VAN GOGH - UMA ABORDAGEM PERCEPTIVA

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PROJETO EXPERIMENTAL EM ARTES VISUAIS

VAN GOGH UMA ABORDAGEM PERCEPTIVA ALUNO: MATHEUS SCHMIDT DE CAMARGO CESAR PROFESSOR ORIENTADOR: DR. EDSON DO PRADO PFÃœTZENREUTER

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS - UNICAMP


Van Gogh: uma abordagem perceptiva

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Sumário 1. Introdução ................................................................................. pg 03 2. Metodologia e objetivos ......................................................... pg 04 3. Resultados ................................................................................. pg 05 4. Considerações finais ................................................................ pg 43 5. Referências bibliográficas ........................................................ pg 44


Van Gogh: uma abordagem perceptiva

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1. Introdução O início dos estudos acerca da influência do dispositivo visual na interpretação do trabalho artístico parte de uma consideração primordialmente moderna: quando o trabalho do artista deixa de ser considerado uma inspiração divina e passa a ser visto como uma manifestação humana, passível de interpretação e marcada pela intenção de seus idealizadores. Nesse contexto, surgem os primeiros estudos sobre percepção visual: quando artistas e estudiosos como Kandinsky, Itten e, posteriormente, Arnheim percebem, nas incapacidades da linguagem verbal, uma oportunidade para estudar e compreender o visível em sua interação direta com o sensorial. O campo da percepção nasce, portanto, como uma tentativa de compreender todo o processo que corresponde à formação de imagens, bem como a sua relevância na captação e interpretação de conteúdos. Essa área do conhecimento, por sua vez, tem sido explorada constantemente por cientistas e pesquisadores, que a complementam com informações relativas a processos físicos, químicos e nervosos (que acontecem, respectivamente, nos globos oculares, na retina e no cérebro). Informações, estas, de extrema valia nos estudos da linguagem – ao tratar de um sistema universal, comum a todos os seres humanos. A presente pesquisa tem como objetivo explorar e discutir algumas das qualidades da visão, debatendo a sua influência na expressão e interpretação artística. Para isso, selecionou-se como objeto de pesquisa o renomado artista holandês Vincent Van Gogh, não somente por sua elevada importância no campo da pintura, mas pela vasta quantidade de informações sobre sua intenção criativa, passíveis de serem coletadas a partir das cartas escritas a seu irmão, Theo. Pretende-se, com isso, estabelecer uma ponte entre a intenção do artista (de criar e estabelecer significados) e a recepção de seu trabalho, avaliando a maneira como determinado conceito foi materializado e qual a sua respectiva resposta cognitiva.


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2. Metodologia e objetivos Toda a metodologia de pesquisa se baseia na coleta de dados bibliográficos oriundos de duas fontes diferentes:

1) Estudos relativos à percepção visual Coletados a partir de textos de Dondis e Arnheim, bem como de pesquisas relacionadas à neurologia da percepção (empreendidas por neurocientistas renomados, como Colin Ware e Dale Purves). Esses estudos têm a intenção de clarificar a maneira como o sistema visual apreende e avalia informaçoes - de forma a possibilitar uma melhor compreensão do trabalho artístico enquanto fenômeno do visível.

2) Relatos sobre a vida e o trabalho de Vincent Van Gogh Obtidos através do próprio artista (em cartas ou textos) ou a partir de relatos de seus amigos e parentes. Pretende-se, com isso, coletar informações quanto à sua intenção criativa ao desenvolver seus trabalhos. A expectativa é que a união de ambos os dados resulte na definição do potencial comunicativo de um trabalho artístico - em um estudo que relaciona as características visuais de um trabalho à mensagem proposta por seu idealizador. Pretende-se, ainda, contribuir para o conhecimento histórico que se têm acerca do trabalho de Van Gogh, fornecendo uma nova visão para a sua obra ao analisá-la a partir da ótica das neurociências.


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3. Resultados Durante os primeiros meses de pesquisa, elencaram-se os principais conceitos relativos à percepção, com a intenção de adquirir repertório suficiente para uma posterior análise de trabalhos artísticos. Entretanto, tomaram-se as devidas providências para que o trabalho não se limitasse a uma descrição anatômica de orgãos relacionados à visão. O texto, portanto, foi desenvolvido dando prioridade a conceitos que abordam a visão de um ponto de vista prático ou filosófico - mantendo uma espécie de capítulo introdutório bastante conciso. Conceitos mais técnicos serão explanados, quando necessário, no decorrer do trabalho - paralelos a uma exposição da trajetória profissional de Van Gogh enquanto artista plástico. Para tanto, selecionaram-se obras classificadas pelo próprio artista como importantes de alguma forma: seja enquanto estudo ou trabalho finalizado. A pesquisa, portanto, mescla a intenção reportada pelo criativo quanto a seu trabalho às possibilidades comunicativas que essa criação exibe, do ponto de vista perceptivo.

3.1 Sobre percepção visual A percepção visual é frequentemente associada à uma captação fidedigna daquilo que vemos ou observamos, constituindo uma espécie de tradução de dados físicos para um estado mental. Entretanto, no que diz respeito às cores, percebe-se que esse paralelo raramente acontece: aquilo que é percebido mantém intrínseca relação com o que está disposto nos arredores, se modificando de acordo com as condições específicas do meio. Nesses casos, ficam evidentes as diferenças entre as medidas físicas – objetivas e precisas (como a luminância: quantidade de branco presente em um material) – e as medidas psicofísicas, subjetivas (como a luminosidade: quantidade relativa de luz existente em um material de acordo com a percepção geral do ambiente).


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“A mesma cor, em dois

contextos diferentes, não é a mesma. (…) Isto significa que a identidade da cor não reside na cor em sí, mas é estabelecida por relação. Temos consciência desta transfiguração mútua que torna cada cor dependente do apoio de todas as outras, da mesma forma que as pedras de um arco se prendem mutuamente para se manterem no mesmo lugar. Mas, enquanto as pedras contrabalanceiam o peso físico, a rede das cores em interação é criada apenas pelo olho, e esta subjetividade – completamente diferente da vigorosa objetividade das formas – confere-lhes a qualidade das aparições.”

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Embora a ênfase para este tipo de ocorrência se concentre na fenomenologia da apreensão cromática (por artistas como Josef Albers e Johannes Ittens), as neurociências têm comprovado que esse mesmo acontecimento se repete com outros elementos do visível, como a luminosidade, os contornos e as geometrias. Tal constatação distancia a percepção visual da simples condição passiva de captadora de informações, a posicionando como um processo ativo e construtivo, que varia de acordo com as condições do organismo em questão.

(ARNHEIM, 2013)

Imagem 1: As cores de ambos os quadrados são as mesmas. As diferentes condições de seus arredores, entretanto, fazem com que pareçam completamente diferentes.

No exemplo acima, vemos um caso em que a percepção cromática foi alterada de acordo com os elementos em seus arredores. Embora possa parecer uma falha de processamento visual, percebe-se que essa alteração atua de forma a realçar o aspecto tridimensional do objeto em questão – propiciando uma informação mais valiosa, do ponto de vista interativo, quanto à cena observada.


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“Tem acontecido uma revolução quanto ao entendimento da percepção humana, que responde pelo nome de Visão Ativa. Visão ativa significa que nós devemos pensar sobre a visão como uma ação cognitiva, que desenvolve e fortalece nossa atividade cerebral.” (WARE, 2008).

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Nesse sentido, conforme evolui a comprensão quanto ao funcionamento do sistema perceptivo, mais este se firma como um sistema complexo – que opera de forma a promover uma interação efetiva entre o espectador e o objeto observado. Segundo Collin Ware (2008), diretor do Data Visualization Research Lab, os estudos sobre esse mecanismo de processamento visual gerou o termo Visual Thinking – em que se especula que o aparelho visual realiza uma série de indagações específicas (visual queries) acerca do que é observado, condicionando uma posterior interpretação do que foi visto. Esse procedimento seria norteado por uma série de focos de atenção visual, projetados estrategicamente pelo sistema nervoso num processo descrito como “Visão Ativa”. A compreensão da Visão Ativa, por sua vez, depende do entendimento de alguns elementos chaves do processamento visual. Entre eles, acentuase a disposição dos fotoreceptores na retina – que se concentrarem na região da fóvea, condicionando a movimentação dos olhos. Além disso, se destaca também a maneira como a informação apreendida é processada pelo sistema nervoso, realizadas etapas ópticas e químicas.

