Miolo a morte do outro lado da luneta 14102013

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A Morte Do Outro Lado Da Luneta



A f o b 贸 r i o

( O r g . )

A Morte Do Outro Lado Da Luneta

EDITORA MULTIFOCO Rio de Janeiro, 2013


EDITORA MULTIFOCO Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda. Av. Mem de Sá, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152

REVISÃO CAPA

Alexandre Durigon

Natália Caruso

DIAGRAMAÇÃO Mauricio

Pinho

A Morte Do Outro Lado Da Luneta AFOBÓRIO 1ª Edição Novembro de 2013 ISBN: 978-85-8273-398-1

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.


Prefácio

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m instante e um suspiro. Indicador no gatilho. É prenúncio. O toque da Morte! E pela luneta encontro a criação, ela me sorri, ao tempo em que Dona Morte como persona me diz “Senta o dedo”. É sangue, é o fim!... É a perfeição! A mutação... A fugaz energia onde jaz a Vida e nasce a Morte! É o poder do atirador. Como diz o sábio ditado popular “Nem tudo que é certo é justo e nem tudo que é justo é certo” e se não é isso é quase. É a faculdade de mudar o destino daquele que existe além da luneta, de quem buscado foi e visto é. Não procure o melhor, pois encontrará os melhores. Aqui eles estão. Um disparo é a força com capacidade de tornar Vida em Morte. E, portanto, igualmente precisos, cada um ao seu instante, ao gosto de seu calibre, assim fez e é. Atiradores mais habilidosos, eu nunca vi. Foi-me um desafio atender tal anseio editorial. A minha missão de editor “Um livro que ainda não se viu”. E foi o que procurei. Um assunto rico em detalhes, curioso, singular. E para criar o folhoso que manuseia, recrutei os mais notáveis. São os donos do livro! 5


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Cada disparo impresso aqui é certeiro. E neles está ela “A Morte Do Outro Lado Da Luneta” como cada qual a desenhou na cruz de seu monóculo, o lugar de encontro dos vértices, onde se define o ponto de colisão fatal, a película invisível que faz da Vida a Morte. Eu me sinto honrado! E virtuoso sentir-se-á ao ler cada tiro descrito. Descobrirá a intervenção cirúrgica de um sniper e seu projétil a abater seu alvo. Eu tenho certeza de que tais atiradores são capazes de acometer sempre a uma distância vislumbrada por poucos. Sim, um esquadrão de caçadores é no mínimo homogêneo em certeza, em qualidade. Cuidado, pois pela luneta o acompanhamos leitor, e do outro lado dela, idealizamos o próximo disparo, a Morte. A transformação. Talvez, a sua! Ao ler sentirá muitas coisas, mas a dor encontrará invariavelmente, em uma de suas faces, claro. Escolha em que lado da coronha pretende estar. O nosso é o oposto ao cano. É o de quem decide; de quem tem o poder e o dom de comandar o futuro alheio. De transformar Vida em Morte. E o seu, qual é? Prefere a dor de matar ou a de morrer? Boa leitura. E para acertar, respire fundo, sempre! Afobório, Org.

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Sumário A Emboscada 9 “A Vingança De Um Sniper” 16 Bloco De Notas 24 Caçador 29 Extremamente Próximo 35 Lyudmila 43 “Na Calmaria Do Olho Que Vê” 51 O Abutre 59 O Ovo De Nuremberga 66 O Terceiro Ângulo 74 Pardos 82 Queima De Arquivo 90 Um Cartucho Por Vez 97

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A Emboscada César Costa 1

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ohnny não sabia quanto tempo levaria até que começasse a enlouquecer. Nos últimos dias, somente o que via ao seu redor era a mata fechada do local onde se encontrava. Tudo lhe incomodava e irritava. Comer a mesma ração horrível por dias sem fim era o que mais o desanimava. Pela milésima vez em alguns dias, ele limpou sua arma, dando especial atenção à mira telescópica. Uma micro sujeira poderia significar uma falha imperdoável. Ele ouviu um barulho na mata e virou-se assustado, olhou por alguns instantes, mas o entardecer já não lhe permitia enxergar com clareza. Colocou os óculos de visão noturna, mas não poderia utilizá-los por muito tempo, pois precisava economizar as baterias. Ficou em silêncio no alto da imensa árvore em que se encontrava. Não se mexeu, sequer respirou. O barulho não se repetiu, certamente era coisa da sua cabeça. 1 César Costa nasceu em Resende-RJ, onde vive com a esposa e dois filhos. Bacharel em Sistemas de Informação é autor do livro O Guerreiro de Aukazland. Vencedor do Concurso de Novelas Históricas/Bahia-2012 com o livro 2 de Julho - Uma História de Liberdade, participa com o conto Face a Face Com o Amor na coletânea Em Contos de Amor, e do livro Nova Literatura Brasileira com o poema Pensamentos Sobre Um Amor. Contato (flamaniaco@gmail.com). 9


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Há pelo menos cinco dias, ele fora enviado até aquele local. Seu objetivo, como Sniper (atirador de elite), era eliminar um dos Generais inimigos que, segundo a inteligência, estaria numa sala de comando, naquele acampamento. Johnny havia se camuflado e se escondido entre as folhagens. Por diversas vezes checava o acampamento através da mira de sua arma. Não vira nada nem ninguém que acusasse realmente a presença de um General naquele lugar. O soldado evitava falar muitas vezes ao rádio pelo mesmo motivo que só usava os óculos de visão noturna em último caso. Na última vez em que se comunicara com a base, recebera as mesmas ordens de permanecer no local e ficar atento. Era horrível não ter companhia, ninguém para conversar. Nem mesmo uma música podia ouvir, até mesmo falar sozinho era perigoso, pois algum patrulheiro inimigo poderia escutá-lo, então ficava com seus pensamentos. Lembrava-se constantemente de sua casa, sua família, amigos e, principalmente, de sua namorada, Laura. Daria tudo para estar nos braços de Laura naquele momento, ao invés dos braços folhosos daquela frondosa árvore. Ele era apenas um jovem de dezenove anos e já carregava em seus ombros a terrível missão de matar, eliminar vidas deste planeta. Era hora de olhar na mira novamente, já estava escuro. Colocou os óculos de visão noturna, nem sombra de um General. Com a noite, recaiu sobre Johnny o sono inevitável. Para ele esse era o momento mais tenso. Estava completamente vulnerável, sem nenhuma cobertura. Ficava à mercê de ani10


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mais peçonhentos e, principalmente, da investida surpresa de algum inimigo. Por mais que ele tentasse aguentar, a necessidade de dormir era implacável. Seria sua quinta noite de sono maldormido, mais uma noite de pesadelos. Apesar de tão jovem, o Sniper já estava naquela guerra há mais de um ano. Vira muitas coisas acontecerem, muitos amigos conquistados atrás das trincheiras, agora estavam enterrados naquele solo estrangeiro. Alistara-se como soldado e logo fora transferido ao campo de batalha. Para sua felicidade, ou infelicidade, ele que era um rapaz imprestável e sem qualidades em sua terra natal, acabara descobrindo seu talento nato para atirar. Logo suas habilidades foram reconhecidas por um de seus Tenentes e o rapaz foi encaminhado, então, para o curso de atiradores de elite do exército, onde se formou com louvor e foi promovido a cabo. E ali estava Johnny, armando uma emboscada. Uma importante missão confiada a ele, um mero jovem. O sono o pegou e o rapaz adormeceu. Mais uma noite de pesadelos povoou seu subconsciente. Sonhava com os amigos mortos em batalha, com o soldado Thomas sendo dividido ao meio por uma rajada de tiros de metralhadora. Poderia ter sido ele, pois Thomas estava a apenas sete metros dele. Ataques e bombardeios ecoavam em sua mente adormecida, gritos, sangue e terror. O atirador de elite sonhava tanto com essas coisas que já estava acostumado. Talvez se sonhasse com pôneis coloridos e arco-íris, aí sim, acordaria assustado. A guerra tornara-se sua vida, ao ponto de ele temer que tudo terminasse e tivesse que voltar para casa. O que faria? O que 11


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ele seria? Não sabia fazer outra coisa que não colocar o dedo em um gatilho e puxá-lo no momento exato, acertando cirurgicamente o seu alvo. Amanheceu, e Johnny foi acordado pelo barulho do rádio preso às suas costas. — Comando Alfa para Cobra Solitária, câmbio — soou a voz no aparelho. — Cobra Solitária, na escuta, câmbio — ele respondeu. — Algum sinal do alvo? Câmbio. — Nada ainda, não creio que haja Tatu no ninho, câmbio. — O Tatu está lá, Cobra, mantenha posição. Um ataque está planejado para hoje às doze horas, vamos fazer o Tatu sair do buraco. Fique preparado para executar a missão, após a operação enviaremos uma equipe de extração para te buscar. Mantenha o rádio ligado, câmbio. — Ok, ficarei atento, câmbio e desligo. Johnny ficou ansioso, o ataque aconteceria ao meio-dia e, se tudo desse certo, ele poderia finalmente sair dali e retornar para seu acampamento onde, pelo menos, teria seus pesadelos em uma cama de armar. Retirou a parca ração a que tinha direito no desjejum e comeu demoradamente, mastigando umas cem vezes cada pedaço que abocanhava. Mais uma vez pegou a arma, verificou a mira e utilizou-a para varrer o acampamento inimigo. Nem sinal do General. Nos últimos dias, aquele acampamento estava tranquilo demais e sua rotina em nada havia se alterado. Os combates estavam acontecendo a alguns quilômetros dali. Quando voltasse, sabe-se lá mais quantos de seus amigos estariam enterrados, mortos num combate sangrento. 12


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O rapaz conferiu seu relógio. Faltava apenas meia-hora para o ataque. Manteve sua arma junto a si e o olho na mira telescópica, a ação começaria a qualquer momento. Ao meio-dia em ponto, a primeira bomba foi lançada sobre o acampamento. Dois helicópteros e um avião passaram pelo local onde Johnny se escondia. Imediatamente os inimigos responderam lançando mísseis antiaéreos e tiros de metralhadora. Ao longe, foi possível avistar um grupo de paraquedistas saltar de um dos helicópteros. O avião ainda conseguiu sobrevoar o local mais uma vez e largar outra bomba, que causou muitos danos. Por alguns instantes, Johnny se distraiu assistindo à operação de seu exército e se esqueceu de procurar e executar o General inimigo. Como que despertando de uma hipnose, ele pegou seu rifle e posicionou a mira a tempo de visualizar, a certa distância, um Sniper inimigo apontando um rifle em sua direção e puxando o gatilho. O rapaz só teve tempo de se jogar para trás, cair através de alguns galhos e só não foi até o solo, porque seu equipamento se prendeu, deixando-o pendurado. O rifle do cabo desprendeu-se de sua bandoleira e tombou na mata. Ao seu lado, grossas gotas de sangue caíam. Johnny cuspiu sangue e levou a mão ao peito, um líquido quente escorria lentamente, deixando claro que o Sniper inimigo era tão bom ou melhor do que ele. O sangue em sua garganta começava a lhe sufocar. Uma voz chamava no rádio, indagando se a missão havia sido executada, mas o cabo não era capaz de responder. Seu corpo pendia, suas for13


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ças diminuíam cada vez mais. Ele imaginou quanto tempo levaria para que a equipe de extração se aproximasse. Sua localização era conhecida por seus superiores, eles poderiam chegar ali a qualquer instante. Quando menos esperava e estando prestes a perder a consciência, Johnny escutou passos se aproximando do local onde estava. Seria a equipe de resgate? Estaria ele salvo? Usando um último lampejo de lucidez, o cabo focou-se no ponto de onde vinha o barulho. Para sua surpresa, seus olhos se depararam com a visão de um jovem local, sujo e maltrapilho. Não era o esperado resgate, mas ao menos não era um inimigo. Ele respirava com dificuldade, a dor em seu peito era indescritível. O garoto aproximou-se e viu o rifle de longo alcance caído no chão, ao seu lado se formava uma pequena poça de sangue. Ele olhou para cima e assustou-se com a presença do militar, mas logo percebeu que o soldado estava impossibilitado de agir. Desesperado, Johnny tentou fazer sinais pedindo que o menino buscasse ajuda, mas para seu espanto o nativo pegou sua arma e começou a analisá-la com curiosidade. Como se soubesse o que estava fazendo, o garoto colocou a bandoleira em volta do pescoço, puxou o trinco da arma e colocou uma bala na câmara. O menino posicionou o rifle em seu ombro e começou a explorar a floresta com sua mira telescópica. Em sua mente, Johnny começou a fazer uma oração, suplicando aos céus que nada lhe acontecesse. As lembranças de seu lar, família, amigos e namorada passaram novamen14


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te por sua cabeça. Lágrimas começaram a escorrer. Quando tornou a abrir os olhos, já enxergando tudo embaçado, deparou-se com o menino parado, apontando sua própria arma para sua cabeça. Só então o militar compreendeu, que aquele garoto, que lhe parecia tão inocente, era um soldado mirim do exército inimigo. O grito sufocado pelo sangue na garganta, os olhos arregalados e a dor lancinante no peito, foram as últimas experiências vividas pelo cabo, antes que o disparo efetuado por aquele pequeno soldado o atingisse em cheio a cabeça, e todos os músculos do seu corpo sem vida relaxassem. A equipe de extração apareceu cerca de vinte minutos depois, apenas para recolher seu corpo inerte e levá-lo de volta para o acampamento, onde Johnny seria enterrado ao lado de tantos outros guerreiros que haviam perdido suas vidas em terríveis combates naquele lugar. Sua família recebeu uma carta, com uma medalha e um certificado de honra pelos serviços prestados, mas jamais receberia o seu Johnny de volta. Seus pais não o tornariam a abraçar e Laura jamais o beijaria novamente. Assim, como vários valentes combatentes, numa emboscada, Johnny encontrou a morte do outro lado da luneta em que se acostumara a olhar para abater seus inimigos.

