Óbidos-Luz: Notes on a flash production Notas à volta de uma produção relâmpago: Óbidos-Luz
CORISCO E RESPLENDOR Coordenação
Mário Caeiro Philip Cabau
Includes booklet with text snapshots in English
Óbidos-Luz: Notes on a flash production Notas à volta de uma produção relâmpago: Óbidos Luz
CORISCO E RESPLENDOR
Óbidos-Luz: Notes on a flash production Notas à volta de uma produção relâmpago: Óbidos Luz
CORISCO E RESPLENDOR Coordenação
Mário Caeiro Philip Cabau Textos
Philip Cabau Mário Caeiro Rosa Quitério André Teles Includes booklet with text snapshots in English
O Livro Título
Corisco e Resplendor: Notas sobre uma produção relâmpago – Óbidos Luz Coordenação
Mário Caeiro e Philip Cabau Edição
Palavrão – Associação Cultural Produção editorial e paginação
Rosa Quitério Imagem na capa
Obra de Joachim Slugocki e Katarzyna Malejka., fotografia de Edgar Libório, cortesia Câmara Municipal de Óbidos Fotografias
Edgar Libório (cortesia Câmara Municipal de Óbidos), Felipe Ribeiro Referência
plv colecção insecto n.º3 Impressão: . Depósito legal: ????/??
isbn: 978-989-?????-?-?
1.ª edição Caldas da Rainha, Agosto 2014
www.palavrao.net info@palavrao.net Na presente obra, há autores que respeitam o novo Acordo Ortográfico e outros que não. Coisa de insectos…
Este evento não teria sido possível sem a colaboração das seguintes instituições
ÍNDICE
Em Óbidos, a Luz é uma paixão
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Mário Caeiro
Da projeção das sombras
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Philip Cabau
Logbook de uma produção relâmpago
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Rosa Quitério e André Teles
O evento em imagens
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Água-Viva – Plano estratégico cultural
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Mário Caeiro e Philip Cabau
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Óbidos-Luz foi um evento da Vila de Óbidos. Preparado, programado, produzido, apresentado e concluído em dois meses, Novembro e Dezembro de 2013, pela Palavrão – Associação Cultural, para a Óbidos Criativa e com o apoio da Culturproject. Um case-study relâmpago que inventou conceitos, afinou critérios, montou estruturas de produção e convocou artistas que vieram de seis países europeus. Foi um singular raid que envolveu diversas equipas, empenhadas, a trabalhar em esforço e coordenação para assegurar o sucesso do evento. Que este pequeno livro regista e testemunha. O ano de 2015 é, por decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Ano Internacional da Luz; um reconhecimento da importância das tecnologias associadas à luz na promoção do desenvolvimento sustentável e na busca de soluções para os desafios globais. 7
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EM ÓBIDOS, A LUZ É UMA PAIXÃO Mário Caeiro
A Luz é uma paixão que me assaltou em 2002, quando me apercebi que, por um lado, as cidades, em termos de iluminação, estão longe de oferecer uma experiência completa aos seus habitantes; e que, por outro, raramente integram as visões artísticas nos seus projectos de imagem. A arte contemporânea, em geral, já ocupa um espaço diminuto no imaginário colectivo, mas a arte da luz, em especial, está quase completamente ausente do ambiente urbano, sobretudo em países como Portugal com uma industrialização muito recente e generosamente contemplados com um Sol quase excessivo que, aliás, menosprezamos. Desde então parte da minha investigação-acção enquanto programador cultural consiste em integrar as tradições projectuais da arte, da arquitectura e da iluminação nocturna, sempre tentando acompanhar a evolução e/ou estabilização de determinadas tendências estéticas e artísticas, não menos que manter uma perspectiva cultural tanto quanto possível anacrónica, isto é, para além do tempo (ou, para ser mais claro, das modas). Neste percurso de descoberta considero incontornáveis – fundamentais – as experimentações clássicas de um certo minimalismo-lumière que hoje se vai actualizando ao ritmo de novas visões, atitudes e tecnologias. Estou a pensar nas múltiplas experimentações remotamente oriundas da arte conceptual, da instalação, da arte processual ou da land art nos anos 60 e 70, hoje tanto mais interessantes quanto formos sendo capazes as integrar em inovadoras perspectivas urbanísticas, ao nível de um modus operandi decisivo face à forma urbana. No limite e em suma existe hoje uma progressivamente afirmativa arte da luz, que vai encontrando formas diversas para se integrar no tecido urbano, no quadro de eventos, de intervenções arquitecturais, de instantes performativos. Nenhuma ocasião para afirmar esta cultura da luz pode ser deitada fora e assim aconteceu em Óbidos, no Natal de 2013. 9
OPERAR COM O LUGAR
Desde a Luzboa – Bienal Internacional da Luz em Lisboa (2004 e 2006) tenho tido a oportunidade de programar continuamente acontecimentos urbanos na esfera de ‘arte da luz’, seja em Tallinn, na Estónia, ou Durham, no Reino Unido e, com regularidade anual desde 2009, em Torun, na Polónia. Creio que foi esta perspectiva curatorial ‘mão na massa’, bem como o meu interesse em conceber a luz a partir da mobilidade táctica da arte contemporânea, que levou Óbidos e convidar-me para ensaiar um evento-acontecimento para a Vila. Reconheci no convite um desafio para a sua integração numa dinâmica internacional.
A este desafio respondi de imediato, estabelecendo com Philip Cabau, meu colega de docência na ESAD.cr e arquitecto, uma parceria para o desenvolvimento do projecto capaz de conferir a esta acção em Óbidos um carácter particular – uma identidade – no seio da rede internacional da Luz. Essa identidade radicar-se-ia num entendimento sistémico e propriamente territorial da acção – e que viria a consubstancializar-se no Plano Cultural ‘Água Viva’. Em todo o caso, programar intervenções de arte urbana em torno ou a partir do tema da luz implica desde logo problematizar a cultura da luz local, na qual as obras se irão inserir. Ou seja, implica prestar atenção ao meio urbano e suas formas – ver mais à frente o texto de Philip Cabau, que explicita o âmago desta problemática definindo algumas regras essenciais do jogo da arte da luz urbana –, não menos que à ocasião, que 10
Integração numa dinâmica internacional
Het Pakt em Lisboa (2006), Kortrijk (2012) e Torun (2014).
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já tem a ver com o problema da oportunidade do momento, da gestão dos meios disponíveis e a disponibilizar, em resumo, do kairos em toda a sua multidimensionalidade. Isto implica simultaneamente uma generosidade específica (durante a preparação e a produção de qualquer projecto from scratch), bem como uma vigilância particulares (relativamente à complexa articulação que há que fazer-se entre o desejo original dos artistas (as suas ‘ideias’) e o(s) ‘projecto(s)’ de luz propriamente dito(s), o que resulta sempre de complicadas negociações e compromissos, uma vez que estamos a falar de intervenções urbanas no espaço público. Por outras palavras, na curadoria do objecto de luz urbana, conforme a realizámos em Óbidos, procurei começar por estar atento às vias para articular a vontade artística – nem sempre fácil ou desejável de comunicar antecipadamente, uma vez que a arte nunca deixa de ter a sua sombra (Perniola) – com os meios e tempo disponíveis (colocados à disposição pela organização e a produção). Tal começa sempre na capacidade que o espaço e o lugar possuem para albergar as obras em si, isto é, de o contexto, nas suas múltiplas dimensões, reagir favoravelmente à intromissão do objecto artístico. Óbidos, em Dezembro de 2013, foi um palco particularmente privilegiado para ensaiar estas questões, palco esse aberto por uma visão institucional e política que nos ‘abriu a porta’ para conquistar aquelas muralhas – pelo menos durante um mês. Um princípio-chave na curadoria de arte pública é, de resto, o de ser essencial laborar-se no seio de uma visão global que enquadre as acções não apenas enquanto conjunto de entidades discretas, pedaços de cidade, mas sobretudo como outcomes efémeros de uma atitude projectual transversal que através deles se revela. O plano Água Viva, nestes termos, apenas revelou uma parte ínfima da sua potencialidade. Contudo, ela reconhece-se já no Óbidos Luz, num par de pormenores cruciais, como por exemplo o modo como as luminárias e os projectores foram pensados: pormenores técnicos realizados pela equipa da Visual Stimuli para a Praça de Santa Maria; ou no desenho original de uma Torre de Projecção, integralmente realizada em madeira pelas Carpintarias da Câmara Municipal – a partir de um projecto de Philip Cabau. 12
Este tipo de subtilezas, longe do espectáculo que não deixa de ser esperado, mostraram que um evento de Luz e de Noite não deixa de pensar a sua relação com a paisagem diurna assumindo preocupações da ordem do craft e do detalhe construtivo que, na verdade, ‘desaparecem’ quando as luzes se acendem. ÓBIDOS LUZ? ÓBIDOS-RELÂMPAGO
Em Óbidos, o inventio da curadoria, que tinha de se concretizar em escassos dias para dar lugar ao processo de produção executiva, começou desde logo com a própria participação na já referida visão estrutural de síntese com carácter urbanístico. O Plano Cultural ‘Água Viva’ foi a base – conceptual e propriamente física (leitura global do terreno) – sobre a qual haveria de assentar a linguagem mais efémera e táctica das intervenções do programa e destas enquanto conjunto legível. Tenho para mim que o meio urbano é já um discurso. Em Óbidos, este é o de uma evidente monumentalização ou historicização de uma imagem-experiência, com forte vocação turística. Ora, sobre esse discurso, a arte vai criar momentos específicos, manipulando a matéria urbana no sentido da criação de pequenos (nem sempre tão pequenos quanto isso…) momentos urbanos. O conceito advém de Henri Lefèbvre, e por ora retenha-se o essencial: sem estes momentos, a cidade, o lugar, são amorfas massas de entorno que não conseguem tornar-se factores de comunicação genuína – e que incluí uma componente profundamente sócio-cultural. Dito isto, em que consistiu a operação curatorial Óbidos-Luz? Um curador trabalha com possibilidades, opções. Imagina cenários, nos quais os actores serão as peças na sua relação com o contexto. Evoca artistas com os quais seja estimulante estabelecer uma colaboração que enriqueça a sua própria noção do contexto, entretanto informada pela equipa que faz acontecer a acção como um todo cultural – no caso, a equipa multidisciplinar e transversalmente empenhada da Associação Cultural Palavrão.
