Ruminacao

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Aos meus filhos e netos, todos eles, mas de maneira especial ao adolescente Bruno Camargo Gomes Pereira, que, com reconhecida dedicação e total domínio no uso do computador, transformou o desejo de publicação em matéria apta para tanto.


Sumário 07. Ele e Ela 08. Via Ecumênica 09. O velho e o novo 13. Fantasia e Realidade 14. Considerações sobre um erotismo humanizante 15. A liberdade com substrato da felicidade 16. Psicanálise versus Feminismo = Cretinice 17. Pecado, salvação e graça 18. O eu, o nós, a flecha e o arado 19. Conservadorismo social e Cristianismo: uma sondagem anatômica 23. Paulo Apóstolo, o niilista 25. Fragmentos de uma fenomenologia dialética 28. Ontem, hoje e amanhã 29. As vicissitudes ginecológicas de Eva 32. Considerações sobre os equívocos de um ecologismo romântico 34. A ampulheta e o eclipse do Eu 35. Família e desenvolvimento humano 37. Paleontologia simplificada 38. Pensamento regressivo e escapismo 39. Ser e vir-a-ser 41. Comunidade nacional e comunidade humana


43. Filosofando em noite de insônia 45. Mario, Maria e Rodolfo 46. O Eu, o ganha-pão e ele 48. Jesus molecular e Jesus devocional 50. Carência e subjetividade 51. Nascimento e Eternidade 52. Reflexões abstrato-realistas sobre um herotismo humanizante 55. Um momento rebiblificante ou do onírico para o onírico 57. A libido e a bigorna 58. Objetividade e subjetividade em História 61. História e consciência religiosa 64. A incoerente divindade de Jesus 66. Calendário numérico e calendário qualitativo 67. Um diálogo polêmico, tenso e contemporâneo 79. A vida como ela é 81. Ele e Ela ( onde tem Uma cidade com 7 colinas??)


Apresentação

Esta coletânea de textos redigidos entre 1956 a 2011 conserva

aos olhos de seu autor total validade, seja pela temática em si como pelo tratamento existencial que presidiu a elaboração de cada um dos capítulos deste livro. Que o leitor receba Ruminações da mesma maneira que foram escritas: a necessidade gratificante de meditar sobre temas que a vida pode nos oferecer. Neste caso, autor e leitor estariam sendo cúmplices mesmo quando discrepantes.

Ele e Ela

Fim de tarde gelado em uma cidade de clima instável,

frequentemente desagradável. Neste contexto, ele e ela, companheiros recém-casados, agendam pelo telefone um encontro em praça pública, de onde partiriam para um jantar em um dos vários restaurantes modestos do entorno. Nestas condições climáticas, a simples presença dela aquiescendo ao chamado do companheiro já seria expressão de amor juvenil, no melhor sentido da palavra. Bem como, a iniciativa dele, o companheiro, que, na verdade, queria presenteá-la com um agasalho suplementar que lhe faltava, sendo ela quase inexperiente em matéria de oscilações bruscas de temperatura. Obviamente, vindo de pontos diferentes da cidade eles poderiam se encontrar no apartamento de ambos, mas a idéia era exatamente a da parada intermediaria, amorosos e festejantes que eram, um pelo outro e um para com outro.

No transcorrer da vida em comum haveria entre eles amor pro-

fundo, entrosamento físico e psicológico solidificantes, dedicação recíproca e conquistas existenciais.

Haveria também frustrações interpessoais, desacertos e expecta-

tivas subrealizadas. O cruzamento de todos esses elementos pertenceria às vidas de um e de outro, bem como pertenceria à subjetividade de cada um deles os registros positivos ou negativos. No momento, lançamos nossas luzes sobre um jovem casal entranhadamente amoroso, no anoitecer gelado de uma cidade difícil e acolhedora.


Via Ecumênica

Na transitoriedade do hoje para o amanhã nós gastamos um

pouco mais que nossas solas de sapato. Quem fala em transitoriedade fala de evanescência, fugacidade e morte, mas, de maneira mais realista e profunda, fala também de semeadura, recomposição, aquisição humana e promessa.

Quem fala em transitoriedade não fala de uma elipse mecânica,

despida de significado. Fala de uma espiral fecundante e não de um presente que se vê com olhos pretéritos. Se fôssemos, apenas, o pré-epílogo de nós mesmos, o presente equivaleria a um virar de página, no qual o passado e o futuro teriam o mesmo significado. A transitoriedade é um vir-a-ser problematizado, jamais uma sequência sombria de espólios carentes de substância maior. Fugacidade e promessa, na verdade, são dois polos interconectados na vida de cada um de nós e na verticalidade geracional do ontem e do amanhã.

O velho e o novo

Às vezes, a eficácia emocional de um discurso sociopolítico se

desvanece, continuando válida a abordagem científica a ele subjacente. Nestas horas surgem reformulações pedantes que se pretendem inovadoras ao dizer o quase-já-dito, irritando alguns alergicamente, e fascinando outros no nível da magnetização sincera. Não vai nisso, apenas, o vício literário pela sonoridade das palavras, mas também (e de maneira entranhada) determinado núcleo do psiquismo do formulante, tributário da divisão social do trabalho.


Fantasia e Realidade

Devaneio, fantasia, ficção, tudo isto existe para abrandar a força

coercitiva da censuras externas e internas, socialmente gestadas. A fantasia pode ser, às vezes, sabiamente transgressora e premonitória, quando a crise de valores de uma sociedade em mutação viabiliza o reflorescer de questionamentos diversos e de ousadias anímicas. Esta é, alias, a vocação profunda da fantasia em sua função dinâmica. Ela existe para transpor comportas, alargar limites e antever novas fronteiras. Ela pode solapar os referenciais originais fazendo apelo à indagação e ao senso crítico. Nessas condições, a fantasia acaba sendo convite à inteligência e à perspicácia. Como, porém, vivemos em interação concreta no tempo no espaço, a ação “missionária” da fantasia, obviamente, tem seus limites. A fantasia não é o gesto humano de alcance infinito, mas ela pode conter o fertilizante individual de um novo consenso cultural em formação, quando, os solavancos existenciais, desentravando o filósofo potencial que todos nós abrigamos, nos leva a sonhar em vigília no burilamento da mente perpassada por dúvidas dinamizantes.

Considerações sobre um erotismo humanizante

“Eu te amo” dito a uma só pessoa durante anos e anos não

decorre da inclinação amorosa em si mesma, mas de um vetor religioso a partir de um dado momento da história ocidental. Trata-se com efeito de um círculo binário excludente e de uma linha divisória, cedo ou tarde perceptível como tal por mais rica, densa e profunda que seja esta ligação. De outro lado, uma dispersão afetiva sem assimilação personalizante do outro é infra-humano na linha qualitativa. É o avesso mecânico da monogamia sem a hipotética superação construtiva da mesma. E no limite, teríamos um segmento maior ou menor de palidez intersubjetiva na esteira da finitude de nossos dias.


A liberdade como substrato da felicidade

Uma sociedade coerentemente livre seria aquela na qual o filho

do lixeiro poderia tornar-se médico e o filho do médico tornar-se lixeiro. Em ambos os casos as pessoas não seriam prejulgadas pelas suas opções, mas sim pela dedicação e criatividade no exercício delas. Esta “utopia” pós-capitalista, neuroses à parte, demandaria completa mudança da psicologia coletiva, bem como grande avanço na infraestrutura produtiva, pois, enquanto a disponibilidade de bens for relativamente incipiente, o suposto filho do médico estaria, indevidamente, ocupando a vaga do filho do proletário. Nessas condições, tratar-se-ia de uma extravagância antissocial, mal vista por todos, inclusive pelo presidente da República, seja ele quem for.

Uma sociedade livre, na linha exemplificada pelas categorias,

lixeiro/médico, suscita ou vem acompanhada de outras liberdades, a saber: o amor-relacionamento substituindo o amor institucionalizado; a consciência crítica (científica, artística e filosófica) substituindo as ideologias canonizadas, e o gosto pela vida engendrando ética de hedonismo responsável e comungante. Responsável, comungante e consequente ao nível dos interesses da espécie humana como um todo e da qualidade da vida em níveis diversos. (Por este lado, desde já, existiria espaço para uma certa radicalidade no plano da perspectiva, aliada a uma flexibilidade concreta no plano operativo dos meios.)

A transcendência dessa ética “cósmica-comungante”, não seria,

apenas, a da intersubjetividade, e tampouco, a de um referencial imanente que me vincula a um quadro humano no tempo e no espaço. A transcendência desta ética “cósmica-hedonista-comungante” é a da realização polivalente do ser humano como historicidade e como cotidiano. A primeira, em sua dimensão prospectiva, sendo muito mais que a retórica visionária contraposta a um hoje tiranizante.


Psicanálise versus feminismo = cretinice Não são as mulheres que carregam o fardo da “inveja do pênis”, genericamente atribuído a elas pelo pai da psicanálise. São os homens entre si. Existiria, com efeito, uma competitiva inveja do pênis fantasmático do outro, que seria o núcleo simbólico de todo o machismo, em sociedades pouco afeitas a se indagarem sobre si próprias. Algumas feministas, caindo em cilada simétrica, transformam o clitóris em cruzada santíssima. O que é erógeno por excelência passa a ser ideologia revanchista. Reagindo contra um vitorianismo difuso que calunia o orgasmo clitórico rotulando-o de imaturo, estas feministas mostram-se tão unilaterais como macho que combatem, tornando-se um exemplo vivo de uma verdade que mente, na dinâmica de uma distorção. Na vida afora teríamos a “verdade que mente” todas as vezes que alçamos uma verdade parcial no nível de uma verdade total. E todas as vezes que, inversamente, uma verdade genérica funciona como acobertamento de verdades pessoais incômodas.

Pecado, salvação e graça A noção cristã de salvação encerra uma desqualificação humana genérica e um rebaixamento metafísico hereditário, anterior aos nossos pecados individuais. Esta predisposição ao mal, fruto da insubordinação de nossos míticos pais, é uma idéia obscurantista que reflete uma concepção retrógrada de Deus. Vem, depois, a crucificação como ato reparador dos meus pecados e dos pecados da estirpe humana na carne martirizada de Jesus. Estas ideias tão caras à religiosidade fundamentalista, seja ela católica ou protestante, são duplamente anti-humanísticas: de um lado, elas são escapistas apesar de primariamente terríveis, e, religiosamente falando, a crucificação cristã é o momento supremo da autoidolatria de um Deus contraditório, eterno advogado de si mesmo. Compreende-se, pois, que a esquerda teológica de hoje, sentindo-se supostamente embaraçada com esta problemática sadomasoquista,


escamoteie o lado perverso do cristianismo através de um Cristo tipificante martirizado na sua “opção preferencial pelos pobres”. Na verdade, a interpretação mística da crucificação de Jesus seria uma batata quente nas mãos de fino trato de nossos teólogos mais sofisticados, respeitáveis batalhadores à favor de uma humanização profunda e ampla das atuais estruturas socioeconômicas.

O eu, o nós, a flecha e o arado A vida não é a materialização defasada e canhestra de “essência” pré-definida, brilhando em reluzente via-láctea filosófica. O ato cognoscitivo não é o reflexo passivo de uma realidade objetiva da qual fazemos parte. Entre a minha subjetividade e o mundo exterior existe a mediação de um segmento deste mesmo mundo impregnado em meu ego. É pela subjetividade que me apodero do objetivo, sendo que a primeira nasce e tem suas raízes exatamente nesta relação com a segunda. A subjetividade não é algo imutável, e a objetividade existe para nós como coisa assustadora e como delicadeza, como desafio e como enternecimento. É pelo elo de uma objetividade já vivenciada e metabolizada em meu espírito que eu me coloco diante do universo que me antecede e me sobrepuja, mas só por mim adquire valor humano e existencial, em uma operação solidária e plural. A placenta do Eu é o Nós. A placenta deste Nós, uma istoricidade concreta. A placenta desta Historicidade, o trabalho coletivo e aglutinador. E obviamente, subjaz ao trabalho humano coletivo o estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Esta relação entre o Eu, o Nós, a Historicidade e a materialidade produtiva, é intrinsecamente dialética e sutil. Como tal, desavizinha-se do idealismo filosófico, à direita. E de um certo materialismo mecanicista, à esquerda. Se é preciso configurá-la, diríamos que ela seria melhor representada como uma espiral fecunda e sábia, ou um materialismo que rejeita toda conotação mecanicista, portadora de messianidade classista insubsistente. O futuro humano não requer fideímos antecipatórios e Prometeu é mal servido quando misturamos escatologia religiosa e determinismo social.