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“A Vingança De Um Sniper” M. M. Souza 2

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cordei pela manhã e senti o doce aroma do café entrar por dentro do nosso quarto, seu perfume ainda estava na cama e de repente vejo a porta abrir, era Amanda vestida com minha camisa e com a refeição matinal em suas mãos, tomamos café ali mesmo e como fazíamos todas as manhãs antes de sairmos para o trabalho, transamos loucamente como se fosse a nossa última relação amorosa, porém, o que não imaginávamos era que essa seria realmente a última oportunidade de sentirmos um ao outro. — Amor, bom trabalho, não erre nenhum tiro — faloume Amanda abrindo um sorriso. — Pode deixar amor, um tiro uma morte — falei sem nem imaginar o que ocorreria logo mais. Eu era atirador de elite do grupo de operações especiais da polícia e ela era bancária, profissões totalmente distintas, mas que o destino cruel iria nos colocar diante um do ou2 Marcio Milton de Souza (M. M. Souza), Natural de Petrolina-PE, nascido em 19/04/1985. Estudante de bacharel em educação física pela UNIVASF onde atua como pesquisador bolsista, escritor iniciante, fascinado por livros desde a infância, escreve contos nos gêneros terror, ação e ficção. Contato (marcioms19@gmail.com). 16


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tro naquele fatídico dia, estava eu no quartel quando soou o alarme de uma ocorrência, era um assalto a banco e na correria de preparar as armas e equipamentos nem ouvi qual era o banco, chegando ao local para minha infelicidade, estava em frente ao banco que Amanda trabalhava, no qual seis bandidos faziam mais de trinta pessoas como reféns. Olhei ao redor para procurar um local favorável para realizar o tiro e encontrei uma sacada de um prédio logo de frente ao banco, mais que apressadamente subi no prédio e comecei a preparar a arma quando ouvi um estrondo de um disparo, olhei e não vi ninguém do lado de fora com a arma em punho e então percebi que o tiro vinha de dentro do banco e rapidamente olhei pela luneta do rifle e vi Amanda caída no chão com manchas de sangue, corri desesperadamente até a porta do banco e os assaltantes haviam fugido por uma saída de emergência. Cheguei e Amanda ainda estava consciente o bastante para me dizer algo no ouvido. — Capitão Fernando e Soldado Rogério são os ladrões — falou-me com a voz trêmula. — Quem atirou em você? — perguntei incrédulo com o seu sangue em minhas mãos. Ela se esforçou para responder minha pergunta. — Foi seu amigo Fernando, ele percebeu que vi seu rosto. No momento uma lágrima desceu pelo meu rosto e Amanda em minha frente agonizando, fez um esforço sobre-humano e me falou a sua última frase em forma de um 17


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pedido, suas palavras saíam cortadas por causa da fraqueza causada pela falta de oxigenação do cérebro devido à perda de mais da metade do seu sangue. — Amor, mate eles. Seus olhos foram desfalecendo e uma lágrima escorreu pelo seu olho em forma de despedida, minha amada morreu em meus braços vítima de um policial corrupto filho de uma puta. Ninguém sabe quem são os verdadeiros assassinos, isso é o que a polícia pensa e eles pensam que ela morreu sem conseguir falar pra ninguém, mas para o azar deles ela falou para o melhor atirador do Brasil. Recebi minhas férias antecipadas por causa do ocorrido, e durante todo o mês fiquei observando o Fernando e o Rogério para descobrir seus hábitos, onde gostavam de ir, com quem gostavam de sair, o que gostavam de beber e quem eram os outros que estavam dentro do banco naquele dia. Depois descobri que todos eram policiais salvo um que era segurança do banco e que passara a eles a rota de fuga pela saída de emergência. Resolvi pôr em prática minha vingança, primeiro foi o segurança do banco que teve a felicidade de morrer com um tiro no meio dos seus olhos ao sair de casa sem nem sentir dor. Os outros três policiais não tinham tanta aproximação com Fernando e Rogério, eles eram mulas usadas para carregarem peso e serem descartados se precisassem distrair a polícia em uma eventual fuga. Tive a sorte de uma bela noite eles irem a um bordel gastarem o dinheiro sujo, fruto de tantos assaltos a bancos. Cada um pegou uma pros18


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tituta e foi para um quarto e assim pude matá-los um de cada vez. Aluguei um quarto em hotel barato em frente ao bordel, era um lugar sujo com cheiro insuportável que mais parecia ser usado por ratos do que por pessoas. O primeiro infeliz foi ao banheiro, assim que entrou no quarto com uma loira quase sem roupas. Enquanto ele abria o zíper da calça para urinar eu fazia a mira na sua cabeça e antes que ele começasse a fechar suas calças acertei uma bala na sua cabeça. O segundo chegou ao quarto apoiado nos ombros da prostituta, não conseguia andar e nem se manter em pé com suas próprias forças, ela o jogou na cama e falando algo a ele saiu do quarto, como se fosse buscar algum remédio para ele, atirar em um cara deitado sem nenhum movimento a não ser o da sua respiração era o tiro mais fácil da minha vida. O Próximo não foi tão tranquilo como os anteriores, por algum motivo ele estava espancando a mulher, estava tão louco que se movimentava feito um possuído pelo demônio, tive que reajustar a mira várias vezes e não conseguia, e de repente, ele a joga na cama e senta em cima dela, começa a estrangulá-la, ajusto a mira rapidamente para acertar mais um tiro, desta vez a bala entrou pelo ouvido e parou apenas na parede manchando toda a cama com seu sangue. Após a demora das três primeiras mortes já esperava que o último estivesse comendo aquela vadia que entrara no quarto em sua companhia, ao mirar a luneta do meu rifle para o próximo quarto vi a mulher cavalgando no colo do infeliz, mirei na sua cabeça e fiquei observando a cena, ao 19


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perceber que ele estava perto de gozar disparei um tiro certeiro na sua cabeça. Dos quatro mortos desta noite, ele teve a melhor morte e menos dolorida, afinal, ele teve a sorte de morrer gozando. Agora restavam apenas dois. Aqueles que um dia tive como amigos agora se tornavam meus principais alvos, a cada morte sentia mais vontade de matar. Rogério só em seu apartamento e quase sempre se drogava com prostitutas até entrarem em êxtase. Assim foi fácil de preparar uma emboscada. No final do expediente na sexta ouvi uma conversa de Rogério no celular com uma prostituta. — Oi, só trabalho segunda, chama sua amiga e vão lá pra casa hoje à noite que vou comer vocês duas o final de semana inteiro, suas vadias. À noite fui para frente do seu apartamento que ficava no nono andar, subi em uma torre de telefonia que ficava a quinhentos metros da sua janela. Preparei meu rifle, regulei a mira da luneta e fiquei esperando até o momento certo. O frio na torre fazia meus músculos se contraírem involuntariamente na intenção de regular a temperatura do meu corpo, por volta das quatro horas da manhã, depois de tanta bebida, droga e sexo os três apagaram na cama. Por sorte esqueceram a janela aberta o que ajudaria a não fazer barulho e as mulheres acordarem. Meu corpo tremia de frio e com dificuldade tentava ajustar a mira, depois de muito esforço consegui controlar a musculatura e realizar a mira perfeita, porém, meus dedos ainda tremiam e decidi 20


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aquecê-los com o ar que saía dos meus pulmões. Depois de finalmente ter o controle do meu dedo novamente decidi finalmente atirar, devido à distância eu decidi não arriscar mirar na cabeça e resolvi atirar no seu peito, mais uma morte em vingança a minha esposa. Agora restava o Fernando, havia deixado ele por último por ter sido o culpado pela morte de Amanda e por ter algo especial guardado pra ele. Coloquei um calmante na bebida dele pra ele apagar e quando ele acordou estava vendado e gritando feito uma menina com medo. Ele perguntava. — Quem está aí? Solte-me, sou policial. Ele reconheceu minha voz quando falei. — Você tirou-me a vida, agora irei tirar a sua vida. — Cláudio? É você? O que está dizendo? — Você atirou em Amanda e antes de morrer ela me falou. Ele com raiva de ter deixado ela viva por tempo suficiente para ter me falado, esboçou falar mal de Amanda. — Mas que filha da... O interrompi com um soco na boca, que seus dentes cortaram seus lábios fazendo-o sentir o sabor do seu sangue. — Cuidado com o que fala, pois poderá piorar a sua sentença de morte. — Morte? — indaga Fernando. — Sim, hoje é seu último dia. Desesperado ele pede perdão. — Me perdoa, eu não iria matá-la. — Mas matou — respondi rapidamente. 21


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Retirei sua venda e olhei dentro do seu olho e disse: — Lembra-se do nosso treinamento? Quando a gente disputava quem tinha a melhor mira. Tentamos tantas vezes acertar um tiro a um quilometro de distância e nunca acertamos. Tremendo os lábios ele respondeu. — Sim, lembro. Mas nunca acertamos. Era um tiro impossível. — Pra você poderia até ser, mas pra mim não. Eu errava por que queria, só pra não te fazer se sentir inferior a mim. Emendado a minha frase ele respondeu. — Mentira sua. Ninguém acerta um tiro a uma distancia dessas. Montando a arma na sua frente disse. — Por isso que você está aqui. Irei provar que acerto a essa distância, e você terá o prazer de ser o meu alvo. — Você tá louco? — gritou Fernando. — Desde o dia em que você matou Amanda que estou louco. De repente um silêncio toma conta do ambiente, apenas a respiração ofegante de Fernando devido ao medo consegue quebrar o silêncio. Depois de uns cinco minutos, olho para ele e digo. — Chegou a sua hora. Ele tenta questionar a minha decisão, apenas viro as costas e saio para o local do tiro deixando-o amarrado no tronco da árvore num velho sítio longe da cidade. A cada passo que dava a som dos gritos de Fernando diminuíam e minha 22


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felicidade por estar cumprindo o que prometi a Amanda aumentava. Depois de um quilômetro caminhado cheguei ao local onde iria terminar a minha vingança. Antes de matar o cara que estragou a minha vida peguei uma foto dentro do meu bolso, era a minha única companhia desses dias obscuros em que a minha vida havia se tornado e naquele momento sentia a presença dela perto de mim, sentia seu perfume agraciando o ar que respirava. Dei um beijo em sua foto e a guardei novamente em meu bolso com o bem mais precioso que tinha. Virei para o assassino e me preparei para dar fim a sua vida desgraçada. Pela luneta via a afeição de desespero do Fernando sentindo o cheiro da morte ao seu redor. E como dizem os atiradores de elite, “um tiro, uma morte”. Ali estava a última morte causada por vingança, pelo menos era isso o que eu imaginava...

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Bloco De Notas Afobório 3

“Nove horas, quarta-feira de um dia qualquer”. “Preciso falar”. “A garrafa está pela metade, como eu”. “Eu tinha de ‘Matar, viver e anotar’ como recomendou o Capitão”. “Um Sniper não pode ser capturado”. “Isso dá moral”. “Ele se torna troféu na mão do inimigo”. “Vai sofrer e tem morte certa”. “A orientação ‘Segurar a granada colada no peito e puxar o pino’”. “Vejo meus dedos encarangados”. “É frio”. “Eles doem”. 3 Afobório é o pseudônimo do gaúcho Alexandre Durigon, editor e revisor de texto, tem participação em várias antologias, um romance e apresenta como seu mais novo trabalho o livro, Contos de Amor e Crime — Um Romance Violento. Demais escritos em (www.medoemorte.blogspot.com.br) e pela internet afora. E-mail para contato (afoborio@gmail.com). 24


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“Por conta do que passei em missões”. “Comparo com o impacto de um calibre 50”. “Ao que acontece com um coração de mãe”. [Primeiro Sargento/Batalhão/Sniper]. “É minha patente”. “Somos como ursos solitários”. “No indicador, o veredito”. “Sempre decidi!”. “Anotei tudo”. “Guardei minhas palavras em meu bloco de notas”. “Em meu coração”. “Em minha mente”. “O estrago que faz um Barrett M107 é algo difícil de esquecer”. [Temperatura dez graus negativos]. [Quinze horas]. [Quinhentos metros]. [Pela luneta eu o vejo]. [O idiota atira sempre do mesmo lugar]. [Dá intervalos de três horas e dispara]. [É ativo durante nove horas/dia]. [A série dele é de um tiro]. [Tem boa pontaria, mas é burro]. [O meu raio de ação respeita quinhentos metros].

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[A minha Gillie Suit me camufla]. [Meu corpo perde sua forma com ela]. [O fuzil e eu somos parte do lugar]. “A paciência é uma virtude”. [Ele é o rato]. [Eu sou o gato!]. [Esse miserável, pensa que é o dono dessa cidade]. [Que cidade?]. [Só sobraram ruínas e poucos pontos altos]. [Tudo aqui é escombro]. [Não importa]. [Eu o matarei]. “Foi essa ordem que recebi”. “Mate” disse o Capitão. [Eu o achei]. [Está lá, no mesmo lugar...]. [Eu sabia!]. [Três horas exatas do último disparo]. “Previsível demais”. [Sem vento]. “Perfeito”. “Eu o via de frente”. “Apertei o gatilho”. [A cabeça explodiu!]. 26


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“Ele se foi!”. “É a morte do outro lado da luneta”. “Foi o nome que encontrei para o meu diário de guerra”. “Todos os atiradores têm”. “Um bloco de notas têm informações geográficas e operacionais”. “Por isso a granada no peito”. “É confidencial”. “Para o inimigo, o bloco de notas é tão valioso quanto o atirador”. “Fica no bolso esquerdo”. “Onde é o coração”. “Um Sniper é o caçador caçado”. [A Morte!]. [Ela anda comigo]. [Eu sei que sou amado e odiado]. [Como acontece um dia, com os grandes homens]. “A minha fuga é beber”. “Prefiro cowboy”. “Gelo no uísque é um desaforo ao fabricante”. “A minha cabeça é uma bagunça”. [O Sniper é o vampiro da guerra]. [Precisa de sangue se quer viver]. “Respiro”. “Estou lendo meu bloco de notas”. 27


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“A cada frase, bebo mais”. “É isso que acontece com homens como eu”. “Tenho neurose de guerra e sou alcoólatra”. “Como disse o Capitão ‘O senhor é um grande homem, Sargento’”. [O Capitão me disse que sou um grande homem]. “Anotei isso também”. “Em meu bloco de notas”.

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Caçador Graziela Ramos 4

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soldado olha assustado quando sente e ouve o vento se deslocando ao lado de sua orelha e o barulho da bala quando acerta o alvo. Úmido e enjoativo, então há sangue espirrando em sua nuca e escorrendo por seu capacete. Ele se vira com olhos arregalados e vê caído na lama o soldado inimigo, agora com a cabeça explodida, e mesmo sabendo que ali é um campo de batalha e que é como andar entre uma linha mais fina que um fio de cabelo entre a vida e a morte, ele ergue o rosto e acena na direção da bala. Ele não te vê. Escondido e camuflado entre a paisagem, mas você o vê através da visão telescópica da arma. Mesmo que ele esteja acenando para ninguém dez metros à sua esquerda, você aprecia o gesto. Mas assim como para ele, para você também não há tempo a perder. 4 Graziela Fusco Ramos, nascida em Promissão, interior de São Paulo, hoje se aventura na cidade grande. Viveu a infância nos anos 90 e ainda assim se acha uma alma velha. Deve toda a sua paixão pela literatura a Marcos Rey e seus romances policiais, e como compensação hoje ela acha que até bulas de remédios podem ser interessantes. Contato (graziframos@hotmail.com). 29


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Você inspira profundamente para acalmar os nervos, aquilo ainda é uma guerra, e solta uma respiração tremida e nervosa. Uma bala passa zunindo acima de sua cabeça, muito alta e imprecisa, bala perdida, bala de quem errou o alvo. Provavelmente o último tiro de algum soldado abatido. Tiro de sorte, tiro com o qual você não pode contar. Sua doutrina é a precisão, horas infinitas de treinamento e controle. Caçador é como eles chamam aqueles como você. E nada poderia estar mais certo, você abate os soldados lá embaixo como patos selvagens, você os caça e eles não têm a mínima chance. Seu dedo puxa o gatilho e é como se ele assinasse uma sentença de morte, mais um soldado cai abatido. A água cai do céu em forma de uma garoa fina e fria, gotas valsando no ar até desaparecerem no chão enlameado e nos soldados. Ela também escorre por você, seu uniforme já está encharcado e você sente o frio da água e do ambiente, mas mesmo assim permanece imóvel. Sua vida, e a de muitos lá embaixo, dependem da sua habilidade de ignorar o tremor do frio, não há espaço aqui para membros trêmulos e imprecisos, de empurrar para um canto de sua mente o desconforto. Horas imóvel para se mesclar ao ambiente, horas imóvel para não errar o alvo. Você é preciso como as águias que descem do céu em busca de sua caça, não há desperdício. Cada bala ceifa uma vida, cada bala disparada é alguém que cai. Ainda assim, sua missão não foi cumprida. Sua tarefa é caçar os superiores em campo, mas enquanto você não localiza o cara certo, se diverte com os errados. 30


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O pensamento borbulha em sua mente e você o empurra para um canto qualquer. Não está certo, e você sabe, não é assim que uma guerra deve ser encarada. Você não se lembrará dos rostos, você não os vê por mais tempo que o necessário. Afinal, não quer o semblante deles gravados em sua memória e flutuando em seus pesadelos. Por isso, quase todos os seus alvos são sem rosto, você objetiva a missão, não são pessoas, são somente alvos, passos para chegar mais perto de um objetivo. Você os elimina para chegar à paz, para fazer o bem maior. É tão irônico, que mesmo ali com balas e água chovendo sobre os homens de maneira similar, que você sorri. Talvez você passe mal mais tarde, quem sabe? Mais um caído. O tranco da arma empurra seu ombro, mas você já aprendeu a ignorar isso também. A certeza mesmo serão os membros doloridos. Pescoço, braços, tronco, tudo estará em fogo por permanecer estático por tanto tempo. As câimbras serão as únicas lembranças boas que você guardará deste dia, foi assim com os outros, será com este também. Soldado avançando, é apenas um recruta, mas você o derruba mesmo assim. O segredo é esperar, o comandante inimigo não poderá ficar entrincheirado pelo resto da batalha. Paciência é a matéria-prima dos atirados de elite, eles são feitos da espera pelo momento perfeito, daquele em que o projétil sai da arma e encontra o alvo sem nada obstruindo seu caminho, acertando em cheio. A precisão é tão bela às vezes que é impossível não admirá-la e suspirar em satisfação, como se os disparos fossem obras expostas em um museu. 31


