Historias incríveis da Quarta Colônia

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Textos e ilustrações de

Guilherme Da Cas, Jéssyka Gomes e Mathias Townsend


A Secretaria de Estado da Cultura, Turismo, Esporte e Lazer apresenta:

Livro escrito e ilustrado por: Guilherme Da Cas, Jéssyka Gomes e Mathias Townsend *Baseado em lendas e contos populares da região da Quarta Colônia - RS

1ª Edição

Financiamento:


Textos e ilustrações: Guilherme Da Cas Jéssyka Gomes Mathias Townsend Produção executiva: Fernanda Scherer Revisão: Fernanda Scherer Cleudes Welker Susana Dalcol Capa e projeto gráfico: Guilherme Da Cas Jéssyka Gomes Mathias Townsend Preparação gráfica: Filipe Furian

Flora Edições floraedicoes@gmail.com

Financiamento:


Sobre o projeto / Prefácio Era uma vez três amigos que queriam criar um livro com as Histórias Incríveis da Quarta Colônia. Por quê? Porque nas andanças por Silveira Martins, São João do Polêsine, Nova Palma e Faxinal do Soturno eles descobriram causos tão fantásticos, contados pelos nonos e nonas da região, que tiveram a ideia de difundi-los para mais e mais pessoas. As descobertas vão desde o homem mais veloz que cavalos de corrida até um pé de abóboras mágicas. E aqui está o livro, trazendo histórias criadas a partir de diversos causos incríveis da Quarta Colônia.

Que comece a aventura!

Projeto realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (PRÓ-CULTURA RS FAC), Lei nº 13.490/10


A Quarta Colônia A Quarta Colônia de Imigração Italiana está localizada no centro do Rio Grande do Sul e recebeu esse nome porque foi o quarto centro de colonização italiana no Estado, no século XIX. Fazem parte da Quarta Colônia as atuais cidades de Silveira Martins, Ivorá, Faxinal do Soturno, Dona Francisca, Nova Palma, Pinhal Grande, São João do Polêsine, Agudo, Itaara e Restinga Sêca. Foi nessas cidades que as Histórias Incríveis aconteceram. Histórias que contam um pouco das pessoas que chegaram da Itália, mas também das que já estavam aqui, fizeram outras viagens e vieram de outras culturas.

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Sumรกrio A Fe s t a d o Com p ad r e Folhare do.............................. .................07 O H om e m d o C ol ar E nc a n t ado.............................. .... .................11 O H om e m Q u e C or r i a Carre iras......................... .... .... ...............15 O Ou r i รง o Can t or e as Ab รณb oras M รก g ic as....................................19 Pi e r o e a S t r e g a ............................. .... ...................................2 3 Roseto.................................................................................27


A Festa do Compadre Folharedo

por Jéssyka Gomes

Animais de todas as partes da floresta se reuniram na Quarta Colônia para construir um açude e armazenar água da chuva, a fim de sobreviverem na época de seca. A época de chuva forte se aproximava e, por isso, a maioria dos animais trabalhava muito, dia e noite sem parar, até a exaustão. Nessa época, todos viviam muito tristes e desanimados, pois a preocupação com a seca não permitia que houvesse tempo para pausas ou diversão. A situação estava crítica naquele ano, e eles precisavam acabar a obra antes da primeira gota de chuva começar a cair. Porém, tinha um bicho que não queria fazer nada – era o tal do Macaquito. Indignado do tanto que os outros trabalhavam, sumiu. Certo dia, bateu a sede no Macaquito e ele foi beber a água do açude, mas os outros animais o impediram. – Que história é essa? Exclamou o Macaquito. – Ainda não conseguimos finalizar a obra. A pouca água do açude é para os que ajudaram e não para os preguiçosos que fugiram! Disse a onça.

