação do nazareno de

―filho do

homem‖. Foi uma alegria sem tamanho, estava pela primeira vez na vida em casa. E, que de logo se diga, só disse amar as filhas depois do nascimento do filho. Pra esposa, uma vitória, mudança total na vida daquele pai depressivo-pós-parto. As meninas se alegrando, um pai de verdade... É..., talvez já seja hora de voltar... Permitame. –– Como é que é, mulher? Que porra é essa que tu estás me dizendo? Tu estás me tirando é? Tu estás me tirando... Olha mulher, faz tudo, mas num me tira não, hein! –– Estou falando a mais pura verdade, Ricardo.A

mais

pura

verdade...

Tome

suas

providências. Debaixo dos pés um alçapão foi içado. Sob seu chulé habitual o vácuo, e ele, Ricardo Feitosa, caindo, caindo... Era estranho que naquela vida 79


toda de agitação que levava, era a primeira vez que caía, que verdadeiramente caía para dentro se si. –– Filho da puta! Num berro extremo, seu grito de guerra ecoado até o Chuí. Ricardo Feitosa Júnior, nascido homem, descoberto namorando um menino. Aquilo foi o fim.Aquilo foi o fim de tudo. Amor,

compreensão,

investimento,

obrigação,

sanidade mental, ah!, de tudo mesmo. Sentia-se esvaído, tratou de tomar providências.Mandou derrubarem o catimbozeiro que tinha posto nele aquele carma.Descobriu só depois que o tal tinha viajado com a família ao exterior pra acompanhar os estudos de design do filho, destaque de sua turma na Universidade Federal de Pernambuco. –– Aquele filho duma jia há de me pagar, se há! Pensa que de mim foge? Pensa mesmo? Ah, meu mano velho, sou pior que nego guerreando em guerra contra senhor de engenho!Brigo pior que os Novaes com os Ferraz em sua pitoresca briga de 80


família!Sou pior que Virgulino Ferreira da Silva vingando o pai, um mártir! Alucinado, queria

uma

prometeu

caça,

uma

mundos

e

verdadeira

fundos, caça

ao

macumbeiro que tinha feito aquele despacho que naquela noite fatídica, no bar, depois de começada a briga, tinha lhe rogado aquela praga. Um desastre! Um desastre... Queria posto morto o catimbozeiro no estrangeiro mesmo, pra gringo ver como é que justiça no Brasil é feita! Autotutela, como dizem os juristas, a das mais violentas, a la Lampião! À moda da casa! –– Eu quero aquele pino no chão! Eu quero aquele pino no chão! Repetia redundante. * *

*

Naquele dia ali sentado, pitando cachimbo secular, herança do cabra macho do pai, recebeu o filho, cadeira colocada na sua frente, com toda coragem

do

mundo,

cabeça

erguida,

olhar

vacilante, mas insistente, em sua frente. 81


–– Olhe, menino, não me venha com... –– Pai, se o senhor aprecia qualquer tipo de coragem, aprecie esta. Esse sou eu, o que o senhor quer? Alguém além de mim? Uma estátua de marfim, sem erros? Conversa

longa,

longuíssima,

no

início

levantou até a mão na tentativa de acertar o coco do filho, ―menino afeminado merece é pisa!‖, como dizia, seria uma pisa bem dada, mas quem disse que pisa bem dada tira da mente um querer? Quem disse que berros e xingamentos tira da alma o ser? Lutou, lutou, lutou, suou de cansar, e o menino na frente dele, sentado enfrentando a fera, enfrentando de frente. A cabeça erguida, o nariz em

pé,

era

a

cara

do

pai.

Dentro

dele,

inconscientemente, brotava um orgulho daquela coragem. No mundo inteiro tudo parou para o instante derradeiro da luta, guerra na chapuleta, guerra sobre guerra, o único Armagedom, bem longe de Israel.O Ricardo, pai virado no mói de coentro, 82


prometendo ameaças, dedo em riste, bradando pragas, clamando pelo padim padre Cícero, e o menino, do outro, guerreando calado, cansando o inimigo, numa estratégia militar à Sun Tzu, território aquele bem conhecido, cheio de acidentes geográficos, o rapaz passando por eles, de fininho, esperando o inimigo se debater. E a fera se debatia. Oh, se! Soaram por fim os clarins. Quem aguenta bancar Yansã ad aeternum? Jesus de Nazaré derrubando as barracas do templo, com uma vontade de matar terrível, apenas batendo com um cipó de goiaba?! Seu Ricardo caiu sentado, quase expirou.O menino, impassível, na sua frente. O jeito do pai, a cara do pai, cabra macho corajoso, namorando um menino! E daí que, depois de tanta angústia percebeu que o filho tinha em coragem o dobro da dele, e isso ele apreciou. Daí pros abraços foi vapte e vupte. Fizeram as pazes. Nunca estiveram de mal um do outro. Só o seu Ricardo, que em razão de 83


um fato novo deixava de ser ele mesmo, seria agora ele mesmo e todos os outros que lhe estivessem ao redor. Ao cair para dentro, bem dentro de si, descobrira a si mesmo, ou a parcela de si que não tinha antes. Melhorou-se. Não que o filho estivesse certo, insistia, não também que estivesse errado, mas que gosto é fruta das mais variadas dadas numa única árvore multicor, louca da vida. –– Traga aquele demônio aqui que eu quero ver! –– Amanhã mesmo, pai. –– Amanhã não que é dia de missa, quero nada de safadezas nessa casa! –– Amanhã mesmo, pai. Não há com a gente nenhuma safadeza que não haveria se fosse entre mim e uma menina. –– Hum!, menino cabuloso! Só me faça um favor, meu filho, num dê não, meta! –– Pai, vou lhe dizer uma coisa... Isso aí é que são elas! 84


Tremeram-se de tanto rir, vitória do bom senso. Guerra encerrada, assinado o armistício.