Conservadorismo social e Cristianismo: uma sondagem anatômica 1) O cristianismo primitivo da Parusia e do “reino de Deus”, exatamente por ser de natureza apocalíptica, foi visionário e absenteísta em sua práxis cotidiana, ficando numa postura de espera iluminada, procurando preservar certo grau de “comunismo de consumo” no interior de suas fileiras como prefiguração de um mundo renovado pela ação direta de Deus, associada ao retorno triunfal de Jesus cristificado. Esta postura expectante certamente exprime a impotência política “lato sensu” das camadas populacionais de onde eram recrutados, predominantemente, os adeptos desta fase do Cristianismo. E, a rigor, “comunismo de consumo” no interior da célula eclesial é compatível com o escravagismo na ordem produtiva. Esta é, sem dúvida, uma das razões que explicaria o fato de não encontrarmos, em toda a literatura neo-testamentária, uma só palavra contra a escravidão, enquanto instituição de base na Antiguidade. A grande virtude “civil” dos expectantes do “reino de Deus” era uma paciência iluminada, apoiada, às vezes, em violento revanchismo escatológico compensatório. (Tiago 5,1-7) Genericamente falando, no Império Romano do Cristianismo nascente, a marca cristã foi o de uma comunidade peregrinal que procura fazer pessoas morais novas, marcadas pela essencialidade da “Cidade de Deus”. Este estado de espírito dos cristãos deste período foi muito bem testemunhado por autor desconhecido, provavelmente em meados do segundo século, citado por Etiènne Gilson : “ Toute patrie etrangère leur est une patrie, et toute patrie leur est etrangère” ( Toda pátria estrangeira lhes é uma pátria e toda pátria lhes é estrangeira ). Muito cedo os imperadores romanos temeriam este “ateismo” que, ao negar oferendas aos deuses tutelares da cidade, subverteriam a ordem social em termos culturais, mas não, registre-se, em termos de revolta social dos oprimidos, o que, talvez, Constantino tenha percebido, em seu tempo... Recuemos, dando-lhe um fecho, ao cristianismo expectante do “reino de Deus” iminente: os crísticos palestinenses não participariam da revolta


judaica contra a Pax Romana nos anos 66-70, e tampouco da grande revolta contra Adriano nos anos 132-135. Com efeito, não se tem notícia de um Bar Kosheba judeo-cristão, lutando lado a lado com seus compatriotas e resgatando o “reino de Deus” com seus punhais e a ira dos oprimidos. Muito cedo, aliás na direção de um pacifismo inter-classista, brotou uma série de ilações conformistas ligadas à cruz, e uma “teologia da resignação” germinou ao lado de considerações cristológicas ( Por exemplo: Col. 3, 22-24; Rom. 13, 1-7 ; I Pedro, 2: 18-21. ) 2) Após esta igreja expectante do “reino de Deus”, teríamos a igreja “depositária da fé”, na qual, a medida que as “classes médias” adquirem relevo no interior das comunidades eclesiais, a mística iluminista vai sendo substituída por uma ética assistencialista, às vezes, de grande abnegação pessoal e lançada com muita força, como nesta passagem de Santo Ambrósio, do séc.IV : “ Do faminto é o pão que reténs; do nu a túnica em seu armário; do descalço o calçado que se estraga em seus guardados; do indigente a prata que possuis enterrada”. Malgrado a diferença de tom e de coloração estilística , a perspectiva deste texto é a mesma da de São Basílio , também do séc. IV: “Por que abundas tu e outro mendiga senão para ganhares tu os méritos de bens –dispensares e para se ornar ele, com os prêmios da paciência? “ Nos autores patrísticos, não haveria um elemento prospectivo denso de “mundanidade”, mas sim a visão de democracia frugal de bens de consumo, se o pecado original não tivesse comprometido a intenção divina ao criar o mundo. E assim, como o plantonista do Exército da Salvação precisa do pecador e se complementa nele, o pobre torna-se necessário à virtude do rico em uma sociedade de classes. Mas nunca a consciência cristã foi tão veemente e radical ao enfatizar as obrigações dos ricos deste mundo, como nas pessoas de um São João Crisóstomo, São Jerônimo, Santo Ambrósio e São Basílio, através de palavras candentes, nas quais se realiza o que diz Marx sobre a religião:” o perfume de um mundo sem perfume, o coração de um mundo sem coração”. 3) Tomás de Aquino, na Suma Teológica, utilizaria os textos patrísticos aqui citados, para estabelecer a idealidade da “comunhão dos bens” a despeito da propriedade concreta e situacional, tudo, porém, nos limites


e proporcionalidade impostas por uma verticalidade social objetiva. A perspectiva tomista é descendente (do rico ao pobre) e a expressão “ usus communis” seria melhor traduzida por participação na escala a que pertence o indivíduo. Donde, seria menos equivocante e mais apropriado falar de sincronização estamentária de papéis e direitos sociais. 4) A “teologia da resignação” cristologicamente fundamentada a que nos referimos nas linhas finais do item 1 de nossa abordagem teria vida longa no cristianismo. E eis que, no alvorecer do mundo moderno, se a polêmica criação de uma cidadania cristã pós-teocrática encontrou nas reformas luteranas e calvinistas seus momentos relevantes, daí surgiria, também, um “republicanismo” conservador. No âmbito do catolicismo, na segunda metade do séc.XIX, encontraremos os papas Gregório XVI e Pio IX estigmatizando maciçamente a perspectiva laico-burguesa e laico-socialista, sob pretexto de combater sua “metafísica naturalista”. Aliás, este foi um momento particularmente doloroso para aqueles que ensaiavam um diálogo entre a Igreja e o mundo saído da Revolução Francesa, tais como Ozanan e Lammenais, entre outros. Com Leão XIII, significativamente o pontífice da celebrada Rerum Novarum, que é de 1891, encontraremos treze anos antes as seguintes declarações em documento oficial: “... é oportuno favorecer as associações de proletários e obreiros que, colocados sob a tutela da religião, se habituem com sua sorte, suportando meritoriamente seus trabalhos, levando sempre uma vida serena e tranqüila”( Quod Apostolici Muneris, prp. 35, dezembro de 1878 , tradução pessoal do texto espanhol ) 5) A violência da segunda guerra mundial (l939-l945) gerou um sentimento generalizado a favor de mudança sociais rigorosas, nas quais o cristianismo teria o seu papel. Neste contexto histórico nasceria uma mística neo-cristã reformista, da qual, mais recentemente, brotaria um agrupamento teológico que se daria como vocação o que gosto de caracterizar como sendo a reabilitação do “direito natural” como categoria mobilizante. Para aqueles que pertencem a esta corrente, para seus militantes e mártires, trata-se de cristianismo refundado e refundador, indispensável à “ressubstancialização” do mundo. Na verdade, o Olimpo se encontra hoje profundamente dividido e Prometeu tem seguidores tão audaciosos como


ele próprio.

FALTA Existência e releitura

Paulo Apóstolo, o niilista O mais inquieto e apaixonado pregador da “esperança cristã” na bacia do Mediterrâneo foi um homem profundamente atormentado e sua conversão ao cristianismo em formação repousa no sentimento agudo e radicalizado de impotência e de miserabilidade humanas. Para Paulo, a “lei natural” da consciência pagã e a “lei revelada” do judaísmo “pedagogicamente” mostram aos homens o caráter inacessível do aperfeiçoamento humano, tornando todos, sem distinção, carentes de uma graça celestial que passa pela morte substitutiva do “cordeiro de Deus”. Vê-se aí, o quanto a mentalidade de Paulo era juridicista de coloração própria. Na verdade, Paulo contrapunha ao chauvinismo judeu uma espécie de cosmopolitismo da miserabilidade humana... A argumentação “anti-legalista” de Paulo é um exemplo de contrassenso, de sofisma, e de violência semântica: a lei mosaica sendo boa em si mesma é depressiva em sua vivência concreta, pois atiça seus seguidores rumo ao pecado e à desobediência. O único saldo positivo desta pedagogia é o sentimento de miserabilidade que nos prepara para os efeitos redentores da morte cruenta do filho amado de Deus. Com esta anti-pedagogia escandalosa, Paulo abandonava uma normatização que lhe era tiranizante, não ao cumpri-la, mas pelos resultados nele, e enveredava pela trilha de um juridicismo mágico-sacramental estribado em um niilismo “genético-metafísico”. (Diga-se, a favor de Paulo que esta mentalidade continua presente na cabeça e no coração dos atuais defensores da pena de morte). Talvez Paulo exorcizasse seus fantasmas e sua insegurança na catarse de um Cristo arquétipo, padecente em seu lugar. Não é à toa que ele se vangloria de conhecer apenas o “Cristo da cruz e da graça”. (O Jesus pregador itinerante do “reino de Deus” lhe é totalmente secundário). O psicanalista


e sacerdote católico Marc Oraison, com prudência científica e total ausência de espírito sensacionalista levanta a hipótese de Paulo abrigar dentro de si persistentes desejos homoeróticos não vivenciados. A ser correta esta hipótese (si non é vero é bene trovato), fica fácil inferir o quanto estes sentimentos teriam sido culpabilizantes para um judeu da época, mesmo para um judeu eclético como Paulo. O fato prevalecente é que o Cristo arquétipo de Paulo, no solo irrigado pelas religiões de Mistério heleno-orientais, acabou sendo um momento marcante do mundo greco-romano. E seria o alicerce daquilo que um dia seria definido por um socialista contemporâneo, referindo-se ao Cristianismo, como “la vieille chanson que berçait la misère humaine” (a velha canção que afagava a miséria humana).

Fragmentos de uma fenomenologia dialética 1)

No sonho nosso de cada noite não são os deuses que se manifes-

tam em tampouco o “eu” que antecede à alteridade humana e fora dela. O “eu” que o sonho nos revela é aquele de nossa dialética intrapsíquica, emergida de nosso viver concreto e situacional. Aqui também e como sempre, o “eu” não emana de seu próprio ventre, solipsisticamente. Em nível onírico e em nível de vigília, o “nós” é a raiz ativa e dialética do “eu”, sendo relacional a identidade unitária. 2) Quando pensamos em uma pessoa com personalidade, “ipso facto”, pensamos em contorno e configuração definidas. E quem fala de contorno e configuração, fala de limites e fronteiras, apesar de certa plasticidade interna possível. Se forjamos no interior da socialização humana espaço para nós, aí repousa a nossa transcendência e nossa unicidade. Nestes termos, grandeza e contingência iluminam-se reciprocamente e são interconectadas. Não como duas substâncias que se atraem, mas como vivido e como vir-a-ser. 3) A existência não é a simples mediação de uma essência pré-outorgada, nem o leito “geológico” onde a essência, iluminando-se a si mesma, passa


a fluir como um rio. A existência não seria, então, a mão que desenrola o novelo de lã que chamaríamos essência para o todo sempre definido. A existência já chega até nós carregada de sentido, pois é no interior da socialização humana que nasce e cresce o “cogito” de cada um de nós. Postular uma alma imortal vivificando a matéria finita e problematizada é fazê-la prisioneira desta mesma matéria. É descaracterizá-la em seu suposto gesto seminal. É privá-la, injustamente, de seus fulgores específicos. Nesta perspectiva vertical, o tempo, e a História, seriam sempre o modo deficitário de realização do ser. Tenho profunda admiração por Frei Caneca, mas acho a “teologia da libertação” uma mística filosoficamente contraditória. 4) Felizmente para todos nós, haverá sempre dor e frustração no amor não compartilhado ou vivido em nível defasado de reciprocidade. Viveríamos em um mundo terrivelmente medíocre se, no domingo, os braços de Mariazinha substituíssem o “não-dá-pé” saído dos lábios de Olga no sábado precedente. O que é indigno da dor humana é a transferência coisificante e a correlata despersonalização do relacionamento. Esta posição taxativa, por outro lado, nada tem a ver com fixações neuróticas imobilizantes. Quando, espontaneamente, nossa capacidade de enternecimento, de fascínio e de desejo indica que somos mais que uma “chaga aberta”, aí o novo amor transpõe o amor mal havido ou precocemente desfeito. Na descoberta de reentrâncias pessoais ignoradas ou mal conhecidas, o novo amor substitui o de ontem, sem desqualificá-lo e sem minimizá-lo. O amor de ontem nunca morre em sua significação profunda. Quando superado, em parte ele é reabsorvido na dinâmica de nossa própria afetividade; em parte, submerge na geografia de nosso ego pretérito. 5) O amor como impulso profundo visando a satisfação pessoal é auto-referente em relação aos sujeitos envolvidos. Sendo auto-referente e profundo, diz respeito à singularidade individual compartilhada. Ou seja: a felicidade proporcionada pelo amor e os desacertos e frustrações decorrentes da vivência deste sentimento auto-referente que me leva ao sentimento auto-referente do outro, têm a mesma raiz fenomênica e nuclear. Esta razão de fundo explicaria a problematicidade permanente da vivência amorosa, numa relação desverticalizada e propensamente