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Revoltado, Macaquito teve a ideia de pegar das abelhas o mel que elas guardavam em barris pendurados no alto das árvores. Por ter agilidade em pular e se movimentar de uma árvore para a outra, Macaquito chegou até os barris, sem as abelhas perceberem, e começou a roer as cordas que seguravam os barris. – Greti! Greti! Greti! – roeu até que os barris caíram no chão, esparramando todo o mel. O Macaquito, que não era bobo, comeu um montão de mel e, no que sobrou, rolou por cima. Foi num capão com bastante folha seca e rolou até não poder mais. Transformouse em um bichão grande e voltou ao açude para pechinchar um pouco d’água. – Boa tarde! Eu sou o Compadre Folharedo! Estou de passagem, venho de longe e gostaria de tomar um pouco de água. – Compadre Folharedo, tome o quanto precisar. Afinal, vem de longe, né? – Disse a onça, simpatizando com o amigo. – Snek, snek, snek!

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O som que o Macaquito fazia tomando água era tão alto e tão harmonioso, que os animais começaram a lembrar das canções que eram cantadas entre eles, antes da seca ser um problema tão grande. Sem combinação nenhuma, os animais trabalhadores começaram a pegar seus instrumentos de trabalho e acompanhar o som que o Compadre Folharedo produzia. A onça pegou a serra e começou a produzir o som “zac zac zac”. O coati pegou a pá e fez o som “tóc tóc tóc”. E assim começou uma grande festa. Foi então que o Compadre Folharedo percebeu que, animados e felizes, os animais manejavam com gosto os instrumentos de trabalho.

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Folharedo tomou a frente da banda, como fazia o maestro de uma orquestra, e começou a movimentar a obra. Seguindo o ritmo da festa, cada animal assumiu seu instrumento de trabalho. As primeiras gotas de água começaram a cair do céu e logo os animais terminaram o açude. Assim, todos perceberam que tudo o que é feito com leveza e alegria é melhor, e o que faltava para o açude ficar pronto era unir essas duas coisas – trabalho e diversão. E essa foi a festa do Compadre Folharedo!

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O Homem do Colar Encantado

por Mathias Townsend

Contam que há algumas décadas, lá no pequeno lugarejo de Arroio Ribeirão, todos os moradores estavam muito tristes e cabisbaixos. Apesar das muitas promessas dos políticos de lá, o vilarejo era o único da região que ainda não possuía energia elétrica. E nesse lugar viva Seu Carlos. Tímido para alguns, ranzinza para outros, Seu Carlos era um tipo tão calado que nem os vizinhos mais próximos o conheciam muito bem. No alto de seus setenta e tantos anos, o homem vivia embrenhado pelas matas, campos e cerros dos arredores. Toda essa natureza que cercava seu vilarejo ele já conhecia de cor e salteado – e naquele tempo os verdes eram muito mais abundantes que hoje. Foi numa primavera de brisa suave que Carlos saiu para arar a terra e fazer o plantio do milho, como de costume.

De repente, o susto: um enorme buraco redondo engoliu o homem que, apavorado, examinava ao seu redor. – Puxa vida! Isso são ossos de gente! – exclamou ele. 12


Seu Carlos logo percebeu que o buraco era uma cova, um túmulo. Em meio ao pavor da situação, um brilho chamou sua atenção: era um colar azul que reluzia. Depois de sair do buraco, o homem guardou o colar no bolso, montou em seu cavalo baio e galopou até o centro da cidade. O destino era a biblioteca. Apesar de nunca ter sido estudioso, Carlos era um homem sábio. – Uma vez me disse meu avô: antes da chegada dos italianos essa região era a morada de outros povos… – lembrou ele. Ao buscar livros a respeito do assunto, descobriu que havia um grupo indígena que habitou a região da Quarta Colônia há centenas de anos e se chamava Tapes. Os Tapes possuíam amuletos que traziam as forças da natureza para suas atividades. A partir desse dia, Carlos passou a usar o dito colar azul em seu pescoço. Mas, desde então, as coisas começaram a mudar... O homem começou a se incomodar muito com os sofrimentos que testemunhava. Ao ver uma pessoa tristonha, não conseguia ignorar. Ao ver um animal com fome, tinha que dar-lhe de comer. Ao ver um passarinho engaiolado, libertava-o. Desse jeito, a tristeza que atormentava sua vizinhança com a falta de eletricidade passou a aborrecêlo profundamente. 13


