s surpreendentes aventuras do BarĂŁo de Munchausen em xxxiv capĂtulos escritas por RuDOlf Erich Raspe
(com a ajuda de nobres cavalheiros)
traduzidas por Claudio Alves MarcOnDes ilustradas por Rafael COutinhO
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Uma mentira que vale mais do que mil verdades – isabel lopes coelho
parte I 15 prefácio 17 aos leitores 19 na cidade de londres, inglaterra
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Capítulo i O Barão faz um relato de suas primeiras viagens. As consequências assustadoras de uma tempestade. Chega ao Ceilão; enfrenta e vence dois adversários extraordinários. Retorna à Holanda.
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Capítulo ii No qual o Barão se mostra excelente atirador. Ele perde o cavalo e encontra um lobo. Faz com que este puxe o seu trenó. Promete entreter seus amigos com o relato de tantos fatos que bem merecem ser ouvidos.
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Capítulo iii Encontrão do nariz do Barão com o umbral de uma porta, e suas consequências maravilhosas. Cinquenta pares de patos e outras aves destruídos com um único tiro. Espanca uma raposa para fora de sua pele. Conduz, de maneira inusitada, uma velha porca para casa e vence um javali.
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Capítulo iv Barão medita sobre o veado de santo Huberto. Abate um veado com um caroço de cereja, e as maravilhosas consequências. Mata um urso com excepcional destreza, e o perigo é descrito de modo patético. Atacado por um lobo, ele o vira do avesso. É acometido por um cão louco, do qual consegue escapar. O casaco do Barão fica louco e, com isso, todo o seu guarda-roupa vive uma confusão.
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Capítulo v Consequência de muita atividade e presença de espírito. Descrição de um cão de caça predileto, que dá à luz enquanto persegue uma lebre; esta também tem filhotes ao ser perseguida pelo cão. Presenteado com um cavalo famoso pelo conde Przobofsky, com o qual realiza muitas façanhas extraordinárias.
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Capítulo vi O Barão é feito prisioneiro de guerra e vendido como escravo. Cuida das abelhas do sultão, que são atacadas por dois ursos. Perde uma das abelhas; um machadinho de prata, que ele arremessa contra os ursos, ricocheteia e cai na Lua; ele o recupera por meio de uma invenção engenhosa; cai na Terra de volta e sai de um poço. Consegue desentalar uma carruagem que cruza com a sua em uma via estreita, de maneira jamais tentada ou praticada. Os assombrosos efeitos do gelo sobre a trompa de um criado.
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Capítulo vii O Barão relata o que se passou em sua travessia para a América do Norte, que bem merece a atenção do leitor. Travessuras de uma baleia. Uma gaivota salva a vida de um marinheiro. A cabeça do Barão metida em sua própria barriga. Um vazamento perigoso contido a posteriori.
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Capítulo viii Um banho no Mediterrâneo. Encontra um companheiro inesperado. Chega sem querer a regiões de calor e trevas, da qual só consegue sair dançando um hornpipe. Assusta seus salvadores e volta à costa.
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Capítulo ix Aventuras na Turquia e no rio Nilo. Avista um balão sobre Constantinopla; dispara contra ele e o obriga a descer; nele encontra um filósofo experimental francês. Vai a uma embaixada no Grande Cairo, e retorna pelo Nilo, onde se vê em uma situação inesperada e acaba ilhado por seis semanas.
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Capítulo x Durante o cerco de Gibraltar, faz uma visita a um velho amigo, o general Elliot. Afunda um navio de guerra espanhol. Desperta uma mulher idosa na costa africana. Destrói todos os canhões inimigos; assusta o conde d’Artois e o manda de volta a Paris. Salva a vida de dois espiões ingleses com uma funda idêntica à que matou Golias; e liberta os sitiados.
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Capítulo xi Intrigante relato sobre os antepassados do Barão. Uma discussão sobre o local em que Noé construiu a arca. A história da funda, e suas características. Um poeta predileto apresentado em ocasião não muito adequada. A abstinência da rainha Elizabeth. O pai do Barão viaja da Inglaterra à Holanda em um cavalo-marinho, e depois o vende por setecentos ducados.