igualitária. A minha singularidade compartilhada apresenta reentrâncias não ajustáveis a singularidade do outro. O meu existir no mundo acarreta uma dinâmica de transformações que podem me aproximar ainda mais do objeto amado ou me distanciar dele, às vezes dolorosamente. 6) Enquanto dado afetivo vinculado à socialização primária e parental, a idéia de Deus nos é legada no contexto da dependência física e emocional da criança em relação aos pais. Trata-se, então, de algo que vem no bojo de processo vital e profundo. Nesta perspectiva, Deus é um “arquétipo” sócio-cultural que se insere no âmago de nossa vivência afetiva arcaica. 7) A cidadania baseada no trabalho, contraposta às hierarquizações capitalistas seria um enorme avanço moral e político cuja fecundidade na linha do mais-ser é imprevisível a priori. Esta cidadania, porém, nada tem em comum com um igualitarismo acachapante. A reciprocidade socialista seria um sustentáculo dinâmico e jamais uma caserna de lobotomizados. Assim sendo, a reciprocidade socialista respaldaria criativamente todas as diferenças pessoais de talento e temperamento. A reciprocidade socialista é racional, o igualitarismo ao pé da letra uma mística voluntarista e dogmática. A reciprocidade socialista pertenceria ao nível macro, o igualitarismo ao nível micro dos kibutz e certas comunidades organizadas com esta intenção. 8) A pena de morte é uma liturgia onanista pela qual uma dada sociedade se entrega à recuperação ritualizada “da ordem e da paz”. É um ato reducionista, operativamente necessário em algumas circunstâncias concretas. O que assusta na pena de morte não é esta concessão ao empírico. O que assusta na pena de morte é a incapacidade regenerativa de uma coletividade concreta elevada à categoria de sumo-bem. O que assusta na pena de morte é o menos-ser social encarado como exorcismo purificador e como catarse.


Ontem, hoje e amanhã A espécie humana não é um referencial petrificante a nos cobrar nas esquinas da vida. Nada tem de um arquétipo pairando sobre nossas cabeças e teleguiando opressivamente nossos passos, desta ou daquela maneira. Tampouco é vetor metafísico apontando como uma bússola, desde ontem e sempre, para o norte pré-fixado. A especificidade da espécie reside exatamente na complexidade humana crescente e na potencialidade ascensional da socialização humanizadora na escala dos séculos. ... O cemitério não é o lugar dos mortos, mas dos vivos que lá vão chorar no morto algo de si mesmo. ... A palavra nada, associada a morte, nunca deveria ser sublinhada, nem mesmo oralmente, porquanto estaríamos então, de certo modo, emprestando substância ao não ser definitivo e a não substância em si mesma. Mas é exatamente esta insubstancialidade irrevogável que nos convoca, silenciosamente, a transformar nossa substancialidade transitória em gosto pela vida, na auto-definição gratificante do Eu relacionado ao Nós, neste planeta ainda fratricida. .... A requalificação da vida, a partir da luta pelo ganha-pão e suas instituições mediadoras, exige discernimento quanto aos fins e aos meios de uma dada Sociedade, em um momento específico da enésima volta do planeta em torno do Sol que queima a pele dos humanos, mas não destrói a sagrada arrogância que os caracteriza para o bem e para o mal.


As vicissitudes ginecológicas de Eva A) O sêmen do macho escorre quente no interior da vagina acolhedora e fértil e eis que temos uma fêmea emprenhada. A mulher que habita esta fêmea, se fazendo cúmplice da mágica dos deuses nela contida, em um misto de servidão e orgulho, vê o ventre crescer, independentemente de sua vontade e controle. O fato empírico transforma-se em essência. O determinismo fisiológico em destino. E o destino em vocação. A aceitação fatalista da maternidade (e do sofrimento e perigos do parto) constitui ao longo dos tempos, ao longo da sofrida noite patriarcal, uma cruel alienação vinculada à uma submissão abrangente que escamoteia a brutalidade da condição feminina, tão sacralizada até ontem. Dessa passividade feminina, não poucas vezes rancorosa e ambígua, nutria-se o macho que elege a sua superioridade vendo no recuo multifacetado da mulher, não a imagem de seu próprio inacabamento, mas, distorcidamente, a sugestão de uma “moral natural” emanando imperativamente do ventre dos séculos. A emancipação feminina, feita à revelia do beneplácito masculino, mas não contra o homem em si, surge, assim, como uma decisiva transformação nas esferas da relação ser humano/ natureza e na do relacionamento inter-individual. A desalienação da mulher passa, pois, pela substituição da maternidade antropóide pela maternidade personalizada e volitiva. “Folclorizar” a emancipação feminina é uma maneira reducionista de fazer o jogo do macho renitente e desqualificar esta emancipação em suas mais promissoras virtualidades. Na dinâmica nova entre homem e mulher são forjados uma nova mulher e um novo homem, no interior de sociedade aberta e progressista. O erro sub-feminista estaria no revanchismo míope e na escatologia pueril. B) Se foi o zelo nossas mães que, no fluir dos séculos, sob o halo glorificante da renúncia de si mesma, garantiu a sobrevivência da espécie humana, assim como foi o trabalho dos deserdados que criou o bem estar de uma minoria relativa, diante destas duas coordenadas colossais, a chamada “moral humana” revela-se mesquinha em sua efetividade. Acontece que, quando falamos em historicidade da moral, estamos falando também de dimensão prospectiva, na qual a felicidade do sujeito e a decantação


da espécie poderiam se articular de maneira criativa e harmoniosa. “O homem é a raiz do próprio homem” não é apenas uma tese filosófica. É também belíssima franquia libertária, portadora de grandes e densas possibilidades.

C) Quando contrapomos a maternidade volitiva à maternidade determinismo, em um minuto sequer, pensamos em canonizar o aborto. Sempre pensamos, ontem e hoje, que uma sociedade na qual o aborto fosse gesto desprovido de indagações seria tenebrosa e psicologicamente pobre. Mas, com igual força, pensamos que uma sociedade na qual seria vedada qualquer discussão sobre o assunto careceria de urgentes recolocações. Tabu e displicência, ou melhor dizendo, tabu e unilaterização do Eu, ambos e cada um, são inaceitáveis na perspectiva de um refinamento maior destes dois seres inacabados, chamados homem e mulher. Diríamos então, suscintamente, que, entre o não pomposamente arbitrário e o cutelo leviano, caberia o exame caso a caso, na linha automoralizadora do sujeito que se constrói a si mesmo, sem arrepios paralisantes, mas também sem autodivinizações grandiloqüentes e delirantes.

Considerações sobre os equívocos de um ecologismo romântico 1)

O arbusto vicejante que vejo de minha janela, com seu esplendor

ainda por acontecer, existe como coisa-para-mim na dimensão relacionante de minha subjetividade.Habitante deste Cosmos que é fruto de uma evolução longínqua e prolongada, faço-me herdeiro da paisagem que habito e aproprio-me dela em termos emocionais.Donde, em meu psiquismo, eu a incorporo à substantividade de meu existir.E a partir deste elo fenomênico, num dado segmento do fluir cósmico e humano, insidiosamente atribuo “finalidade” ao nascimento daquele arbusto promissor.De maneira auto-referente, passo a vê-lo como feito para o meu arrebatamen-


to. Ao fazer dele a mesa em que trabalho, tomo a minha sopa e bebo meu vinho, dou conotação utilitária a esta “finalidade” presumida. 2)

A prevalência dos interesses privados industriais e fundiários

(neste caso temos que distinguir a propriedade pré-capitalista da propriedade-capitalista), ao atingir um ponto assustador na deteriorização do meio ambiente tem deflagrado uma reação ecologista cada vez mais vigorosa e necessária. Acontece que, frequentemente, esta reação é ambígua, sentimental e até mesmo conservadora em seus pressupostos. Há, na verdade, um bucolicismo ingênuo em certos posicionamentos de militantes que parecem desconhecer os efeitos benéficos da revolução industrial ao ressuscitar energias letárgicas no seio da matéria e da natureza. Redefinir estas energias, fazendo delas o penhor da emancipação do ser humano enquanto produtor e consumidor, eis a grande vocação histórica de uma militância ecologista, lúcida e contemporânea em suas tarefas. (Enquanto produtor, livrando o ser humano de uma labuta estafante e ingrata; enquanto consumidor, livrando-o da pobreza e de um consumismo irracional e vicário). Se a natureza na qual nasci e vivo não é minha serva (no sentido de arbitrariedade cometidas por indivíduos e coletividades), a inversão fetichista dos termos, implícita em certa pretensa relação ditirâmbica com o meio ambiente, é regressiva, falsamente normativa e inútil nos dias de hoje. Aqui também, como quase sempre, é a singeleza do poeta quem tem razão: “Arranquei o fruto da árvore/ e me fui,/ comendo uma pedaço da paisagem”. (Instantâneos, de Dirce Cavalcanti, 1983).

3) Não há dúvida de que a indignação moral diante de atentados ecológicos de vários níveis é latentemente progressista. Outrossim, a luta pela preservação da vida em geral, se encarada de maneira conseqüente, deveria levar à uma cidadania planetária vigilante, ciosa de seus direitos e deveres, nos quais a raiz comum seria exatamente a decantação humanística da espécie, passando então, necessariamente, pela severa reflexão antiarmamentista em seu aspecto singelo de custo/benefício e em seu aspecto filosófico de evolução humana.


A ampulheta e o eclipse do Eu O tempo cósmico-solar, o tempo de velocidade mensurável na ampulheta, obviamente, continua o mesmo. O que acontece é que somos agora literalmente atropelados, em nível planetário, por acontecimentos de difícil assimilação emocional e que desafiam nossos mais caros e generosos referenciais. Esta deve ser a razão de que nossos mortos, apenas enterrados, são exumados em nossa memória tão curta. (Tão curta até que um fato imprevisto, uma paisagem, um perfume, nos restitui o rosto que julgávamos exaurido em nossa emoção e banido de nosso convívio). Não apenas soterramos nossas saudades aparentemente frágeis, como vemos esvaziar em nós, relativamente cedo, a dimensão “estético-sensitiva” de nossas descobertas e andanças. Aí, então, nos tornamos vulneráveis aos sentimentos de prescindibilidade e de abandono. Pode haver grandeza nesta crise de consciência. A mistificação se instala quando extrapolamos este momento de fragilização em metafísica niilista. Quando passamos a cultivar uma forma paradoxal de idolatria: a de apostar, ardorosamente, na inviabilidade prévia do mundo e dos homens. Por temperamento e por ter presenciado vários “pós-isto e pós-aquilo”, o autor destas linhas se relaciona muito mal com os zelosos sacerdotes deste culto infanticida ao menos-ser. Infanticida, não pela morte do infantil em nós, mas pelo aborto do “infante” generoso, necessário a cada geração.

Família e desenvolvimento humano A) Família como aprendizado da solidariedade, das cobranças silenciosas e das cobranças verbalizadas. Família como laboratório de paternidade (pai e mãe) de iniciantes canhestros. Família como vivência de neuroses “genealógicas” (as neuroses do cidadão A metabolizadas em neuroses X pelo cidadão B e repassadas para o cidadão C). Família como aprendizado ambivalente do existir humano, na dependência de pais que não o foram pregressamente. Família como relação de amor e como relação lúdica.


Família como dor e perplexidade. Família como alegria e como frustração. Família como ponto de convergência, de atritos e de reposicionamentos. Família como ferida e como crescimento do Eu. Família como exasperação e como encontro. Família como ressentimento e como gratificação. Família como círculo reativante de distorsões individuais e como complementariedade perversa. Família como lugar de repetição irracional do erro do vizinho na minha casa e de repetição dos meus erros na casa do vizinho. B) Família como instituição que requisita versatilidade exaustiva dos pais para a felicidade claudicante dos filhos. Família como heroísmo em plantão permanente, desembocando na necessidade de terapia para filhos e pais. Família como confusão mistificadora entre deveres interpessoais e a glorificação da auto-renúncia. Família como manipulação da generosidade pessoal a serviço de estruturas, de estilo de vida e de mentalidade. C) Não existe família impermeável aos processos sociais, funcionando como caverna solitária provida de luz própria. A família, ao contrário, é produto da práxis sócio-histórica dos seres humanos. E o mundo segue com suas crises e tempestade, raios e trovões. E, às vezes, com um arrebatador céu azul de indescritível beleza. D) Os filhos tomam consciência da existência dos pais através dos papéis destes no interior da relação familiar. Trata-se, pois, de uma revelação pela via da dedicação de uns e da carência primordial de outros. Com o tempo, esta simples mediação se transforma em referencial deformante e deformado. Em polarização viciosa. Serão então necessários muitos anos para que eles vislumbrem os pais como pessoas, e não como função. E quando isso acontece, a nova percepção vem ainda mesclada com a percepção “funcionalista” de raiz. Vê-se que a questão é intrincada, pois, é no espaço das funções poli-revitalizantes dos pais que nascem nos filhos vínculos afetivos, indispensáveis ao desenvolvimento emocional e psicológico deles. Deste mesmo leito, concomitantemente, nasce uma certa cegueira egóica e aquele “imperialismo” infanto-juvenil, cruel e ingênuo, ao mesmo tempo: traço psicológico que pode prenunciar tendência moral se constituindo, para perda de todos. Mas, como já foi dito, a microdialética familiar não acontece ao abrigo do mundo objetivo. E são as mutações desse mundo que demandam a emergência de nova pedagogia relacional-familiar-comunitária que traduza estas macrotransformações históricas. Uma nova pedagogia relacional que supere, entre outras coisas,


a mais-valia de encargos embutida no espaço de relações afetivas “deleitáveis” em si mesmas.