–– E o compadre, qu‘é que acha? –– É filho, né, compadre? A gente ama, a gente quer bem... –– Confesso que chorei, compadre... Confesso que naquele dia no bar chorei. Uma arretação, juízo afobado, uma tristeza! Mas o menino só nos dava orgulho, por que focar em detalhe, felicidade né assim, a gente busca antes que ela escasseia? –– Se é! –– Então, menino buscou, achou a dele à sua maneira. Que faço eu? Aprumo o que já está aprumado? Viro pra desentortar o que já está assentado? Aí é que estaria entortando num vira entorta danado, numa miserável comédia do vira! Daí me convenci.Foi a época da viagem, notas do menino tudo 10. Fomos a Portugal, terra dos manuéis, uma belezinha. 85


–– Pois é, compadre, concordo com você. Só lhe

peço

desculpas

dum

acontecido

não

sucedido..., ainda bem!... –– Como assim? –– Aconteceu, mas num se procedeu. –– Que foi? –– Mandei lhe matar.

86


O MARIDO, A MULHER E AS PANELAS

ALFREDINHO SEMPRE tivera uma certeza mais que certa: amor com amor se paga. E ele era desse tipo mesmo, sabe?, dos românticos crônicos, inveterados, parece ter nascido na época em que Lord Byron, cheio de si, escreveu Dom Juan... O tio Marcílio, espírita kardecista de carteira assinada, vivia rindo dele, dizia que por mais que ele arrotasse esse ser que pretendia tão dele, nada mais seria do que ―a reencarnação pobre de Byron!‖, um ―Byron depois da pobreza‖. Alfredinho, logicamente, não gostava nem de ser alguma coisa que não fosse ele mesmo, de carne e osso, Alfredo da Cunha Lima, por nome de batismo na Igreja Matriz do Pina, nem de ser ―essa coisa de reencarnação‖ de outro homem..., sentia 87


um atordoamento de alma estranha em carne que se habita e não se possui, era uma coisa confusa de lascar! –– Tio, o senhor deixe de frescura, que já disse que não compartilho dessas heresias! –– Heresia, mesmo, Alfredinho é você achar que é você mesmo sendo Byron! Aquela

conversa

era,

no

geral,

uma

danação. Alfredinho era mesmo é muito romântico, gostava dos títulos de Camilo Castelo Branco, queria amores de perdição no início e de salvação no final. E vivia sonhando... Esquecia que para a vida a ordem dos fatores não influenciava muito no resultado, e que ela brincava o mais que podia, trazendo as perdições no final, após as salvações do início. A Bruna apareceu num desses sonhos dele. Menina belíssima, branca de neve, na verdade mais alva que a neve, parecia até papel que se pega com cuidado pra não dobrar, contava-se até as 88


veias que tinha no corpo de tão alva, quase transparente, Bruna Maria Gonçalves de Alencar, menina da zonal sul.Falava devagarzinho um português bem explicado, dava até um saco de ouvir

aquela

vozinha

de

criança

falando

compassadamente, soletrando quase. Alfredinho, romântico como era, gamou de plano, naquele carnaval. Foi tudo muito inusitado.Na folia dos quatro dias, sábado de Zé Pereira, estritamente, deu um pisão no pé da moça enquanto tentava desarnar o frevo estrambótico que dizia saber.A menina, coitada,

teve

duas

reações:

um

grito

e

um

empurrão; ele, assustado por causa do de repente, veio se achegando, pedindo desculpas, ajoelhando beijando o pé da menina pra ver se sarava... Uma coisa de dar pena. A menina, contudo, gostou. Lembrara, com vagueza

o

alento

paterno...O

pai

beijando

a

feridinha pra passar logo, depois das quedas de bicicleta

no

Parque

da

Jaqueira...

Pensou 89


schopenhauerianamente: ―esse dá pra ser pai de filhos‖. E, inconscientemente, claro, decidiu-se pelo Alfredinho. O fato é que ficou toda prosa e tanto que gamou no Alfredinho. Ela de odalisca, ele de papangu. Depois

de

três

beijinhos

Alfredinho

se

ergueu, no calor infernal do carnaval na Rua do Sol tirou a máscara de papangu e disse ―prazer, me chamo Alfredo, mil perdões por pisar seu pequeno pé tão lindo e macio... Você não merecia isso...‖. A voz grossa, herança do pai, o jeito meigo, as palavras pronunciadas lentamente, Bruna quase desmorona. Como as coisas hoje são bastante rápidas os beijos vieram ali mesmo, os primeiros. Deu nem tempo do pobre coitado versejá-los como queria.Os versos só fez depois. Bruna era de toda versos na mente dele, musa ninfa da ilha de Calipso. Alfredinho inseriu-se no círculo de amizade cineminha e McDonalds da Bruna, sabia nem lá o que era aquele enfadonho cinema da fundação. 90


Aprendeu, desgostou, mas fingiu bem fingido que era coisa da hora! Ele que achava tão bons os filmes clichês de Hollywood, tinha certa estranheza aos filmes de Pedro Almodóvar e Stanley Kubrick... A vida dele, mesmo por assim foi colando na vida de Bruna, foi virando a vida de Bruna, foi se incrustando na vida de Bruna. Alfredinho sem Bruna não era mais Alfredinho. E ele amava. Oh, se! O rapaz amava tanto que dava pena até mesmo dele. Amor com amor se paga. E foi com aquela frase belíssima de Hugo que projetaram, na Jaqueira, o casamento na praia, repleto de amigos, sem muitos dos siris cascudos das famílias, ―l’amour na point de moyen terme, ou Il perde, ou Il salve”. Bruna,

num regozijo:

