Arte - Literatura - Ciências Humanas Ano 6
O Corpo como Vertigem Por Nilson Oliveira
Auroras Feminas Por Márcio de Lima Dantas
Entrevista com TROPA TRUPE
e mais: poesia, contos...
Abril 2010
n° 9
EDITORIAL
- “Um convite à dança, às auroras femininas, às alegrias, ao crítico, às artes circenses, à poesia: seria esse o resumo desta edição!” - “Não seria melhor convidar o leitor a ocupar a revista, deixar-se afetar pelo múltiplo que ela oferece, afim de fazê-la multiplicar ainda mais!?” - “Sim! Assim também seria uma boa maneira de começar!” - “Então, deixemos que eles desbravem a revis-
ENVIOS
ta, pelo meio, de ponta a cabeça, de frente para trás ou vice-versa, como queiram!” - “Vou escrever assim: construimos mais um território, com suas latitudes e longitudes. Cabe agora o leitor habitá-lo!” - “Por mim, assim também seria um bom editorial!”
As produções artísticas e literárias, assim como comentários e críticas sobre esta edição, podem ser enviadas ao e-mail bularevista@gmail.com ou entregues pessoalmente aos membros do conselho editorial. NOTA: A revista Bula+ não se responsabiliza pelas mídias
Rodrigo Sérvulo
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Reitor José Ivonildo do Rêgo Vice-reitora Ângela Maria Paiva Cruz
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Diretor Prof. Márcio Moraes Valença Vice-diretora Profa. Maria da Conceição Fraga
Editora da UFRN
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Colaborador Jefferson Melo Revisão Wendy Freitas A revista Bula + é um projeto concebido e executado por estudantes do Centro de Ciências Humanas Letras e Artes da UFRN, desde 2006.
Os textos assinados são responsabilidade do autor e não refletem, necessariamente, a opinião da revista.
BULA+ Nº 9 - Abril 2010
Capa Título: O Corpo Técnica: Óleo sobre tela Autor: Jefferson Melo
Tiragem 1000 exemplares Periodicidade trimestral
Márcio de Lima Dantas
Auroras Femininas
Professor de Literatura Portuguesa da UFRN
O Rio Grande do Norte detém no seu sistema literário uma pequena
pelo respeito às normas gramaticais, outras desafiam a sintaxe ortodoxa,
plêiade de poetas dignas de constar em qualquer rol de boas mulheres
em atitude de plena liberdade, fazendo dizer do discurso poético como
escritoras. Esquecendo as canônicas Auta de Souza, Palmira Wanderley
lugar que se opõe ao chamado real. Ou seja: a escritura como crítica do
ou mesmo Nísia Floresta (como poeta), que não suportam uma segun-
mundo e da sua perversa lógica.
da leitura, nem muito menos serem traduzidas para língua nenhuma,
O que chama atenção nos livros daquelas autoras é uma espécie de
servindo apenas para que se repita os lugares-comuns de sempre, à falta
inscrição, digamos, do “feminino” - que até então havia aparecido de ma-
de outros nomes existentes. Por que o humano não tolera o vazio é que
neira ostensiva tão somente na poesia de uma Marize Castro ou de uma
se justifica o lugar ocupado por essas três personagens nas rumas de an-
Diva Cunha - como um projeto escritural detentor dos topos mais vincu-
tologias publicadas aqui entre nós. Longe de mim destituí-las do valor
lados às especificidades da condição da mulher num mundo predomi-
histórico que compete a cada uma, agora dizer que têm valor estético é
nantemente dominado pelos homens, e que se estende da política até as
um acinte à Érato, musa da poesia lírica. Nem inventem. Respeito enor-
associações de literatos, como as Academias de Letras, por exemplo.
memente Nísia Floresta como ensaísta e como autora de belos livros de
Com efeito, ocorre ostensivamente uma guinada na mentalidade
literatura de viagem, agora querer fazê-la poeta, é pouco compreender o
dessas novas vozes femininas no contexto da lírica norte-rio-grandense
fenômeno literário.
contemporânea. O discurso poético quer instaurar-se como diferença,
Assim sendo, prefiro me restringir ao que se inscreve como poéti-
não mais como aquele que segue cânones e normas estabelecidas por
cas com valor artístico, produtos do espírito que transcenderão espaço e
uma vida literária dominada pelos homens. Não há como negar a in-
tempo, nada ficando a dever às literaturas de outros Estados da federação.
serção da nossa mais conhecida poeta, Zila Mamede, como epígona da
Penso, sobretudo, numa Zila Mamede, numa Myriam Coeli, numa Ni-
Geração de 45 (Rosa de pedra), da poesia concreta (Exercício da palavra)
valdete Ferreira e, principalmente, naquela mais esquecida (e, quiçá, mais
e da forte influência do poeta João Cabral de Melo Neto, em alguns poe-
conscientemente escritora), com dois livros de poesia e que se chama Ja-
mas (Procissão, por. ex.). A poeta, não há como não reconhecer, afinava
cirema da Cunha Tahim, autora de Poema e A hora antes da hora. Não
seu timbre lírico consoante o que se encontrava em vigor na produção
lida e nem muito menos conhecida no parnaso contemporain do Estado,
literária oriunda dos homens, não conseguindo, apesar do seu inegável
astuciosamente obliterador daquilo que não afina no diapasão dos elogios
talento, uma caligrafia própria, que a distinguisse da virilidade dos seus
mútuos e da simulação astuciosa do meio literário.
colegas contemporâneos. Embora nada se possa dizer contra sua compe-
Porém, tudo se move. Aos dias, sucedem as noites. Nos últimos tem-
tência poética, elaboradora de belas metáforas, de uma concretude sóbria
pos, apareceu na cena literária norte-rio-grandense três poetas de bom
e seca (no melhor sentido), também não podemos deixar de afirmar que
quilate, denunciadoras de uma sintonia com o espírito da época e capazes
pouco ou nada inovou no que diz respeito à escritura oriunda das mulhe-
de produzir obras que se coadunam com muitos rebentos advindos de
res. Mesmo por que, se olharmos bem, constataremos que sua escritura
uma literatura feita por mulheres. Os temas são vários: as cismas e inquie-
estava bem de acordo com seu temperamento. Doméstica e recatada, de
tações do presente, os derredores da condição feminina, o amor como
temperamento forte, ligada sempre às classes dominantes, pragmática,
objeto de derrisão; enfim, abandonaram o arquétipo do aguardo de Pené-
não se permitiu uma liberdade maior.
