AXILAS
"Há um novo filme de José Fonseca e Costa para ver"
DEEPHAN
MAIO | JUNHO 2016
O REFÚGIO
A Palma de Ouro de Cannes de Jacques Audiard
UMA PASTELARIA EM TÓQUIO Delicioso conto de passagem entre gerações
JANIS LITTLE GIRL BLUE Uma das grandes estrelas de blues-rock num documentário absorvente
CICLO GRANDE CINEMA RUSSO DO MUDO À PERESTROIKA
Um dos grandes acontecimentos cinematográficos do ano MAIO | JUNHO 2016
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EDITORIAL Na obra de José Fonseca e Costa, um dos símbolos da nova geração do Novo Cinema português a partir dos anos 70, há um estimulante diálogo com a literatura, nas adaptações que fez ou na escrita dos argumentos (trabalhou, por exemplo, com Mário de Carvalho ou David Mourão-Ferreira). Vamos ver agora um novo filme seu, o seu último filme, cuja rodagem estava perto do final quando a morte o surpreendeu. Axilas, escrito com Mário Botequilha, “apropria-se” também do texto homónimo de Rubem Fonseca e homenageia O’Neill, para nos falar de Lisboa e de Portugal, questões que JFC tinha consigo mesmo. Para além das muitas estreias que lhe propomos, destacamos o ciclo Grande Cinema Russo - do Mudo à Perestroika, que, como várias publicações escreveram, é um dos mais importantes acontecimentos do ano. As Nossas Salas: Cinema Monumental (Lisboa) Espaço Nimas (Lisboa) TMP Campo Alegre (Porto) Auditório Charlot (Setúbal) Theatro Circo (Braga) Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra) Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz)
Programação sujeita a alterações de última hora. Confirme sempre em www.medeiafilmes.com Equipa Director: Paulo Branco Coordenação Editorial: António Costa Colaboram neste número: António-Pedro Vasconcelos Bernard Eisenschitz, Chen Gatete Cláudia Coimbra, Diana Cipriano Ethan Hawke, Fátima Castro Silva João de Menezes Ferreira José Manuel Mouriño, Louis Black Luís Filipe Rocha, Nuno Galopim Mário Botequilha, Renata Curado Richard Linklater, Rui Pedro Tendinha Sabrina D. Marques, Vincent Lindon Design: André Carvalho e Catarina Sampaio Capa: Axilas Com o apoio
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TODOS QUEREM O MESMO EVERYBODY WANTS SOME
DE RICHARD LINKLATER
Duração: 117 min
COM BLAKE JENNER, TYLER HOECHLIN, RYAN GUZMAN, JUSTON STREET, ZOEY DEUTCH
Excerto de uma conversa entre Richard Linklater, Ethan Hawke e Louis Black durante o festival South by Southwest, onde Todos Querem o Mesmo foi o filme de abertura. Cortesia do jornal The Austin Chronicle. Linklater: Fiquei tão feliz por finalmente conseguir fazer este filme. Hawke: Sim, porque já tinhas escrito o guião há algum tempo. Linklater: 10 anos! Sabem, este é o filme que eu andava a tentar fazer há muito tempo. […] Na altura do Juventude Inconsciente, por exemplo, eu tinha uma espécie de legitimidade, “Claro que sim, este é o argumento do meu próximo filme!” Agora, fico feliz por poder ter feito isto. Hawke: Lembro-me de ler o argumento… As lágrimas escorriam-me literalmente pelo rosto enquanto estava a lê-lo. Não podia acreditar. Passaram-se oito, nove anos, e depois vê-lo, e depois ver que aqueles tipos percebem que — é muito difícil de fazer. Quero dizer, conseguir que jovens rapazes se sintam confortáveis e descontraídos enquanto um grupo de pessoas. Linklater: Estou tão orgulhoso deles. De cada um deles. Existem papéis mais importantes mas toda a gente, todos eles, estão lá… Ninguém desaparece. Hawke: É um verdadeiro elenco. […] Black: E em relação à banda-sonora de Todos Querem o Mesmo? Linklater: A banda-sonora é óptima… A música é mais diversa. Representa a forma como eu me sentia em relação a 1980 em oposição a ’76. Em 1976, estou resguardado, Rádio FM, uma única loja de discos na cidade, apenas rock, estão a ver? Mas neste filme é tudo. É disco, country, punk […] new wave, metal, Van Halen. Coisas como essas. Mas era assim, na altura. A metáfora era também sobre estar na faculdade. No liceu, estás encurralado. A faculdade é assim — todas as hipóteses estão sobre a mesa. Em aberto. Sentia-me dessa forma a nível musical, e a nível pessoal, e o filme é isso. Ficas simplesmente maravilhado com a liberdade absoluta daquele momento no tempo. […] A faculdade é melhor do que o liceu. Este filme (Todos Querem o Mesmo) é melhor do que aquele filme (Juventude Inconsciente). É isso que eu sinto. É simplesmente mais divertido. The Austin Chronicle / Medeia Magazine [Trad. Renata Curado]
Em complemento a Todos Querem o Mesmo é exibida a curta-metragem BALADA DE UM BATRÁQUIO, de Leonor Teles, Urso de Ouro no Festival de Berlim.