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Dada a oportunidade específica que Óbidos ofereceu – a possibilidade de realização de um evento original, potencialmente inovador e consequentemente passível de se tornar regular, para já no seio da marca ‘Vila Natal’ –, havia que promover-se uma dimensão simultaneamente artística e pedagógica e, porventura, propedêutica. Havia que explicitar as diversas possibilidades da luz na paisagem e no quotidiano de Óbidos, promovendo momentos experimentais e críticos, mas também celebratórios e identitários, reconhecíveis pela comunidade como válidos para o seu futuro imediato; ao limite, deveriam ser capazes de articular os mundos da arte contemporânea e da programação cultural em sentido lato, no quadro de um urbanismo cultural, integrando preocupações na gestão de uma imagem urbana ancorada em estratégias turísticas incontornáveis, até pelo peso económico que têm. Apareceram assim naturalmente, em Óbidos, várias visões da arte. Várias propostas que passo agora a revisitar do ponto de vista do seu papel numa narrativa curatorial. Em primeiro lugar, veja-se a proposta dos Hetpakt, um colectivo de criadores belga, que previamente apresentei em Lisboa (2006) e Torun, Polónia (2011, 2012 e 2014). Os Hetpakt são um combo particularmente oleado no que toca a ‘tomar conta’ de um espaço através de intervenções dialógicas e interactivas, caracterizadas por um humor e sensibilidade absolutamente particulares. Lieven Neirinck e companhia trouxeram seis tendas iluminadas a partir do interior, instaladas num ponto alto da vila – o Campo da Bola –, num acampamento de aparente fragilidade – afinal, o material das tendas era o plástico translúcido – que apelava ao transeunte convocando-o para uma interacção extremamente directa (what you see is what you get), mas ao mesmo tempo altamente evocativa, isto é, poética. Através de gestos simples como subir a um pedestal para de repente recebermos uma ovação gravada, activada pela nossa ‘coragem’ em participar; ou de, ‘entrando no jogo’, apertar a mão a um actor – supostamente… o melhor apertador de mãos do mundo –, o espectador é arrancado ao quotidiano e lançado para um universo de ilusão capaz de estimular 14
os sentidos e, acima de tudo, a totalidade social como extensão do humano em relação. Trata-se, sublinhe-se, de um humano em aberto, em que a ternura dos gestos é tintada por uma ironia amarga (talvez um traço profundo da cultura flamenga). Esta dimensão de contacto intersubjectivo, na realidade sempre imprevisível, é um aspecto crucial dos eventos urbanos que aspirem ao carácter de encontro, capazes de substituir o kitsch natalício por genuínas formas de espiritualidade. Katarzyna Malejka e Joachim Slugocki trouxeram algo de completamente diferente. São um duo de artistas polacos (que separada- ou conjuntamente apresentei em Torun, em 2010, 2011 e 2013). Ao contrário dos Hetpakt, são muito jovens; mas tal como os Hetpakt, trabalham em equipa e em regime laboratorial, empenhando-se num agudo senso do lugar quando realizam as suas intervenções. Mas onde os Hetpakt trabalham com formas culturais vernaculares – um acampamento de desejos que se desenrola como universo de imagens audiovisuais teatral ou cinemático, assentando em narrativas que estimulam situações conviviais – Kasia e Joachim representam uma atitude de depuração visual extrema, radical mesmo, reduzindo a sua intervenção a uma interrupção gráfica na paisagem, através da colocação de tiras de material têxtil fluorescente. A peça – versão duotone da apresentada na última edição do Festival Bella Skyway – chegou a Óbidos na sequência de uma investigação profunda de ambos no domínio da óptica – no caso de Joachim, sobretudo em torno da cor fluorescente na pintura; no caso de Malejka, sobre a imagem dinâmica a partir de tecnologia video. Conjugando as suas visões, o resultado é sempre uma espécie de maximalismo, pois a singeleza das formas e materiais, enquanto geometrias variáveis de uma op-art povera, transmutam o lugar numa vibrante cena de cor – e aliás, também de som, pois com a brisa a peça ganhava uma dimensão cinética e sonora evidente –, fazendo acontecer, no momento urbano — no caso, uma das principais portas da vila – o próprio esforço de percepção tout-court, que acontece num plano extremamente individual do percurso do espectador. 15
Em qualquer evento, este tipo de peça desempenha um reduto óptico, em que a arte resiste às tentações da iconografia para se restringir à mais discreta das alterações de uma determinada geometria energética de um espaço. Como aconteceu com os Hetpakt, Malejka e Slugocki souberam reagir, no seio da sua linguagem, à proposta de sítios por nós – equipa – previamente estudados como sendo os mais adequados a albergar as suas obras. Foi teamwork e total trust à séria, que acontece porque felizmente já tínhamos tido a oportunidade de trabalhar juntos antes, afinando mecanismos de cooperação. Aqui avanço um factor importante para o sucesso do projecto de curadoria: o respeito dos artistas pelas prioridades culturais de um conceito alia-se ao do curador pela investigação pessoal dos criadores – esta inefável proficiência colaborativa é a essência da qualidade. Vejamos como ela se concretizaria nos restantes artistas conviados. Na economia curatorial do evento, o convite a Alessandro Lupi para participar representou, antes do mais, uma homenagem ao engenho conceptual e plástico; e, num segundo momento, não menos a assumpção da importância da arte como campo e regime operativo. Porque onde Heptakt são de certa forma outsiders do sistema da arte (são essencialmente uma equipa de artistas amadores, que se reúnem pontualmente para cada projecto, nisso residindo aliás a sua irreverente paixão), provocando-o com o seu circo de emoções em estado puro (longe do cinismo de corte reinante); e onde Malejka e Joachim são, de certa forma, aspirantes a artistas – no sentido de que ainda estão às portas do sistema, procurando atingir a velocidade de cruzeiro que lhes permita trabalhar com mais regularidade a nível internacional –, Lupi é um artista com uma carreira individual regular e sólida, permanentemente levando mais longe as suas experimentações, que encontram com facilidade venues para o seu reconhecimento. Para tal contribui o facto deste, sendo italiano, ter como base de operações Berlim, um dos centros mundiais da arte. Ora Lupi – que por outro lado não deixa de ser um artista ainda de certa forma emergente, à beira de um reconhecimento ainda mais inequívoco – foi convidado 16
sobretudo pela sua capacidade de interpretar questões ancestrais (a relação Arte/Natureza, antes de qualquer outra), um entendimento filosófico da obra de arte claramente informada por uma Cultura Humanista que urge actualizar, e finalmente uma técnica artesanal regularmente testada para criar situações sempre com surpreendente pendor cognitivo. Lupi coloca em cada nova obra a responsabilidade de constituir um novo patamar de consciência num percurso que poderíamos dizer é próximo do da investigação científica. Em Óbidos, o italiano teve oportunidade para realizar duas intervenções distintas: uma delas, a instalação de uma obra de arte (Tree), a outra a realização de uma intervenção desenvolvida e decidida in situ, em regime de residência (Arcos). Em ambas as situações criadas – criadas deliberadamente para explicitar a diferença, ao nível da densidade do exercício, entre uma obra (de arte) e um ensaio (artístico) –, o seu trabalho realiza com precisão algo de muito especial: uma subtil bricolage da percepção que organiza o desajuste entre a expectativa do acontecimento plástico e o assunto ele mesmo. Com efeito, a incontornável condição experiencial que caracteriza os seus trabalhos conduz o espectador a uma exploração inteligente das fronteiras que habitualmente distinguem intervenção activa e contemplação (do texto de apresentação da sua obra Light Curve, na recente Bienal de Aquitectura de Veneza de 2014). Ora, com efeito, e para continuar a citação do texto que fizémos para a intervenção de Veneza no Palazzo Bembro, não se trata aqui de uma dialéctica, mas de uma atenção dialogante e elíptica – entre a arquitectura e a intervenção plástica, entre a tecnologia e o gesto, entre o fazer artístico e a história de arte. Atravessados por um humor crítico, os trabalhos de Alessandro Lupi caracterizam-se por uma simplicidade técnica desconcertante. Em suma e nas palavras de Philip Cabau, “Não se trata de iluminar, mas de criar lugares de sombra significante”. É deste modo que o desenho, a experiência do próprio espaço como desenho, se torna assim mecanismo para uma rara percepção do momento como algo de pessoal e único e, ao mesmo tempo, partilhável socialmente, como magia. Esta aconteceu nos arcos da muralha e numa parede junto a uma fonte, e portanto com a arte a comentar, frágil mas decididamente, a matéria mais ‘dura’ da urbe, as suas paredes. 17
Nos objectivos do Evento, a questão de como dar uma imagem contemporânea e original da cidade passou depois pela criação de uma imagem forte na/da Igreja de Santiago, um dos icones arquitectónicos da região. Dado que a tendência video-mapping se tem vindo a constatar como incontornável no seio da cultura da luz, optei por convidar os húngaros Limelight, colectivo de artistas que é dos mais consagrados a nível mundial no que diz respeito ao video-mapping sobre fachadas.
Conscientes de que representam uma fatia importante de qualquer orçamento, artistas desta natureza procuram sempre que a nova obra – quase sempre taylor-made – seja capaz de fazer um compromisso evidente entre narrativas locais (no caso, o ancestral mito religioso de Santa Luzia, tanto quanto o novo mito de Óbidos como foco de eventos ao nível original). Na prática, a Luz é aqui uma emanação grafo-visual dinâmica, empenhada em transformar a fachada do edifício num tela, que por assim dizer ‘acelera’ a cidade (o monumento, no caso a Igreja) com as suas pequenas sequências narrativas articuladas (em torno de uma imaginário reconhecível pela população local), mas ao mesmo tempo ‘abranda’ a cultura visual do cinema e da publicidade com um senso de 18
Uma emanação grafo-visual dinâmica
Intervenções de Limelight e Ocubo em Torun, Polónia e de Simeon Nelson (em colaboração com Nick Rothwell e Rob Goodman, em Durham.
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delicada integração arquitectural: nos Limelight, em Óbidos, a ideia foi a de cobrir a fachada com um revestimento audiovisual espectacular, que colocasse a imagem de Óbidos num plano internacional, já que no mapping o que está em causa é não apenas a experiência local da arquitectura em movimento, mas também a disseminação dessas imagens no âmbito da competição entre cidades por notoriedade (marketing urbano). Esta construção teria de ser realizada partindo do imaginário de Santa Luzia, venerada localmente e entre cujos atributos – coincidências!… – se encontram os olhos (Luzia é a santa dos invisuais). Finalmente, ao nível da implantação, a Igreja de Santiago seria naturalmente o ‘ponto alto’ de qualquer percurso pedonal, e enquanto tal decidimos assumir que aí teria de estar uma peça assumidamentemais mainstream, qual marco nocturno, não apenas para quem percorresse a Rua Direita (virtualmente toda a gente) mas também para quem passasse a maior distância. Ainda em relação à opção pelos Limelight, importa notar que representam o lado mais festivo e celebratório de uma cultura visual que, nas suas margens, por vezes opta por criar momentos de certa forma já contravisuais, igualmente impactantes ao nível da escala e da integração do arquitectural, mas que num contexto de Natal seriam manifestamente desadequadas. Tais outras projecções de luz sobre fachadas não deixam de ser um mecanismo particularmente preciso de confluência entre uma política urbana da luz mais ecológica e uma dimensão de resistência artística empenhada numa crítica dos dispositivos. Se a cidade se faz de espectáculo dinâmico e ilusão cinemática, ela também acontece numa não menor escala enquanto ambiente e atmosfera. Ora a luz-ambiente é um factor-chave numa percepção subtil da forma urbana, e isto é tanto mais crucial num espaço como Óbidos, cujo carácter de pequena pérola arquitectónica e urbanística é por demais evidente. Haveria portanto que convidar o design e em particular o design de luz a integrar a dinâmica de transfiguração artística da noite em que consistia todo este projecto. No caso, o design de ambientes tenderia a 20
prevalecer uma imagem de conjunto, a conseguir através da gestão de pontos de luz, de atmosferas de cor, e sobretudo do reforçar de linhas e planos dos edifícios, isto, do dar ritmo e profundidade à experiência de percorrer o espaço. Tudo isto, se possível, acompanhado de um momento mais directamente participativo, convidando-se a população local e acompanhar um workshop de iluminação realizado com material de iluminação adquirido pela organização e que entretanto se tornou propriedade da própria comunidade. Os responsáveis convidados a interpretar estas duas problemáticas foram a Visual Stimuli, equipa de designers e arquitectos portuguesa constituída por Pedro Ek Lopes, Rute Delgado e Alexandre Neto, que convidei porque precisamente previamente haviam realizado comigo um importante projecto-luz para contexto museológico. O resultado do seu trabalho, sendo menos espectacular ou até ‘visível’, é importante ao nível de uma gestão lumínica que possa progressivamente caracterizar o espaço nocturno de Óbidos, no sentido de uma luz urbana de qualidade, delicadamente controlada. É um trabalho que educa a comunidade para uma luz urbana mais responsável. Chegamos assim ao fim do ‘percurso’, ou do ‘programa’, com a convicção de que, na curadoria, o que faz acontecer a arte na cidade é a confiança e generosidade depositadas na dinâmica criada entre a Equipa de Coordenação – no caso, a Palavrão e os funcionários da Câmara Municipal de Óbidos e da Óbidos Criativa – e os artistas convidados. No caso de Óbidos, a questão-chave foi ter de se desenvolver tudo isto numa operação-relâmpago, para mais focada em gerir expectativas – a Luz gera sempre muita expectativa, por exemplo junto dos políticos, bem como da população, e ao mínimo deslize, dada a sua aparente não-necessidade, torna-se facilmente ‘descartável’… – e, ao mesmo tempo, gerar massa crítica – por exemplo, tornando Óbidos num novo player, nacional mas também, quiçá, internacional, capaz de estimular a aproximação de novos parceiros, com destaque para a ESAD.cr, principal instituição de ensino da zona, reconhecida internacionalmente. 21
Ora, nestes termos, a operação curatorial consistiu em garantir que as obras surgissem claramente como aspectos complementares do que pode ser a luz e a arte na cidade; e, ao mesmo tempo, que tivessem a capacidade de inscrever hipóteses ao nível de uma cultura da luz que, a nível regional, é inexistente. Mais, que pudessem permanecer na memória do lugar como memória do futuro desse mesmo lugar. E finalmente, que cada obra pudesse representar um aspecto específico do discurso actual da luz urbana. Em conclusão, um evento-relâmpago que se queira furtar à ‘espuma dos dias’ – às flutuações da moda – deve antes do mais partir de um conceito ou estrutura ou modelo de que constitui por um lado a expressão e, por outro a acção exemplar. Depois, deve convocar saberes e seus agentes – no caso, os queridos artistas que sabiam estar a embarcar num pequena aventura em alguns momentos quase sem rede – de uma forma que os torne cúmplices de uma visão de conjunto motivadora, mobilizadora. Finalmente deve conter em si o germen de futuras reflexões, úteis para novas edições do mesmo conceito ou até outras experiências noutros lugares. Creio que esta estratégia gera a sua própria posteridade, operativa e exemplarmente, e é disso que esta pequena publicação procura dar conta, acompanhando a componente curatorial (motor de arranque) de componentes de reflexão intelectual (plano de investigação, sob a forma de ensaio) e teórico-prática (plano de reflexão sobre a produção executiva da acção, a posteriori). Mais... e para que conste: a selecção final dos artistas para um evento creio que deve decorrer no quadro de uma opção de base: trabalhar-se apenas com profissionais com comprovada capacidade de resposta, isto é, experiência e domínio – craft – da sua linguagem. Cada artista tem de ser, desde o primeiro momento, extremamente claro nos meios necessários para a sua acção (por forma mobilizar-se a parceria com a Organização da melhor maneira) e deverá ser capaz de realizar em escassos dias, senão horas, naturalmente in situ, a sua visão. A realidade muitas vezes desmente voluntarismos, e de outras vezes confirma opções 22
tomadas; uma coisa é certa: há sempre surpresas, boas e más – sendo que as más são as melhores porque aquelas em que todos aprendemos o que não fazer no futuro. Nestes termos, a responsabilidade do curador não se esgotou na escolha dos ‘jogadores’ ou sequer nalguma ‘táctica’ comunicada para o relvado (a Vila de Óbidos); ela teve de fazer com que todas as experiências no terreno constituíssem contributos complementares uns dos outros, para uma cidade mais luminosa, já depois de o evento terminar. Penso que é isto que pedimos a este livro, o comunicar desta visão entretanto realizada pela Palavrão. E por isso fico contente de aqui registar que, neste Evento, a verdade é que aprendemos muito. Ainda assim não tanto que nos impedisse de olhar para os resultados com orgulho, como algo de excepcional aos mais variados níveis: qualidade dos objectos artísticos, das experiências estéticas e da acção pedagógica e, last but not the least, de uma experiência de produção cultural relâmpago. Uma palavra final para a Presidência do Município, na pessoa de Humberto Marques, e a vereação da cultura, na pessoa de Celeste Afonso. De certa forma, são eles os verdadeiros ‘curadores’ deste acontecimento, tendo-me escolhido e à Palavrão para uma acção urbana tão intensa quanto incisiva. Toda a equipa de Óbidos, dos carpinteiros e electricistas ao pessoal do marketing e da produção propriamente dita, estão de parabéns, já que foram capazes de integrar os nossos – os ‘agentes infiltrados’ Rosa Quitério e André Teles – num quotidiano já de si cheio de afazeres, em nome desta nóvel paixão: a Luz.