lope, indo ao encontro das platibandas plenas de espelhos, expondo uma
O certo é que hoje nada nos impede de dizer que somos detentores
diferença em muito bem construídos e inspirados poemas. Refiro-me a
de um cabedal de mulheres escritoras que, além de disporem de dicções
Iracema Macedo, Carmem Vasconcelos e Anchella Monte. Tríade deten-
próprias bastante diversificadas e criativas, também encontram-se em
tora de uma poesia refinada e sóbria, distante dos pesadumes de tantas,
sintonia com a mentalidade das formas contemporâneas de se relacionar
da choradeira que grassa entre mulheres poetas, empurrando o piegas
afetivamente, consoante com o espírito do tempo que as entorna. A mu-
e o lacrimogênico como se fosse lirismo de qualidade, que não tem que
lher, diferente do passado, quando se atinha ao simples pastiche estético
aguente mais. E o melhor disso tudo é que parece não haver um ideário
advindo dos círculos masculinos, hoje insculpe seu nome e seu número
comum, ou seja, são poéticas com dicções próprias; algumas optaram
no discurso poético produzido no Rio Grande do Norte.
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Líquido espelho Alex Cordeiro Artes Cênicas - UFRN
Certa manhã ao acordar, havia em mim um ser que até então não conhecera. Muitas imagens surgiam e de olhos fechados, tentei desesperadamente entender o movimento de cores formado em meu pensamento. Sensações indecifráveis... Inútil tentar entendê-las! Um frio se instaurou no meu ser. Abri meus olhos e percebi que algo estava diferente, o teto não era mais o mesmo, as paredes sumiram. Escutei um barulho ensurdecedor. Um lance de pedras estava vindo em minha direção. Apesar do medo, fiquei estático... No mundo das pedras, atraente é estar imóvel! Elas passaram violentamente do meu lado, fechei os olhos para me defender. O ruído forte das pedras rolando me angustiava. Vã defesa. O frio aumentou. Até que minha inércia se consolida e um silêncio repentino atestou: naquela manhã de chuva, tornei-me pedra! Tornei-me um ser diferente na paisagem. A chuva aumentava de volume e eu a recebia sem a absorver. Ela escorria sobre minha superfície petrificada. O chão encharcado intensificava meu frio, eu era uma pedra que sente! Senti que outra coisa me 4
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tomava, era diferente da chuva, ela não passava por mim apenas. Era outro ser. Um ser rasteiro. Era frio como eu. Descobri que em meio à chuva um musgo verde que se alimenta de frio me cobria lentamente. No momento, me era confortável ser imóvel, não solitário. O ser rasteiro era tão brilhante, me senti seduzido, arrebatado. Suas raízes eram delicadas, elas me tocavam e se estendiam sobre mim. Tentei encontrar subterfúgios de existência para negar o que estava sentindo... Seres imóveis precisam de mentiras momentâneas! A chuva aumenta e meu desejo de negar o musgo também. Decido olhar incessantemente para o teto, não é mais um teto, é um céu lindo de chuva. Passei a perceber que cada gota de chuva antes de cair sobre mim, se tornava meu espelho. Encantou-me a ideia de ter muitos espelhos. Os encantamentos podem ser perigosos. Para meu sofrer, me enxerguei em pedaços verdes. Eram os fragmentos do meu ser afetivo! Desejei chorar. Descobri, após aquela manhã, que pedras sentem dor, porém, não exteriorizam. Lágrimas não escorrem de pedras!
Foto: Tryce Mello
Juliano Varela Já há algum tempo vinha percebendo em si uma fadiga meio es-
esbórnias; dos abraços que não pediu; dos sentimentos que não foi
tranha. Como que insistentemente seu corpo tentava descansar, mas
capaz de sentir; das culpas que carrega pelos momentos ruins que po-
sua mente não deixava. E assim foi-se indo. Dormia pouco, exauria-se
deriam ter sido evitados, mas não foram; dos momentos em família
muito. Insistia em se deitar, mas uma voz rude o impulsionava a sair
em que não foi convidado a estar presente...
de casa. De crepúsculo em crepúsculo, via de longe, apenas de longe, uma leve brisa que teimava em soprar no horizonte.
Afundou num lodo pantanoso. Amargo, caminhou em direção a um turbilhão de dúvidas, perturbações, zonas de conflitos. Tentou to-
Voltou a sentir falta do outro, mas se viu gasto, corroído, sem
mar fôlego algumas vezes, mas sentiu que era em vão. Parecia querer
graça, perfurado de desagrado, de insultos que a si mesmo fazia, des-
viver tudo aquilo, mesmo suplicando a si mesmo e ao seu deus para
respeitando sua própria alma, sua mente, sua sanidade. Por isso, ia
que não fosse suplantado em definitivo. Em diálogos com os anjos,
encontrando força para superar a perda e manter-se sozinho.
ouviu cânticos de esperança. Ao mesmo tempo, escuta vozes prague-
De olhos esgarçados, olhou a tez de sua grande amiga, mulher ín-
jando palavras de morte e de inutilidade.
dia, imensa, com íris negras, que lhe contava um relato de alguém que
Em alguns momentos constata que a construção do seu ser hu-
era “habite-se” de duas personas: uma frágil, letárgica, pobre coitada,
mano, cotidianamente mutante, é algo que o faz viver em constante
imprestável, mal amada, deprimida e amargurada; outra selvagem,
instabilidade emocional e afetiva. Em si, parece habitar, como na his-
cortante, carniceira, viril, cruel, por vez dissimulada, por outra apenas
tória de sua amiga, duas personas que, sempre em conflito, não sabem
alegre e bêbada, fálica, puro asfalto quente.
ao certo de onde vêm, para onde vão ou o que querem.
Vestido de amigo decidiu que ia viver somente bons momentos.