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Capítulo xii a travessura A travessura e suas consequências. Castelo de Windsor. Catedral de St. Paul’s. Real Colégio de Medicina. Agente funerário, coveiros etc. quase arruinados. Zelo dos boticários.
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Capítulo xiii uma viagem ao norte O Barão viaja com o capitão Phipps, ataca dois ursos enormes e por muito pouco consegue escapar com vida. Ganha a confiança desses animais e, em seguida, abate milhares deles; carrega o navio com os pernis e as peles; distribui estes como presentes e passa a ser convidado de todas as festas municipais. Desentendimento entre o Barão e o capitão, em que, por razões de polidez, o capitão consentiu que o outro levasse a melhor. O Barão recusa o presente de um trono e da imperatriz incluída na oferta.
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Capítulo xiv O nosso Barão supera o Barão de Tott em todos os aspectos, mas ainda fracassa em sua tentativa. Cai em desgraça junto ao grão-senhor, que ordena sua decapitação. Foge e embarca em um navio, que parte para Veneza. A origem do Barão de Tott, com notícias dos parentes do grande homem. A querida do papa Ganganelli. A predileção de Sua Santidade por mariscos.
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Capítulo xv Outro relato da travessia de Harwich a Helvoetsluys. Descrição de vários objetos marinhos jamais mencionados por nenhum outro viajante. Rochas vistas nesse trecho equivalem em magnitude aos Alpes; lagostas, caranguejos etc. de dimensões extraordinárias. A vida de uma mulher é salva. O motivo de ela ter caído no mar. As recomendações do dr. Hawes devidamente cumpridas.
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Capítulo xvi Este é um capítulo muito breve, mas contém um fato pelo qual a lembrança do Barão deve ser cara a todos os ingleses, sobretudo para aqueles que, daqui em diante, tenham a desventura de cair prisioneiros de guerra.
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Capítulo xvii Viagem rumo ao Oriente. O Barão apresenta um amigo que nunca o deixou na mão; e ganha uma centena de guinéus ao apostar tudo no nariz do amigo. Jogo iniciado a bordo. Algumas outras circunstâncias que vão, espera-se, proporcionar ao leitor uma dose nada desprezível de diversão.
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Capítulo xviii uma segunda viagem à lua Uma segunda visita à Lua (mas por acidente). O navio impulsionado por um furacão até mil léguas acima da superfície do mar, onde encontram nova atmosfera, que os conduz até um grande embarcadouro na Lua. Descrição dos habitantes e do modo como chegaram ao mundo lunar. Animais, costumes, armas de guerra, vinho, hortaliças etc.
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Capítulo xix O Barão cruza o Tâmisa sem recorrer a ponte, navio, barco, balão ou mesmo à própria vontade; e, ao despertar de uma longa soneca, acaba com um monstro que enriquecia com a destruição alheia.
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Capítulo xx O Barão escorrega pelo centro do mundo: após uma visita ao monte Etna, ele se vê nos mares do Sul; visita Vulcano nessa travessia; sobe a bordo de um navio holandês; chega a uma ilha de queijo, rodeada por um mar de leite; descreve objetos muito extraordinários. Perdem a bússola; o navio passa por entre os dentes de um peixe desconhecido nessa parte do mundo; encontram dificuldades para escapar dali; chegam ao mar Cáspio. Deixa um urso morrer de fome. Algumas anedotas sobre coletes. Neste capítulo, que é o mais longo, o Barão interpreta moralmente a virtude da veracidade.
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apêndice O retorno Extraodinária cavalgada no dorso de uma águia, sobrevoando a França até Gibraltar, as Américas do Sul e do Norte, as regiões polares e o retorno à Inglaterra, tudo isso em 36 horas.
parte II 113 prefácio
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Capítulo xxi O Barão insiste na veracidade das suas Memórias já divulgadas. Tem a ideia de explorar o interior da África. Conversa a respeito com Hilaro Frosticos. E também com Lady Fragrantia. Acompanhado de outras personagens de respeito, o Barão vai à Corte; e conta uma historieta ao marquês de Bellecourt.
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Capítulo xxii Preparativos para a expedição do Barão à África. Descrição da carruagem; os requintes da decoração interna; os animais que a desenharam; e o mecanismo das engrenagens.