Ainda mais ao descobrir que o candidato a prefeito havia prometido a instalação da rede elétrica, mas depois de eleito, não cumpriu sua promessa. Certo dia, Carlos descobriu que o tal prefeito iria até o vilarejo para um comício político. E foi aí que o Homem do Colar Encantado entrou em ação. Inspirado pelo colar e pelos Tapes, que buscavam ajuda na natureza, ele se foi mata adentro. Só retornou horas depois e então se pronunciou aos vizinhos: – Sorriam, meus vizinhos! Dou minha palavra que amanhã começará a ser montada a rede elétrica aqui da vila! – todos se olharam com cara de estranhamento, claro. Ao amanhecer do dia do comício, toda a estrutura de rede elétrica do lugar realmente estava montada. Só que havia uma peculiaridade: os postes eram feitos de taquaras, os fios eram cipós, as lâmpadas eram porongos e os transformadores feitos com ninhos de marimbondo. – Mas que absurdo é esse?! – Gritou o prefeito, assustado ao chegar em Ribeirão e ver aquela estrutura esquisita. – Queremos luz elétrica! – Toda a vizinhança clamava, em gritos cada vez mais altos.

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Então, sob o olhar sério do Homem do Colar Encantado, centenas de marimbondos voaram na direção do prefeito e sua equipe. O comício se desfez em segundos. Em poucos dias o ato tinha dado resultado: a rua estava iluminada. Toda a rede elétrica estava pronta, as casas da vila já tinham eletricidade e os moradores, grandes sorrisos estampados em seus rostos. Depois de muitas melhorias pelas voltas de Arroio Ribeirão, não se ouviu mais falar de Seu Carlos. Alguns juram que ainda o enxergam andando pelos campos e morros dos arredores e, quando precisam resolver algum problema cabeludo, chamam por ele.

Outros dizem que Carlos perdeu o colar dentro das matas por onde andava. Será que um dia alguém vai reencontrá-lo e continuar os incríveis feitos do Homem do Colar Encantado?

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O Homem Que Corria Carreiras por Guilherme Da Cas Em pleno inverno, era noite de festa no galpão da igreja de Val Feltrina. Nelson estava ansioso pela sopa de agnolini, o risotto e o galetto que seriam servidos em seguida. Para comemorar, tomou um gole de vinho colonial e seu rosto avermelhou em um segundo. Chegava a comida farta e ele a devorava como se não comesse há uma semana, mas a verdade é que já havia feito cinco refeições naquele dia. Os amigos costumavam dizer, em tom de brincadeira, que era “magro de ruim”. Depois da cena, era momento de baile e Nelson se aprochegou ao lado da cancha de bocha para ouvir melhor a música ao vivo: “Merica, Merica, Merica, cossa saràlo ‘sta Merica?” O entrevero estava bellisimo, e depois de muitas músicas do folclore italiano e gaúcho, lembrou que no outro dia, pela manhã, iria disputar carreira com sua égua Natalina contra a famosa égua Moura – campeã de São João do Polêsine. Arrumou-se às pressas e correu para fora. Tupí e Tupí, seus leais companheiros caninos, esperavam-no na saída do galpão, junto com Natalina.

