são paulo 2054 matheus perelmutter
Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo Matheus Perelmutter Gonçalves Silva Orientador: Prof. Luiz Recaman Orientadora Metodológica: Profª. Karina Leitão Junho de 2019
SÃO PAULO, 2054
Processo e ReflexĂľes
Ponto de Partida Esse trabalho surgiu principalmente a partir de algumas antigas motivações pessoais. Minha relação com histórias em quadrinho vem de longa data. O que era uma paixão por gibis e mangás, na infância, evoluiu e desaguou em uma grande admiração pela arte das Graphic Novels, ou quadrinhos “adultos”, na adolescência e juventude. A vontade e a perspectiva de criar uma HQ minha sempre esteve latente, faltando apenas o impulso de levar adiante. Entendo que dentro do campo da ficção, as HQs possuem uma grande potência particular como linguagem. Além de permitir arranjos experimentais e não convencionais entre a imagem e o papel, o texto, ou até com a imaginação do leitor, são importantes meios para a criação de iconografia e um imaginário simbólico e gráfico comum. Como um conjunto visual, possibilita a criação e recriação de universos inventados, tempos passados e futuros, incluindo inúmeros elementos que não necessariamente precisam ser verbalmente explicitados ou justificados. Decidi, então, realizar meu TFG como uma obra ficcional em formato de quadrinhos, aproveitando a oportunidade para tanto realizar meu antigo desejo quanto para elaborar e discutir temas que me acompanharam durante a graduação. Meu interesse nesse caso não era discutir a linguagem dos quadrinhos em si, mas sim usá-la como instrumento para uma reflexão sobre outro campo. De partida, já tinha 2 certezas quanto ao que desejava criar. A primeira era que queria falar sobre a cidade de São Paulo. Além de sentir que tive uma formação sólida para poder compreender a história, a complexidade e as nuances da formação urbana e social paulistana (e portanto fazendo todo sentido para mim finalizar essa formação com mais uma reflexão a respeito), tenho também uma profunda ligação emocional e até mesmo um certo fascínio para com a cidade. Por último, de uma forma geral sinto falta de representações ficcionais sobre São Paulo, em todas as artes, e portanto me interessava muito a possibilidade de uma criação imagética sobre. A segunda certeza era que queria que essa história se situasse em um futuro próximo. Dentro do campo da ficção, as narrativas futuristas/ distópicas assim como o gênero da ficção científica no geral sempre ofereceram instrumentos ricos para se pensar a realidade. Muito mais do que exercícios de futurismo e prospecções sobre avanços tecnológicos (no que pese grande parte dos autores clássicos terem sido cientistas ou
engenheiros de formação e realmente possuírem extenso conhecimento a respeito), essas histórias sempre se propuseram primordialmente a olhar os próprios tempos presentes. Funcionam como alegorias e extrapolações de processos reais de nossas esferas sociais, econômicas, psicológicas e políticas. Percebo uma ligação especialmente forte entre esse tipo de gênero narrativo com as discussões sobre o desenvolvimento urbano. Principalmente pela compreensão de que o desenvolvimento capitalista está levando a uma cada vez maior concentração populacional e de capital urbana, as histórias do gênero de forma recorrente não só se situam em cidades como têm nelas seus elementos constituintes. A representação iconográfica aqui ganha um papel central ao funcionar como a grande fachada e síntese simbólica dessas histórias. Basta pensar nas imagens icônicas dos arranha-céus e outdoors de Blade Runner (Ridley Scott, 1982) ou Ghost in the Shell (Mamoru Oshii, 1996). O gênero do futurismo aplicado ao contexto de São Paulo, então, pareceu uma premissa muito interessante, até por ser um gênero muito raro na ficção brasileira. Minha exploração, além de uma reflexão acerca de temas relevantes para mim, poderia ter também um aspecto propositivo no âmbito visual e assim contribuir com essa criação de iconografia que considero ser tão importante para o fortalecimento de um imaginário coletivo e de uma cultura visual comuns no Brasil. Escolhas criativas e Processo No processo de desenvolvimento do trabalho, meu primeiro passo era criar um universo possível e coerente em si. Não desejava explicar para o leitor o processo histórico implícito à história, mas era importante para a estruturação da narrativa e para o processo criativo que o mundo possuísse uma lógica e regras próprias, além de um desenvolvimento cronológico plausível. Usei como referência autores que estudam o espaço urbano contemporâneo e seu desenvolvimento, como Otília Arantes, Mike Davies, Rem Koolhaas, entre outros, e me inspirei diretamente em obras que propõem um raciocínio parecido, como o filme Filhos da Esperança (Alfonso Cuarón, 2006). Grande parte das possíveis realidades que delimitei para criar minha narrativa, portanto, não são exclusivas ou particulares ao contexto brasileiro.