Na verdade, queria dormir sem ser cobrado de seu sono. Ficar
Arrumou sua cama e diante de mais um lapso de esperança e dor, fez
quieto, sendo apenas observado. Viver em um lugarejo pacato. Op-
o convite. Dormiram juntos e de novo se depararam com as reticên-
tar pela solidão sem culpa. Trabalhar sempre. Viajar à casa dos velhos
cias, sem nenhum ponto final à vista. Deleitou-se no gosto daquele
de sua família sem remorso ou preocupação. Não ter tabu com o seu
suor como se fosse a primeira vez. Despido de qualquer sofrimento,
sexo. Jamais perder o desejo pelo outro e dizer o que quer fazer. Me-
desejou percorrer longas distâncias somente para fazer o bem, sem
ditar. Virar um Buda. Viver sozinho e poder voltar oferecendo amor e
perguntas, sem passado, sem futuro. Um amanhecer por dia e só.
prazer a quem ama de verdade. Esquecer o passado que o atormenta.
Até aí esqueceu tudo do recente ontem, que até pouco tempo ti-
Ser compreendido. Não chorar mais em silêncio enquanto o outro
nha sido hoje e um hoje feito de malas, despedidas e uma casa pinta-
dorme ao seu lado. Não ser estorvo para ninguém. Estar no mundo
da de lilás. Encarou tudo como se fosse uma quarta-feira de cinzas,
e na vida dos outros apenas e tão somente para fazê-los felizes. Não
feita de vinho, cigarros e chuva. Tudo podia ser mais, mas o pouco
ser associado ao tédio ou à inutilidade. Viajar sempre que quiser.
que tinha ali já parecia suficiente à sua alma. Gozou do momento
Descansar a alma do sofrimento. Dominar a ansiedade. Ter um pai
de dizer o quão importante o outro é e sempre será em sua vida. E,
de verdade, sem sentir vergonha ou ojeriza dele. Poder voltar àquela
assim, o fez, vendo-se menino, velho e gente; vivendo o amor em
cidadezinha, tomar banho de açude e de lagoa, pilotar uma motoci-
todos os seus dias.
cleta no cascalho e fazer amor com o outro, tapando a sua boca para
Mas aos poucos, sem perceber, foi-se mergulhando numa estra-
que a dona da casa não escute o seu gemido. Tudo que queria era ser
nha metamorfose. Engolido por uma implacável angústia e sucum-
livre das angústias acumuladas em tão poucos anos de vida; que vez
bido por uma incrível desarmonia, passou a andar em desequilíbrio,
por outra afloram em depressão. Ser um “bicho-grilo”, “desencana-
lembrando-se dos mobiliários e das vestes que teve de carregar segui-
do”. Não fazer nada que lhe faça mal só para agradar aos outros. Estar
da e solitariamente por alguns dias. Lembrou-se também dos descan-
sempre bem.
sos que não pôde ter; das viagens que não lhe permitiram fazer; das
Em sua alma, tudo que ele mais queria era sanar seus traumas,
desavenças que não teve forças para evitar; das escolhas erradas; das
sentindo o amor em leve brisa arrebatar de seu peito a tristeza que
noites que deveria ter dormido, mas inquieto e infeliz, trocou pelas
arde e queima sem nenhum motivo aparente.
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If I cant’t smile, is no
Batista Menezes Bittencourt - UNICAMP
Quando Emma Goldman proferiu a célebre frase “If I can’t dance, is not my revolution”, ela não apenas demonstrou seu descontentamento contra uma atitude reacionária advinda de um companheiro de luta que, ao vê-la esboçando alguns passos de dança, a repreendeu sob o argumento de que “isso não era atitude de uma militante anarquista”. Emma, com este pequeno gesto, demonstrou que a alegria possui uma importante função política, a saber, impedir que as paixões tristes se apoderem do desejo, transformando a resistência numa obrigação moral regida por um forte sentimento de culpa. Em nosso imaginário de transformação social, perdura a ideia de que política é coisa séria, ou seja, ela é (deve ser) uma prática consciente e depurada de pensamentos que possam colocar em risco a sua finalidade originária que é a conquista de interesses específicos, seja através de um dispositivo democrático (disputa de eleições), ou através da imposição de forças (ditadura). Independente do modelo utilizado para se alcançar tais objetivos, tanto 6
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os militantes da esquerda, como os da direita concordam que para se fazer política é preciso saber separar o essencial (interesses em jogo) do superficial (o lúdico, ou o estético). Antes que meus comentários suscitem interpretações equivocadas, é importante deixar claro que não se trata de menosprezar uma forma específica de se fazer política, ou muito menos dizer que o compromisso ou responsabilidade não são elementos importantes neste exercício, o que pretendo combater aqui é uma noção de seriedade, que ao meu ver pode ser entendida como sinônimo de tédio, e que assim como a alegria, também possui uma importante função política. Pensemos junto com Espinosa, o indivíduo é um grau de potência singular, definido por sua capacidade de afetar e ser afetado. Os afetos seriam as forças ou os fluxos de intensidade (biológico, político e social) que nos atravessam incitando a criação de pensamentos. Inspirado neste filósofo, me atrevo a dizer que a política, mesmo aquela chamada de oficial, é também resultado de bons e maus encontros do corpo com esses afetos. Os bons encontros de acordo com Espinosa, são aqueles que
aumentam nossa potência de pensar e agir, promovendo as paixões alegres, já os maus encontros, por sua vez, produzem o efeito contrario, diminuem nossa potência, “vampirizam” nossas forças, nos tornando reféns das paixões tristes. Penso, que se fizermos um breve panorama dos grandes acontecimentos que marcaram a história da política em sua concepção molar (macro), do nazismo alemão ao fascismo italiano, passando pela guerra do Iraque e a incessante perseguição ao “terrorismo” islâmico, e mais especificamente ao muçulmano, - decalque fiel daquilo que Giorgio Agamben chama de “Homo Sacer” – terei elementos suficientes para dizer, utilizando uma expressão de David Lapoujade, que estamos diante de um corpo que já não aguenta mais. Um corpo vilipendiado, exaurido, roubado, que perdeu sua vibratilidade diante de tantos acontecimentos trágicos. Como é possível diante de uma avalanche de paixões tristes encontrarmos uma fagulha que reacenda a vibratilidade do corpo? E se recuperarmos nossas energias será que não estaremos tão ressentidos ao ponto de devolver aos
ot my politics.