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HET PAKT Miradouro ‘Jogo da Bola’
Porta da Vila
ALESSANDRO LUPI Arcos góticos, muralha nascente WORKSHOP AULAS ABERTAS Capela de S. Martinho JOACHIM SLUGOCKI E KATARZYNA MALEJKA Porta nascente da vila
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LIMELIGHT Fachada da Igreja de Santiago
VISUAL STIMULI Praça de Santa Maria
ALESSANDRO LUPI Traseira das escadas da Igreja de Santa Maria
Planta da implantação do evento Óbidos-Luz, Óbidos 2013
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DA PROJEÇÃO DAS SOMBRAS UM LABORATÓRIO DE LUZ E DESENHOS NOTURNOS Philip Cabau
AS PERCEPÇÕES
Ouve-se muito a palavra desenho quando se trata do espaço público. Desenho urbano, o desenho do espaço, um parque bem desenhado ou um bairro mal desenhado, etc. são algumas das expressões frequentemente convocadas por políticos, historiadores, urbanistas, arquitetos, designers, antropólogos, sociólogos, jornalistas com o intuito de caracterizar qualitativamente a cidade. Apesar dos significados apontarem geralmente para a ideia de projeto, remetendo para a origem italiana do termo, disegno, ou adotando o inglês design, os usos que se fazem da palavra desenho são tantos que cedo ela se torna apenas uma metáfora para evocar clareza, intencionalidade, ordem ou estrutura perdendo-se, no processo, o significado intrínseco do ato de desenhar, que remete para o acontecimento de uma inscrição sobre uma superfície. A pluralidade e os desvios são uma parte fundamental da fertilidade das próprias palavras e da sua complexa genealogia. Neste caso, todavia, a inflexão compromete ou tende a obliterar a própria dimensão processual que o desenho encerra e que é tão importante para compreender a sua relevância na produção, pensamento e perceção das imagens. Consequentemente, perdem-se também os conteúdos que o sustentam – procedimento, exploração, pensamento visual em ação – e que, nestes desvios, são substituídos por outros, mais abstratos e agora associados ao resultado final propriamente dito, ao produto. Um dos territórios onde a palavra desenho se veio fixar foi, precisamente, nos projetos da luz, onde a expressão Desenho de Luz aponta para o estádio final de uma intervenção. Mesmo a denominação mais transnacional de Design de Luz sugere uma maior incidência sobre a dimensão processual da operação. Tentaremos abordar aqui algumas das questões associadas ao desenho da luz, por forma a nos aproximarmos 27
das problemáticas que envolvem a luz e a sombra – relação esta que está no centro da problematização e prática do desenho da luz no espaço urbano noturno – e que caracterizaram o conjunto das obras, instalações e ações do evento Óbidos Luz. Em contraste com o que é habitual na apresentação de obras de arte no espaço público, todas estas foram concebidas para serem experienciadas à noite. A sua perceção depende aqui de uma definição rigorosa das condições de visibilidade que sustentam a sua própria existência: a luz noturna. Tal como acontece com as outras para a luz diurna, estas ponderaram as circunstâncias de visibilidade noturna. Mas, mais que isso, elas emanam de uma problematização sobre as condições precisas da sua apresentação. Há assim, na abordagem aqui proposta, uma intenção explícita: a de explorar as correspondências que se verificam entre a linha e a representação (e a perceção) diurna e, alternativamente, entre a mancha e a representação (e a perceção) noturna. Pretende-se, consequentemente, abordar o modo como as imagens construídas a partir da linha configuram – quando confrontadas com aquelas outras construídas a partir da mancha – perceções, sensações visuais e experiências concretas do espaço urbano. Cada uma das peças apresentadas no Óbidos Luz equacionou, a seu modo, esta problemática; muito particularmente as instalações artísticas de Alessandro Lupi e de Joachim Slugocki (com Katarzyna Malejka), que incidiam diretamente no léxico da luz na sua estreita articulação com as sombras. Estas dualidades, luz/ sombra e linha/mancha, que são noções fundamentais ao desenho e à ação de desenhar, servem-nos aqui para pensar as questões à volta da perceção da luz e da sombra que sustentaram as diversas intervenções no espaço urbano de Óbidos. A perceção da cidade do século xx foi, em grande parte, monopolizada pelo olhar e pelas ferramentas dos arquitectos. O modelo urbano e o funcionamento da cidade europeia oitocentista manteve a sua hegemonia até meados do século xx. É assim natural que tenham sido os critérios da arquitetura a dominar a perceção e a determinar o que importava afirmar, recusar ou consensualizar na construção do 28
espaço urbano.1 Esta realidade veio definir um paradigma que só recentemente foi posto em causa. Filhos do Iluminismo, os arquitetos pensam à luz do dia e pensam através da linha. Não poderia ser doutro modo, pois as ferramentas do seu ofício são a ordem e a medida do espaço e, sobretudo a presença da gravidade. Esta última é, aliás, a regra da qual não é possível a arquitetura abstrair-se – mesmo considerando muita da arquitetura contemporânea que o “Poema do Ângulo Reto”, de Le Corbusier, de 1955, configurava uma insustentável tirania. Mas é ele, o ângulo reto, que define a aresta que resulta do encontro dos planos erguidos a partir do chão, a manifestação mesma da linha arquitectónica. A arquitetura tende, para além do mais, a conceber o espaço para vivências exclusivamente diurnas, ficando a noite remetida aos quartos de dormir e aos decoradores. O que significa, em suma, que para ela as problemáticas do espaço noturno não constituem uma prioridade. Essas são mais adequadas a outros territórios e perceções. Quando dizemos que o dia se opõe à noite, não estamos a falar apenas de gradações de luz, pois não se trata só de um decréscimo das condições da visibilidade: é o próprio dispositivo da perceção que se altera radicalmente. Até aqui, na Europa contemporânea, um dos espaços planetários com maior intensidade lumínica nocturna, temos bem noção que a luz solar não é comparável a qualquer fonte de iluminação produzida pelo homem. Basta pensar no extremo desconforto que sentimos quando, à noite, nos cruzamos com um automóvel que circula com os faróis nos máximos... e em como, à luz do dia, essa mesma situação nos é quase indiferente. Não é apenas o impacto luminoso que é distintamente menor (insignificante sob a luz do sol) mas é a própria experiência da luz que é outra e, consequentemente, outra a representação que dela se faz. Mesmo neste paradigma digital e profundamente sustentado por dispositivos protéticos de apoio à perceção, a noite é ainda noite e o dia, dia. O dia é claro e a noite escura. Mesmo a expressão paradoxal “I want to wake up in that city that never sleeps” da canção que Lisa Minnelli cantava no filme New York, New York, de Martin Scorcese assume esta distinção. Esta ideia da grande metrópole como uma ‘cidade que nunca dorme’, uma imagem que durante mais de um 29
século caracterizou os ritmos efetivamente cosmopolitas da urbe, é originária das grandes cidades europeias da segunda metade do século xix, particularmente Paris, e emigrou para os EUA nos começos do século xx. Hoje não temos como fugir a ela, pois com a profusão das megápolis num planeta com mais de sete biliões de pessoas conectado em tempo real, a expressão perdeu o seu sentido. Contudo, mesmo na era da globalização – um convívio permanente com as luzes do planeta inteiro – a oposição entre dia e noite subsiste ainda como uma categoria que permite aceder e compreender os acontecimentos que caracterizam o espaço público enquanto espaço singular e distinto dos demais; um espaço a compreender e proteger.
DELINEAR E ASSOMBRAR
Mesmo o dia mais nublado parece radioso se comparado com a noite que o precedeu. A nossa perceção diurna é construída sobre uma vasta cartografia de vetores que estabelecem uma rede muito complexa de referências visuais 2. As linhas assumem um lugar preponderante pois são elas que nos permitem identificar os limites de uma figura ou calcular as posições relativas das coisas e a nossa em relação a elas. Mesmo quando a luz do pino do Verão destrói os meios tons eliminando, nesse excesso, muita da informação visual e reduzindo as imagens a linhas de contorno entre manchas brancas e negras, é ainda a linha que nos indica o cálculo das extensões entre as coisas.3 A linha é sempre ostensiva: ela mostra um caminho, tal como o gesto do dedo que segue, no mapa, uma sequência de pontos indicando um trilho. Contudo, no espaço real, esse gesto é mais complexo, pois o dedo que aponta indica agora um movimento que se (re)produz e só na distância pode ser confirmado, pois o ser humano, ao contrário dos outros animais – que se fixam exclusivamente no movimento do próprio dedo – lê a projeção da linha indicada por esse gesto até ao lugar da sua intercepção com o obstáculo que, no destino, vem obstruir essa linha. É como se o olhar acompanhasse o movimento de um feixe de luz concentrada 30
no plano do seu barramento físico: essa linha é definida pelo gesto, escolhendo pontos e definindo (inventando) as ligações entre esses pontos, sua energia e intensidades. Movimentos que são sempre linhas, que contornam, ligam, interceptam, organizam. E, para poderem ser percebidas ou registadas, essas linhas precisam de um suporte neutro, de uma superfície ou campo visual na qual se inscrevam. Ou seja, exigem certas condições prévias de visibilidade. Podemos neste sentido dizer que o desenho trata de um ponto que se move e que ao fazê-lo inscreve esse movimento sobre uma superfície. A linha seria, neste sentido, o instrumento natural da comunicação visual, sua apresentação e re(a)presentação, um procedimento que ao escolher caminhos resgata a superfície da sua neutralidade. Também na leitura do espaço o movimento do olhar que percorre o campo visual à sua frente, medindo e estabelecendo topologias e relações, confirma que a perceção espacial diurna assenta sobre a linha. Aqui é nas próprias linhas e não no espaço entre elas que a informação se acumula, que se sustenta a perceção. A transmissão da experiência espacial da visão é reavivada (e revivida) sobre a superfície que regista essa mesma experiência. Podemos, neste sentido, dizer que a luz uniforme do dia é, nas arestas da cidade, o meio natural da linha. Como lembra Giuseppe Di Napoli A linha assemelha-se ao pensamento, não às coisas. (...) A linha que desenha o mundo não pertence a este mundo; pertence ao mundo das ideias, dos conceitos e das abstrações (não devíamos aqui falar de suporte, mas sim de plano). (...) Quando desenhamos uma linha numa folha o que recebe a inscrição não é o suporte matérico do papel, mas o branco da superfície.