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Mas você não é um artista. É claro que seu superior não vê dessa forma, para ele você é como Leonardo Da Vinci, sua arma é seu pincel, os corpos caídos suas obras de arte, e a morte sua musa inspiradora. Mente viajando, não é nada bom. Você inspira e fecha os olhos por um instante forçando o cérebro distraído e cansado a se concentrar na tarefa à frente. Quando abre os olhos seu foco voltou e por um instante você vê um brilho em um prédio. Algo suave e que imediatamente desaparece, como um vagalume. Ah, alguém se mexeu, não é lá muito bom, você pensa. Você ajeita a mira e inclina a arma. Logo ali. Deitado sobre o estômago, braços apoiados nos cotovelos, está um caçador, não tão bom quanto você, mas ainda assim abatendo seus companheiros. Mesmo que seu trabalho seja solitário, sozinho ali em cima sem nada e nem ninguém para distraí -lo, a visão do atirador o irrita. Ele foi descuidado ao escolher seu posicionamento. Novato. Não há espaço para ele entre a elite, por isso você atira. Ele nunca soube de onde o tiro veio. Você observa ao redor o mais atentamente possível através da sua mira, mas não vê outros atiradores. Se houverem mais eles são caçadores bons e estão escondidos como manda o protocolo, assim como os seus companheiros. Você volta seus olhos então para a planície lá embaixo. Trincheiras correndo como cicatrizes na terra, soldados se escondendo, você vê as cabeças se erguendo e disparando, mas nenhuma delas é a que procura. 32


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Mas lá está, escondido em um canto do quadro dantesco, o comandante inimigo disparando tiros quase tão precisos quanto os seus. Você inspira fundo e fecha os olhos se concentrando, horas deitado na chuva ouvindo e vendo pessoas morrerem aguardando este momento. Não há espaço para erros. Sua cabeça se inclina levemente e você volta a olhar através da mira telescópica, o comandante continua disparando, e parece ignorar que os seus inimigos possuem atiradores de elite. Seu indicador toca o gatilho e você espera por aquele momento perfeito, aquele pelo qual lhe chamam de artista. Ele está logo ali, poucos segundos à frente. Seu coração dispara bombeando uma nova carga de adrenalina no seu sistema. O tempo desacelera e parece se esticar em um segundo infinito, até que não aguenta mais e se rompe. O dedo puxa o gatilho, a bala dispara através do cano da arma, o ombro é empurrado levemente para trás com o impacto e a força do tiro. Você solta a respiração que estava presa no mesmo instante em que dispara e através da mira acompanha a bala acertar seu alvo com a perfeição dos mestres. O tiro acerta no centro da testa e o comandante inclina sua cabeça para trás, os olhos arregalados e a boca aberta em um grito que nunca chegou a sair. Ele cai sobre seus joelhos antes de desmoronar no chão, o sangue logo se perde na lama e na água da chuva. Você respira aliviado e ouve os inimigos gritarem e o caos se instalar nas linhas agora que estão sem seu comandante. 33


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Seu objetivo primário foi alcançado e agora você está livre para, segundo seu superior, gastar toda a sua munição. “Atire à vontade”, ele lhe disse colocando uma mão em seu ombro. Você também é um soldado e está cumprindo ordens. Mais duas dúzias de balas e sua arte estará acabada. A chuva continua caindo e mesmo que isto dificulte sua visão, você continua caçando os soldados lá embaixo como se fossem patos selvagens. Você é um caçador e hoje eles são a caça.

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Extremamente Próximo Fabio Baptista 5

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s olhos azuis de Tobey Bale percorreram rapidamente as ruínas daquele vilarejo esquecido em algum lugar a um quilômetro dali no meio do deserto. Nada de novo, apenas pedras e areia. Era só o que havia, dali até onde a vista podia alcançar — pedras e areia. E calor. Insuportável calor. Com a manga do uniforme, Tobey secou o suor que se acumulava em suas espessas sobrancelhas e voltou a atenção para as piadas e casos de veracidade no mínimo duvidável, que seus companheiros de pelotão contavam durante a marcha. Faltava pouco para cumprir seu dever e voltar para casa, para os gordos e carinhosos braços de Samantha Bale. Menos de um ano. Mas um estampido ecoou pelo deserto, um projétil atravessou capacete e crânio, derrubou Tobey e transformou a areia sob sua cabeça em um lodaçal vermelho 5 O autor nasceu e cresceu em São Paulo, cidade que ama e odeia (conforme o trânsito e o número de pessoas que resolvem ir aos mesmos lugares na mesma hora). Sempre gostou de ler e sonhava ser roteirista de HQs, mas em algum lugar do caminho acabou tornando-se analista de sistemas. Escreve pelo simples prazer de escrever e ser lido (ele nutre a esperança que esse segundo item acontecerá algum dia). Detesta falar sobre si em terceira pessoa e esforça-se bastante para produzir textos com qualidade acima do medíocre. Ainda não conseguiu, mas continua tentando. Contato (fabiobaptista.writer@gmail.com). 35


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e quente. Logo Samantha Bale receberá a visita de dois oficiais, dizendo com palavras solenes e formais que ela nunca mais poderá abraçar o filho com seus braços gordos. E seus olhos azuis encher-se-ão de lágrimas. Gritos de alerta começaram a ser emitidos freneticamente, e os soldados que há cinco segundos contavam piadas e lorotas agora buscavam desesperados por proteção. Sabiam que o rifle inimigo passava aleatoriamente por suas cabeças e qualquer um poderia ser o próximo a ter os miolos estourados. Não era nada pessoal, o atirador não odiava um deles particularmente, não odiava Tobey Bale mais do que os outros. Era tudo uma questão de sorte e azar. E naquele momento, uma parede alta parecia ser o melhor amuleto que se poderia desejar. Mas dependendo do estado de conservação dos tijolos, a cobertura seria de pouca valia. Robert Robinson descobriu isso da pior forma, quando um segundo tiro foi disparado pelo inimigo escondido em algum lugar a um quilômetro dali. Oito centímetros de chumbo viajaram a oitocentos e cinquenta metros por segundo e perfuraram com facilidade a parede e o pulmão de Rob. O belo jovem que gostava de contar histórias engraçadas caiu estrebuchando e cuspindo sangue. Logo o pequeno Richard Robinson descobriria que o irmão não iria cumprir a promessa de voltar para casa são e salvo para lhe ensinar a jogar basquete. Um único atirador bem posicionado ameaçava um pelotão inteiro do exército mais bem equipado do mundo. De longe ele procurava. De longe ele os observava através da luneta, ansioso por derrubar mais sangue infiel na areia 36


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quente do deserto. Mas, quando você olha o abismo, o abismo também te olha. Willian Armstrong vasculhou o horizonte com seu binóculo. Apenas pedras e areia. Ele sabia que em algum lugar daquela vastidão desolada estava entocado um inimigo astuto, que não venceria a guerra sozinho, mas certamente deixaria mais mães sem abraçar os filhos e faria mais promessas serem quebradas até o final daquele dia. Precisava localizá-lo, mas tudo o que via eram aquelas malditas pedras e o interminável oceano de areia, que se mostrava distorcido sob o sol escaldante do início de tarde. Um terceiro disparo foi feito e menos de dois segundos depois os ligamentos do joelho direito do cabo James Dirnt rompiam-se para sempre, enquanto um pequeno feixe de fumaça revelava-se às lentes de Willy. Ele sabia onde apontar e agora precisava agir rápido, para ver com a luneta do rifle o mesmo que acabara de ver com o binóculo. Seu parceiro não estava mais a seu lado, não desde a última batalha, e agora cabia a Willian Armstrong fazer sozinho o trabalho de dois. E ele fez. Com o dedo no gatilho, viu seu inimigo preparando outro disparo. Seria aquele homem um terrorista? A maioria ali via dessa forma qualquer um que usasse turbante, mas Willy não acreditava que fosse bem assim. Pensava se aquele não podia ser apenas um homem honrado tentando proteger seu país contra forças invasoras. Ou um jovem que cresceu ouvindo histórias sobre um império maligno e agora usava seu talento com o rifle para abater os demônios. Não importava. No fundo da sua alma, Willian Armstrong sabia que não im37


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portava. Naquele momento, o homem de barba e turbante em sua mira era apenas uma ameaça, que deveria ser eliminada. Puxou o gatilho e acompanhou o rastro deixado pelo projétil ao rasgar o ar, em sua rápida trajetória do cano da Barrett até a testa do oponente. No acampamento, Willy foi recebido como o herói do dia, mas não se sentia assim. Ao contrário da maioria de seus companheiros, não sentia prazer em matar. Não gostava de se esconder atrás da desculpa “estou apenas cumprindo ordens”, não gostava de apertar o gatilho. Apesar da impessoalidade propiciada pela distância, um assassinato ainda era um assassinato. Parecia bem diferente de cravar uma espada no coração de alguém em combate corpo a corpo, mas era a mesma coisa. Willian sabia disso e não conseguiu dormir direito naquela noite fria e estrelada. Nunca conseguiu, desde a primeira morte que viu através da luneta. Na manhã seguinte, foi chamado pelo coronel. — Você fez um bom trabalho ontem, filho. Meus parabéns. — Fiz o que precisava ser feito, senhor. E infelizmente demorei um pouco demais. — Você se refere ao Bale e ao Robinson... — E ao cabo James Dirnt também, senhor. Provavelmente perderá a perna. — Ora filho, não encare dessa maneira. Pense que se não fosse você, aquele maldito currador de cabras teria nos causado ainda mais baixas. Esse tipo de emboscada... Bom, você sabe melhor do que ninguém, é o tipo de coisa que não se pode evitar. 38


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— E acredito que o senhor tenha me chamado aqui por causa de uma coisa que está no outro grupo, das que podem ser evitadas. — Deus do céu, soldado. Não é que você é um filho da mãe esperto pra diabo? Temos uma missão, de extrema importância estratégica e precisamos justamente de um filho da mãe esperto pra diabo que saiba olhar no binóculo. Você preenche todos os requisitos. Venha até aqui, dê uma olhada nesse mapa. Recebemos a informação que um dos líderes da milícia sairá desse vilarejo amanhã, disfarçado de pastor. Quero que você e o atirador fiquem de campana nessa torre e cravem uma bala na cabeça do desgraçado. Simples. — Sim, simples. Mas pelo mapa, calculo que sejam quase dois quilômetros da torre ao ponto de travessia. É um tiro bem difícil de acertar... Quem será o atirador? — Billy Kincaid... Um calafrio percorreu a espinha de Willian Armstrong enquanto o coronel pronunciava aquele nome. Billy era uma lenda, para o bem e para o mal. Acertava disparos considerados impossíveis, era frio como uma máquina, diziam que podia passar dias imóvel à espera do alvo. Diziam também que alguns de seus parceiros sofreram ataques acidentais de “fogo amigo” e voltaram para casa. Dois com o rosto deformado, um na cadeira de rodas e outro no caixão. Deus sabe o destino do último, que deixou vazia a vaga que Willian teria de preencher. Atirador e observador foram apresentados no veículo que os conduziu até o ponto mais próximo possível da torre. 39


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Willian estendeu a mão e disse “será um prazer trabalhar com você, Billy”, mas o soldado de traços fortes e dois metros e dez de altura o ignorou. Silêncio o resto do caminho. Desceram do jipe e seguiram por doze quilômetros a pé. Incomodado, Willy tentou puxar conversa novamente: — Sabe o que eu mais detesto nesse deserto? A areia. Ela está em todo canto, literalmente. Detesto esse maldito clima também, esse sol de rachar de dia e aquele gelo à noite. Mas o calor não entra nas minhas botas, nem na minha cueca. O frio não fica raspando na minha virilha nem na minha bunda enquanto ando. E você, Billy? O que você mais detesta nesse lugar miserável? — Soldados tagarelas... Seguiram quietos até a torre e assim permaneceram pelo resto do dia e durante toda a noite. Pela manhã, posicionaram-se e aguardaram. Billy deitou-se na posição de tiro e permaneceu imóvel como um lagarto. Willian, com o binóculo fixo no horizonte, movia-se evitando o formigamento das pernas e braços. Aguardaram e aguardaram, exercitando a maior virtude de um atirador — a paciência. Até que quase no final da tarde, como que pressentindo a aproximação da vítima, Billy Kincaid falou, com a voz tão calma e fria quanto seu semblante: — Só teremos uma chance. Portanto, não hesite. Aconteça o que acontecer, só me passe as informações do disparo. Não fale mais nada. Logo as potentes lentes de Willian Armstrong avistaram um rebanho de cabras ao longe. O pastor que as conduzia 40


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parecia pequeno demais. Não podia ser, algo estava errado. Mas o alvo foi se aproximando e Willian constatou que era. E se desesperou. — Billy, tem alguma coisa errada. Aquele não pode ser o nosso alvo. É só... É só uma criança. — O que nós conversamos sobre hesitação, soldado? — Deus do céu, homem. Será que você não vê que nos passaram informação errada? Como uma criança de doze anos pode ser um dos líderes da milícia? Como num bote de crocodilo, Billy agarrou o pescoço de Willian e apertou, enquanto falava sem alterar o tom de voz: — Nosso alvo está indo embora. Eu não quero saber se é uma criança, se é o papa, se é a minha ou a sua mãe que está ali. Eu só quero que você cumpra suas ordens e me dê as informações do disparo. Vou matar alguém hoje. Ele, ou você. Então soldado, o que vai ser? Willian Armstrong focalizou seu binóculo no alvo, passou as coordenadas, a velocidade e a direção do vento para Billy Kincaid. Então oito centímetros de chumbo deixaram um rastro de vapor enquanto rasgavam o ar quente em sua trajetória do cano da Barrett até o olho direito do menino que conduzia cabras pelo deserto. Billy guardou a arma e avisou a base que a missão estava cumprida, com uma tranquilidade que só os psicopatas podem ter. Willian tentava se enganar, dizendo a si mesmo que passar as informações não era o mesmo que puxar o gatilho. Mas no fundo ele sabia que era a mesma coisa. 41


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Billy Kincaid seguiu matando quem ordenassem que ele matasse, com precisão e frieza robóticas. Comportamento que lhe rendeu o título de herói de guerra. Willian Armstrong não conseguiu dormir direito naquela noite. Nem em nenhuma outra. Concluiu que nunca mais conseguiria ser o mesmo, então pegou sua arma e fez um disparo. Dessa vez, não em um alvo distante como sempre fizera, mas um bem próximo. Extremamente próximo.