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Apesar de fazer muito frio, Nelson usava bombacha e chinelo de dedo, como de costume. Também era noite de nevoeiro, então não podia enxergar muito longe. Ao atravessar a ponte de madeira do riacho de Val Feltrina, os cachorros começaram a latir, sua égua a empinar assustada. Ele sentiu como se alguma coisa o puxasse para baixo. Não via muito, mas podia jurar que panos brancos flutuantes o puxavam para dentro do riacho! Chegou a molhar os dedos do pé com a água fria. Não fosse por Tupí e Tupí, que espantaram os panos brancos, Nelson seria puxado para dentro do riacho para nunca mais ser visto – ao menos assim pensava. Seguiu disparado e sem olhar pra trás, montado em Natalina, passando pelo moinho dos Moro e continuou seu caminho em direção a Val de Buia, pela Estrada do Imigrante. Ao passar pelo belo Vale do Monumento ao Imigrante, começou a ouvir vozes de mulheres ao seu redor. Não entendia bem o que falavam, mas parecia uma cantoria em italiano. Logo adiante, perto do cotovelo da estrada, o nevoeiro começou a cercá-lo e já não conseguia ver nem as suas mãos em sua frente. De repente, teve a estranha impressão de ter levitado de sua égua e estar flutuando nas estrelas de cabeça para baixo! 17


Lá no alto, viu três mulheres, que flutuaram perto dele, e começaram a falar em italiano – ele as conhecia! Elas, então, fizeram-no prometer que não contaria a ninguém quem eram, pelo menos enquanto uma delas ainda fosse viva. Assustadíssimo, acenou com a cabeça, sem falar uma palavra sequer. Aos poucos, o nevoeiro começou a sumir e as vozes viraram sussurros. Quando voltou a si, Nelson estava montado na égua Natalina, mas agora perto da fábrica de madeira próxima à Vila Catânia, há muitos quilômetros de onde estava em um piscar de olhos atrás. Olhava para os lados, desconfiando de cada barulho que a noite fazia – assustou-se até com o canto de um urutau. Passando perto da tapera do Savegnago, começou a escutar barulhos estranhos, vindos das moitas do outro lado da estrada de chão. Gravetos estalando e folhas secas quebrando – pensou que alguma forma sorrateira se escondia por detrás das árvores e o espionava. Virou-se rapidamente em busca de abrigo para se esconder da terrível ameaça que o rondava, quando viu que um monstro com cabeça de fogo se jogou em sua frente! Com olhos flamejantes, dentes pontiagudos e corpo disforme, era uma assombração terrível! Certamente, um lacaio das bruxas malignas – pensou.


A assombração veio em sua direção para devorá-lo e Nelson usou o relho para que a égua corresse mais depressa, mas ela estava muito assustada e se atrapalhou. No desespero, ele pulou da égua e saiu correndo a pé com seus chinelos de dedo e ultrapassou Natalina por muitos metros de distância logo nas primeiras passadas, correndo muito mais rápido que sua égua corredora! Sem olhar para trás, chutando pedras e galhos e deixando seu chinelo arrebentado pelo caminho, Nelson chegou em casa. Imediatamente fechou portas e janelas e se encolheu na cama, debaixo de seus cobertores de lã. Acordou no outro dia, com os primeiros raios da manhã entrando pelas frestas da sua janela de madeira. Ainda podia ouvir as palavras das bruxas ecoarem em sua mente adormecida. Nelson nunca revelou a identidade das bruxas que o cercaram, o que quer dizer que pelo menos uma delas ainda está viva. Dizem que, naquela manhã, ele correu a pé a carreira contra Natalina e a égua Moura. Saiu vencedor, ganhando o apelido de o Lebrão (grande lebre) de Silveira Martins. Hoje, Nelson já não faz carreiras, mas pode ser visto pelas ruas de Silveira com Tupí e Tupí e fica alegre em confirmar essa história a quem sobre ela perguntar.