Imagem 2: O sistema visual - (1) Globo Ocular; (2) Retina; (3) Córtex Visuais; (4) What Pathway; (5) Córtex Inferotemporal; (6) Where Pathway; (7) Córtex Motor.


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“A percepção realiza ao nível sensório o que no domínio do raciocínio se conhece como entendimento. O ato de ver de todo homem antecipa de um modo modesto a capacidade, tão admirada no artista, de produzir padrões que validamente interpretam a experiência por meio da forma organizada. O ver é compreender.” (ARNHEIM, 2013)

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Em termos gerais, pode-se dizer que a retina não somente capta a luz, mas organiza a informação luminosa recebida, transmitindo-a pelo nervo óptico aos córtex visuais - onde passam por mais um grau de elaboração, sendo decodificadas e convertidas em dados relativos às características sensíveis do que está sendo observado – cor, textura, forma, movimento e profundidade. Ao progredirem pelo sistema visual, os dados são interpretados e relacionados entre sí, gerando sequências de padrões visuais cada vez mais complexos. Toda essa informação será, então, enviada a dois complexos distintos: O What Pathway e o Where Pathway. No primeiro, as informações serão utilizadas para a identificação de objetos no ambiente em que o organismo se encontra (provendo dados diretamente ao córtex inferotemporal - responsável pelo desenvolvimento de padrões ainda mais complexos). Já o Where Pathway especializa-se na tarefa de conectar a percepção à ação, apresentando fortes conexões com o Córtex Motor) - que controla os movimentos corporais. Mais importante que o mapeamento dos processos anatômicofisiológicos que norteiam a visão, entretanto, é a compreensão de que toda a percepção visual é regida por um constante refinamento de características visuais – que são unidas e interpretadas na forma de padrões cada vez mais complexos. Para o artista visual, portanto, resta a observação de que é possível facilitar o processo cognitivo e aproximar a intenção artística da interpretação do público, ao se atentar para a maneira como este captará e assimilará a informação visual.

3.2 Vincent Van Gogh No contexto de se estudar os fenômenos perceptivos enquanto mediadores da comunicação entre artista e público, Vincent Van Gogh desponta como um perfeito objeto de pesquisa. Tal afirmação não se baseia somente em sua influência no meio artístico, nem mesmo nos diversos tratados escritos sobre suas obras – mas no fato de que, durante toda a sua trajetória profissional, o artista descreveu seu processo e suas intenções criativas em cartas que escrevia a seu irmão, Theo, além dos relatos de Johanna, sua cunhada.


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“De tempos em tempos, ao longo de toda a sua vida, Vincent iria procurar consolo para os seus problemas enfronhando-se nos ermos agrestes, onde só encontraria mais solidão e acabaria voltando ao mundo em busca da companhia humana que sempre lhe escapava, mesmo na infância, mesmo dentro da própria família.”

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Enquanto família, os Van Gogh se portavam de maneira bastante tradicional. Originados a partir da união de Anna Cornelia Corbentus e o reverendo Theodorus van Gogh, em 1851, os seis filhos cresceram na região de Zundert - pequeno município da província de Brabante do Norte, nos Países Baixos. Como era de costume entre os holandeses, foram criados de maneira bastante rígida, seguindo o princípio da degelijkheid (a busca por uma vida equilibrada e plena).

(NAIFEH; SMITH, 2012)

Imagem 3: Casa paroquial da família Van Gogh, em Zundert

Desde pequeno, Vincent van Gogh era descrito como uma pessoa difícil. Tímido e arredio, era bastante repreendido pelos seus pais, que atribuiam ao primogênito diversas responsabilidades. Por ser bastante introspectivo, criou o hábito de se afastar das obrigações familiares e passar horas caminhando pelos sítios e charnecas da vizinhança, colecionando flores e besouros que encontrava pelo caminho. Aos 11 anos, foi enviado para o internato - momento em que é registrado o primeiro contato de Vincent com o universo formal das artes: ministradas pelo carismático professor Constantin Huysmans, principal pedagogo holandês e expoente no ensino de uma nova maneira de se compreender o trabalho artístico na Europa (muito similar à que seria defendida por Van Gogh posteriormente). O curioso sobre esse período foi que esse encontro não despertou no menino interesse algum, tendo classificado as aulas como “vazias e desinteressantes”.


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“No entusiamos pelo novo emprego, Vincent sentiu um interesse súbito e fabril típico dele, por um tema pelo qual jamais tinha manifestado qualquer interesse: a arte. Devorou livros sobre história da arte, artistas, coleções de obras na Holanda e no estrangeiro. Dedicou-se às revistas de arte mais recentes (...) e fez peregrinações à Amsterdam, Bruxelas e Antuérpia.”

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A consciência quando à importância desse conhecimento seria aflorada quase 20 anos mais tarde, quando o artista passasse a representar a natureza e a vida campestre. Em 1869, aos 16 anos, Vincent vai trabalhar com o tio na Goupil & CO importante companhia de comércio de artes da época. Nesse momento, aprende bastante sobre a atividade artística do período - conhecendo pessoalmente Jozef Israëls, Jacob Maris, Hendrik Willem Mesdag, Jan Weissenbruch e Anton Mauve.

(NAIFEH; SMITH, 2012)

Imagem 4: Escritório de Goupil & CO, em Paris.

Seus primeiros anos na empresa foram bastante promissores, e o garoto parecia firmar-se definitivamente como comerciante. Em 1873, entretanto, é transferido de Haia para Londres - onde sente dificuldades para se adaptar à cidade grande. Com problemas de socialização e em conflito ideológico com o comércio local, acaba por ser demitido alguns meses mais tarde. A pressão familiar fez com que procurasse outro emprego imediatamente, e, após lecionar em algumas escolas de Londres, Vincent opta pela vida clerical, - caminho que o levou às minas de carvão, em Borinage, na bélgica - pregar e lecionar o evangelho a favor da pequena congragação de Petit Wasmes. Mas uma vez, entretanto, o seu fanatismo e incapacidade de socializar o levam à demissão, em julho de 1879.


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“Minha única preocupação é: como eu posso ser útil? Como eu posso servir a algum propósito e prestar para algo? (…) Em uma imagem, quero poder falar algo reconfortante, como a música é reconfortante. (…) Então, disse a mim mesmo… Pegue o seu lápis, e continue desenhando. Nesse momento, tudo parece ter se transformado para mim.” (VAN GOGH, 1999).

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Foi nesse momento, enquanto registrava em desenhos e anotações o estilo de vida dos mineiros, que Vincent Van Gogh opta pela vida artística - se pondo a desenhar rotineiramente. É importante pontuar que, mais do que definir e detalhar a trajetória do artista, a investigação de sua história e biografia se faz de extrema importância para a compreensão dos fatores que o levaram à exercer a sua atividade (e, consequentemente, à sua intenção enquanto criativo). No caso de Van Gogh, percebe-se como a religião e as artes acompanharam o artista por toda a sua vida - seja a partir de influência familiar (oriunda de seu pai, um reverendo) ou financeira (no comércio de obras). Também é possível pontuar algumas tendências de comportamento - como o isolamento intencional e a introspecção perante a sociedade. Todos esses fatores se manifestariam posteriormente no trabalho do artista - conforme os seus meios e técnicas fossem evoluindo.

__________ “Por fim, arte e religião tinham o mesmo poder característico da imaginação de Vincent, o poder de consolar - o poder de trazer luz às trevas, de transformar o sofrimento em conforto, a dor em júbilo.” (NAIFEH; SMITH, 2012) Imagem 5: Mineiros, 1880. Van Gogh, Lápis sobre papel.

Os trabalhos de Vincent nesse período eram marcados pelo uso de carvão e lápis, e pelo uso abusivo de preto e tons escuros - sem muita atenção à definição de


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“Quando Vincent ressurgiu em julho seguinte, com a longa carta suplicante, Theo insistiu que ele retomasse o desenho como uma atividade manual - um interesse saudável para manter a cabeça e as mãos ocupadas, impedindo que ficasse obcecado com seus problemas e restabelecendo sua ligação com o mundo.”

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contrastes que facilitariam a transmissão de alguma mensagem específica. Conforme registra em algumas cartas, a princípio, o desenhista muitas vezes nem tinha a intenção de produzir conteúdo artístico, apenas registrar os costumes dos camponeses e trabalhadores braçais (considerados, por ele, “mais próximos a Deus”). A dificuldade na representação da figura humana era um fator marcante, e resultava em composições grosseiras e “sujas”. Do ponto de vista compositivo, percebe-se a simples diferenciação entre figura e fundo (este, muitas vezes, cortado ou representado sem muitos detalhes - o que corrobora a intenção do artista de destacar o trabalho servil).