Sendo a noite naturalmente distinta do dia – pois não só há menos informação visual, mas também menos distrações – o espaço do acontecimento noturno é mais circunscrito e a experiência da atenção depende de condições distintas. O seu palco não é já, como acontece com a linha, uma rede tridimensional de superfícies topologicamente estruturadas por posições relativas e que conseguem, no fim da construção, ser lidas, descritas e contadas. A perceção que caracteriza a escuridão e a noite 31
proporciona antes a abertura de uma singularidade no interior (quase no sentido literal) de um espaço saturado – que parece, muitas vezes, incapaz de suportar mais inscrições. Podemos então dizer que a unidade fundamental da perceção noturna é, não a linha, mas a mancha – que se configura como a entidade visual ajustada às condições da noite. Podemos verificar uma relação estreita entre mancha a sombra pois nas sombras a forma não se manifesta pelos seus contornos, mas através das suas margens. Isto pressupõe uma imersão do observador no processo da própria perceção, a aceitação de uma grandeza que implica o corpo do observador. Até porque na escuridão, pelo simples facto de nos faltarem referências para a leitura topológica do espaço e das formas, a experiência do olhar obriga a uma atenção que toma integralmente conta do espaço entre o observador e o objeto. A disponibilidade para a experiência percetiva depende aqui diretamente da capacidade para aceitar fragilidades4. Essa distância entre linha e mancha é caracterizada por Di Napoli nos seguintes termos: O desenho linear de contorno pressupõe a projeção de um pensamento claro, de uma forma projetada e resultante de um ato de vontade e de potência imposto do exterior em direção ao interior e cujo sucesso é aquele de delimitar, juntar e separar; enquanto que o desenho a mancha, que se inicia num estado de imaginação material, mais matérico e mais fluído, procedendo do interior para o exterior. A mancha, matéria informe no estado líquido, em virtude das suas primordiais ressonâncias, leva naturalmente o desenho ao estado fluído das emoções e das sensações.5
Sendo a linha particularmente vocacionada para fixar os planos de conceptualização na aparência das coisas e demonstrando ela, nesse processo, uma invulgar autorreflexividade – essa espécie de segundo grau que a distancia da fisicalidade dos corpos e da sua presença é o que a torna tão diversificada e tão complexa – é com se ela não chegasse a alcançar a materialidade das coisas. Enquanto que na sua natureza ostensiva e declaratória, a linha segue as arestas que vai identificando e determina os caminhos que pretende legitimar, a mancha tacteia e reproduz sensações, fragmentadas, momentos cruciais para a compreensão do que acabou de atravessar. É, ao mesmo tempo, exata e claudi32
cante e está percetivamente associada ao limbo percetivo que precede as formas. Ela sustenta-se sobre a materialidade do visível. A primeira, a linha, apresenta uma cartografia, um quadro topológico, enquanto que a outra, a mancha, ensaia um testemunho. A linha diurna precede o mundo sensível enquanto que a mancha noturna lhe sucede. Ao contrário da linha, que percorre os mapas do espaço, a mancha funciona como que por subtração – mesmo quando ela recobre inscrições já existentes ou toma conta do vazio de uma superfície. Espacialmente está sempre aquém ou além da superfície, seja esta uma folha ou um campo de visibilidade no espaço; a mancha produz uma espécie de portal infligido sobre o real. Pode-se por isso dizer que a mancha (...) é aquilo que desestrutura a visão, porque o que diferencia uma mancha isolada de todas as outras resulta mais da sua unicidade do que da sua singularidade visual. (...) A mancha, para além do facto de não possuir estabilidade, não possui sequer uma estrutura. É em virtude dessa sua natureza de “forma a-estruturada” que ela se consegue furtar ao processo mesmo da codificação visual. (Giuseppe Di Napoli, 365).
Contudo quando falamos de imagens da sombra, falamos naturalmente também de luz, pois (...) na obscuridade das trevas é a luz a manifestar-se visível como corpo luminoso ou como fonte iluminante.6
UMA REDE LUMINOSA
Na tentativa de apresentar algumas das correspondências que existem entre o desenho e o espaço, entre a natureza da nossa percepção espacial e a construção das experiências visuais no espaço urbano, seguiremos um movimento expositivo que parte do desenho para chegar ao segundo, o espaço urbano – mas sempre com o intuito de retornar ao primeiro. Partiremos assim das obras e instalações apresentadas em Dezembro de 2013 e Janeiro de 2014 no Óbidos Luz por forma a analisar alguns dos atributos que caracterizam o modo de funcionamento 33
do desenho como dispositivo singular na experiência da perceção do espaço noturno. Foram seis as intervenções que estiveram presentes no espaço urbano do casco amuralhado da Vila de Óbidos. No que respeita à sua natureza e ao modo como concebiam a abordagem das problemáticas da luz, as obras apresentadas tocaram diversas áreas, que genericamente podemos distinguir como ações de luz, design de luz, luz arquitetónica e instalações (artísticas) de luz. Da primeira área constou a instalação interativa que decorreu na plataforma panorâmica do espaço do Jogo da Bola, proporcionando vários núcleos de experimentação interativa ao longo de um percurso criado por diversas tendas ‘temáticas’. Da segunda área tratou uma obra que teve uma dupla componente de som e imagem vídeo (em vídeo-mapping) sobre a fachada da Igreja de Santiago, um espectáculo de animação visual especificamente concebido para Óbidos que interagia com a fachada daquela arquitetura. A terceira área foi ocupada de uma intervenção mais especificamente arquitetónica que avançou com uma proposta de ensaio temporário de iluminação da Praça de Santa Maria. Contudo, no espaço noturno da vila ocorreram ainda outras três instalações, especificamente posicionadas no terreno das artes plásticas, a quarta área: uma árvore que emergia de um grande muro iluminada por um candeeiro de iluminação pública; um painel de fitas de cor eléctrica que ziguezagueava sob o efeito da brisa entre árvores e muros numa desconcertante vibração óptica; e uma peça quase imperceptível instalada em dois arcos de pedra da muralha medieval, numa ténue oscilação de luz na escuridão. Passamos a descrever brevemente este conjunto de seis obras – a partir da transcrição das notas que, à altura, testemunharam a experiência de perceção das propostas.
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WISH TREE, HETPAKT
Os belgas Het Pakt apresentam, na plataforma superior da vila junto à muralha poente do Jogo da Bola, uma instalação composta por diversas tendas iluminadas que envolvem o cidadão em atividades interativas temáticas de animação do espaço público. Estas interpelam, com inteligência e humor, a curiosidade dos passantes, integrando-os desta forma como agentes voluntários de acontecimentos inusitados. Estas tendas em forma de iglu, umas translúcidas outras opacas, dissimulam os seus dispositivos tecnologicamente complexos por detrás de uma aparência improvisada que remete para o espírito de um intrigante bricoleur. Cada uma delas equaciona um dispositivo que articula desejo, surpresa e ação, permitindo ao participante integrar e evocar uma experiência, simultaneamente privada e integrada no contexto de uma comunidade: partilhar animadamente o espaço familiar de uma mesa posta, receber os aplausos de uma multidão sobre um pódio debaixo de potentes luzes; cumprimentar, num aperto de mão personalizado, um distinto mas anónimo cidadão, sentir o medo quando, ao
tocar num iglu branco dentro da tenda se dispara o rosnado ameaçador de um animal (supostamente escondido no seu interior); ou ainda partilhar a audição de uma ária italiana sentado no escuro, escrever ou desenhar sobre um vidro, no interior de uma tenda, uma inscrição que, no exterior, é projetada sobre os rochedos. Iluminadas na escuridão da noite, cada uma das tendas propõe uma experiência sensível e partilhável. Nesta instalação a luz serve sobretudo para conter espacialmente cada uma das propostas, isolando-a no espaço singular da ação performativa: uma luz produzida para controlar ambientes. A problematização fundamental deste trabalho não incide sobre a luz e a sombra, mas sobre o lugar das manifestações de inclusão do cidadão (ocupando um espaço privado) no espaço (público) da cidade. Ou seja, ele não depende da ideia e realidade da escuridão para acontecer. A noite proporciona-lhe a modelação adequada do espaço público onde as tendas se encontram inseridas.
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LUZIA, LIMELIGHT
A peça dos húngaros Limelight consta de uma obra de Projection-Mapping na fachada da Igreja de Santiago. Posicionada no topo cimeiro da Rua Direita da vila, a fachada desta igreja avista-se a quilómetros de distância e recebe pela primeira vez uma projeção multimédia que foi, como as restantes peças aqui presentes, concebida explicitamente para este evento. Articulando a iconografia de Santa Luzia com a própria arquitetura – e com a função atual do espaço, uma livraria – o trabalho desenvolve uma narrativa visual que, apoiada pelo som, metamorfoseia a fachada da igreja durante alguns minutos, subvertendo-a num movimento incessante de desconstrução e alteração dos contornos, massas, transparências e cor. Na sua vasta experiência de reconfiguração e animação do espaço público noturno, os Limelight conseguem, com extrema subtileza e economia, obter uma narrativa visual muito eficaz e que resulta das articulações entre o desenho arquitetónico da fachada e
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as figurações iconográficas da Santa Luzia. Imerso numa duração que vai perdendo os contornos à medida que a narrativa se desenvolve, o espetador está aqui, devido à inclinação da rua, posicionado uns metros abaixo da fachada que assim se recorta contra o negro do céu. Abrindo na noite uma realidade dinâmica composta por imagens (e sons) em movimento, esta peça inscreve no espaço público uma dimensão paralela – que se torna bem evidente no desconcerto do público no fim de cada ciclo de mostra do trabalho. A noite e o escuro cumprem aqui a função de catalisadores da própria experiência pública da imagem.
ÁRVORE, ALESSANDRO LUPI
Na primeira passagem pelo espaço onde está instalada, a obra passa inadvertida. O local é um muro de suporte que ladeia uma escada silenciosa e desigual que desce uma das encostas da vila. Ao descer da praça, do lado direito da Igreja de Santa Maria, um candeeiro público fixado alto na esquina de uma casa abre uma bolsa de luz na escuridão da noite. Algo nessa iluminação (na verdade duas simples placas inseridas no interior do velho candeeiro prismático que controlam a direção da luz) chama discretamente a atenção sobre o muro. Reparamos então que a luz incide sobre os ramos de uma árvore e que ao fazê-lo ela produz um desenho nítido de sombras de ramos e folhas projetadas na superfície do muro, replicando assim os contornos lineares da árvore: os arabescos resultantes da projecção da lâmpada na superfície ecoam as formas da arvore lidas e percebidas no espaço. Só aí nos chega a estranheza daquela árvore cujo tronco irrompe insolitamente do pano de parede do muro alto e branco. É essa estranheza que nos permite redobrar a atenção e experimentar aquela imagem como um acontecimento. Apercebemo-
-nos então do desajuste entre a imagem dos ramos reais e as suas sombras, pois nas sombras da árvore sobre o muro do qual ela emerge, os ramos estão plenos de folhas (no sentido em que se diz “floridos”)... enquanto que a árvore ‘real’ não as tem (enfim, tem uma folha apenas, gracejo do artista). Na noite escura, camada a camada, as linhas impõem-se à mancha e é essa a inscrição que permanece. Mas o que realmente surpreende nesta obra não é a ardilosa construção do enigma visual, mas sim o facto de constatarmos que a experiência ocorre simultaneamente aquém e além da charada. Esta dobra que a escultura propõe exige do passeante uma duração pouco compatível com outras das peças de luz distribuídas pela vila, mais explicitamente interativas e espetaculares. Daí o recato do lugar escolhido pelo autor. Se nos demorarmos o suficiente junto à Árvore podemos, talvez, conhecer uma versão da experiência essencial da luz – como ela surge nas velas dos óleos de Georges de La Tour.
