Memórias da Emília

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Monteiro Lobato

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Créditos Editora Globo, 2007 Monteiro Lobato sob licença da Monteiro Lobato Licenciamentos, 2007 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc, sem a permissão dos detentores dos copyrights. Edição: Aríete Alonso (coordenação), Cecília Bassarani, Luciane Ortíz de Castro Edição de Arte: Adriana Bertolla Silveira Consultoria epesquisa: Mareia Camargos, Vladimir Sacchetra Preparação de texto: Margô Negro

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Revisão: Márcio Guimarães de Araújo e Página ímpar Produção editorial: 2 Estúdio Gráfico Ilustrações: Evellyn Matos Colorização das ilustrações: Eliana Borges Créditos das imagens: Acervo Cia. da Memória (capa Jeca Tatuzinho, página 7); Acervo família Monteiro Lobato (fotos de Monteiro Lobato, páginas José Bento Monteiro Lobato (Taubaté, 18/4/1882 - São Paulo, 4/7/1948). Escritor, jornalista, editor, tradutor, empresário do ferro e do petróleo. Estudou Direito, mas logo abandonou a profissão para se dedicar à literatura. Fundador da indústria editorial no País, tornou-se, com as histórias do Sítio do Picapau Amarelo, um dos maiores autores infanto-juvenis do Editora Globo SA Av. Jaguaré. 1.485 -Jaguaré


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SUMÁRIO Emília resolve escrever suas memórias

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O Visconde começa a trabalhar para Emília

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A história do anjinho corre mundo

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O almirante assombra-se com o que vê

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Onde aparece um famoso marinheiro

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Emília descobre o segredo de Popeye

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A grande luta. Pedrinho e Peter Pan batem Popeye

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Diálogo entre a boneca e o Visconde

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A fuga do anjinho. Grande tristeza

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O Visconde desabafa. Seu retrato da Emília

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Minha viagem a Hollywood. Últimas impressões de

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Emília

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O inventor do nosso faz-de-conta D

urante sua infância, Monteiro Lobato passava horas brincando, subindo em árvores e pescando no riacho. Mas ele não dispensava um bom livro de aventuras, que lia

na biblioteca do seu avô. Desde pequeno, escreveu para os jornaizinhos dos colégios que frequentou. Continuou escrevendo depois de formado em Direito e, em vez de trabalhar como advogado, tornou-se escritor, criando o Sítio do Pica-pau Amarelo.

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Monteiro Lobato, em 1887 e em 1945

Mas o que tinham os seus livros de tão especial para transformá-lo em um dos nossos maiores autores, inventor da própria literatura infanto-juvenil no País? Cansado de fábulas importadas, ambientadas na Europa e traduzidas para o português de modo confuso, Monteiro Lobato imaginou um cenário especial e bem brasileiro para seus personagens. E, para conquistar os leitores, contou histórias de maneira simples e direta, fáceis de compreender. Como nossa língua está em constante mudança, certas palavras que utilizou deixaram de ser usadas com o passar do tempo. Mas todas elas continuam mantidas, tal qual ele escreveu em seus livros.


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Monteiro Lobato respeitava a inteligência das crianças e dos jovens. No Sítio do Picapau Amarelo toda a turma tem vez e tem voz. Os netos de Dona Benta são sempre ouvidos com carinho, convivendo com os adultos de igual para igual. Comum nos dias de hoje, essa atitude era impensável na época de Lobato. Quando ele criou suas histórias, no começo do século XX, os pais falavam e os filhos obedeciam sem dar um pio. Não questionavam os adultos, nem diziam o que pensavam. Foi ele quem ensinou como todo mundo podia sair ganhando com o diálogo. Pedrinho, Narizinho e a incrível boneca Emí-lia, “bocuda” e palpiteira como ela só, conversam com os mais velhos livremente. Talvez por isso, desde o lançamento de A menina do narizinho arrebitado, no final de 1920, Lobato venha fazendo tanto sucesso. As crianças adoram o espaço de liberdade e imaginação que o Sítio representa, onde aprendem brincando sobre qualquer assunto.

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Monteiro Lobato gostava muito de escrever para crianças e jovens e, com o pó de pirlimpimpim, soltou as amarras da fantasia. Nas asas da imaginação seus leitores viajam com a turma do Sítio através do tempo e do espaço. A uma velocidade superior à da luz, voam ao passado ou ao futuro para voltar sempre cheios de novidades. Em suas aventuras encontram deuses gregos, convivem com a Branca de Neve, Peter Pan, Dom Quixote, Gato Félix... São histórias que divertem e atiçam a curiosidade. Não é à toa que sempre fica um gostinho de quero mais


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Emília resolve escrever suas Memórias As dificuldades do começo

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e tanto Emília falar em “minhas Memórias” que uma vez Dona Benta perguntou: - Mas, afinal de contas, bobinha, que é que você entende por memórias?

- Memórias são a história da vida da gente, com tudo o que acontece desde o dia do nascimento até o dia da morte. - Nesse caso - caçoou Dona Benta -, uma pessoa só pode escrever memórias depois que morre... - Espere - disse Emília. - O escrevedor de memórias vai escrevendo, até sentir que o dia da morte vem vindo. Então pára; deixa o finalzinho sem acabar. Morre sossegado. - E as suas Memórias vão ser assim? - Não, porque não pretendo morrer. Finjo que morro, só. As últimas palavras têm de ser estas: “E então morri...”, com reticências. Mas é peta. Escrevo isso, pisco


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o olho e sumo atrás do armário para que Narizinho fique mesmo pensando que morri. Será a única mentira das minhas Memórias. Tudo mais verdade pura, da dura - ali na batata, como diz Pedrinho. Dona Benta sorriu. - Verdade pura! Nada mais difícil do que a verdade, Emília. - Bem sei - disse a boneca. - Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar idéia de que está falando a verdade pura. Dona Benta espantou-se de que uma simples bonequinha de pano andasse com idéias tão filosóficas. - Acho graça nisso de você falar em verdade e mentira como se realmente soubesse o que é uma coisa e outra. Até Jesus Cristo não teve ânimo de dizer o que era a verdade . Quando Pôncio Pilatos lhe perguntou: “Que é a verdade?”, ele, que era Cristo, achou melhor calar-se. Não deu resposta. - Pois eu sei! - gritou Emília. - Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso. Dona Benta calou-se, a refletir naquela definição, e Emília, no maior assanhamento, correu em busca do Visconde de Sabugosa. Como não gostasse de escrever com a sua mãozinha, queria escrever com a mão do Visconde. - Visconde - disse ela -, venha ser meu secretário. Veja papel, pena e tinta. Vou começar as minhas Memórias. O sabuguinho científico sorriu. - Memórias! Pois então uma criatura que viveu tão pouco já tem coisas para contar num livro de memórias? Isso é para gente velha, já perto do fim da vida. - Faça o que eu mando e não discuta. Veja papel, pena e tinta. O Visconde trouxe papel, pena e tinta. Sentou-se. Emília preparou-se para ditar. Tossiu. Cuspiu e engasgou. Não sabia como começar, e para ganhar tempo veio com exigências. - Esse papel não serve, Senhor Visconde. Quero papel cor do céu com todas as suas estrelinhas. Também a tinta não serve. Quero tinta cor do mar com todos os seus peixinhos. E quero pena de pato, com todos os seus patinhos. O Visconde ergueu os olhos para o teto, resignado. Depois falou; fez-lhe ver que tais exigências eram absurdas; que ali no sítio de Dona Benta não havia patos, nem

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o tal papel, nem a tal tinta. - Então não escrevo! - disse Emília. - Sua alma, sua palma - murmurou o Visconde. - Se não escrever, melhor para mim. É boa!... Emília, afinal, concordou em escrever as Memórias naquele papel da casa, com pena comum e tinta de Dona Benta. Mas jurou que havia de imprimi-las em papel cor do céu, tinta cor do mar e pena de pato.O Visconde disparou na gargalhada. - Imprimir com pena de pato! É boa!... Imprime-se com tipos, não com penas. - Pois seja - tornou Emília. - Imprimirei com tipos de pato. O Visconde ergueu novamente os olhos para o forro, suspirando. Estavam os dois fechados no quarto dos badulaques. Servia de mesa um caixãozinho, e de cadeira um tijolo. Emília passeava de um lado para outro, de mãos às costas. Ia ditar. - Vamos! - disse ela depois de ver tudo pronto. - Escreva bem no alto do papel: “Memórias da Marquesa de Rabicó”. Em letras bem graúdas. O Visconde escreveu:

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MEMÓRIAS DA MARQUESA DE RABICÓ - Agora escreva: Capítulo Primeiro. O Visconde escreveu e ficou à espera do resto.Emília, de testinha franzida, não sabia como começar.-Isso de começar não é fácil. Muito mais simples é acabar. Pinga-se um ponto final e pronto; ou então escreve-se um latinzinho: FINIS. Mas começar é terrível. Emília pensou, pensou, e por fim disse: - Bote um ponto de interrogação; ou, antes, bote vários pontos de interrogação. Bote seis... O Visconde abriu a boca. - Vamos, Visconde. Bote aí seis pontos de interrogação - insistiu a boneca. - Não vê que estou indecisa, interrogando-me a mim mesma? E foi assim que as “Memórias da Marquesa de Rabicó” principiaram de um modo absolutamente imprevisto:Capítulo Primeiro??????? Emília contou os pontos e achou sete. - Corte um - ordenou. O Visconde deu um suspiro e riscou o último ponto, deixando só os seis encomendados.


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- Bem - disse Emília. - Agora ponha um... um... um... O Visconde escreveu três uns, assim: 1,1,1. Emília danou. - Pedacinho de asno! Não mandei escrever nada. Eu ainda estava pensando. Eu ia dizer que escrevesse um ponto final depois dos seis de interrogação. O Visconde começou a assoprar e a abanar-se. Por fim disse: - Sabe que mais, Emília? O melhor é você ficar sozinha aqui até resolver definitivamente o que quer que eu escreva. Quando tiver assentado, então me chame. Do contrário a coisa não vai. - É que o começo é difícil, Visconde. Há tantos caminhos que não sei qual escolher. Posso começar de mil modos. Sua idéia qual é? - Minha idéia - disse o Visconde - é que comece como quase todos os livros de memórias começam - contando quem está escrevendo, quando esse quem nasceu, em que cidade etc. As aventuras de Robinson Crusoé, por exemplo, começam assim: “Nasci no ano de 1632, na cidade de York, filho de gente arranjada etc”. - Ótimo! - exclamou Emília. - Serve. Escreva: Nasci no ano de... (três estrelinhas), na cidade de... (três estrelinhas), filha de gente desarranjada... - Por que tanta estrelinha? Será que quer ocultar a idade? - Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira. Continue escrevendo: E nasci duma saia velha de Tia Nastácia. E nasci vazia. Só depois de nascida é que ela me encheu de pétalas duma cheirosa flor cor de ouro que dá nos campos e serve para estufar travesseiros. - Diga logo macela, que todos entendem. - Bem. Nasci, fui enchida de macela que todos entendem e fiquei no mundo feito uma boba, de olhos parados, como qualquer boneca. E feia. Dizem que fui feia que nem uma bruxa. Meus olhos Tia Nastácia os fez de linha preta. Meus pés eram abertos para fora, como pés de caixeirinho de venda. Sabe, Visconde, por que eles têm os pés abertos para fora? - Há de ser da raça - respondeu o Visconde. - Raça, nada. É o hábito de ficarem desde muito crianças grudados ao balcão vendendo coisas. Têm de abrir os pés para melhor se encostarem no balcão, e acabam ficando com os pés abertos para fora. Eu era assim. Depois fui melhorando. Hoje piso para dentro. Também fui melhorando no resto. Tia Nastácia foi me consertando, e Narizinho também. Mas nasci muda como os peixes. Um dia aprendi a falar. - Sei como foi a história - disse o Visconde. - Você engoliu uma falinha de papagaio.

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- Está errado! Narizinho teve dó do papagaio e não deixou que o matassem para tirar a falinha. Fiquei falante com uma pílula que o célebre Doutor Caramujo me deu. Narizinho conta que a pílula era muito forte de modo que fiquei falante demais. Assim que abri a boca, veio uma torrente de palavras que não tinha fim. Todos tiveram de tapar os ouvidos. E tanto falei que esgotei o reservatório. A fala então ficou no nível. - Tenha paciência, Emília - disse o Visconde. - Ficou muito acima do nível, porque a verdade é que você ainda hoje fala mais do que qualquer mulherzinha. - Mas não falo pelos cotovelos, como elas. Só pela boca. E falo bem. Sei dizer coisas engraçadas e até filosóficas. Inda há pouco Dona Benta declarou que eu tenho coisas de verdadeiro filósofo. Sabe o que é filósofo, Visconde? O Visconde sabia, mas fingiu não saber. A boneca explicou: - É um bicho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando. Cada vez que digo uma coisa filosófica, o olho de Dona Benta fica parado e ela pensa, pensa... - Ficam pensando o quê, Emília? - Pensando que entenderam.

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O Visconde enrugou a testinha e quedou-se uns instantes de olho parado, pensando, pensando. Aquela explicação era positivamente filosófica. - E como sou filósofa - continuou Emília - quero que minhas Memórias comecem com a minha filosofia da vida. - Cuidado, Marquesa! Mil sábios já tentaram explicar a vida e se estreparam. - Pois eu não me estreparei. A vida, Senhor Visconde, é um pis-ca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca. O Visconde ficou novamente pensativo, de olhos no teto. Emília riu-se. - Está vendo como é filosófica a minha idéia? O Senhor Visconde já está de olhos parados, erguidos para o forro. Quer dizer que pensa que entendeu... A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e geme os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre. - E depois que morre? - perguntou o Visconde. - Depois que morre vira hipótese. É ou não é? O Visconde teve de concordar que era.