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Capítulo xxiii O Barão inicia o périplo. Escolta uma esquadra até Gibraltar. Recusa a dádiva da ilha de Cândia. A carruagem é danificada pelo Pilar de Pompeu e a Agulha de Cleópatra. O Barão se sobressai a Alexandre. Quebra a carruagem e fende um enorme rochedo no cabo da Boa Esperança.
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Capítulo xxiv O Barão guarda a carruagem etc. no cabo e reserva uma passagem para a Inglaterra em um vapor que retornava da Índia. Acaba naufragando em uma ilha de gelo, perto da costa da Guiné. Escapa com vida do naufrágio e cultiva na ilha legumes variados. Encontra navios pertencentes a negros, trazendo escravos brancos da Europa, em retaliação, para que trabalhem em plantações nos climas gélidos perto do polo sul. Desembarca na Inglaterra e faz um relato da expedição diante do Conselho Privado de Sua Majestade. Grandes preparativos para nova expedição. A Esfinge, Gogue e Magogue, e uma excelente companhia o esperam. As ideias de Hilaro Frosticos relativas às regiões do interior da África.
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Capítulo xxv O conde Gosamer é arremessado pela Esfinge na neve sobre o cume de Tenerife. Gogue e Magogue cuidam da Esfinge durante o resto da viagem. O Barão desembarca no cabo e reincorpora a antiga carruagem etc. ao séquito. Adentra a África, seguindo desde o cabo da Boa Esperança no rumo norte. Derrota um bando de leões por meio de um curioso estratagema. Cruza um imenso deserto. Todo o seu grupo e carruagem etc. são soterrados por uma tempestade de areia. Consegue salvar todos e chega a um país fértil.
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Capítulo xxvi Um banquete com touros vivos e kava. Os moradores locais admiram os aventureiros europeus. O imperador vem receber o Barão e presta-lhe homenagem. Os habitantes do centro da África descendem do povo lunar, como prova uma inscrição na África, assim como a analogia com sua língua, e também com a língua dos antigos citas. O Barão é nomeado soberano do interior da África após o falecimento do imperador. Ele se empenha em abolir o costume de comer carne crua, o que desperta muito descontentamento. Os conselhos de Hilaro Frosticos nessa ocasião. O Barão discursa diante de uma Assembleia dos Estados, o que só provoca mais inquietação. Ele se aconselha com Hilaro Frosticos.
156 Capítulo xxvii
Uma proclamação por parte do Barão. A irreprimível curiosidade da população quanto à natureza da nonada. Agitação geral do povo por esse motivo. Invasão de todos os celeiros do Império. As emoções de todos amainadas. Uma ode em homenagem ao Barão. Conversa com Fragrantia sobre a excelência da música.
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Capítulo xxviii O Barão convoca toda a população do Império para trabalhar na construção de uma ponte ligando a região à Grã-Bretanha. O expediente a que recorre para tornar seguro o arco. Ordena que uma inscrição seja entalhada na ponte. Retorna com toda a sua comitiva, carruagem etc. à Inglaterra. No meio da ponte, do alto, seu olhar abarca os reinos e as nações.
165 Capítulo xxix A comitiva do Barão não gosta do estilo
heroico de Dom Quixote, que por sua vez é atacado por Gogue e Magogue. Lorde Whittington, com o cortejo do senhor Prefeito, sai em ajuda de Dom Quixote. Gogue e Magogue atacam Sua Senhoria. Lorde Whittington faz um discurso e afasta Gogue e Magogue do grupo. A confusão e o conflito se espalham entre todos, até que o Barão, com muita presença de espírito, acaba com o tumulto.
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Capítulo xxx O Barão volta à Inglaterra. O Colosso de Rodes o parabeniza. Grande festa com o retorno do Barão, e um concerto excepcional. A conversa do Barão com Fragrantia, e a opinião dela sobre a Volta das ilhas Hébridas.
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Capítulo xxxi Disputa judicial entre Dom Quixote, Gogue, Magogue etc. A formação de um importante tribunal. A aparência dos presentes. As matronas, juízes etc. O método de escrita e o emprego de bagatelas de entretenimento da moda. O Wauwau vem do país do preste João e arrasta toda a Assembleia em vão até o topo de Plinlimmon e depois para Virgínia. O Barão encontra uma ilha flutuante em sua travessia para a América. Persegue o Wauwau, com toda a comitiva, através dos desertos da América do Norte. O curioso aparato para capturar o Wauwau em um atoleiro.