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INSTALAÇÃO, JOACHIM SLUGOCKI E KATARZYNA MALEJKA
Esta é, como as restantes peças, uma obra que não pode existir fora das condições da noite escura. De dia ela mais não é que um grupo disperso e informe de faixas de pano esticadas entre tábuas pregadas nas paredes e nas árvores e algumas lâmpadas espalhadas ao acaso pelo chão: um painel de linhas brancas horizontais com uma singular linha de cor, a meia altura que ziguezagueia entre a parede e a primeira árvore, e vai de novo à parede e a uma segunda árvore, num movimento simples e previsível. O objeto, aleatório e fragmentado, configura um cenário pouco sugestivo. Contudo, na escuridão silenciosa, sob a luz negra das referidas lâmpadas, que amplia a intermitência das fitas sob o efeito da brisa noturna, o dispositivo visual emerge, surpreendente e avassalador. As linhas individualizadas que as fitas definiam desaparecem para dar lugar a uma vibração intensa de cor luminosa, que remete para a memória
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dos raios catódicos dos velhos televisores. Uma mancha elétrica toma conta da escuridão produzindo uma intensidade visual que sugere um portal que a sobreposição dos três planos do painel torna mais enigmático. Após uns minutos, particularmente se nos aproximarmos o suficiente, apercebemo-nos que a singularidade da perceção espacial vem contaminar a própria experiência da duração, fazendo dela a mais imaterial das instalações do Óbidos Luz.
ARCOS, ALESSANDRO LUPI
Esta intervenção poderia ser descrita nos seguintes termos: lado a lado, dois grandes nichos negros – criados pelos arcos de pedra que suportam uma escada de acesso ao percurso de vigia da muralha – são intercetados por um único arco azul, invertido, que os une. Da escuridão e da imobilidade dos alvéolos emerge uma cor azul elétrica, ténue e ondulante, em forma de semicírculo luminoso. Numa combinação entre linha e mancha e entre sombra e cor, a sua presença é discreta. À luz do dia o trabalho revela o dispositivo técnico que o sustenta, parco e rudimentar, e que é de uma simplicidade desarmante: uns poucos fios de lã branca pendurados agitam-se por efeito da brisa que varre a muralha e atravessa uma abertura existente na base do nicho. Mas à noite, na escuridão dos nichos, a imagem recupera de novo a sua dimensão contemplativa. De todas as peças do Óbidos Luz esta é aquela que mais próxima é de um desenho.
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O LABORATÓRIO DE LUZ DA PRAÇA DE SANTA MARIA, VISUAL STIMULI
A última das intervenções do Óbidos Luz responde a propósitos consideravelmente distintos. O seu intuito é a perceção experiencial da arquitetura do espaço público noturno. É explicitamente analítico e didático, quase ortopédico. Trata-se de uma intervenção de luz em diálogo critico com um espaço urbano específico: a Praça de Santa Maria. Este é um espaço subtil; começa desde logo no facto do acesso principal à praça ocorrer numa cota superior, pois a Rua Direita que liga as Portas da Vila ao Castelo corre tangencial ao espaço aberto da praça, criando um balcão projectado sobre a mesma. A meio desse balcão um cruzeiro de pedra alinha-se pela porta da igreja, em frente, o que permite ao observador ver a eixo a estatuária que encabeça a referida porta. Duas rampas para descida à praça, de um lado e outro do balcão, ladeiam uma fonte que brota do muro de suporte e cai num tanque, também de pedra. De ambos os lados da igreja, ruelas, recantos e escadas descem a encosta, a nascente. À direita e ao fundo, sob três grandes árvores frondosas, um terraço projecta o espaço sobre a bacia topográfica, em baixo. Junto ao
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balcão, à esquerda e em cima, uma loggia suspende-se sobre a praça e, nas faces laterais da mesma, dois edifícios sólidos salvaguardam a unidade do espaço. Este poderia ser, sob a luz diurna, o princípio de uma descrição dos elementos definidores da praça, uma descrição que não pode dispensar cada uma das linhas que ali se recortam com nitidez e se relacionam com todas as outras, caracterizando a singularidade formal da praça. Contudo, de noite, o espaço urbano transforma-se. Alguns candeeiros antigos, poucos, pontuam as zonas de passagem. E é tudo: o espaço está adormecido. Esta intervenção dos portugueses Visual Stimuli incide precisamente na exploração deste contraste entre a visibilidade diurna e a noturna, entre a luz do dia e as luzes da noite. Trata-se de um projecto experimental de iluminação de um espaço público. Numa formulação que resulta de uma abordagem essencialmente interpretativa, os seus conteúdos incidem sobre o que já lá está, enfatizando, realçando, escolhendo, velando. Com diversas intervenções precisas o projecto organiza a escuridão e questiona-a, permitindo uma conjugação atenta dos equilíbrios entre a mancha e a linha: luz rasante que realça panos de parede, luz de recorte que enfatiza zonas e ritmos específicos das arquitecturas, luz cruzada que define cunhais e geometrias. É um controlo compositivo da luz recortando arquitecturas, dramatizando massas arbóreas, redefinindo espaços. Linha e mancha emergem e submergem uma sobre a outra para criar uma nar-
rativa sustentável – ao serviço da leitura do espaço real da praça. Trata-se de um processo estruturalmente dialéctico no qual a luz criada para a noite dialoga com o desenho que constitui já a realidade do espaço durante o dia. É dali que este processo parte, sempre; pois o dia apontava ou sugeria já as soluções possíveis de uma iluminação concebida para, de certo modo, recusar a noite. Na iluminação arquitetónica os conteúdos são, como não podia deixar de ser, fundados na perceção diurna. Os conteúdos já estavam lá, no espaço público.
Há um denominador comum entre todos estes projetos de intervenção no espaço urbano da Vila de Óbidos: o cuidado à luz. De uma forma ou de outra todos eles apelam a uma atenção sobre os significados da Luz. O evento Óbidos Luz tentou formular a prática da luz no espaço público noturno a partir de um ponto de vista mais abrangente do que é habitual, incorporando luz e sombra num mesmo evento e conseguindo apresentar, mesmo se em pequena escala, diversas das dimensões do trabalho da luz. Uma dimensão especificamente artística nas instalação de Slugocki e Malejka e com as obras de Alessandro Lupi; a componente do design de espetáculo de luz com a projeção dos Limelight; a ação arquitetónica da luz com a cenografia urbana dos Visual Stimuli; e ainda os curiosos e eficazes núcleos de bricolage da luz com os espaços performativos dos Het Pakt. 41
EXPERIÊNCIAS DA SOMBRA
Desde há mais de um milénio que a posse da luz passou da magia para as mãos do artesão. Contudo, logo nos primórdios do século xix, primeiro com a iluminação a gás e depois com o domínio da eletricidade, passa a ser o engenheiro a determinar o que ela é e o que pode. No século passado, foram os arquitetos e os urbanistas que tomaram definitivamente conta da luz no espaço público. Na origem dessa transição estiveram certamente as reconfigurações do território após as duas grandes guerras: a modernização das infraestruturas após o fim da Grande Guerra e o esforço de reconstrução que caracterizou o período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. São dois séculos de uma experiência pública da luz, de uma espacialidade noturna partilhada por um coletivo alargado, envolvendo parâmetros de perceção que devem ser, em grande medida, consensuais. Não há nela grande margem para divergências à volta das questões da perceção, até porque a complexidade da dimensão tecnológica – na escala, produção e difusão das energias que estão na base do processo – prevalece sobre as demais, mesmo a comercial. Isto é, as margens dessa negociação ficam (ainda hoje visível na legislação vigente, que define balizas muito restritivas na iluminação dos espaços públicos) confinadas aos espaços privados. Mesmo as durações da experiência do utilizador dependem diretamente de indicadores que a solução já encerra. O século xx ficou também, na história da cidade, caracterizado por ser o século da consolidação da luz pública. Tendo a iluminação pública sido, nos últimos dois séculos, um assunto da engenharia e do urbanismo, ela consistia numa pragmática de nivelamento cujo propósito era resolver a visibilidade noturna proporcionando, entre outras agendas mais ideológicas, a segurança do cidadão – ocorrendo este processo numa época que foi caracterizada por um cada vez maior nivelamento do dia e da noite, resultando no paradigma que hoje nos carateriza, o paradigma “around-the-clock” ou “24/7”. Um projeto de iluminação no espaço público cumpre desde logo objetivos funcionais – como as questões de segurança dos cidadãos ou a relação entre a potência energética e o retorno luminoso, que ocu42
pam um lugar prioritário face a outros, de natureza experiencial – e que são, naturalmente, mais subjetivos ou, pelo menos, posicionados além dos critérios de base ajustados a uma de sociedade massificada. O que significa que as soluções formais, as escalas, a relação das partes com o todo e a própria especificidade da presença luminosa obedecem a um diálogo concreto e pragmático com os dados do real, técnicos ou outros. Trata-se geralmente de um processo de enfatização de valores visuais já sob consenso, de uma re-apresentação da realidade já conhecida de todos, como a evocação interpretativa (sob a iluminação noturna) desse mesmo património à luz do dia (seu registo natural), traduzindo linhas em manchas, explorando as respetivas correspondências e assegurando assim o efeito pretendido. É nesta linha que podemos entender os projetos de enfatização cenográfica da luz usada para dar relevo ao património arquitetónico e que são o exemplo mais comum e com maior sucesso na politica urbana. Introduzindo uma vertente didática, o design de luz arquitetónico administra ali o próprio espaço de liberdade da perceção do observador. Simulando rivalizar, prolongar ou reinventar a iluminação pública tradicional, ela na verdade assenta no transporte da luz de palco do interior para o proscénio do espaço público. Das imagens que nos ficaram da iluminação do espaço público da primeira metade do século xx – particularmente o uso que dela fez o cinema expressionista alemão, o film noir norte-americano e, já no pós guerra, algum cinema neorrealista italiano – depreende-se uma dramatização do espaço da noite por via da iluminação pública. Definido por redes cruzadas, constituídas por pontos luminosos que abrem, na escuridão, zonas bem delimitadas de luz cuja densidade narrativa conseguiu efectivamente expandir a tradição do espaço teatral, a noite urbana configurava-se como um espaço ‘outro’, sugestivo e particularmente rico em ficções paralelas aos ritmos da “normalidade” diurna. Esta iluminação noturna revelava assim uma realidade escondida, densa de silêncios obscuros. As grelhas regulares da iluminação pública que pontuam o território desde há século e meio produzem, sobre o espaço urbano, um manto regular, sobreposto ao desenho do território e que é, ao mesmo tempo, indiferente e potencialmente dramatúrgico e permite a configuração de 43
vazios, zonas por preencher e caracterizar. Ela era a própria encarnação de uma vida alternativa da cidade, sugerindo uma dobra, enigmática e perigosa, sobre o mapa existente. Essa rede de fragmentos iluminados produzia interessantes assimetrias nas quais o ‘utilizador’ se permitia uma grande liberdade na construção da sua própria experiência de luz – e de sombras. Era, num certo sentido, uma iluminação mais rica e sugestiva, menos intrusiva e mais aberta a narrativas e interpretações do que esta outra que começa agora a surgir um pouco por todo o lado e que é concebida em função de situações espaciais específicas, reivindicando uma atenção às singularidades formais do lugar. De forma inexorável o utilizador-passeante vai dando lugar ao consumidor-espectador. A par do que acontece com muitos outros territórios, assistimos hoje ao estabelecimento de um novo paradigma que, na iluminação, é caracterizado por uma progressiva conceção da luz que obedece a critérios inerentes ao território do design. Mesmo nas equipas interdisciplinares, que trabalham soluções técnicas complexas (ou talvez por causa dessa complexidade ), a luz é cada vez mais entendida como um produto formulado a partir do olhar do designer pois é ele, afinal, o único que domina a componente lúdica da solução – tão imprescindível à sua eficácia comercial. No modo como equacionam a experiência da luz, estas novas tecnologias da iluminação pública tendem, curiosamente, a recuperar muitos dos pressupostos que caraterizavam a luz dramatúrgica dos palcos, tal como esta era entendida nos tempos da introdução da iluminação elétrica nas grandes salas de espetáculo oitocentistas – apesar de serem agora, evidentemente, apresentadas na escala mais vasta do espaço público exterior e concebidas com meios tecnológicos extremamente sofisticados. Também no facto de as orientações do desenho da luz tenderem a um movimento sem transições que salta da luz para a sombra e vice-versa, num sem nunca considerarem o movimento, ora pulsante ora invisível que carateriza a passagem da luz à escuridão e vice versa – prescindindo geralmente desses espaços de fronteira nos quais as qualidades da luz se manifestam sobretudo através das transições e da sua duração. Nem as tonalidades intermédias significantes, nem as suspensões sugestivas da meia-luz; apenas o registo pragmático e empobrecedor de 44