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Lyudmila J. R. R. Santos 6

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ez de outubro de mil novecentos e setenta e quatro — numa floresta da Ucrânia. Era sempre inverno. E aquele era o Cervo perfeito. Próximo ao leito do rio o belo animal bebericava a água quase inteiramente congelada. A oitocentos e cinquenta metros de distância havia um arbusto, tal como ao longo de uma linha de quilômetros próximos às margens do rio. Este arbusto estava coberto de neve, mas quem olhasse atentamente talvez visse algo a mais. Havia algo ali. O tiro saiu exatamente como deveria, com o deslocamento do vento minuciosamente calculado, a bala seguiu o trajeto que lhe era esperado. O som do tiro aos ouvidos do Cervo só chegou depois da bala. Sem medo, sem surpresa. A carne seria de inigualável qualidade. 6 J. R. R. Santos (João Raphael Ramos dos Santos) nasceu no Rio de Janeiro em 1990, formado em Produção Audiovisual hoje estuda Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, amante de cinema e literatura começou a escrever influenciado por J. R. R. Tolkien (com quem tem a honra de compartilhar parte do pseudônimo) aos 11 anos de idade. Hoje, aos 22 anos trabalha na Fundação Roberto Marinho e teve seu primeiro livro disponibilizado gratuitamente pela internet no festival da Flupp Pensa em 2012. Contato (jrrsantos2@gmail.com). 43


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O menino escondido no arbusto não comemorou o abate, nem a senhora que se encontrava ao seu lado. Lentamente Lyudmila abaixou o binóculo, estranhamente mais aperfeiçoado que os de sua época, e internamente ela se orgulhava de seu neto. O pequeno Vladmyr seria um atirador tão exímio quanto ela fora. O som do disparo não tirou apenas a vida do Cervo, tirou Lyudmila do lugar, deslocou a velha senhora pouco mais de trinta anos no tempo, para trás, quando ela era tão jovial e veloz quanto o próprio animal agora morto. Era junho de mil novecentos e quarenta e um. A jovem Lyudmila, então com vinte e quatro anos ouvia os primeiros sons do bombardeio. Tal como o pequeno deslocamento de ar provocado pelo tiro do pequeno Vladmyr, o chão e o teto da sala de aula na Universidade de Kiev tremeu com o deslocamento de ar, muito mais ampliado, provocado pelo distante som das bombas alemãs caindo em solo Soviético. Nem ela e nem nenhum de seus colegas da turma de história, desesperados pelos cacos de vidro das janelas quebradas, sabiam, mas estava dado o primeiro passo da Operação Barbarossa, os nazistas invadiam a Gloriosa União Soviética. Memórias. Ela sempre precisava ficar se lembrando disso. A cada vez que ouvia um choro de criança, a cada vez que ouvia o sinal da chaleira avisando que a água estava fervendo, a cada vez que o inverno chegava, as lembranças teimavam em retornar. 44


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— Como é, vovó? — perguntou Vladmyr, seu neto, saindo da cobertura do arbusto, recarregando o rifle e cortando ao meio as memórias da avó. — Como é o quê, meu querido? — Lyudmila também deixara sua cobertura natural, o arbusto de onde haviam sido capazes de identificar e abater o alvo. — Matar um homem, como é matar um inimigo, vovó? Aquela pergunta tirou novamente Lyudmila do seu eixo, num instante ela estava de volta. — Gelado — respondeu, antes de ser tragada por suas lembranças. — Muito gelado — foi, a resposta que ela recebeu, de Dmitry, seu observador, trinta e seis anos antes, em fevereiro de mil novecentos e quarenta e dois. Estavam nas ruínas de uma fábrica em Belyayevka, atrás das linhas alemãs, que avançavam a cada dia mais, obrigando a retirada da vigésima quinta Divisão de Infantaria do Exército Vermelho para Odessa, ela e mais alguns atiradores de elite haviam ficado para trás, causando problemas às linhas de suprimento nazistas. Mas Lyudmila e Dmitry tinham uma missão. Próximo, àquela antiga fábrica têxtil, iriam se encontrar dois dos mais importantes comandantes nazistas da Operação Barbarossa, lembrava-se de seus codinomes como Melro e Coruja apenas, seus nomes verdadeiros estavam registrados em seu diário de guerra, que talvez se transformasse num livro futuramente, pelas mãos de seu neto, quem sabe? Hoje era ele o maior entusiasta de seu passado de guerra. 45


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— Lá estão eles — sussurrou Dmitry, estavam parados ali fazia quase vinte e seis horas. Sua ração ainda duraria mais três dias, com o racionamento correto, mas seus cantis estavam em situação crítica. Era a primeira missão dela como Sniper e fora a mais difícil de todas, estava muito além da estafa, mas não podia errar, ali estavam seus alvos, um já havia chegado e o outro se aproximava num carro oficial. Num beco próximo, quatro soldados se divertiam de maneira sádica com uma garota ruiva, ela já estava arruinada há horas e eles agora se revezavam para bater nela, não matá-los antes fora seu maior desafio. Havia tido sucesso em impedir Dmitry de descer empunhando apenas uma baioneta e uma pistola com nove balas, eles iam precisar delas para abrir caminho até o ponto de encontro depois que a missão fosse concluída. Agora os dois estavam ali, Melro esperara empertigado enquanto seus homens estupravam e espancavam àquela menina inocente, com naturalidade tal que pareciam estar na fila da padaria, ao lado dos vizinhos, um olhar completamente sádico, doentio. O carro parou e Coruja desceu, Melro se apressou em tirar o quepe e bater continência, ao que Coruja respondeu, depois apertaram-se as mãos e se abraçaram como velhos amigos. — Como está o vento? — perguntou Lyudmila para seu companheiro. — Nove ponto sete a norte, velocidade média a nosso favor — respondeu ele, sem tirar os olhos do binóculos. 46


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— Só preciso de um tiro — ela disse, sem tirar o olho direito da mira P.E. 4-Power de seu rifle Mosin Nagent. Ela tinha cinco balas. — Só precisei de um tiro, Vovó — falou Vladmyr, a criança, para Lyudmila, de volta ao presente. Será que um dia seu neto saberia o tamanho de sua importância para a sua nação? Será que se lembraria e prestaria homenagens aos heróis mortos em batalha pela Grande Mãe? Duas mil mulheres se alistaram naquele ano distante, de todas, somente quinhentas voltaram para as suas casas. A Guerra não fora só de Churchill, Roosevelt ou de Stalin, fora das mulheres também, elas lutaram tantas quanto ou até mais batalhas que os homens, elas foram o braço que provia o carinho e as armas aos homens em guerra, e quando eles não voltavam, elas eram o sustento das crianças nos lares, mães sem filhos, esposas sem maridos, filhas sem pai e guerreiras ferozes, em toda Europa as mulheres eram inimigos tão temidos quanto os homens pelos nazistas em campo de batalha e quando a guerra acabou, elas levantaram pedra por pedra para reconstruir seus lares, seus países. A guerra era ruim para todos, mas cada um desempenhava seu papel. — Muito bem Vladmyr — disse ela a seu neto. — Agora você sabe o que devemos fazer, não sabe? — Tirar a pele, vovó. — Eu vou tirar as peles deles e pendurar numa parede no Kremlin — falou Dmitry, naquele passado sempre presente em sua mente. 47


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Era agora, a hora de tirar a vida dos responsáveis por trazer a guerra até o solo de sua pátria. Naquele momento, Lyudmila queimava, seus dedos suavam, sua mão tremia de leve, mas aquilo não podia acontecer. Não na hora do tiro. — É agora — falou Dmitry. O Coruja estava exatamente na frente de Melro, era o momento perfeito, tinha de ser! E naquele momento Lyudmila se lembrou da risada do responsável pelo alistamento de sua área. O homem sorriu maliciosamente para ela, na fila. Lyudmila era uma bela jovem, mas o homem gargalhou em sua cara quando falou onde queria se alistar. — Infantaria — disse ela. — Quero usar um rifle. — Isso é algum tipo de brincadeira? — perguntou o homem, em tom de escárnio, todos no salão a lhe ouvir. — Temos vaga de sobra na enfermaria para mulheres como você. Nossas bravas servidoras da Nação não são destinadas aos campos de batalha. Lyudmila então, com um largo gesto, também para que todos no salão pudessem ver, retirou da bolsa seu certificado de tiro. — Esta brava servidora da Nação será muito mais útil nos campos de batalha que trancada nas enfermarias tratando feridos. Com quatorze anos, época em que seus pais se mudaram para a capital, após venderem sua fazenda na vila ucraniana Belaya Tserkov, Lyudmila entrou num clube de tiro e ao longo de dez anos havia se tornado uma atiradora tão 48


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boa quanto qualquer um dos rapazes de sua época, Lyudmila conseguira um emprego num depósito de armas e munições e então, dividia seu tempo entre a faculdade e como instrutora de um curso de tiro. Lyudmila Pavlichenko já era uma sniper e logo estava na vigésima quinta Divisão de Infantaria. Enfrentando o maior desafio de sua carreira. Naquele momento a coisa que Lyudmila mais se intrigava ao lembrar era algo que passara a chamar “vazio de sniper”. Com um leve fechar de pálpebras a atiradora de elite se desligou do mundo por alguns instantes, não havia nenhuma menina em seu breve e último suspiro, não havia passado, presente ou futuro, nem Dmitry ao seu lado, nem frio, nem vento. Ela não tinha corpo, mas era tudo ao mesmo tempo, ela era a bala se preparando para deixar o cano do rifle, ela era o ar, pronto para abraçar e conduzir a bala ao seu destino, sua arma era seu braço, sua vida era aquele tiro. Por muitos anos a atiradora acreditara que o “vazio de sniper” era a mais próxima manifestação humana com o divino. E ela atirou. BANG! A bala voou, bailou no ar como se sua curta vida fosse valer a pena, como se pudesse ser aproveitada em toda sua plenitude. Aquele era o tiro perfeito. Sem aviso os dois comandantes alemães desabaram juntos, uma única bala atravessara seus crânios, espalhando massa encefálica ao longo da parede da fábrica, pedaços de cérebro gravados como um mau agouro: vocês 49


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vão perder. Era o recado inteligível deixado por Lyudmila naquela noite. Lyudmila Mikhlailovna Pavlichenko se tornou a maior mulher sniper que já existiu. Seu número confirmado de mortes durante a Segunda Guerra foi de trezentos e nove, entre eles trinta e seis snipers inimigos, um deles teve seu diário de batalha encontrado por ela, ele tinha matado mais de quinhentos soldados soviéticos. Lyudmila foi, a primeira cidadã soviética a ser recebida na casa branca, pelo então presidente americano Roosevelt. Sua vida por seu país fora motivo de orgulho. — O que foi vovó? — perguntou o jovem Vladmyr. Sua avó tinha um aspecto estranho. — Eu tive uma boa vida. — É claro que teve vovó. Lyudmila não esperava encontrar o “vazio do sniper” naquele momento, nunca mais o fizera depois da guerra. Mas ali estava ela. Seu coração batendo rápido como durante um tiro perfeito. Lyudmila levou a mão ao peito, já não ouvia seu neto gritando seu nome, pedindo ajuda. Era a sua hora. Lyudmila Mikhlailovna Pavlichenko morreu naquele dez de outubro de mil novecentos e setenta e quatro e hoje está enterrada no Cemitério Novodevichiye em Moscou, seus feitos jamais foram esquecidos.

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“Na Calmaria Do Olho Que Vê” Cesar Bravo 7

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uem sou eu? Parceiro, eu teria um monte de jeito de explicar isso, mas simplificando, eu diria que sou o cara que troca o pneu do seu carro, ou que fica juntando saliva quando sua mulher passa tendo a certeza de que nunca vai ter uma tão cheirosa para chamar de sua. Posso ser o cara que arruma seu computador, que tal? Ou o cara que cuida da portaria do seu prédio. Tudo o que um cara como você precisa saber sobre mim é que: Eu tenho uma arma. Uma das boas, tecnologia de ponta, silenciador, lubrificada e com algumas personalizações que meu amigo Caveira — claro que o nome dele não é esse — fez para mim. Caveira também tem suas armas, só que escolheu o lado certo 7 Cesar Bravo é um escritor nascido em Monte Alto em 1977 que já fez de tudo um pouco na vida. De balcões de drogaria (sua formação acadêmica é farmacêutico) a proprietário de uma firma de prestação de serviços em construção civil. Dedicou-se também a escrever músicas até descobrir que seu real interesse eram palavras e não melodias. Atualmente reside em Taubaté/SP e dedica-se profissionalmente somente a escrever. Contato com o autor (cesarbravoescritor@gmail.com). 51


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para jogar (ainda que ganhe menos que eu). Mesmo assim ele me ajuda — uma coisa boa nesse país de merda é isso, molhando a mão certa você sempre tem ajuda. Como eu disse tenho uma arma (uma dúzia, corrigindo), mas outra coisa que você precisa saber sobre armas, é que porcaria de arma nenhuma faz seu trabalho direito sem um dedo afiado no gatilho, o que mais vale em minha arma, meu irmão, é o garotão aqui. Os primeiros tiros, dei com o Caveira. Coisa de moleque. Vivíamos em uma cidade pequena e o Caveira por ser filho de milico era o único moleque da cidade que tinha uma espingarda de pressão. Eu fui logo ficando chegado dele. No começo foi por interesse; se é que esse lance existe entre dois garotos que sofriam abusos dos pais. Nisso eu levava a pior porque meu pai quando batia, batia para matar. Graças a minha mãe fiquei vivo até os quinze quando saí de casa. Coincidentemente o Caveira saiu da casa dele um ano depois. Eu fui me criando na bandidagem e ele foi trocando de farda. Hoje tenho trinta e poucos. Ele também. Tentei sair do crime uma vez, tinha vinte e dois anos. Minha ficha tinha apenas posse de droga e assalto à mão armada. Naquela época eu era um cara bonzinho que dormia mijando de medo de Deus. Hoje acho que ele tem medo de mim... Sexta-feira, oito de março, dezenove horas. Estou fora de casa desde as quatro da manhã. Se você quer assistir um show precisa chegar cedo, e eu preciso do melhor lugar na arquibancada. 52


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Cheguei ao apartamento que eu sabia estar vazio, arrombei a porta sem muita dificuldade e montei meu banquinho. A campana é a parte que eu não gosto no meu negócio, principalmente quando o lance é pessoal como esse. Eu fiz muito serviço pago desde que aprendi a acertar pinta em boca de madame sem desperdiçar munição, mas resolvi fazer algo por mim antes de morrer. Eu tenho uma doença terminal, sabe? Uma das brabas que faz o câncer parecer um carinho de Deus. Minha pele fica toda derretida na maior parte do ano; eu não posso tomar sol e às vezes meu rosto queima tanto que eu tenho vontade de arrancar minha própria pele. Os médicos dizem que é algum tipo de doença autoimune. Agora chegou aos ossos. Tomo mais um gole de café e aproveito a luneta para olhar a rua. É engraçado... Ter todo esse poder na mão. Se eu quiser matar um idiota qualquer eu mato. Vai dar no jornal e em dois dias algum atentado forjado americano vai jogar tudo no esquecimento. Eu já fiz isso quando estava aprendendo a manejar a Lolita. Chamo-a assim. Minha Sniper. Todas as minhas armas são femininas, eu gosto de mulher e nem ferrando passaria o dia inteiro segurando um Jorjão... Mas como eu dizia, anos atrás ficava nessa de matar alguns caras para aprender. Eu não queria entrar em detalhes, mas acho que posso confiar em você já que não me conhece. Eu gostava mesmo era de praticar com pirralhos. É... Molecada dessas de rua. Criança de rua e gato corre pra caralho, ainda mais se você atirar no chão e tentar pegar na corrida. Gastei bala e limpei a rua de uns quinze 53


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até ficar bom no disparo. Hoje acerto uma mosca no seu saco do outro lado da rua... Chega de papo. Aí vem ela. Claro que a safada é gostosa. Eu ainda a amo, tanto, que mesmo com um autocontrole quase absoluto meus dedos tremem um pouco. Não o suficiente para estragar o disparo, mas tremem. Ela me traiu quando soube da doença, com um chapa meu (não, não foi o Caveira, ele não faria isso). Foi foda, mas como aqui se faz aqui se paga, resolvi cobrar com juros. Eu não vou matá-la, vou só destruí-la. Como disse, atiro bem. Ela vem, caminha graciosa com seu vestido que cobre os joelhos, dá um troco para um bêbado qualquer, seu cabelo loiro balança numa lufada de vento quente. Ela sorri para o dia que ilumina seu rosto de boneca. Uma gota de suor escorre dentro do meu rosto mascarado e queima como ácido. Ela olha para o prédio como todo cadáver faz e sorri sem notar nada ameaçador. Mas ela sabe que eu estou aqui. Eles sempre sabem. Domingo, vinte e dois de março, oito horas. Devia parar de fazer isso tão cedo. Sou ruim de acordar de madrugada e o médico me proibiu de tomar café. Ás vezes acho que até existe um Deus e que o trabalho dele seja me foder. No diabo eu acredito. Mas hoje é um dia de regozijo diria minha mãe se não estivesse morta. Ela falava isso, como se regozijo fosse uma palavra sagrada como fé ou esperança. Regozijo para mim lembra algo como uma esporrada na cara. Uma gozada, cumshot... Aí vem a bola da vez. 54