pura, ou seja, para ela acontecer faz se necessário o encontro com o real (o impossível), que na maioria das vezes se dá em situações extremas. Pautado numa concepção “negativista” da vida, o esloveno provocou a ira de seus desafetos nos Estados Unidos ao formular a seguinte questão: Será que não há mais vida no piloto que jogou o avião contra as torres gêmeas do que nas pessoas que se encontravam dentro dos prédios naquele momento? A Antônio Negri, filósofo italiano, decisão do piloto que o indica que a vida se apresenta em levou ao encontro com a toda sua exuberância e plenitude nos morte neste caso é percemomentos de maiores adversidades. bido como um gesto de amor incomensurável à vida. Diferente de Zizek, por muito tempo viveu sob os auspí- penso que esse encontro com o real se dá num agenciamento que permite a cios da tristeza: “Apesar de você amanhã há de ser invenção. E ainda digo mais: Ao meu outro dia. Eu pergunto a você onde vai real nada falta porque ele é transbordase esconder da enorme euforia? Como mento! Penso que deveríamos prestar vai proibir quando o galo insistir em mais atenção na afirmação de Gabriel cantar? Água nova brotando e a gente Tarde que diz: “toda ação que empenha forças psicológicas, visa a aquisição da se amando sem parar” Existe algo que incomoda mais do alegria mais do que o evitamento da que um sorriso debochado na cara dor”. Sob a óptica de Tarde, do algoz? Mostrar que a vibratilidade seria impossível pensar do corpo não foi anulada pela força num encontro com o nefasta da máquina despótica é uma real que se dá por interode à vida. Certamente o filósofo eslo- médio da morte, pois veno Slavoj Zizek não concordaria com invenção é alegria. E a essa afirmação, uma vez que para ele alegria é o antídoto para a demonstração de uma atitude como uma vida fascista. If I can’t smile, is essa poderia ser percebida como sintoma de um processo de “deslibidini- not my politics. zação” da realidade. A vida para Zizek opera num princípio de negatividade “circo”, com diversão pura e simples ou ainda espetáculo num sentido mercadológico. Aqui ela se apresenta como invenção, um gesto que pode ganhar uma força descomunal quando é imitado por uma grande quantidade de pessoas. Uma festa semelhante àquela descrita na canção Apesar de Você de Chico Buarque. O compositor mostra a volta por cima de uma multidão que
nossos inimigos toda carga de ódio que ficara resguardada? Antônio Negri, filósofo italiano, indica que a vida se apresenta em toda sua exuberância e plenitude nos momentos de maiores adversidades. Foi assim que, inspirado em Espinosa, construiu a noção de multidão, que na teoria política tradicional é percebida como uma massa que cabe ao governante domar. Negri recupera essa concepção destituindo-a de sua carga negativa, mostrando que nela se encontra a expressão de uma atividade criadora permanente. Há quem diga que manifestações dessa natureza estiveram presentes no famoso Maio de 68, quando jovens ganharam as ruas “exigindo o impossível”, e mais recentemente nos protestos anti-globalização que passaram por Genova e Seattle. (Eu acrescentaria a Parada da Diversidade Sexual que acontece na cidade se São Paulo como um bom exemplo dessa multidão descrita pelo italiano). A alegria da forma como apresento no texto não pode ser confundida com
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vertigem
o corpo como
Nilson Oliveira*
Algumas imagens chegam até nós provocando uma sensação de estranhamento. Pela força indescritível de sua presença, vão cada vez mais atraindo, arrastando e seduzindo-nos como um canto de sereias. Não há miragens, o inferno é ver. Essa viagem nos causa uma sensação de estranhamento, mas sua força, seu modo de nos arrancar os olhos, consiste nesse estranhamento. A imagem mantém-se em nós tão somente por ser esse fora
indescritível, pelos lances que vimos, mas não conseguimos apreender, como um vulto. Assim encontramos as fotografias de Francesca Woodman, figura curiosa que, como suas imagens, seduziu sem deixar pistas. Woodman entrou para a fotografia usando o corpo como experiência, como laboratório de si. Fez uma viagem sem volta ao limiar do corpo, como se percorresse seus limites para encontrar o inevitável: seu devir-outro-fotográfico, sua imagem-vulto: trata-se de uma quase miragem, um vulto, algo que atravessa o espaço intenso da vida refletindo uma outra imagem, o além de si, que vaga desfocado, entranhada entre o tempo e espaço, como se deles fizesse parte, mas sem habitar nenhum, como uma sombra que toca sensivelmente nas coisas, atravessando as superfícies mais rudimentares, refletindo a sua natureza, sombra, sem expressar, dor, desassossego ou vontade, 8
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apenas transitando pelas coisas, acompanhando o falso movimento dos olhos, como a imagem que em silencio espreita o deserto da lente. É a dispersão do corpo, do rosto e do próprio olhar, de um corpo que jaz enterrado na fronteira entre a ausência, a aparição. Um corpo que sempre reflete à sombra de uma outra imagem, uma imagem falha; que quando mirado, se dispersa entre as coisas do mundo. Nessa esfera não há representação do rosto nem, portanto, do olhar. Seu rosto nada revela. A verdade de sua aparência é um enigma, um exílio. Sua substância acontece, fora de si, no espaço que há entre a força que o move e o mundo que o acolhe. Sua imagem não é a revelação de uma realidade, mas de uma sombra, de algo que é inteiramente vivo e no entanto não orgânico. Há nas fotografias de Francesca algo que nos força a pensar. Este algo nos arremessa de encontro a realidades em que muitas vozes se atravessam, por vezes ouvimos Artaud: o pulsar o corpo sem órgãos; por vezes Bataille: a febre e a intensidade; mas por vezes, entre a sombra e a claridade o canto silencioso de Rilke: a sombra da morte. Mas isso, esse turbilhão de coisas e vozes, nas fotografias de Francesca Woodman, só pode ser apreendido a partir de uma perspectiva da sensação, em vôos que o olhar mergulha no diverso e nele se perde, sob a égide da paixão, da dor ou da morte. Em sua primeira característica, e sob qualquer tonalidade, essas imagens só podem ser sentidas. Não é uma estrutura, mas uma abertura, a fissura pela qual os olhares se atravessam. Ela é também, de certo modo, o incomunicável; segundo o caso da arte, o incomunicável, passível no entanto de comunicação. Nas suas fotos, cada imagem parece perdida de uma atmosfera identitária, em cada foto é sempre outra, como se seu corpo estivesse mergulhado em um contínuo jogo de simulacros onde a origem, a verdade, a matriz, há muito se apagou. Não há realidades, mas tudo é o que é: um corpo estendido no deserto de uma paisagem. O deserto é a fotografia, mas o corpo parece atravessado de sensações, de febre, de morticidade. Tudo parece vivo e morto.