JÁ NOS CINEMAS
CEMITÉRIO DO ESPLENDOR
RAK TI KHON KAEN
DE APICHATPONG WEERASETHAKUL EM EXIBIÇÃO
Duração: 122 min
COM JENJIRA PONGPAS, BANLOP LOMNOI, JARINPATTRA RUEANGRAM
Cemitério do Esplendor: nos subterrâneos do futuro
Foi em 2010, com uma Palma de Ouro por O Tio Boonmee Que Relembra as Vidas Anteriores que o Ocidente abriu plenamente a atenção ao tailandês Apichatpong Weerasethakul. Contra o fluxo incessante que na contemporaneidade domina os ritmos das imagens, este é um cinema em ponto de expansão que sai dos eixos do tempo, mesclando o passado e o presente, o sacro e o mundano. Com a raridade de uma subtileza minuciosa, exponenciam-se as linguagens do cinema no reencontro com uma espiritualidade que se tem ausentado do grande ecrã. No recente Cemitério do Esplendor (2015), começamos no interior de uma clínica improvisada, onde as camas estão repletas de soldados misteriosamente doentes de sono permanente. Duas mulheres investigam e cuidam estes corpos inquietos por pesadelos. Se o filme se constrói por camadas de espessuras distintas e a ironia cifrada de certas cenas provavelmente só encontrará leitura plena junto do contexto de um tailandês, o impacto visual de cada sequência exemplifica esplendorosamente o apurado sentido de cor e de composição do realizador. Cemitério do Esplendor é intimamente decalcado da experiência real de Jenjira, actriz recorrente das curtas de Apichatpong, das memórias do próprio na terra natal de Khon Kaen e da história do país, politicamente tumultuosa desde a queda da monarquia. Nessa impressionante cena em que os miúdos jogam à bola sobre as terras revolvidas de um evocado reino antigo, denuncia-se à nova Tailândia a sua perda do sagrado. Cemitério do Esplendor é, simultaneamente, sobre o abatimento das tradições, a desvanecerem-se com a abertura forçada ao ocidente, e a celebração interior do que o presente esqueceu. Esta epidemia de imobilidade que atinge os soldados é, então, figura para um país que dorme defronte da ‘‘máquina-governo’’ e, nas pistas de um caderno,
suspeita-se de ligações possíveis entre o coma colectivo e esse campo santo que a retroescavadora revolve, simultaneamente desenterrando o passado e abrindo as covas para o futuro. Na paralisia de um rosto incrédulo, Jen força os olhos abertos: não adormecer para não esquecer? Entre rezas, ouvimos no templo acerca da devoção e do patriotismo de Jen, segura de que o marido americano ‘‘nunca vai perceber’’. E, no mesmo templo, uma voz feminina faz ecoar um cântico como uma oração em que um refrão se repete: os anos podem continuar a passar/ mas o meu coração permanecerá fiel. Este não-esquecimento não é só sobre essa universal moldura de eternidade em que o amor vence o combate contra a finitude. É emblema de uma reexperiência distendida do tempo que as bases budistas fixam num cinema da reencarnação, um continuum que está presente nesses dois pares de esculturas humanas, na mesma posição encarnadas e desencarnadas. O tempo é testemunho e aprendizagem. As duas princesas que protagonizam o colorido altar adornado de flores e de animais de plástico aparecem a Jen em pele humana. Cremos, então, que o despertar súbito do seu soldado favorito, ‘‘bonito como o Clark Kent’’, seja uma alucinação nascida da esperança que acordar todos os adormecidos. Contra as suas limitações físicas, a extraordinária insistência de Jen em manter Itt acordado adianta-se como exemplo da força motriz indispensável contra a letargia. Num derradeiro lance de ironia, acusa-se a difusão desse sonho americano que nem para os americanos chega: o sonho está corrompido como o marido americano que não é como era na internet. A resolução não é exterior: há um exército de superhomens tailandeses por acordar. Sabrina D. Marques
Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Un Certain Regard Asian Pacific Screen Awards — Melhor Filme
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JÁ NOS CINEMAS
CICLO GRANDE CINEMA RUSSO
DO MUDO À PERESTROIKA ESPAÇO NIMAS | TMP CAMPO ALEGRE
EXCLU
CINEMSIVO AS M
EDEIA
Está a decorrer [no Espaço Nimas, em Lisboa e no TMP ∙ Campo Alegre, no Porto, com extensões ao Auditório Charlot, em Setúbal, TAGV, em Coimbra, CAE, na Figueira da Foz, e Theatro Circo de Braga] o ciclo GRANDE CINEMA RUSSO — DO MUDO À PERESTROIKA, um dos mais importantes acontecimentos cinematográficos do ano. São duas dezenas de filmes, obras fundamentais na história do cinema, com cópias restauradas, muitos deles inéditos comercialmente em Portugal. No número anterior da Medeia Magazine Naum Kleiman escrevia sobre Eisenstein. Publicamos agora textos de Bernard Eisenschitz (sobre 3 dos grandes dos anos 20: Vertov, Dovzhenko e Barnet) e José Manuel Mouriño (que nos fala do papel fundamental de Mikhail Romm, e da sua ligação com os “antigos e os novos mestres” como Khutsiev, Klimov e Sheptiko, que serão extraordinárias descobertas neste ciclo).