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Feio e velho para caralho. Vem capengando e parece bêbado demais para conseguir dormir. Pela luneta tudo fica amplificado, emoções, sensações, amor, ódio e fúria. Desse último eu tenho um container. Decidi matar esse cidadão porque a vida já arrebentou com tudo que o tornava homem. Ele nem mete mais — perdeu as duas bolas e um pedaço do pau com um problema que começou na próstata. Fiquei feliz quando soube e rezei um pouco para que Deus o deixasse para mim em vez de secá-lo como fez com a minha mãe. Falei que minha mãe era puta? Pois é... Era puta e era feia. O safado na mira era o cara que agenciava ela. Cabelos grisalhos, um sorriso de malandro, um braço cheio de risco verde de presídio e um andar cocho. E uma marca conhecida que parece um couro de porco do lado do olho esquerdo. Ele não olha para onde estou. Eu até gostaria disso, mas ele não olha. Resolvo brincar com ele, gastar umas balas. Quarta, três de abril, dez horas. Mal consigo respirar, preciso acabar com isso. Liguei ontem pro Caveira e pedi um favor. Ele está quase chegando, quase. Passa meia-hora de ansiedade e a porta me assusta. “E aí cara? Pra que o capuz?”, ele pergunta quando me vê. “Se eu tirar você se caga. Tô morrendo irmão”. “Merda...”. “Merda mesmo. Vai fazer o que eu pedi?”. 55


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“Promessa é dívida e você é o único amigo que eu tenho”. “Me dá um abraço”, peço. Ele me dá e eu saio, coloco meu fone de ouvidos onde só tem uma música (Solitude do Sabbath) e continuo escrevendo tudo num bloquinho de papel que roubei no médico. Foda-se ele. Deu sorte de continuar vivo. É estranho aqui embaixo. Dá pra sentir o olho de alguém na gente. O tempo passa devagar, e cada canto de passarinho faz eco. Olho para os fios de eletricidade da rua e quase ouço seu chiado, um roaming em Lá maior. Parece uma fera, um demônio voltaico querendo se alimentar. A eletricidade também vibra dentro de mim, sou pura estática e ressentimento. Por perto, pessoas brincam com seus celulares e porcarias japonesas montadas na China; estátuas sem importância. O que me toma é o suspiro do cara a me observar. Tento calcular quantos segundos ainda tenho e a atenção de cada passo dado é dividida com o esforço de segurar minha urina. Sinto que meu pênis está úmido com ela, depois não. Não consigo pensar direito com o tic-tac da morte. Acho que precisava passar por isso. No fundo sempre tive uma invejinha branca de como seria... Ser tão importante para alguém a ponto do infeliz te matar. Olho no relógio e são dez e quarenta. Menos de cinco minutos de vida, calculo. Meu rosto começou a coçar e eu resolvo tirar o capuz só para me divertir. Sou mais feio que o Jason atrás da máscara de hóquei. Uma criança me vê e chora, outra me pede para tirar a máscara de monstro. Eu 56


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agradeço, pois graças a eles não me arrependerei de cada moleque cagado que eu despachei para o paraíso. Eu sorrio e olho para cima. Deixo fluir; urina e merda escorrem por minhas pernas. A sombra da morte se estende sobre mim, caminho por um vale de leprosos ouvindo minha canção de ninar. Saber que a morte me alcançou é inebriante, é uma razão para um assassino como eu ter vivido. Eu servi a morte desde os meus vinte e poucos anos e como diria um cara que comeu todas: “Nem por você e nem por ninguém eu me desfaço dos meus planos...”. E eu não me desfiz. Pude quase ouvir o gatilho antes de contar os cacos espalhados do meu céreb... NOTA DO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO. SÃO PAULO — Três pessoas morreram vítimas de Snipers — arma usada pelas forças especiais — em Osasco, Região Metropolitana de São Paulo em menos de um mês. A Polícia trabalha com a hipótese de uma relação entre outras quarenta e cinco ocorrências. Na Sexta-feira, oito de março, dezenove horas e vinte e cinco minutos, no Jardim Conceição, em Osasco uma mulher ferida, foi encaminhada, segundo o primeiro DP de Osasco, ao PS Santo Antônio. Seu estado de saúde segundo porta voz do hospital ainda é grave sendo que sua coluna foi estraçalhada, a vítima nunca mais poderá andar com risco de ficar tetraplégica. 57


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Semanas depois do primeiro ataque, a PM foi chamada até Santa Maria, onde outra pessoa foi atingida próxima a um bar da região. O homem negro de sessenta e nove anos sofreu dois disparos que destruíram suas mãos, antes de um disparo, que o levou a óbito, na cabeça. O delegado Danilo Patrício, que fez o boletim de ocorrência, concordou em falar com nossa reportagem e esclareceu: “O assassino foi abatido e identificado como o matador de aluguel chamado pela mídia de Luneta. Suas duas últimas vítimas foram sua esposa e seu pai. Suas motivações não estão claras, mas segundo informações anônimas, que ainda são investigadas, Luneta estava doente há pelo menos dez anos com Lúpus Vulgar e Lúpus Carcinoma, descobrimos que desde então era patrono de uma escola para crianças especiais no interior do estado”. Sobre a morte do assassino o delegado Patrício disse: “O desgraçado morreu como suas vítimas, ainda não prendemos o responsável”.

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O Abutre Alexandre Rofer 8

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ra um dia particularmente quente. Uma única gota de suor escorregou pela testa brilhante do homem. Ele usava um boné preto, com a aba virada para trás e a proteção deixava-o mais desconfortável ainda, mas ele não podia se dar ao luxo de perder a concentração apenas para remover a cobertura da cabeça. Então, suava. Não que aquilo importasse para ele. Na verdade, o suor, o calor escaldante, a luz do sol incidindo direto em seus olhos como agulhas, o corpo dolorido pela imobilidade... Tudo fazia parte do trabalho e ser mais forte do que o incômodo era o que o motivava. Porque apesar de todas aquelas adversidades, o homem de boné encharcado de suor nunca errava. Sujeitos como ele estavam acostumados com excelência. Não se pode ser um franco-atirador se você não tem uma pontaria que beira a perfeição, portanto era difícil estabelecer parâmetros ou comparações entre profissionais de seu 8 Alexandre Rofer é servidor público do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e graduando em Direito. Apaixonado por literatura, começou a escrever ainda muito jovem, quando venceu festivais de poesias promovidos no interior do estado. Hoje, aos vinte e oito, sua aventura pela prosa se traduz em contos e um romance finalizado, intitulado “A Janela da Alma”, o qual anseia ver publicado em breve. Contato com o autor (alexandrerftj@ hotmail.com). 59


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ramo, mas mesmo então, se houvesse algum tipo de ranking, ele sabia que seu nome estaria no topo. Afinal, em vinte anos apertando o gatilho, ele nunca fracassara. Naquela manhã, todavia, o destino lhe pregaria uma peça. Estava no terraço de um prédio de quatro andares no subúrbio da metrópole, em uma segunda-feira especialmente escaldante. O corpo atlético apesar dos quarenta anos de idade estava estirado, sentindo a aspereza do cimento que pinicava seu peito apesar da camisa de algodão grosso. Segurava um poderoso rifle apoiado na borda do terraço. Era um Dragunov, fabricado em mil novecentos e setenta, herança de seu pai. É claro que com o dinheiro que tinha, podia comprar armas muito mais modernas, mas ele gostava do rifle russo. Apreciava a precisão antiquada, o acabamento em madeira, a robustez, a falta de dispositivos eletrônicos para facilitar o trabalho. Cuidava da arma com mais preocupação do que mantinha a própria saúde, de modo que o Dragunov funcionava muito bem. O atirador fora contratado por um poderoso empresário que pretendia eliminar a concorrência de forma, no mínimo, pouco ortodoxa: matando-a. E o homem, já acostumado com as estranhezas do caráter humano e as fronteiras elásticas da moral capitalista, não fazia perguntas. Também ele estava ali por dinheiro e se alguém fora capaz de saber quem ele era, entrar em contato e oferecer o seu preço, então o alvo, na verdade, não importava. E a bola da vez era um importante industriário que vivia cercado de seguranças armados, alguns dos quais o homem sabia serem policiais à paisana. 60


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Mas e daí? A quantidade de guarda-costas não faria diferença, nem quem eles eram. Se o alvo estivesse usando um colete à prova de balas, também de nada adiantaria. O impacto e a potência de um projétil calibre 7,62 de seu Dragunov explodiriam policial, colete e o que mais estivesse no caminho antes de arrancar a vida do industriário, rápido o bastante para ninguém saber o que diabo aconteceu até que o atirador já estivesse longe. Naquela manhã, de fato, o homem de boné virado para trás e rosto brilhando de suor no topo do pequeno prédio decidira assumir um risco aceitável. Sim, ele era capaz de enfiar uma bala em uma laranja a oitocentos metros de distância, mas, talvez para manter seu currículo imaculado, posicionara-se a apenas um quarteirão do alvo, de modo que não haveria possibilidade de erro. Como sempre, tinha tudo planejado. Ao contrário do que muitos pensam, um sniper não trabalha sozinho. Tirar uma vida é um negócio complexo, que vai muito além de medir a velocidade do vento e puxar um gatilho. Em se tratando de um matador de aluguel, necessita-se de um plano de ação e, não menos importante, de um plano de fuga. Desse modo, enquanto a ação já estava em andamento, a fuga aconteceria graças a um furgão negro parado num acostamento a vinte metros do prédio. O motorista era um velho amigo, que esperava pacientemente pelo comparsa, combatendo o tédio ao mascar um palito de dentes gasto e empapado de saliva. No topo do prédio, o vento finalmente amenizou e colaborou. Pela lente telescópica da luneta acoplada na parte 61


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superior do rifle, o franco-atirador foi capaz de focalizar o industriário. Não se deu ao trabalho de imaginar se o sujeito tinha família. Não se perguntou como seriam sua esposa e filhos. Todo mundo morre um dia. Uma bala na cabeça ou um enfarto, que diferença faz? Deslizou o dedo coberto pela luva de couro fino até o gatilho sensível e pressionou-o levemente, apenas para senti-lo. Bastava um empurrão de seu indicador e seria possível ver a cabeça do empresário explodir em mil pedaços através de sua lente. Dez homens armados protegiam o patrão enquanto ele saía de uma limusine escura na fachada de um prédio de escritórios e o sniper teve certeza, pela forma como se moviam e conversavam, de que os seguranças eram policiais. E foi exatamente um daqueles homens que, de forma inexplicável, percebeu quando a luz do sol escaldante refletiu no aro metálico da lente de seu Dragunov, lançando um clarão amarelado e ofuscante em direção ao comboio noventa metros distante. Imediatamente, o policial à paisana se jogou contra o corpo do patrão, esbarrando no industriário e tombando-o no chão. Mais seguranças cercaram o investidor, formando um círculo de sujeitos de terno que sacavam pistolas em torno do chefe, que logo foi conduzido novamente para dentro da limusine. Tudo aconteceu rápido demais. O franco-atirador cerrou os dentes após soltar um palavrão para a brisa amena daquela manhã, o olho direito ainda alinhado no vidro da lente, a 62


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arma pronta para disparar. Naqueles breves segundos, poderia ter disparado em um ou dois momentos, mas não tinha segurança de que o tiro seria certeiro, por isso preferiu não pressionar o gatilho. Lá em baixo, perigosamente não tão distantes, um grupo de policiais fazendo vezes de seguranças particulares entrava em um sedan com vidros escurecidos e seguia em disparada até o prédio onde, eles sabiam, havia um abutre espreitando seu empregador. — Merda! — Amaldiçoou o homem de boné no terraço mais uma vez, finalmente afastando o olho da lente. O plano havia ido por água a baixo. Não imaginava que pudessem percebê-lo, afinal estava em lugar elevado e a um quarteirão de distância, mas a experiência de um maldito policial estragara seu dia. Ou não. Sem se preocupar em desarmar o rifle e correr pelas escadarias rumo ao lado de fora do prédio, enfiou o olho na lente novamente e observou, ofegante. O sedan repleto de inimigos se aproximava a cem quilômetros por hora, enquanto a limusine que carregava seu alvo se afastava na mesma velocidade, seguindo rua acima. Em três segundos o veículo de luxo alcançaria uma esquina e então o homem de boné deixaria de ser o profissional perfeito. Teria fracassado, pela primeira vez. O tempo era seu adversário e este era ainda mais implacável do que os policiais à paisana que já estavam perto do prédio onde o matador de aluguel se refugiava. Ele precisava 63


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tomar uma decisão. A urgência em seu peito clamava para que abandonasse o rifle de seu pai onde estava e corresse para a saída. Haveria tempo de escapar, se ele saísse agora. Suor escorria por seu rosto enrugado de tensão e entrava em seus olhos. E o tempo era implacável. 3 Um bando de andorinhas passou rasante pelo terraço. Podia ouvir buzinas no trânsito da avenida. 2 Pneus rasgaram o asfalto lá em baixo e o atirador soube que seus algozes chegavam. Manteve o olho na lente. A limusine seguia apressada pela rua, a esquina a apenas alguns metros. Encaixou o dedo no gatilho e seu instinto lhe dizia que poderia acertar o empresário mesmo com o carro em movimento. 1 Vida. Alvo. Reputação. Suor. Sol. Seu amigo mascando o palito de dentes gasto. Furgão. Fuga. Vida. Vida. Um poderoso estrondo se fez ouvir, um som de explosão que se espalhou em todas as direções e, por um momento, pareceu que um trovão rasgava o céu. Os transeuntes lá em baixo olharam para o alto, instintivamente, à procura de alguma tempestade inesperada. A oitocentos metros do prédio, quando quase alcançava uma curva de esquina, uma limusine perdia a direção e a 64


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beleza ao ter o vidro traseiro estilhaçado e o interior luxuoso manchado de vermelho. O homem de boné correu até a porta arreganhada no terraço, que dava nas escadarias. Atravessou a abertura com um salto, seguindo pelos degraus de metal, esbaforido. Como um louco, cruzou os quatro andares da modesta construção e ganhou a rua. Podia ver o furgão negro que o levaria para longe dali. Já não usava o boné, mas carregava o fuzil desmontado em uma bolsa negra de viagens pendendo em uma das mãos. Estava a apenas alguns passos do veículo de fuga quando foi abordado por quatro homens vestindo terno e com armas em punho. Todos gritavam para que ele deixasse a bolsa no chão e se ajoelhasse, com as mãos na cabeça. O homem mordeu o lábio e obedeceu. Focalizou seu amigo, que o observava pelo vidro retrovisor lateral do furgão ao cuspir o palito de dentes pela janela aberta e arrancar com o utilitário calmamente, deixando-o só. Sentiu o asfalto quente sob seus joelhos ao desabar, o jeans molhado de suor incomodando a pele. Respirou fundo enquanto suas mãos eram puxadas para trás e aprisionadas por algemas. O plano tinha dado terrivelmente errado, mas mesmo assim o profissional sorriu. O serviço estava feito e não poderia ser diferente. A pontaria daquele homem era tão impecável quanto seu currículo. E ele ainda era o melhor entre os melhores.