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Capítulo xxxii O Barão discursa para o grupo, e a perseguição continua. Afastando-se da comitiva, o Barão cai nas mãos de selvagens, é escalpelado e amarrado a um tronco para ser assado, mas consegue se libertar e vencer os selvagens. Por terra, o Barão atravessa as florestas da América do Norte e alcança os confins da Rússia. Chega ao castelo do Nareskin Rowskimowmowsky e adentra galopando os domínios dos Cabeçasduras. O Barão enfrenta o Nareskin em combate corpo a corpo e, generosamente, poupa a vida dele. Desembarca na ilha da Amizade e faz discursos com Omai. Com todo o séquito, o Barão viaja de Otaheite até o istmo de Darién e, depois de abrir um canal pelo istmo, volta à Inglaterra.
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Capítulo xxxiii O Barão viaja a Petersburgo e conversa com a imperatriz. Convence tanto os russos como os turcos a parar com as ofensas mútuas e, juntos, construir um canal através do istmo de Suez. O Barão descobre a Biblioteca de Alexandria e conhece Hermes Trismegisto. Desafia Seringapatam e desafia Tippoo Sahib a um combate individual. Ocorre o duelo. O Barão é ferido no rosto, mas consegue derrotar o tirano. O Barão retorna à Europa e organiza o içamento do casco naufragado do Royal George.
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Capítulo xxxiv O Barão discursa perante a Assembleia Nacional e põe para fora todos os seus membros. Expulsa as vendedoras de peixe e a Guarda Nacional. Persegue todos os expulsos até uma igreja, na qual derrota a Assembleia Nacional etc., sob a liderança de Rousseau, Voltaire e Belzebu, e liberta Maria Antonieta e a família real. 204 sobre os colaboradores
uma mentira que vale mais do que mil verdades “Sei bem que tudo isso deve parecer muito estranho. Porém, se a sombra de uma dúvida restar no espírito de alguém, a solução é simples: que ele próprio faça essa viagem, pois vai então constatar o quão fiel à verdade sou como viajante.” barão de munchausen
Cavalheiros,
Certamente esta plateia tão ilustre já ouviu falar do Barão de Munchausen e de suas fantásticas aventuras. Um homem que, no final do século xviii, antes mesmo de o primeiro satélite ser lançado em órbita, explorou a Lua, viajou ao centro da Terra, escapou de monstros e animais ferozes, transportou pelo ar palácios inteiros. As façanhas do Barão atravessaram os séculos e tornaram-se um fenômeno literário, ganhando um sem-número de versões e de adaptações. De histórias em quadrinhos a longas-metragens, o herói destemido e espalhafatoso permanece símbolo do sonhador, do exagero cômico, do impossível. Tais histórias não apenas foram exaustivamente adaptadas e traduzidas como também influenciaram escritores de gerações posteriores, direta e indiretamente. Encontramos ecos da personalidade do Barão, por exemplo, em Pinóquio – um dos mais célebres mentirosos da literatura –, ainda que não se possa comprovar que Carlo Collodi (1826-90) de fato tenha se inspirado no personagem de Rudolf Erich Raspe (1736-94). Outra referência mais evidente foi a homenagem que L. Frank Baum (1856-1919) fez ao Barão no clássico O maravilhoso Mágico de Oz (1900) ao criar o País dos Munchkins e seus habitantes. Diferente de Pinóquio, no entanto, os causos do Barão não podem ser lidos como sofisticadas enganações, mais sim como relatos absurdos e amplificados da experiência de um explorador disposto a defender seus
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ideais a qualquer custo. Nesse aspecto, a figura do Barão guarda mais semelhanças com outra figura da literatura cavalheiresca: Dom Quixote de La Mancha. Quase duzentos anos antes de Munchausen, o herói espanhol é apresentado por Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616) em uma novela de tom realista – ou melhor, a incoerência faz parte da loucura – que parodia as de cavalaria por meio de um idealista que parte para viver as fantasias que lia nos escritos da época. Em ambos os personagens, há uma visão de mundo pelo prisma do impossível. E, se tais heróis não fossem tão arrogantes, talvez não tivessem morrido desacreditados. Contudo, a grande diferença entre o Barão de Munchausen e qualquer outro personagem literário, é o fato de que ele existiu de verdade. Militar alemão, Karl Friedrich Hieronymus von Münchhausen (1720-97) participou das campanhas russas contra os turcos e, ao retornar, divertia seus pares com relatos absurdos de episódios que teriam acontecido durante a viagem. Encantado com