O Ouriço Cantor e as Abóboras Mágicas

por Mathias Townsend

Ainda hoje, não há muitos moradores na serra da linha Mantuanos. Antigamente, que é quando se passa essa história, o lugar era ainda mais ermo e isolado. Mas foi lá mesmo, em um morro muito alto e cercado de mata nativa, que a família Conceição se estabeleceu. Dona Etelvina, a matriarca, chegou até a Quarta Colônia ainda menina, depois de sua família sair do Paraguai e vir cruzando vastos campos, matas e montanhas na busca de uma vida mais digna. Esperta como poucos, aprendeu a ler e a escrever por conta própria. Já, sobre Seu Alexandre, seu marido, não se sabia muita coisa. Dizem que era descente de escravos e um homem muito esforçado. Conhecia tudo sobre as lidas do campo, além da arte da carpintaria. Assim, construiu a pequena casa de madeira em que a família morava. Toda essa sabedoria, o casal Etelvina e Alexandre fazia questão de transmitir aos filhos Roque, Pedro e à pequena Elaine. Naquele tempo, as moradias eram muito distantes umas das outras. De vizinhos, somente os bichos da mata – inclusive um ouriço muito curioso que sempre aparecia pela volta da casa. Os pais não o viam muito, mas as crianças sim. Carinhoso que era, elas adoravam brincar com o bichinho.

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Nem carros e nem ônibus circulavam por aquelas estradas, por isso as escolas tinham que ser espalhadas pelo interior. Assim, todos os dias a pequena Elaine e seus irmãos caminhavam quilômetros para irem à aula. No raiar de uma manhã gelada e de serração, as crianças saíram para fazer sua longa caminhada. Etelvina, que precisou ir à cidade, acompanhou seus filhos em parte do caminho. Sozinho em casa, Seu Alexandre foi até o fogão à lenha para preparar o café que tomava todas as manhãs antes de ir trabalhar. – Maldito fogo que não acende! – Disse ele, brabo com a situação. Tentou outra vez, não acendeu. Insistiu em uma terceira tentativa e nada. Assim, já sem paciência, o homem saiu de casa sem café mesmo. Montou em seu cavalo branco e se foi campo afora. Mal sabia ele que o fogo tinha sido aceso, sim. Começou muito fraquinho, mas foi crescendo e crescendo, até a labareda tocar o guardanapo de pano que estava perto do fogão. Depois cresceu e cresceu até tocar as cortinas floridas da cozinha e, então, acabou por tomar a casa toda. Dona Etelvina voltava da cidade caminhando pela estrada de chão quando avistou a enorme árvore da frente de sua casa ardendo em chamas. Alguns segundos se passaram, mas o abalo era tão grande que seu olhar seguia fixo.

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– Oh não... terminou-se minha casa. – disse ela, com uma lágrima escorrendo no rosto. O fogo diminuiu somente quando já havia consumido quase toda a estrutura da casa. Ao encontrar o resto da família, falou, desolada: – Só sobraram as cinzas espalhadas pelo chão... Não restaram panelas, não restaram alimentos, não restaram roupas, nem mesmo os uniformes das crianças. A solução foi se abrigarem no antigo galpão, onde todos se amontoaram no trigo seco para dormir. E, para aguentarem o frio, esquentavam-se embaixo do velho poncho que Seu Alexandre usava para andar a cavalo, na chuva.

O dia seguinte foi muito difícil, pois não havia nem alimento para a família matar a fome, a não ser uma grande abóbora crescida na horta.

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Então, os pais colheram a tal abóbora e a preparam em pedacinhos, para que cada um da família comesse pelo menos um pouco. Até mesmo o pequeno ouriço ganhou sua porção. Passado o susto, a reconstrução da casa começou. Na madrugada, enquanto descansavam, todos ouviram um canto muito curioso vindo da horta, que soava como “Tin tiririn tin tin”. Espantosamente, na manhã seguinte havia outra abóbora enorme, no mesmo lugar da que fora colhida. E, em todos os outros dias da reconstrução, a mesma coisa acontecia: a família dormia ouvindo aquela melodia misteriosa e, na manhã seguinte, colhia o único fruto que na horta estava: uma abóbora novinha, grande e madura. Trabalhando sob o sol, a família seguiu em frente e conseguiu refazer sua casa e sua vida após o incêndio. Dizem que o pé de abóboras só parou de dar frutos diários quando eles se restabeleceram e puderam comprar e cultivar outros alimentos. Dizem, também, que a menina Elaine jura ter visto e ouvido o pequeno ouriço cantarolar “Tin tiririn tin tin” ao redor da horta. Vai ver era o encanto desse canto que fazia as abóboras crescerem tanto... 23