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O Ovo De Nuremberga Marcos Aurélio Carvalho 9

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arta voltava do trabalho abatida. Vomitara tudo o que comera no almoço. Enquanto dirigia, lembrava-se da péssima impressão que o namorado lhe causara quando soube que ia ser pai. Um carro a seguia sem ser notado. Sentia-se angustiada por não ter ninguém para desabafar. Perto de casa, avistou a garota a qual dera uma carona na semana passada e resolveu parar. Um homem bem-vestido se aproximou e empurrou a moça para dentro do carro pela porta de trás. Apesar de estar armado, ele disse que só queria saber onde estava o relógio de bolso. Marta disse que o tinha penhorado, mas ele sabia que isso não chegou a acontecer e ameaçou torturá-la até arrancar-lhe a verdade. Ela, então, confessou que o tinha dado ao namorado. Seguiram para o edifício onde ela morava com a mãe. No apartamento, após desacordar as três mulheres com um simples aperto na nuca, 9 Marcos Aurélio Carvalho. Idade: 44 anos. Nasceu em: Salvador/BA, no dia 04 de janeiro de 1969. Reside atualmente em Aracaju/SE, onde trabalha como professor de Inglês da Rede Pública de Ensino. É casado e tem um filho de 16 anos. Infelizmente, não tem a escrita como profissão, mas aproveita-se disso para tê-la como um hobby, ao qual vem se dedicando desde os 30, em meio às dificuldades do dia a dia desse mundo capitalista. Contato com o autor (macas691@hotmail.com). 66


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ele revistou todos os cômodos antes de colher todas as informações necessárias sobre o tal namorado. Em seguida, amarrou-as na sala, prometendo que as soltaria tão logo resgatasse a memória roubada do seu bisavô e passou a noite assistindo ao jogo que reprisava no canal de esportes. Na manhã seguinte, foram para o aeroporto. Às dezesseis horas e quarenta minutos daquela tarde chuvosa de segunda-feira, Inácio desembarcou no aeroporto. Alugou um carro e foi para o hotel. O trânsito estava caótico. Pensou em ligar para a namorada enquanto andava cinquenta metros a cada cinco minutos, não devia ter viajado sem comunicá-la. Achou melhor conectar o Ipod ao som para relaxar e pensar no que iria lhe dizer. Visualizou uma bela imagem para a próxima edição, a Terra como uma ampulheta gigante, girando sem parar, com as pessoas dentro passando de um lado para o outro. Aos trinta e cinco anos, estava no auge da carreira. Noventa minutos depois, chegou ao destino. Identificou-se na portaria e acertou a hora com o relógio de parede, conforme as instruções que recebera na noite anterior, junto com um pendrive e um chip de celular. O recepcionista desejou-lhe boas-vindas e indicou o leitor biométrico. O indivíduo parecia com um lutador de jiu-jitsu que ele conhecia. M-14. Seja bem-vindo ao nosso hotel. Só basta colocar o cartão na fenda do elevador que ele te levará ao quarto. Falou o rapaz entregandolhe um cartão magnético. Ele conhecia aquelas orelhas deformadas e aqueles olhos azuis de algum lugar. Caminhou lentamente até o elevador sentindo a cabeça pesada. Algu67


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mas pessoas estavam sentadas no sofá do hall principal. O prédio era bem luxuoso, duas pilastras de trinta metros de altura, no meio do salão, lembravam as colunas romanas. Desceu do elevador já no quarto onde ficaria, largou a mochila no chão, tirou as botas de alpinista e o jeans, esvaziou os bolsos em cima do lençol branco, puxou o travesseiro para o meio da cama e deitou encolhido. Bem à sua frente, avistou o relógio antigo que ganhara da namorada. Se ela ainda não tinha ligado era porque estava magoada com a sua falta de sensibilidade. Sentiu um torpor estranho invadindo seu cérebro, ouviu um eco de vozes, um choro de criança, uma luz branca ofuscando sua visão. Até que adormeceu. Acordou com a claridade do dia e levou alguns segundos para lembrar que voara mil e novecentos quilômetros para entrevistar alguém muito misterioso, cujo nome seu chefe não podia revelar. O espelho do banheiro ocupava quase a parede toda. Há tempos aquele buxão foi tanquinho. Ao lavar o rosto, lembrou que pegara no sono sem ter ligado para a namorada. No celular havia vinte ligações perdidas dela e uma mensagem de um número desconhecido: (Coloque o chip no celular que está dentro do armário do banheiro...). Aquilo já estava passando dos limites. Vinha tentando falar com alguém da edição para saber qual o motivo de tanto protocolo, mas todos os números caíam na caixa postal, inclusive o da namorada. Tentou mais uma vez. Nada. Jogou o telefone na parede. Voltou ao banheiro, abriu a porta do armário, desencaixou a parte de trás do novo aparelho, colocou o chip no local indicado e... 68


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João fuçou a bolsa da garota enquanto ela se arrumava. Um dia há mais naquele inferno e ele atiraria na própria cabeça, aquela já era a terceira vagabunda cujas descrições se encaixavam perfeitamente, mas havia alguma coisa errada porque nenhuma tinha o Ovo. Muita coisa pode ter acontecido antes do velho morrer: Pronto, meu amor, já tô prontinha pra você fazer o que você disse que ia fazer comigo. Tudo bem, gata, mas antes eu preciso enviar um e-mail, pode ser? Eu quero que você use isso em mim, tá? Hum!? Tá, eu uso. O rapaz tinha pinta de galã de filme americano, do tipo que as mulheres sentem um orgasmo só em escutar o nome. Sua missão era, sem sobra de dúvidas, muito difícil de cumprir, não por falta de competência, mas por exigir habilidades que o torturavam bastante psicologicamente: Essas máquinas são todas suas? São. Posso pegar uma? Pode, mas com muito cuidado, viu? Você é fotógrafo ou policial? Nenhum dos dois. Então, pra quê tanta máquina? E essa arma aí? Ela segurou o pênis dele, ajoelhou-se à sua frente e começou a acariciá-lo com a língua. Cheeega! Pode parar por aí! Você é a terceira vagabunda que eu pego nessa semana interminável. Disse ele, dando uma cambalhota para trás da cadeira. Nossa, não faz isso que eu me apaixono! 69


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Eu tô falando sério, eu não gosto de mulher, porra. O quê?! Essa é boa, quando eu digo que esse mundo tá perdido, ninguém acredita. Quer dizer que você me catou naquele bar, pagou minha conta, depois pagou um jantar maravilhoso pra mim, me tocou daquele jeito no carro, me trouxe pra cá me prometendo gozar até morrer e agora tá me dizendo que é gay? Ah, corta essa, tá parecendo piada de gaúcho, tchê! Mas se isso for alguma jogada sua pra me deixar excitada, você conseguiu, cara, eu já tô toda molhada. Meio desnorteado, ele conectou o laptop à TV de plasma de cinquenta polegadas e a imagem congelada feita por uma câmera de segurança, de uma mulher num balcão do que aparentava ser um caixa de banco, surgiu na tela: Agora só faltam me dizer que Daniel Craig é “viado”... Ei, eu conheço essa mulher aí! Surpreso, João mudou totalmente de fisionomia, olhou bem nos olhos dela, deixando de lado o corpo nu, bronzeado, onde se via a verdadeira cor da pele marcada pela minúscula calcinha do biquíni: Conhece de onde? Ela é parenta sua? O que é que você tá fazendo? Você é da polícia mesmo, não é? De onde você conhece essa mulher? Me responda primeiro. O quê? Se você é da polícia. Já disse que não. Então, o que significa isso? E aquilo? Ela pegou as algemas e apontou as duas pistolas em cima do sofá. Se você não for da polícia é o quê, então? Um assaltante de banco? Um 70


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matador de aluguel? Um agente da CIA ou do FBI? É o quê, porra, hein? Eu trabalho por conta própria, digamos que sou um detetive particular. Pronto, agora me diga de onde você conhece essa mulher. Você jura que não vai me prender? Juro. Ela me deu uma carona, uma vez, quando eu tava numa roubada e eu dei a ela um relógio de bolso de ouro, que uma maluca me deu por eu ter colocado o nome dela num trabalho da faculdade. O que foi que ela fez? Nada. Você sabe onde ela mora? Acho que sei. Ela é o quê sua? Você não disse que não gosta de mulher? Huumm, tô vendo uma coisa crescendo aqui. Quero ver se você vai resistir a isso. Avançou sobre ele, derrubou-o no chão e sentou sobre seu membro rijo. João permanecera imóvel, olhando os seios de silicone balançando. Estava excitado, não por estar gostando, mas porque em breve a mataria, como fizera com as outras. Alguma coisa tinha que compensar aquele trabalho nojento... ... Discou o único número que havia registrado nos contatos, olhou o celular espatifado no chão: (Alô! Ouça com muita atenção as instruções que vou te dar, memorize-as como você memorizou todos os seus deveres-de-casa, porque se você esquecer algum mínimo detalhe, sua namorada, a mãe dela e a vagabunda que estão comigo, morrerão de um jeito muito trágico). Ouviu tudo, atentamente, sem perguntar nada e, por um momento, achou que estava sendo vítima de uma 71


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brincadeira de mau gosto, como as pegadinhas da televisão. A voz do celular era a mesma que falara com ele na noite anterior sobre os detalhes da tal entrevista. Retirou o chip intacto do aparelho espatifado e o colocou no outro para ver se conseguia fazer alguma ligação, mas o mesmo havia se desligado automaticamente. Ligou o tablet. Não havia conexões disponíveis. Olhou o relógio de bolso, todo de ouro maciço, abriu a tampa e viu um N gravado. Não fazia a menor ideia de quanto valia. Conectou o pendrive e assistiu ao vídeo com as imagens das três amarradas. Pareciam dopadas, mas sem ferimentos. A cinquenta metros do estacionamento, um carro de uma companhia telefônica estava estacionado em frente à lanchonete, enquanto seu motorista, um homem de mais ou menos quarenta anos, quase negro, jogava num mini Playstation cercado de adolescentes gritando: vai tio, atira nele, tio, mata ele, tio. Inácio deu a volta no quarteirão e parou na esquina. Achou melhor levar a mochila consigo. Caminhou até a vaga M-24, avistou o carro preto, respirou fundo e segurou firme o relógio na mão esquerda. Nunca sentira nada igual. João sinalizou para que ele não se aproximasse mais e lhe perguntou pelo relógio. Inácio exigiu ver, as mulheres, primeiro. Com uma pistola na mão, o outro ordenou que elas saíssem do carro. De repente, pedaços de miolos e sangue jorraram por todo lado. Todos ficaram sem entender o que tinha acontecido, pois não se ouviu nenhum estouro de arma de fogo. Logo, os gritos histéricos das mulheres atraíram os que estavam próximos ao local. O motorista da 72


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companhia telefônica abriu a porta da caminhonete calmamente, guardou o minigame no bolso do macacão, baixou o braço hidráulico, desencaixou a arma do gancho mecânico e a colocou dentro do estojo. Em seguida, foi ver o corpo estirado no chão com a cabeça espatifada pela bala que ele fabricara, com muito carinho, especialmente para causar aquele estrago. Restavam-lhe poucos segundos para pegar o relógio antes que a imprensa chegasse para registrar mais um espetáculo da vida real.

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O Terceiro Ângulo Bruna Leôncio 10

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ara Rodrigo, ser um atirador de elite sempre tivera muito mais a ver com as vidas salvas do que com aquelas ceifadas. E, em seus dez anos de experiência, não tivera motivos para pensar o contrário. Até aquele dia. Sempre que rastejava no chão para colocar alguém sob sua mira, seu pensamento não estava em quem sofreria o tiro. Rodrigo procurava se preocupar com o vento e com a distância, mas não com a pessoa que via ampliada através da luneta de seu rifle. Naquele dia, porém, tudo mudara. Se fosse um cara pessimista, ele diria que tudo dera errado. Mas Rodrigo preferia agir e se certificar de que o errado se transformaria em algo aceitável. E era isso que estava prestes a fazer. — Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Felipe, seu companheiro de equipe. — E você pergunta isso agora? 10 Bruna Leôncio tem 25 anos e nasceu em Barra do Piraí, no sul do estado do Rio de Janeiro. Apaixonada por palavras, desde 2009 mantém um blog de ficção no qual escreve sobre futebol – é vascaína orgulhosa –, música e finais quase sempre felizes. Graduada em Letras há três anos, é revisora de textos e leitora crítica. Contato (brunanl2@gmail.com). 74


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— Ainda dá tempo de abrir o jogo e dizer que você conhece... — Conhecer é um termo que menospreza nossa relação. — Aí está você, dando ainda mais munição para que eu conte tudo aos nossos superiores. — Mas você não vai contar. — Não, não vou — Felipe suspirou e se posicionou ao lado do amigo. — Você sabe que eu sou o cara certo para esse trabalho. — Provavelmente vamos ter que lidar com muita papelada quando tudo isso terminar. Talvez até um processo ou... — Eu estou pronto para o que vier. Você também precisa estar se vai me ajudar nisso. — Eu estou com você. — Bom, porque vou matá-lo e não vou perder sequer uma noite de sono por isso. Calmo, Rodrigo concentrou-se em focalizar a janela do apartamento em que o amor de sua vida estava sendo mantida refém. Pelo seu melhor amigo. Dentro do apartamento, Manuela tentava manter a calma. Mas isso não era algo fácil de atingir, dado que, há poucos minutos, seus dedos haviam estado sobre as teclas do telefone agora escondido debaixo das almofadas do sofá. Em sua mente, Jennifer, sua amiga e vizinha, atendera ao telefone, percebera algo de muito errado na conversa abafada e imediatamente chamara a polícia. Ou isso ela esperava, pois seu tempo estava se esgotando. A cada segundo que passava, Manuela percebia que Miguel ficava mais e mais agitado. A princípio, pensara que ele 75


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estivera sob o domínio de algum tipo de droga, mas descartara esse pensamento assim que ele começou a conversar. Miguel soava lúcido — lúcido demais — e falava como o doutor que era, educado e culto. Não se viam gotas de suor em seu rosto nem tremor em suas mãos. E, de certa forma, lidar com ele era pior desse jeito, pois Manuela finalmente entendia o que era um psicopata. E que ela provavelmente não sairia viva dali. — Lembra-se da noite do jantar? — ele perguntou. — Jantar? — os pensamentos de Manuela estavam tão atordoados que ela demorou alguns segundos para entender do que Miguel falava. — Sim, o jantar em que você e Rodrigo anunciaram o casamento. Manuela engoliu subitamente a seco. Pensar em Rodrigo a deixava desesperada. Não por estar sendo vítima de um louco, mas por esse louco ser alguém que seu futuro marido amava e respeitava. Rodrigo sempre fora próximo de Miguel. Desde que conhecera o noivo, Manuela pensava que aquela proximidade era o máximo que alguém poderia ter com uma pessoa que não fosse de sua família. E agora Miguel estava ali, mantendo-a cativa em sua própria casa, sob a mira de uma pistola. Esse fora o motivo pelo qual decidira ligar para Jennifer ao invés de Rodrigo. Ele ficaria louco por não poder fazer alguma coisa para ajudá-la. Qualquer coisa. E quando soubesse que ela morrera pelas mãos de seu melhor amigo... 76


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— Você se lembra? — Miguel interrompeu o curso dos pensamentos dela com sua insistência naquela pergunta estúpida. Qual a importância de ela lembrar ou não? — Sim — murmurou. — Foi naquele dia que eu decidi. Vi vocês tão felizes e sorridentes e finalmente entendi que precisava fazer alguma coisa. Eu não posso deixar que você se case com ele, Manu. Manuela respirou fundo. Não estava gostando do rumo daquela conversa. — Foi um dos dias mais felizes da minha vida. — É mesmo? — Só perde para o dia em que Rodrigo me pediu em casamento. — É mesmo? — Miguel repetiu, balançando a pistola descuidadamente. — Como foi isso, aliás? Vocês nunca disseram. Manuela não respondeu. Não queria compartilhar aquele momento com ninguém, muito menos naquela situação e com Miguel. Aquele dia era um pedaço especial de memória que viveria com ela para sempre, intocado e imaculado. Mas Miguel tinha outros planos. Quando percebeu que Manuela não diria nada, sorriu um sorriso grande, mas falho de veracidade, e caminhou até o sofá em que ela se sentava. — Não quer me contar, Manu? — disse ele, acariciando os cabelos loiros dela. — Vamos ver se Rodrigo pensa diferente, ok? Deixando de tocá-la, ele colocou a mão livre debaixo de uma almofada e recuperou o celular de Manuela. Ao ver essa cena, ela arregalou os olhos e começou a tremer. Ele sabia. 77


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Ele sabia o tempo todo que ela estava escondendo aquele aparelho ali. Miguel discava o número do celular de Rodrigo, quando Manuela disse: — Foi no campo de treinamento. Miguel ergueu os olhos do aparelho, prestando atenção a cada palavra dela. — Ele me levou ao campo de treinamento dos atiradores de elite. Precisou de certa permissão, mas ele conseguiu arranjar tudo — ela mordeu o lábio inferior, nervosa. — Agi como observadora dele em uma falsa situação de ataque terrorista e estraguei tudo. Ele errou o alvo por causa de minhas informações equivocadas. — O trabalho de secretária parece ser mesmo o ideal para você. Manuela sentiu vontade de vomitar, estando ali conversando com um louco que apontava uma arma para o seu estômago enquanto fazia comentários sobre um momento tão particular de sua vida. — Foi uma brincadeira, mas fiquei chateada do mesmo jeito. Queria ter ajudado. Rodrigo me levou para dentro da construção onde o alvo de madeira estava, ainda intacto, e me abraçou, dizendo que um terrorista perigoso acabara de escapar por minha causa. — Grande sensibilidade... — Era uma tentativa de piada, mas senti vontade de chorar. Rodrigo ficou preocupado e resolveu contar o motivo daquela excursão ao trabalho dele. Ele disse que o que 78