a inventividade do Barão, Rudolf Erich Raspe, um bibliotecário com pretensões a escritor, apropria-se, reescreve e publica dezessete causos em 1785, na cidade de Londres. De imediato, as histórias conquistam não apenas os adultos, mas especialmente as crianças, sendo ainda hoje o livro de cultura alemã que mais influenciou a literatura infantil inglesa.1 A ambiguidade criada acerca do público leitor deste livro é um dos fatores de sua longevidade. Considerada como a obra-marco do gênero de aventura moderno, ao flertar com o fantástico, os relatos contêm ecos das histórias folclóricas, tão presentes no universo da literatura infantil. Nelly Novaes Coelho, por exemplo, traz essa contribuição para a leitura: “As aventuras do barão de Munchausen inicialmente escritas para adultos, como crítica ao excessivo racionalismo que se impunha no século xviii, devido ao seu aspecto fantástico, excêntrico, pitoresco e cômico, acabam se transformando em literatura infantojuvenil que muito tem divertido a meninada”.2 Em tempos nos quais os limites da propriedade intelectual eram brandos e frágeis, não demorou surgirem novas edições com episódios “inéditos”, que circularam durante todo o século xix na Europa. Além das várias versões de texto, o livro também chamou a atenção de famosos ilustradores, como Gustave Doré. Diante desse fenômeno, o Barão de Munchausen extrapola a popularidade de seu criador Rudolph Erich Raspe para se fixar definitivamente na historiografia literária dos relatos de viagens
1 Ver David Blamires, Telling Tales – The Impact of Germany on English Children’s Books 1780-1918. Cambridge: OpenBooks Publishers, 2009. 2 Nelly Novaes Coelho, Panorama histórico da literatura infantil / juvenil. 5ª edição. São Paulo: Amarilys, 2010, p. 181.
imaginárias, conquistando seu lugar no panteão de heróis do gênero, como Robison Crusoé (1719), de Daniel Defoe (1660-1731), e Gulliver (1726), de Jonathan Swift (1667-1745). O Barão, porém, é um homem do final de um século repleto de novas descobertas e invenções, e esse “maravilhamento foi transposto para um mundo fantástico de exploração da época nos campos da história, da geografia e da tecnologia, onde a surpresa e a sátira eram a ordem do dia”.3 Não à toa, as versões posteriores à original de Raspe, com dezessete capítulos, incorporam justamente as tensões do período referentes à política inglesa e suas rivalidades com holandeses e franceses, principalmente. Muitos dos casos mais estapafúrdios vividos pelo Barão têm um pé na história europeia. O momento da narrativa que evidencia essa intenção é a grande viagem de conquista da África, presente na última versão do livro, de 1793, que sofreu modificações mais evidentes de texto e foi amplamente difundida no século xix, tendo sido ilustrada por artistas como Peter Newell e George Cruikshawk. No Brasil as histórias do Barão nunca tiveram um cuidado editorial à altura de sua fama e de sua importância literária. Foi apenas em 1891 que o tradudor e adaptador Carlos Jansen publica Aventuras pasmosas do celebérrimo Barão de Münchhausen, como bem registrou Laura Sandroni.4 Desde então, poucos foram os aventureiros que se dedicaram a este universo tão fértil. Encontramos adaptações ou então apenas a versão de Raspe com seus dezessete capítulos. Foi diante deste panorama que evidenciou-se a necessidade de um livro que trouxesse o tamanho – literalmente – desta tradição. Assim, apresentamos os inéditos trinta e quatro capítulos das aventuras do Barão de Munchausen da edição de 1793, acrescidos de dois prefácios e um apêndice. Além da estrutura do texto, essa edição também traz as magníficas ilustrações exclusivas do artista Rafael Coutinho. No longo trecho que ganha status de segunda parte, o Barão convence a corte londrina de que, após tantas aventuras vividas, o objetivo final é conquistar a África tendo como motivação a exploração comercial e a disseminação da cultura inglesa por terras desconhecidas. A partir desse momento, as narrativas do Barão deixam de se estruturar em torno de um episódio por capítulo – como na primeira parte, lembrando As Mil e Uma Noites – para tornar-se um relato contínuo, da partida para a África até a volta triunfal do Barão e sua comitiva para a Inglaterra. Com bastante ironia, o texto toca nos preconceitos e incoerências do olhar europeu para os povos africanos, por meio da figura soberba do Barão, 3 4
David Blamires, op. cit. Laura Sandroni, De Lobato a Bojunga – as reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987.