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O Visconde começa a trabalhar para Emília. História do anjinho de asa quebrada. Nesse ponto um urro veio distrair-lhes a atenção. Era Quindim, chamando Emília para uma prosa. - Escute, Visconde - disse ela. - Tenho coisas muito importantes a conversar com Quindim. Fique escrevendo. Vá escrevendo. Faça de conta que estou ditando. Conte as coisas que aconteceram no sítio e ainda não estão nos livros. - A história do anjinho de asa quebrada serve? - indagou o Visconde. - Ótimo! Ninguém lá fora sabe o que aconteceu por aqui com o anjinho que cacei na Via Láctea. Conte isso e mais outras coisas. O que quiser. Vá contando, contando. - Mas assim as Memórias ficam minhas e não suas, Emília. - Não se incomode com isso. No fim dou um jeito; faço como na “Aritmética...”. Disse e saiu correndo. O Visconde ficou de pena no papel, a pensar, a pensar. Por fim começou: O ANJINHO DE ASA QUEBRADA As crianças que leram Reinações de Narizinho com certeza também leram a Viagem ao céu, onde vêem contadas as aventuras dos netos de Dona Benta, da Emília e também as minhas no país dos astros. Não recordarei, portanto, nada disso. Só direi que houve lá por cima tais estrepolias que os astrônomos da Europa vieram queixar-se a Dona Benta das brincadeiras que estavam perturbando a harmonia celeste. Dona Benta, então, nos chamou para baixo com um bom berro: “Desçam já daí, cambada!”. Descemos todos, e com grande espanto Dona Benta viu que Emília tinha trazido o anjinho de asa quebrada, que descobrira, muito triste da vida, lá entre as estrelas. Ninguém descreve o rebuliço que houve na casa. A vida parou. Os pintos ficaram sem quirera. A Vaca Mocha ficou sem palhas. O feijão queimou na panela. Ninguém queria saber de outra coisa senão ver, cheirar, apalpar e conversar com o anjinho. E havia razão para isso, porque jamais descera ao mundo uma criatura tão mimosa. É até difícil dar idéia da galanteza daquela florzinha das alturas. Muito louro, cabelos cacheados, olhos azuis, asas mais brancas que as do cisne. Como era lindo! Infelizmente uma das asas se partira no ossinho do encontro, o que o impedia de voar. Infelizmente para ele; para nós foi felizmente. Se não fosse o quebramento da asa, Emília não o pegaria e nós não teríamos o gosto de conhecer em pessoa aquele mimo dos céus.

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Uma criatura do céu não pode saber nada das coisas da terra, de modo que o anjinho se mostrou de uma ignorância absoluta de tudo quanto aqui por baixo a gente sabe até de cor. Teve de ir aprendendo com Emília, a professora. - “Árvore, sabe o que é?” - perguntava ela. E como o anjinho arregalasse os olhos azuis esperando a explicação, Emília vinha logo com uma das suas. - “Árvore - dizia - é uma pessoa que não fala; que vive sempre de pé no mesmo ponto; que em vez de braços tem galhos; que em vez de unhas tem folhas; que em vez de andar falando da vida alheia e se implicando com a gente (como os tais astrônomos) dão flores e frutas. Umas dão pitangas vermelhas; outras dão laranjas doces ou azedas - e é destas que Tia Nastácia faz doces; outras, como aquela enorme ali (as lições eram sempre no pomar) dão umas bolinhas pretas chamadas jabuticabas. Vamos, repita: ja-bu-ti-ca-ba...” O anjinho atrapalhava-se e repetia errado: ja-ti-bu-ca-ba... fazendo Emília rolar de rir. As perguntas do anjinho eram sempre de uma infinita ingenuidade.

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- “Mas por que essas tais árvores nunca saem do mesmo lugar?” - “Porque têm raízes - explicava a Emília. - Raiz é o nome das pernas tortas que elas enfiam pela terra adentro. Bem que querem andar, as pobres árvores, mas não conseguem. Só saem do lugarzinho em que nascem quando surge o machado.” - “Que animal é esse?” - “Machado é o mudador das árvores, muda a forma delas, fazendo que o tronco e os galhos fiquem curtinhos. Muda-lhes até o nome. Árvore machadada deixa de ser árvore. Passa a ser lenha. Lenha. Repita.” - “É algum deus esse machado tão poderoso assim?” Emília ria-se, ria-se... - “Deus, nada, burrinho! É antes um diabo malvadíssimo, mas diabo sem chifres, sem cauda, sem pés de cabra, sem cabeça, sem braços, sem nada. Só tem corte e cabo...” - “Que é cabo?” - “Cabo é uma perna só, por onde a gente segura. Faca tem cabo. Garfo tem cabo. Bule tem cabo (e bico também). Até os países têm cabo, como aquele famoso Cabo da Boa Esperança que Vasco da Gama dobrou; ou aquele Cabo Roque, da Guerra de Canudos, um que morreu e viveu de novo. Os exércitos também têm cabos. Tudo tem cabo,


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até os telegramas. Para mandar um telegrama daqui à Europa os homens usam o cabo submarino.” O anjinho ficava de boca aberta, sem entender coisa nenhuma. - “Então o ‘submar’ também tem cabo?” - “Como não? E compridíssimos, que vão dum continente a outro.” - “E é por esses cabos que a gente pega no mar?” Emília ria-se, ria-se. O pobre anjinho não tinha idéia nenhuma das coisas da terra, porque sempre vivera no céu, lá nas nuvens. Emília era obrigada a explicar tudo, tudo... - “Oh - disse ela - você não imagina como é interessante a língua que falamos aqui! As palavras da nossa língua servem para indicar várias coisas diferentes, de modo que saem os maiores embrulhos. O tal cabo, por exemplo. Ora é isto, ora é aquilo. Há os cabos de faca, de bule, de panela, como eu já disse, que são as pontas por onde a gente pega nesses objetos. Há os cabos da geografia, que são terras que se projetam mar adentro. Há os cabos do exército, que são soldados. Há os cabos submarinos, que são uns fios de cobre compridíssimos por meio dos quais os homens passam telegramas dum continente a outro por dentro dos mares. E há um tal ‘dar cabo’ que é destruir qualquer coisa.” - “Mas por que é assim?” - “Para atrapalhar a gente. Eu penso que todas as calamidades do mundo vêm da língua. Se os homens não falassem, tudo correria muito bem, como entre os animais que não falam. As formigas e as abelhas, por exemplo. Esses bichinhos vivem na maior ordem possível, com suas comidinhas a hora e a tempo - e que comidas! O mel é uma perfeição que você nem sonha! Exatinho da cor de seus cabelos, mas sem cachos; em vez de cachos tem favos. E qual o segredo da felicidade desses animai-zinhos? Um só: não falam. No dia em que derem de falar, adeus ordem, adeus paz, adeus mel! A língua é a desgraça dos homens na terra.” - “Se é assim, por que eles não cortam a língua?” Emília ria-se, ria-se. - “Cortar a língua? Essa palavra língua quer dizer duas coisas: um órgão da boca, onde está localizado o paladar e também a fala dos homens. Há línguas do Rio Grande, que vêm em latas e servem para comermos e há as línguas da falação - a língua latina, a grega, a portuguesa, a inglesa. Estas não servem para comer - só para armar bate-boca...” - “Que é isso?”

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- “Brigas sonoras. Antes de brigar com socos e tapas e tiros, as criaturas brigam com desaforos.” - “Que é desaforo?” - “Desaforo é fazer certos elogios a uma pessoa. Vou dar um exemplo. Temos por aqui um animal chamado cachorro ou cão, bicho de muito bons sentimentos, o mais amigo do homem. É tão dedicado e amoroso, que o consideram o símbolo da fidelidade. É o cão que guarda os quintais contra os homens ladrões. É o cão que descobre a caça no mato. É o cão que puxa os trenós nas regiões só de gelo. É no cão que o homem faz experiências de laboratório. O cão é um colosso. Pois bem. Quando um homem compara outro homem ao cão, dizendo ‘Tu és um cão’, o outro puxa faca. Desaforo é isso...” - “Não estou entendendo - murmurou o anjinho. - Se o cão é um animal com tais qualidades, chamar cão a um homem devia até ser uma honra.” - “Pois é coisa de puxar faca ou dar tiro. Outro exemplo. Há por aqui certo animal ainda mais precioso que o cão - a vaca. A maior maravilha de bondade e utilidade que existe no mundo é a vaca. Dá leite para os filhotes dos homens. Dá queijo. Dá manteiga. Além disso dá os bezerros, que crescem, viram bois e vão puxar os carros

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dos homens e os arados com que eles remexem a terra para fazer suas plantações. Dá a carne com que os homens fazem bifes e picadinhos. Dá o couro com que os homens se calçam. Dá o mocotó com que as cozinheiras preparam as geléias, um doce gostosíssimo. Dá os ossos com que se fazem botões e mil coisas.” - “Então é a maravilha das maravilhas!” - observou o anjinho, entusiasmado com a vaca. - “Se é! Tão maravilha que em certos países, como no Egito, a vaca era adorada, virou deusa. Além disso, a vaca é de uma docilidade infinita. Basta dizer que eu, que sou deste tamanhinho, faço o que quero da Vaca Mocha de Dona Benta. Aquele animalão me obedece em tudo - vai para lá, vem para cá, vira para a esquerda, vira para a direita - é só eu falar com ela. E de medo de mim não é, porque com uma chifrada a Mocha me joga longe. Por bondade apenas, por docilidade de gênio. Pois muito bem. A vaca é tudo isso que acabo de dizer e ainda muito mais. No entanto, se você comparar a mais suja negra da rua com uma vaca, dizendo: ‘Você é uma vaca’, a negra rompe num escândalo medonho e se estiver armada de revólver dá tiro...” - “Que coisa interessante!” - exclamou o anjinho, assombrado. - “E vice-versa - continuou Emília. - Há por aqui uns animais que são malvadíssimos, umas verdadeiras pestes, como a tal cobra, que tem veneno nos dentes e o tal


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A história do anjinho corre mundo

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começou a correr mundo. Toda gente das redondezas veio vê-lo. Os jornais deram notícias. O rádio e o telégrafo transmitiram essas notícias para todos os países. E

de tal modo a novidade se espalhou que as crianças do mundo inteiro ficaram assanhadíssimas para conhecer o anjinho. Queriam à viva força vir ao sítio brincar com ele. Mas virem como, se as crianças do mundo são milhões? Os pais e as mães explicavam aos filhos que era o maior dos absurdos pensarem em semelhante coisa. Acontece, porém, que quando uma criança quer vivamente uma coisa e não consegue dá de emagrecer, fica doentinha, cheia de bichas. E as crianças do mundo inteiro começaram a ficar doentinhas e lombriguentas de tanto desejo de virem ao sítio. A situação tornou-se tão grave que o Rei da Inglaterra, o Presidente Roosevelt, o Führer da Alemanha, o Duce da Itália, o Imperador do Japão e o Negus da Etiópia se reuniram em conferência para tratar do assunto. Depois de muita discussão ficou assentado que todas as crianças do mundo seriam levadas ao sítio de Dona Benta. Mas por partes. Primeiro as de um país;


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depois as de outro - e assim até o último. Para saber quais iriam primeiro, foi preciso tirar a sorte. O Presidente Roosevelt escreveu o nome de cada país num pedacinho de papel e os botou, bem dobrados, dentro do chapéu de dois bicos do Imperador do Japão. Em seguida pediu ao Negus, que era o mais velho, para tirar um. A sorte favoreceu as crianças da Inglaterra. Quando saiu nos jornais a notícia desse fato, foi um hurra imenso no Império Britânico e uma choradeira ainda maior nos outros países. O Rei da Inglaterra, então, mandou preparar um grande navio cheio de doces, brinquedos e livros de figuras, e nele embarcou a criançada inglesa sob as ordens de um dos seus melhores almirantes - o Almirante Brown. Ele iria levá-las ao sítio de Dona Benta. Viva! Viva! Viva! A criançada inglesa, no dia marcado para o embarque, encheu o enorme transatlântico Wonderland, na maior algazarra e pinoteamento. Ficou aquilo que nem um enorme viveiro de periquitos louros. O pobre Almirante levava as mãos aos ouvidos, murmurando: - “Será possível que este barulho dure até chegarmos ao sítio de Dona Benta?” Quase ficou doido o pobre homem, porque, como era a úniWca gente grande de bordo (sem contar os marinheiros da tripulação), tinha de atender a tudo, apaziguar as

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terríveis brigas que a cada instante surgiam, por causa de um doce maior que outro ou de um livro de figuras que várias crianças queriam ver ao mesmo tempo. Felizmente não houve temporal durante a viagem, de modo que as crianças não enjoaram, chegando ao Brasil em perfeito estado. O momento da invasão do sítio de Dona Benta foi importante. A boa senhora não fora avisada, de modo que teve a maior surpresa de toda a sua longa vida de mais de sessenta anos. Estava Dona Benta na varanda, remendando umas meias furadas de Pedrinho, quando viu lá longe uma poeira na estrada. - “Nastácia - gritou ela -, traga o meu binóculo. Estou vendo uma poeira muito esquisita lá longe. Será boiada?” A negra trouxe o binóculo. De nada valeu. Pedrinho havia tirado os vidros para fazer fazer aquele célebre telescópio com que espiou o dragão de São Jorge na Lua. Dona Benta, que ignorava isso, olhou pelos canudos vazios e ficou na mesma. - “Minha vista está tão cansada que nem com este binóculo, que é excelente, consigo enxergar melhor. Não está vendo uma poeirada, Nastácia?” - “Estou, sim, Sinhá. Mas boi não é. Por este caminho nunca passa boiada. Coisas dos meninos, Sinhá vai ver. Alguma nova reinação com o tal pó de pirlimpimpim. Eles não dormem...”