como se a vida fosse o fora da morte, mas a morte o seu dentro, sua afirmação inevitável. Francesca transcorre pela linha que cruza de uma realidade a outra. Nas suas fotos, as linhas estão sempre se encontrando, fabricando dobras, redobras, criando um aberto de possibilidades com a força de uma máquina desejante, que da sua intensidade-corpo, passa para uma máquina-desejo, que, no seu funcionamento, engendrada uma corrente de fluxos, cortes, vultos, peles. Nas suas imagens, há sempre uma pulsação de intensidades operando no seio de um acontecimento: série binária é não linear vazando por todas as direções. O desejo não cessa de efetuar acoplamentos de fluxos, pensamentos, volúpia, sobra, pele. O corpo de Francesca parece amarrado ao seu limite, mas dele escorre uma leveza indescritível. A sua imagem revela-se como uma quase epifania, mas nunca da ordem de um sagrado. Sua imagem atravessa a fotografia como o Monge Negro rasga a retina do jovem Kovrin, conduzindo-o ao seu limite, mas a atração também. Kovrim é atraído a ir, e vai atravessando todos os riscos que implicam esse ir: Kovrin reteve a respiração, seu coração parou de bater e o mágico, extático transporte que há muito tempo esquecera, voltou a palpitar em seu coração. O susto é inevitável. Assim foi Francesca na sua experiência com a fotografia, mas sobretudo, na sua viagem à superfície do
corpo. Lembremos Valéry: o mais profundo é a pele. Essa foi a sua viagem, ao profundo da superfície, às entranhas da derme. Assim vamos nós ao encontro das suas imagens, numa experiência da sensação e do ver. O susto arderá através das retinas. Francesca Woodman nasceu em Devem, Colorado, em 1958. Começou a fotografar aos 13 anos. Seu foco de experiências era o próprio corpo. Em Janeiro de 1981 publica o livro “Disordered Interior Geometries”. Uma semana depois, atravessa a janela do seu apartamento.
*Nilson Oliveira, é editor da revista Polichinello; autor de Apenas Blanchot (org), [Pazulin, 2008]; A Outra Morte de Haroldo Maranhão [IAP, 2006]
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tropa-trupe
Querem saber o que é Tropa Trupe, quem são, o que fazem? Podemos dizer que não é apenas um grupo circense que habita um espaço da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É um lugar (não apenas situado fisicamente) artístico que produz outros modos de afetos e percepções; lugar-outro que propicia outras maneiras de sentir e pensar o circo, suas práticas e seus efeitos. Por isso, num dia decidimos convidá-los para uma entrevista para que eles nos falassem um pouco mais sobre suas peripécias, suas trajetórias e projetos. Ei-la! BULA – Quem é a TROPA-TRUPE hoje?
especialidade é circo da rua. Passando por Natal, fiquei interessado pelo formato
Renata – A Tropa-Trupe é composta por dez integrantes: Rodrigo Brugman, Uilo
das varietês, que é muito diferente do circo tradicional. É a variedade: pode ser
Andrade, eu - Renata Marques, Abel Araújo, Geovani Almeida, Cássia Paim,
circo, dança, música, teatro e isso faz parte da minha formação. Aí apresentei
Adolfo Ramos, Luíza Guedes, Bernardo Rodrigez, Gabriel Rodrigez - o mais
nas varietês no Circo e gostei muito do público. E daí fui me integrando cada
novo integrante argentino - e Wendel Gabriel, nosso colaborador. Essa equipe
vez mais no grupo.
está junta desde o ano de 2008, porque antes eram apenas Rodrigo e Uilo, que
Rodrigo - Fui o primeiro a formar o grupo. Eu participava antes de uma Compa-
realizavam as atividades na Vila de Ponta Negra.
nhia de Arte em São Paulo, chamada Baque-Bolado, que trabalhava percussão.
BULA – Gostaríamos de conhecer o percurso de cada um até
Havia circenses envolvidos, que andavam de pernas-de-pau. Então formamos
chegar aqui.
um subgrupo para unir a recreação educativa à contação de história. E aí surgiu
Renata – Fui uma das primeiras a chegar como colaboradora, depois do
o nome Tropa-Trupe. Depois me mudei para Natal, trazendo as minhas pernas-
trabalho inicial de Rodrigo e Uilo no Teatro da Vila de Ponta Negra, que
de-pau. Foi na época que eu e Uilo começamos a estudar no Curso de Educação
durou apenas seis meses. A Tropa, sem espaço, foi lá para minha casa,
Artística do Departamento de Artes da UFRN. Nós participávamos dos eventos
para as atividades não pararem. Eu e Rodrigo ficamos na publicidade do
da UFRN (CIENTEC, Calourada) com as pernas-de-pau, e isso foi ganhando
grupo. Criamos um blog para divulgar o nosso trabalho. Então surgiram
cada vez mais força. No Curso, busquei outros conhecimentos e hoje eu tenho
trabalhos em eventos.
uma pesquisa direcionada para o palhaço.
Luiza Guedes – Eu conheci a Tropa-Trupe na inauguração do Teatro da Vila, em
BULA - Como vocês iniciaram o trabalho de palhaço?