uma domesticidade da luz... elevada aqui a uma potência extrema. Do seu esquematismo retórico, efeito talvez da abertura do espectro do perfil do público alvo que pretende alcançar, não é pois difícil verificar que muitas destas soluções que caraterizam os espetáculos de luz estão, de certo modo, em contracorrente histórica face à evolução da perceção do espaço público, pois elas pressupõe como que um retrocesso a uma imobilidade contratualizada do observador. Isto ocorre tanto por contraste com a iluminação elétrica tradicional do espaço urbano experimentado em movimento, que é indissociável do cinema e da iluminação cinematográfica em movimento, como por oposição aos dispositivos tecnológicos pessoais mais recentes, que introduziram o paradigma de uma iluminação atomizada e interativa. Basta para o efeito pensar na escala do fenómeno dos dispositivos informáticos móveis e da intensificação do seu uso: uma grande parte das cidades contemporâneas poderiam ser hoje iluminada quase exclusivamente pela luz dos pequenos ecrãs – dos computadores portáteis aos tablets e smartphones) nas mãos dos seus utilizadores. Cada época conheceu, evidentemente, os seus espetáculos de luz. Certos momentos das técnicas da luz conseguem recuperar uma relação com essa experiência original. Os feixes de luz que atravessavam a noite tentando identificar a aviação inimiga nos meados do século xx ou, ainda nos fins do século xviii, a lâmpada Argand, cujo tubo oco de combustão da mecha permitia uma chama seis vezes superior à habitual e cuja eficácia sustentou a tecnologia dos faróis no mundo inteiro por mais de cem anos.7 Falta saber qual a experiência – ou experiências – que pertence ao nosso tempo. Talvez um espetáculo de luz noturna remeta sempre, de forma obscura, para a experiência do fogo na noite primordial, tal como qualquer fonte lumínica é indissociável da ideia do Sol. Recuperar uma dimensão mágica da luz e, talvez, resgatar o acontecimento original que o fogo deve ter produzido nos inícios da humanidade, garantindo o resgate de um espaço benévolo na noite hostil. No entretanto o público, crédulo, nostálgico, ou apenas tolerante embarca numa aventura sem riscos bem conforme ao espírito do seu tempo, onde uma experiência diferida do sublime e da transcendência pode, enfim, prescindir do corpo. 45
Indissociável das sombras a luz desempenha, na arte, funções muito diferentes daquelas que descrevemos. Três dos trabalhos referidos atrás: as instalações dos artistas Alessandro Lupi e de Joachim Slugocki / Katarzyna Malejka, revelam-no bem. A luz, tal como é geralmente trabalhada pelas artes plásticas, não pertence exatamente ao espaço que contém as peças. Ela instala uma linha fracturante e radical no espaço contínuo da perceção. Mesmo quando conseguimos identificar, num determinado trabalho, a intenção de modular a luz, essa operação está sempre ao serviço de uma intencionalidade que é exterior às condições que caracterizam aquele espaço físico e arquitetónico que a acolhe. Ou seja, o que a sustenta não resulta diretamente das solicitações do espaço onde se insere, mas depende das potencialidades que esse espaço encerra e que são confirmadas na própria proposta artística. Neste sentido a obra não trata tanto de soluções quanto de perguntas – ou problematizações. Como se ela apresentasse, num sentido absolutamente literal, as palavras de Mario Perniola: (...) a arte, hoje mais que nunca, deixa atrás de si uma sombra, um perfil menos luminoso, que retrata o que de mais inquietante e enigmático lhe pertence. Quanto mais violenta é a luz que se pretende investir na obra e na operação artística, tanto mais nítida é a sombra projectada; quanto mais diurna e banalizante é a aproximação feita à experiência artística, tanto mais o seu essencial se retrai e protege na sombra.8
Para qualquer das três obras mencionadas o assunto foi, sobretudo, a sombra, através da luz e com ela. Uma maior sofisticação tecnológica teria sido nelas, distrativa, pois o uso de alguma pobreza pode ser uma ferramenta de focagem. A própria duração da experiência perceptiva não pressupõe aqui, ao contrário do que acontece na iluminação arquitectónica, um denominador comum. Perante cada uma das peças, cada observador encontrará a sua própria demora, a sua própria sombra. Cada um produzirá a sua própria combinação de luz e de sombra, de linha e de mancha. Podemos dizer que, face à iluminação arquitetónica (ou ao design de iluminação urbana), as instalações artísticas se posicionam no extremo oposto do espectro dos significados da luz. Não se trata tanto de iluminar, mas de criar lugares de sombra significante. 46
A luz está ao serviço desta operação. É um meio, o dispositivo necessário para produzir uma atenção à sombra. Talvez a própria representação da luz pressuponha, na base, uma fratura, criando duas conceções distintas e contrastantes e que se situam como que nos antípodas uma da outra. A luz seria assim, de um lado, concebida fundamentalmente como um dispositivo da qual ela é o produto – ou melhor, o efeito. Alternativamente ela seria concebida como um acontecimento, significante em si mesmo, remetendo o dispositivo que a produz para um plano absolutamente subsidiário, uma invisibilidade ou, preferencialmente, uma inexistência. O dispositivo, que cumpriria aqui uma função sacrificial, é imolado na luz que ajudou a criar. Sob as máscaras da arte, da arquitetura ou do cinema surgem hoje, um pouco por todo o lado, ambientes e pequenos espetáculos, eventos, encenações, apresentações, projeções e malabarismos de luz, numa profusão tal que chega a comprometer o espaço da luz como uma experiência paralela às demais (e passível de articular-se de modo criativo e inovador com elas). Ou como uma presença que acompanha, muitas das vezes silenciosamente, as outras atividades. Que se manifestava discretamente, surpreendendo-nos no meio de uma leitura, de um passeio ou, simplesmente, quando inadvertidamente nos aproximamos distraidamente de uma janela. Este abandono da luz discreta, das suas sombras sinuosas pode ter sido exclusivamente o efeito da proliferação dos ecrãs digitais sobre a nossa perceção da luz – facto este irreversível, se considerarmos que a média individual de uso de ecrãs pessoais já ultrapassa, nos países industrializados, as seis horas diárias. Mas muito provavelmente a problemática é mais complexa. A realidade é que hoje pensar responsavelmente a experiência da luz passa necessariamente por admitir a possibilidade de tornar a pensar a experiência da sombra. Mas para isso acontecer seria preciso uma mudança radical pois nós, como dizia Tanizaki em 1933, vivemos ´ (...) sempre à espreita do progresso, (...) em busca de uma claridade mais viva, (...) passando da vela ao candeeiro de petróleo, do petróleo ao bico de gás, do gás à iluminação elétrica, para cercar o menor recanto, o último refúgio da sombra.9
47
UMA NOTA SOBRE OS DESENHOS DAS SOMBRAS
Nas articulações entre linha e mancha o desenho pode configurar, como vimos atrás, um interessante laboratório para compreender as representações da luz. São muitas as imagens que na história do desenho incidem diretamente sobre esta questão; nessas imagens de luzes e sombras podemos perceber a complexidade que caracteriza as relações entre a linha e a mancha. Ambiguidade, atritos e contradições gráficas tomam frequentemente conta desse território que nunca chega a configurar uma fronteira linear, mas que, pelo contrário, abre um espaço fértil e dinâmico que só pode ser concebido no movimento da luz para a sombra ou vice-versa. Reduzir esse espaço a um registo binário é, aliás, uma abstração – que pode ser facilmente desconstruída com um exercício simples de desenho: com uma caneta fina desenhar, numa folha de papel branco, uma cena noturna. Aí, à medida que no desenho a sombra avança ou que a escuridão ganha consistência sobre a superfície do papel, verificamos que os limites entre linha e mancha se diluem e que a representação da luz tende a uma saturação de meias-sombras – ou de meias-luzes. Como podemos verificar num passeio noturno pelas periferias de um aglomerado urbano – ou nos desenhos noturnos de Seurat ou de Hopper, ou nas gravuras de Piranesi, Rembrandt, Goya ou Emil Nolde. Nessa região onde mancha e linha se equivalem, apercebemo-nos que esta última, mesmo na sua propensão para o abstrato pode, sob certas condições, proporcionar-nos uma experiência concreta análoga à da mancha – como aquelas transições extremas da luz à sombra, e vice-versa, que se tornaram uma vulgata do léxico cinematográfico para descrever situações extrassensoriais, experiências místicas ou portais no espaço-tempo. Luz e sombra são, evidentemente, palavras excessivas, ditas e ouvidas sempre em sobrecarga. Não apenas porque a história dos seus significados – sociais, religiosos, tecnológicos, culturais – é muito densa, mas porque ambas se encontram demasiado subjugadas à metáfora. Basta, para isso, observar o quanto as metáforas positivas estão sempre associadas à luz (sol, brancura, luminosidade, transparência, clareza) e as negativas à 48
sombra (escuridão, trevas, opacidade, negrura, obscuridade). O peso das metáforas é tanto que não chegamos a considerar os desajustes entre os nossos dispositivos fisiológicos de visão nem sequer a compreender as diferenças subtis que distanciam ou aproximam entre cada um de nós nas nossas experiências e sensibilidades sobre a luz (e sombras). Mas nas práticas da perceção, na nossa experiência, partir da luz para a sombra ou da sombra para a luz não é exatamente o mesmo. É neste sentido que, mesmo tratando-se de um acesso rudimentar (face à complexidade do território da luz e das suas sombras) recorrer aos meios do desenho para problematizar a luz pode constituir um interessante instrumento operativo.
NOTAS
1
Apesar dos efeitos empobrecedores dessa hegemonia percetiva sobre as outras formas de “desenhar” a cidade – que, apesar de existirem e se desenvolverem, foram relegadas para um plano absolutamente secundário, temos hoje bem noção do que resulta da quase exclusão desse olhar sobre a construção urbana. Hoje, sete décadas depois da Segunda Guerra Mundial que deixou a Europa cheia de cicatrizes, dir-se-ia que as restantes formas de percepção vingaram-se da sua exclusão, removendo os arquitectos (ou, mais exactamente, a arquitectura) do terreno efectivo do desenho urbano.
2
Estes ‘esqueletos de arame’ são-nos hoje muito familiares por constituírem a base das imagens de espaço nas técnicas de representação digital (CAD) dos rendering das estruturas por detrás dos sucessivos layers que produzem as imagens dos cenários nos jogos de computador.
3
O excesso de recorte produzido pela intensidade da luz manterá a hegemonia da linha, como o mostram os desenhos contrastados das narrativas gráficas de Hugo Pratt – tão ajustados ao sol africano, mas tão inadequados, curiosamente, à luz da laguna veneziana que viu nascer o seu herói Corto Maltese.
4
O uso que o cinema faz da escuridão e das sombras alia a eficácia da surpresa (efeito de condições de perceção limitada) à imersão empática que a envolvência das sombras conseguem produzir: essa condição simultaneamente reconfortante e inquietante que a penumbra é capaz de criar.
5
Napoli, Giuseppe Di (2004). Disegnare e conoscere. La mano, l’occhio, il segno. Einaudi. Pág. 353/354.
6
Napoli, Giuseppe Di (2004). Disegnare e conoscere. La mano, l’occhio, il segno. Einaudi. Pág. 430.
7
Sobre a questão da origem e desenvolvimento da iluminação urbana a obra de Wolfgang Schivelbusch constituí a abordagem mais interessante e holística sobre a luz no espaço público: Schivelbusch, Wolfgang (1998). Disenchanted Night: Industrialization of Light in the Nineteenth Century: The Industrialization of Light in the Nineteenth Century. University of California Press.