(NAIFEH; SMITH, 2012)

__________ “Passa-se com os artistas o mesmo que se passa com os evangelhistas. Tente captar a essência do que os grandes artistas, os mestres sérios, dizem em suas obras primas e neles você reencontrará Deus. Tudo o que é bom e belo de verdade... vem de Deus.” (VAN GOGH, 1999).

Imagem 6: Mineiros na Neve ao Amanhecer, 1880. Van Gogh, Lápis sobre papel.

Embora a escolha dos materiais possa remeter à condição do trabalhador da época (literalmente, simples e sujo de carvão) - não há registro da intenção de Van Gogh de associar as propriedades formais de seu trabalho à condição social de seus modelos. Isso indica que essas características se derivariam mais de sua inabilidade com o desenho do que de sua poética, propriamente dita. Não demorou para que a atividade representasse, para Vincent, uma continuação de seu trabalho missionário - dedicando-se a reproduzir a vida camponesa como uma forma de exteriorizar a beleza oculta de uma vida simples, servil.


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“Enquanto Vincent brigava com mentores, protetores e colegas artistas, prosseguia na batalha com a sua arte. O punho do desenhista não obedecia a sua vontade, reclamava ele. Os problemas técnicos que enfrentava desde que se tornara artista continuavam a frustrá-lo e lutar contra ele. Nos desenhos de figura, os corpos se esticavam e dobravam em posições impossíveis; os rostos desapareciam em borrões indefinidos.”

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Depois que optou por seguir carreira artística, Vincent permaneceu somente mais dois meses em Borinage - nos quais produziu a um impressionante ritmo de 240 desenhos por mês. Muda-se, então, para bruxelas - onde exercita os desenhos de paisagem e figura humana. É em 1882, ainda em busca de uma melhor na representação anatômica, que Van Gogh se apaixona por Sien Hoornik - uma prostituta grávida que posava para seus nus. Segundo ele, a própria condição da moça fazia dela a companhia perfeita: passiva, obediente e frágil, seria a própria ovelha desgarrada da parábola biblíca. E, tomando-a como modelo, desenha o primeiro esboço do Sofrimento: trabalho que reveste de enorme importância pictórica.

(NAIFEH; SMITH, 2012) _________

“No inverno passado, conheci uma mulher grávida, abandonada pelo homem cujo filho carregava no ventre. Uma grávida que percorria as ruas no inverno - precisava ganhar a vida, e vocês sabem como. Tomei essa mulher como modelo, e trabalhei com ela durante todo o inverno.” (VAN GOGH, 1999). Imagem 7: Sofrimento, 1882. Van Gogh, Giz sobre papel.


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“Até agora, tenho trabalhado exclusivamente com giz, lápis e caneta, muitas vezes com uma caneta de bambu - que garante um traçado mais grosso. (...) O que tenho feito ultimamente exige este tipo de trabalho, pois os temas demandam muito da capacidade de desenhar” (VAN GOGH, 1999).

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Percebe-se o uso de contornos fortes e linhas marcadas - com os claros limites técnicos provenientes do uso de giz e lápis. Essas características foram justificadas pelo artista como parte do seu processo de aprendizado (que priorizava o estudo do desenho do corpo humano, e, consequentemente, um traçado rápido e preciso da anatomia da modelo). E os elementos formais do trabalho, de fato, indicam a preocupação do artista em apreender elementos anatômicos. Além da simplificação do fundo (que se limita à linha do horizonte e uma espécie de morro sobre o qual a modelo repousa), percebe-se certa dedicação descritiva, ao representar, em detalhes, características das mãos e pés - como nós e unhas - apenas sugeridos em trabalhos anteriores.

Imagens 8 e 9: detalhes anatômicos da obra “Sofrimento”, de 1882.

Outro fator interessante é a inscrição da palavra “Sorrow”, na porção inferior da obra. A partir dela, fica evidente a necessidade do artista de vincular o trabalho a uma espécie de narrativa, que poderia ser facilmente induzida a partir da expressão corporal da modelo. Do ponto de vista neurológico, a simplicidade do trabalho, oriunda de limitações técnicas explicitadas pelo próprio artista, facilita a apreensão de formas e significados. Por não abranger elementos pictóricos mais complexos (como cor, textura e movimento), a apreensão biológica do trabalho se daria somente a partir de linhas e contornos (realizada pelo cortex visual secundário, a partir de um mecanismo conhecido como Generalized Contour Mechanism). A inserção do título no corpo do trabalho facilita ainda mais a compreensão da intenção do artista - que não deixa dúvidas quanto ao que deveria ser representado.


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“Dificilmente existe uma cor na natureza que não seja, também, cinza. Na natureza, não se enxerga nada a não ser tons e sombras. (...) O dever supremo do colorista é encontrar os cinzentos da natureza em sua paleta.” (VAN GOGH, 1999).

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Conforme enviava esses trabalhos a seu irmão, este os reprovava, e solicitava que Vincent investisse mais em paisagens e cores. Esse objetivo era claramente de tino comercial - uma vez que Theo, ao comercializar obras de arte em Paris, vivia o momento de expansão da obra impressionista. Van Gogh responde ao argumento do irmão com uma teoria própria: enquanto os impressionistas afirmam que o preto em si não existe na natureza, este diria que, na realidade, todas as cores exibem branco e preto em um certo nível. Como defesa para seu argumento, encaminhava obsessivamente ao irmão diversos diagramas e fotos, detalhando a teoria. Foi nesse período, entre 1882 e 1883, que Van Gogh resolve se mudar de Bruxelas - deixando de lado a intenção de se casar com Sien (após alguns meses de pressão familiar). Parte, então, para Drente - onde se propõe a retratar a região pantanosa que, segundo ele próprio, estaria em “perpétuo apodrecimento”.

Imagem 10: Paisagem com Fósseis de Carvalho, 1883. Van Gogh, lápis sobre papel.

Embora a passagem por Drente marque a aproximação de Van Gogh à tinta a óleo, sua condição financeira fazia com que privilegiasse o uso de lápis,


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“Aquela vastidão de terra calcinada pelo sol se destaca escura sobre os delicados tons lilases do céu ao anoitecer, e apenas a derradeira linhazinha azul escura no horizonte separa o céu e a terra... A faixa escura da orla dos pinheiros separa um céu de débil azul tremeluzente da terra rugosa, que tem uma tonalidade geralmente avermelhada - fulva amarronzada, amarelada, mas por toda parte com tons lilazes.” (VAN GOGH, 1999).

uma vez que suas tintas acabavam rapidamente. Ainda assim, seu contato com a tinta parece ter desempenhado um efeito positivo em sua visão criativa, e suas cartas denotam uma preocupação cada vez maior com os efeitos que as cores exerciam sobre a paisagem e o ambiente. Esse trabalho, em especial, denota o interesse cada vez maior do artista por dividir planos e criar atmosferas - interesse provavelmente oriundo de um raciocínio voltado mais à pintura que ao desenho. Dessa forma, ainda que usando o lápis, percebe-se a predominância de manchas e tons (em detrimento de linhas e contornos). Do ponto de vista perceptivo, entretanto, destaca-se certa precipitação do artista ao construir as tonalidades que deveriam dividir as diversas figuras do cenário e seus arredores. A confusão de cinzas dificulta a apreensão da cena, e a divisão de figura e fundo é bastante prejudicada pela ausência de contraste tonal - descrito por Dondis (2007) como o principal responsável pela construção da tridimensionalidade pela visão humana. Isso acaba por tornar a cena bastante confusa em alguns pontos específicos (destacados abaixo).

_________ “As variações de luz ou de tom são os meios pelos quais distinguimos oticamente a complexidade da informação visual do ambiente. (...) Na natureza, a trajetória que vai da obscuridade à luz é entremeada por múltiplas gradações sutis.” (DONDIS, 2007)

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Imagens 11 e 12: detalhes da obra Paisagem com Fósseis de Carvalho, de 1883.

Em dezembro desse mesmo ano, o agravamento da situação financeira de Vincent o leva de volta à casa de seus pais - agora, em Nuenen, onde Theodorus atua como reverendo. O momento é marcado por uma situação de conflito familiar - em que Van Gogh é forçado a confrontar seus parentes, que o desaprovam profissionalmente. Em Nuenen, apesar dos conflitos familiares, o artista vê a oportunidade de explorar um tema que almeja desde que se tornara artista: os tecelões. Nessa época, 25% da população trabalhadora da cidade trabalhava em teares - o que forneceu à Van Gogh uma enorme diversidade de modelos.