Pìero e a Strega

por Guilherme Da Cas

Era dia de festa no salão paroquial da Vila de San Gregorio, na Itália. Muitas famílias camponesas se preparavam para a viagem à América, que aconteceria nos próximos dias. Uma velha Strega passava pela Vila, quando avistou um grupo de garotos na escadaria da igreja. – Ciao bambinos! – disse a feiticeira. – Ajudem essa velha andarilha que procura por trabalho e um prato de comida. Piero, o líder do grupo, respondeu aos gritos: – Bruxa feia e encrenqueira, saia daqui ou vamos te assar na fogueira! Em seguida, Piero deu uma tranca na Strega e ela se machucou muito. A feiticeira estava farta de ser mal tratada por onde passava e, naquele momento de raiva, rogou uma praga para o bambino: – Sacramento! Si vedra bambino, che non si va a America! – esbravejou furiosa. A feiticeira se levantou com dificuldade e os meninos correram, rindo, para a missa.

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Durante a festa, Piero passou muito mal e desmaiou no meio do salão. Nos dias que seguiram, padres o benzeram e curandeiros prepararam chás com ervas, mas Piero continuou desmaiado. O que ninguém sabia era que Piero ouvia tudo o que diziam. Que agonia! Piero tentava dizer que estava acordado, mas não conseguia! Chegado o dia da partida para a América, a família de Piero rezava para que ele melhorasse, mas ele continuava desmaiado. – Addio mio figlio, mamãe nunca vai te esquecer – chorou sua mãe apoiada em seu peito. Piero também chorou, mas nenhuma lágrima saiu. Sua tia Ursula, uma jovem muito bondosa, o acolheu em sua casa humilde e cuidou dele como se fosse seu filho. Enquanto isso, a Strega não conseguia trabalho nem comida no vilarejo, pois todos a tratavam com desprezo. Certo dia de muito frio, a feiticeira passou por uma casa simples, sentiu cheiro de sopa e usou toda a coragem que tinha para pedir um prato de comida. Uma jovem moça abriu a porta, convidou caridosamente a signora para entrar e serviu o humilde prato de sopa de agnolini que seria a sua própria janta.

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A Strega estava com tanta fome, que comeu a sopa rapidamente: – Shuuuuuuuu! Grazie per la zuppa, ragazza. – Agradeceu a feiticeira. – Por que abriste a porta pra uma velha feia e suja como eu? – Não a vejo assim, signora. Você deve estar faminta para pedir um prato de comida a uma desconhecida como eu – confirmou a moça, com muita certeza. – És muito bondosa, ragazza. Qual teu nome e por que estás tão triste? – Me chiamo Ursula. Meu sobrinho está doente há muitos dias e não sei mais o que fazer para ele melhorar. Piero, que estava na cama ainda sem conseguir se mexer, escutou a conversa: – Dio mio! É aquela bruxa maldosa que me rogou a praga! – pensou aos gritos. A Strega, ao ver o garoto, se espantou: – É o bambino que me deu a tranca na escadaria da igreja! Com um movimento maestro, a feiticeira tirou de sua bolsa um galho seco e ervas perfumadas, esfregou–as nas mãos e soprou– as em cima de Piero. De repente, o menino conseguiu abrir os olhos! A Strega sentou Piero na cama e pegou uma agulha de seus trapos de roupa. – É agora que ela vai acabar de vez comigo, Dio mio! – pensou, ainda sem conseguir falar.