Alfredinho fala francês! Casório marcado, da família Gonçalves de Alencar a contragosto de tudo e todos apenas a mãe.Da família Da Cunha Lima, o tio Marcílio e mais

ninguém.Casório

estranho,

verdade

seja

dita.No entanto, os noivos, maiores, de comum 91


acordo,

estipularam,

assinaram

os

contratos

matrimoniais, venderam alma e coração ao diabo, pagaram as custas cartorárias, encomendaram padre e cerimônia simples, e tinham no ato cerimonial à beira mar de Itamaracá, ao por do sol, mais de cem amigos juntos de um lado e outro, não havia que se falar, tempos modernos, tempos outros. –– Alfredo da Cunha Lima e Bruna Gonçalves de Alencar, eu os declaro, em nome de Deus e do Estado, marido e mulher.Formam a partir de agora, conforme seu gosto, a família Gonçalves Lima... Ah, sim, pode beijar a noiva! Beijo de hora e meia, os amigos aplaudindo, assoviando, dando urras, bravos, bravíssimos! Casamento feito, Lord Byron aprisionado. * *

*

Tudo aquilo, muito lindo, casamento de jovens loucos, tudo muito aceitável, nada que se 92


declarar

em

contrário,

até

aquele

fato

superveniente... –– Você é louco, Alfredo? –– Mas amor pensei que você soubesse... –– Você é louco, Alfredo?! Até entendo que você é romântico, você sempre foi, eu adoro isso, mas casamento... Meu Deus dos céus! Casamento não é apenas romantismo, seu imbecil! –– Não fala assim, amor... –– Não fala assim uma droga! Quem já viu! Quem já viu! E eu, de idiota, nem sequer tinha visitado tua casa ainda... Por isso que tu viesses com aquela história de parentes muito chatos e tudo... Meu Deus! Pudera eu imaginar... Somente imaginar! Mainha vai ficar me enchendo o saco, ―eu disse, Bruna, eu disse‖ tô já vendo! –– Mas Bruna, a gente pode contornar isso, somos amantes, namorados, marido e mulher, conseguimos passar por isso facilmente... 93


–– Isso é um engano, aliás, tudo isso é um engano,

um

completo

embuste,

um

engodo

ridículo! Eu fui enganada! Deus, a comunhão total... ––

Enganada?

Como

assim

enganada,

Bruna? –– Enganada! Você... Meu Deus dos céus, você não é quem diz ser... –– Mas eu nunca disse... –– Você também nunca desdisse! E eu, pensando que... Ah, não pode ser assim! –– Pode ser sim, estamos casados, Bruna, temos que resolver isso... –– Não vamos resolver isso, ninguém vai resolver isso, isso não tem resolução! Por que casei, meu Deus?! Por que casei?! –– Bruna, pára já com isso, eu estou ficando nervoso!

94


–– Uma loucura de adolescentes, meu pai me disse.

Não

iria

praquele

casamento

de

jeito

nenhum, ―minha filha, tão adulta e ao mesmo tempo tão mimada, você me envergonha!‖ foi isso que ouvi de meu pai, você sabia, Alfredo, você sabia? –– E, não obstante você não estava nem aí! –– Claro que não, imaginava que você fosse quem você dizia ser... –– Já disse que não disse! –– Já disse que não desdisse! E agora... E agora... –– Agora vamos passar por isso, e enfrentar todas as outras crises que sobrevierem como um casal apaixonado que somos, Bruna. Agora, só podemos fazer isso, você vai se acalmar, eu vou me acalmar, vamos nos abraçar e fingir que nada disso está acontecendo... –– Seu idiota! Não vou fingir. A vida é um teatro, todo mundo diz, mas desse papel eu não 95


gostei nada! E você, passe bem. Não dá pra viver assim. * *

*

Um mês depois a Sentença dada: casamento anulado.

Erro

interpretação

quanto

que

o

à

pessoa,

advogado

da

numa Autora

considerara novel no Tribunal de Justiça, dando tapinhas nas costas do juiz, em celebração de uma longa amizade. Artigos 1.556 e 1.557, inciso I do Código

Civil

Brasileiro,

assim,

frios

e

sem

romantismos, lei aplicada ao caso, subsunção tácita e fria. Na sala de audiência o juiz olhando por cima dos óculos, olhar de reprovação, inquiriu gentilmente

se

a

autora

intentava

mover

a

competente ação de danos morais, vez que poderia lhe indicar a título gratuito um advogado amigo seu, especializado, ao que disse que não.

96


–– Apresente sentença lavrada e assinada não prejudica as sanções penais cabíveis. Nesta cidade do Recife, PRI4. Da sala de audiência do Fórum da Ilha de Joana Bezerra o último olhar... Alfredinho e Bruna, uma desgraça. Alfredo era pobre na forma da lei e na forma da prática. Bruna, como poderia viver assim? Sem recursos, sem nada, uma vida eterna na 2ª classe pernambucana. Fora enganada! Casório bonito no início, anulado depois. A vida invertendo a ordem dos fatores, brincando, como gosta. Salvação no início, perdição no fim...Rosa e espinho.

4

Publique-se, Registre-se, Intime-se. Determinação do magistrado à secretaria dos cartórios ao fim das decisões judiciais. (Nota do Autor).