8
Perniola, Mario (2000). L’arte e la sua ombra. Einaudi.
9
Tanizaki, Junichiro (1999). Elogio da Sombra. Relógio D’Água. Pág.49.
49
Fig. 1. Rembrandt van Rijn, S. Jerónimo num quarto escuro, 1642. Água forte, 175x150 mm
Fig. 2. Giovanni Battista Piranesi, Carceri Távola XVI, 1760. Água-forte sobre papel, 403x548 mm Fig. 3. Francisco de Goya, Si Resucitará? – Los Desastres de la Guerra, Est.80, 1814-15. Água-forte e água-tinta sobre papel, 174 x 220 mm
ALGUMAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Casati, Roberto (2003). La Découverte de l’ombre. LGF. Gombrich, E. H. (1995). Shadows: The Depiction of Cast Shadows in Western Art. National Gallery London. Napoli, Giuseppe Di (2004). Disegnare e conoscere. La mano, l’occhio, il segno. Einaudi.
50
Fig. 5. Emil Nolde, Dampfer, 1910. Água-forte e aguada sobre papel, 305 x 405 mm Fig. 6. Edward Hopper, Night in the Park, 1921. Água-forte s/ papel, 173 x 209 mm
Fig. 4. Georges Seurat, The Gateway, 1882-84. Lápis Conté s/ papel, 248x324 mm 5
Schivelbusch, Wolfgang (1998). Disenchanted Night: Industrialization of Light in the Nineteenth Century: The Industrialization of Light in the Nineteenth Century. University of California Press. Stoichita, Victor I. (1999). Breve historia de la sombra/ Brief History of the Shadow. Siruela. Tanizaki, Junichiro (1999). Elogio da Sombra. Relógio D’Água.
51
52
LOGBOOK DE UMA PRODUÇÃO-RELÂMPAGO Rosa Quitério e André Teles
O trabalho de um produtor de eventos baseia-se essencialmente na correlação das necessidades de todos os intervenientes não perdendo jamais de vista os conteúdos que sustentam e dão razão ao próprio evento. Temos, de um lado, os organizadores, curadores e diretores e, do outro, a entidade que recebe o evento. E ainda os artistas que irão realizar o seu trabalho. Contemplando todas as variáveis possíveis, o produtor tem como função responder às necessidades existentes, solucionar problemas e ultrapassar as adversidades para que o evento se realize da melhor forma possível. Este é, essencialmente, um trabalho de preparação, para evitar muitas surpresas no terreno mais tarde. Para que o evento seja bem preparado é importante prever o maior número de situações passíveis de acontecer. Abordaremos a seguir o caso prático do evento Óbidos-Luz que cabe numa categoria específica: o evento cultural de curta duração com instalações efémeras. Voltando à questão da preparação: no caso de um evento exterior é necessário ter em atenção, logo à partida, as condições meteorológicas. Ou seja, até que ponto as obras apresentadas poderão ser afectadas pelo clima – e as suas eventuais consequências nos trabalhos de montagem. Neste caso é sempre importante que a equipa de concepção do evento inclua, entre curadores e diretores, um produtor experiente – pois uma produção com sensibilidade para o terreno da execução consegue sempre perceber a logística implicada num simples prego. Pode parecer algo simples e à partida é-o de facto. Exige, no entanto, diversos passos: o prego terá uma medida específica, precisa de um martelo e implica um sítio onde será pregado. Esse sítio poderá, por sua vez, ser uma árvore ou um edifício – suportará a árvore esse prego?, o edifício é propriedade pública ou é privada? Daí a preparação ser fulcral num 53
evento. Se todas as situações críticas forem previstas e resolvidas antes de se concretizarem, tornam o evento muito mais agradável para quem o realiza, para os artistas que trabalham nele e também para todas as entidades envolvidas, suplantando deste modo grande parte da burocracia presente em muitas instituições. É assim importante realizar calendários de montagens, listagens do material necessário e todas as licenças e autorizações para a realização dos trabalhos. E nunca esperar que as coisas se resolvam por si próprias. Deve ser quase uma obrigação, tanto prática quanto moral, o produtor intervir ao mínimo problema. Porque num evento todos os pequenos problemas podem ter um efeito de bola de neve. Esta ginásticas entre artistas, curadores e entidades públicas que prestam apoio à realização do evento é o trabalho de um produtor. A resolução de problemas, a mediação de relações e por vezes até a manutenção de peças de arte fazem parte das suas obrigações. Tal como com a imagem do prego, toda a pequena acção exige uma logística considerável, pois um evento temporário no espaço público será sempre um alienígena e um corte no quotidiano de muitas pessoas.
54
AS SEMANAS DE PREPARAÇÃO PRÉVIA
14
Out.
15
i
Definição do ante-projecto ‘Praça-Luz’. Desenvolvimento de apresentação do evento.
16 17 18
Apresentação do projecto ‘Praça-Luz’ em Óbidos. Organização de equipa de produção.
21
Alterações ao projecto ‘Praça-Luz’ que passará a denominar-se ‘Óbidos-Luz’ e início de desenvolvimento do Plano de Estratégia Cultural (PEC) que integrará o evento ‘Óbidos-Luz’.
Out.
22
ii
23 24
Apresentação do PEC ‘Água Viva’
25
iii
Out.
28
Contactos com os artistas para esclarecimento de questões técnicas.
29
Desenvolvimento do mapa–percurso com as instalações integradas.
30
Reunião em Óbidos com responsáveis do município e coordenadores do projecto.
31 1
Nov.
Recolha de referências históricas, iconográficas, teóricas acerca do tema do evento, para desenvolvimento dos projectos artísticos.
55
4
Chegada dos artistas Limelight para visita técnica.
5
Visita do embaixador da Polónia.
6
Definição de parcerias.
7
Programação detalhada do evento.
Nov.
iv
8
11
Nov.
Estudos de implantação (fichas, plantas, maquetas).
12
v
13 14 15
CIRCUNSCREVER
17 18
Nov.
VI
56
Primeira reunião técnica no local entre os elementos da equipa de produção, o curador e os representantes da Visual Stimuli (que mais tarde integrarão o projecto como responsáveis de uma das instalações e workshop). Esta reunião serviu para perceber os locais por onde o percurso do evento passava, dificuldades técnicas de algumas instalações face às condições locais e também a dinâmica que se viria a desenrolar com a Câmara Municipal de Óbidos e, particularmente, a Óbidos Criativa, parceira do evento.
19
Nov.
Recolha de informações para preenchimento das fichas técnicas de cada artista. As fichas são constituídas por um conjunto de informações de consulta rápida, datas de chegada, datas de partida, locais das instalações, materiais necessários, contactos, etc. A criação destas fichas é um exercício óptimo para a produção pois serve para organizar a informação e tirar dúvidas mais específicas aos artistas. Estas também serviram para poder apresentar à C.M.O./Óbidos Criativa uma lista das necessidades técnicas a garantir.
20
Organização do dossier técnico que incluía calendários de produção, fichas técnicas, informações relevantes dos artistas, licenças, entre outra documentação. O dossier técnico, impresso em papel, é uma das grandes ferramentas da produção pois permite que no terreno se consulte e tire dúvidas, demonstre-se o que se irá passar e se tenha acesso a todas as informações necessárias.
21
Comunicações com os artistas elencando dúvidas sobre as instalações, para que quando estes chegassem todos os locais e materiais necessários estivessem à sua disposição.
Nov.
VI
Nov.
Levantamento fotográfico dos locais. Este levantamento serviu para enviar aos artistas e confirmar se há condições adequadas para as instalações ou se são necessárias mudanças. É importante ressalvar que grande parte destes artistas eram provenientes de outros países tendo apenas alguns visitado o local e discutido o projecto. Grande parte deles iria fazer instalações cénicas que interagiam com o local, neste sentido o acompanhamento da produção e o conhecimento do curador foram cruciais para o desenvolvimento do projecto. A boa integração das peças com o quotidiano da vila mas também a quebra com ele, garantiam sucesso à partida. 57
22
Nov.
VI
Desenho da torre de projecção de vídeo e de mapas técnicos que integrariam as fichas de cada artista e o dossier. Nestes mapas assinalavam-se os locais específicos da instalação, os pontos de energia (tomadas eléctricas) necessários e a aplicação de alguns materiais. Deste modo, em conjunto com as fotografias, foi possível demonstrar os locais escolhidos pelo curador para os artistas adaptarem o seu trabalho da melhor forma.
FIXAR AS CONDIÇÕES NO TERRENO
25
Nov.
VII
Pesquisa de materiais. Adaptação de projecto de Joachim Slugocki e Katarzyna Malejka aos materiais disponíveis. Faltava uma semana para a chegada dos primeiros artistas, Joachim Slugocki e Katarzyna Malejka e muitas dúvidas subsistiam ainda face aos equipamentos necessários e apoios logísticos. Dada a natureza da obra, muito dependente do local de instalação da mesma, foram realizadas reuniões com os artistas via Skype a fim de esclarecer várias questões acerca do material da obra, pois de acordo com as características pedidas antecipava-se um valor muito acima do orçamento. O curto espaço de tempo e a indisponibilidade do material face à sua especificidade não permitia a sua aquisição até à data do evento. Para ultrapassar esta questão, realizaram-se pequenas alterações ao projecto, depois de uma renegociação entre o curador do evento e os artistas. Este é um exemplo da plasticidade fundamental à realização de uma iniciativa desta natureza. Reunião com responsável das oficinas de Óbidos para entrega do projecto da torre de projecção de vídeo e esclarecimento de dúvidas quanto à sua localização na rua. O local previsto inicialmente não era possível tendo em conta a circulação de alguns veículos nessa zona. Juntamente com os artistas estudou-se uma alternativa mais segura, e que permitisse a projecção em boas condições .
58
235
5
45°
x 245
Acrílico
Acrílico 210
213
220
118
3
5
30
40
Vazio
Porta
3
5
7
7
77
D
90
970
166
180
236
2 5
Alçado da Entrada
Corte Transversal
Corte Longitudinal
Alçado da Projecção
2 5
250
106 70
2
40
5
2
70
75
Depósito
120
70
Prateleira Projector
171
246
236
Balcão
70
3
50
80
2
10
10
2
5
3
50
76
Planta da Cobertura
Planta nível de Balcão
Planta nível Projector
Planta nível Depósito
Uma nova máquina de guerra na antiga cidade medieval: a torre de projecção para o espetáculo de video-mapping. Um projecto de Philip Cabau.
59
60
26
Nov.
27 VIII Nov.
28
Nov.
Reunião com coordenadores da Óbidos Criativa (organizadores do evento Vila Natal e que viriam a coordenar os meios técnicos e logísticos para apoio do Óbidos Luz . Nesta reunião esclareceram-se as principais dúvidas relativas às instalações e às autorizações necessárias. A peça de Joachim e Katerzyna estava prevista ser montada entre a muralha e o muro de um edifício, contudo devido ao facto de a muralha de Óbidos ser considerada Monumento Nacional era impossível a fixação da peça à mesma. Foram informados os artistas e decidido que quando chegassem se avaliaria a situação e a alteração da localização da peça. Também na instalação de luz arquitectural na igreja de Santa Maria pela Visual Stimuli, havia dúvidas: era necessária uma autorização da paróquia. Dúvidas expostas e esclarecidas outras, foi entregue o dossier técnico e a lista de materiais à organização e equipa técnica da Óbidos Criativa. Finalização das fichas técnicas. Estava em falta a instalação do grupo Het Pakt, que seria a última a ser montada. O sítio escolhido era o miradouro ‘Jogo da Bola’, no entanto subsistiam dúvidas quanto ao tamanho das tendas e se caberiam todas. Por isso mesmo, foi elaborado um plano B. Em produção quando se duvida deve-se ter um plano alternativo. Munidos de fita métrica e máquina fotográfica encontraram-se possíveis localizações alternativas. Continuação da procura de alojamento para os artistas. Sendo esta uma altura de maior afluência turística em Óbidos estava a ser difícil encontrar alojamento a um preço razoável. O alojamento teria de ser necessariamente em Óbidos pois não havia forma de transportar os artistas de outro local para a vila todos os dias. Finalmente nesta semana encontrou-se disponibilidade numa residencial às portas de Óbidos, a uma distância razoável da vila que permitiam as artistas deslocarem-se a pé.