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Nisto apareceu Narizinho, que estivera no pomar ensinando Flor das Alturas (nome do anjo) a descascar tangerinas. - “Vovó! - gritou ela assanhadíssima. - Vem vindo um bando enorme de crianças! Juro que souberam lá fora do nosso anjinho e vêm brincar com ele...” - “Credo! - exclamou Tia Nastácia. - Se aquilo tudo é criançada, onde vamos parar, Sinhá? Cada um é uma fome - e onde vou arranjar bolinho para tanta fome? Nem uma barrica inteira de farinha dá para contentar metade do povaréu que vem vindo...” Dona Benta começou a sentir palpitações do coração. - “Não se aflija, vovó - disse a menina. - Havemos de dar um jeito. A senhora bem sabe que sabemos dar jeito a tudo.” Disse e foi correndo conferenciar com Pedrinho e Emilia. Encontrou-os no alto da pitangueira, espiando a estrada. - “Estamos fritos, Narizinho! - gritou o menino lá do galho. - Vem um tal bando de crianças, que se entenderem de nos furtar o anjo não haverá meio de resistir, furtam mesmo...” Pedrinho desceu da árvore. A idéia de que a criançada de fora vinha raptar o anjinho enchia-o de apreensões. Criança é criança. Isoladas ainda passam, mas em bandos são os bichos mais daninhos do mundo. - “E agora? - dizia ele. - Que havemos de fazer?” Emilia meteu o bedelho. - “Só há um jeito - disse ela -: escondermos o anjinho no oco da figueira e vestirmos o Visconde de anjo. Se a criançada o raptar, raptará um anjo falso - o verdadeiro ficará aqui.” Pedrinho e Narizinho entreolharam-se. - “Não está má a idéia da Emilia - disse o menino. - Tenho aquelas asas do gavião que o Compadre Teodorico matou outro dia. Temos a ca-misola nova que vovó fez para a Emilia. Com isso e mais alguma coisa faremos do Visconde um anjo bem regular.” - “Mas anjo tem asas brancas - objetou a menina -; as do gavião são pintadinhas.” - “Com farinha de trigo eu faço asa de qualquer cor ficar branca como neve - resolveu Pedrinho. - É isso. Vamos! Corra, Emilia, e pegue o Visconde. E você, Narizinho, veja barbante para amarrar as asas e o resto. Não temos um minuto a perder.” Nunca se viu no sítio correria tamanha. O anjinho verdadeiro, muito assustado sem compreender coisa nenhuma, foi escondido por Pedrinho no oco da figueira. - “Fique aqui muito quietinho. Não se mexa, não faça o menor barulho.”

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- “Tenho medo deste escuro - disse ele. - Aqui há ratos de asas.” - “E lá há raptores, que vêm vindo em bando enorme. - Antes ratos do que raptores. Fique quietinho, senão tudo está perdido.” Largou-o lá bem no fundo do oco e voltou correndo. Narizinho já trouxera as asas do gavião, barbante e a camisola nova da Emília. Só faltava eu, Visconde. - “Depressa, Emília!” - gritou o menino. - “Ele está resistindo - respondeu de longe a boneca. - Diz que não tem vocação para anjo...” - “Traga-o à força! Depressa! Não há tempo a perder.” Emília puxou-me pelo braço e eles me agarraram, me enfiaram na camisola, me pregaram as asas e polvilharam tudo com uma nuvem de farinha de trigo. Fiquei um anjo esquisitíssimo, mas anjo. - “Muito bem - disse Pedrinho, afastando-se para apreciar o efeito. - Parece um fantasma, mas serve. Agora vou pô-lo naquele galho da pitan-gueira. Assim todos poderão vê-lo e ninguém poderá pegá-lo. Ficando embaixo, os inglesinhos o espandongam num minuto. Criança é o diabo.”

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Fui então enganchado numa forquilha da pitangueira, onde fiquei suspirando. Era impossível imaginar-se anjo mais triste e cômico. As asas foram arrumadas com tanta pressa que uma logo pendeu. - “Não faz mal - disse Pedrinho. - Todos sabem que o anjinho tem uma asa quebrada. Escute, Visconde: saiba comportar-se como anjo, está entendendo? Cruze os braçosno peito, e quando as crianças chegarem faça carinha de riso celestial, com os olhos erguidos. E não se meta a falar. Quem fala somos nós, aqui embaixo.” Narizinho, que subira à pitangueira, berrou lá de cima: - “Estão chegando, Pedrinho! Quase na porteira já. É hora de ir recebê-los.” Pedrinho foi. Trepou à porteira e ficou à espera. À frente do bando de crianças vinha um velho fardado, de grande chapéu de dois bicos na cabeça. A criançada parou. O velho adiantou-se. Fez uma saudação e disse: - “Senhor, a notícia da viagem ao céu que os netos de Dona Benta fizeram chegou até nós lá na Inglaterra, e Sua Majestade o Rei Eduardo VII houve por bem permitir que as crianças inglesas, comandadas por mim, que sou o Almirante Brown, viessem visitar o anjo que a Senhora Marquesa de Rabicó trouxe da Via Láctea.” Pedrinho correspondeu à saudação do Almirante e disse: - “Temos muita honra em receber no sítio de vovó as crianças inglesas comandadas


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pelo ilustre Almirante Brown. Estamos, entretanto, muito receosos de que no meio de tanta criança venham alguns elementos perversos, que nos queiram fazer mal, raptando o anjinho. Em vista disso resolvemos só dar entrada a essas crianças se por acaso o Senhor Almirante nos entregar um refém.” Aquelas palavras, ditas em tom firme, aborreceram o velho Almirante, que não havia pensado em semelhante hipótese. - “A sua desconfiança, senhor - disse ele -, nos ofende. Os inglesi-nhos que trago são todos da mais fina educação.” - “Sei disso - tornou Pedrinho. - Mas como pode o Senhor Almirante provar que entre eles não se acha oculto algum malfeitor? Eis por que resolvemos exigir um refém, sem que isso queira significar a menor ofensa ao Rei da Inglaterra, nem a Vossa Honra, nem a toda esta criançada.” O Almirante pensou por uns instantes e disse: - “Muito bem. Compreendo tudo e aceito as condições propostas. Eu mesmo ofereçome. Ficarei na sala, conversando com a sua excelentíssima avó, enquanto o meu bandinho de crianças se diverte no pomar.” - “Perfeitamente, Senhor Almirante - disse Pedrinho. - Está aceita a sua proposta. Vou abrir a porteira.” Disse e, descendo da porteira, abriu-a. - “Podem entrar...” Aquilo foi o mesmo que erguer a portinhola duma tulha de café bem cheia. Rolou criança para dentro do terreiro como rolam grãos de café da tulha aberta. Lindas todas, de todos os louros possíveis e de um corado de maçã ou pêssego. Olhos azuis, pele alvíssima. Como são lindas as crianças inglesas! Para transformá-las em anjos bastaria colar nas costas de cada uma duas asinhas. Enquanto a onda de crianças inundava o terreiro, Narizinho, lá no pomar, me fazia as últimas recomendações, a mim, Visconde. - “E comporte-se, hein? - dizia ela. - Mãos cruzadas no peito, olhos no céu - assim... E levante um pouco a asa esquerda... Está muito caída. Assim...” Emília veio com um caixão vazio, que colocou rente ao tronco da pitangueira. - “Para que isso, Emília?” - indagou a menina. - “Para guardar os presentes. Impossível que não tragam muitos presentes. Ninguém visita anjo com as mãos abanando.”

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O almirante assombra-se com o que vê

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D

ona Benta estava na varanda, muito bonitona no seu vestido preto de babados. Pedrinho conduziu para lá o Almirante.

- “Vovó - disse ele - tenho a honra de apresentar o Senhor Almirante Brown, que Sua Majestade o Rei da Inglaterra mandou comandando as crianças que morriam de vontade de brincar com o anjinho. O Almirante concordou em ficar como refém aí na sua sala.” Dona Benta empertigou-se toda e respondeu: - “Tenho imenso orgulho em conhecer Vossa Honra, Senhor Almirante Brown. Só não estou entendendo essa história de refém a que meu neto acaba de referir-se...”. Pedrinho explicou rapidamente que era uma garantia contra qualquer depredação que as crianças fizessem no sítio. - “Que absurdo, meu filho! - exclamou Dona Benta. - Só me admiro de o Almirante não ter-se magoado com uma desconfiança dessa ordem. A honra altíssima que nos faz o Rei da Inglaterra é a maior com que poderíamos sonhar, e se você, Pedrinho, mostrou desconfiança, a ponto de obrigar o Almirante Brown a oferecer-se como


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refém,bem triste idéia ficará ele fazendo da nossa hospitalidade...” “Tudo isso é muito lindo, vovó - respondeu Pedrinho -, mas a senhora bem sabe como são crianças. Podem revoltar-se contra o Almirante e nos furtar o anjinho, e como é? Ele é um e elas são muitas.” O velho inglês sorriu. - “Se fosse assim, meu menino, não poderia haver exércitos no mundo, nem esquadras. Os generais e almirantes, que comandam exércitos e esquadras enormes, não os mantêm na disciplina por meio da força física - sim da força moral. Com a força moral, um homem sozinho domina milhões.” - “Ele é bobinho, Almirante - explicou Dona Benta. - Não faça caso do que disse. Vá entrando sem a menor cerimônia, porque esta casa é sua. E a criançada que vá com Pedrinho e brinque à vontade. Laranjas temos bastante.” O Almirante subiu os seis degraus da varanda, com o chapéu de dois bicos debaixo do braço. Apertou a mão de Dona Benta com tal força que ela fez uma careta. - “Queira sentar-se, Senhor Almirante - disse a boa velha disfarçando a dor. E para dentro: - Nastácia, veja depressa um cafezinho.” - “Eu preferiria um uísque, minha senhora - murmurou o Almirante, que estava morto de sede, mas sede de inglês, dessas que só uísque mata.” Não havendo uísque na casa, Dona Benta fez sinal a Pedrinho para que mandasse buscar na venda do Elias Turco uma garrafa. E depois, para o ilustre personagem: - “Creia, Almirante, que esta sua visita em nada me espanta. E sabe por quê? Porque estou acostumada aos maiores prodígios do mundo. O que acontece neste sítio, meu Deus do céu!, nem queira saber, Almirante! No começo está claro que muito nos assustávamos, eu e Tia Nastácia. Mas hoje... As aventuras dos meus netos não têm conta. Até pelo céu já andaram - pela Via Láctea, imagine...” - “Sei disso, minha senhora. Os jornais de Londres trataram do caso dos astrônomos que aqui estiveram em comissão, e com o saudoso Rei Jorge V, que Deus haja, tive ensejo de conversar a respeito. Ele achava a Marquesa de Rabicó um serzinho muito interessante, embora um tanto shocking às vezes...” - “Pobre Rei Jorge! - suspirou Dona Benta. - Senti imensamente a morte sua. Que carga pesada não há de ser a do rei dum grande império! Eis uma vida que eu não invejo.” - “Nem eu - ajuntou o Almirante. - Prefiro comandar os meus cruzadores a reinar sobre o mundo.” - “E a Rainha Viúva, como vai indo? Mais consoladinha já?”

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- “Vai vivendo, minha senhora. O golpe foi terrível.” Dona Benta suspirou. - “Não valemos nada nesta vida, Almirante. Quando chega o nosso dia, o gancho da morte nos pesca, sejamos reis ou mendigos. Mas... parece que está bem cansado, Almirante...” - “Mais que cansado, minha senhora. Estou meio morto. É então brincadeira uma viagem destas, de duas semanas no mar, lidando com um carregamento de mil crianças endemoninhadas? Uf!...” - “Realmente! Eu aqui no sítio, com dois netos apenas, às vezes me vejo doida. São dois que valem por dois mil, tais as maluquices que inventam, ou as reinações, como eles dizem. Mas não faça cerimônia, Almirante. Tenho ali a minha redinha. Deite-se e tire um corte de sono.” O Almirante não esperou segundo convite. Acomodou-se como pôde na redinha de Dona Benta e foi fechando os olhos. Quando Tia Nastácia apareceu com a bandeja de café, ele roncava. - “Pssiu! Não o acorde... - sussurrou Dona Benta. - O Almirante está morto de canseira. Imagine que passou duas semanas no mar, lidando com mil crianças, isso da Inglaterra até aqui...”