Paleontologia simplificada Simone Samantha, não esta linda criaturinha de trinta e cinco dias, mas aquela que foi herdeira do dinossauro e contemporânea do mamute. Aquela cuja mãe foi morta por uma víbora ao encontrar ofegante um abrigo na caverna mais próxima. Aquela que, aos cinco anos, brincando em um prado de belos cogumelos, morreu envenenada. Não esta, a de hoje, mas aquela que viveu nas savanas quentes e foi contemporânea de grandes e perigosas manadas. Aquela que, após susto e fadiga, morreu envenenada brincando numa pradaria. Simone Samantha, aquela, não sabia que de suas entranhas não fecundadas nasceria a Simone Samantha de hoje, contemporânea da incerteza atômica e de outras incertezas. A Simone Samantha de hoje, contemporânea de guerras assustadoras, não sabe, ainda que outras Simone Samanthas venceram para ela varias ameaças e vários furores (inclusive o chamado “furor uterino”, que não era furor nem uterino). O que Simone Samantha de hoje ainda não sabe é que outras Simone Samanthas que a precederam legaram para ela mais que um belo nome.

Pensamento regressivo e escapismo O pensamento conservador comete um atentado ao pressupor que a essência humana já foi vivida, bastando apenas preservá-la com os devidos retoques “existenciais.” Esta curiosa historicidade pelo avesso, esta historicidade regressiva, é paranoide ao transformar- cheia de temores – o irreal em realidade consagrada.Com emoção, às vezes de maneira pomposa, o pensamento conservador glorifica um segmento pregresso da História


humana , ungindo-o de suposta idealidade que se fez carne. Isso posto, o senso de totalidade requer que também seja assinalado o seguinte: todos nós temos um referencial “soteriológico” em algum lugar de nossa estrutura pessoal e de nossa subjetividade recôndita. A ele recorremos em hora de incerteza e dúvida e nos valemos dele como amuleto emocional”. Fazer de conta” não é apenas um gesto de hipocrisia social. É também, em certa medida, um reajeitar íntimo ao longo da transitoriedade humana. Neste nível, todos nós, nudistas, sambistas e vegetarianos, temos o bezerro de prata de nossa semi-idolatria.

Ser e vir-a-ser A) Os deuses existem na – e pela – práxis social e exprimem mitificadamente, de contra-golpe, a densidade dos anseios humanos e das frustrações coletivas. Israel da Antiguidade transformaria os deuses da vizinhança em mero pedaços de pau e pedras e o Cristianismo perpetuaria este etnocentrismo inevitável. A partir da Renascença, mais precisamente como um de seus efeitos colaterais indiretos, haveria um iluminismo mais ou menos retilíneo que reduziria a complexidade do fenômeno religioso a somatória de superstições sem lágrimas e de irracionalidade sem drama, esquecendo que as religiões são também o “perfume de um mundo sem perfume e o coração de um mundo sem coração” (Marx). A vivência religiosa ora representa uma acomodação passiva – apesar de sofrida – às frustrações do cotidiano, o vislumbre de um mundo fraternal foragido na Cidade de Deus, porquanto a dos Homens apresenta-se pobre de sentido e carente de promessas. B) Matéria e espírito, eis uma dualidade ultrapassada. O espírito é filho da fecundidade da matéria, sendo a expressão desta no tempo e no espaço. Matéria enquanto Cosmos e enquanto Natureza. Enquanto bilhões de neurônios e enquanto relação social de produção e trabalho, com as subseqüentes relações inter-humanas. C) Na concretude histórica de uma “fenomenologia do espírito” que só


é espírito porque é fenomenologia, nos é dado vislumbrar a possibilidade real de uma sociedade na qual o ser-pelo-outro e o ser-para-si naveguem fraternalmente no mesmo espaço indiviso. E assim, quando a perseverança criadora substituir o estoicismo fruto da alienação e do medo, o “outro” poderá ser, reconhecidamente, um pouco de nossa auto-revelação e de nossas potencialidades robustecidas na reciprocidade de um cotidiano libertador.

Comunidade nacional e comunidade humana As duas guerras mundiais do século vinte com a tenebrosa cifra de sessenta milhões de mortos em um espaço de apenas uma geração, e a criminosa corrida termonuclear de hoje, tornam moralmente imperiosa uma nova relação entre os povos e conferem à palavra cosmopolita um sentido positivo jamais igualado. Para se ter idéia da dramaticidade de certas “vocações”, pensemos o seguinte: o bebê nascido na Alemanha derrotada de 1918 seria o revanchista de 1939, com apenas vinte e um anos de idade. Vivemos o fim de um período que malogrou parte substancial das grandes e generosas tarefas que nos foram legadas, e, com este aprendizado denso e amargo, uma nova cidadania se faz necessária. A partir da formação dos estados modernos, o sentimento de vinculo com um determinado espaço geo-cultural foi transformado em patriotismo, em uma metamorfose ambígua que seria a fonte de dramáticas recolocações. Com a revolução francesa e em função dela, haverá, na Europa, uma espécie de tríade do sentimento nacional, todas elas lógicas a partir de seus interesses e referenciais. Haveria espaço para um “patriotismo revolucionário” diante das realezas coligadas. Haveria também um sentimento de “modernização nacional” vinculado às esperanças de reformas institucionais trazidas pelas tropas napoleônicas. (Beethoven e Hegel, por exemplo, prestariam suas


homenagens á Napoleão Bonaparte). E haveria um patriotismo restauracionista e conservador após a derrota militar dos franceses. Contemporaneamente, os problemas estruturais gerados pela “explosão demográfica” (eis mais uma expressão ambígua) sugerem a necessidade de nova ordem comunitária supranacional, com a comunhão dos povos no acesso aos bens materiais e intelectuais do acervo humano universal. (A multinacionalização econômica de hoje é a contrafação desta nova ordem a ser criada, mas à ela subjaz uma sofisticação das forças produtivas positiva em si mesma). Simplificando, diríamos que o atual estagio de maturação dos problemas planetários redimensiona profundamente a vocação humana. Este processo, moralmente falando, demanda uma cidadania liberta de toda conotação unilateralizante. Demanda uma cidadania apenas pressentida pelos pensadores progressistas em seus melhores momentos.

Filosofando em noite de insônia A) Em Deus não pode haver o começo temporal de uma idéia ou volição, pois isto seria introduzir a contingência, a situacionalidade e a dialética no âmago mesmo da essência divina. A mente de Deus funcionando sem mediações fenomênicas faz do mundo e do mal existente no mundo contemporâneos de sua própria eternidade e pré-existentes na sua onisciência, o que é fazê-la cúmplice da problematicidade terrena. A isto os teólogos, modulando a voz para indicar a substituição do m pelo M – e devorados pela sensação de abismo – respondem com a palavra Mistério. Na verdade, em termos de sacralidade, esta é a resposta mais honesta a uma questão que emerge das entranhas dos séculos. B) Quando falamos em eternidade de Deus, nós pensamos que estamos fazendo uma afirmação eminentemente metafísica e transcendental, mas, na realidade, é de nós mesmos que estamos falando e a eternidade divina é o contraponto de nossa finitude inconformada, sendo dependente de nosso senso de fragilidade comum. Quem pode, com efeito, imaginar – em si mesmo – um ser cuja existência é absolutamente contida nele próprio antes de toda e qualquer temporalidade? A afirmação sobre a eternidade de Deus é pois de ordem psicológica, sendo, por aí, uma antropomorfização às


avessas. C) A alteridade humana que subjaz ao nosso Eu, fazendo-o nascer e o sedimentando pelo jogo dos acordos e das confrontações interpessoais, tenderia a nos encerrar em nossos sub-núcleos de classe, dependendo, é claro, da complexidade ou da singeleza das estruturas sociais que nos envolvem e nos sobrepujam. Nesta perspectiva, se vistos estaticamente, nossos perfis comportamentais seriam previsíveis, pelo menos ao nível de cada geração, em uma determinada cultura. E isto, efetivamente acontece, dentro de certa medida. A dinâmica social, entretanto, por fatores exógenos ao individuo tomado como unidade, implodiria, o que seria a repetição do nós pelo nós e do eu pelo eu. Dentro dessa dinâmica social, o tencionamento inter-classita ganha relevância no alargamento de nossos parâmetros, sem a messianização desta ou daquela classe em particular, diga-se de passagem. Mas é fácil inferir, por exemplo, que a opinião de um Aristóteles sobre a inevitabilidade da escravidão teria sido diferente, se o filósofo vivesse em uma comunidade auto-sustentável de iguais. O mesmo raciocínio é válido diante da aceitação institucional da escravidão no Antigo Testamento judaico, confirmada pela libertação individual do escravo após sete anos de “serviços prestados” - ressalte-se que o chamado Ano Sabático é algo impar na Antiguidade- . Nos Evangelhos, apesar da nítida preferência de Jesus pelos pobres, não há uma só palavra de condenação da escravidão como fato social. Na verdade, a Tsedaka hebraica e a Cáritas cristã não se sentiriam ultrajadas no longo convívio de cada uma delas com esta forma de exploração do trabalho alheio. Os exemplos aqui mencionados sugerem o óbvio: certos conceitos abstratos, como justiça e harmonia social, não são geradores de seu próprio conteúdo e tampouco poderiam ser captados como matrizes pré-definidas com desova precária na “mundanidade” do mundo. A abstração Justiça é uma condensação na qual cada segmento da sociedade vê o que lhe julga devido, a partir da práxis social concreta. Nesta linha legitima de raciocínio, a luta de classes é partejante em vários níveis, donde poderíamos convocar um sábio de plantão, pedindo a ele um ensaio que chamaríamos “O eu, o nós, e São Bernardo da Borda do Campo”.


Mario, Maria e Rodolfo A interferência da sociedade na conduta sexual não é a de um simples dique a conter um rio volumoso de desejo e de lubricidade. A ação da sociedade é mais visceral, na exata medida em que a solução ocorrida no desejante é dialética, sendo o campo onde os contrários se unificam na resposta que define uma dada personalidade. É sabido, por exemplo, que a masculinidade do adolescente não se baseia apenas na atração pelo sexo oposto, mas também na identificação mais ou menos amorosa com a masculinidade do amigo. E mesmo, com uma sutil e silenciosa identificação com certos sinais visíveis desta masculinidade, como o pênis delineado na calça narcisicamente ajustada.

O Eu, o ganha pão e ele O “amor ao próximo” é a expressão derivativa do Eu no entrechoque de interesses conflitantes. É o reflexo de nossa Individualidade ameaçada e do egóico reativamente travestido. O “amor ao próximo” nasce e se desvanesce na esteira de mecanismos sociais objetivos e só pode ser reabilitado passando pelas malhas do mundo do trabalho e da produção, de onde uma nova pratica social poderia viabilizar individuações comunitário-personalizantes no nível macro.