97


A CARTA

QUAL NÃO FOI sua surpresa, a coisa mais inesperada do mundo, a coisa mais improvável, e talvez até impossível, ali, em sua frente, no simples abrir do caderno de exercícios... Dobrada e escrita sem nenhuma pompa em folha branca repleta das linhas azuis do pautado. É bem verdade que essa surpresa toda não veio só com o ato de abrir o caderno, acontece que lhe deu um não sei quê de estranho quando viu o papel dobrado na forma de envelope, ali, em sua frente, inesperadamente, uma carta. E essa coisa estranha não foi a surpresa não, era uma espécie de pressentimento que ela tinha, que ela teve e descobriu que tinha naquele instante, ou será no depois? 98


Em pensar que olhando aqueles desaforos dele, duma hora pra outra lançados, quase que do nada, um cansaço de vida a dois, contrato matrimonial vigendo, não dava pra fazer mais nada que rir, a reação era a mesma! Ela ria, um riso estranho de quem ama (amou?), um riso do costume, do costume do cheiro e das coisas divididas, e ele lá, largado no sofá vendo o infame do jogo enquanto ela ali fazendo as anotações do quadro

clínico

daquele

paciente

tão

birrento

quanto ele... Homem é tudo igual! Mulher também, dizendo isso. Pôs-se a lembrar de novo... As mãos congelaram-se no ar, deu-lhe um malestar que atingiu até a espinha e de uma hora pra outra sentiu uma vontade enorme de soltar os bofes pela boca e por debaixo – um horror! Tudo aquilo tramitava em seu organismo como um caos harmônico, sim, porque ela tinha certeza, uma coisa lá no fundo lhe dizendo que daria em harmonia... Essa harmonia de que falamos quase 99


não se via (se vê?), naquela hora. Nesses instantes inesperados a gente parece pressente as coisas..., ou é uma pretensão de pressentimento que nos dá. Vai entender! Esse momento que passou parada durou como que uma eternidade, pra ela, transportada àquele tal do tempo kairós, no qual dizem os experts planar o ser divino. Verdade é que num átimo de segundo agarrou-se à carta de um modo tão intenso que quase rasgava o papel no simples ato de pegar. Uma colega de classe sentada ao lado assustou-se tanto que deu um pequeno sobressalto da cadeira – ela nem notou, estava às cegas. Ali em suas mãos a consubstanciação do ato. Daquele seu constante ato de pensar... Ah, passava noites pensando! Uma transformação terrível lhe acontecia, e ele, em si mesmo tão próximo e tão distante... É que dizem que homem é burro pra essas coisas. E ela ficava pensando que devia mesmo de ser. Tantas pistas deixadas, tantos detalhes, toques e retoques e o cara não percebia 100


nada! Vindo com aquela história de ―minha amiga‖! Ora qual! Pensar que... Abriu vorazmente não ligando pra nada que ao seu lado estivesse. À sua frente, a poucos metros, o professor Hermenegildo lia o livro de física quântica e sentia-se um lixo por ser obrigado pelo Ministério ―da burrice‖, como dizia, a dar aulas de física clássica! Seus olhos pregados nas fórmulas de Einstein não notaram a voracidade da descoberta da carta. Ali no papel, em sua frente, em suas mãos trêmulas,

registradas

com

todo

zelo

habitual

aquela letra redonda, escrita vagarosamente do modo que só ele fazia... O professor Hermenegildo vivia dizendo ―esse menino não escreve, pinta!‖, e pintava mesmo, na cor azul da caneta Bic. As palavras todas escritas perfeitamente bem por um verdadeiro pintor, uma a uma dispostas, mais pareciam arranjadas elegantemente no papel, um verdadeiro esponsal – as amigas diziam que aquele

101


era bom de casar, coisas do povo: crendices – quem escreve bem, casa bem? Pensar que... Seus olhos correram a carta de cabo a rabo, identificando primeiro a letra, percebendo o modo lento e decidido como fora escrita, e depois, só por último, como se numa vontade infinda de guardar a melhor parte pro final, o teor, o que estava escrito. E leu, com todas as letras a declaração feita, aberta, confessa, amor, amor, AMOR!!! A caixa de pandora aberta. Naquele instante um grito interrompeu seu divagar – ―Goooooooool!!!!!‖ Coisa mais infame ter jogo toda quarta! Ô país de lesmas! O coração dela ainda batia rápido num atropelar-se loucamente, o peito batendo feito coração de poodle. Estava ansiosa, sempre ficava, amava aquelas lembranças e eram justamente as lembranças que faziam com que seu casamento perdurasse tanto. Casara-se com as lembranças depois que o tempo passou. Apegara-se com as lembranças na ausência de coisa melhor. 102


Esticou-se toda, visivelmente alterada. Deuse por si apenas quando a Maria lhe tocou o ombro esquerdo perguntando o que tinha. Maria era muito amiga, de tempos ainda das brincadeiras de boneca, mas o engraçado é que Maria não sabia dessa sua querência pelo Felipe. Ela mesma não sabia o por quê. Entretanto, o fato era que Felipe tinha qualquer coisa de secreto que nem ela mesma entendia. Um jeito, um traquejo, uma coisa doida, dava um malestar que arrepiava... – Não é nada, Maria. É que me deu um malestar... – Por que você não vai ao banheiro, lava o rosto e tenta se sentir melhor? Já tomou algum remédio? – É... Vou fazer isso... Pediu pra se retirar da sala, ―fazer o quê lá fora?‖ alteou a voz o professor Hermenegildo naquela

sua

curiosidade

acobertada

pela

hierarquia, um fulo! ―Fazer xixi, caso não me 103


permita fazer aqui!‖. Algumas pessoas riram. O professor balançou a mão com o gesto da gente besta que se dirige a quem crê como ralé. Estava no auge de sua leitura do ―Diário da Física‖, revista editada por uma das maiores Universidades de São Paulo sobre o assunto, tinha ganas de ser grande, publicar um artigo ali um dia, tinha cansado da vidinha de professor umas horas e funcionário em outras – ―a vida de funcionário é um matar-se aos poucos... Moralmente, socialmente, humanamente, dignamente‖, vivia de repetir. Estava era ficando senil e não se dava conta – logo a senilidade, adjetivo encangado aos cargos do funcionalismo! Ela foi. Cambaleou um pouco. Tudo muito estranho, Deus dos céus! As mãos suavam, a testa inundavase de uma água fria e salgada como a do mar, um suor frio, deu-lhe um tremelique, um negócio de doido e o intestino parece que cobrava uns dias de atraso no regular exercício de suas funções. Mas logo ali, naquela hora! E tem horas? 104