Rússia Anos Vinte No final da década de 20, os cineastas soviéticos exploram todas as possibilidades da arte nova, que dera ao mundo o sentimento de uma marcha ao ritmo da revolução. Arsenal faz de Aleksandr Dovzhenko o terceiro grande da “epopeia revolucionária”, ao lado de Eisenstein e de Poudovkine. Porém, longe de ilustrar, como eles, os aniversários e as palavras de ordem, Dovzhenko ataca em modo poético as contradições da sua pátria, a Ucrânia, dividida desde a queda do czar entre nacionalismo e revolução. Nem os Ucranianos nem os Soviéticos lhe ficarão gratos por isso. Para Dovzhenko, comunista assumido, a revolução bolchevique é a consequência lógica das forças telúricas, mágicas, que criaram o seu país. No centro das massas e da história em curso, o seu herói operário, invulnerável às balas, emerge directamente da velha lenda do rebelde camponês Oleksa Dovbouch. Para Dziga Vertov, trata-se não de reflectir mas antes de fazer a revolução através do cinema. E, consequentemente, de revolucionar a prática do cineasta, assim como a do espectador: o próprio acto de ver. O Homem da Câmara de Filmar é uma 4
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experiência sem precedentes. “Pensamos”, dirá Vertov, “ter direito a ocasionalmente realizar filmes que produzam outros filmes. São uma garantia vital para futuras vitórias.” Este filme “sem intertítulos, sem argumento, sem teatro, sem actores e sem décors” mostra, simultaneamente, no decurso de uma perseguição alucinante: a projecção do próprio filme; o dia de um operador de câmara (o irmão de Vertov, Mikhail Kaufman, desempenhando o papel do cineasta); o quotidiano de uma grande cidade e dos seus habitantes, o que subsiste do mundo de ontem e o aburguesamento da nova sociedade. O cinema soviético não é feito senão de epopeias revolucionárias, sendo que a montagem não ocupa nele o único espaço. Ao impulso criador direccionado a um futuro transformado opõe-se a tendência de expor o ritual da existência quotidiana, o byt, segundo um conceito russo sem equivalente noutras culturas. É no quotidiano que a mudança de vida pode lograr, ou não. Desde o início, Boris Barnet, apaixonado pelos actores e, sobretudo, pelas actrizes, é um cineasta da felicidade possível e frágil: o exacto oposto de um artista oficial. A sua obra-prima do cinema mudo, A Casa na Praça Trúbnaia, permaneceu desconhecida fora da URSS
JÁ NOS CINEMAS até aos anos 60. Como a maior parte dos seus filmes, este está ancorado no presente, e as suas intrigas múltiplas giram em redor de uma jovem mulher ingénua e subtil. Barnet cria o argumento a partir do contributo de quatro escritores talentosos; parodia as formas das vanguardas sem as desvalorizar, para delas retirar a sua verdadeira força. Segundo Vertov, a câmara permite percorrer em todos os sentidos o tempo e o espaço. Barnet cita um episódio onde se joga a oposição entre cidade e campo. O teatro da agitação, os desfiles, a sindicalização e motivos de propaganda tornam-se articulações de uma tomada de consciência humorística e irónica.
O cinema, barómetro da sociedade, parece aqui funcionar em desfasamento com o seu tempo. Estes anos testemunham a eliminação política de Trotsky e dos opositores de Estaline, o primeiro plano quinquenal, a colectivização forçada, a revolução proletária em matéria de cultura. O cinema soviético submete-se à palavra de ordem de uma “arte acessível a milhões de espectadores”, excluindo toda a experimentação que o enriquecera. E no entanto, raramente produziu tantas obras-primas como antes. Os três filmes de Dovzhenko, Vertov e Barnet são apenas parte visível do icebergue, e resta-nos perspectivar ainda muitas redescobertas e descobertas. Bernard Eisenschitz [Trad. Cláudia Coimbra]
Vive; obra a que se seguiriam, completando assim o dito ciclo, Nove Dias de Um Ano (1961), Fascismo Quotidiano (1965) e, por último, E Ainda Acredito (1974). Como é possível comprovar, a sua biografia está eivada de momentos em que a sua figura se aproxima de uma encruzilhada-chave da história do cinema soviético: Romm merece ser recordado também pela sua luta contra movimentos anti-semitas no seio da Mosfilm e por ter-se convertido, com o passar dos anos, num especialista da obra de Eisenstein a quem os críticos e cineastas de todo o mundo acorriam pontualmente. Mikhail Romm — Entre os antigos e os novos mestres
Mikhail Romm foi um cineasta incomensurável. Seguir pormenorizadamente a sua trajectória obriga, por exemplo, a confrontar uma secção de estudo quase tão ampla como a própria história do cinema soviético. A razão fundamental para que este realizador deva ser mencionado não se prende apenas a questões geracionais ou cronológicas mas também à responsabilidade que assumiu em cada um dos papéis aí desempenhados. E se abordarmos de forma exclusiva a sua própria filmografia, deparamo-nos com uma referência igualmente fora do comum. O seu primeiro filme (Pyshka, 1934) supõe o final efectivo do esplendoroso período do cinema mudo na União Soviética, enquanto as suas últimas obras, já no estertor dos anos 60 e início dos 70, chegarão a fazer parte de correntes como a dos Novos Cinemas. São raros os casos em que a produção de um cineasta seja capaz de conter um itinerário de tal magnitude. Com efeito, a sua dicção cinematográfica acabou por ser tão variada que se torna difícil, por momentos, falar sequer de “evolução”. Aos nossos olhos, inclusive, se por acaso é oportuno entender o trânsito que formalmente cumpre o seu cinema como uma “evolução”, tal deve-se à viragem que representam os seus quatro últimos filmes. O ponto de inflexão seria uma pequena pérola documental (e em certo sentido “experimental”) de 1958 intitulada Lenine