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ele faz para viver salva muitas vidas. E que ele tem orgulho disso, mesmo que seja um trabalho estressante e que demanda muita dedicação. Em seguida, sem sequer parar para respirar, ele me perguntou se eu estava disposta a aguentar tudo isso por ele. Para sempre. Eu disse que sim e ele me mostrou o anel. Ficamos noivos desde então. — Que pedido mais estranho! Eu faria algo com rosas e chocolate, como você realmente merece. — Nunca fui uma mulher de gostar de chocolate e odeio rosas. Miguel riu, mas foi um riso ameaçador. Manuela se encolheu quando ele tocou sua cintura com uma mão enquanto a outra segurava a pistola que alisava sua têmpora direita. — Você não vê que fomos feitos um para o outro? Até nossas iniciais são as mesmas. É o destino dando sinais, Manu. — Não, não é. Você é nojento. Há quantos anos você se finge de amigo do Rodrigo enquanto secretamente deseja a mulher dele? — Desde que coloquei meus olhos em cima de você. Você não vê que escolheu o cara errado? Que eu sou a melhor opção? — gritou ele. Enojada e cansada daquele jogo, Manuela ergueu ambas as mãos, segurando o braço que empunhava a arma de fogo. Pego de surpresa, Miguel reagiu dando um tapa no rosto dela. Manuela caiu no sofá, as mãos vazias e o rosto sangrando. Miguel ergueu o braço e apontou a arma diretamente para o rosto dela. Manuela quis fechar os olhos para não ver a 79


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morte, mas decidiu que era melhor ficar de olhos bem abertos para esperar por um milagre. No telhado do prédio do outro lado da rua, Rodrigo cerrava os dentes enquanto tentava controlar o tremor que de repente o acometera. Miguel estava sob sua mira apenas um segundo antes, mas Manuela tentara um movimento infrutífero e acabara sangrando. Miguel ousara pousar a mão sobre ela! — Respira fundo, cara. A probabilidade de acerto é de noventa e cinco por cento. Venta pouco e a luz é excelente. — Ele encostou a mão nela, Felipe. Não quero matá-lo daqui, dessa distância. Quero estrangulá-lo com minhas próprias mãos! Rodrigo largou o equipamento e ficou de pé, falando obscenidades e passando as mãos pelos cabelos castanhos. Uma voz em seu ouvido, porém, foi categórica e o trouxe de volta à realidade de seu trabalho: — Sinal verde, atirador 1. Você pode atirar. Repito: sinal verde. — É a nossa chance — Felipe disse. Rapidamente, Rodrigo entrou em posição e escutou atentamente as instruções de Felipe. — Alvo na mira — comunicou ao seu superior. — Quando você quiser, atirador 1. Para Rodrigo, atirar jamais fora sobre o alvo. Seu pensamento sempre estivera com a vítima cujo destino seu tiro mudaria para melhor. Naquele dia, infelizmente, seu alvo fora um amigo de infância. Um menino que Rodrigo vira 80


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fazer o gol que transformara o time deles em campeão estadual. Um adolescente que ele vira se apaixonar pela primeira vez. Um homem que ele vira se transformar em um excelente médico. Mas Rodrigo nunca errava um tiro. E daquela vez não foi diferente. — Acabou — Felipe murmurou. — Sua garota está a salvo. Enquanto se erguia, Rodrigo decidiu que, afinal, seu lema não havia mudado. Salvar vidas ainda era seu trabalho. E nenhuma das que já ajudara ou que ainda iria ajudar seria mais importante do que aquela que salvara naquele dia de inverno.

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Pardos André Ferrer 11

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lém das variáveis técnicas, inúmeros pensamentos o incomodavam. A cada instante, ele corrigia a postura do corpo e do espírito. Há nove anos, ele conseguia. Desenvolvera o automatismo e o tempo de resposta importantes para o seu negócio. A idade e o peso incomodavam na espera, mas aquele trabalho ainda era como um passeio entre perturbações. Ficava horas numa posição. E ainda que o mundo se movesse violentamente ao redor e o próprio sangue, comprimido há quase uma hora, precisasse de espaço para fluir naqueles noventa e um quilos de corpo, o Capitão Clemente se amoldava a qualquer solavanco interno ou externo e conseguia. Fechou e abriu os olhos. A pele morena, no telescópio, ainda batida pelo sol da tarde. Clemente ficou feliz. Nada 11 André Ferrer ou André Luiz Ferrer Domenciano, paranaense de Bandeirantes, tem formação acadêmica em Farmácia, é especialista em Farmácia Magistral e Alopática, e escreve contos e crônicas desde os anos de 1980. No ano de 2006, teve o primeiro conto publicado em livro de coletânea. A partir de 2007, membro da Academia de Letras Ciências e Artes de Bandeirantes. Tem suas crônicas publicadas no Crônica do Dia desde 2012. Contato com o autor (andre73documentos@gmail.com). 82


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acontecera. Silêncio e calmaria no mais absurdo cenário de operações em quase uma década de trabalho. Sentiu alívio nos joelhos. A nova posição, entretanto, obrigava-o a erguer os ombros. O tórax, agora curvado, apoiava-se muito na flacidez do abdome e, além disso, havia o silêncio, o maldito silêncio daqueles dois! Referia-se ao chefe da operação e ao negociador. O terceiro homem, o alvo, o portador das granadas, também estava mudo. Mas isso em nada alterava o trabalho. Há vários minutos que o alvo, o homem que abraçava a refém, lá embaixo — no amplo estacionamento —, mantinha-se calado. Pouco antes da mudez, tinha dito muitas palavras ao negociador e, com elas, tentava fundamentar o crime. Sua voz chegava ao Capitão, ameaçadora e chorosa, mediante o sistema de comunicação do negociador. Apesar da incerteza em algumas frases, o alvo deixara claro a sua exigência. Pediu que os veículos fossem removidos do estacionamento, anunciou, ainda, que deixaria o recinto invadido, abraçou uma funcionária e saiu. Clemente já estava instalado no prédio que ficava do outro lado da rua quando aquele homem apareceu. É moreno! pensou. E como seria engraçado se, havendo uma chance, ele descobrisse que o atirador, aqui, tem a pele mais escura que a dele! No telescópio, a nesga de cabeça entrava e saía de trás do escudo humano. Debaixo do sol mortiço, a pele do alvo nascia e morria entre o queixo e o ombro da mulher, funcionária do cartório invadido. 83


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Engraçado, pensou Clemente, levando em conta a exigência feita pelo alvo lá dentro. Muito engraçado. Queria um carro. Só assim deixaria a mulher em paz, tinha dito ao sair, quando levantou uma das granadas. Pouco depois, enquanto falava, dissera-se pai e esposo trabalhador. Que libertaria a mulher, na chegada do carro, mas que levaria as granadas para o caso de perseguição. Jogaria os explosivos dentro do primeiro boteco ou no primeiro ponto de ônibus cheio de gente se a polícia fosse atrás dele. O menor movimento e todos verão! Todos verão!, ele tinha dito ao negociador. Agora, reinava o silêncio no ouvido esquerdo dos policiais. Quando as costas doeram, ele decidiu se mover e aquele silêncio no fone transformava um deslocamento de poucos centímetros numa operação delicada. A mesa do Sr. Schwarzeribaum, arquiteto, proprietário daquele escritório, rangeu sob os noventa e seis quilos do Capitão Clemente. A ponta da bota, encaixada na borda da mesa, deslizou fácil na madeira do móvel fino. Aberto, o compasso das pernas restituiu a estabilidade. O mundo, ao redor da luneta, voltou para o seu lugar e, lá fora, no parapeito, o bipé inclinou suavemente enquanto o Capitão abaixava os ombros e conseguia manter o alvo sob a rígida mira do Imbel 308. OK! O carro está a caminho, disse um dos homens. A voz do chefe, tão aguardada quanto a do negociador, também soou no ouvido esquerdo do Capitão: Tiro de comprometimento liberado. 84


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O chefe da operação ficava afastado da área crítica. Devia estar numa rua lateral ou, talvez na portaria, alguns andares abaixo do escritório do Sr. Schwarzeribaum. Já o negociador, que se colocava sempre muito perto do alvo, agora guardava distância. Normalmente, o chefe ficava atrás do grupo tático, à espera das informações vindas do sniper e do negociador. Tais informações, pelo rádio, transformavam-se nos parâmetros de toda e qualquer decisão a ser tomada pelo chefe. Positivo. Pronto para o disparo. Atenção! Ele vai soltar a mulher quando o carro estiver estacionado. Clemente ajustou os dois ganchos dos pés às bordas de madeira lustrosa. Prendeu a respiração e sentiu a eletricidade na base do pescoço, no ombro, no braço e, por último, no cotovelo. Depois de tudo acabado, costumava pensar que essa carga não podia cruzar o antebraço antes da hora exata. Por isso, relaxava o braço e respirava calmamente quando ainda não era o momento. A fagulha morria no cotovelo e, como num ciclo adestrado, voltava a nascer no pescoço. Vou afastar amigo, repetia o negociador. Fique tranquilo. A sua carona está chegando. O centro da luneta, estático, ele mantinha entre o queixo da refém e o olho esquerdo do alvo. Clemente ouvia o negociador, que parecia frustrado e dava passos curtos para trás. Afastava-se no amplo estacionamento vazio e repetia: Estou indo, e a frustração crescia na sua voz. Ele nem se preocupava porque o estacionamento fora evacuado. Não 85


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havia perigo de tropeçar numa motocicleta ou bater num carro. Apenas andava e pedia calma. Está bem, sargento, fez o que pôde. Se o sujeito não tivesse exigido a limpeza do estacionamento, essa história já teria acabado com a ação de retomada e resgate. Nós também não conseguimos sargento. Agora é com o homem lá em cima, o sniper. Quando chegou do outro lado da rua e encontrou o grupo tático, o negociador foi cercado pelos homens e era possível escutar as vozes no comunicador. Vozes que incomodavam Clemente. Faziam-no disparar o pensamento na direção errada. Por isso, desejou tirar o fone do ouvido. Mas não podia. E se algo acontecesse? E se o chefe mudasse de ideia? Um carro logo saiu de um portão ao lado do cartório e estacionou diante do homem das granadas. O motorista, um dos funcionários — e que também era o dono do veículo —, saiu com as mãos levantadas. O homem das granadas gritou. O funcionário afirmou com a cabeça e todos, do outro lado da rua, sabiam que as certidões de nascimento dos gêmeos, devidamente corrigidas, estavam dentro do carro, sobre o banco do carona. O homem das granadas sinalizou e o funcionário, aterrorizado, atravessou o estacionamento. Clemente soltou a carga e, dessa vez, não a deteve no braço. Tinha percebido que o espaço entre o olho do alvo e o queixo da mulher ficava cada vez maior. Bastou corrigir a mira um pouquinho à direita e: Derrubou! 86


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Tiro perfeito. O grupo tático atravessou a rua logo atrás dos homens que carregavam escudos e vestiam armaduras, o esquadrão antibombas. A mulher socorrida. O chefe desabafou: Felizmente, nenhuma das granadas foi detonada. Bom trabalho, Capitão. Agora, desça e tome cuidado com a imprensa. O saguão do prédio está cheio de jornalistas. O Boaventura e o Siqueira estão subindo fantasiados e vão sair com você para confundir os bisbilhoteiros. Logo veio à cabeça de Clemente que não seria engraçado coisa nenhuma. A imprensa inflamaria o público porque um sniper negro executara o homem das granadas, o moreno que exigia uma correção no registro dos dois filhinhos recém-nascidos. A opinião pública se esbaldaria com aquele prato cheio de detalhes politicamente incorretos. Com esse teor de polêmica, as duas granadas seriam esquecidas. Então o chefe, uma vez mais, tomara providências. Desceu da mesa. Sentiu os joelhos. Colocou o rifle no chão e arrastou o móvel para o seu lugar. Foi quando a fisgada obrigou-o a parar com uma das pernas dobradas. Quase duas horas imóvel. Incomodava, mas ainda era pouco. A jornada até ali tinha sido pior. Bem pior, disse Clemente consigo mesmo. Levantou a touca. O tecido empurrou a pele da testa e as orelhas para baixo. Apanhou a arma. Caminhou. Na sala de espera, parou diante do espelho de Schwarzeribaum e descobriu os olhos vermelhos e o contraste entre o sinal de nas87


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cença na maçã do rosto e a pele negra. Por causa da pressão elástica da touca, a mancha ficava mais pálida. Quando deixou o escritório, a porta do elevador estava aberta. Dr. Carlos Duarte Souto, Cirurgião Dentista, disse Boaventura, só com os olhos à mostra, sorrindo para uma placa dourada. Ele saía do elevador. Schwarze-ri-baum Arquitetura. Daí que atirou? Foi. Siqueira colocou a cabeça no corredor. Segurava dois rifles idênticos ao do Capitão e também tinha o rosto coberto. Vamos descer! O Capitão puxou a touca. Entrou no elevador. Qualquer dia vai ser um de vocês. Eu decerto, fez Boaventura. Completo meus cinco anos de treinamento em novembro. É novo, o Capitão remoeu. Sofrera para se tornar um atirador de elite. Ingressara relativamente tarde na polícia e acreditava que a melhor maneira de enfrentar o preconceito era o mérito. Sempre repetia isso para o filho. Não se cansava de dizer que o caminho mais reto e verdadeiro era o caminho do “fazer por merecer”. Outro não existia. Vamos embora gente! As luzes fracas da tarde no saguão. Do lado de fora, houve um tumulto quando os três apareceram. Além da calçada, uma viatura aguardava com o motor funcionando. Um dos homens do tático apareceu e dispersou os jornalistas. 88


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Venham! disse ele. Clemente seguia no meio. Olhou para um dos lados e viu Schwarzeribaum, o arquiteto, assediado pelos jornalistas. Chegavam mais homens do tático para ajudar. O corredor se fechou e, por alguns segundos, Clemente teve medo de que lhe tirassem a balaclava: e se todos vissem um negro entre os prováveis atiradores? É o arquiteto? disse um dos repórteres. Foi de lá que o sniper atirou. Já está confirmado. Não foi do consultório odontológico. Schwarzeribaum era magro e branquelo. Clemente passou, acotovelado. Não sei! A polícia chegou e requisitou o andar. O senhor é o dono do escritório? Abram caminho! A polícia entrou. Interromper o nosso trabalho por causa do maluco! Ia explodir o cartório do outro lado da rua! Não sei o motivo ainda. No tumulto, antes de fechar a porta da viatura, o Capitão ainda escutou: Os gêmeos foram registrados como brancos. O pai exigiu correção. Uma palavrinha. Por favor?