Passou

bem

uns

quinze

minutos

no

banheiro. Suada, parecia que tinha tomado um banho. Enxugou a cara, não podia demonstrar. Daí a alguns instantes voltou. Ele já tinha regressado da

secretaria

com

os

papéis

que

tinha

ido

carimbar, segundo disse. Estava lá sentado ao lado de sua cadeira, lendo umas coisas soltas, pareciam contos – ignorava completamente as aulas de cálculos, que desgostava. Parecia querer fazer crer nada ter acontecido. Sentou-se ao lado dele discretamente e passou-lhe daí a alguns minutos infindos, a carta. Observou-lhe as feições do rosto. Tomou um susto que foi aumentando num crescendo

até dar

naquilo. E lá veio a primeira demonstração dos desaforos, e ela nem se deu conta. A gente se dá conta? Pensar que... – Que palhaçada é essa? Perguntou o Felipe alteando a voz em tom de ameaça dirigido a toda classe. 105


O professor levantou a vista, pediu silêncio. Felipe, desobedecendo às ordens expressas, fez que ia protestar. – Professor, quero saber e quero saber é agora quem foi o infeliz que teve a coragem de colocar essa carta no caderno da Ana! Um absurdo, professor! Nós, tão amigos, tão próximos, e esse indivíduo filho duma puta faz essa carta ridícula, essa porcaria, imitando minha letra e assinando como se fosse eu, pedindo a Ana, minha melhor amiga, em namoro! Isso é um absurdo! É falsidade ideológica e material! Quero saber o responsável já! Na sala, todos boquiabertos expressavam emoções as mais variadas... Ah, tá vendo! – ela se lembrando que algumas pessoas riram. A Margot e a Amélia... Duas safadas! Bem que podia ter sido elas, umas tiradoras de onda! Mas na hora só o desaforo ficara guardado no peito e na mente, ele berrando, vociferando na cara de todos.

106


– Já disse que foi em defesa de nossa amizade,

querida.

Dizia

anos

depois

num

aniversário de casamento. Por que cargas d‘água você tem sempre que se lembrar disso? Por que cargas d‘água as mulheres tem sempre de se lembrar de tudo?! Pensar que se casara com as lembranças, depois que o tempo passou, na ausência de coisas melhores... O tempo tem disso, brinca com a gente. A gente cresce e perde a graça. Vive de lembranças, memórias, fogo fátuo. Agora veja, se foi malestar que ela sentiu ao receber a tal carta e jurar ser dele, imagina agora o que ela sentia sabendo por ele e logo daquele jeito bravio, que a carta não era dele, que ele não sentia nada além de amizade (grande bosta a amizade quanto o que a gente quer é amor nu e cru!) e que... E que...

107


Baixou a cabeça e não disse, não sentiu, não falou, não esteve mais ali. Há coisas que a gente fala, mas não explica. Ela teve um malestar. Ponto. Ah!, mas ria, ria e agora alto, atrapalhando o maldito jogo. – Amor, faz favor né? Oxe!, quero ver o jogo, tá vendo não? – Não, Felipe, quem tá vendo é você! – Você entendeu. Deixe de onda! Pensar que... Ele ainda se sentou, pediu desculpas a ela por aquilo, aquilo não devia ter acontecido, a amizade deles era importante demais, as pessoas não podiam brincar com o sentimento das outras, que isso e aquilo e aquilo outro, e ela com uma vontade enorme de enfiar a boca dele no obelisco de Brennand. Teve, do nada, essa vontade sádica de vê-lo sofrer dependurado à vista de todos no Marco Zero. 108


– Você está bem? – Estou... – Tem certeza? ―Não, seu idiota!‖ ainda pensou, mas não valia dizer. – Tenho. A gente mente muitas vezes porque precisa e se o Diabo é o pai da mentira, Deus é um invejoso injuriante. Ele se levantou. Aprumou a bolsa nas costas daquele jeito que ela gostava de ver, o sino tinha tocado,

hora

de

largar.

Ela

se

ergueu

maquinalmente. Abraçaram-se. – Até amanhã! – Até... Parou um instante. Era intervalo de jogo, mas ele pegara no sono. Advogado não tem horas pra nada, é incomodado e incomoda o tempo todo. 109


Tinha pifado, precisava dormir. Aquele jogo maldito recomeçando... Engraçado como na vida as coisas são... Daí a uns meses estavam namorando. Teria sido dele a carta?

Não,

não

era

possível,

ele

negara

terminantemente. Terminantemente! Era de uma daquelas desocupadas, ou a Amélia ou a Margot. Mas não é que namoraram?! Um sonho realizado. Amor, amor, AMOR! Ali, depois de tantos anos de casados, tantas inescrupulices e aguentamentos, ele dormindo no sofá como um bêbado depois de horas de happy hour,

após

milhares

de

horas

enterrado

em

processos e ela passando o jaleco a ferro, depois de um preocupante plantão hospitalar... Foi à sala. Ele dormindo ali em meio a latas de cerveja e tiragostos diversos e aquele futebol horroroso na televisão, uma loucura! Olhou bem seu rosto, pensar que as feições eram as mesmas, de mudado pouca coisa, a coisa louca do amor, o amor é uma loucura. Seguiu as linhas de seu corpo caído no 110


sofĂĄ, largado de qualquer jeito, e parou hesitante no V que ele tinha ao redor do bucho, que ia dar na virilha.

Teve

um

malestar,

o

corpo

todo

estremecido, uma vontade de deitar, de entregar-se toda como da primeira vez... Foi aĂ­ que ele soltou um pum estrondoso e o malestar se foi. Pensar que...