Para além disso, foi também o venerado mestre a quem se atribui a responsabilidade de ter provocado, entre os distintos tipos de autor em potência que conheceu enquanto docente no VGIK, a relativa abertura — e suas consequências estilísticas — que chegou com o fim do Estalinismo. Romm assistiu, quer na qualidade de professor quer na de criador, a esse canto do cisne da cinematografia soviética que tão bem entoaram Tarkovsky, Klimov, Shepitko, Khutsiev [cujos filmes se exibem neste ciclo]… Importa assinalar aqui que a tutela que Romm poderia ter exercido, a mais importante das suas tutelas, nesse período crepuscular, não foi aquela que livrou os seus discípulos de problemas quotidianos, mas o modo como demonstrou a importância de, enquanto autor, se mostrar aquilo que vale. Salvar essa presença do criador na sua obra foi o objectivo final das preocupações de Mikhail Romm, tanto no seu cinema como no dos seus alunos. Se há algo de absolutamente fascinante no cinema soviético que hoje sobrevive — não podemos negá-lo — é a assombrosa intensidade com que cada um dos seus cineastas foi capaz de se “fazer presente” na sua obra. Por isso se torna imprescindível fazer renascer, hoje, o interesse por um homem como Romm. E já que começámos este texto falando da sua tendência, voluntária ou não, para o desmedido, existe maior sinal de grandeza do que a aspiração do ser humano em ser imortalizado pela imagem? José Manuel Mouriño [Trad. Cláudia Coimbra]
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ESTREIAS CINEMA
UMA PASTELARIA EM TÓQUIO AN
DE
NAOMI KAWASE
BREVEMENTE
COM KIRIN KIKI, MASATOSHI NAGASE, KYARA UCHIDA
Amanhece em Tóquio. Um homem sobe e depois desce umas escadas. Há flores florindo à porta. Nas ruas, nas praças, as cerejeiras em flor. “Flor de cerejeira —/ cada sítio onde se pára, / é só flores e flores.”1 O homem dirige-se a um pequeno estabelecimento, uma pastelaria, e começa a trabalhar. Peneira a farinha e o fermento em pó. Bate os ovos e adiciona o açúcar, leite, mirin e shoyu. Mistura bem até conseguir uma massa homogénea, de cor amarelada. Numa chapa vai colocando colheres de concha dessa massa. São pequenas panquecas, que deixa depois arrefecer. Molda o feijão azuki previamente preparado (é esta mistura, uma espécie de doce que em japonês se chama “an”, que dá o título ao filme) e coloca-o entre duas panquecas. São os dorayakis. Que começa a vender, todos os dias, às 11h. Vemos três raparigas em flor, alunas do secundário, faladoras, divertidas, comendo dorayakis. Chega uma velha senhora (Tokue — Kirin Kiki, admirável), que vê um anúncio a pedir empregada e se oferece para ali trabalhar. Não, o trabalho é duro, não irá aguentar, diz-lhe o gerente (Sentaro — Masatoschi Naguse, que conhecíamos de Mistery Train, de Jarmusch). E oferece-lhe um dorayaki. No dia seguinte, ela volta, oferece de novo os seus préstimos, diz que a massa dos dorayakis era óptima, mas o recheio de feijão não. Não pode usarse um recheio industrial. E deixa-lhe o que ela faz. Há mais de 50 anos. Mais tarde, e por ter gostado tanto do recheio que Tokue deixara, Sentaro contrata-a. Há também uma jovem estudante, mais reservada, que tem um canário amarelo e sonha trabalhar com Sentaro (Wakana — Kyara Uchida). Poderíamos dizer que o que vimos até aqui é uma espécie de introdução. E é agora que o filme 6
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EXCLU
CINEMSIVO AS M
EDEIA
Duração: 113 min
começa. Um filme no qual, como na restante obra de Naomi Kawase (de quem vimos A Quietude da Água, 2014), a mais jovem realizadora a ser premiada com a Camera d’Or em Cannes, onde é presença regular (Uma Pastelaria em Tóquio abriu a secção Un Certain Regard), pessoas e animais prolongam a ancestralidade da mãe natureza (e a comida: “Ouve as histórias que os feijões têm para contar”), a passagem do testemunho entre gerações (Tokue vai ensinando a Sentaro a “sua” receita), a passagem do tempo (das estações, dos anos). E tudo leva o seu tempo, como a sua receita para fazer o melhor recheio de feijões azuki, que ela mexe na panela com delicadeza e movimentos suaves, esperando pacientemente que eles apurem a cocção, falando até com eles. À medida que o filme avança, descobrimos que todos têm um segredo, que acabarão por revelar. Mas Uma Pastelaria em Tóquio é, tal como os filmes de Ozu, um filme sobre gente vulgar. E também, como em Ozu, temos os planos de pontuação ou planos vazios, e que, como no cinema do mestre japonês, “muito longe de ser gratuitos ou uma excentricidade estilística […] são fundamentais, estão repletos de ‘valor metafórico’”2 (as cerejeiras em flor, o correr das nuvens, as “chuvas de Maio”, o rumorejar do vento nas folhas, o “sussurro da lua cheia”), dando-lhe, uma espécie de sentido místico. 1
Tsuda Kiyoko, in O Japão no Feminino. Haiku — Séculos XVII a XX, org. e trad. Luísa Freire, Assírio & Alvim.