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Queima De arquivo Renato G. Cunha 12

— Maldita chaminé! — pensou Roberto Alves, deslocando-se com dificuldade pelo telhado escorregadio a fim de melhor poder enquadrar a mira de seu rifle na janela do escritório do prédio em frente. Com muito cuidado para não cair da altura de dez andares onde estava, conseguiu colocar-se perto da cornija. Tinha agora uma visão perfeita do interior da sala e seria uma questão de tempo até ter uma chance de tiro. A noite cairia dentro de uma hora. Estava oculto de quaisquer olhares indiscretos, pois o edifício em que estava era o mais alto da vizinhança. Vestia-se totalmente de negro, e sua silhueta confundia-se com a sombra que a caixa d´água fazia sobre as telhas. Montou seu rifle Mauser de precisão, encaixou a mira laser com visão noturna e encaixou o silenciador na boca da arma. Carregou o pente contendo balas de aço especiais, conferiu sua rota de fuga mais uma vez, obser12 Renato G. Cunha é Engenheiro Civil pós-graduado em Tecnologia da Informação. Teve seu primeiro livro publicado aos vinte e dois anos de idade, no estilo Western. Publicou também dois contos na Coletânea O Grimoire dos Vampiros e mais dois em UFO – Contos não identificados. Publicou o livro Os Homens sem Rosto, pela Ed. Multifoco, lançado na Bienal de S. Paulo em 2010. Contato com o autor (renatoocunha@ig.com.br). 90


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vando a claraboia onde suas roupas civis estavam escondidas, e respirou profundamente, tranquilizando-se. Estava naquele negócio sujo a mais de vinte anos, e ainda não havia se cansado da profissão. Lembrou-se de seu tempo de atirador de elite do exército e sorriu ao pensar em alguns de seus ex-colegas que, ou se tornaram seguranças particulares, ou entraram para o tráfico de drogas. Perdedores, todos eles. Julgava-se um vencedor. Era um vencedor. Contratado a peso de ouro, era um matador implacável, infalível e sua fama corria o mundo. Fizera trabalhos magníficos em todas as partes do globo, para todo o tipo de contratante, desde esposas que desejavam livrar-se do marido rico, até mafiosos querendo eliminar testemunhas de julgamentos. Tudo tinha seu preço. Tudo estava em sua tabela de serviços. Já matara crianças e velhos, mulheres e homens, ricos e pobres. A única diferença estava no grau de dificuldade e na importância de seu alvo. A razão de seu contratante, a culpa de sua vítima, questões morais e arrependimentos, não tinham para ele nenhum sentido ou interesse. O que lhe interessava era o preço contratado. Olhou o relógio. Eram sete e meia da noite, e a lua já aparecia no céu de inverno da cidade. Sua presa, gostava de chamá-los assim, deveria retornar ao escritório às onze da noite. Não sabia do que se tratava, nem muito menos quem seria o homem, mas já recebera um adiantamento pelo serviço e o realizaria no horário estipulado, pois um matador sem ética estaria perdido no mercado. Tornar-se-ia, ele mesmo, o alvo de algum outro atirador. 91


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O conjunto de escritórios estava escuro e se situava em um edifício muito antigo, com reboco cinzento e caixilhos de madeira, ao estilo dos anos trinta. A janela da sala do seu “cliente” estava previamente aberta por um dos comparsas de seu contratante, e ele só teria o trabalho de apontar e apertar o gatilho. Um trabalho que tinha tudo para ser limpo e rápido. E esperou pacientemente sua presa retornar à sua toca. Subitamente, na janela abaixo, percebeu uma movimentação. Tênue, ligeira, mas seus instintos o alertaram de que alguma coisa estava acontecendo. E em seu ramo de negócios quaisquer surpresas eram mal-vindas. Assim como possíveis testemunhas. Posicionou o equipamento infravermelho no ponto onde notara o movimento. Observou longamente e teve uma enorme surpresa ao se deparar com a figura de um homem sentado na mais completa escuridão, olhando fixamente para uma porta. Estava completamente imóvel, e não se podia sequer notar sua respiração. Em dado momento, a porta se abriu e uma mulher entrou, caminhando em direção ao homem sentado e parando a uns dois metros dele. Com muito vagar, o tal homem se ergueu, foi até ela e a abraçou completamente. Estranho como o instinto profissional longamente desenvolvido não se engana com as aparências, identificando sinais que passariam despercebidos a uma pessoa comum. Tudo indicava tratar-se de um encontro amoroso furtivo, clandestino, em que um, ou ambos, desejassem mantê-lo 92


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em segredo. Porém algo estava errado, podia sentir. Algo que emitia constantes sinais de alerta em seu sistema nervoso. Continuando a observar a cena, viu que o tal homem a mordia no pescoço. Ela não oferecia resistência visível e um líquido negro começou a escorrer sobre seu vestido. Ajustando a mira telescópica, pôde ver que a vítima se debatia debilmente sob o abraço mortal de seu algoz, que a imobilizava. Cada vez mais curioso com o que estava testemunhando, permaneceu em sua observação esquecido até mesmo de sua missão e de seu alvo. A mulher caiu ao chão, aparentemente morta. O homem ergueu-a com apenas uma das mãos, com uma facilidade que chocou o atirador, e carregou-a até a sala adjacente, colocando-a sobre a mesa. E das sombras das paredes surgiram mais três outros, que se ajoelharam perto dela e começaram a mordê-la em vários lugares. Roberto não acreditava no que seus olhos viam. Observava os estranhos em seu repasto noturno, enquanto o primeiro, que parecia ser o chefe deles, olhava tudo a certa distância. Não ousava dizer para si mesmo o que pensava serem aqueles homens. Não podia simplesmente acreditar no que estava presenciando. Era materialista e pragmático. Sua profissão exigia isso. Não tinha crenças a não ser em sua pontaria, em seu sangue-frio e em um bom pagamento. Simplesmente ignorava religiões de qualquer espécie e se quando morresse fosse para o céu ou inferno, ou se era ou não pecado o que fazia, pouco se lhe dava. Se fosse bem pago, mandaria qualquer um para 93


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o além sem o mínimo remorso. Mas aquilo que presenciava naquele conjunto de salas ia contra toda a sua preparação psicológica. Todas as suas mais arraigadas convicções. Continuou a observar pela lente infravermelha. Os homens haviam parado de sugar o sangue da vítima, e dois deles seguraram um em cada braço do corpo da mulher. De repente, com um safanão, os membros saíram como os de uma boneca despedaçada, e fizeram o mesmo com as pernas e a cabeça. Colocaram os restos em um grande saco e iam levá-lo para fora, quando um deles foi até a janela. O atirador se escondeu imediatamente, mesmo sabendo-se invisível naquele telhado. Algo nos olhos daquele estranho transparecia o conhecimento de sua existência e de sua posição, e aquilo o deixou intranquilo. Estava acostumado a ser o caçador, a determinar onde e quando seria notado, a decidir quando e onde matar. Mas os olhos daquele homem lhe disseram ao contrário. Inverteram as posições apesar de Roberto estar por detrás do rifle, e, mesmo armado, sentiu que passara a ser caça. Presenciara algo terrível. Algo que aquelas estranhas personagens desejavam manter em segredo. Consultou seu relógio e percebeu faltarem apenas uns trinta minutos para as onze horas, quando seu alvo retornaria ao escritório. Precisava se preparar para cumprir o contrato, mas aqueles acontecimentos alteraram seus planos. Precisava matá-los também e eliminar quaisquer testemunhas, e sorriu, pois cobraria mais por aquele serviço. Ajustou melhor o silenciador e deitou-se de bruços, fixando a arma em suas mãos. Seriam tiros fáceis, pois os alvos 94


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estavam a apenas cinquenta metros de distância e atiraria de cima para baixo, o que aumentaria a velocidade da bala e eliminaria qualquer curvatura na trajetória. Procurou os homens pelas três janelas do escritório. Varreu a escuridão duas, três vezes e não os achou e nem ao saco com os restos da mulher. Deveriam ter saído para desvencilharem-se dele, e isso o tranquilizou. Voltou a consultar o relógio e viu que faltavam ainda uns cinco minutos para concluir o trabalho. A vítima chegaria a qualquer momento. De repente, o que parecia ser o chefe do grupo reapareceu na janela. Tinha o rosto e o peito da camisa manchados de sangue, e olhava para o vazio à sua frente, como a observar algo. Roberto o enquadrava perfeitamente, retendo a respiração. Sentiu que seus batimentos cardíacos baixavam assim como sua pressão arterial. O ponto vermelho estava marcando a têmpora direita do alvo e seu dedo indicador encostava-se ao gatilho com a delicadeza de um artista. Frações de segundo antes da queda do alvo. Subitamente o atirador susteve o tiro. Seu alvo agora olhava em sua direção, com um sorriso sardônico que o assustou. Esse sorriso transformou-se em um riso maligno, de onde dentes incrivelmente grandes e afiados surgiam, dentes que sugeriam ser ele algo que não acreditava existir. Um vampiro. Roberto pensou em fugir. Olhou para a claraboia e a percebeu trancada por dentro. Os comparsas daquele ser inominável haviam cortado sua retirada e ele estava preso. 95


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Estava em uma armadilha. Retornou à cornija e deitou-se de novo de bruços. Apontou sua arma para o ser que permanecia na janela e enquadrou-o. Um pequeno ponto laser brincou na cabeça do alvo e, ao começar a premer o gatilho, o vampiro o encarou com seus olhos vermelhos. A vontade de Roberto como que murchou. Descobriuse cansado, o rifle pesou em suas mãos, um sono insopitável amoleceu seu corpo. Sentia como se fosse de chumbo. Com dificuldade sentou-se, sem desgrudar seus olhos dos do estranho. Percebeu que os outros três se juntavam a ele na janela e também o observavam. Ficou de pé. Aterrorizado, soube enfim o que estava acontecendo. A força hipnótica daquele demônio o estava forçando a fazer o que não queria, estava domando sua vontade. Tentou lutar, tentou resistir, mas em vão, Suas mãos seguravam o rifle e percebeu que a ponta da arma estava dentro de sua boca. Começou a chorar, enquanto seu dedo puxava o gatilho. Seu corpo despencou em uma elegante parábola, estatelando-se no piso da calçada lá embaixo. Satisfeitos e tranquilos, os vampiros assistiram a morte da testemunha de sua existência, antes de voltar ao seu covil. No andar de cima, uma luz se acendeu quando um homem entrou e sentou-se à mesa. Com calma, pegou em um telefone e discou o número da polícia. Uma voz do outro lado perguntou quem era e qual seria o assunto. Informou que ria testemunhar contra a Máfia. 96


Um Cartucho Por Vez Eliane Verica 13

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stranha coincidência. Receber aquela visita não estava em seus planos, mesmo assim, parecia se encaixar perfeitamente, parecia um sinal divino... Sobre a cadeira de plástico no centro da sala, a santa de gesso jazia soberana, cuidadosamente posicionada dentro de uma caixa de madeira com porta de vidro. Ela não sabia que santa era, parecia com todas as outras, olhar triste, mãos no coração, vestes azuis. A casa estava completamente vazia, a única coisa que restara foi a cadeira em que a imagem estava, uma mochila e as armas... Duas pistolas e um rifle. Ela, recostada na parede, sufocava-se com sua própria realidade, emprego ruim, vizinhança ruim, vida ruim, precisava dar um fim em tudo isso, e quando a oportunidade lhe bateu na porta; não teve dúvidas. Sobre o piso de cerâmica barata, colocava as balas brilhantes enfileiras, e, vez ou outra, trocava olhares com a san13 Eliane Verica nasceu em Corbélia, interior do Paraná, em 1986. Atualmente reside em São José dos Pinhais. É graduanda do último ano do curso de Letras Português. Publicou contos nas antologias Palavra é arte, pela cultura editorial, Contos Medonhos, pela editora Multifoco e Névoa, pela editora Andross. Expõe seus textos no site (recantodasletras.com. br). Contato com a autora (elianeverica@pucpr.br.) ou (eliane.verica@gmail.com). 97


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ta, como se estivesse negociando o futuro, ou simplesmente buscando por um sinal no rosto imóvel da imagem. A luz fraca que entrava pela janela entreaberta permitia que ela visse o reflexo do próprio rosto na portinha de vidro, em seus olhos ela via respostas, via trinta e cinco anos perdidos, via os sinais evidentes do tempo em seu semblante. As armas reluziam, eram as coisas mais brilhantes dentro daquela casa vazia, daquela vida vazia. Por sorte não foi tão difícil vender o imóvel, e o dinheiro foi o suficiente para comprar o rifle e as pistolas, a munição veio de brinde. Ela nunca tinha visto objetos tão bonitos, tão atraentes. Eram tão fáceis de manusear, como se ela já nascesse sabendo como fazer, foi uma passada de olho pelas instruções e ela montava e desmontava as armas. Os cartuchos eram colocados no carregador e inseridos na pistola, o ferrolho é recuado, ao pressionar o gatilho o percussor batia no cartucho que ativava a pólvora e fazia com que a bala seguisse rumo ao alvo, mais ou menos assim. Com a arma carregada e a santa em mãos, saiu pela porta da sala... Nem olhou para trás. As moedas tilintavam na caixa de oferendas da santa, que passava de casa em casa. Caminhando a passos seguros, coração batendo rápido... Mas as mãos permaneciam firmes. Costume estranho esse! Passar uma simples imagem por todas as casas da redondeza, na esperança que isso traga alguma paz de espírito, alguma esperança. Mais estranho ainda, é uma família sem nenhum tipo de respeito, princípios, caráter e educação recebessem a santa uma vez por mês... Era mesmo muita hipocrisia. 98


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Ela acordava, todos os dias, às seis horas da manhã, engolia cinco tipos de comprimidos que ficavam sobre a mesa de cabeceira e saía para o trabalho. Cobradora de ônibus... Os remédios prometiam trazer alívio, fazê-la feliz. Como pílulas poderiam mudar sua vida? Não sabia, mas tomava mesmo assim. Continuava a passos firmes, o sol forte a incomodava um pouco, seus olhos semiabertos permitiam que desviasse das pedras soltas no caminho, a santa era pesada e a pequena cruz de madeira no topo da caixa impedia a visão da casa, mas ela tinha certeza de que ele estava lá. Todo o fim de semana ela saía da realidade, as latas posicionadas sobre o muro caíam uma a uma. Ela era certeira, nunca errava. A espingarda de pressão fora presente do pai, e ela aliviava a tensão do dia a dia treinando a mira. Mochila nas costas fugia da sua vida amarga e se isolava em trilhas, era o que a fazia sentir-se viva, livre. Subiu a rampa para automóvel, o portão de ferro foi aberto, lentamente, após dois toques na campainha. Era ele. Exatamente como imaginava, ainda usava a roupa do crime, alto, olhos castanhos claros, barba por fazer. Era forte sim, mas, sobretudo tinha o semblante de um viciado, o olhar de um viciado, o cheiro de um viciado e a índole, visível, de um maldito viciado... E ele só tinha dezesseis anos. Trabalhava todos os dias da semana, as moedas chacoalhavam na caixa, dinheiro que não lhe pertencia, mas mesmo assim teria que pagar caso fosse roubado. Todo tipo de pessoas passando a catraca barulhenta o dia todo, e ela nem 99


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os via, completamente absorta em seus pensamentos, injustiças, sonhos... Enquanto todos lutavam por dinheiro ela só queria um pouco de tempo. Perdia-se no silêncio barulhento de sua mente, enquanto as pessoas ao seu redor tagarelavam sobre coisas inúteis, vidas fúteis; apenas saía do transe quando sentia o cheiro fétido de um viciado... Viciado em drogas, em adrenalina, em violência, em toda forma de subjugar quem apenas tentava sobreviver, e eles sempre apareciam. Onze e meia da noite de um domingo frio, última viagem sentido centro, no veículo, motorista, cobradora e uma passageira. O ônibus parou em um solavanco e ele embarcou. Jovem, imoral, moletom e boné... Fedia a vício. Deu voz de assalto e encostou o cano frio da arma no rosto dela exigindo dinheiro. Um ódio intenso lhe subiu a garganta em forma de um líquido azedo e viscoso. Olhou-a no fundo dos olhos e repetiu, lentamente, as palavras que, quase a fizeram cuspir toda a indignação em sua cara: assalto. Podia ver seu rosto nitidamente se fechasse os olhos, mas agora ele estava bem a sua frente, como que zombando da cara da sociedade e suas leis inúteis. Inclinou-se levemente para pegar a santa das mãos dela, e viu o brilho fosco da nove milímetros entre meus dedos. Antes que houvesse tempo para qualquer reação o estampido ecoou. Um tiro certeiro entre os olhos que o arremessou ao chão de cimento bruto, a bala atravessou o crânio formando uma cratera atrás de sua cabeça e uma poça de sangue ao seu redor. Justiça foi feita. 100


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Ela cuidadosamente posicionou a imagem acima do corpo do rapaz, a santa parecia mais feliz, parecia sorrir. A assassina... Não sentiu nada além de redenção. O rapaz teve o que mereceu, e o resto do mundo também teria. Do outro lado da luneta do rifle de longo alcance, os corpos começaram a cair, a mira era certeira, o dinheiro dava para viver bem e, um cartucho por vez, fazia sua fama. No fim... Era como atirar em latas vazias.

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Este livro foi composto em Electra LT Std pela Editora Multifoco e impresso em papel p贸len soft 80g.


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