Jesus molecular e Jesus devocional O temperamento emotivo de Jesus e sua perspectiva escatológica radical resultaram em sério conflito com a casuística rabínica de seu tempo. Eis algo que acabou por caracterizar o núcleo substantivo da existência desse pregador itinerante, no quadro geográfico da Galiléia judaica. Poderíamos,


sem duvida, aceitar como realidade factual a diferença entre o psiquismo visionário de Jesus e a casuística rabínica do cotidiano, sendo que ambas maneiras de ser comportam vícios e grandezas. Poderíamos, também, aceitar como verossímeis certos enfrentamentos, mesmo levando em conta que os registros neotestamentários destes embates refletem o conflito entre a Sinagoga e a fé cristológica em formação, retroprojetado para o quadro temporal do profeta iluminista do “Reino de Deus” iminente. (Ou seja: A fase B condicionando versão tendenciosa de certos fatos da fase A). E aqueles que hoje se relacionam com Jesus como configuração teológica ou como amuleto não suportariam um minuto sequer da presença viva e questionante do Jesus real. Não suportariam a veemência do interlocutor Jesus ao demandar um coração verdadeiro consigo mesmo na relação com Deus. Esta exigência, inquestionavelmente do próprio Jesus, enquanto estilo redacional, vem no quadro de uma relação conflitiva entre um “neo-judaísmo” apocalíptico e o judaísmo oficial no Mediterrâneo da época. Analisando a diferença entre o Judaísmo expectante de Jesus e a crença messiânica das primeiras comunidades cristãs, Albert Reville formula de maneira exemplar: ‘’A fé de Jesus transformar-se-ia em fé em Jesus”. Esta fé helenizante em Jesus, tributária de uma sobrenaturalização relativa do Messias, faz do Cristo, em seu ponto alto, um demiurgo operacional da glória divina, dependente do Pai e reflexo dele. (A epístola de Paulo aos Colossenses – “Deus quis que toda plenitude habitasse nele” – e a cena da ressurreição de Lázaro no evangelho de João, são dois exemplos desta cristologia deificante). Esta mutação cultural que teve momentos dramáticos com seus adeptos martirizados no Coliseu romano, quando transformada em ortodoxia religiosa estabeleceria suas fogueiras punitivas e suas manias grupais, sendo que umas e outras sepultam o Jesus verdadeiro, parcialmente recuperado pela análise não-confessional a partir da segunda metade do século XIX. “Graças a Deus” diríamos todos nós, religiosos lúcidos e incrédulos amadurecidos, pois a verdade emergente desse esforço humano era devida ao próprio Jesus e a todos aqueles que acreditam na redescoberta das pessoas, sob enfoques diferentes. Restituir Jesus à História, após dois milênios de cristologia e narcisismo teológico confessional, é restituir Jesus a Jesus, condição primeira de vê–lo em sua grandeza, limites e singularidade.


Carência e subjetividade Quem se pergunta por que as grandes religiões subsistem no tempo, às vezes vivificantemente, encontra resposta na observação atenta dos fatos: as doutrinas religiosas são reabordadas na linha da demanda subjetiva do carente que delas se aproxima. É assim que, por exemplo, no âmbito do cristianismo, a reforma calvinista, desprezando as invectivas do Jesus neo-testamentário contra a riqueza, transforma a prosperidade em sinal palpável da graça de Deus ao seu eleito, salvo – obviamente – pelo Jesus da teologia protestante...

Nascimento e Eternidade A fragilidade absoluta e prolongada do bebê humano faz com que este ser conheça a si próprio através de suas carências primordiais e do adulto que o protege. Ou seja, através de uma alteridade “desequilibrada” com consequências psíquico-emocionais para o todo sempre. Eis a raiz profunda e visceral que subjaz à idéia de Deus Protetor. Eis o afetivo-existencial na base do metafísico-teológico. Eis o ser total como desdobramento reativo do menos-ser que habita cada um de nós. Dir-se-ia que este sábado, prenhe de consequências domingueiras, configura uma predisposição de ordem psicológica, sendo que o espaço B existiria sem o espaço A, que o precede na ordem fenomênica. O que é relevante no desenrolar dos dias é o amadurecimento progressivo da consciência humana para que o sagrado e o profano se interpenetrem criticamente em beneficio de todos e para glória maior dos habitantes deste insólito e dramático planeta.


A libido e a bigorna Assim como a libido humana – apesar de onipresente – não vem até nós em sua pura fisiologicidade, mas é perpassada pela cultura e suas diretrizes, a chamada infra-estrutura de produção não nos atinge na materialidade direta e brutal do martelo e da bigorna, e sim pela mediação de uma determinada forma de relação social. Vale dizer: ela já nos chega carregada de conceitualidade e de certo perfil humano, mesmo quando rústico e diretamente tributário da natureza circundante. Esta conceitualidade exibe e mascara, projeta luz e sombra e tende a essencializar em formas múltiplas, momentos do fluir fenomênico. Desnudar esta conceitualidade não seria, pois, gesto de irreverência iconoclasta. Seria, isto sim, o acesso a uma consciência maior que deriva da integração crítica do passado ao presente, sendo o sinal da continuidade polivalente do ser humano em sua auto-criação e em sua obra. A chamada humanização de nossa animalidade sexual não renega a infra-estrutura instintiva, assim também, o reconhecimento da materialidade produtiva em sua dimensão filosófica não é o solapar reducionista da dignidade humana. Mesmo porque esta dignidade emerge na dinâmica do plural, da situacionalidade e do vir-a-ser, posto que se trata de uma questão aberta para muito além deste ou daquele presente circunscrito.

Objetividade e subjetividade em História A) Pensando no 3 de outubro de 1930 “Façamos a revolução antes que o povo a faça”, palavras de Antonio Carlos R. de Andrade, governador de Minas Gerais e membro fundador da “Aliança Liberal” em 1930. Getúlio Dornelles Vargas (1883 – 1954) é o servidor por excelência desta “revolução substitutiva”, seu líder mais progressista e duradouro e sua vitima mais digna e lúcida.


B) Pensando no 24 de agosto de 1954 O getulismo em seu significado profundo representa uma espécie de “New Deal” nacional após a crise de 1929. Representa uma tentativa orgânica de capitalismo reformista e encontro de interesses entre empresariado urbano e classes assalariadas.É curioso observar notórios expoentes do “tenentismo”, inclusive membros da famosa Coluna Prestes (1924-1927) tornarem-se reacionários e Vargas, “conservador dissidente”, encarnar cada vez mais, a “revolução” em marcha. E isto nem sempre foi devidamente compreendido pela provinciana burguesia nacional no decorrer de “sua” revolução, mesmo diante da insurgência comunista-militar de 1935, nas cidades do Rio de Janeiro, Natal e Recife. Fixemos, no momento, nossos holofotes no período de 10 de novembro de 1937 à 29 de outubro de 1945: como pano-de-fundo, temos um conservadorismo juridicista capaz de alianças regionais com as oligarquias atingidas em 1930 e duas correntes messiânicas se defrontando em praça pública, com tiros, paus e pedras. Refiro-me aos “integralistas” de Plínio Salgado e aos “aliancistas” de Luis Carlos Prestes, insurgentes estes, em 1935. Surge então, o Estado Novo, com a impostura de um “plano Cohen” e o policialismo de um Felinto Muller. Mas, também, com a progressiva elaboração de uma consistente legislação trabalhista urbana (iniciada anos antes) e com a criação deste marco institucional que foi a “Justiça do Trabalho” em 1939. Eis aí os primórdios daquilo que sem equívocos poderíamos chamar de “cidadania trabalhista” estrutural, cujo valor não deveria ser amesquinhado no estudo do período. Nos anos 1951-1954, Getulio Vargas, eleito em 3 de outubro de 1950, redesenha seu relacionamento com seus adeptos, com a sociedade como um todo e com a classe operária, em discursos incisivos de grande lucidez política, nos quais a figura do estadista sobrepuja a do líder carismático ou do administrador do momento. E é furiosamente combatido, à direita, pela União Democrática Nacional(UDN); e à esquerda, pelo Partido Comunista de Prestes(PCB). C) Os adversários udenistas de Vargas, em sua imensa maioria, apoiaram explicitamente o golpe militar de 1964, Outros, uma minoria deles, se calaram submissos. Mas é exatamente a partir do vigésimo aniversário da


morte de Vargas que a figura do ex-presidente começa a ser redimensionada em contrastantes setores políticos que antes o combatiam. Neste contexto, a auto-crítica de Afonso Arinos de Mello Franco, líder da oposição parlamentar em 1954, é relevante e digna de registro: “Nós (UDN) fomos contra a ditadura enquanto ela representava uma forma de progresso social e passamos aceitar a ditadura, desde que ela passa a ser uma forma de contenção do progresso” (Jornal do Brasil, 24 de agosto de 1974). D) Fala-se hoje (1984), com frequência, tanto da parte de empresários como de certas lideranças operárias, em “acordos diretos entre Capital e Trabalho”. O capitalista contemporâneo parece desconhecer que seu antecessor recente era provinciano e socialmente obtuso. Certas lideranças sindicais, tomando a si próprias como o começo do começo, não avaliam corretamente o papel do getulismo na formação de uma “cidadania operária” que lhes precedeu e que demandaria a eles, por assim dizer, desdobramentos geracionais. E) Gosto de assinalar que o fato político de grande carga emocional na juventude de meu pai, em termos de Brasil, foi a revolução de 1930. O fato político de maior carga emocional na minha juventude foi o suicídio de Getúlio Vargas no dia 24 de agosto de 1954: onde não houve quebra-quebra de rua, haveria um peso inusitado de tristeza e perplexidade. O historiador Eric Hobsbaun analisaria este evento nos seguintes termos: “Foi a classe trabalhadora urbana, à qual ele dera proteção social em troca de apoio político, que o chorou como pai de seu povo” (Era dos Extremos, página 137, editora Companhia das Letras, 1995). Concordando com a premissa, eu sei que uma sociedade evoluída de maneira homogênea dispensaria toda e qualquer forma de “paternidade” dirigente. Mas vivíamos uma época em que, na Rússia soviética, Stalin, falecido em 1953, era apresentado - pura e simplesmente - como o “Guia genial dos Povos”. Enquanto em Moscou, os opositores dos anos 30 eram massacrados e difamados, no Brasil, com as eleições parlamentares de 1933, os chamados “carcomidos” voltariam à cena política. E daí nasceria um Constituição híbrida, discrepante aos olhos de muitos das exigências reformadoras que o momento histórico estava a exigir, para o bem da República e do país.


História e consciência religiosa A revisão positiva do pensamento católico em relação aos judeus, assumida em termos oficiais com o papa João XXIII e o concílio Vaticano 2°, é um dos efeitos colaterais da passagem de Hitler pelo poder, na exata medida em que o genocídio anti-semita do período, pelas suas proporções, suscitaria duras reflexões sobre o subsolo cultural que permitiu a eclosão desta calamidade insana. Não se trata, obviamente, de uma causalidade linear entre a ação hitlerista e certo patamar teológico subsistente no inconsciente coletivo das populações cristãs. No caso especificamente alemão, haveria, entre outras coisas, a revolta amarga contra o tratado de Versalhes, consequência da derrota na guerra interimperialista dos anos 1914 – 1918. A pergunta decorrente seria, então, a seguinte: por quê este deslocamento de animosidade raivosa atingiria os judeus? A resposta comporta vários níveis de abordagem, mas, genericamente falando, dir-se-ia que, aqui também, como em toda esfera geo-cultural cristã, o judeu real era visto antecipadamente pelas lentes deformadoras de uma religiosidade latentemente perigosa, cujas raízes retroativas passando pela teocracia medieval e pelo período patrístico chegariam até certos textos neotestamentários, de onde, o leitor cristão “sacralisaria” determinados juízos de valor. Trata-se da força emocional do pensamento subcrítico na consciência humana, sempre disponível em momentos de incertezas e crises históricas. Examinemos, então, o substrato neo-testamentario que subjaz ao judeu mitificado do cérebro cristão. Aqui existiriam dois níveis distintos, a saber: no primeiro deles, o leitor julga ver isto ou aquilo, através de leitura condicionada; no segundo, o leitor depara, efetivamente, com coisas que lá estão. E este “lá estão” é suficientemente grave e chocante como na tristemente celebre passagem de Mateus: “Que seu sangue (de Jesus) caia sobre nossas cabeças e sobre a cabeça de nossos filhos” (Mt. cap. 27, v. 25). O pensamento teológico pós-segunda guerra mundial ressalta que Deus não se faz prisioneiro de uma turba manipulada pelos seus chefes religiosos, o que é verdadeiro por definição. Mas precisaríamos ir mais longe, sendo que isto envolve postura crítica em relação ao próprio texto. Caberia assinalar que


estas palavras de auto-maldição – e redigidas nessa perspectiva - foram elaboradas após a destruição de Jerusalém pelas tropas de Tito no ano 70, na linha de interpretação religiosa dos calamitosos eventos bélicos que destruíram o segundo Templo. E elas denotam ressentimento profundo pela não conversão dos judeus ao messianismo cristão, sendo nessa perspectiva, um olhar de seita interpretando militantemente o passado recente, às custas da plausibilidade histórica, pois fica insustentável imaginar uma multidão vociferando “que seu sangue caia sobre a cabeça de nossos filhos”, em uma época em que as relações supersticiosas de causa e efeito eram onipresentes e temidas. Vale dizer: esta auto-maldição é a teatralização de um juízo de valor negativo do redator para com um judaísmo refratário ao culto escatológico ao “Senhor Jesus”, penetrando esta animosidade na descrição de certos eventos ocorridos varias décadas antes. Seria, igualmente, interessante assinalar que esta fé post-eventum, fazendo de um condenado à morte pela Justiça Romana o centro de sua pregação, demandaria um álibi eficaz diante da eventual acusação de anti-romanidade religiosa e cívica. Finalizando este sobrevôo em paisagens neo-testamentárias, seria pertinente observar que – neste jogo de retroprojeções “explicativas” – o diálogo entre o Sumo Sacerdote e o réu Jesus (na forma que lhe deram os redatores) mais parece espelhar o posterior conflito entre judaísmo e cristologia, de que a realidade de um tribunal judaico diante de um compatriota cuja face lhe era ainda discernível, por mais controversa que ela, hipoteticamente, se delineasse aos olhos dos judeus da época. No período patrístico (séc II a séc V), haveria quem caracterizasse Judas, o traidor, como a imagem mesma do povo judeu. E quem agraciasse todos eles com o qualitativo mimoso de Povo Caim. Séculos mais tarde, Tomás de Aquino, espírito capaz de nuance e diversificação, defenderia a tese de servidão do judeus diante da Igreja e dos Príncipes, estando os bens deles “disponíveis como contrapartida de seus crimes pretéritos (Suma T. 3º p. qu.68, art. 10). Para completar este quadro, quando a Alemanha vivia os últimos anos da república de Weimer (1919-1933), na França de 1930, o padre Boulanger comentando a posição tomista supra indicada nos lembraria que na qualidade de descendentes de deicidas, o povo judeu era auto-estigmatizado (“...l’ image d’un peuple qui s’etait maudit lui même et que la malecdition ne cessaît de poursuivre” S.T. pág.331, nota 40, edt Revue de Jeunes).