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“Ozu e a essência do cinema”, in Sousa Dias, O Riso de Mozart — Música, pintura, cinema literatura, Sistema Solar.
Prémios e Festivais: Festival de Cannes — Un Certain Regard, Filme de Abertura Asian Pacific Screen Awards — Melhor Actriz Cork International Film Festival — Prémio do Público
ESTREIAS CINEMA
JANIS: LITTLE GIRL BLUE JANIS: LITTLE GIRL BLUE
DOCUMENTÁRIO DE
AMY J. BERG
COM CAT POWER, JANIS JOPLIN, PETER ALBIN
ESTREIA 5 MAIO Duração: 103 min
Janis, that runaway kid from the sixties A acompanhar Janis Joplin, viva e resplandecente, desde o seu primeiro álbum a solo (Kozmic Blues), fez-me a melomania recuar até ao Monterey Pop Free Festival do Verão de 1967 (o da utopia, ilusão e esperança, Paz e Amor, Flower Power, hippies). Mais de 30 grupos em cena, escusaram-se Beatles, Rolling Stones e Beach Boys, esperava-se a consagração de Simon & Garfunkel, Byrds, e Mamas & Papas. Mas o festival é conhecido por 4 revelações feitas ao mundo da música: Ravi Shankar, Otis Redding, Jimi Hendrix e Janis Joplin (cantora nos Big Brother & The Holding Company). Captada em grandes planos pela câmara de Pennebaker, Janis a estrebuchar no palco de Monterey em recriação arrebatada de “Ball and Chain” — um blues original quase sereno da negra Big Mama Thornton — não é aqui lembrada pela sua voz única de agudos sem rouquidão compensados com gritos modulados e lancinantes, ou sequer pela arrepiante sinceridade com que nessa voz perpassa a entrega, a súplica e a raiva, mas como súmula da artista-mito, epítome do grupo restrito dos rockers (in)voluntariamente símbolos do lema “live fast and die young” (aos 27). Súmula retrospectiva, porque em cada momento dessa interpretação se condensava tudo o que estava para trás mas continuava entranhado na sua pele: o inconformismo rebelde de adolescente num meio conservador texano, o desejo desesperado numa rapariga feia e insegura de amar e ser amada. E a fuga: para uma qualquer terra prometida onde se sentisse entre iguais (aos miúdos que afluíam
a S. Francisco chamavam os media runaway kids), para um qualquer abraço que a acolhesse, para uma qualquer droga que a alienasse da solidão. Súmula prospectiva, porque esse momento de Monterey marca o início do movimento vertiginoso de ascensão, glória, impasse e autodestruição de Janis. Adulada, foram-na convencendo que para ser uma estrela deveria abandonar à sua sorte, por inapta, a banda que a desafiara a regressar do seu Texas natal para enriquecer um som colectivo aparentemente rude e caótico, mas inventivo e poderoso. Engano óbvio, porque não sendo Janis uma grande criadora ou uma band leader, os produtores arranjaram-lhe músicos de estúdio sem chama e estilisticamente desgarrados que tentaram fazer dela uma Aretha Franklin branca. Nunca saberemos como sairia do impasse. As memórias aqui convocadas para um fim-de-semana de Verão de 1967 têm no documentário biográfico Janis — Little Girl Blue de Amy Berg como seu foco polarizador um conjunto de cartas inéditas que enviou ao acaso da sua vida meteórica. Num outro modo, creio que está lá tudo. Algo do mito, muito de uma mulher de carne e osso… e angústias. Evocação às vezes surpreendente e tocante de uma triste vida. João de Menezes Ferreira
Prémios e Festivais: Festival de Cinema de Veneza
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ESTREIAS CINEMA
AXILAS AXILAS
ESTREIA 5 MAIO
Duração: 87 min
JOSÉ FONSECA E COSTA
DE COM PEDRO LACERDA, ELISA LISBOA, MARIA DA ROCHA, ANDRÉ GOMES MARGARIDA MARINHO, FERNANDO FERRÃO, JOSÉ RAPOSO E A PARTICIPAÇÃO ESPECIAL DE RUI MORISSON, PAULA GUEDES
Derradeiro filme de José Fonseca e Costa, que a morte surpreendeu no final da rodagem, Axilas, uma adaptação livre do conto homónimo de Rubem Fonseca, com argumento de Mário Botequilha e do realizador, viria a ser terminado por Paulo MilHomens, também responsável pela montagem. Publicamos o testemunho do argumentista Mário Botequilha e um texto de António-Pedro Vasconcelos sobre “a falta” que “o Zeto” nos faz. As fotografias destas páginas foram-nos gentilmente cedidas pela família do realizador.