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Imagem 13: Tecelão, 1884. Van Gogh, aquarela sobre papel.

“Eu estive estudando os tecelões enquanto estive aqui. (...) Essas pessoas são difíceis de desenhar porque nos pequenos quartos eu não posso chegar longe o suficiente para desenhar o tear. Acho que é por isso que as tentativas de fazê-lo geralmente falham.” (VAN GOGH, 1999).

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“Vincent pensava em desenhar tecelões desde que se tornara artista. Em 1880, declarou ter visto “vilas de tecelões” numa de suas fatídicas saídas do Borinage e imediatamente comparou os rostos pálidos e os locais escuros onde trabalhavam aos dos mineiros entre os quais trabalhava. (...) A mescla de solidariedade e nostalgia lhe inspirou uma visão dos tecelões como heróis sobrenaturais.”

Embora destaque os desafios do desenho, os trabalhos desse período denotam o avanço do artista ao lidar com problemas relacionados à iluminação. Os planos, agora, dividem-se não somente pela tonalidade das cores, bem como por outros elementos compositivos (como linhas e manchas). Outras obras do mesmo período evidenciam a preocupação do artista em destacar a figura principal em um ambiente mais complexo, através de artimanhas para ampliar o contraste. Para isso, recorre à iluminação de janelas (que, segundo Arnheim [2013], confere aos objetos significativa volumetria) ou a justaposição de seus rostos sobre a estrutura escura do próprio tear.

(NAIFEH; SMITH, 2012) ___________

“A luz cria espaço.

Todos os gradientes tem a capacidade de criar profundidade, e os gradientes de claridade se encontram entre os mais eficientes (...) O aumento do relevo produzido pela iluminação lateral é bastante conhecido e empregado por artistas.”

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Imagem 14: Tecelão perto de uma janela aberta, 1884. Van Gogh, óleo sobre tela.

(ARNHEIM, 2013) Imagem 15: Tecelão, 1884. Van Gogh, lápis e nanquim sobre papel.


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“Como tema, não podia haver nada mais inadequado à técnica insegura de Vincent que os tecelões e seus teares. O complexo conjunto do tear apresentava problemas insolúveis de perspectiva. Sua tentativa de usar uma grade de perspectiva se mostrou inútil: os teares eram grandes demais, e os aposentos, pequenos demais. (...) O acréscimo dos tecelões só aumentava o problema. Apesar de anos de tentativa, Vincent ainda não dominava a figura humana. ” (NAIFEH; SMITH, 2012) __________ “O Córtex inferotemporal é uma região localizada em ambos os hemisférios cerebrais, e tem por função a identificação de padrões complexos, correspondentes à identificação de objetos e cenas. Ele contém um certo número de sub-áreas, como o fusiform gyrus, responsável somente pela identificação de rostos.” (WARE, 2008).

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Parece bastante claro que, ao retratar os tecelões, Van Gogh trazia uma derivação da temática do trabalhador, que perseguia desde 1880 nas minas de Borinage. Ao trabalhar com o tema, entretanto, percebe-se que a figura do tecelão é pouco trabalhada quando comparada ao detalhamento que é dado ao cenário e ao maquinário. Os rostos dos operários não apresentam qualquer traço fisionômico próprio ou emoção perceptível

Imagens 16. 17 e 18: detalhes das representaçãoes de tecelões, em 1884.

Do ponto de vista da mensagem transmitida, embora o artista tenha alcançado melhorias do pinto de vista de representação compositiva, percebe-se a perda de informação significativa à transmissão da mensagem. A impessoalização da figura, transformada em uma espécie de “manequim”, não ia ao encontro da intenção do artista - de transformar o trabalhador em uma espécie de “herói do evangelho”. Nesse sentido, o funcionamento específico do sitema visual contribuiu muito para a crescente sensação de estranhamento. Conforme explica Ware (2008), existe uma região específica no cérebro - o córtex inferotemporal - que se responsabiliza pela identificação de padrões complexos e específicos, como o rosto humano. Quando algum elemento desse rosto se torna padronizado, essa região “se confunde”, causando a sensação de estranhamento. Em seus escritos, Vincent destaca o desafio que estes modelos representaram para ele (que se atrapalhava ao tentar desenhar os teares, sem o apoio de suas linhas de perspectiva - tornadas inúteis em espaços tão pequenos). A sua inabilidade ao representar o rosto humano se mostrava, nesse caso, um empecilho na manifestação de suas intenções enquanto artista.


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“No começo de dezembro, o seu ateliê já estava abarrotado com as novas imagens. Em todas as paredes, cabeças espiavam da escuridão. Fosse no cavalete ou nas pilhas de esboços, as visitas só viam os rostos solenes e anônimos das classes baixas de Nuenen ”

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Van Gogh se põe, então, a desenhar retratos, com a compulsão e velocidade características de seu trabalho. A meta que impôs a sí mesmo era a de pintar 30 cabeças até o final de 1885 - totalizando cerca de dez retratos por mês. Devido à velocidade com que o trabalho era feito, não havia tempo para desenhar ou delinear os contornos, e as características das modelos precisavam ser definidos pelas próprias pinceladas.

(NAIFEH; SMITH, 2012) __________

“Elas (as cores marrom argênteo, bistro e betume) possuem essas qualidades muito peculiares e admiráveis... Exigem algum esforço para aprender a usá-las, pois devem ser usadas de maneira diferente das cores comuns. (...) No começo, fiquei bastante desapontado, mas não podia esquecer as belas coisas que foram feitas com elas. ” (VAN GOGH, 1999).

Imagens 19 e 20: Cabeças de Mulher, 1884. Van Gogh, óleo sobre tela.

A velocidade de produção garantiu a ele algumas características que permaneceriam para sempre no seu trabalho: a capacidade de sugerir áreas complexas (como dobras de roupas) com simples pinceladas. Além disso, o exercício também contribuiu para a construção de uma paleta condizente bastante recorrente nas obras de Van Gogh, nessa época. Como pintava muito rápido, era necessário utilizar cores que, ao se misturar, fossem harmónicas o suficiente para manter certa coerência. Para isso, optou por uma escala de marrons, se opondo ao que era sugerido por seu irmão, Theo (que recomendava o uso de cores mais luminosas, seguindo uma tendência impressionista). O dia 30 de março de 1885 (aniversário de Vincent) foi marcado pela morte de Theodorus, seu pai - fato que levou Van Gogh a se isolar em seu ateliê e pintar obsessivamente, por cerca de dois meses. O resultado de seu momento de reclusão foi a obra “Comedores de Batata”, concluída em maio de 1885.


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Imagem 21: Os comedores de Batata, 1885. Van Gogh, óleo sobre tela.

“Quis dedicar-me conscientemente a expressar a ideia de que essa gente que, sob essa luz, come suas batatas com as mãos, também trabalhou a terra. Meu quadro exalta, portanto, o trabalho manual e o alimento que eles mesmos ganharam tão honestamente.” (VAN GOGH, 1999).

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“A possibilidade de admitir muitas interpretações, ou seja, a polissemia, é uma característica fundamental da arte, que, até certo ponto podemos atribuir também à cor. É possível obter uma significância precisa para determinada cor em determinado contexto cultural (...) desde que a informação cromática seja aplicada em conjunto com outros elementos sígnicos além da própria cor.”

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Embora tenha sido exaltado por Van Gogh como “a melhor coisa que já fiz”, o quadro não foi muito bem recebido, nem mesmo por Theo ou Rappard, com quem trocava correspondências. Esse fato levou o artista a escrever inúmeras vezes sobre o trabalho - em uma multiplicidade de argumentos que impressiona ao demonstrar a consciência do autor quanto à inovação que a obra representava. Nas primeiras cartas, defende o uso de uma paleta terrosa, citando as teorias de Charles Blanc quanto à composição de carne e tecidos. Além disso, indica que a cor marrom, que usou para pintar os camponeses, se referia à própria terra usada para plantar as batatas, afirmando que “os camponeses foram pintados com o solo que semeiam”. Essa afirmação indica a compreensão, por parte de Vincent, quanto ao uso da cor como um código cultural - destacado por autores como Luciano Guimarães (2004).