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A Strega segurou firme a agulha e, com destreza, fincou no joelho de Piero! Lá dentro, ela mexeu a agulha para cima e para baixo, para os lados, para frente, para trás, até que finalmente começou a puxar algo. Do joelho de Piero, começaram a sair cabelos escuros e longos, longos, longuíssimos! Piero começou a sentir formigar o seu corpo e rapidamente ganhou cor nos lábios e nas bochechas. Agora, a Strega tinha a oportunidade de consertar o seu erro. – Foste salvo pela bondade de tua tia, bambino... – Tens sorte! – a feiticeira sorriu. Piero, muito envergonhado, pediu desculpas à signora e aprendeu com sua tia que não se deve julgar ninguém pelas aparências. Dois anos depois, Piero pegou um navio de imigrantes para o Brasil para reencontrar sua família na Quarta Colônia Italiana do Rio Grande do Sul, em Dona Francisca, onde até hoje seus parentes vivem e contam a sua história.

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Roseto

por Jéssyka Gomes

No alto de um morro, morava a menina Ana. Certo dia, a menina brincava na frente de sua casa, quando começou a escutar o som de uma carroça. O barulho do trote dos cavalos anunciava a chegada do “Nonão”. Nonão era como a menina chamava seu avô materno. Ele vinha todo domingo de Dona Francisca visitar a neta em Nova Palma e passar um tempo com ela, contando histórias. Nesse dia, o nono contou a história do Roseto: Era uma vez uma casinha na beira da floresta, cercada por árvores frutíferas. Lá morava uma feiticeira. Certa manhã, ela resolveu preparar em seu caldeirão uma saborosa feijoada para o almoço. Por não ter boa visão, já não diferenciava tão bem os potes nos quais guardava as comidas dos que continham suas poções. De repente, ao despejar na comida o que pensava ser tempero, viu que todos os grãos de feijão ganharam vida e começaram a saltar da panela! O susto dos feijões foi tão grande com a feiticeira, que eles gritaram “Strega horrorosa!” e saíram correndo porta afora. – Esperem, aonde vão com tanta pressa? Perguntou a Feiticeira. – Fugir de ti, correndo para a floresta! Retrucaram os feijões. 28


A Feiticeira seguiu um dos feijões e o viu subindo em uma árvore. Para se aproximar, pediu que ele mandasse uma fruta de presente para ela. – Mas que insolente! Vou jogar essa fruta na tua cara e quebrar os teus dentes! – gritava o feijão do alto da árvore, enquanto atirava frutas na Bruxa. Perdendo a paciência com aquela criatura, a Feiticeira voltou para casa esbravejando, em busca de uma ideia para capturar o feijão. Ao retornar ao pé da árvore, levou consigo um saco escondido. Docemente, perguntou ao feijão: – Qual é o teu nome? Do topo da árvore, o pequeno feijão respondeu: –Ahmm, me chamo Roseto! – Ei, Roseto, não fique aí tão só! A floresta é perigosa e eu só estou com dó! Falou a Bruxa.

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Já fazia um tempo que ele estava naquela árvore e o esforço de jogar aquelas frutas na Feiticeira foi tão grande, que ele ficou exausto. Com cuidado e desconfiado da boa vontade da mulher, resolveu descer. Em um passo bem grandão, a Bruxa enganou Roseto e o prendeu no saco. Estava tão escuro lá dentro e perto dela ele era tão pequeno, que Roseto começava a aceitar seu fim, mas não antes de implicar: – Ei, Strega má! Tu podes até me cozinhar, mas tenha certeza que uma baita dor de barriga eu vou te dar! Sem dizer nada até em casa, a Feiticeira abriu a porta e teve uma grande surpresa: os outros grãos de feijão que haviam saltado do seu caldeirão estavam reunidos na sua cozinha, prontos para salvar seu companheiro. Assustada, logo ela disse: – Esse Roseto é danado, mas vocês entenderam tudo errado! A Bruxa explicou que esse foi o único jeito de fazer Roseto ouvir o que ela tinha para dizer, e que tudo não passava de um mal entendido, pois ela havia pegado o pote errado e feito aquele feitiço por engano! 30


Depois que o susto passou, entenderam que ninguém ia ser comido e, apesar da cara carrancuda, a Bruxa era boa gente. Roseto e os outros feijões disseram: – Pode contar com a nossa ajuda para cozinhar e o que mais for preciso, mas vamos deixar bem separados os seus potes de grãos dos de feitiço! E, assim, ensinando a neta que nem tudo é o que parece, Nonão encerrou a história. De tanto falarem em comida, Ana e o avô ficaram com uma fome danada e acabaram a manhã a caminho do risoto que teria na paróquia da cidade.