Questões essas como as prováveis mudanças no mercado de trabalho no futuro próximo, com alta automação e aplicação generalizada de Inteligência Artificial em diversas funções, que sugerem um futuro de escassez de trabalhos de qualificação média e baixa, e assim surgimento de uma nova classe de cidadãos “inempregáveis” ou “inúteis”. Outra premissa central que foi seguida e que em algum nível já é uma realidade são os sistemas de controle social por meio de notas e pontuações, que indicam que tipo de serviços um cidadão está apto ou não a utilizar. Em larga escala, hoje é aplicado como teste apenas na China, mas não se difere muito dos sistemas que empresas privadas usam no mundo ocidental para oferecimento de seguros e serviços. Apesar dessas serem premissas universais e em algum nível genéricas, procurei sempre elaborar como tecnologias e sistemas do tipo se adaptariam a cada realidade local. No Brasil e em São Paulo, lugares que historicamente sempre perpetuaram suas desigualdades mesmo nas transições de sistemas (colônia> independência, monarquia>república etc), tentei pensar e incorporar na narrativa de que formas esses novos sistemas reforçariam e reciclariam nossas desigualdades históricas. Por esse motivo, por exemplo, os personagens que representam o poder econômico e político se auto-apresentam virtualmente por meio de símbolos de poder ocidental (Cavaleiro Cruzado, Palas Atena, Lorde Burguês). Em um primeiro momento, minha concepção não era de criar um mundo apenas distópico. Me agrada histórias como a de Neuromancer (William Gibson, 1984) em que há espaço para a ambiguidade, para existência da vida comum fora das grandes estruturas de poder e controle. No decorrer do desenvolvimento da narrativa, porém, por causa das decisões contextuais que tomei, meu universo se tornou cada vez mais monocromático. A reflexão central que conduziu a isso foi o questionamento de “o que seria uma distopia brasileira”. Minha conclusão é que seria a acomodação definitiva e abandono de todas tentativas de reversão de nossas grandes desigualdades constitutivas. A partir dessas e outras reflexões, procurei traduzir em imagens e ambientes os reflexos, produtos e agentes espaciais frutos dessa possível realidade. Disso saiu a concepção de regiões segregadas não exatamente por muros físicos, mas sim digitais, com zonas destinadas apenas a certas categorias de indivíduos, ou também de uma avenida Paulista temática, turística, domada e cosmética, para citar dois exemplos. No meu processo, após a definição de uma realidade social e políti-
ca possível e de sua materialidade física e urbana, o trabalho passou a ser criar uma narrativa que conseguisse atravessar de forma transversal diversas faces desse mundo. Essa narrativa deveria nos conduzir a observar o mundo inventado sem explicá-lo verbalmente. As paisagens e acontecimentos vividos pela personagem indicariam traços dessa realidade, cabendo ao leitor completar os espaços em branco. Ao definir que a narrativa se situaria em um futuro próximo da cidade de São Paulo, um cenário que me interessou desde o começo era o do ano 2054, data do quincentenário da cidade. Sendo um marco temporal emblemático, me interessava pensar sobre como essa cidade chegaria ao seu 500º aniversário, e de que forma isso seria celebrado, tendo em mente as comemorações e investimentos que envolveram o IV centenário em 1954. Se em 1954 existia um otimismo em relação a um futuro talvez mais democrático, certamente próspero, e isso se refletia visível no tom e nas realizações das celebrações, como se apresentaria então 2054, com uma sociedade completamente apartada, apática, desenraizada? Além do ano em si ter essa potência, colocar isso em centralidade na história me possibilitaria contemplar outro desejo, que era de ter a cidade como ponto central da narrativa, quase um personagem em si Uma vez tendo o contexto, os ambientes e a linha narrativa definidos, era possível enfim começar o trabalho prático, a produção dos desenhos. A tradução da ideia em imagem exige um grande trabalho criativo e de síntese, que possibilite ao mesmo tempo um entendimento individual de cada página, cada desenho, e a condução e fluidez da narrativa. A parte gráfica também precisava representar outro aspecto da obra, que é o contato e a fluidez entre as interfaces digitais e o mundo material. Para isso foram utilizados recursos próprios da linguagem do desenho, que permitiram sugerir interações possíveis e traduzir linguagens digitais de forma às vezes inclusive metalinguística. Conclusões e Reflexões Por meio desse trabalho realizei minha primeira experiência narrativa completa, desde a concepção até a realização. O processo impôs diversas dificuldades, idas e vindas que contribuíram para aos poucos ensaiar e descobrir um método de trabalho. Ao criar uma História em Quadrinhos, são mobilizadas simultaneamente diversas habilidades e funções,
desde a elaboração de um roteiro até sua tradução em personagens, signos, símbolos, cenários, diálogos, e toda a harmonização desses elementos juntos. Criar uma narrativa e contar uma história é acima de tudo formar uma janela. A reflexão inicial, a pesquisa que fundamenta são essenciais para conferir consistência, mas é importante acima de tudo encontrar o enquadramento e a janela certa para apresentar para o leitor. Esse será o contato estabelecido entre ele e a obra, então escolher bem o que mostrar e o que esconder, permitindo gerar curiosidade e o implicando com uma leitura ativa e imaginativa, é tão essencial quanto a fundamentação do conteúdo. Por esse motivo mesmo, nem sempre é possível condensar tudo que foi pensado e criado. A ação na história deve também parecer natural, e esse jogo entre a sua vontade como criador e as necessidades espontâneas e lógicas da narrativa criada muitas vezes entram em conflito. Como processo prático, foi muito enriquecedor desenvolver a noção da totalidade do projeto, do começo ao fim. Foi possível dessa forma testar e colocar em prática métodos de produção, criando um fluxo de trabalho entre a ideia, o rascunho, a produção do desenho e a finalização digital. Foi importante também inclusive para treinar o traço e me desafiar a desenhar coisas que não me sentia tão confortável antes, como o mesmo personagem em visto por vários lados, algumas posições corporais, coisas que ao fim do processo eu tinha adquirido uma desenvoltura e conhecimento muito maiores do que no começo. Elaborar a conversão de ideias teóricas e ensaísticas em uma obra de ficção é um esforço que também não se encerra em um trabalho. Apesar dessa obra chegar a um arremate ao seu final, os elementos que a compõe assim como as imagens que ela propõe, uma vez criados, existem para ser reaproveitados, revisitados, refinados. Uma obra criativa também é um processo de pesquisa e objeto de exploração, por mais que exista um impulso de imaginá-la como total, fechada e independente.