José Fonseca e Costa tinha uma ideia para um filme José Fonseca e Costa tinha uma ideia para um filme e inventou o Lázaro de Jesus. A seguir, tropeçou no Axilas, de Rubem Fonseca. Escrevemos este filme a quatro mãos, em pouco tempo, num processo de trabalho intenso e memorável em que íamos juntando o que escrevíamos em separado e debatendo os dilemas que a história nos colocava. Foram muitas horas entre a escrita de ficção, a memória crítica que ele tinha da vida do país e o seu amor pelo cinema e por Lisboa. Perseguimos o Lázaro e as suas obsessões.
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Com Carmo Moser e José Álvaro Morais
Através dele, seguimos a Avó, a Angelina, o Padrinho, os amigos de uma Lisboa de outras décadas e fomos dar à Maria Pia do conto de Rubem Fonseca, o final da ‘scaletta’, da escadinha que se vai subindo até o argumento chegar onde queremos. É uma história com um final feliz: há um novo filme de José Fonseca e Costa para ver. Mário Botequilha
ESTREIAS CINEMA O Zeto faz falta à cidade Nem sempre nos demos bem. Nos anos 70, o Zeto defendia um cinema mais empenhado politicamente, não apreciávamos os mesmos autores, divergíamos sobre o papel do Estado no apoio ao cinema, na avaliação dos méritos da lei 7/71 com que Marcelo Caetano dotou o cinema português, onde ele via a tábua de salvação e eu o “pecado original” que havia instituído o Estado intervencionista e que iria conduzir o cinema português à irrelevância pretensiosa que tem hoje. Mas, a certa altura, à medida que fomos ficando isolados, descobrimos afinidades no essencial: não há cinema sem público para o ver, como não há Sérgio Godinho ou Jorge Palma a cantar para palcos vazios, como não havia Dickens ou Tolstoi sem leitores, Shakespeare ou Verdi sem plateias ávidas de histórias com “barulho e fúria”, mas que, ao contrário da vida, faziam sentido e falavam às pessoas.
Pedro Lacerda em Axilas
O Kilas foi o primeiro filme português a bater o record dos 100 mil espectadores (lembro-me do Mário Viegas na plateia do Condes a dizer: “porque é que os filmes portugueses são tão chatos?”), depois, eu fiz o Oxalá e a seguir O Lugar do Morto, mais tarde o Joaquim Leitão juntou-se à lista dos campeões de bilheteira, o Zeto fez o Sem Sombra de Pecado e a Balada da Praia dos Cães, que pareciam dar lugar, finalmente, a uma cinematografia que falava de um país real e de paixões credíveis. O que nos aproximou, ao ponto de nos tornar amigos — uma amizade consolidada pelo respeito e pela admiração — foi essa ideia comum de um cinema narrativo, aristotélico, o gosto pelas histórias e pelos autores, como havia sido o cinema americano de Ford a Nick Ray, e o cinema italiano, de Rossellini e Visconti, mas também de Monicelli e Dino Risi. O que nos fez cúmplices em várias lutas foi o desprezo por uma crítica analfabeta e por Ministros fracos de espírito ou de carácter, e o desgosto pela proliferação dos filmes que exigiam “manual de instruções” para serem vistos, a profusão de um cinema autista, que havia usurpado a expressão “cinema de autor”, inventada por Truffaut, nos anos 50, para defender o génio de Hitchcock, e que se tornara o paradigma do que deve ser o “cinema português”.
Com João Franco e Elso Roque
Na última década, ele próprio foi vítima desse preconceito e, perseguido, deixou de conseguir filmar, o que o deixava amargurado e amargo. Mas a progressão do desastre que era a perpetuação da “política do gosto” no cinema, aproximou-nos cada vez mais. E, das muitas vezes que nos encontrámos e das nossas animadas conversas, aprendi a apreciar a sua cultura, a elegância e o gosto — mesmo quando discordávamos —, o culto da amizade, a qualidade da sua escrita, o afinado e certeiro espírito crítico, a obstinação, o sarcasmo, o desprezo pela mediocridade, o humor (que se conjugava na perfeição com o proverbial mau humor) e, last but not the least, a competência como cineasta. O Zeto faz falta à cidade. Os seus filmes dizem-nos muito sobre ele, mas dizem também muito sobre Portugal. São dos poucos que vão ficar. António-Pedro Vasconcelos [4 de Abril de 2016]
Pedro Lacerda e Margarida Marinho em Axilas
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ESTREIAS CINEMA
CINZENTO E NEGRO
ESTREIA 19 MAIO
CINZENTO E NEGRO
DE LUÍS FILIPE ROCHA
COM JOANA BÁRCIA, FILIPE DUARTE, MIGUEL BORGES
Duração: 126 min
“Em alguns momentos da rodagem senti a sombra do Cerromaior a tocar-me” Conversa com Luís Filipe Rocha, cineasta com uma obra feita no cinema português. Cinzento e Negro é o seu mais recente filme. Depois do belíssimo A Outra Margem, volta a acertar em cheio com um filme de subtilezas inquietantes e uma fascinante relação com o espaço físico dos Açores.