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- “Credo! - exclamou a preta. - Esses ingleses têm cada uma!... Bem diz Seu Pedrinho que eles são ‘cêntrico’.” - “Excêntricos, Nastácia - corrigiu Dona Benta. - E a criançada? Como está se comportando lá no pomar?” - “Nem sei, Sinhá. Não espiei ainda - nem tenho coragem de espiar. Estou só imaginando os ‘horrores’...” Lá na sua salinha Dona Benta conversava com o Almirante Brown sobre a política do Império Britânico. O Almirante já dormira uma boa soneca e agora, sentado na rede, ia bebendo o uísque mandado vir da venda do Elias Turco. Era falsificado. Mesmo assim o velho inglês o bebia, embora com caretas a cada gole. - “Pois é isso, minha senhora. Cá estou feito capão de pintos, a atravessar os mares com o meu exército de crianças. A trabalheira que me deram na viagem! Até suo só de lembrar-me disso...” - “E por falar, Almirante, como há de ser para enchermos tantas barriguinhas? O mantimento que há aqui no sítio não dá para a décima parte.” O velho inglês sorriu. - “Não se incomode, minha senhora. Providenciei sobre tudo. Dentro em pouco chegarão os meus marinheiros com um grande carregamento de comedorias. Poderá a senhora


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ter a bondade de levar-me ao pomar? Preciso ver o anjinho. Mas aqui entre nós: é mesmo um anjinho do céu ou trata-se de alguma reinação dos seus netos, um simples anjo de procissão?” - “É dos legítimos, Almirante, posso garantir e o senhor o verificará com os seus próprios olhos. Onde Por mais prodigioso que isto seja, não passa da mais pura realidade. Ah, Almirante, Vossa Honra não imagina o que acontece neste sítio! Só vendo. Tanta e tanta coisa, que hoje, como já disse a Vossa Honra, não me admiro de mais nada. Se o Sol aparecer ali na porteira e me disser: - ‘Boa tarde, Dona Benta!’ - eu o recebo como se fosse o Compadre Teodorico. - ‘Entre, Senhor Sol. A casa é sua.’ Positivamente não me admiro de mais nada, nada, nada...” Os dois velhos saíram de braços dados para a visita ao anjinho. Foi difícil abrir passagem no bolo de crianças apinhadas em redor dele. Ao ver o anjinho, lindo, lindo de não poder mais, o Almirante Brown arregalou os olhos e puxou os óculos. Examinou o anjinho atentamente, sempre desconfiado de algum embuste; apalpou o encontro das asas para ver se não eram asas de anjo de procissão. Emília advertiu-o: - “Não pegue com muita força que quebra. Ele é um vidro.” O Almirante sacudia a cabeça, pensativo. - “É extraordinário, não há dúvida! Tenho setenta anos e jamais me defrontei com um prodígio assim. Quando chegar a Londres e der ao rei o meu testemunho, é bem possível que Sua Majestade se assanhe e queira vir também, queira vir ver com os seus reais olhos este assombroso prodígio...” - “Ótimo! - exclamou Dona Benta. - Que venha, que venha sem a menor cerimônia. A única pessoa que ainda não apareceu por aqui foi um rei de verdade. Reis da fábula e dos países maravilhosos, desses que usam coroinhas de ouro, temo-los tido aos montes.” O Almirante não cessava de assombrar-se. - “Que coisa extraordinária! Um anjinho caído do céu...” - “Caído não, Almirante - corrigiu Emília. - Trazido. Quem o trouxe fui eu.” - “Quem é esta estranha senhorita?” - indagou o Almirante, pondo os olhos na boneca. - “Pois é a Emília, não vê? - disse Dona Benta. - De fato foi ela quem trouxe o anjinho lá da Via Láctea, onde o ‘caçou’, como costuma dizer.” - “Ahn! A Emília, sim, a Senhora Marquesa de Rabicó! - disse o Almirante recordan-

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do-se. - Sei, sei. Sua Majestade a Rainha Viúva já me falou das proezas desta famosa criaturinha, mostrando até muito desejo de conhecê-la pessoalmente.” - “Foi pena eu não ter sabido disso antes - volveu Dona Benta. - Já estivemos em Londres, na nossa viagem em torno do mundo para estudar geografia. Se eu soubesse do desejo da rainha, teria feito uma visita a Sua Majestade para a apresentação da Emília...” Depois de bem visto o anjinho, e de uma prosa com ele, o Almirante afastou-se, sempre de braço dado a Dona Benta. Foram dar uma volta pelo sítio. - “Estou achando tudo por aqui muito poético - disse o inglês correndo os olhos pelas árvores. - Que lindo este imenso tapete amarelo com que a senhora forrou o pomar!...” Dona Benta riu-se. O Almirante tinha a vista ainda mais fraca que a dela, de modo que tomou o chão forrado de cascas de laranja por um imenso tapete amarelo. Nisto uma vaca mugiu. - “É a Mocha - explicou Dona Benta -, uma vaca excelente que temos aqui há já muitos anos.”

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- “Meu pai foi criador de vacas Jérsei - disse o Almirante - e eu ainda conservo algumas da sua criação. Quando voltar à Inglaterra hei de mandar para aqui uma de presente. Leiteiras melhores não existem.” - “Pois ficarei imensamente agradecida - respondeu Dona Benta. - A pobre da Mocha está bastante velha. Mal dá o leite necessário ao consumo da casa.” No estábulo a Mocha teve a honra de ser apresentada ao Almirante Brown, o qual foi saudado por um Mu! especial, em português, visto que a pobre vaca não sabia uma só palavra de inglês, nem yes. O Almirante gabou os seus enormes olhos cheios de bondade. - “Vê-se que é uma vaca de muito bons sentimentos mas pouco leite - disse o velho marujo. - Quantos litros dá?” - “Não chega a três” - respondeu Dona Benta. O filho do criador de vacas Jérsei riu-se. - “As de meu pai davam dez vezes isso.” Dona Benta arregalou os olhos. - “Ah! Eu aqui com uma assim até montava uma fábrica de queijo...” - “Há de tê-la, minha senhora. Há de tê-la.” Nisto um zurro muito discreto soou. - “Quem é?” - quis saber o Almirante. - “É o Conselheiro, o nosso Burro Falante - explicou Dona Benta. Nele é que os meninos foram para o céu.”


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O Almirante Brown sorriu, pensando lá consigo: - “Pobre velha! Visivelmente está caduca”. Mas quando foi apresentado ao Burro Falante e este murmurou, na sua voz grave de burro da fábula: - “Tenho muita honra em conhecer Vossa Senhoria” - o Almirante quase caiu para trás. Teve de segurar-se no rabo que o burro lhe estendeu. - “É espantoso, minha senhora! Está aqui um fenômeno que se eu contar ao Rei Eduardo ele julgará que é caduquice minha. Um burro falante! Isto positivamente me deixa com as idéias atrapalhadas...” Dona Benta gozou o atrapalhamento do inglês. - “Foi o que me sucedeu no começo, Almirante. Fiquei também atrapalhada, sem saber o que pensar. Depois fui me acostumando. Hoje acho tão natural que esse burro fale, como acho natural que uma laranjeira produza laranjas. Todas as tardes chego até aqui para dois dedos de prosa. Além de falante, o nosso Conselheiro é um puro filósofo.” - “De que escola?” - “Um filósofo estóico. Costumo ler-lhe trechos das Meditações de Marco Aurélio. Os comentários que ele faz mereciam ser escritos e publicados.” O Almirante não conseguia voltar-se do assombro. - “Mas... mas, Dona Benta, a senhora já refletiu que isto é um fenômeno que contradiz tudo quanto a ciência estabeleceu a respeito da fala e da inteligência dos animais?” - “Refleti, sim. Eu sei o que tenho em casa, Senhor Almirante.” Um tropel e uma algazarra interromperam o diálogo. Pedrinho e Peter Pan vinham correndo para ali, acompanhados de mais de cem crianças. - “O burro que fala! O burro que fala! - gritavam todas. - Vamos conversar com o burro que fala!...” Chegaram. Em torno do excelente animal formou-se uma roda enorme. Todos falavam ao mesmo tempo, perguntando mil coisas ao pobre Conselheiro, que se via tonto para atender a tantos clientes. Dona Benta e o Almirante deixaram-nos naquele divertimento que não existia na Inglaterra e recolheram-se à salinha. Estavam lá, ainda comentando o prodigioso caso do Burro Falante, quando Tia Nastácia veio dizer que um grupo de marinheiros se aproximava. O Almirante sorriu. - “São as comedorias que vêm vindo - disse ele - e não é sem tempo. Com o aperitivo das laranjas que chuparam, as crianças devem estar tinindo de fome.”

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E assim era. Mal avistaram os marinheiros do almoço, uma gritaria atroadora encheu os ares. - “O lanche! O lanche!...” Abandonaram o anjinho, o Burro Falante e as árvores em que estavam trepadas para só cuidarem dos estômagos. Que suculento lanche foi aquele! Bem se via andar ali o dedo do Rei da Inglaterra. Sanduíches de todas as qualidades, queijos, geléias de frutas, maçãs e pêras, cremes e pãezinhos em quantidades enormes. Tia Nastácia veio espiar. Aquela abundância encantou-a. - “Ora graças! - murmurou a velha preta. - Se não chegasse esse reforço, isto por aqui ficava como fazenda por onde passou nuvem de gafanhotos. Nem a casca das árvores se salvaria... Credo!” Pedrinho insinuou-se entre os marujos. Pela primeira vez via os famosos mariners da maior esquadra do mundo. Vermelhaços, louros e ruivos, com calças de boca-de-sino. E que caras havia entre eles! De puros lobos-do-mar. Em dado momento, porém, Pedrinho empalideceu. Um dos marujos o impressionara profundamente. Saiu dali e correu em procura de Peter Pan, que estava atracado com um sanduíche de

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presunto de York. - “Tenho uma coisa muito séria a dizer - murmurou-lhe Pedrinho a meia-voz. - Engula isso depressa e apareça lá no pomar” - e foi esperá-lo debaixo da pitangueira. Peter Pan não tardou. - “Que há?” - indagou, engolindo o último bocado do sanduíche. - “Há que descobri uma coisa muito séria: o Capitão Gancho2 está entre os marinheiros que vieram trazer o almoço. Reconheci-o perfeitamente.” Peter Pan empalideceu. - “Não pode ser, Pedrinho! Naquela batalha no navio dos corsários bati-me a espada com esse monstro, e o fui apertando de golpes e mais golpes, e ele recuando, recuando até que - tchibum! - caiu n’água, bem dentro da goela do crocodilo. Foi assim que o Capitão Gancho morreu.” - “Morreu, nada! Essa gente não morre. Com certeza comeu o crocodilo, em vez de o crocodilo comer a ele. E a prova é que o vi no meio dos lobos-do-mar que vieram com o lanche. Vi-o com estes meus olhos, Peter! Cheguei pertinho, cheirei. Ele mesmo, com a mão de gancho calçada numa luva e aquele fedor de pirata...” Peter Pan permaneceu uns instantes pensativo. 2 Personagem que aparece no livro Peter Pan.


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- “E que quererá por aqui?” - “Certamente que anda atrás de você” - sugeriu Pedrinho. - “Impossível! Ninguém sabia que eu vinha. Nada contei a ninguém - nem a Wendy. Resolvi embarcar no momento de o navio sair. Basta dizer que fui a última pessoa que se meteu a bordo. Não, Pedrinho. Não foi por minha causa que o Capitão Gancho veio. Foi por causa do anjinho, juro!...” - “Mas que há de querer com o anjinho?” - “É boa! Raptá-lo. Você não calcula que negócio é um anjinho desses nas unhas de um explorador. Já não digo para trabalhar em circo, mas no cinema, Pedrinho! No cinema! Em Hollywood! Para entrar nas fitas das Diones, da Shirley, do Jack Cooper! Coisa de render milhões. Nunca houve no mundo uma estrelinha anjo.” - “Realmente - murmurou Pedrinho. - Até eu já havia pensado nisso...” - “Pois juro, Pedrinho, que o Capitão Gancho veio com essa idéia na cabeça, e também juro que já está de plano formado para furtar o anjinho.” - “Acha bom prevenirmos o Almirante?” - “Nada disso. Eu não dou importância a gente grande. Costumo resolver todas as dificuldades por mim mesmo, com a meninada. Escute. Existem armas por aqui? Espadas, lanças, pistolas?” Pedrinho suspirou. - “Ah, Peter Pan! Se você soubesse que boba e medrosa é a vovó... Tem medo de tudo, até das baratas. Não pode ver um revólver. Faca, só admite essas de mesa, de ponta redonda. Em matéria de armas só tenho uma espingardinha de cano de guarda-chuva que eu mesmo fiz, e o meu velho bodoque...” Peter Pan sorriu com superioridade. - “Pois lá na Terra do Nunca temos um verdadeiro arsenal. Depois de bater o Capitão Gancho, fiquei com todas as armas dos corsários. Até um canhãozinho do navio pirata eu levei para a Terra do Nunca.” - “Levou um canhão!?...” - “Só não levei os grandes por serem muito pesados e consumirem muita pólvora. Você não imagina, Pedrinho, como canhão grande come pólvora! Mas espadas, pistolas, espingardas, lanças, machados e punhais, isso levamos tudo. Lembra-se daqueles lobos que nos rondavam por lá? Pois caímos de tiros neles. Não ficou um! Os que não morreram, fugiram com cem pernas, apavoradíssimos! Nossa caverna lá na Terra do Nunca está hoje como a fortaleza do Gibraltar: inexpugnável!”

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Pedrinho fremiu de entusiasmo; depois suspirou, pensando com raiva do pacifismo de Dona Benta. - “Que pena! - exclamou. - Se vovó deixasse, poderíamos também fazer disto aqui uma fortaleza inexpugnável. Está vendo aquele cupim lá no pasto? Tem um oco ótimo para ninho de metralhadora.” - “Também pelo alto destas árvores é possível esconderem-se muitos atiradores - observou Peter Pan correndo os olhos pelo pomar. - Você, não sei, mas eu sou capaz de transformar isto aqui numa tremenda fortaleza. Olhe: daquele lado corro uma linha dupla de trincheiras. À esquerda e à direita abro fossos intransponíveis...” - “Com uma ponte levadiça!” - ajuntou Pedrinho, entusiasmado. - “Isso só em castelo” - volveu Peter Pan em tom de desprezo ante os conhecimentos militares de Pedrinho. Nesse instante um vulto atraiu-lhes a atenção - um marinheiro que caminhava disfarçadamente, repetidas vezes olhando para trás. - “Ele!” - cochichou Pedrinho. Peter Pan, velho conhecedor do Capitão Gancho, concordou.