Após o pesadelo hitlerista (1933-1945) haveria “mea-culpa” cristão que, extrapolantemente, adotaria teses sionistas na substituição do pensamento sacro-culpabilizante de ontem pelo sacro-reparador de hoje. Esta metamorfose reativa chegaria em certas igrejas protestantes a um sionismo escandalosamente unilateral e primário. Todavia, em suas vertentes mais sofisticadas, este “mea-culpa” cristão poderia assumir um imperativo moral categórico: não cabe ao povo palestino pagar a conta de um pecado que não lhe pertence. Isto reforçaria teses políticas reequilibrantes em benefício de árabes, palestinos e israelenses. Mesmo porque um co nflito infindável no Oriente Médio poderia desencadear um anti-semitismo laico, nem por isso menos rancoroso e indesejável.

A incoerente divindade de Jesus Não falaremos do aspecto emocional do mito cristão: um deus que morre em sua humanidade, para nos redimir de nós mesmos e nos fazer o bem. (Redimir, no caso, não significa nos salvar à revelia, mas, certamente, nos “reessencialisar” para o ciclo messiânico). Historicamente, em tempos de expectação fervorosa do “reino de Deus”, a interpretação mística da morte de Jesus de Nazaré reuniu fraternalmente, em seus primórdios, toda uma gama de deserdados, “despolitisando-os” na espera do retorno triunfal do ressuscitado que reporia as coisas em sua ordem ideal, segundo a subjetividade e as carências de cada expectante. Posteriormente, durante séculos, a idéia de um calvário para cada um de nós, a ser vivido com abnegação, criatividade e heroísmo seria o centro da espiritualidade católica. Para o autor dessas linhas, a idéia de um ser imolado em homenagem ao Criador é incompatível com religiosidade que se pretende contemporânea. Os padecimentos reais de Jesus, transformados em Soteriologia, soam discrepantes de uma visão humanística da existência, e a ela subjaz uma concepção de Deus a ser repensada. Em termos de divindade e humanidade de Jesus, o mito cristão é portador de uma contradição fundamental, pois a lógica nos levaria a crer que a divindade do filho de Deus penetraria todos os átomos de sua humanidade, transfigurando-a e tornando-a imune ao sofrimento físico e à morte. E é o inverso que acontece: a divindade de Jesus (grandeza maior) reflui para


que a morte (grandeza menor) possa ocorrer. À bem da verdade, porém, é preciso que se diga: este tipo de contradição não habita o Novo Testamento, pois, para seus autores, é o Pai que ressuscita o seu filho, como premissa da ressurreição dos “justos”, todos eles, no advento do reino messiânico de Deus. É o que diz o apóstolo Pedro, na versão solene dos Atos dos Apóstolos, cap. 2, v 22-32. (Neste horizonte escatológico, a ressurreição de Jesus não é a auto-ressurreição de um deus). Nas passagens heleno-divinisantes do apóstolo Paulo e do evangelista João, em momento nenhum existe equivalência metafísica entre Deus e seu filho. Para Paulo da epístola aos Colossences, a “energia” de Jesus é subsidiada: “Deus quis que toda plenitude habitasse nele” (Col. 1, v.19). No mesmo patamar temos ainda, 1ª Cor cap.15, v 27 – 28. No texto do evangelista João, no momento da explicitação maior do lado taumaturgo do Messias (a ressurreição de Lázaro), Jesus agradece a Deus pelo poder que lhe é concedido. (Jo. cap. 11, v 40-41). É o Cristo joânico que verbaliza o que corre de si nos demais evangelistas: “Eu nada posso de mim mesmo” (Jo, cap. 5, v. 30). Na verdade, as “falas” do Cristo joânico constituem manifesto teológico bem articulado em sua teatralidade e carga emotiva. Neste contexto o Filho é uma instância sacro-instrumental no seio de tríade litúrgica e cosmológica, e não de uma trindade igualitária, o que ocorreria no ano 325 no concílio de Nicéia, com alguns empurrões do imperador Constantino. Descendo a níveis menos celestiais, acrescentaríamos que a divinização de Jesus, seja ela instrumental ou trinitarista, desdramatiza o Calvário, assim como obscurece a face do Jesus historicamente localizado, no ato mesmo da adoração eclesial que lhe é tributada.

Calendário numérico e Calendário qualitativo TESE/ANTITESE/SÍNTESE. Esta é a estrutura dinâmica do existir humano, em termos individuais e coletivos, sociais e históricos. A antítese em uma dada historicidade não significa a sobreposição unilateral de uma parciali-


dade sobre outra, assim como a síntese não é a vitória maniqueísta de uma tese sobre outra tese, nem o repouso no reino da imutabilidade e do incontrastável. A dialética da existência não é tampouco um alpinismo mecanicista e o momento síntese é o da incorporação orgânica do elemento válido da tese combatida. Isto é totalmente oposto, como se vê, a qualquer forma de triunfalismo escatológico do bem contra o mau ou do Nirvana contra o tensionamento. A dialética sócio-histórica, por outro lado, de maneira alguma é relativista no sentido de equivalência do progresso e o não progresso, sendo que estas duas categorias se auto-definem no olhar de uma para com a outra. E este olhar recíproco traz consigo o novo viabilizável em um momento especifico, sem absolutização fictícia e sem minimização de sentido e de valor, sendo que a História como portadora de mutações que redefinem o ser e a vida não carrega seu ponto final no próprio ventre, nem recebe do exterior de si mesma sua justificativa e sua transcendência. A evolução civilizatória, por caminhos penosos, nos legou a certeza de que libertar a existência do trabalho excessivo, das doenças e das guerras é um panorama qualitativo de valor universal que pertenceria a nós humanos, graças as lágrimas do passado e ao presente que poderia viabilizar um futuro em que o Outro seria recebido como a mediação do que teríamos de melhor em cada um de nós.

Reflexões abstrato-realistas sobre um erotismo humanizante 1) “Eu te amo“ dito a uma só pessoa durante anos e anos não decorre da inclinação amorosa em si mesma, mas de um vetor religioso a partir de um momento dado da História ocidental. Trata-se, com efeito, de um círculo binário incompartilhável e de uma linha divisória, cedo ou tarde perceptível enquanto tal, por mais rica, densa e profunda que seja esta relação. (Esse vetor de origem religiosa, na prática, se faz acompanhar de interesses patrimoniais que reforçam a idealidade da tese, sem obstruir, contudo, o claudicar de sua realização empírica).


De outro lado, uma dispersão afetiva sem assimilação personalizante do outro é infra-humano na linha qualitativa. É adição sem sinergia. É o avesso mecânico da monogamia, sem a eventual superação construtiva da mesma. E, no limite, teríamos um segmento maior ou menor de palidez intersubjetiva, na esteira da finitude de nossos dias. 2) Em uma hipotética pós-monogamia sinérgica, o conceito de fidelidade seria reavaliado através dos exigentes conceitos de lealdade dialogante, transparência e realização pessoal. Algo diferente, pois, dos opostos individualismo permissivo e do autocerceamento apriorístico e ritualizado. Teríamos, em princípio, uma fidelidade mais sofisticada e menos linear, mas, sem dúvida, problemática em nível emocional. Vale dizer: problemática em si mesma para “ três-quartos dos habitantes do planeta”, fazendo-se uso, aqui, de uma quantificação com propósitos figurativos. 3) Uma eroticidade sensível aos clamores a favor de uma norma refundante ou da simples intuição interpessoal demandaria grau apreciável de refinamento psicológico, de bondade ativa entre as pessoas e de afetividade lúcida entre os envolvidos. Ela poderia, em sua dinâmica, tornar-se bissexual, graças a extensão do sensorial humano e a complexidade “geológica“ do psiquismo deste primata à cata de si mesmo, multifacetado navegante das águas entre o hoje e o amanhã. 4) Em forma de enquadramento emocional à la Fourier, socialista pré-marxista: Lurdes/Pedro, Vânia/Moacir, eis quatro amigos muito jovens que se encontram em convivência quase diária. Eis , na imediata pós-adolescência, dois casais efetivos que “ sinergizam “ em pares polimorfos e cambiantes entre eles.Eis a amizade densa desaguando em Eros realimentante. (Eis o amor vivenciado com amor). Articulando entre si as verdades parciais contidas nos quatro itens desse painel, posto que sopesá-las seria um gesto arbitrário, diríamos que, em matéria de sexualidade, precisaríamos repensar ditames de ressonância metafísica sem cair na messianização desta ou daquela “cama nova”,com supostos efeitos de redenção universal. Repensar as “táboas da lei” sem a pretensão de uma cartilha definitiva para a felicidade geral, o que seria ingênuo, fugaz e ...religioso, em termos psicológicos. Mesmo porque a


simbólica fusão entre Ágape e Eros não poderia ser a panacéia romântica contraposta às águas do infortúnio, da desolação e das parcialidades conflitivas da vida real.Na verdade, Ágape/Eros seria redimensionamento e conquista, jamais uma epifania triunfalista e finalizante. Seria mais que um refúgio insular e menos que um salvacionismo extravazante. Seria, no fundo, a compatibilidade dialética entre o ser e o vir-a-ser. Ou, tomando emprestado duas categorias filosóficas de Sartre, teríamos o “para-si” do significado pessoal sobressaindo do “em-si” da existência corrente, no aqui e agora de um espaço localizado e de um tempo determinado.

À guisa de conclusão não-dogmática, diríamos que sala de visita e quarto de dormir são mais que convenções espaciais saídas das pranchetas do arquiteto e do construtor. Trata-se, na verdade, de duas instâncias psíquicas no interior de um dado tipo de socialização humana.Neste contexto, uma certa fluidez personalizante entre a primeira e a segunda poderia configurar um avanço libertário, eqüidistante de uma presumida rigidez monolítica e de uma banalização sexual ególatra, sub–racional e sub-filosófica. A re-significação do quarto de dormir, quando este for o caso, não reduziria a sala de visita em simples espaço de etiqueta vazia e protocolar. Ambas instâncias, cada uma delas com sua realidade substantiva, fazem parte de desejável humanização individual, na escala dos dias, dos meses e dos anos. E na dimensão sócio-histórica, pela qual as lágrimas de hoje, de alguma maneira, subsidiam as alegrias do amanhã, Ágape/Eros e Eros/ Ágape qualificam este processo evolutivo, sendo que, aqui também, crescimento sintetiza redefinições, reabordagens e re-iluminação. Maio de 2000/Outubro de 2007


Um diálogo polêmico, tenso e contemporâneo O TEÓLOGO: Quem fala em bissexualidade, fala necessariamente em homoerotismo como uma de suas vertentes ou momento. Eis aí, algo que recebe as condenações das tradições judaica e cristã (malgrado as diferenças entre elas), bem como a de Platão na antiguidade grecorromana. Seria coincidência sem importância maior estas duas condenações advindas de esferas culturais tão assimétricas? O ESCULTOR: De que Platão estaríamos falando? Do Platão cristianizado por uma leitura confessionalizante, ou de Platão em sua dimensão natural? De Platão em si mesmo ou de Platão pós-Platão? De qualquer maneira, no ambiente elitista acadêmico, a atração pela beleza juvenil masculina era moeda corrente. E, se de um lado Sócrates não aceita o devotamento do jovem Alcibíades traduzido em erotismo, de outro não o considera portador de desejos estranhos, sendo que rigorosos comentaristas enfatizam o aspecto de comedimento na recusa do mestre Sócrates: ele não vê este algo mais na natureza circundante. Eu registraria que este patamar singelo que hoje acharíamos ingênuo, seria transformado em ortodoxia sexual de espessura própria, devidamente parssionalizada desde suas origens. É como se a idéia de exagero contida no “além do natural” socrático fosse uma nota musical interpretada a priori em sustenido, viciadamente. Convém lembrar que na composição social da Grécia antiga, os agrupamentos filosóficos não eram freqüentados por mulheres. De onde, seu homoerotismo era uma forma particular de machismo, oriundo da macro-prevalência masculina na escala dos valores e dos fatos. Esta unilateralidade sócio-corporativa não corresponde, pois, a noção de bissexualidade contemporânea. Eu diria, ainda, que não pretendo transformar este encontro em polêmica sobre Platão, mesmo porque me faltariam fôlego e motivação para tanto. Achei, apenas, que seria oportuno contextualizar o “além do natural” socrático e o “anti-natural” cristão, observando a diferença entre uma dada argumentação filosófica (pertinente ou não) e o apriorístico religioso.