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Agradecimentos O livro Histórias Incríveis da Quarta Colônia tem histórias que reúnem muitos causos populares ouvidos na região. Para descobri-las, os autores contaram com a colaboração generosa de pessoas queridas, que os receberam para compartilhar histórias vividas por elas mesmas, ou que foram ouvidas dos pais, dos vizinhos, das avós, na padaria, no risoto de domingo ou no banco da praça. Mas as narrativas registradas não pretendem ser um relato fiel do que se passou. O livro pretende, isso sim, ser um passeio pela cultura da região que, como todas as manifestações de um povo, é criada e recriada a cada vez que é contada. A equipe agradece aos maravilhosos contadores de histórias, parceiros e apoiadores desse projeto, especialmente: Equipe do Pró-Cultura/RS, Anadete Buriol Dotto, Selvio João Dotto, Alferides Iolanda Volcato, Terezinha Tessele Fenker, Diomedes Savegnago Rossato, Arnildo Beno Wendling, Ines Ana Folletto, Patricia Linassi, Romoaldo Dalmolin, Dona Irma Anselma Buriol, Dona Lidia cassol Buriol, Arlindo Nogueira Roratto, Rodrigo Moro Savegnago, Maria Inês Moro Savegnago, Ruy Bianchi, Elaine Fátima Conceição, Antônio Dal Forno, Iolanda Dal Forno, Vanderlei Mezzomo, Rosa Amélia Forgiarini Da Cas, Susana Irion Dalcol, Juliele Maria Sievers, Filipe Furian e a todos que contribuíram mas que, por ventura, não tiveram seus nomes registrados.


Sobre os Autores por Fernanda Scherer

Cada participante do livro tem um amor singular pela Quarta Colônia. O Guilherme Da Cas foi o primeiro do grupo a vir para a região de mala e cuia. Apaixonado por Silveira Martins, carinhosamente apelidada por ele como “Silveirinha”, não abre mão de uma boa sopa de agnolini, da qual até conseguiu uma receita secreta com uma nona silveirense que dedica a vida a produzir esse prato. O Mathias Townsend cresceu fazendo trilhas nos morros da região. É um aventureiro apaixonado pela natureza – e ele garante que a Quarta Colônia conta com uma das paisagens mais lindas desse mundo. Um de seus sonhos é fazer com que todas as crianças percebam como somos integrados à Terra, aos rios, aos animais, às montanhas, às florestas e entendam como é importante amá-los e preservá-los. A Jéssyka Gomes tem um grande amor pela região, é fã das comilanças da colônia e das paisagens de Silveirinha. Não hesitou diante da ideia de contar num livro algumas das histórias mais incríveis da Quarta Colônia. Sempre foi muito empolgada para registrar novas aventuras e dedicou muito amor à descoberta de mais e mais causos, especialmente aqueles que envolvem os queridos animaizinhos.


Certo dia, um grupo de amigos decidiu reunir, através de algumas histórias,

diversos causos incríveis que ouviram pelos arredores da região central do Estado do Rio Grande do Sul, chamada de Quarta Colônia. Assim, surgiu o livro Histórias Incríveis da Quarta Colônia, uma obra com histórias que são uma coletânea de muitas narrativas transmitidas, recontadas e reinventadas de geração para geração. Um pé de abóboras mágicas; um homem mais veloz que cavalos de corrida e uma criatura formada por folhas, chamada Compadre Folharedo, são algumas das histórias incríveis registradas nesse livro inusitado e divertido.


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