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- “Tem razão, Pedrinho. É ele mesmo! Só que enfiou a mão de gancho naquela luva para disfarçar-se. Onde está o anjinho?” - “No oco da figueira grande, lá onde o escondemos quando a criançada apareceu. Depois que os marinheiros do almoço chegaram, dei ordem à Emília para que o guardasse no oco novamente.” - “Onde é a figueira?” - “Aquela grandona, lá. É oca por dentro, como as árvores da Terra do Nunca.” Os dois meninos ocultaram-se atrás da pitangueira para melhor seguirem os movimentos do ladrão. O infame corsário, sempre na ponta dos pés, olhava em todas as direções, farejando qualquer coisa. - “Parece que é pelo faro que esses monstros se guiam” - observou Peter Pan. - “Mas com o anjinho não arranja nada, ele é totalmente inodoro.” - “Que quer dizer isso?” - “Inodoro quer dizer sem cheiro nenhum, como a água. A água é incolor, inodora e insípida.” - “Mas é capaz de descobri-lo por indução” - sugeriu Peter Pan. Foi a vez de Pedrinho perguntar o que era indução.


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Onde aparece um famoso marinheiro

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lhe!... Vem vindo outro. A coisa se complica...” Pedrinho não tardou a reconhecê-lo. - “Popeye! O marinheiro Popeye, PeterL.” Peter Pan não conhecia esse figurão.

- “Quem é ele?” - perguntou. - “Um homenzinho terrível, Peter. Não há no mundo quem o vença. Derrota tudo. Será que é cúmplice do Capitão?” Não era. A conversa entre Popeye e o corsário ia mostrar que não era. Os meninos ouviram tudo perfeitamente. - “Viva, Senhor Popeye! - exclamou o Capitão Gancho. - Que é que o traz por aqui?” - “O mesmo que traz a você, Capitão” - respondeu Popeye na sua voz rouquíssima. - “Acho que podemos nos entender e nos ajudar mutuamente - tornou Gancho. - Vou contar tudo. Vim entre os marinheiros do Almirante Brown com a idéia de levar o


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anjinho para Londres. Renderá bom dinheiro num circo.” Popeye sorriu. - “Pois saiba que tive a mesma idéia e vim dos Estados Unidos para levá-lo a Hollywood. No cinema esse anjo dará mais sorte do que em todos os circos do universo. Não podemos, pois, nos entender, Senhor Capitão Gancho.” - “Com seiscentos milhões de colubrinas! - urrou o corsário. - Sei que você é valente, mas não tenho medo de caretas. Vim para levar o anjinho e hei de levá-lo.” Popeye não respondeu. Limitou-se a rir e soltar uma baforada do seu famoso cachimbo de apito -pulpu! Ofendido por aquele desprezo, o Capitão Gancho foi descalçando a luva. O horrendo gancho de ferro apareceu, de ponta afiadíssima. Os dois meninos, atrás da pitangueira, começaram a sentir-se eletrizados. Peter Pan teve dó de Popeye, achou que estava ali, estava escalavrado para o resto da vida. Pedrinho, entretanto, apostou em Popeye. A luta rompeu. Os dois marinheiros atracaram-se com a maior fúria. Eram golpes e mais golpes, um em cima do outro. Um soco de Popeye na queixada de Gancho o fez

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bambear, como bêbedo; forte, porém, que era o pirata, logo se firmou nas pernas e avançou, desferindo uma ganchada contra o ombro de Popeye. O que a este valeu foi a agilidade. No momento em que o gancho vinha descendo, Popeye quebrou o corpo. Mesmo assim foi riscado de leve. E a luta prosseguia cada vez mais feroz, com rasteiras, munhecaços, pontapés na barriga. Durante minutos, nenhum levou vantagem. Os dois contendores equivaliam-se em força. - “Esse Popeye não é homem para medir-se com o Capitão Gancho. Acabará cansado e apanhando” - murmurou Peter Pan ao ouvido de Pedrinho. - “É que Popeye ainda não engoliu o espinafre” - explicou Pedrinho, deixando Peter Pan na mesma. Outra ganchada do corsário riscou o ombro do marinheiro. Popeye, então, enfureceu-se, afastando-se dez passos, sacou do bolso a lata de espinafre, cujo conteúdo engoliu a meio. - “Agora você vai ver!” - cochichou Pedrinho. E Peter Pan viu. Viu Popeye avançar contra o corsário numa fúria louca, com os músculos dos braços crescidos como bolas. Ao primeiro soco dado nas fuças do Capitão, este cambaleou e foi estatelar-se no chão a oito metros de distância. - “Está vendo o que é murro?” - murmurou Pedrinho entusiasmado.


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Mas o Capitão Gancho levantou-se e investiu mais uma vez. Coitado! Levou tal roda de murros, que ficou como paçoca que sai do pilão. Popeye amassou-o. Mas amassou mesmo, como quem amassa pão. Amassou-o de tal modo que o deixou transformado em pasta de gente. Peter Pan arregalava os olhos, no maior dos assombros. - “Ah, Popeye é assim - disse Pedrinho. - Sem espinafre, não vale nada, apanha de qualquer punga. Mas quando engole uma dose de espinafre, ah, não existe no mundo quem possa com ele!” O barulho da luta atraíra a atenção da criançada e do Almirante. Vieram todos correndo. - “Que foi? Que foi?” Pedrinho contou o que se havia passado. - “Bandidos! - exclamou o Almirante Brown. - Esses dois marinheiros vieram sem ser convidados. Não figuram na minha lista. Vou pô-los a ferros nos porões do Wonderland.” - “Pô-los é modo de dizer - advertiu Pedrinho. - Só existe um. O outro já virou pasta de gente. O que há a fazer é enterrá-lo, bem fundo.” O Almirante aproximou-se do marinheiro caído e examinou-o. Viu que de fato era assim. Em seguida voltou-se para Popeye. - “E vosmecê, Senhor Popeye! Estou reconhecendo-o muito bem. Que história é esta? Como se meteu na tripulação do Wonderland sem ter sido engajado?” Popeye, que estava bêbedo como uma cabra, riu-se. - “Ah, ah, ah! - e atirou umas baforadas do cachimbo antes de responder. Cada baforada era um apitinho: pu!pu! E na sua voz rouquíssima disse: -Iam a sailor man.” - “Sei disso! - berrou o Almirante. - E sei também que vai passar uns tempos nos porões do Wonderland, com umas pulseirinhas de ferro nas munhecas.” O ultrabêbedo Popeye respondeu com mais três apitos de barofadas e um - “Ah, ah, ah!” - rouquíssimo. Indignado com o desrespeito, o Almirante Brown gritou para os marujos: - “Todos aqui! Agarrem-me este bêbedo e metam-no a ferros!” Popeye continuava impassível. Fez mais um -pul pul - e caiu em guarda. A luta entre Popeye e os marinheiros do Wonderland foi dessas coisas que só gênios do tamanho de Shakespeare e Dante se atrevem a descrever - e mesmo assim descrevem mal. Nunca houve tanta pancada no mundo. Se fôssemos juntar toda a imensa pancadaria que há no Dom Quixote de La Mancha e com ela formássemos um monte, esse monte

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ficaria pequeno diante da pancadaria que houve no pomar de Dona Benta. O espinafre ingerido pelo sailor man era do bom, de modo que se tornaria impossível vencê-lo. Um a um os marujos do Wonderland iam sendo postos fora de combate. Quando caiu o último, Popeye deu uma risada grossa e fez -pulpulpulpul... O Almirante, que esperava tudo menos quatro pus, ficou seriamente atrapalhado. Toda a sua marinhagem estava caída e ele, sozinho. Se Popeye tivesse a idéia de esmoê-lo, seria uma desgraça completa, e também uma enorme afronta para o almirantado britânico. Que fazer? O Almirante foi aconselhar-se com Dona Benta. - “Minha senhora - disse ele -, o desenlace desta luta me deixou completamente desarvorado. Positivamente não sei como agir...” Tia Nastácia apareceu nesse momento para perguntar se fazia bolinhos ou rebentava pipocas. - “A situação é muito séria, Nastácia - respondeu Dona Benta. - Venha perguntar isso mais tarde, depois de resolvido este horrível incidente.” - “Vamos, minha senhora! - insistia o Almirante. - Que acha que devo fazer?”

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Dona Benta, completamente tonta, mostrou-se incapaz de uma sugestão. Nisto apareceu Emília, muito lampeirinha. - “Eu sei um jeito de arrumar tudo - disse ela -, e de acabar de uma vez para sempre com a prosa desse Popeye...” O Almirante, apesar da horrível situação em que se encontrava, não pôde deixar de rirse. - “Não se ria, Almirante - tornou Dona Benta. - Vossa Honra não conhece a Emília. Tem feito tanta coisa que não me admirarei se der uma boa sova no Popeye.” - “Que absurdo, minha senhora! - exclamou o Almirante. - Apesar do muito respeito que a senhora me merece acho que está a abusar de mim. Essas suas palavras ofendem-me, ofendem o almirantado britânico, ofendem Sua Majestade o Rei Eduardo VII...” Para acalmá-lo Dona Benta contou diversos episódios em que as coisas ficaram em situação de verdadeiro fim de mundo e afinal tudo se resolveu com uma inesperada saidinha da Emília. O Almirante, porém, não quis saber de nada. Emburrou, ofendidíssimo com a hipótese de que uma simples boneca de pano pudesse conseguir o que os seus valentes lobos-do-mar não tinham conseguido. Emília fungou e disse: - “Deixe tudo por minha conta, Dona Benta. Juro que dou uma arrumação ótima. Enquanto isso a senhora vá despejando pinga dentro desse bife malpassado” - concluiu.


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Emília descobre o segredo de Popeye

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mília foi à cozinha pedir a Tia Nastácia que pusesse uma porção de folhas de couve no pilão e amassasse tudo muito bem, fazendo uma pasta. Nastácia perguntou para

quê.

- “Não é da sua conta” - respondeu a diabinha. Tia Nastácia também suspirou. Mas fez a pasta de couve pedida, com a qual a boneca encheu uma latinha. Embrulhou-a num jornal e, muito segura de si, foi ter com Popeye. - “Eu sei do seu segredo, Senhor Popeye - disse ela inocentemente. - Chama-se: espi-nafre. Sem espinafre o senhor vale tanto como um homem qualquer.” Popeye fez -pu! pu! - “Mas eu também sei - continuou Emília - que o seu espinafre só faz efeito por quinze minutos. Passados quinze minutos o senhor está bambo outra vez.”


Memórias da Emília

Popeye riu-se grosso, rosnando: - “Dobre os quinze minutos e terá acertado. Pu!pu!” Emília afastou-se. Era justamente aquilo o que ela desejava saber: quanto tempo durava nos músculos do marinheiro o efeito do espinafre. Correu a conferenciar com Pedrinho. - “Escute, Pedrinho. O segredo de Popeye é o espinafre, mas o efeito do espinafre só dura meia hora, diz ele. Como já se passaram vinte minutos desde que engoliu a dose, isso quer dizer que daqui a dez minutos ele pode ser atacado.” - “Mas Popeye não engoliu a lata inteira, vi muito bem - observou o menino. - Só metade. Escondeu o resto no oco da figueira. É por isso que não se arreda de lá. Assim que for preciso, engole o resto da lata e fica outra vez dono do mundo por mais meia hora.” - “Sei disso - murmurou Emília -, mas vou tomar as minhas providências. Garanto que daqui a dez minutos Popeye poderá ser atacado sem perigo nenhum.” - “Atacado por quem?” - gritou Pedrinho.