111


APRENDIZADO

–– HOMEM É HOMEM, ser imperativo feito pra ação, meu filho. Não sei de ninguém que se diga homem e seja coisa diferente dessa. Seus olhos brilhavam com o aprendizado de mais essa lição, de mais essa certeza, de mais essa compreensão alheia da realidade. Quando, enfim, ele compreenderia a vida? Ele mesmo, sem o auxílio

da

visão

de

outros

olhos?

Bem,

perguntas que a gente só se faz lá por dentro. Sabença de nada disso ele tinha, a vida era futebol, pique-esconde, pega-pega e essa mania de correr feito um louco sem pé nem razão. Mas o pai, o pai não. O pai já tinha passado por tudo, já tinha visto de tudo, já era senhor de muito e muitos. ―A sabença da vida quem tem é 112


quem vive‖: a primeira lição que seu avô tinha incutido em seu pai. Seu Amaro de Souza era um avozão, metido a contador de estórias, um Esopo! Mas daquela primeira lição seu pai nunca tirou muitos proveitos... ―Ora essa! Esse negócio de ir vivendo e aprendendo faz a gente quebrar a cara. Prefiro ensinar ao meu filho as coisas que ele deve saber e pronto!‖, tinha falado pra esposa quando lembrado da tal lição do Seu Amaro. –– Que é isso, menino? Erga a cabeça! Homem não chora. E o pião ainda rodando no chão mostrava o rastro de sangue tirado da barriga do pequeno. –– Claro que está doendo. Você não é de barro! Mas aguente. Vamos fazer um curativo, isso não é o fim do mundo. Pra tudo há jeito na vida, menos pra morte. Aguente! Homem não chora. E o menino chorava calado, contrariando a si próprio, seu intento maior era a igualdade ao pai, ser igual, ser maior, ora que pecado ele achava 113


isso!,

ser

melhor

que

o

próprio

pai!

Um

―homenzarrão‖, como dizia sua mãe. Mas fazia parte, parte da vida, dessas coisas da gente, o menino ia aprendendo na travessia. –– Aguenta moleque idiota, não tá vendo painho dizer que homem não chora! Prendia o choro, engolia aquela água salgada de mares internos que ia aprendendo a desbravar, deveria ser como o pai e aguentar feito homem que não chora. Deveria controlar aqueles rios internos embaraçadores como Poseidon do alto do Olimpo controlava os mares com seu tridente potente. Deveria ser uma máquina que cumpre todas as ordens preestabelecidas de como se deve agir. Outra lição que tinha aprendido era a de agir sem

arrodeios,

sem

titubeios,

tendo

certeza,

caminho certo, pés sem vacilar. Vida mais fácil sem as preocupações das perspectivas. Aquela lição durou até que ele conheceu a Laurinha... A janela da Laurinha dava pra sala, e de repente o menino não saía mais da sala, lendo 114


no sofá, escrevendo no sofá, desenhando no sofá, brincando no sofá. –– Filho, não vai brincar mais com o Marquinhos e o Mateus, não? Vi os meninos indo pro campinho... –– Não, mãe. Tô brincando aqui já. E eram horas e horas de ver Laurinha no quarto brincando de bonecas. O menino lutando contra sua insegurança, lembrando sempre das lições aprendidas, ―o que painho vai dizer se souber que você tá com medo de ir até lá, seu maricas! Homem não vacila!‖. Mas a Laurinha era mais forte que as lições do pai. Laurinha era a primeira chave da adivinha. Um dia, quando ele ia saindo de casa destino da escola, a porta da casa de Laurinha também se abriu e ele de repente, bruscamente, voltou pra dentro de casa e fechou a porta de supetão atrás de si, meio sem saber o por quê. Correu pra janela e ficou espiando Laurinha correndo atrás de sua 115


poodle. Ela estudava à tarde na mesma sala que ele estudava de manhã, e aquela hora era o momento de passear com a cadelinha. Ele hesitara! Ele vacilara! Laurinha era mais forte... Lição que aprendera sozinho. Quando se lembrou disso uns anos mais tarde, achou até um tanto engraçado. Uma graça sem graça. Sem graça por ser um riso fora de ocasião, com graça porque, ora!, porque tinha graça! Contradição. A vida feito um trava-línguas. Vida contraditória caminho do norte indo pro sul – – bússola, qual há? O pai dele, homem do forte, cabra macho criado e benzido no interior, homem de poucas palavras e muitos conselhos, lições que dava aprendizado do filho, pai dele na cama estirado inerte balbuciando umas palavras estranhas, a mãe já idosa com o coração apertado, um malestar sem sabença de por quês. –– Ele quer falar, Tavinho, ele quer falar, encosta o ouvido... Ai meu Deus! Uma mão no 116


peito, apertando, outra com as costas na testa, saindo do quarto escuro, buscando ar, um ar pra respirar, essa liberdade em nuvem constante no ar, Dona Maria angustiada, nem benção de padre o homem quis ―Padre não se faz hoje como antes. Padre mesmo quem foi, foi o nazareno, depois dele, uns bostas! Mulher, ‗o evangelho morreu na cruz.‘‖. E Dona Maria preocupada com aquela lição para ela tão errada que o marido dava, heresia nas portas da morte. Um pecado ficar sem unção extrema... O filho recostou o ouvido esquerdo na boca do pai. O quarto silencioso. Um ar pesado... A morte gosta de olhar quem vai levar por uns instantes, e enquanto ela fica no quarto, parada, encostada em uma das paredes, num canto mais escuro, às vezes sentada na cadeira mais simples esquecida a um canto, arfa essa sua respiração pesada de muitos sonhos, de muitos intentos breviados, de muitas desilusões de sua própria vida morta em devaneios. 117


–– Um... idi... Um idiota, meu filho, eu sou! –– Não diga isso, meu pai. Ô, aguente! Homem não chora. –– Por isso mesmo! Um idiota! Quem já viu... Quem já viu homem não chorar?! Até Jesus chorou, meu filho! Isso pelo que dizem... E sabe o que mais? Não tenho essa certeza toda, aquela segurança... Borro-me de medo: a morte à espreita, uma cara estranha com olhos encobertos... –– Não diga isso, meu pai... –– Uma última lição, menino, anote no juízo... Ouviu, Otávio? Anote no juízo: quem dá lição na gente é a vida. Ninguém mais... Um filete de lágrima no canto do olho. De repente, voltou os olhos agoniados para um canto do quarto, o filho olhou assustado: apenas a parede e um ar pesado, quente...