Este é um filme que de alguma forma faz rimas com alguns dos seus outros filmes... Um colega seu escreveu há anos que os meus filmes são sempre muito diferentes uns dos outros, pelos temas, pelas histórias, pelos géneros, mas são sempre identificáveis pelo modo de olhar, de encenar, de dirigir, de contar. Foi, para mim, uma das observações mais certeiras e, por isso, mais gratas de receber em relação aos meus filmes. Há sempre, nos meus filmes, rimas dentro da sua própria matéria narrativa e rimas com alguns ou com todos os meus outros filmes. No caso do Cinzento e Negro, talvez as rimas com outros filmes meus sejam mais visíveis na atmosfera e na ambientação, em que a Natureza é uma Personagem, e na mise-en-scène, com as cenas em Plano Único. Em alguns momentos da rodagem senti a sombra do Cerromaior a tocar-me... E este filme nasce quando e como na sua cabeça? Em Setembro de 2003 entrei numa modesta agência funerária para encomendar o enterro de um familiar. A mulher que me atendeu era coxa e usava uma bota ortopédica. Um mês depois, fui a Almada ver uma peça de teatro. Cheguei antes da hora e sentei-me numa pequena esplanada de uma taberna, no passeio. Minutos depois, a coxear, a mulher da agência funerária passou no passeio do outro lado da rua, carregando vários sacos de plástico com compras, enquanto a seu lado, de mãos nos bolsos, caminhava um homem que, pelo silêncio e pela displicência, só podia ser o seu companheiro. Essas duas imagens, para mim de uma desolação, 10 MAIO | JUNHO 2016
uma injustiça e uma tristeza que clamam raivosamente por vingança, perseguiram-me até 2009, data em que a sua energia e a sua persistência me levaram a escrever esta história. Como é que um cineasta pode aperfeiçoar a sua observação da condição humana? No meu caso, ajudam-me decisivamente duas paixões. Desde os 4 anos de idade que o que mais me fascina e apaixona como ser humano é ouvir contar histórias; ter sentido uma íntima e irrecusável necessidade de começar eu próprio a contar histórias foi um dos corolários dessa paixão. A segunda paixão, consequência da primeira, é a relação que mantenho, também desde muito novo, com a Literatura. O aperfeiçoamento da observação da condição humana, no meu caso, deriva naturalmente dessas duas paixões. A personagem de Joana Bárcia e todo o seu fatalismo remetem de alguma forma para uma ideia de cinema noir... Penso que o fatalismo da Maria das Dores, personagem a que a Joana Bárcia, magistralmente, dá corpo e alma, provém mais das Tragédias Gregas do que do cinema noir. Foi na releitura dos trágicos gregos que encontrei mais estímulo e apoio para contar esta história. Percebo a sua analogia porque usei, por comodidade narrativa, um macguffin estafadíssimo (um saco cheio de dinheiro), sempre apreciado como condimento de filmes policiais, em que a fuga, a perseguição e a vingança são dominantes. E porque temas como o fatalismo e a obsessão amorosa tornam legítima a sua analogia. Embora, como referi, eles venham das Tragédias Gregas. Já visualmente, penso que o Cinzento e Negro nada tem de film noir. Entrevistado por Rui Pedro Tendinha
Prémios e Festivais: Festival de Cinema Figueira da Foz — Melhor Filme; Melhor Realização ex-aequo; Melhor Argumento; Melhor Actriz; Melhor Fotografia Caminhos Cinema Português — Melhor Actor; Melhor Música Montréal Word Film Festival
ESTREIAS CINEMA
O CLUBE EL CLUB
ESTREIA 2 JUNHO
DE PABLO LARRAÍN
COM ALFREDO CASTRO, ROBERTO FARÍAS, ANTONIA ZEGERS
Sob a sombra do pecado A obra do chileno Pablo Larraín tem vindo a revelar um cineasta de raro talento e enorme capacidade para criar histórias através das quais nos apresenta olhares críticos sobre a história recente do seu país, sem nunca abdicar de um fôlego narrativo nem da construção de fortes personagens. Tanto em Post Mortem (2010) como em No (2012) vimo-lo a evocar casos ou figuras reais, com ligações aos tempos do regime de Pinochet. E até em Tony Manero (2008), quando nos apresentava um homem obcecado pela personagem encarnada por John Travolta em A Febre de Sábado à Noite, era através de evocações de um Chile assombrado pela violência e outras marcas do regime que definia os cenários que acolhiam a acção. O Clube, que agora chega até nós, é um tanto diferente desses outros três filmes seus e procura uma história que, vivida no presente, transpira ecos que podem transcender tempos e lugares apesar da geografia em que