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- “Homessa! Por você e Peter Pan.” - “Deus me livre! - exclamou o menino. - Seria a maior das loucuras. Ele, que moeu o Capitão Gancho e todos os marinheiros do Won-derland, também me moerá enquanto o diabo esfrega um olho. Que idéia!...” Emília agarrou Pedrinho, fê-lo abaixar-se e cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido. A cara do menino expandiu-se. - “Ahn! - exclamou. - Se é assim, então já não está aqui quem falou. Tudo muda de figura. Que idéia excelente, Emília! A melhor idéia que você teve em toda a sua COUVEvida...” E ganhando coragem: - “Pois está combinado. Eu e Peter Pan atacaremos Popeye daqui a dez minutos.” Disse e foi comunicar a sua resolução a Dona Benta e ao Almirante. Os dois velhos ficaram assombradíssimos. - “Que loucura, meu filho! - exclamou a boa senhora. - Nem pense nisso. Proíbo-o de pensar nisso.” - “Realmente - acrescentou o Almirante - o que este menino propõe não passa de um desvario de criança. Que absurdo! Atacar um monstro de força, que acaba de destruir


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com a maior facilidade todo um pelotão de vigorosíssimos lobos-do-mar...” Pedrinho cochichou no ouvido de Dona Benta o mesmo que Emília cochichara no seu. A velha arregalou os olhos, com expressão de surpresa e alegria. - “Bom. Se é assim, então tudo muda de figura. A idéia é excelente...” Quem ficou bobo de uma vez ante aquela súbita mudança de opinião foi o Almirante, e como ninguém lhe cochichasse nada aos ouvidos bobo ficou e bobo continuou. - “Não estou entendendo nada de tudo isto, minha senhora” - disse ele. - “Entenderá daqui a pouco, Senhor Almirante” - respondeu Dona Benta piscando o olho.” E gritou para a cozinha: - “Nastácia, pode vir saber se o Almirante prefere pipocas ou bolinhos...” Popeye estava encostado ao tronco da figueira, de modo a fechar com o corpanzil a abertura do oco. Isso atrapalhava Emilia, cujo plano era entrar na árvore para dizer qualquer coisa ao anjinho. Vendo que pela frente não podia entrar, pensou em outra porta. O tal oco tinha duas aberturas: aquela embaixo e outra em cima, na forquilha dos primeiros galhos - ou a “chaminé”, como os meninos diziam. Essa chaminé ligava o bojo do oco à forquilha e, embora fosse estreita, dava perfeitamente passagem a um corpinho seco e miúdo como o da boneca. Mas para subir à figueira era preciso empregar a astúcia e Emilia empregou a astúcia. Foi conversar com Popeye. - “Senhor Popeye - disse ela com o arzinho de santa que sabia fazer nas ocasiões graves -, sabe que esta figueira dá uns figuinhos muito gostosos? Os sanhaços e morcegos regalam-se...” O marinheiro olhou para cima e viu que realmente a figueira estava coberta de pequeninos figos. - “Pu! pu!” -fez ele com o cachimbo. Emilia continuou: - “Se o senhor me ajudar a subir lá em cima, posso colher uma quantidade, metade para mim, metade para o senhor...” O marinheiro sentiu água na boca, pois gostava muito de figos. Respondeu com um pu! pu!, que queria dizer sim, e ajudou Emilia a trepar à árvore. Logo que se pilhou lá em cima, a espertíssima boneca tratou de procurar a abertura da “chaminé”. Instantes depois estava no bojo do oco, falando com o anjinho. - “Nem queira saber, anjinho, o turumbamba que vai lá por fora, tudo por sua causa! Popeye e os marinheiros do navio se pegaram à unha, e Popeye venceu. Escangalhou com todos eles. O Almirante está co~çando a cabeça. Não sabe como agir. O plano de

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Memórias da Emília

Popeye é furtar você daqui. Quer transformar você em estrelinha de cinema, lá em Hollywood.” - “Fazer de mim estrelinha? - repetiu a mimosa criatura, com cara de surpresa. - Esse Hollywood é algum céu?” - “Não, burrinho! É a cidade do cinema. As estrelas e estrelinhas de lá são de carne e osso, como nós. Mas depois eu explico isto. Agora não há tempo. Vim só para uma coisa. Está vendo esta lata? - e mostrou-lhe a lata de couve moída que trouxera embrulhada num jornal. - Pois é. Você vai pegar esta lata e trocá-la por aquela que o marinheiro Popeye guardou na beira do oco. Só isso. Mas tem de o fazer com muito jeito, de modo que Popeye não perceba coisa nenhuma, está entendendo?” O anjinho não estava entendendo nada, o que o não impediu de executar fielmente a ordem de Emília. Pegou a lata de couve, encaminhou-se na ponta dos pés para a abertura do oco e, depois de espiar se o marinheiro estava olhando, fez a troca na perfeição. Nem uma formi-guinha que andava por ali percebeu a mudança. - “Ótimo! - exclamou Emília quando o viu voltar com a lata de espinafre. - Agora você continua aqui muito quietinho e sem receio de coisa nenhuma. Juro que tudo

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acabará bem.” - “Mas estou com muito medo daquele rato de asa dependurado ali” - disse ele apontando com o dedinho para o teto do oco. - “Um simples morcego - explicou Emília. - Feio só. Não morde anjo. Vive de comer os figuinhos desta figueira. Não se impressione. Só não fique debaixo dele porque os tais morcegos comem os figuinhos e às vezes os descomem em cima da cabeça da gente...” Feita esta recomendação, Emília esgueirou-se pela chaminé acima. Saiu na forquilha. Caminhou engatinhando por um dos galhos, até alcançar o ramo mais próximo de Popeye, o qual estava de cabeça erguida e boca aberta, procurando enxergar a bonequinha. - “Estou aqui! - disse ela mostrando-se. - Apara-me nos braços.” Popeye estendeu os braços peludos. Sem medo nenhum Emília deu um pulo - upa! - “E os figos?” - perguntou o marinheiro assim que a depôs em terra. - “Verdes, meu caro. Não achei um só maduro. Os morcegos não deixam. Assim que vão amadurecendo, eles - nhoque!” Popeye desapontou e Emília foi correndo conferenciar com Pedrinho e Peter Pan.


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A grande luta: Pedrinho e Peter Pan batem Popeye

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uito bem - exclamou Emília. - Vocês podem ir engolindo o espinafre - metade cada

um.” Pedrinho tomou a lata e engoliu metade, fazendo uma careta. Pe-ter Pan engoliu o resto, fazendo outra careta. - “Pode ser excelente para dar força - disse ele -, mas gostoso não é...” Alice, que andava em procura de Emília, apareceu nesse momento. - “Arre que a achei!” - exclamou. - “Que há de novo?” - quis saber Emília. - “Há que a criançada está num verdadeiro pavor, falando em fugir do sítio e outras coisas assim. Tenho feito tudo para sossegá-las, mas não consigo.” - “Isso de criançada inglesa é lá com o Almirante Refém Brown. Ele que as trouxe, ele


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que se arrume.” - “Já falei com o Almirante - tornou Alice -, mas não valeu de nada. O pobre velho está completamente bobo. Não sabe o que fazer. Tenho até medo que de repente caia morto de congestão cerebral.” - “Não morre, não - gritou Emília. - Daqui a minutos o problema estará completamente resolvido por nós e você vai ver a cara de riso do Almirante.” - “Minutos?” - repetiu Alice, sem nada compreender. - “Minutos, sim, menina. Nós vamos dar um pega tremendo no tal Popeye.” Alice cada vez compreendia menos. - “Pega tremendo? Será que Dona Benta mandou vir algum exército com canhões para atacá-lo? Não estou entendendo esse seu ‘nós vamos’, Emília...” - “Pois nós somos nós, eu, Pedrinho e Peter Pan. Vamos dar cabo da prosa do Popeye, nós três. É isso.” Alice julgou que fosse brincadeira. - “Como?” - perguntou.

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- “Comendo - respondeu Emília. - Comendo espinafre aqui e couve moída lá. Ah, ah, ah!...” - E vendo a cara de boba de Alice: - “Não pense mais nisto, minha cara. É ponto liquidado. Vamos à cozinha ver o que há de bom. Tia Nastácia já deve ter uns bolinhos prontos” - e, agarrando-a pela mão, levou-a à cozinha. Nastácia estava de fato fritando bolos. Emília fez a apresentação. - “Esta aqui, Tia Nastácia, é a famosa Alice do País das Maravilhas e também do País do Espelho, lembra-se?”3 - “Muito boas tardes, Senhora Nastácia!” - murmurou Alice cumprimentando de cabeça. - “Ué! - exclamou a preta. - A inglesinha então fala nossa língua?” - “Alice já foi traduzida em português - explicou Emília. - E voltando-se para a menina: - Gosta de bolinhos?” Nastácia apresentou-lhe um na ponta do garfo. - “Prove, menina bonita.” Alice devorou o bolinho, arregalando os olhos - e pediu a receita. Nastácia riu-se. - “Receita, dou; mas a questão não está na receita, está no jeitinho de fazer. Outro dia esteve cá a sogra do Nhô Teodoro e também quis a receita. Dei. Sabe o que


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aconteceu? Ela fez o bolinho pela receita e saiu uma borracha. Ninguém pôde comer. Ah, ah, ah! Isto de cozinhar, menina, tem seus segredos. Só mesmo para uma criatura como eu que nasci no fogão e no fogão hei de morrer...” 3 Emília faz referência aos livros Alice no país das maravilhas e Alice no país do espelho. Passados três minutos, Emília voltou para onde estavam Pedrinho e Peter Pan. - “Pronto! - disse ela. - De agora em diante vocês podem atacar o monstro. Já se passou a meia hora. Acabou o efeito do espinafre que Popeye engoliu.” - “E nós já estamos sentindo o efeito do que engolimos” -, disse Peter Pan, e para o provar pegou uma ferradura que estava no chão e partiu-a pelo meio, rindo. Entraram a combinar o plano de ataque. - “Eu avanço - disse Pedrinho - e desafio Popeye. Ele ri-se. Chupa o cachimbo e faz -pu!pu!-E nem pensa no espinafre, vendo que somos dois crilas. Vou eu então e assento-lhe um pé-de-ouvido. Você do outro lado assenta-lhe um pontapé. Popeye, então, percebendo que somos crilas especiais, volta-se para a lata de espinafre e engole a couve moída. E fica mais bambo ainda. E vou eu e...” Assim combinado o ataque, os dois meninos encaminharam-se na direção da figueira, seguidos da Emília. Enquanto isso, lá na saleta Dona Benta caçoava com o Almirante. - “Tome este cafezinho - dizia ela, apresentando-lhe uma xícara. - Nada melhor do que o café para estimular os nervos e levantar o moral.” Mas o abatimento do Almirante era enorme. Estava a pensar nas suas tremendas responsabilidades. Que conta iria dar ao rei? Fora escolhido como o homem de mais confiança de Sua Majestade. Graças a isso, os pais de toda aquela criançada lhe entregaram os filhos. Ora, se acontecesse uma desgraça, se Popeye na sua bebedeira investisse contra as crianças e as machucasse, que contas daria ele ao rei e aos pais? - “Minha senhora - disse o pobre Almirante -, acho bom telegrafarmos ao governo brasileiro pedindo a remessa imediata de tropas. Só com um batalhão bem servido de metralhadoras poderemos dar cabo desse monstro.” Dona Benta ria-se. - “Não é preciso tanta coisa, Almirante! Vossa Honra não conhece o engenho de meus netos. Não há o que eles não consigam. Pois se até ao céu já foram!...” - “Sei disso - respondeu o Almirante. - Mas a viagem ao céu foi feita graças ao tal pó de pirlimpimpim, e a senhora mesma me disse que já o gastaram todo. Se ainda houvesse algum restinho poderia ser que...”

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- “Eles hão de arrumar-se, Almirante. Mesmo sem o pó maravilhoso hão de dar um jeitinho.” O Almirante não podia compreender a calma da velha. - “Jeitinho! Jeitinho! - exclamou. - Há dez minutos que a senhora está a falar nisso. Que jeitinho? Como pode haver jeitinhos contra o colosso que acaba de destroçar os melhores homens do Wonderland?” Dona Benta ria-se, ria-se. - “Tome o seu café sossegado, Almirante, e deixe tudo por conta da criançada. O senhor não conhece meus netos...” O Almirante suspirou e assoprou. Lá no pomar Pedrinho e Peter Pan pararam diante de Popeye. - “Amigo Popeye - começou Pedrinho -, sabemos que você é o rei dos valentes e que tem corrido mundo a escangalhar quantos inimigos aparecem. Hoje mesmo praticou uma grande façanha com o amassamento do Capitão Gancho e dos marinheiros do Wonderland. Foi uma aventura magnífica, não resta dúvida. Mas agora vai medir-se conosco. Prepare-se.”

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Popeye olhou bem para os dois crilas e nem sequer se dignou a responder. Chupou só o cachimbo -pu!pu!... - “Faça pulpu! quanto quiser - disse Peter Pan -, porque esses pu-pus serão os últimos. A sova que vamos dar em você há de ser escrita em livros.” Popeye fez mais dois pu-pus - os últimos. Inesperadamente Pedrinho avançou e assentou-lhe um murro no pé do ouvido; Peter Pan avançou do outro lado e deu-lhe um tremendo pontapé na barriga. Dois golpes só, mas dois golpes de tal ordem que Popeye arregalou os olhos. Viu que tinha pela frente contendores mais perigosos que todos os marinheiros do Wonderland. E não quis saber de histórias - correu para a lata de espinafre escondida no oco. Tomou-a e engoliu tudo, fazendo uma careta. Esfregou a barriga e avançou contra os meninos. Ah! Que tourada bonita! Os dois meninos espinafrados caíram de murros em cima do marinheiro encouvado, como cães famintos que se lançam ao mesmo osso. Foi murro de todas as bandas, de todo jeito e de todos os calibres. Popeye virou peteca. Um soco de Pedrinho o jogava sobre Peter Pan. Vinha o soco de Peter Pan que o arremessava sobre Pedrinho. E naquele vaivém ficou Popeye por dois minutos, enquanto a criançada em redor batia palmas e gritava: - “Outro! Outro! Um murro nos queixos agora!...”