118


você aprende uma última coisa hoje amaro de souza filho (disse o ser de voz tranquila que acabava de se achegar a ele) sua derradeira lição uma resposta a umas perguntas presente por morrer EU sou a vida também O homem na cama se abriu num sorriso contentado. Riso maroto mostrando os dentes, uma luz em seus olhos e seu último ar exalado. ―Que ironia, meu Deus!‖, suas últimas palavras. –– Pai? Pai? Ironia? O quê? Pai? Com as mãos em suas costas como gesto de consolo, Laura abraçou-lhe bem forte, passando essa coisa enérgica que existia nela. Ele olhou profundamente em seus olhos e com aquela lembrança da infância se riu... Seu pai descansara. Morrera sorrindo. Era, na verdade, a lição derradeira. Laura em seus braços confortando... Em seus olhos tomados de estranha alegria, um filete de lágrima. 119


120


OSSOS DO OFÍCIO

CERTA

VEZ

ouviu

um

companheiro

de

trabalho dizer, sorumbático, que o que importa mesmo na vida é ser feliz e dar risadas na cara dos que querem emperrar as coisas, mas sinceramente, depois desses dez anos de um serviço repetitivo, ele começava a pensar que a felicidade era coisa pros outros. Não que estivesse redondamente insatisfeito, não que estivesse jururu constantemente com tudo, todos, e tudo aquilo... Não! Aquele colega de trabalho, o que chamavam Januário, ou Janu, vivia dizendo: ―Tu és um bosta que cospe no prato que come!‖, maior engano haveria? Soava até cômico, uma comédia! Aí ele ria! Como enganado estava o Janu... Não se tratava de ser um mal agradecido, era uma coisa maior, sei lá...

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Haveria, pois, então, ofício mais ridículo? No início estava radiante de felicidade. A proposta era boa e lhe tiraria os cortes nas costas, lidar com crianças e tudo, coisas interessantes as crianças, tão

frágeis,

mas

complexidade

futuramente

inimaginável,

tão

era

cheias uma

de

coisa

interessantíssima, mas depois... No depois as coisas

ficam

repetidas

e

toda

rotina

é

um

entorpecimento. Demais, viviam de dizer que quem é burro não pensa, não é inteligente, não pode dar opinião concatenada, ora! E acaso ele era burro? Burro... palavra idiota! As pessoas são tão imbecis que dizem ser ―pai dos burros‖ o dicionário. Há burrice maior? A multidão é que era uma coisa estressante... Aquele povo todo ali reunido, olhando, mascando chiclete, falando ao mesmo tempo, berrando, rindo com risos de palhaços, como uns lunáticos bobos da corte de Deus. Ah, Deus! Que burrice a tua... Ou não, né? Pensava. Talvez toda essa comédia de 122


enganos criada por Deus nada mais fosse que o clímax do gozo filosófico da divindade. Contradição, bem com mal, alegria com tristeza, preto no branco, tudo misturado! Teve um dia que um botijão explodiu e foi um corre-corre, um chororô, mas, ora!, logo quando uma coisa diferente acontece, quando tanto chama à sua atenção! Ele mesmo deu uma risada

enorme

quando

viu

os

algodões-doce

queimarem no fogo, uma coisa inusitada! Mas depois, aquele chororô, aquele corre-corre, aquela angústia, aquelas rezas estranhas, tudo muito estranho, atmosfera triste, fez com que ele se sentisse um idiota, um incômodo, um sem noção. –– Tu não precisa ter noção, Mariano, tu não precisa ter nada. Só come tua ração diária e vive! Era o Janu naquele realismo pessimista dele. Mas estava certo o Janu, ele realmente não precisava ter noção, não precisava de nada, talvez fosse o nome certo, o de ser burro, um burro, iletrado, analfabeto das falas humanas, das falas 123


do mundo, das coisas misteriosas das auroras e crepúsculos,

das

coisas

de

Deus,

universo

silencioso... Universo imenso até mesmo às pulgas! Ele ali limitado, num eterno Jó 38:11. E a vida ficava sendo essa comilança da ração diária. A vida ficava sendo essa vegetação da manutenção da própria vida. A vida virava o espelho de Narciso. Uma coisa idiota! ―Pensa pelo lado positivo, ao menos aqueles cortes...‖, lá vinha o Janu. Talvez ele tivesse é que se aposentar. Como seria se aposentar? Como seria não ter que fazer nada por um bom tempo, um tempo longo, o tempo do fim? Era o tipo de coisa que deveria haver a vida toda, não só no fim. Coisa pachorrenta que os homens inventam pra se ocupar a tal da rotina... Estava um caco. Um caco moral, físico e psicológico. E ficava ali, rodando lentamente, passeio suplicante, Praça Faria Neves no bairro de Dois Irmãos, em plena manhã de domingo. Manhã? Manhã até à tardinha, oh, povo besta!, achar diversão

ver

um

monte

de

animal

infeliz, 124


engaiolado, tentando entender a vida, nas jaulas do Zoológico de Dois Irmãos, uma danação! Uma espoliação! No fim das quantas achava que aquele nome não era pra ele, que aquela designação pejorativa não era dele. Ele, Mariano, o Marí, assim como o Januário, Janu ou o Epaminondas, Epami ou o Dioclécio, Dió, toda a sua espécie de ser eram, sim, jumentos, jumentos de corda no pescoço e criança nos lombos rodando na praça em frente ao horto, eles trabalhavam, trabalhavam, comiam sua ração, dormiam,

e

depois

trabalhavam

mais,

mas

tentavam, como os outros animais do zoológico, pensar na vida, nessa comédia de enganos... Burros? Burros eram os homens que viviam naquele azougue, naquela embaraçada agonia de bem e mal, felicidade e tristeza, e nem se davam conta.