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representante da alta classe europeia. Em situações de mal-entendido, nas quais o Barão sempre cai no ridículo, são questionados, por exemplo, o costume de comer carne crua, as vestimentas leves, as embarcações simples. Há, inclusive, um momento em que o Barão salva brancos escravizados por negros, uma clara catarse às avessas no melhor estilo cômico. Caso o leitor tenha pouco interesse pelo pano de fundo político europeu do século xix, ainda assim não irá se decepcionar com tais peripécias inéditas, que vão da construção de uma ponte para ligar o centro da África à Inglaterra à redescoberta da biblioteca de Alexandria, passando por uma ilha de queijo e leite, uma tempestade de pães de mel, além do içamento de um navio do fundo do mar usando um balão. Assim, é com olhos de novidade que o leitor brasileiro deve abrir a edição que tem em mãos, com as aventuras completas do Barão de Munchausen, o anti-herói que viaja duas vezes para a Lua, chamusca as sobrancelhas no Sol, percorre o mundo em navios, balões, sob o dorso de um cavalo e ainda encontra tempo para lutar com Dom Quixote, seu maior rival literário. Como leitores conscientes, podemos discordar de suas ideias etnocêntricas – mesmo que absurdas num plano realista –, mas adoramos suas peripécias que nos permitem rir e acreditar no impossível. isabel lopes coelho
parte I
prefácio
Barão Munnikhouson, ou Munchausen, de Bodenweder, junto de Hamelyn às margens do rio Weser, pertence à nobre família de mesmo nome, da qual também vieram, para viver nos domínios germânicos do rei, o finado primeiro-ministro e vários outros personagens públicos igualmente brilhantes e competentes. Renomado pelo humor imensamente original, o Barão, perante a dificuldade de introduzir o senso comum nas mentes preconceituosas, e consciente de que aqueles que são mais incisivos ao falar têm a plena capacidade de afastar de si os ouvintes, pela força ou pela lábia, o Barão jamais discute com nenhum deles, mas habilmente prefere conduzir a conversa para temas sem importância e, em seguida, relatar a história de suas viagens, campanhas e aventuras de caça, à sua maneira bem característica, e bem calculada, para despertar e envergonhar o senso comum daqueles que se esqueceram do mesmo, por preconceito ou por hábito.
omo tal método alcançou com frequência bom êxito, solicitamos permissão para expor alguns desses relatos, e humildemente pedimos a todos que acharem tais relatos um tanto extravagantes e fantasiosos, o que vai requerer apenas uma modesta parcela de senso comum, que o exercitem em todas as ocorrências da vida, e sobretudo em nossa política inglesa, na qual os velhos hábitos e as afirmações ousadas, desencadeadas por discursos acalorados e apoiados por multidões, associações, voluntários e influência externa, conseguiram nos últimos tempos, bem notamos, com sucesso nada desprezível, revirar os nossos cérebros e nos tornar alvo de piadas na Europa, em especial na França e na Holanda.
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aos leitores
endo ouvido, pela primeira vez, que as minhas aventuras foram postas em dúvida, e tidas como piadas, vejo-me na obrigação de me apresentar e de justificar o meu caráter – por sua veracidade –, empenhando três xelins na Mansion House desta grande cidade para assegurar os documentos aqui anexados. A isso me vi forçado em prol da minha honra, embora há muito tenha me retirado da vida pública e privada; espero que esta derradeira edição seja capaz de me mostrar sob uma luz adequada aos meus leitores.