(GUIMARÃES, 2004) ­ _________

“Tive de tirar bem umas cem ou mais moscas das quatro telas que você está para receber, para não mencionar a poeira, areia, etc. Para não mencionar que, quando se carrega uma tela pela charneca e pelas sebes durante duas horas, é bem possível que saia arranhada por um ou dois galhos. ” (VAN GOGH, 1999).

Imagens 22, 23 e 24: detalhes das peles das figuras de Os Comedores de Batata, de 1885.

Para que a cor seja utilizada dessa forma, é importante que seja aliada a outros elementos visuais, facilitando a apreensão e combinação de signos pelo cérebro. No caso de Os Comedores de Batata, percebe-se como a iluminação destaca as mãos e os vestuários dos camponeses - em uma demonstração clara da intenção do artista de associar os elementos formais da obra à condição social de suas personagens. Até mesmo o armazenamento do quadro foi justificado pelo autor, transformando a obra em um elemento completamente campestre. Assim, os “arranhões de galhos” e a “poeira acumulada” se tornam outros elementos capazes de gerar significado. Os próximos meses foram marcados pelo retorno de Van Gogh aos campos e charnecas, onde se dispunha a pintar ao ar livre. O momento de isolamento


Van Gogh: uma abordagem perceptiva

“Agora, minha paleta está degelando. (...) As cores se sucedem por conta própria, e tomando uma cor como ponto de partida, mentalmente vejo com clareza o que deve vir a seguir... De fato, as cores tem algo a dizer em si mesmas.”

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havia resultado em uma nova maneira de compreender as cores, e sua paleta acabava de clarear um pouco. Em uma tentativa clara de lidar com a morte do pai, Vincent pinta uma nova série de quadros sobre os cemitérios de Nuenen.

(VAN GOGH, 1999). __________ “Eu só queria expressar o quão perfeitamente simples a morte e o sepultamento são. Apenas um pouco de terra, desenterrando pequenas cruzes de madeira. Os campos ao redor fazem uma linha final contra o horizonte, onde a grama do adro termina - como um horizonte no mar. E agora, as ruínas me dizem como o credo e religião têm estado distantes, apesar de terem sido tão bem estabelecidas neste meio – e como , no entanto, a vida e a morte dos camponeses é e permanece a mesma: sempre brotando e murchando como a relva e as flores que estão a crescer neste cemitério” (VAN GOGH, 1999).

Imagem 25: A Torre do Cemitério de Nuenen, 1885. Van Gogh, óleo sobre tela.

Percebe-se alguns elementos marcantes em toda essa série Em um primeiro momento, o horizonte, posicionado nos quadrantes inferiores da obra, estabelecem um limite com o céu – marcado pela presença de pássaros negros, que voam próximos à torre da igreja. No solo, que segundo o artista representa o limite do terreno, destaca-se a igreja – que se mantém imponente em sua estrutura, mesmo marcada pela passagem do tempo. Ao seu lado, restam somente lápides, plantas murchas e a presença de uma figura que permanece de pé, impassível. De um ponto de vista técnico, pode se dizer que a pintura é composta por formas geométricas simples, apresentando uma paleta avermelhada e pelo uso de tons terrosos. A variação de paleta em outras pinturas de mesma temática, entretanto, indicam o claro processo de experimentação pelo qual passava o artista.


Van Gogh: uma abordagem perceptiva

“Assim, o constructo horizontal-vertical constitui a relação básica do homem com o meio ambiente. (…) Na expressão ou interpretação visual, esse processo de estabilização impõe a todas as coisas vistas e planejadas um eixo vertical, com um referente horizontal secundário, os quais determinam, em conjunto, os fatores estruturais que medem o equilíbrio. Esse eixo visual também é chamado de eixo sentido, que melhor expressa a presença visível mais preponderante do eixo no ato de ver. Trata-se de uma constante inconsciente.” (DONDIS, 2007)

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Os objetivos do artista com a obra são claramente expressos pela estrutura compositiva da pintura, uma vez que a grande maioria dos elementos pictóricos relaciona-se harmonicamente com a composição, fundindo-se à ambientação geral da pintura. Constata-se que tanto a igreja como as figuras ao seu redor firmam-se perpendicularmente à linha do horizonte, através de um eixo definido por Dondis (2007) como o Eixo Sentido.

Imagem 26: A Torre da Igreja Velha de Nuenen, 1885. Van Gogh, óleo sobre tela.

Imagem 27: Igreja de Nuenen em meio à tempestade, 1885. Van Gogh, óleo sobre tela.


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“Tudo, tudo fica idêntico aos mais bonitos quadros de Corot. Uma tranquilidade, um mistério, uma paz que só ele pintou. (…) O céu estava claro, brilhante, não branco, mas em um lilás difícil de capturar, branco com brilhos vermelhos, azuis e amarelos nos quais tudo se refletia; se sentia por toda parte, em cima de tudo, vaporoso, misturado com a neblina abaixo – tudo se fundia em uma gama de azuis delicados.”

A interpretação do trabalho, nesse caso, se fez possível em decorrência do posicionamento desses elementos na composição geral do quadro – não sendo possível pressupor a intenção do artista por meio de cores ou elementos estéticos mais imediatos.

(VAN GOGH, 1990).

Essa fase marca uma importante transição para o artista que, mediante a mudança de paisagem e ao contato com os artistas impressionistas e cromoluminaristas, passa a explorar novas cores e técnicas de pintura, numa tentativa de renovar sua paleta e desenvolver novas formas de expressão. No momento de sua chegada, escreve a seu irmão notas quanto à sua percepção das cores da nova paisagem – a comparando ao trabalho de Camille Corot e as descrevendo como belas, difusas e de difícil captação.

Ao ver a renovação do aluguel de seu atelier recusada, em 1886, Van Gogh resolve partir para Paris - com a intenção de aprender mais sobre cores com as pinturas francesas. Como partiu às escondidas (evitando pagar o último mês de aluguel), Vincent abandonou todas as suas obras, às deixando à merce de credores e dos funcionários de sua mãe. Uma vez em Paris, muda-se para Montmartre, onde divide o apartamento com seu irmão, Theo, e passa a fazer aulas de pintura no ateliê de Cormon. Ali, conhece os artistas John Peter Russell, Henri de Toulouse-Lautrec e Émile Bernard – com quem desenvolveu particular amizade. É nessa fase que adere à algumas técnicas impressionistas, e, pintando ao ar livre, clareia sua paleta – desenvolvendo sua série de paisagens de Montmartre.

Imagem 28: Vista de Paris de MontMartre, 1886. Van Gogh, óleo sobre tela.


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“Um objeto pode ser separado de seus arredores a partir de muitas maneiras diferentes, incluindo a análise de luminância em sua silhueta, a distinção cromática, de textura e até de movimento. Entretanto, o cérebro requer um mecanismo de extração de contorno generalizada, na fase de processamento padrão da percepção.”

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Em um de seus primeiros trabalhos após a mudança, Vista de Paris de Montmartre, percebe-se a aquisição de novas ferramentas pictóricas, retratando as novas paisagens a partir de pinceladas mais marcadas e encorpadas, com cores que se misturam à paisagem, auxiliados por uma menor definição de contornos e detalhes. As medidas demonstram ser uma forma eficaz de o artista expressar a difusão da atmosfera, a mesclando com os telhados das casas e com as estruturas das construções, dificultando a atuação do Generalized Contour Mechanism – a principal ferramenta cognitiva de diferenciação de planos e formas, realizada pelo córtex lateral occipital.

(WARE, 2008)

Imagens 29 e 30: Recortes de Vista de Paris de MontMartre, de 1886.

Nesse trabalho, entretanto, não se percebe uma variação significativa da paleta do artista – que se limita a uma gama de cores escuras e acinzentadas. Como uma recomendação de seus colegas no Estúdio Cormon, Vincent se dedica momentaneamente ao trabalho com naturezas mortas - principalmente no período do inverno, quando era frio demais para pintar ao ar livre. Era uma medida bastante comum, indicada para aqueles que ainda sentiam dificuldades com a paleta impressionista. Ao que indica, a escolha por esse tipo de temática também era movida por apelo comercial - coincidindo com a época em que Theo passa a comercializar as naturezas mortas produzidas por Monticelli.


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“Ano passado, não pintei quase nada além de flores, como uma forma de me acostumar com cores diferentes do cinza – como o rosa macio ou o verde brilhante, a luz, violeta, amarela, laranja, vermelha e azul. E quando eu pintei as paisagens de Asnières, este Verão, vi mais cor nele do que antes.” (VAN GOGH, 1990).