2007, quando participei das oficinas de perna-de-pau e xilogravura. Comecei a
Rodrigo - Eu e Uilo percebemos que tínhamos essa energia de palhaço.
frequentar e com o tempo já estava participando do grupo.
Aí apareceram propostas de trabalhos, como recepções de eventos, pro-
Adolfo – Eu era do grupo Família Marmota já há algum tempo e participei
pagandas e isso foi uma experiência muito rica para nós. Mas foi no X
também das oficinas. Aí viajei a Recife durante o Carnaval. Mas, no casa-
ENEARTE - Encontro Nacional de Estudantes de Arte, entre 13 e 23 de
mento de Rodrigo e Luíza, eu voltei ao Circo. Então conheci Geovani, Abel,
outubro de 2006, em São Luis do Maranhão - o marco do grupo. Lá, experi-
Bernardo e continuei na Tropa até hoje.
mentamos diariamente as técnicas de palhaço e ministramos uma oficina
Geovani - Entrei no grupo quando iniciamos as dinâmicas musicais no
de perna-de-pau. E, enfim, hoje estamos aqui no Circo, que fortaleceu mais
Circo. A partir daí, me inseri cada vez mais no Circo, aprendendo novas
ainda essa pesquisa voltada para o palhaço.
técnicas e modalidades: a técnica do ‘mastro chinês’, a acrobacia em solo
BULA - Quais são as principais atividades realizadas pelo grupo?
e a coletiva. Além da técnica do tecido, trazida por Luiza quando participou
Renata - Trabalhamos com projetos: temos as Variêtes, um projeto de espetácu-
da Academia Brasileira de Circo, em São Paulo, o que nos motivou a conti-
los do Circo aberto a convidados. Temos o espetáculo do grupo, o Tempo - um
nuar e estamos aqui até hoje. Abel –... Também entrei nesse período. Na época, entrei para articular a nossa participação em um edital de auxílio à criação de novos números circenses, mas me envolvi com a parte artística também. Wendel – Eu já era envolvido com uma Escola de Circo aqui no estado, o Estofaria Teatral. Aí eu conheci a Tropa-Trupe em um estande no MADA, em 2007. Foi o primeiro contato com outras pessoas do Circo no Estado. Em 2007, houve o “Colóquio dos Pernautas”, onde foi a minha primeira participação na Tropa e desde então tenho colaborado com o grupo. Gabriel – Eu sou de Buenos Aires, formado em circo já há sete anos. A minha 10 10
BULA+ Nº 9 - Abril 2010
fotos: Juliana Araújo
espetáculo Artemporal, projeto aprovado
do Nordeste e o Movimento Redemoinho,
pelo MINC, do qual já realizamos algumas
este voltado para a articulação cultural
apresentações. Outro projeto é o Cine
aqui em Natal.
Mambembe - exibições de vídeos sobre arte
BULA - Quais são os apoios de
circense. Existe o projeto de oficinas, o ‘Eu
instituições que vocês recebem ?
quero ser grande’, iniciado com as pernas-
Renata - O maior apoio é o da Universida-
de-pau, mas hoje já com tecido, acrobacia,
de, pelo espaço do Circo, onde não paga-
malabares e jogos teatrais. Esse projeto foi
mos luz, nem água, nem Internet. Se preci-
sistematizado como um produto de oficinas
sássemos manter um espaço hoje, talvez
circenses para levantar recursos. Não o de-
não tivéssemos condições. Também o fato
senvolvemos no nosso espaço por questões financeiras, mas em outros lugares,
de sermos um Projeto de Extensão da Universidade facilita bastante as trocas
como quando fomos contratados pela Prefeitura de Major Sales. Temos um projeto
que realizamos. Além da UFRN, temos o apoio da ADURN, do NAC, que são
de espetáculo iniciado agora, o Cirquinho, que é um circo pequenininho itinerante,
apoios pontuais para o auxílio de algumas necessidades, como fretes de carro,
feito com um guarda-sol e um pano de roda. Quando ele é aberto fica como um
aluguel de som. E a Offset com o material de divulgação.
Circo pequeno e pode ser levado a qualquer lugar... Também oferecemos oficinas
BULA - Gostaríamos que vocês falassem sobre o proces-
para turmas da UFRN, das quais já participaram duas turmas de fisioterapia.
so do espetáculo ‘O TEMPO - UM ESPETÁCULO ARTEM-
BULA - Então, na realização desses projetos, quais são as
PORAL” no que diz respeito à sua concepção, temática,
dificuldades encontradas por vocês?
direção e montagem.
Luiza - Viver de arte é sempre uma dificuldade. Nós escrevemos projetos e con-
Miele - Eu e Rodrigo escrevemos todo o roteiro a partir de discussões sobre as vá-
seguimos recursos apenas com trabalhos realizados fora do circo. E, na Arte,
rias faces do tempo: o tempo metereológico, cronológico, o tempo da criança, dos
o Circo é uma das vertentes mais segregadas. Iniciamos agora junto ao Circo
animais... Depois, com o grupo, fomos visualizando as cenas aplicadas às possíveis
Grok a proposta do Circo-Escola: ensinar circo a qualquer um, mesmo que não
técnicas circenses: cenas com camas elásticas, tecidos...
seja da família circense, o que também é uma dificuldade, assim como ser re-
Rodrigo -... Readaptamos esse roteiro para editais, por que era um espetáculo
conhecido como profissional circense. Sem falar na questão financeira, mesmo
caro no projeto. Pretendíamos usar diversas linguagens e recursos tecnológicos,
acreditando que é um mercado aberto. E também a falta de instituições que ofe-
com a ideia de unir todos os nossos conhecimentos artísticos. Pois não somos
reçam a formação técnica, pois pretendemos ser uma Escola de Circo. Até por
propriamente da família circense, não somos do teatro em si, somos um conjunto
que aprendemos as técnicas já adultos, e isso torna difícil encontrar quem nos
de arte que envolve todas as nossas vivências com o áudiovisual, o teatro, o
ensine com segurança e objetividade, principalmente as modalidades aéreas ou
circo, a música, o cinema. Mas ter utilizado a eficiência da precariedade deixou
insalubres por natureza. Mas são dificuldades que estão sendo solucionadas.