O TEÓLOGO: Malgrado a interpretação chocante que acabo de ouvir, em que o espírito de nuance é perpassado pelo tendencioso que subtrai, concordo que devemos ser modestos neste debate. Eu não deixaria de frisar, entretanto, que o ateniense que produziu seus diálogos quatro séculos antes da era cristã, quando pensou em uma cidadania ideal, condenaria o homoerotismo de maneira insofismável. O ESCULTOR: Como, igualmente, baniria os poetas da cidade modelo, segundo seus parâmetros. Platão via no homoerotismo um excedente de volúpia e um gesto humano desmesurado, residindo exatamente aí sua contradição com um ordenamento equilibrado na direção do Bem e do Justo encarados como estrelas reluzentes em sua idealidade não biográfica. Devo dizer, sem mais delongas, que a concepção de uma esfera ideal do ser antecedendo sua materialidade concreta me exaspera alergicamente. É que, aos meus olhos esta transfiguração estético-divinizante de um conceito nos encurrala a todos, na medida em que faz do mundo, previamente, um espaço retendo um menos ser à procura de si mesmo e de novos ares. Esta mundanidade restritiva é tão notória para Platão que ele estimava que, para a maioria dos mortais, a alma requer um número gigantesco de materializações sucessivas antes de seu retorno à suas origens supra – e pré – humanas. O TEÓLOGO: Com a mudança das tônicas culturais inerente ao passar das primaveras e dos verões, seria possível uma releitura progressista dessa defasagem: as realidades terrenas não expressam, necessariamente, o que Deus pensa sobre elas e qual seria seu desejo. O ESCULTOR: Neste caso, a esquerda religiosa abrigaria seus sentimentos reformistas sob o manto da volição divina. Lamento, apenas, que intuição semelhante não chegasse a tempo de evitar o sessenta milhões de mortos ocorridos nas duas guerras mundiais de 1914 à 1918 e de 1939 à 1945, envolvendo países de maioria cristã.


O TEÓLOGO: Convidando a serenidade, sempre bem-vinda, a transitar um pouco entre nós, eu gostaria de trazer para este debate o ateu Sigmund Freud que vê na polaridade macho-fêmea a fase adulta da sexualidade humana.

O ESCULTOR: Eu não diria, pretensiosamente, que o judeu Freud era mais talmúdico do que pensava ele próprio. Eu diria que, lendo e relendo três textos consagrados do corajoso autor, não consegui estabelecer se, para ele, a padronização da conduta sexual aconteceria pela simples diferenciação hormonal pubertária ou é o preço que se paga por uma dada concepção do sexo. De modo que, com ou sem Freud, a questão da bissexualidade permanece. E nesta retomada eu declaro, quase solenemente, que concordo com a não messianização do sexo, no amplo espectro da libertação humana, salientando, porém, seu papel relevante na intersubjetividade concreta de pessoas reais. Eu diria que superando a cama inibidora de uma sociedade repressiva e aquela sem afetividade (antes, durante e depois), existe uma cama humanizante em que o biológico atua positivamente sobre o psiquismo, e este, por sua vez, produz efeitos construtivos sobre o relacionamento como um todo. É neste espaço em que duas subjetividades se redimensionam no mesmo prazer, que haveria lugar para bissexualidade como expressão de uma amizade densa, sensorializável em sua dinâmica. Ou, até certo ponto, em sentido inverso: a atração pelo belo gerando uma amizade biografável, digamos assim. O TEÓLOGO: A vivacidade de meu oponente indica que ele confere um crédito especial às relações afetivas deste planeta. Meu caro escultor não pretende inflacionar o relativo, mas suas convicções não estão isentas de um certo “eu gostaria que assim fosse”. O ESCULTOR: Eu diria, enfaticamente, que sempre recusarei olhar a existência como algo fechado, interpretando cada segmento histórico como a confirmação empírica de uma miserabilidade ontológica. Eu diria, ainda, que não consi-


go ver a problematicidade da vida postulando um conjunto de princípios, em que cada um deles seria eternamente grávido de si mesmo. Estas duas posições são ilusórias, sendo que a carga negativa da primeira fabrica dentro de nós, sedutoramente, a aparência positiva da segunda. Eu receio que meu oponente se sinta exageradamente confortável nesta armadilha psíquico-filosófica. O TEÓLOGO: O escultor e o teólogo deste recinto não foram convidados para sobrecarregar o público que nos assiste, com um debate seco de pura exposição de idéias. Fomos convidados, creio eu, pelo que somos: relativamente conhecidos e moderadamente civilizados, capazes de equilíbrio emocional entre a secura de alma e coração e o seu oposto, inadequado em um debate como este. O ESCULTOR: De minha parte, eu agradeço os generosos atributos que me foram emprestados e concordo que devemos ser equilibrados neste debate, sem rigidez, todavia. O TEÓLOGO: Que me seja permitido dizer amém, válido para mim mesmo e para este escultor quase perigoso em sua habilidade neste encontro. O ESCULTOR: Vi muitas coisas em minha vida, pelos meus próprios olhos e por olhos de terceiros. Vi o suficiente para perceber que somos capazes de nos eletrizar pela beleza de uma eventual passante, e simultaneamente nos sensibilizar pelos atributos físicos de seu jovem acompanhante, vendo nele um não sei o quê de demanda afetiva que não nos deixa indiferentes. Não estou preconizando uma sexualização apriorística, compensatória de nossas frustrações na luta pelo pão de cada dia. E tampouco acharia, ingenuamente, que uma sociedade feliz seria quase desprovida de interditos sexuais e operacionais. Mas, sendo capaz de entender realidades contextualizadas, acho que vivemos em um estágio de sub-desenvolvimento sensitivo e moral encoberto por uma sexualidade consumista que se pretende emancipadora. Não nego, por outro lado, que a antevisão de uma expansão grosseira


e mecânica de novas condutas sexuais me deixa pensativo, com certa frequência. Eu me pergunto se este estado de espírito seria fruto de um elitismo bem-pensante no qual não me reconheceria de pronto, e a resposta vem sem maiores hesitações: não me vejo dissimulando de mim mesmo este pecadilho cívico-existencial que seria este elitismo involuntário. O TEÓLOGO: Eu diria, teólogo que sou, que ao nível singular a dois, a imagem desta conduta erótica vem adocicada pelas ideias de bondade e afeto, mas, tal complacência, não resiste a visão de um erotismo entre todos e para todos, se assim posso me expressar. Quando o singular é transposto para o plural multiplicante, a consciência do estranho paralisa a certeza da resposta, e eu vejo nisto o eco de um axioma fundamental: só é válido para Pedro o que for válido para todos Paulos e Marias universais. Eu me regozijo, direi francamente, com a honestidade de meu oponente, pois este tipo de contradição é inaceitável, o público bem o sabe. O ESCULTOR: Honestidade não significa capitulação. O entusiasmo prematuro de meu oponente é de todo injustificável, pois ele parece não compreender que esta contradição é a fase intermediária de quem paga o seu tributo ao ventre cultural que o fez nascer enquanto individualidade pensante. Quem nunca passou por crispação semelhante sobrevive no espaço estreito das certezas dogmáticas, sem a grandeza das dúvidas dinamizantes e das respostas à altura. A diferença entre minha posição e a de nosso teólogo é que existe para ele um conjunto de verdades cuja a aceitação resgataria a solução dos problemas humanos. Para mim, o certo deve ser procurado caso a caso, como regra geral da existência, sendo que na vivência de nossos cotidianos, ele e eu enxugamos nossas próprias lágrimas em nossas vidas tão diferentes uma de outra. Enquanto eu, às duras penas, tento captar o belo fugaz, passando sua sensualidade intrínseca à matéria bruta, meu caro oponente faz aquilo que considera seu dever: impregnar a consciência de seus leitores e ouvintes de valores que reputa definitivos. Neste sentido específico, eu diria que ele materializa o espírito e eu espiritualizo a matéria. O TEÓLOGO: Este dom que Deus lhe deu produz resultados que eu posso admirar,


arrebatadamente inclusive, se este for o caso. O ESCULTOR: O meu ofício exige de mim uma bissexualidade de percepção e de olhar, pois entre a obra de arte produzida e o ato de faze-la existe o encantamento do artista pela fisicalidade que tem sob seus olhos. É exatamente este algo mais singular que vai enriquecer o algo menos plural dos usuários da obra de arte. Estou querendo dizer, sem nenhuma vaidade pessoal, que a numérica anormalidade de certa gama de pessoas ressubstancializa a normalidade de outras, sendo que a sensibilidade do artista pode ser relativamente casta em sua vivencia pragmática. O TEÓLOGO: Considerando que existe certa diferença de estrutura entre o nível emotivo-cerebral da inspiração da obra de arte e o da sexualidade genitalizada, eu aceitaria esta colocação como um dos elementos do mecanismo psicológico no ato da criação artística com modelos humanos. Mas, eu lembraria que seria impensável um código moral para uma certa elite e outro para o povo a ser domesticado. O ESCULTOR: Eu jamais defenderia essa tese, mesmo sabendo que as coisas são mais ou menos assim na vida em sociedade. Quanto a hipótese de uma bissexualidade desguetizada, um dia consensualizaremos que a correlação monolítica entre biologia reprodutiva e fisiologia libidinal existe no interior de uma tradição a ser reexaminada por todos aqueles que se permitem pensar para além dos automatismos ideológicos de ontem e de hoje. O TEÓLOGO: Cabe-me então perguntar: como seriam este macho e esta fêmea deste futuro fantasioso? Flutuariam todos por uma zona indecisa, ávidos de um suposto refinamento libidinal? O ESCULTOR: Recebo com naturalidade esta ironia maldosa. Sei até apreciá-la sem maiores suscetibilidades. Acontece que por temperamento e pela vocação que me atribuo, não sou propenso a certas especulações. Mesmo porque,


segundo dizem, o futuro a Deus pertence. Brincadeiras à parte, seria fácil inferir que teríamos homens e mulheres abertos à extensão do sensorial humano e ao lado positivo do lúdico na afetividade inter-pessoal. Obviamente, a reciprocidade volitiva macho-fêmea continuaria intacta, deixando apenas de ser excludente e balizadora de uma moralidade pré-definida. Enquanto ser humano eu desejo que o bem prevaleça, assim como irei sempre desejar que o mundo gerador do mundo maltrate menos seus habitantes, livrando-os da fome, da miséria e da insalubridade física e mental. Eu diria que o sentimento agudo da brevidade da vida, presente na sexualidade ansiosa do passado grecorromano e na mística de anti-prazer do medieval cristão, estaria pedindo recolocação mais amadurecida que as duas precedentes. Eu chamaria esta terceira fase de neorrenascentista, graças ao caráter antropocêntrico de meios e fins. Nesta perspectiva, os pólos da vida enquanto parâmetros regenciais e enquanto felicidade amorosa se nutririam reciprocamente, sendo que cada individualidade encontraria na concretude cambiante de seu existir, qual seria sua vivencia afetiva-libidinal, desde a abstinência auto-gerenciada até a bissexualidade lúcida, para muito além dos modismos periféricos. O TEÓLOGO: Mesmo não concordando com a generalização de anti-prazer atribuído ao cristianismo, e definindo como extrapolante a abordagem de meu oponente, eu vejo que suas palavras, na realidade, não se apresentam como redentoras do universo... O ESCULTOR: Sei, perfeitamente, que minhas palavras seriam dissonantes em um manifesto pela refundação da pátria, decepcionando gregos e irritando troianos. É que elas expressam uma convicção e uma perspectiva, jamais um dogma a ser imposto pelas artimanhas da retórica e do passionalismo sectário. E elas são pronunciadas por quem sabe, de antemão, que a História não tem como vocação realizar as expectativas dos seres parciais que a vivenciam na extensão da pluralidade humana e na verticalidade das gerações. E nesta verticalidade sequencial, nós somos os subsídios dos subsídios até o ponto derradeiro que seria a extinção da vida no planeta pela agonia e morte da estrela média que chamamos Sol. Esta radicalidade negativa inerente ao fim dos séculos, não consagra o desespero e o cinismo