__________

“Inserimos a cor complementar em qualquer cor que estamos vendo. Assim, parece que não só experimentamos um efeito de redução constante dos estímulos em nossa percepção. mas também estamos fisiológicamente envolvidos em um processo de supressão cromática de nosso input informativo visual, numa busca incessante por um tom intermediário de cinza.” (DONDIS, 2007)

Imagem 31: Natureza Morta com Rosas e Girassol, 1886. Van Gogh, óleo sobre tela.

O motivo pelo qual a representação de naturezas mortas era recomendada pelos tutores do período é bastante simples: era muito mais fácil compreender a interação cromática ao se trabalhar com elementos mais simples, como frutas ou rosas. Para Van Gogh, esse tipo de exercício se tornou bastante produtivo: percebe-se como o contraste cromático evoluiu, passando de tons tímidos e acinzentados para outros mais ousados, como o verde e o vermelho. Segundo Dondis (2007), esse processo de contraste entre complementares envolveria toda uma resposta fisiológica, resultando na supressão cromática do input visual do espectador. Esse tipo de combinação, portanto, é responsável por uma certa sensação de desconforto, que leva o observador a se focar em alguns elementos específicos da imagem enquanto procura restaurar o equilíbrio cromático inconscientemente desejado - no caso, as flores do vaso. Durante esse mesmo ano, com a chegada do verão, Vincent se dedica à pintura das paisagens de Paris - apresentando uma nova paleta que,


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“Para Vincent, tudo no quadro era uma renegação ao passado: ausência de figuras e sombras, cores claras e infatigavelmente brilhantes, execução peremptória, tinta fina que se extende no quadro como pastel, mostrando o fundo branco entre cada pincelada, onipresente o ofuscante, como o terreno de calcário. Se Os Comedores de Batata eram uma reflexão sobre a escuridão, La Butte Montmartre era um devaneio sobre a luz.”

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agora, envolve tonalidades de azul e violeta, incorporando um estilo bastante peculiar de pintura – que, embora apresente cores e tratamentos impressionistas, se reveste de uma gestualidade exacerbada, marcada por pinceladas curtas e pontilhismos típicos de um trabalho experimental. Assim, armando seu cavalete em amplos bulevares e nas estradas do subúrbio, Van Gogh volta a sua atenção para monumentos industriais e panoramas da periferia, os enchendo de cores cada vez mais vivas e luminosas. Foi o caso da obra La Butte Montmartre - que expunha a visão que o artista tinha da rua por onde passava diariamente, à caminho do ateliê que frequentava.

(NAIFEH; SMITH, 2012)

Imagem 32: La Butte Montmartre, 1886. Van Gogh, óleo sobre tela.

Além do óbvio clareamento da paleta de Van Gogh, que praticamente abdicara do uso de marrons (antes suas cores favoritas), é possível perceber uma enorme diferença na aplicação da tinta - agora, muito menos espessa, com pinceladas, mais curtas e esparsas. A medida acrescenta a obra uma nova característica perceptiva: a textura. De um ponto de vista neurológico, a textura é um dos elementos apreendidos de maneira mais natural, pelo córtex visual primário - e é associada imediatamente às condições materiais do objeto observado.


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“Uma vez que o efeito de contraste de cor opera na direção da coplementaridade fisiológica, ele serve para aumentá-la onde ela já existe, como por exemplo, na relação entre azul e amarelo, ou para modificar as cores na direção de tal complementaridade, se estiverem já razoavelmente próximas a ela.” (ARNHEIM, 2013)

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Outro hábito adquirido por Vincent, nesse período, foi a de pintar autorretratos - que, desenvolvidos em diversos momentos do ano, podem ser utilizados como clara demonstração da influência que a arte francesa exerceu sobre a estética de sua obra.

Imagens 33, 34 e 35: Autorretratos de Van Gogh, pintados entre 1886 e 1887.

A alteração cromática que incidiu sobre suas obras durante o período que morou em Paris é facilmente identificável nesse tipo de trabalho, e demonstra uma mudança na maneira como o artista concebia e representava a luz. Segundo Arnheim (2013), esse tipo de luminosidade, exclusivamente cromática, poderia provir de um efeito de contraste de cor - em que duas matizes acabariam por se realçar mutuamente, facilitando a assimilação perceptiva. Não se sabe exatamente o motivo pelo qual Van Gogh deixou Paris. Entre 1886 e 1888, enquanto conviveu com seu irmão, as cartas entre os dois cessaram, assim como os registros que se tem quanto ao objetivo de suas ações. O fato é que, em fevereiro de 1888, o artista se muda para Arles pequena província francesa localizada ao sul. Alí, percebe-se uma clara predileção do artista pelo ar do interior, ignorando quase completamente os vestígios da arquitetura românica (muito visitados por outros artistas) e se focando em paisagens e cenas urbanas do cotidiano. Um de seus temas preferidos eram os vastos trigais dourados, os quais pintou dezenas de vezes.


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Imagem 36: O Semeador, 1888. Van Gogh, Ăłleo sobre tela.

“O trigo tem todos os matizes do ouro velho (...). Cobre, Verde-ouro, vermelho-ouro, amarelo-ouro, amarelo-bronze, verde avermelhado e laranjas flamejantes.� VAN GOGH, 1999

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É evidente que, com o retorno à vida bucólica, as temáticas de Van Gogh se voltaram novamente para o camponês e o trabalho braçal, valorizando-o mais uma vez como algo quase milagroso. Os trigais que representou nesse período são repletos de dourados - e ofuscam a figura do camponês, que se relacionam com ele como uma espécie de anjo. Em O Semeador, o horizonte, repleto de dourados age em contraste com a porção inferior da tela, predominantemente azul - o que divide a composição em duas metades harmônicas e estáveis. A única figura a romper com a “calmaria” é a do semeador, que, em clara referência à obra homônima de Millet, se mantém radiante, caminhando a largos passos sobre um turbilhão de azuis e lilases como se andasse sobre a própria água.

Imagem 37: O Semeador, 1850. Jean François Millet, óleo sobre tela.

A comparação entre os dois trabalhos nos fornece pistas interessantes sobre a verdadeira intenção do artista. Ao retomar os temas que abordava em Nuenen, Van Gogh renova a maneira como atribui significado à suas composições. Do ponto de vista estrutural, as obras se assemelham bastante: dividemse no constructo horzontal-vertical, cortadas pela linha do horizonte,


Van Gogh: uma abordagem perceptiva

“Existem muitas tonalidades de amarelo no céu e no solo - muitas destas neutralizadas pelo contato com o violeta. Entretanto, eu não poderia me impotar menos com a maneira como as cores deverias ser representadas, na realidade.” (VAN GOGH, 1999)

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destacando a figura de um semeador, que caminha a passos largos. A composição de Van Gogh, entretanto, foi acrescida de outro tipo de simbologia, oriunda de uma nova maneira de se trabalhar com as cores, aprendida nos anos em que estudou em Paris. A impressão que o quadro passa aos espectadores é a do realce ao trabalho servil - destacado por um contraste cromático que o confere uma luminosidade quase sobrenatural - em sintonia com a poética defendida pelo artista até o momento. Este trabalho marca um importante período para o artista, em que as cores passam a ser empregadas conscientemente de acordo com a sua intenção, compondo parte cada vez mais importante da poética de Vincent. Nesse mesmo período, já alocado na famosa Casa Amarela (local que dividiria com Gauguin, num futuro próximo), ele se põe a pintar girassóis.

_________ “Censuro-me por não estar pintando flores aqui. Sob o céu azul, os salpicos alaranjados, amarelos, vermelhos das flores adquirem um brilho maravilhoso, e no ar límpido elas parecem, de certa fora, mais bonitas do que no norte. (...) Estou pensando em decorar o meu ateliê com meia duzia de quadros de girassóis. ” (VAN GOGH, 1999)

Imagem 38: Vaso com 15 Girassóis, 1888. Van Gogh, óleo sobre tela.


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“Não é a emoção e o sentimento sincero pela natureza que nos atrai? E às vezes as emoções são tão fortes que se trabalha sem saber que se está trabalhando, e as pinceladas vêm com continuidade e coerência, como palavras em uma conversa por carta.” (VAN GOGH, 1999)

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Sobre essa série, prometia “efeitos como os dos vitrais góticos”, e uma “magnífica sinfonia de azul e amarelo”. Suas cartas revelam que as pinturas florais do perído tem intrínseca relação com as novas experiências sensoriais pelas quais o artista passara em Arles, destacando a maneira pelas quais as cores eram realçadas pelo “ar limpo do sul”. A diferença na construção dos trabalhos - em especial, na composição da paleta - indicam uma mudança na maneira como o artista pensava as cores. Se afastava, portanto, da concepção predominantemente pictórica impressionista, defendendo, segundo ele mesmo, a “emoção e sentimento sincero pela natureza”. Nesse sentido, cita Delacroix e Monticelli, se comparando a eles enquanto “verdadeiro romântico”.