o trabalho mais dinâmico. Quem nos ajudou muito foi Marco França, do Clowns
Estamos buscando fundamentos, pois não somos da tradição circense. Alguns
de Shakespeare.... Sandro, Magalize, e Laurisse, atores do grupo Família Mar-
integrantes irão viajar em busca de mais conhecimento. Somos um grupo coeso,
mota, prepararam os atores na construção dos personagens. O que dificultou a
mas sempre aberto às trocas, trabalhando constantemente com colaboradores,
conclusão eficaz do trabalho foi a questão da Direção, que foi conjunta. Mas o
como os integrantes do Circo Grok. Estamos integrados a dois movimentos po-
espetáculo será finalizado em 2010, com a colaboração do Marco França. O
lítico-culturais para articular as trocas dos saberes circenses: o Conexão Trupes
Tempo está inscrito no Edital Carequinha, do qual esperamos o resultado. E ainda ganhou o Auxílio Pauta, para quatro apresentações no Teatro Alberto Maranhão em 2010. BULA - Quais os projetos futuros do grupo? Renata - O projeto principal é aprimorar tudo o que trabalhamos esse ano: circular mais com o Projeto ‘Eu quero ser grande’ nos interiores. Trabalhar a música aqui no circo em um programa de TV ou Web, com outros coletivos parceiros. Pretendemos trabalhar a música ao vivo nos espetáculos, produzir outro espetáculo para circulação e trabalhar mais o Tempo e o Cirquinho. Vamos organizar Encontros do Trupes do Nordeste aqui novamente, e trazer a Escola Nacional de Circo a Natal, para a nossa capacitação. 11 BULA+ Nº 9 - Abril 2010 11
CAFEZINHO IMAGINÁRIO COM ÁLVARO DE CAMPOS
Nesses dias tive uma conversa rápida, mas intensa, com o engenheiro naval Álvaro de Campos, num recôndito sebo da cidade. Salvo engano era meio-dia de uma terçafeira nublada – o que possibilitou que nos recolhêssemos para apreciar um cafezinho e conversar confortavelmente... Segue então alguns trechos de nosso tête-à-tête. Rodrigo Sérvulo: Álvaro, você que é um engenheiro – digamos – metafísico... Álvaro de Campos, (interrompendo): “Nada me prende a nada!” RS: Certo, mas não poderíamos concluir que sua produção poética é, dentro de um ponto de vista estético e filosófico, uma Metafísica? AC: “Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer! Não me tragam estéticas (...) tiremme daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos (...) Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido com todo o direito a sê-lo...” RS: Sim, com todo direito a sê-lo, tudo bem!... (risos) Mas então, mudando de assunto, o senhor que é engenheiro naval, deve ter viajado muito, o que é bom para o seu lado poeta, pois já vistes várias paisagens inspiradoras, não é? AC: “A melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. Sentir tudo excessivamente, porque todas as coisas são, em verdade, excessivas e toda realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida...” RS: E o que achas dos que falam sobre sua genialidade?
enquanto poeta?
Ilustração: Renata Lisieux
por Rodrigo Sérvulo
AC: “Gênio? Neste momento cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu...” RS: Então, já que é assim, só nos resta aproveitar o tempo... AC: “Aproveitar o tempo! Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?” RS: Engraçado, por vezes penso que você sempre quer fugir das questões, como foges de quem és inventando novas questões e novos eus! AC: “Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? (...) Sou quem falhei ser... (Mesmo assim)... que sei do que serei, eu que não sei o que sou?” RS: Então, você é o que pensa ser... AC: “Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos...” A conversa se prolongou por mais algumas dezenas de minutos, Álvaro se mostrava cansado para com a vida, mas sempre me respondia incisivo aquilo que ele achava sobre a vida e as coisas, cada vez que falava algo...
*As falas de Álvaro de Campos foram livremente extraídas do livro “Poesias de Álvaro de Campos”, de Fernando Pessoa. São Paulo: FTD, 1992 – (Coleção Grandes Leituras)
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Professor,
profissão desnecessária? A primeira vez que li esta frase, talvez por
uma analise critica e consciente. Contudo para
ingenuidade e falta de conhecimento, me senti
que essas ponderações possam ser realizadas é
ofendida como futura pedagoga, no momento não
preciso desenvolver a capacidade de reflexão a
Suelen Santana
concebi a real intenção e profundidade do autor.
respeito do ser, do ter, do fazer e do agir humano. É
suelsantana@hotmail.com
Como poderia me tornar supérflua, dispensável se
fundamental habilitar o pensar, o pensar dialético
estudava para ser uma professora atuante e útil no
de todas as coisas, o pensar critico e contestador
processo de ensino e aprendizagem escolar? Há!
daquilo que nos dizem ser verdade e ideal. Porque
Não fazia sentido aquilo, e acabei me magoando
se continuarmos colaborando com a educação
com quem havia mandado a singela frase com um
bancaria e castradora, que tipo de democracia
feliz dia dos professores.
estamos estruturando? Que tipo de sociedade
Passado algum tempo, tive a oportunidade de
“
Afirma-se que não tem sentido uma escola sem professores, mas que , por sua vez o professor precisa ter clareza quanto a que sua tarefa consiste em se tornar supérflua.