como vedetes da existência. Mil vezes não! A finitude da espécie humana nos sugere, cosmicamente, que fazer o bem na procura do belo dá sentido ao sofrimento pretérito que nos fez chegar até aqui. Na malha das conexões inter-pessoais minha felicidade passa por mãos alheias e a felicidade de terceiros passa pelas minhas. Esta perspectiva é realista e racional em seu todo, pois na amizade ou no repúdio todos nós nos subsidiamos uns aos outros ao longo de nossas vidas. O TEÓLOGO: Nesta linha de raciocínio, aos adjetivos “realista” e “racional” eu acrescentaria o adjetivo “santificante” no sentido de uma resposta auto-corretiva consciente no jogo da vida. Fazer o bem para embelezar a existência seria uma obrigação que teríamos com nós mesmos, com nossos antepassados e com o futuro. O ESCULTOR: O adjetivo “santificante” nos remete ao substantivo “santo”, evocando um repertório de renúncias cruciais que torna o vocábulo perigoso, em meu entendimento pessoal. Assim sendo, eu preferiria a idéia de ações auto-construtivas na dinâmica da reciprocidade e do intercâmbio. O TEÓLOGO: Eu, de minha parte, concordo e discordo, antevendo que as avaliações do certo e do belo não seriam unânimes, mas conflitivas e penosas. O ESCULTOR: É aqui que seríamos beneficiados pela Historicidade como dimensão capaz de redefinições as mais diversas. Sem ela, aliás, existiria entre nós o crepitar de fogueiras que hoje repudiaríamos como crudelíssimas e contra a dignidade do ser humano, seja ele quem for. O TEÓLOGO: Falando rigorosamente, estaríamos no anonimato das cavernas, padecentes do medo e das aflições generalizadas. Eu nunca deixarei de ver o sopro propulsor de Deus nas velas de nossa intrepidez e de nossa vitalidade, em cada centímetro de progresso humano e social. Quanto ao fim das fogueiras religiosas, considero um grande privilégio ser um teólogo nos


dias de hoje, nos quais o confronto pluralista empurrou o cristianismo para o âmago profundo de suas potencialidades autorrenovadoras. Mas, nem por isso, eu quero presenciar a guilhotina de um laicismo expansionista, substituindo as execuções teocráticas. O ESCULTOR: Enfatizando que a guilhotina é supostamente quase indolor, eu diria que a lucidez de meu caro oponente passa pela metabolização de um laicismo que nos afetou a todos, demandando uma redefinição do conceito de santidade, creio eu. O TEÓLOGO: Sim e não, em certa medida. O ESCULTOR: Por outro lado, é claríssimo para mim que a dialética da existência não é uma coreografia pré-definida, e, sim, uma realidade pela qual nós somos os modificados e os modificadores para além das etiquetas de um momento dado. O TEÓLOGO: Eu diria que meu oponente, às vezes, é quase cristão e talvez não o saiba...

O ESCULTOR: Eu me caracterizaria como neo-judeu, brincando um pouco com as palavras. Na verdade, acho fascinante o aspecto terrenal do messianismo judaico: “O lobo e o cordeiro viverão lado a lado / As espadas serão transformadas em relhas dos arados / O orvalho da madrugada fecundará os pastos dos rebanhos”. Isto é belíssimo como desejo humano e como luminosidade religiosa. Uma autêntica “teologia da libertação”, muitíssimo antes de sua congênere cristã modernizante. Admiro, igualmente em sua simplicidade, a idéia de Deus se comunicando com os seres humanos sem a mediação deste ou daquele messias sobrenaturalizado. Abominável é a “pedagogia” de ameaças de genocídio que os autores bíblicos colocam na boca do Deus de Israel: uma verdadeira aula de barbárie ecumênica, ora contra, ora a favor


dos judeus contemporâneos da redação da Bíblia hebraica. Como vemos, o neo-judaísmo que me sensibiliza é na verdade um pós-judaísmo. O TEÓLOGO: Existe historicidade na percepção do divino pelo humano, assim como existe historicidade na compreensão do humano por si próprio. O refinamento teológico não nasce nas primeiras vinte e quatro horas da presença humana no planeta. O ESCULTOR: E tampouco nas imediatas quarenta e oito horas após o nonagésimo ano! Neste contexto, Adão, penetrado pelo medo e pela perplexidade em sua luta pela existência conceberia um Deus segundo seus híbridos sentimentos pessoais, colocando nele, inclusive, uma bondade humana relativa que se tornaria plena por definição. Infelizmente, esta plenitude não se faria notar com muita frequência nos desdobramentos da história humana concreta... O TEÓLOGO: Eis uma ironia portadora de ressentimento contraditório, porquanto se cobra de Deus no qual não se crê o que Ele deveria ter feito de bom e supostamente não o fez, aos olhos do inquiridor apressado que não sabe ler no painel da vida sua inerente complexidade. O ESCULTOR: Complexidade não é uma palavra mágica a ser usada como refúgio...

O TEÓLOGO: Em busca de esquematização empobrecedora e didática que me é solicitada, eu diria que o elemento transcendental da proposta religiosa passa pelas estruturas ambientais, formando com elas uma espécie de ecossistema evolutivo no tempo e no espaço. O ESCULTOR: Gostei, sinceramente, da modernidade deste enquadramento do fator religioso no fluxo da existência. Receio, todavia, que vários de seus confrades


passarão a temê-lo, rotulando-o de cripto-materialista. O TEÓLOGO: Enquanto teólogo de ideias, sentimentos e consagração, eu pediria que Deus nos abençoe à todos neste hoje crepuscular e no amanhã de nossos filhos e de nossos netos, amém! O ESCULTOR: Percebo a intenção bondosa dessas palavras e a ela me associo, plenamente. Acontece que sou habitado por incredulidade teimosa, incapaz de pressentir um domingo reluzente após o sábado inelutável da morte. Mesmo assim, confirmo este “assim seja” para nossas vidas até o amanhã que se distancia do amanhã, geração após geração. O TEÓLOGO: Eu pediria, comovido, que Deus inefável e pai abençoe nossas vocações, sendo este o meu ponto de encontro entre o passado recente e o futuro longínquo. O ESCULTOR: A cada um de nós, sejamos João ou Maria, solitários ou comungantes, o que nos revitaliza nesses anos de tristeza e alegria, serenidade e angústia. Eu fico, modestamente, com meus instrumentos de trabalho e a finitude de meus dias, tentando recriar o belo com a força de meus braços, com minha arte e com minha vida. O TEÓLOGO: Deus seja louvado!

Uma cidade com sete colinas O cardeal James Spencer, irlandês de sessenta e cinco anos, é eleito papa na terceira votação de um conclave equilibrado em sua composição eclésio-política, adotando o nome pontifício de João Marcos I. A assembléia


de cardeais aplaude festivamente o escolhido, vendo nesta eleição de um eclesiástico de língua inglesa, o sinal dos tempos e talvez uma proposta de origem divina. Esta alegria corporativa recai sobre os ombros de uma pessoa brilhante em sua trajetória sacerdotal, mas o circulo íntimo de seus poucos amigos permanentes o sabem relativamente propenso a certas depressões inquietantes. Ele próprio, o eleito, após momentos de emoção profunda, assume suas funções procurando se inteirar da mecânica administrativa que subjaz ao vicariato universal do bispo de Roma com um grau de inquietação interna crescente que estaria na base de sua dedicação exemplar ao trabalho. O ritmo exaustivo de suas jornadas ocultava uma angústia cada vez mais volumosa ao deparar-se com a imagem que tinha de si mesmo e as exigências de suas funções, segundo ele as via. Não seria esta a primeira vez que sentir-se-ia assim, mas nunca o peso de seu estado de espírito lhe foi tão intenso como o vivenciado nestes dias. Em seus momentos de insônia, ao fim de cada dia de um trabalho multiforme, ele revê sua vida pregressa, chegando até sua juventude anterior ao Seminário. Lembra-se, então, que sempre fora um católico entusiasmado e feliz neste entusiasmo juvenil. Bastante cedo se interessou por leituras bíblicas, em uma época que a Igreja não estimulava essas leituras para o seu laicato. Muito cedo, também, teve interesse em conhecer autores de fora de sua comunhão de fé. E foi assim que teve acesso a teólogos e exegetas protestantes, bem como a certos especialistas que abandonaram a vida eclesiástica após reflexões maduras sobre questões bíblicas espinhosas. Neste contexto, gulosamente, absorveu o que havia de melhor em alguns destes autores. Mas ai sua fé pessoal claudicou, e ele sentiu-se desamparado e só em uma sociedade de um catolicismo clerical, agrário e regionalizante, sendo que esta solidão lhe fragilizava ao extremo. Eis que, então, aceita o desafio de tentar a vida sacerdotal, no que é abençoado por seus pais e demais familiares, quase automaticamente. Alguns amigos de seu dia-a-dia, ele os tinha poucos, não percebendo o sofrimento que antecedeu sua decisão, aceitaram sem relutância seu direcionamento vocacional. Nenhum deles sabia, bem como seus familiares, que suas leituras juvenis abalaram o vai de si de sua adesão religiosa, chegando mesmo a por em questão o dogma trinitário e a fundação da Igreja como obra pessoal de Jesus. Tudo lhe vem a mente em suas sofridas noites de insônia. Mais que isto: pergunta-se a si mesmo se estas dúvidas abafadas pelo rigor da vida de seminarista e de sacerdote não invalidam seu ministério. Pergunta-se a si mesmo se seu sacerdócio não


seria inautêntico sob o ponto de vista psicológico, sendo tomado pela idéia de renúncia as suas funções de pastor e guia de um catolicismo contemporâneo. Honestamente pensa que este gesto se impõe, moralmente falando. No auge da angústia solicita seu confessor, que, atônito lhe recomenda oração suplicante e um descanso provisório em sua labuta administrativa, pois Deus jamais abandonaria seu servo, sendo que o pontificado romano daria margem a uma brilhante atuação indireta na solução de graves problemas sociais. Sentindo-se personagem de si próprio, por um momento, nosso atormentado pontífice chega a se conceder certa dose de carinho auto-indulgente, seguido de um redobrar de consciência culposa: não tem ele condições de pastorear seu rebanho, e como tal renunciaria imediatamente, indo terminar seus dias em um convento contemplativo, na paz da oração e do trabalho humilde. Seu confessor, na qualidade de alguém que foi procurado espontaneamente, com severidade lembra ao confessante que a magnitude de suas funções o impede de pensar sequer nesta hipótese irreversível. A situação seria tão incomum que um surto de boatos incontrolável, fruto da perplexidade dos fiéis, prejudicaria a Igreja em sua Missão precípua. E ele, João Marcos I não poderia ser o responsável por este desastre, conseqüência de uma fraqueza psicológica a ser corrigida.

Em meio a estes dois posicionamentos obstinados e conflitantes, o

do sacerdote sendo fiel aos imperativos de sua consciência, e o do confessor tentando salvar um pontificado, sobrevêm em um sexagenário aparentemente saudável um derrame cerebral que o impediria de realizar suas obrigações pastorais e o levaria à morte ao cabo de escassas cinqüenta e seis horas. O que os fiéis jamais saberiam é da crise de consciência que devastou os últimos meses de um pontífice tão promissor ....


Epílogo Redundante O buraco negro devora a estrela agonizante que morre sem gemido no espaço sideral. Os animais do planeta Terra matam-se uns aos outros na mais sintomática ecologia darwiniana. Os homens que nascem no quadro desta luta selvagem pela sobrevivência herdam de seus predecessores parte da ferocidade requerida pelo processo, com uma diferença fundamental: a espécie humana aceitando-se reativamente evolutiva através dos séculos, pode pensar o mundo resolvendo seus conflitos específicos no aqui e agora de um tempo que se proponha superar a longa e dramática pré-história universal.


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