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Quem teve a honra de pregar o grande murro nos queixos, o murro que derruba nocaute, foi Pedrinho. Assentou um murro debaixo para cima - baf! Popeye deu duas voltas no ar e aplastou-se no chão, sem sentidos. Pedrinho agarrou-o então por uma perna e puxou-o para junto da massa do Capitão Gancho. - “Pronto!” - gritou em seguida, virando-se para a criançada. - “Cocoricocó! - cantou Peter Pan. Romperam palmas e vivas. Uma gritaria medonha. - “Viva Pedrinho! Viva Peter Pan!...” Quando o berreiro chegou à sala, Dona Benta sorriu e disse a Mr. Brown: - “Pronto, Almirante. Popeye já está nocaute.” - “Como sabe?” - “Não ouve os gritos de vitória? Eu tinha certeza de que ia ser assim e por isso não me incomodei. Popeye derrotou os marinheiros do Wonderland, venceu o Capitão Gancho, mas com os meus netos ele se estrepou. São uns danadinhos...” Tia Nastácia apareceu nesse momento. - “Corra, Sinhá! - dizia ela. - Venha ver! Seu Pedrinho e aquele outro deram uma tunda no marinheiro do pu! pu! que o coitado virou massa de gente. Venha ver que coisa linda, Sinhá...” Dona Benta e o Almirante foram ver. E viram. Viram Popeye sem sentidos, ao lado do corpo amassado do Capitão Gancho. E viram também uma coisa muito curiosa: os marinheiros do Wonderland, que pareciam mortos, começaram a ressuscitar. Ergueram-se e vieram fazer roda em torno das duas massas de gente. - “Que é isso? - interpelou Mr. Brown. - Não estavam mortos, então?” Um deles respondeu por todos: - “Tonteados apenas, Almirante; mas como vimos que era impossível vencer Popeye, ficamos caídos no chão, a fingir de mortos.” - “Bem - disse o Almirante, satisfeito de não ter perdido os seus homens. - Levem para o navio estes dois fregueses, e, se voltarem a si, ponham-nos a ferros. A Justiça inglesa os julgará.” Os marinheiros agarraram as duas massas de gente e se foram com elas para o caminhão dos sanduíches. - “Uf!- exclamou o velho inglês. - Que susto raspei! Nem o grande Almirante Nelson

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Memórias da Emília

jamais se viu numa alhada semelhante. Mas muito eu desejaria que a senhora me explicasse todo este mistério.” Dona Benta explicou. - “Nada mais fácil, Almirante. Uma simples troca de latinhas que a Emília fez. O pobre Popeye só é gente depois que ingere o tal espinafre da lata. Mas Emília trocou a sua lata de espinafre por uma de couve moída, e trouxe o espinafre para os meninos. Só isso...” - “E por que a senhora não me avisou há mais tempo? Por que me fez passar por tamanhas angústias?” - queixou-se o coitado. - “Para proporcionar a Vossa Honra o imenso prazer que neste momento está sentindo” - respondeu a velha. O Almirante chamou Emília para receber os seus cumprimentos. - “Tudo dependeu da sua idéia, Senhora Marquesa - disse ele. - A principal coisa foi trocar a lata de espinafre pela de couve moída. Cabe-lhe, portanto, a grande honra deste memorabilíssimo feito, e estou certo de que Sua Majestade britânica saberá recompensá-la devidamente. Talvez a faça baronesa do Império.”

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- “Prefiro que Sua Majestade britânica me mande uma caixa de latas de leite condensado” - respondeu a boneca. O maior prazer de Emília era abrir dois furos na tampa duma lata de leite condensado para escorrer o fio num prato, desenhando letras. Dois furinhos - um para a saída do leite, outro para a entrada do ar. Com um furo só o leite não sai.


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Diálogo entre a boneca e o visconde

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stava o Visconde nesse ponto das Memórias, quando Emília entrou. - Como vai o serviço? - indagou ela. - Já escreveu alguma coisa?

- Um colosso, Emília! Contei toda a história do anjinho, a vinda das crianças inglesas, a luta de Popeye com o Capitão Gancho, com os marinheiros do Wonderland e depois com Pedrinho e Peter Pan... - Contou que fui eu quem salvou tudo? Que se não fosse a minha idéia da couve a situação teria sido um horror? - Contei tudo direitinho. - Então leia. O Visconde leu todos os capítulos já prontos, aos quais Emília aprovou e gabou, achandoos muito bem escritinhos.


Memórias da Emília

- Está bem - disse ela. - Minhas Memórias vão a galope. Quero provar ao mundo que faço de tudo, que sei brincar, que sei aritmética, que sei escrever memórias... - Sabe escrever memórias, Emília? - repetiu o Visconde ironicamente. - Então isso de escrever memórias com a mão e a cabeça dos outros é saber escrever memórias? - Perfeitamente, Visconde! Isso é que é o importante. Fazer coisas com a mão dos outros, ganhar dinheiro com o trabalho dos outros, pegar nome e fama com a cabeça dos outros: isso é que é saber fazer as coisas. Ganhar dinheiro com o trabalho da gente, ganhar nome e fama com a cabeça da gente é não saber fazer as coisas. Olhe, Visconde, eu estou no mundo dos homens há pouco tempo, mas já aprendi a viver. Aprendi o grande segredo da vida dos homens na terra: a esperteza! Ser esperto é tudo. O mundo é dos espertos. Se eu tivesse um filhinho, dava-lhe um só conselho: “Seja esperto, meu filho!” - E como lhe explicar o que é ser esperto? - indagou o Visconde. - Muito simplesmente - respondeu a boneca. - Citando o meu exemplo e o seu, Visconde. Quem é que fez a “Aritmética”? Você. Quem ganhou nome e fama? Eu. Quem é que está escrevendo as Memórias? Você. Quem vai ganhar nome e fama? Eu...

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O Visconde achou que aquilo estava certo, mas era um grande desaforo. - E se eu me recusar a escrever? Se eu deixar as Memórias neste ponto, que é que acontece? Emília deu uma grande risada. - Bobo! Se fizer isso, pensa que me aperto? Corro lá com Quindim e ele me acaba o livro. Bem sabe que Quindim me obedece em tudo, cegamente. É inútil, Visconde, lutar contra os espertos. Eles acabam vencendo sempre. Por isso, abaixe a crista e continue. O pobre Visconde deu um suspiro. Era assim mesmo... - E agora? - indagou. - Que mais quer que conte? - O resto da história do anjinho. Conte como foi a fuga do anjinho para o céu. Vá escrevendo que eu já volto. Estou brincando de pegador com o Quindim. Disse e saiu correndo. O Visconde tomou da pena e com toda a resignação continuou. Depois dos fatos que acabamos de narrar, prosseguiu o Visconde no capítulo seguinte, tudo correu sem novidades no sítio. As crianças inglesas passaram lá três dias, brincando de mil brinquedos, no maior contentamento possível. Os caminhões do


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Wonderland vinham duas vezes por dia, de manhã e à tarde, com o carregamento de comedorias - e eram tantas que Tia Nastácia descansou do fogão. Ela e Dona Benta aderiram aos sanduíches, geléias e queijos do Rei da Inglaterra. Só quem não gostou da festa foi o anjinho. As crianças o atropelavam demais. Não havia para ele um só momento de sossego. Isso acabou dando-lhe uma idéia: escapar, voltar para o céu. No terceiro dia, Flor das Alturas experimentou as asas. Voou um bocadinho, como se fosse para a criançada ver. Sentiu-se bem. A quebradura estava perfeitamente soldada. Foi então que resolveu fugir para sempre. Mas como já estivesse gostando dos meninos do sítio não fugiu como um fujão qualquer. Despediu-se, lá do jeitinho dele. Chegando perto de Narizinho, murmurou: - “Narizinho, deixe-me dar um grande abraço e um beijo em você. Gosto tanto da minha amiga...” Narizinho deixou-se abraçar e beijar inúmeras vezes. Depois foi ter com Pedrinho e falou em outro tom. - “Pedrinho - disse ele -, fique certo de uma coisa: se algum dia eu desaparecer (por morte, está claro), levarei uma lembrança eterna de todos daqui, e principalmente de você.” E abraçou-o e beijou-o também. Em seguida foi ter com a boneca. - “Emilinha, venha dar-me um abraço e um beijo.” - “Para que tanta coisa, meu anjo? Será que quer deixar-nos?” - “Não. Apenas quero dar parabéns pelo que você fez.” Emília abraçou-o e beijou-o - mas desconfiou, indo dizer à menina: - “Estou desconfiada do anjinho. Esses abraços e beijos parecem-me fora de propósito. Para mim, ele está pensando mais é em fugir. Já sarou. Já voa. E se Tia Nastácia não cortar logo a ponta de uma das suas asinhas, prrr!... lá se vai ele a qualquer momento.” - “Não seja boba, Emília! Juro que o anjinho não pensa mais no céu. Está acostumadíssimo conosco.” - “Pode ser - disse a boneca -, mas, por causa das dúvidas, vou insistir com Tia Nastácia para que lhe corte a asinha, já, já. E se ela não tiver coragem eu mesma a cortarei.” Emília foi e intimou a preta a cortar a asa do anjinho naquele mesmo dia. - “Deus me livre! - respondeu Tia Nastácia. - Cortar a asa de um anjo do céu, como se fosse galinha?... Deus me livre de cometer semelhante sacrilégio. Os anjos

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Memórias da Emília

são criaturas celestes.” - “Pois então eu mesma corto - gritou Emília. - Ele está mudado e hoje me deu um abraço e um beijo com cheirinho de despedida. E já voa perfeitamente, sabe?” Disse e correu ao quarto de Dona Benta em procura da tesoura. Estava a remexer na cesta de costura, quando um imenso berreiro se levantou no pomar. Emília correu à janela. - “O anjinho voou! - gritava a criançada. - Vai voando alto! Vai sumindo no céu!...” Emília ainda pôde vê-lo nos ares. Lá se ia que nem uma garça, subindo, subindo sempre. Já era um ponto no espaço. Por fim desapareceu... Ninguém descreve o desespero das crianças. O chão do pomar ficou ensopado de lágrimas. Pedrinho dava pontapés raivosos nas cascas de laranja. Narizinho, no colo de Dona Benta, soluçava com desespero. Só Emília não chorou. Apenas enfureceu-se contra Tia Nastácia. - “Aquela burrona! Prometeu que cortava a asinha dele e não cortou. Agora, está aí...” Foi correndo à cozinha tomar satisfações.

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- “Viu o que a senhora fez? Por causa da sua lerdeza, do seu medo, do tal ‘sacrilégio’, perdemos o nosso anjinho. Voou! Foi-se para sempre...” Nastácia enxugou uma lágrima na ponta do avental. - “Mas eu não tinha coragem de cortar a asinha dele, Emília. Tive medo. Essas criaturinhas do céu são as aves de Deus. Deus podia me castigar...” - “Castigar, nada! - berrou Emília. - Todas as aves são de Deus e no entanto prendemos canários e sabiás nas gaiolas e comemos pombos assados sem que Deus se importe. Pensa que Ele fica o tempo todo prestando atenção nas aves do quintal do céu? Tem mais que fazer, boba. Além disso anjo é coisa que há lá por cima aos milhões. Um de menos, um de mais, Deus nem percebe. Perdemos o anjinho por sua culpa só. Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo.” Tia Nastácia rompeu em choro alto - tão alto que Dona Benta veio ver o que era. Emília explicou: - “Esta burrona teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. Eu vivia insistindo. Hoje mesmo insisti. E ela, com esse beição todo: ‘Não tenho coragem... É sacrilégio...’. Sacrilégio é esse nariz chato.” - “Emília! - repreendeu Dona Benta. - Respeite os mais velhos! Não abuse!” - “Bolas!” - gritou Emília retirando-se e batendo a porta.


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- “Como está ficando isolente!” - murmurou Dona Benta. Era o dia da volta da criançada. Logo depois o Almirante Brown deu aos marinheiros as ordens necessárias e apitou. Todos se reuniram em torno dele. - “Meus meninos e meninas - disse o velho inglês, de pé no topo da escadinha da varanda. - A nossa festa chegou ao fim. Passamos neste sítio três dias inigualáveis, na companhia desta boa gente e do anjinho que acaba de desaparecer nas nuvens, saudoso das estrelas do céu. Vamos reembarcar para a Inglaterra. Quero agora que vocês desfilem diante de Dona Benta e lhe agradeçam com um bom shake-hands (aperto de mão) a maravilhosa hospedagem que nos proporcionou. Mas antes disso vão me acompanhar num hurra de saudação.” E berrou: - “Hurra! Hurra! Dona Benta!” - “Hurra!...” - ecoaram as crianças num coro de vozes que encheu os ares. Peter Pan subiu à escadinha. - “Hurra! Hurra! Pedrinho...” - gritou ele. E as crianças ecoaram: - “Hurra! Hurra! Pedrinho!” Alice trepou à escada. - “Hurra! Hurra! Narizinho e Emília.” E mil vozes ecoaram: - “Hurra! Hurra! Narizinho e Emília.” Ao ouvir o berreiro, Tia Nastácia, lá no fogão, murmurou consigo: - “Como estes inglesinhos urram, meu Deus!...”. Em seguida as crianças desfilaram diante de Dona Benta, que teve a pachorra de apertar a mão de todas, uma por uma. - “Goodbye!” - iam elas dizendo a cada shake-hand. Chegou a vez de o Almirante despedir-se. - “Minha senhora - disse ele -, não sei como agradecer a boa acolhida que tivemos neste abençoado sítio. Vou com recordações que conservarei pelo resto da vida. E de tudo saberei dar boa conta a Sua Majestade britânica.” Dona Benta respondeu: - “Senhor Almirante, a honra que o Rei da Inglaterra nos fez mandando aqui a flor da criançada inglesa é dessas coisas que até deixam uma pessoa com um nó na garganta. Não encontro palavras de agradecimento. Peço que apresente a Sua Majestade as minhas homenagens e diga à Rainha Viúva que senti profundamente a morte de seu augusto esposo. Adeus, Senhor Almirante Brown! Que sejam muito felizes na viagem, são os meus