Referências Teóricas e Criativas ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo: edUSP, 1998 ARANTES, Otília. Chai-Na. São Paulo: edUSP, 2011 DAVIS, Mike (org.); MONK, Daniel B. (org.). Evil Paradises. The New Press, 2008 DAVIS, Mike. Dead Cities. The New Press, 2003 FOSTER, Hal. ‘Running Room’. em revista Serrote n.15. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2013 GÊ, Luiz. Avenida Paulista. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2016 HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. 24 ed. São Paulo: Edições Loyola, 1992 HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2018 JAMESON, Fredric. ‘A Cidade Futura’. em O Campo Ampliado da Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2013 KOOLHAAS, Rem. ‘Junkspace’. em O Campo Ampliado da Arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2013 MCGUIRE, Richard. Aqui. São Paulo: Quadrinhos na Cia, 2017 MOEBIUS; JODOROWSKI, Alejandro. Incal. Devir, 2012 MOSER, Benjamin. Autoimperialismo. São Paulo: Planeta, 2016 SHARON, Zukin. Landscapes of Power: From Detroit to Disneyworld. University of California Press, 1993 SHEPARD, Mark (org.). Sentient City. Cambridge (MA/EUA): The MIT Press, 2011 WISNIK, Guilherme; MARIUTTI, Julio. Espaço em Obra: Cidade, Arte, Arquitetura. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018 CHEDID, Rodrigo. ‘Entrelinhas’. São Paulo: Independente, 2018 Blade Runner: Ridley Scott, 1982 Blade Runner 2049: Dennis Villeneuve, 2017 Ghost in the Shell: Mamoru Oshii, 1995 Akira: Katsuhiro Otomo, 1991 Filhos da Esperança: Alfonso Cuarón, 2006 Elysium: Neill Blomkamp, 2013 Ela: Spike Jonze, 2014 Código 46: Michael Winterbottom,1999 Mr. Robot: Sam Esmail, 2015 - 2018 créditos das fotografias utilizadas: pg.9 (1) - German Lorca, 1954 pg.9 (2) - Antonio Aguillar, para o Jornal O Estadão (1954) pg.10 (1) - circa 1950 pg.10 (2) - Chico Albuquere, circa 1950 pg.10 (3) - German Lorca, circa 1950 pg.11 (1) - circa 1950 pg.11 (2) - German Lorca, circa 1950
Agradecimentos Começo agradecendo meu orientador, Luiz Recaman, pelas conversas, contrapontos, referências e sobretudo por topar embarcar nessa experiência. À minha orientadora metodológica, Karina Leitão, pelo carinho e entusiasmo em todas etapas desse processo À minha mãe Daisy, minha irmã Dora, minha avó Aida, meu Tio Fernando e meu pai Marcos, minha nuclear porém intensa família, por todo o apoio, material e emocional, que me deram ao longo de todos esses anos Ao meu avô Benno, que acompanhou e vibrou com o começo dessa trajetória, mas infelizmente não pôde ver o final Um agradecimento especial ao Chedid, que se desde o começo se dispôs a ser um interlocutor e ajudou com muita sensibilidade e sinceridade em alguns dos momentos mais cruciais desse processo Aos amigos que viemos e caminhamos juntos: Fabi, Cla, Ba, Nat, Alina, Ota, Xuio, Ju, Lori, Lu, Deb, Bia, Juca, Mi, Bob, Edu, Jhun, Calixto, Vicente, Eric, Pedro, Miguel, todos com quem aprendo muito e me incentivam a crescer junto. Aos Fergs, meus amigos da escola e âncora Também a todos os grandes amigos e colegas da FAU que em algum momento, antes, depois ou ainda, cruzamos caminhos e histórias.