125


126


DO LETREIRO

No fim das contas a vida acaba tendo esse não sei quê de mistério, essa inexplicável interrogação... É que nas portas dela lemos o aviso daquele letreiro que Dante enganado pôs no inferno: ―Deixai, ó vós que entrais, toda esperança‖ Mas a gente se esquece... se esquece de tudo Tão nova é a vida, tão quente o materno alento tantas as coisas e escasso o tempo E daí inventamos que a esperança É a última que morre Até que somos obrigados a voltar E revendo o letreiro Ficamos com cara de menino amarelo Cientes, mas contentes, por ao menos, e sobretudo, termos vivido.

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128


“Aplaudam, amigos, a comédia acabou”. LUDWIG VAN BEETHOVEN, no último instante.

“Wer nicht von dreitausend Jahren Sich weiss Rechenssachaft zu geben Bleib in Dunkeln unerfahren, Mag von Tag zu Tag leben” JOHANN WOLFGANG VON GOETHE.

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―Ah, Deus! Que burrice a tua... Ou não, né? Talvez toda essa comédia de enganos criada por Deus nada mais fosse que o clímax do gozo filosófico da divindade. Contradição, bem com mal, alegria com tristeza, preto no branco, tudo misturado! ”. MARIANO, O MARÍ, numa de suas reflexões filosóficas.

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Recife –– PE, Brasil, maio a julho de 2013.

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|POSFÁCIO Por Guto Stresser5.

HÁ CALOR em Comédia de Enganos. Há vida,

comédia

e

enganos.

De

bonequinha

porcelanada à morte que espreita no canto do quarto, encontro aqui uma reunião de verdades tão viscerais que esse posfácio terá, quem sabe, o condão

de

captá-las

e

deixar

que

fiquem

pendulando na memória de cada leitor. Mario alça pulos machadianos, vai do passado ao futuro, passa pelo presente, volta ao passado... Enfim, deságua num tempo particular, coerente. Cada conto é uma foz. 5

Escritor e ilustrador paranaense.

132


Cada estória escrita no mundo é um álbum de fotografias. Desde Morte e Vida e outros contos6, seu primeiro livro, suas estórias me são tão próximas! Leitura simples, proporções ideais. Seus calungas me parecem quase como vizinhos. Talvez cada calunga seja um pouco daquilo que sou, e aquilo que sou seja um pouco de cada calunga. E para me parecerem vizinhos, não é tão simples: precisam

cruzar

o

Brasil

e

desembocar

em

Curitiba, neste frio que não se sente em terras pernambucanas. A verdade é que este livro me confunde. Não sei, aqui, onde começo, como termino, de que jeito me

acho.

Como

fazem

as

melhores

e

mais

pontiagudas leituras, acho que entrei na estória, sou parte dela, sou enredo e clímax. Depois de lêlo,

andei

me

perdendo.

Francamente,

tenho

pensado em deixar de ser gente de carne e osso para virar um eterno calunga. Se for assim, até

6

Primeiro livro de contos de Mario Filipe Cavalcanti, no prelo pela Editora Universitária da UFPE. Teve seus contos ilustrados por Guto Stresser.

133


breve. Talvez vocês me encontrem no próximo livro de Mario.

Curitiba – PR, Brasil, agosto de 2013.

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|BIOGRAFIA RESUMIDA DO AUTOR

MARIO FILIPE CAVALCANTI (MARIO FILIPE CAVALCANTI DE SOUZA SANTOS) nasceu em 15 de janeiro de 1992 na cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco, Brasil. Escritor, tendo dado maior ênfase aos gêneros contos e poesia. Bacharelando em Direito na tradicional Faculdade de Direito do Recife, da Universidade Federal de Pernambuco. Estudou piano clássico na Escola de Artes do Recife. Prêmios: Foi vencedor de vários concursos literários no Brasil, como os de contos da Associação Nacional de Escritores (Brasília/DF, 2012), de contos ―Cidade das Asas‖ da Secretaria de Cultura do Município de Gavião Peixoto (São Paulo, 2013), Menção Honrosa no de poesia ―VIII Varal de poesia‖ da Faculdade Metropolitana de Maringá e Academia de Letras de Maringá (Paraná, 2013) e Semifinalista do Prêmio SESC de Literatura 2014 com a presente obra. Publicações: É participante de Antologias poéticas no Brasil 135


(IHGM, UFMA, 2013 – ―Mil poemas para Gonçalves Dias‖) e na Europa (Chiado Editora, Porto, Portugal, 2013 – ―IV Antologia de Poesia Contemporânea Entre o sono e o sonho‖). É colunista da Revista SAMIZDAT (editada em Madrid) e da revista eletrônica Página Cultural (editada em Minas Gerais). Autor dos livros ―Comédia de enganos‖ (Editora Penalux, 2013), livro Semifinalista no Prêmio SESC de Literatura 2014, ―Morte e vida e outros contos‖ e ―O circo‖ (Editora Universitária da UFPE, prelo). Tendo ainda mais três livros de contos e um de poesia, não publicados na integralidade. Publicou em edições impressas das revistas SAMIZDAT (nº. 39, 40, 41 e 42) e Varal do Brasil (Genebra, Suíça) e em edições online (9ª) da Revista Flaubert (contos) (7ª e 8ª) da Revista 7 faces (poesia), Natal/RN. Mantém o blog literário: www.mariofilipecavalcanti.blogspot.com.

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