”
Hellmut Becker
estamos construindo?
ler Educação e Emancipação, livro de Theodor
Adorno nos responde à essas indagações ,
Adorno, traduzido por Wolfgang Leo Maar. O
dizendo o tipo de sociedade que não devemos
livro foi organizado com alguns textos desenvol-
reconstruir, no sentido de construir novamente
vidos em debates e conversas entre Adorno e
igual. Ele se refere a uma sociedade subserviente a
Hellmut Becker. Durante a leitura pela segunda
intolerância e a barbárie, sociedade essa capaz de
vez me deparei com a frase: “ Afirma-se que não
aplaudir massacres e abonar preconceitos.
tem sentido uma escola sem professores, mas que,
O autor salienta em seus discursos que a meta
por sua vez o professor precisa ter clareza quanto
principal da educação é evitar e extinguir a bar-
a que sua tarefa consiste em se tornar supérflua.”
barização da população, por meio da consciência,
Mas agora ela já não me magoava tanto, pois con-
uma consciência que impele qualquer pessoa a se
segui junto ao volume perceber como minha visão
envergonhar da brutalidade dos outros se tornan-
pedagógica encontrava-se arraigada as concepções
do incapaz de produzi-la. E isso se torna possível,
tradicionais, eu queria ser indispensável, necessá-
a medida que objetivamos a por em prática uma
ria, dona do saber!!
educação baseada na reflexão critica, na elabo-
Não é esse o papel do professor atual, Segundo
ração do passado que dentre outras explicações
Adorno, resumidamente, fazer-se desnecessário é
pode ser traduzido pela desalienação social e pela
proporcionar aos alunos oportunidade de se livrar
continua busca pela democracia.
da autoinculpável menoridade, fato esse que leva
E não para por aqui, no livro ainda deparamos
a pessoa agir e pensar somente com a aprovação
com reflexões sobre televisão e formação, tabus a
e a orientação de outrem, ou seja, a pessoa fica
cerca do magistério, a relação entre professores e a
presa, não se faz capaz de produzir e refletir por si
filosofia, e um para quê da educação? Cogitações
mesma, o que torna a emancipação de si inviável.
necessárias para qualquer pessoa que venha a se
A emancipação é uma exigência própria da
deparar com a educação e incorpore essa neces-
democracia, afirma Adorno e sob a luz dos seus
sidade de se torna supérfluo, à medida que trans-
discursos, compreendemos que a busca por essa
forma sua prática pedagógica num instrumento
educação emancipadora se faz expressamente
de emancipação pessoal e social. Perdoei meu
necessária, pois todos os dias somos acometidos
algoz!!!
por valores, conceitos e princípios que carecem
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Estranhos Entre a janela e a porta de minh´alma vejo um espaço inexistente, vejo um buraco sem tamanho, vejo a inocência que nunca tive. Entre os becos escuros de minha mente vejo tudo que se parte facilmente, vejo tudo que é difícil de compreender. vejo eu, vejo você e todas as vozes a me sussurrar.
As estrelas, em seu cio, badalam como sinos na minha cabeça. Mas não são pensamentos São vespas a rasgar as veias encefálicas, depressa depressa Enguias que chafurdam na sarjeta dos nervos À caça da alma no útero de Platão. Está na hora da vingança. A poesia assassina desmembra e desfigura. Estupra com terremotos, rápida como cachoeira e metralhadoras Enquanto na ampulheta escorre o visgo purulento, Os últimos farelos do gesso da alma Não há moscas. Apenas mariposas, corujas e outros filósofos.
Pois entre a minha vida e a sua não há espaços nem lugares que não possamos explorar, nem término de tudo o que sempre iremos recomeçar.
O VOO
estou sendo levado pelo vento ou por um grande pássaro rasgando os ares esquecidos num bazar aéreo barato eu vi os anjos e os querubins pentelhando sem palavras eu dancei com crianças de um refinado exército da utopia pulando quarteirões inteiros com uma caneta roubada cagando pro jornal do meio dia e azarando a mulher egípcia seus olhos brilham como jovens viajando à toa e à deriva e eu amo o esmo de nosso amor e vago mesmo confessado fui levado aos subúrbios e ao núcleo do subterrâneo coletivo e mergulhei de cara numa pedra de tempo sempre reconstruída aplaudi e acenei para as gentes todas que uivaram seus pesadelos e seus sonhos com planícies de silêncio fraternos e musicalmente atraentes tenho ouvido o urro de seus poemas tenho estado com suas poesias solitário ou zunindo na multidão eu ouço tudo musicar esferas e rios
Barbosa da Silva
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Ana Apolinário (akapolinario.blogspot.com)
Golpe de Estado
Alyson Thiago
quart
o
Foto: Tryce Mello
Sob a parede fria do
Ela entrou em casa com a morte nos olhos. Não olhava para mim diretamente. Parecia ter medo de, ao ver meu olhar, perceber aquilo que ela já sabia: que estava morta e nada poderia trazê-la de volta à vida que ela tinha antes. O corpo que eu via diante de mim era o mero espectro de algo que um dia foi humano. Todas as noites ela chegava em casa, na casa onde seu corpo viveu junto com o meu. Ela chegava sempre às três da manhã como se viesse de uma orgia. Mas não havia contentamento em seu olhar, não havia saciedade, apenas a eterna contemplação do vazio, como se nada que tivesse feito enquanto viva fizesse alguma diferença agora, ou mesmo tivesse valido a pena. Ela caminha pela sala, para por alguns instantes, parece focar sua atenção em alguma coisa, depois caminha em direção ao quarto. Eu via tudo deitado na cama, a porta aberta vendo o corredor e sala ao fundo. Era sempre a mesma mórbida encenação. Às vezes penso em pedir-lhe desculpas por a ter deixado morrer. Ou mesmo por não ter deixado ela viver enquanto éramos um casal como outro qualquer. Ela senta do outro lado da cama. De costas para mim, ela não vira o rosto nem mesmo quando se deita ao meu lado. Olha o teto. Abre a boca como se fosse gritar por uma dor insuportável e invisível. Parece querer respirar. Eu penso em me virar para o seu lado e abraçá-la. Ainda a desejo, mesmo que seu corpo seja apenas uma memória pálida e esquelética vestida com roupas carcomidas e exale o cheiro da morte. Eu toco a sua mão, desde que ela morreu é a primeira vez que faço isso. Ela não reage. Sua pele é a superfície mais fria que já toquei na vida, e seu frio entra mim como se fosse congelar meu coração. No entanto, antes que seu corpo se tornasse pó, como sempre ocorria depois que ela se deitava do meu lado, penso em ter visto seus olhos se virarem para o mim. Mas, talvez, não. Talvez seja apenas a vontade de que, em algum lugar desse pesadelo, algo nela ainda esteja viva.
Mário C. Rasec
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Mรกrio C. Rasec, "Mergulho" (tinta de tecido e linha sobre camiseta)