­_________

“Tenho observado a forte luz do Sol daqui já faz alguns dias. O resultado é que, do ponto de vista das cores, o que mais me remete (...) é a Delacroix e Monticelli, aqueles pintores que, hoje, são errôneamente considerados puros românticos, pessoas de demasiada imaginação. ” (VAN GOGH, 1999)

Imagens 39 e 40: respectivamente, Natureza Morta com Rosa e Girassóis, 1886 e Vaso com 15 Girassóis, 1888. Van Gogh, óleo sobre tela.

De fato, ao comparar ambos os quadros, um espectador se depara com informações completamente diversas. Em um caso, as flores se dispõem harmonicamente pelo vaso, se agrupando de forma a destacar seus botões e suas cores, cada qual desempenhando um papel fundamental na composição cromática. Já o trabalho de 1888 denota uma composição quase monocromática - em que os amarelos e dourados do fundo enobrecem e se fundem à figura, em uma espécie de exaltação à natureza. As flores, por sua vez, se dispõe cada qual para uma direção, exibindo uma espécie de energia própria. Essas características são perceptíveis em outros trabalhos do mesmo período, ainda que a paleta de cores pudesse variar bastante.


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“A força de atração nas relações visuais constitui outro princípio da Gestalt, de enorme valor compositivo: a lei do agrupamento. É uma condição visual que cria uma circunstância de relações mútuas nas relações que envolvem a interação. (...) Através de suas percepções, o homem tem necessidade de construir conjuntos a partir de unidades, cuja força varia de acordo com a sua semelhança. ” (DONDIS, 2007)

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Imagens 41 e 42: respectivamente, Girassóis e 12 Girassóis em um vaso, ambas de 1888.

A maneira como esse tipo de movimento e “independência” se manifesta nos botões de flores pode ser descrita pelas regras de atração e agrupamento de Dondis (2007), ou mesmo pelos mecanismos de identificação e reconhecimento de padrões do sistema visual. Ao identificar objetos semelhantes, é uma tendência natural do organismo tentar “agrupá-los” - induzindo a uma harmonização e alocação de padrões em um mesmo plano. Para quebrar esse efeito, o artista se valeu de outros fortes elementos visuais - como a direção e o movimento - na tentativa de “enganar” esse mecanismo. Dessa forma, embora as flores se disponham como um grupo, composto por elementos semelhantes, algumas características de seus posicionamento faz com que se manifestem diferentemente, nos induzindo a classificá-las como peças individuais. Em diversas outras ocasiões, Van Gogh se aproveitaria do estranhamento oriundo da manipulação de elementos visuais para transmitir algum tipo de mensagem. Isso é perceptível nas pinturas em que retrata os cafés de Arles - que, a menos de duas quadras de distância da Casa Amarela, eram constantemente frequentados por mendigos e indigentes. Suas visitas aos locais eram frequentes, e, embora vez ou outra dividisse um copo de absinto com Roulin (o carteiro), era bastante comum que se sentasse sozinho, analisando por horas os hábitos e costumes dos fregueses.


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Imagem 43: Café à Noite La Place Lamartine, 1888. Van Gogh, óleo sobre tela.

“No meu quadro do Café à Noite, tentei expressar que o café é um lugar onde alguém pode se arruinar, enlouquecer ou cometer um crime.” VAN GOGH, 1999

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“ Pelos constrastes das tonalidades de um rosa delicado, vermelho-sangue e vermelho-escuro, de um verde suave Luís XV e verde veronês contra um amarelo-esverdeado e azul-esverdeado forte tudo isso numa atmosfera do rubro de fogo infernal e um amarelo baço de enxofre - quis exprimir o poder tenebroso de uma taberna.”

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Para Van Gogh, pouco importavam as cores que Ginoux (o dono do estabelecimento) havia escolhido para as paredes do bar: após alguns dias de convívio no ambiente, o clima de tensão e embriaguez do La Place Lamartine exigiam o contraste forte do vermelho e do verde. Mais do que isso, era necessário um vermelho sangue - capaz de exprimir toda a “loucura” que poderia advir de uma taberna como aquela.

(VAN GOGH, 1999) __________

“O organismo humano parece buscar a harmonia. Há uma necessidade em organizar toda espécie de estímulos em totalidades racionais. (...) O contraste é uma força de oposição a esse apetite humano. Desequilibra, choca, estimula, chama atenção.” (DONDIS, 2007)

Imagem 44: Recorte de Café à Noite La Place Lamartine, 1888.

Tudo neste trabalho - desde a escolha das cores à construção e disposição dos personagens - foi meticulosamente selecionado para causar o máximo de contraste possível: sensação essa, descrita por Dondis (2007), como a responsável por “chocar, estimular e chamar a atenção”. Segundo a autora, o contraste pode ser proporcionado pela disposição simultânea de quaisquer elementos visuais díspares - como, por exemplo, pontos, linhas, manchas e cores. No caso da composição acima, além da clara oposição cromática de matizes, percebe-se como as linhas das paredes e do chão se cruzam perpendicularmente, sendo ainda atravessadas pelas linhas do assoalho e da mobília (no eixo diagonal). Além disso, a quase completa ausência de sombras (representadas apenas pela sombra da mesa de biliar) contribuem para o desenvolvimento de um clima surreal, exagerado. Não existe um ponto onde os olhos possam repousar, sem que o excesso de contrastes o fatigue.


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“Na Casa Amarela, os acontecimentos estavam em uma espiral de descontrole. Exposões veementes pontuavam as obras de todos os dias. (...) Discutiam até “todos os nervos ficarem tensos e sufocarem todo o calor humano”, lamentava Vincent.” (NAIFEH; SMITH, 2012)

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Em outubro de 1888, Gauguin chega à Casa Amarela, disposto a cohabitar o espaço e produzir seus trabalhos sob o patrocínio de Theo. Uma sequência de fatores fizeram com que esse acontecimento abalasse significativamente as estruturas de Vincent - influenciando não só na maneira como pintava, mas comia e dormia. Inicialmente, a facilidade com que Gauguin vendia seus quadros surpreendia a Vincent, que mostrava uma enorme dificuldade em adaptar seu trabalho às demandas comerciais impostas por Theo. Ademais, seus inúmeros sucessos amorosos na cidade (contrapostos às desavenças de Van Gogh nessa área) resultavam em uma latente sensação de inferioridade por parte dele. A relação entre os dois também era bastante tempestuosa: além das claras divergências quanto às técnicas e temáticas que deveriam ser empreendidas pelo “verdadeiro artista moderno”, suas opiniões também se contrapunham no que diz respeito à poética e ao significado de arte. As discussões, muitas vezes, se prolongavam por muitas horas, após as quais Vincent encontrava enorme dificuldade para dormir ou se alimentar. Foi após uma dessas discussões que Vincent, febril e em uma de suas crises de insônia, decepa um pedaço de sua própria orelha e a leva ao bordel favorito de Gauguin, na Rue du Bout d’Arles (a algumas quadras de sua casa). Foi imediatamente levado ao hospital, sendo internado por insanidade poucas semanas depois, no mosteiro de Saint-Paul-deMausole, em Saint-Remy.

Imagem 45: Hospício de Saint-Paul-de-Mausole.


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“ Os ciprestes estão sempre me ocupando os pensamentos. Gostaria de fazer com eles algo semelhante ao que fiz com os girassóis, pois me espanta que ainda não tenham sido feitos como eu os vejo.” (VAN GOGH, 1999)

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A verdade é que, apesar da situação degradante, Vincent se identificou de imediato com o lugar. O mosteiro funcionava como uma espécie de casa de repouso, e os doentes eram submetidos a uma rotina monástica de refeições em conjunto. Além disso, os ar das montanhas, os jardins bem cuidados e os campos verdejantes atraíram bastante o pintor, que chegara a escrever a Theo que “nunca teve tanta paz em outro lugar”. Alguns dias após chegar, obteve a autorização para montar um ateliê em um dos quartos desocupados. Sua localização junto à entrada garantia fácil acesso ao jardim, e, consequentemente, à uma nova fonte de obsessão para o artista: os ciprestes. A espécie crescia por todo o vale, e serviam como uma marcação para sepulturas. Além disso, eram usados para delimitar fronteiras: erguendo-se em grupos, em uma densa folhagem verde.