61
29
Nov.
viii
Preparação do material gráfico para comunicação do evento. Acompanhamento da construção da torre de projecção. Um dos grandes desafios desta produção foi o trabalho com os artistas à distância. Foi necessário antecipar os problemas que os artistas pudessem vir a encontrar, no entanto isso era compensado por um bom conhecimento do terreno e pela forma como as coisas se faziam cá.
OS ARTISTAS NO LUGAR
2
Chegada dos artistas Alessandro Lupi, Joachim Slugocki e Katarzyna Malejka. Início da montagem das primeiras peças. Com a chegada de Lupi foi necessário encontrar todos os materiais para a sua primeira instalação. Em visita ao local confirmou-se que eram necessários mais alguns que não tinham sido adquiridos propositadamente pois era essencial a presença do artista. Talvez devido à natureza do seu trabalho e também à sua experiência, Lupi é um artista muito independente, necessitando pouco da ajuda da produção para construir as suas instalações. Logo no primeiro dia de montagem avançou substancialmente o seu trabalho surpreendendo a todos pelo seu à vontade num local que desconhecia.
3
Continuação de montagem das peças. Entrega à equipa de electricistas da CMO, de mapa pormenorizado com os pontos de luz das instalações. O início dos trabalhos de Slugocki e Malejka verificou-se um pouco mais desafiante. Alguns meios ainda não estavam acessíveis e foi também necessária a presença dos artistas para decidir o local da instalação, tendo em conta as restrições de fixação da peça na muralha. Reunindo com o curador e os artistas encontrou-se uma nova solução que passava por utilizar as árvores existentes naquele local e um edifício (pertencente à Câmara) como suporte para a instalação.
Dez.
IX
Dez.
62
É interessante ver a capacidade de adaptação face à experiência de cada artista. Ir para outro país construir uma instalação do zero em poucos dias, requer alguma experiência e uma grande capacidade de adaptação face às condições oferecidas. Ainda que contactando com a produção do evento antecipadamente, é necessário aos artistas um exercício de memória e perspectiva para que se possa esclarecer o melhor possível a montagem da instalação. 4
Início dos trabalhos de instalação eléctrica para que as obras em curso tivessem iluminação. O profissionalismo e a comunicação fluída da equipa de electricistas, permitiu que os trabalhos decorrem sem sobressaltos.
5
Início das primeiras instalações de luz arquitectural na Praça de Santa Maria pela Visual Stimuli.
6
Montagem e conclusão da segunda instalação de Alessandro Lupi. Um trabalho projectado in situ utilizando uma técnica criada pelo artista. Conclusão da instalação de Joachim Slugocki e Katarzyna Malejka. Conclusão da torre para a projecção multimédia na fachada da Igreja de Santiago. O projecto previa que a torre pudesse voltar a ser utilizada. Viktor Viksek, dos Limelight chega neste dia, já com uma parte do vídeo que iria ser projectado. Dois minutos de uma peça com o total de quatro. Os sistemas de som e de projecção foram entretanto instalados pelo técnicos da CMO. Nas últimas semanas as condições meteorológicas ajudaram aos trabalhos. Apesar de algum frio, a chuva ainda não tinha chegado. Tinha sido decidido anteriormente que as obras fossem ligadas durante a noite à medida que ficassem prontas. A primeira instalação de Alessandro Lupi foi ligada neste dia. Alguns percalços apenas na instalação de Slugocki e Malejka: a humidade desta zona afectava a estabilidade das fitas que compunham a instalação, que entretanto tinham de ser esticadas novamente. Tudo se resolveu e a peça foi concluída atempadamente.
Dez.
Dez.
ix
Dez.
63
ASSEGURAR, MANTER, RESOLVER
9
Dez.
10
Dez.
11
Dez.
12
Dez.
X
Verificação diária das peças e pequenos trabalhos de manutenção para assegurar as boas condições das obras. Nesta semana, já com uma parte das instalações concluídas, surgiram algumas preocupações com a segurança das peças. As obras estavam instaladas dentro da vila em sítios fora do percurso normal, com a intenção de, primeiro, valorizar as ruas e recantos menos visitados em Óbidos e, segundo, permitir que as obras tivessem o seu espaço, tanto reflexivo como sossegado. O que deu azo a furtos e vandalismo junto das obras, nomeadamente nas instalações de Lupi e Slugocki+Malejka que funcionavam com a manipulação de lâmpadas de luz negra, um material pouco comum. Para precaver novas situações foi pedido um reforço de rondas por parte dos agentes de segurança do evento. Reforço da divulgação. Uma vez que o percurso do evento se afastaria das ruas mais movimentadas seria à partida um desafio mostrar aos visitantes de Óbidos o lado mais escondido da vila, com o bónus de ter as instalações artísticas. Para reforçar a divulgação do eventos foram distribuídos panfletos aos visitantes e prestadas informações.
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Inauguração da peça final da projecção multimédia dos Limelight. Neste dia, comemoração do Dia de Santa Luzia, apresentou-se o filme de 4 minutos alusivo a esta Santa. Parte do trabalho foi concluída em Óbidos por um dos membros dos Limelight, aquando da sua estadia com o apoio da sua equipa na Hungria. Desde o primeiro dia do evento que um elemento da equipa de produção estava presente para assegurar que a projecção iniciava à hora marcada em boas condições sonoras e visuais.
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Aula aberta ‘Da arquitectura pintada por narrativas’, Mário Caeiro.
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Workshop ‘Iluminação arquitectural’, Visual Stimuli 64
O CÍRCULO DAS APRESENTAÇÕES
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Segunda parte do workshop ‘Iluminação Arquitectural’ Inauguração da instalação de luz arquitectónica por Visual Stimuli, na Praça de Santa Maria.
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Verificação e manutenção das obras.
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Chegada do grupo Het Pakt. Início da montagem. Os Het Pakt tinham uma metodologia de trabalho muito engenhosa, também devido à sua vasta experiência. Viajaram da Bélgica numa carrinha atulhada com todo o material necessário para a sua instalação. O desafio foi levar a carrinha até ao miradouro ‘Jogo da Bola’, uma pequena praça localizada num dos pontos mais altos da vila com acessos muito estreitos. As condições atmosféricas adversas impossibilitaram a passagem da carrinha pelas ruelas empedradas até ao miradouro, pelo que o material teve de ser transportado manualmente desde a Rua Direita.
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Continuação da montagem da instalação de Het Pakt.
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Contratação e preparação de actor para a performance componente da instalação de Het Pakt. Foi possível encontrar um actor que se enquadrava nas características pedidas pelos artistas: alguém com experiência e idade acima de 40 anos para conferir seriedade à performance.
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Inauguração da instalação de Het Pakt. Neste dia verificou-se baixa afluência de visitantes a esta zona. Como referido anteriormente este é também um local fora da circulação normal dos visitantes de Óbidos. Nos dias seguintes foi reforçada a sinalização, e finalmente recorreu-se a um outro performer que interagia com as pessoas na rua principal para que estas visitassem a instalação, o que teve óptimos resultados .
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XI
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Aula aberta ‘A duração do desenho no espaço urbano’, Philip Cabau. 65
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O EVENTO EM IMAGENS
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Limelight
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Het Pakt
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Alessandro Lupi
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Joachim Slugocki e Katarzyna Malejka
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Alessandro Lupi
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Visual Stimuli
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ÓBIDOS ÁGUA-VIVA UM PLANO ESTRATÉGICO CULTURAL Philip Cabau e Mário Caeiro
O conceito do plano Água-Viva assenta nos dados reais do próprio território onde a Vila se encontra implantada: um solo riquíssimo de recursos hídricos subterrâneos que estão na base da beleza da paisagem, da fertilidade dos solos e dos maciços arbóreos e que, ao longo dos séculos, o aqueduto e os inúmeros tanques, poços e fontanários vieram testemunhar. A Vila não habita a margem de um lago nem é atravessada por um rio. Mas apesar de a Vila se encontrar a alguma distância da Lagoa de Óbidos, elemento visível deste sistema aquático, a água está por todo o lado, estruturando os espaços e o desenho da Vila. Água-Viva é um nome cujos primeiros registos remontam já aos inícios do século xvii e significa água que brota de uma fonte ou nascente e corre em grande quantidade. Contudo, ela significa também a própria metamorforse da água – daí ela ser um sinónimo de medusa. Aqui, em Óbidos, Água-Viva é portanto e sobretudo uma imagem de marca cultural, a sua imagem natural. O plano Água-Viva visa articular os acontecimentos já ocorrentes em Óbidos – que fazem desta Vila uma referência nacional e internacional ao nível da organização de eventos – com outras, novas ações, algumas das quais já em fase germinal na programação cultural da Vila. Nas páginas que se seguem apresenta-se uma síntese gráfica da ideia subjacente ao Plano Estratégico Cultural Água-Viva. A criação dos princípios do Plano Cultural Água Viva demonstra que o evento Óbidos-Luz foi o primeiro desenvolvimento de um plano integrado mais vasto e ambicioso. Nas duas semanas que antecederam a produção relâmpago, a Palavrão esteve imersa na elaboração dos fundamentos do que definimos como um plano estratégico cultural para a Vila de Óbidos. 77
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Uma atenção centrada sobre o chão do presente, mas com raízes no saber antigo fundado da história patrimonial da vila — e, sobretudo, dirigida às condições que permitirão a sustentabilidade de Óbidos no século xxi. A ideia fundamental: a ligação entre o passado longínquo da vila, seu património e saberes e a sua projecção para um futuro, a imagem, uma actividade subterrânea e regeneradora — sintoma de vida, geradora de acontecimentos.
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Apenas a história proporciona estórias e narrativas. É na compreensão dessas narrativas (escritas ou orais) que nos é possível compreender o nosso lugar no presente e construir uma interpretação do presente que vivemos — que efectivamente nos projecte num futuro ancorado no real... O curso da água é o símbolo que permite o cruzamento entre o real (o aqueduto, as fontes, a lagoa e o mar) e o devir da Vila de Óbidos — a sustentabilidade da cadeia temporal, o fluxo que liga o passado ao futuro, diagnosticado e renovado pelas acções promovidas no presente.
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significado
pictograma /símbolo
O curso da água alimenta as raízes das árvores que ligam o conhecimento do fazer do passado com a aprendizagem para o futuro.
A árvore (e suas raízes): 3 tipos distintos
a) árvore grande e antiga: os artesãos c) árvore alta e estreita: as jovens gerações activas b) árvore pequena e frágil: a educação
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notas / explicitação
exemplos
Património artesanal e os saberes do passado (dimensão patrimonial)
Workshops envolvendo associações artesanais, etc. Apresentações, vendas, visitas guiadas, workshops público alargado...
A renovação dos saberes (as novas dimensões experimentais da pedagogia)
Programa de articulação com o ensino superior (ESAD.CR, etc.). Comunicações, encontros, residências...
O contacto inicial com as práticas do fazer (introdução ao saber-fazer na educação básica)
Módulos a implementar nas escolas básicas e secundárias Workshops, iniciativas didácticas
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significado
pictograma /símbolo
O curso da água aflora à superfície e manifesta-se vitalizando a dinâmica do burgo, criando eventos
As nascentes (os afloramentos da água na vida urbana)
a) a fonte
b) o fontanário c) o aqueduto d) a cisterna e) o poço f) as bicas
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notas / explicitação
exemplos
Os principais marcos urbanos e símbolos do lugar manifestando-se como palco da Festa
Vila Natal, Praça-Luz
O cenário da Vila albergando conceitos inovadores
Festa do Chocolate
Os espaços e edifícios recebendo regularmente a arte e suas narrativas
Vila Literária, Programa de Artistas Residentes
O contexto sócio-cultural abordado como oportunidade de comunicação internacional de médio termo
Amp!
Óbidos como Vila Incubadora de Eventos (plano de internacionalização/exportação)
A Bienal da sombra
Os pequenos espaços transicionais da forma urbana abordados com precisão cirúrgica
Intervenções de pequena escala
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Óbidos-Luz foi um evento da Vila de Óbidos. Preparado, programado, produzido, apresentado e concluído em dois meses, Novembro e Dezembro de 2013, pela Palavrão – Associação Cultural, para a Óbidos Criativa e com o apoio da Culturproject. Um case-study relâmpago que inventou conceitos, afinou critérios, montou estruturas de produção e convocou artistas que vieram de seis países europeus. Foi um singular raid que envolveu diversas equipas, empenhadas, a trabalhar em esforço e coordenação para assegurar o sucesso do evento. Que este pequeno livro regista e testemunha.