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mais sinceros votos. Adeus!...” A criançada, com o velho Almirante à frente, pôs-se em marcha. Quando chegaram à porteira, Emília gritou: - “Adeus, Alice! Adeus, Peter Pan! Adeus, Almirante! Não se esqueça da minha caixa de latas de leite condensado, nem da vaca prometida à Dona Benta...” Narizinho danou. - “Esta sirigaita! Numa hora assim a gente comporta-se. É o momento solene. Que idéia não irá fazendo o Almirante de você, gulosa?” - “Que bem me importa! - exclamou Emília. - O que quero é que venha a minha caixa de leite.” Depois de tudo acabado, Dona Benta pediu à Tia Nastácia que lhe trouxesse uma bacia de água de sal. - “Para quê, Sinhá?” - “Para me curar, Nastácia. Os tais shake-hands desta inglesada escangalharam com a minha pobre mão...” Nesse ponto das Memórias o Visconde lembrou-se de que ele também tinha mãos e parou para esfregá-las. Releu o último capítulo. Gostou. Riu-se, pensando lá consigo:

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“Sou um danadinho para escrever! Mas por muito que escreva jamais conquistarei fama de escritor. Emília não deixa. Aquela diaba assina tudo quanto eu produzo...” -Muuuul... - soou um vozeirão na janela do quarto. O Visconde voltou-se. Era Quindim. O rinoceronte enfiara o foci-nho pela abertura da janela. Emília, montada no chifre dele, gritou: - Já acabou o serviço, Visconde? - Acabei a história do anjinho. A criançada inglesa lá se vai embora, com o Almirante na frente. Contei a história do leite condensado - aquela tremenda rata que você deu... Emília escorregou do chifre do rinoceronte e entrou pela janela. Foi examinar a obra do Visconde. Fê-lo ler a última parte escrita. Deu a sua aprovação. - Está bem. Falta agora aquele caso do Peninha - disse ela. - Bem sabe que depois do passeio ao País das Fábulas ficamos aqui numa dúvida a respeito do Peninha. Uns queriam que ele fosse o Peninha mesmo; outros achavam que era o próprio Peter Pan. Os dois meninos eram igualmente invisíveis, quando queriam ser invisíveis, e ambos cantavam cocoricocó. O meio de sair da dúvida, na minha opinião, seria fazer


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uma consulta a Peter Pan - e logo que a criançada inglesa partiu, com o Almirante à frente, eu me lembrei disso. - “Pedrinho - disse eu - aproveite a ocasião para saber de Peter Pan se o Peninha é ele.” 4 Este personagem aparece em Reinações de Narizinho, volume 2. - “Ótima lembrança!” - respondeu Pedrinho - e mandou Rabicó atrás do bando já longe, com um recado que me lembro muito bem. Um recado assim: “Amigo Peter: faça o favor de responder se o Peninha é ou não é você. Há muito tempo que andamos aqui na dúvida. Mas não minta. Responda a sério. Seu amigo Pedrinho”. Esse recado foi escrito às pressas num dos papéis que vinham embrulhando os sanduíches de presunto de York. Lembro-me disso porque fui eu quem apanhou do chão o papel em que Pedrinho escreveu o recado. Pedrinho escreveu o recado, dobrou o papel muito bem dobradinho, e disse a Rabicó: - “Vá correndo atrás do bando e entregue isto a Peter Pan. E espere a resposta.” Nesse ponto o Visconde interrompeu Emília e continuou a história. - Exatamente - disse ele. - E Rabicó foi correndo, mas parou logo adiante da porteira, atrás do cupim. O cheirinho a presunto de York daquele papel engordurado perturbou a cabeça dele... Rabicó, então, comeu o recado sem nem sequer ter a lembrança de ler o bilhete, de modo a poder dar o recado verbalmente. E meia hora depois... Emília tapou a boca do Visconde. - Deixe-me contar o resto. Meia hora depois Rabicó reapareceu, fingindo-se cansadíssimo, com aquela cara de boi ladrão que ele tem quando faz algumas das suas. - “Pronto! - disse ele a Pedrinho. - Já entreguei o recado a Peter Pan.” - “E qual foi a resposta?” - perguntou Pedrinho. - Rabicó atrapalhou-se, começou a mascar. - “A resposta? - repetiu. - A resposta... a resposta foi que... que ele agradecia muito as suas palavras de despedida e que quando chegasse à Inglaterra ia... ia...” . - “A resposta? - repetiu. - A resposta... a resposta foi que... que ele agradecia muito as suas palavras de despedida e que quando chegasse à Inglaterra ia... ia...” Pedrinho avermelhou de cólera. - “Palavras de despedida? Eu lá escrevi palavras de despedida? Naquele bilhete eu apenas perguntava se o Peninha era ou não era ele...” - “É verdade! - exclamou Rabicó. - Não sei onde ando com a cabeça. Isso mesmo. Assim que entreguei a Peter Pan o papel, ele o leu, pensou um minutinho... e... e respondeu assim: ‘Diga ao Senhor Pedro que... que pode ser que sim, pode ser que não’.

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Foi isso...” - “Ficamos na mesma! - exclamou Pedrinho, danado. - Peter Pan está se fazendo de misterioso.” Mas eu, que não sou tola, desconfiei logo. Aproximei-me disfarça-damente da boca de Rabicó e cheirei - e senti um cheirinho de bilhete comido. - “Você devorou o bilhete, Rabicó! - fui gritando. - Tanto devorou que está com cheiro de bilhete devorado na boca!” - “Não devorei, Emília! Juro que não devorei...” - mentiu o miserável. - “Devorou! Devorou! Devorou!...” - Você, Visconde, vinha entrando, lembra-se?, ainda de camisola branca e asas - isto é, com uma asa só; a outra já havia caído. Eu, então, disse: - “Visconde, o senhor que é um Sherlock, venha resolver esse caso. Aplique a sua ciência na boca de Rabicó e veja se ele devorou um recado escrito em papel de sanduíche, que Pedrinho mandou a Peter Pan.” - Você, Visconde, foi buscar a lente dos detetives e examinou todos os pelinhos do focinho de Rabicó. E disse:

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- “Por aqui há sinais de ter andado um recado.” Rabicó defendeu-se: - “Nada mais natural, visto que levei o recado na boca” - disse ele. - Você, Visconde, prosseguiu na investigação, examinou-lhe os dentes e descobriu, entaladinhos neles, os sinais do crime. E gritou: - “Vejo nos vãos dos dentes deste quadrúpede pedacinhos de papel mascado” - não foi assim mesmo, Visconde? Pedrinho, então, não quis saber de mais nada. Pregou no Marquês tamanho pontapé que ele foi parar a cinco metros de distância, fazendo - coin, coin - e sumiu-se. - A eterna gulodice de Rabicó fez que perdêssemos a melhor oportunidade de saber se Peninha era o mesmo Peter Pan ou não. - Escreva este caso, Visconde. E depois pode contar a história inteira do Quindim aqui no sítio. Vá escrevendo, que eu já volto - concluiu Emília - e saiu correndo. O Visconde já estava com os dedos cansados de tanto escrever, e também revoltado contra as exigências de Emília. Súbito riu-se. “Vou pregar-lhe uma peça”, pensou lá consigo. “Vou escrever uma coisa e quando ela voltar e me mandar ler eu pulo o pedaço ou leio outra. É isso...” E pôs-se a escrever contra a boneca, assim: “Emília é uma tirana sem coração. Não tem dó de nada. Quando Tia Nastácia vai matar um frango, todos correm de perto e tapam os ouvidos. Emília, não. Emília


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vai assistir. Dá opiniões, acha que o frango não ficou bem matado, manda que Tia Nastácia o mate novamente - e outras coisas assim.” “Também é a criatura mais interesseira do mundo. Tudo quanto faz tem uma razão egoística. Só pensa em si, na vidinha dela, nos brin-quedinhos dela. Por isso mesmo está ficando a pessoa mais rica da casa. Eu, por exemplo, só possuo um objeto - a minha cartola. Jamais consegui ser proprietário de outra coisa, porque se arranjo qualquer coisa Emília encontra jeito de me tomar. Até aquele ditonguinho que raptei no País da Gramática e escondi na boca a diaba descobriu e me fez cuspir fora.” “Ela, entretanto, possui um colosso de coisas. O quartinho da Emília está cheio mais ainda que este quarto de badulaques. É dona de grande número de pernas e braços e cabeças de bonecas - das que Narizinho quebrou. Tem uma coleção de panelinhas de barro, e outra de caquinhos coloridos de louça. Uma vez quebrou de propósito uma linda xícara verde de Dona Benta só para completar a sua coleção de caquinhos porque estava faltando um caquinho verde...” “Tem besouros secos, um morcego seco, flores secas, borboletas secas e até um camarão seco. Tem coleção de fios de cabelo, que ela enrola um por um como cordinhas. Cabelos de Dona Benta, de Narizinho e Pedrinho, do Capitão Gancho, do Popeye. Na sua coleção, diz ela, só falta uma coisa: fio de cabelo de um homem totalmente careca.” “E tem mais coisas. Tem uma coleção de selos, todos cortados. Emília recorta as cabecinhas e mais figurinhas dos selos e prega-as num álbum. Não há o que não haja naquele quarto. Durante uns tempos andou com mania de colecionar verrugas, das que têm um fio de cabelo plantado no meio. Isso por causa da sogra do Compadre Teodorico, que veio um dia aqui. Essa velha possui uma verruga na cara. Emília começou a namorar aquela verruga. Por fim ofereceu à velha um tostão por aquilo imaginem!” “Emília é uma criaturinha incompreensível. Faz coisas de louca, e também faz coisas que até espantam a gente, de tão sensatas. Diz asneiras enormes, e também coisas

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tão sábias que Dona Benta fica a pensar. Tem saídas para tudo. Não se aperta, não se atrapalha. E em matéria de esperteza não existe outra no mundo. Parece que adivinha, ou vê através dos corpos.” “Um dia, em que muito me impressionei com qualquer coisa que ela disse, propuslhe esta pergunta: - Mas, afinal de contas, Emília, que é que você é?” “Emília levantou para o ar aquele implicante narizinho de retrós e respondeu: - Sou a Independência ou Morte.” “Fiquei pensativo. Na realidade, o que Emília é, é isso: uma independenciazinha de pano - independente até no tratar as pessoas pelo nome que quer e não pelo nome que as pessoas têm. Para ela eu sou o Milho; o Almirante é o Bife...” “Aqui no sítio quem manda é ela. Por mais que os meninos façam, no fim quem consegue o que quer é a Emília com os seus famosos jeitinhos. Certa vez...” Emília entrou nesse momento.

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- Como vão as Memórias, Visconde? Mais um capítulo? - Sim - respondeu o Visconde, meio atrapalhado. - Escrevi mais um capítulo... - Sobre quê? O Visconde, que não queria ler aquele capítulo contra ela, começou a inventar. - Escrevi - disse ele - sobre... sobre a nossa volta da viagem ao céu. Contei o... o tombo que vocês deram de cima daquele cometa. Emília desconfiou. - Visconde, Visconde! O senhor está me tapeando!... Esse seu ar de cachorrinho que quebrou a panela está me dizendo que o senhor escreveu uma coisa e quer impingir outra. O pobre Visconde corou até a raiz das palhinhas. Impossível enganar aquele azougue! A boneca arrancou-lhe das mãos o capítulo. Leu-o... Mas com grande assombro do Visconde não fez a cena que ele esperava. Emília ficou uns instantes meditativa. Depois disse: - O senhor me traiu. Escreveu aqui uma porção de coisas perversas e desagradáveis, com o fim de me desmoralizar perante o público. Mas, pensando bem, vejo que sou assim mesmo. Está certo. Leu mais uma vez o capítulo.


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- É isso mesmo. Sou tudo isso e ainda mais alguma coisa. Pode ficar como está. Cada um de nós dois, Visconde, é como Tia Nastácia nos fez. Se somos assim ou assados, a culpa não é nossa - é da negra beiçuda. Cada vez que Emília falava na negra lembrava-se do anjinho fugido, de modo que naquele momento esqueceu das Memórias para pensar nele. - Não posso falar nessa negra beiçuda sem que o sangue não me venha à cabeça, Visconde! Perdemos Florzinha das Alturas só por causa de um tal “sacrilégio” que a burrona inventou! Impossível conformar-me com a perda do meu anjinho... E depois de uns instantes de meditação: - Estou a ver-me com ele em Hollywood, no cinema... Súbito, teve uma idéia. - Pode ir embora, Visconde. Eu mesma quero acabar estas Memórias. Vou contar o que teria acontecido se Tia Nastácia houvesse cortado a ponta da asa do anjinho. Fomos para Hollywood no Wonderland, com toda a criançada inglesa, Peter Pan e o Almirante. E Alice também. Fugi do sítio. Eu já andava enjoada de bolinhos, de pitangueira, de países-da-gramática. Fugi - fugi - fugi com o anjinho e o Visconde. A viagem foi ótima, exceto para o Visconde, que enjoou a ponto de deitar ao mar metade da sua ciência. Vomitou logaritmos, ângulos e triângulos, leis de Newton uma trapalhada. Eu não enjoei coisa nenhuma, nem o anjinho. Em vez disso, aproveitei o tempo para estudar com o Almirante a língua de Alice.

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Tipografias:NimrodMT;SpumoniLP e Elsie. Miolo- Papel off-set 90g Capa- Papel supremo 180g


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Emília, que é uma boneca muito da metida, resolve contar as suas memórias, ou melhor, "mentir" as suas memórias pois, afinal, ela acha que aquele que escreve sobre si próprio "tem um pé" na enganação, na mentira. Segundo ela, se a pessoa contar o que realmente aconteceu na sua vida, todos iriam perceber que a vida é igualzinha à de todo mundo. Para ajudá-la a realizar seu intento., Emília chama o Visconde de Sabugosa; ela ditaria as memórias e o Visconde as escreveria. Este livro mostra a história completa sobre o anjinho da asa quebrada.


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