Imagens 46 e 47: desenhos de Van Gogh representando a paisagem local, 1889.

Desenvolvimento bastante notável nesse período foi o trabalho com pinceladas - usadas, agora, como elemento significativo na construção de uma sensação geral da paisagem. Mesmo nos trabalhos com nanquim, como o exposto acima, percebe-se o cuidado do artista para representar uma espécie de movimento harmônico inerente à vegetação. No final do primeiro mês, Vincent já estava trabalhando em cerca de uma dúzia de telas - todas com ciprestes. Uma delas, em particular, chamava bastante atenção pelo estranho fundo celeste por trás dele. Ao concluí-lo, Vincent escreve a seu irmão, Theo: “Enfim, tenho mais um estudo de um céu estrelado” - acompanhado de críticas severas quanto aos trabalhos desenvolvidos.


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Imagem 48: Noite estrelada, 1889. Van Gogh, óleo sobre tela.

“As únicas coisas que considero minimamente aceitáveis nesses trabalhos são o Campo de Trigo, a montanha, as oliveiras com as colinas azuis. O resto não me diz nada, porque carece de vontade pessoal, sentimento imbuído nas linhas.” VAN GOGH, 1999

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“Qualquer movimento feito pelos olhos, pela cabeça ou pelo corpo é transmitido ao centro sensorial motor do cérebro, e, de fato, o mero impulso para se mover é um acontecimento cerebral. O “feedback” a partir destes processos motores influencia a percepção visual. (...)

A maneira como Vincent se refere aos seus trabalho no período, os classificando como “impessoais e sem sentimento”, costuma chocar diversos estudiosos, que consideram o trabalho como uma esécie de precursor do movimento expressionista.

Além disso, há fatores especificamente visuais atuando dentro do campo perceptivo os quais determinam como o sentido da visão maneja as ambiguidades motrizes. Karl Duncker demonstrou que no campo visual os objetos são vistos numa relação hierárquica de dependência. (...)

Ao analisar a obra a partir de um ponto de vista perceptivo, entretanto, percebe-se que a ordenação das pinceladas possibilitam uma nova gama de interpretações – instigando tanto a investigação sensorial do tato (oriundo da textura) como a impressão de movimento.

Quando não existe nenhuma dependência, os dois sitemas podem ser vistos movendo-se simetricamente, aproximando-se ou afastando-se um do outro” (ARNHEIM, 2013)

É importante, entretanto, compreender que, embora tenha inovado em diversos aspectos (como no tratamento das imagens e no enorme leque de novas possibilidade representativas), esses trabalhos específicos não representaram muito para o autor, que seguia uma poética específica já havia alguns anos.

Imagens 49 e 50: recortes de A Noite Estrelada, de 1889.

Essa sensação, por sua vez, se relaciona com o novo tratamento conferido por Van Gogh às imagens. Arnheim (2013) defende que, ao mover os olhos para interpretar uma cena, o sistema visual humano rapidamente analisa figura e fundo e transmite um input ao cérebro, que interpreta com qual velocidade os objetos deveriam se mover quando observados em ambiente natural. Ao conferir tratamento muito semelhante a ambos os planos, o artista acaba por interferir no processo perceptivo, causando essa sensação de que “tudo se move”.


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“Através de diversos experimentos, os neurocientistas descobriram que o V1 (córtex visual primário) é uma região em que a grande maioria das informações visuais são processadas. Os elementos de cor, forma, textura e movimento são processadas nessa região.”

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Em maio de 1890, após pouco mais de um ano de internação, Vincent recebe alta, e se muda para Auvers-sur-Oise, na região nordeste de Paris. Nessa época, pinta em ritmo frenético, retomando alguns temas corriqueiros (como trigais e retratos). O retorno a Paris possibilita que percebamos a mudança na maneira como o artista percebe o processo cromático, a partir da alteração do tratamento de suas obras.

(WARE, 2008)

Imagem 51: Trigal com Corvos, 1890. Van Gogh, óleo sobre tela.

As cores não mais atuam segundo a exclusiva intenção de criar volumes, contrastes e definir contornos, como em 1886. Agora, o céu carregado, luta (em termos de peso compositivo) com os campos de trigo. O amarelo deixa de resplandecer pureza, e se apresenta como uma “maré ocre”, de ritmo inconstante. Esse tipo de trabalho estimula, simultaneamente, todos os canais de apreensão visual. Conforme afirma Ware (2008), os elementos de cor, textura, forma e movimento são apreendidos pelo córtex visual primário, sendo posteriormente processados de forma a gerar informações mais complexas. A obra de Vincent desse período lida com todas essas características, as utilizando na configuração de significados específicos, definidos ativamente pelo artista durante o processo criativo. Esse foi um dos últimos trabalhos de Vincent Van Gogh. Após algumas desavenças com o irmão, que via sua situação financeira apertar (em decorrência do nascimento de seu primogênito), Theo recebe uma carta afirmando que seu irmão estaria gravemente ferido após disparar contra si mesmo.


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Existem muitas controvérsias sobre esse ferimento, que causaria a morte do artista cerca de 48h depois do ocorrido. Embora já tivesse escrito a seu irmão sobre o suicídio, Vincent o descrevia como um ato “covarde e hediondo”, e se considerava “alguém que não podia se suicidar, pois considerava a água fria demais”. Além disso, a arma do crime nunca foi encontrada, bem como o cavalete e a tela que o artista pintava no momento do ocorrido. Ao ser questionado sobre isso, entretanto, Vincent dizia: “Eu disparei contra mim mesmo. Não acusem ninguém”. Menos de um ano após sua morte, Theo também falece, sucumbindo à doença e à forte depressão que se abatera sobre ele. Os irmãos foram sepultados lado a lado, em Auvers.

Imagem 52: túmulos de Vincent e Theo, em Auvers.


Van Gogh: uma abordagem perceptiva

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4. Considerações finais Por ter se aventurado na carreira artística já com considerável idade (aos 27 anos), Vincent Van Gogh se mostrou bastante consciente quanto a suas dificuldades para materializar seu pensamento - discorrendo sobre isso constantemente e justificando cada escolha tomada por meio de cartas e teorias. As críticas, quase sempre negativas, levaram o artista a explorar novas ferramentas, de forma a obter novos meios que o aproximassem do resultado esperado. Isso indica que, para o artista visual, a constante exposição do seu trabalho para o público se faz de extrema importância - uma vez que pode fornecer as bases para uma reflexão mais aprofundada sobre o seu discurso. Nesse contexto, a compreensão dos mecanismos que regem a percepção visual traz importantes informações, uma vez que esse processo condiciona toda a posterior interpretação do que foi visto e assimilado pelos espectadores. Cabe ao artista, portanto, avaliar qual a melhor forma de materializar suas ideias, de maneira a facilitar a comunicação com seu público, potencializando o desenvolvimento de novas reflexões acerca de sua obra.


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5. Referências bibliográficas ABRIL COLEÇÕES. Grandes Mestres: Van Gogh. São Paulo, Editora Abril, 2011. AUMONT, Jacques. A Imagem. Campinas, Papirus, 1993. KANDINSKY, Wassily. Ponto e Linha sobre o Plano. São Paulo, Martins Fontes, 2005. ALBERS, Josef. A Interação da Cor. São Paulo, Martins Fontes, 2008. ARNHEIM, Rudolf. Arte e Percepção Visual. São Paulo, Editora Cengage, 2013. DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo, Martins Fontes, 2007. GUIMARÃES, Luciano. A Cor como Informação. São Paulo, Editora Annablume, 2004. NAIFEH, Steven; SMITH, Gregory White. Van Gogh: A Vida. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. PURVES D, CABEZA R, HUETTEL SA, LABAR KS, PLATT ML, and WOLDORFF, M. Principles of Cognitive Neuroscience, 2nd edition. Sunderland, MA: Sinauer Associates, 2012 VAN GOGH, JOHANNA. A Memoir of Vincent Van Gogh. London, Pallas Athene, 2015. VAN GOGH, Vincent. Cartas a Theo. São Paulo, L&PM, 2002. VAN GOGH, Vincent. The Complete Letters of Vincent Van Gogh – Vol. I, II e III. Londres, Thames and Hudson, 1999. WARE, Colin. Visual Thinking, for Design. Nova York, Elsevier Inc, 2008.


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