coloca as personagens. Mas não esquece de todo o veio político habitual em Larraín, guardando-o entre as memórias reprimidas de uma personagem que foi capelão militar e sabia da existência de casas de tortura. Com um sentido de claustrofobia a céu aberto, O Clube coloca-nos numa pequena povoação costeira algo inóspita, invernosa e, imaginamos, longe de tudo... Um último reduto onde, numa construção sobranceira face ao casario há um centro no qual, sob zelo e vigilância de uma freira e o controlo vindo de mais altas hierarquias, a igreja desterra um grupo de padres cujos pecados cometidos noutros dias e noutros lugares os obrigaram a deixar o sacerdócio. A distância guarda-os ali, presos, entre as rotinas e o silêncio, construindo ao seu redor um muro de negação. Até que um outro padre chega, e esconde no passado histórias de abuso sexual. Ao ser confrontado por uma vítima, agora adulta, que vocifera, junto ao portão da casa, memórias dos factos ocorridos com incómoda nitidez descritiva,
Prémios e Festivais: Golden Globes — Nomeação para Melhor Filme Estrangeiro Festival de Berlim — Grande Prémio do Júri
Duração: 98 min
não resiste, e de pistola na mão, mata-se, à frente de tudo e todos. Esse é o momento que desperta convulsões e leva à casa outro padre que traz consigo uma missão de investigação e justiça e que tenta, apesar das dificuldades, chegar às verdades escondidas de cada um e desmontar, também, um novo vício, encontrado nas corridas de cães. Perturbante, sabedor no dosear dos olhares e silêncios, mas acutilante sempre que usa as palavras, certeiro no casting (onde não faltam habitués do cinema do realizador) e capaz de, mesmo com uma belíssima direção de fotografia, dar àquele lugar perdido um tom de pesadelo permanente, O Clube representa o melhor que o cinema de Larraín já nos deu a ver. Nuno Galopim
PABLO LARRAÍN
MAIO | JUNHO 2016 11
ESTREIAS CINEMA
A IRMÃ MAIS NOVA ENSURDECEDOR MIN LILLA SYSTER
LOUDER THAN BOMBS
Dur: 95 min
DE SANNA LENKEN
BREVEMENTE
COM REBECKA JOSEPHSON, AMY DIAMOND, HENRIK NORLÉN
EXCLU CIN SIVO
EM
MEDE AS IA
Baseado nas experiências pessoais da realizadora, A Irmã Mais Nova conta a história de uma rapariga que se depara com o distúrbio alimentar da irmã que idolatra.
Explorando as volatilidades das relações entre irmãos, especialmente antes da idade adulta, a realizadora sueca Sanna Lenken estreia-se nas longas-metragens com um drama no feminino, descrito pela própria como uma “análise do que significa crescer enquanto rapariga e ser julgada pela nossa aparência e não por quem somos”. Esta frase abre-nos à teia de complexidades que constituem as relações entre raparigas adolescentes e pré-adolescentes. Em A Irmã Mais Nova, vemos Stella, uma menina de 12 anos fascinada por Katja, a irmã mais velha, uma adolescente elegante, popular e exímia patinadora no gelo. Como acontece frequentemente numa idade em que a personalidade se encontra ainda em formação, Stella tenta, desajeitadamente, imitar a irmã na pista de gelo e desenvolve uma paixoneta pelo treinador de Katja. A relação entre as duas irmãs está recheada de contrastes, e Lenken captura elegantemente a relação amor-ódio que existe entre ambas, especialmente nos momentos em que Stella, insegura com o seu corpo pré-adolescente, é gozada por Katja. Após a descoberta da doença, as dinâmicas mudam mas as tensões mantém-se as mesmas.
Dur: 109 min
DE JOACHIM TRIER ESTREIA 12 MAIO COM JESSE EISENBERG, ISABELLE HUPPERT, GABRIEL BYRNE, DEVIN DRUID
Ensurdecedor é o primeiro filme em língua inglesa de Joachim Trier e mostra-nos uma família que lida com a perda da figura materna. Depois de Oslo, 31 de Agosto, Joachim Trier mergulha agora num complexo drama familiar que gira à volta da matriarca, uma famosa fotógrafa de guerra morta num acidente de viação, do seu legado e do que o seu desaparecimento significa para os seus dois filhos e o marido. Perda, luto e a consequência da morte no seio de uma família nuclear são temas já amplamente explorados pelo cinema, e Joachim Trier consegue fugir dos clichés dramáticos do género optando por uma abordagem calma, pensativa, interessada no cruzamento entre luto e memória, entre vida e morte. Esta intersecção é ilustrada na cena que abre o filme, com a mão de um recém-nascido, filho de Jonah, um dos irmãos órfãos de mãe. Tal como a morte da mãe mudou a trajectória da sua vida anteriormente, também o nascimento do filho o fará, mesmo que não seja da forma mais óbvia. A narrativa é construída a partir de imagens, para ilustrar memórias, preencher lacunas ou mostrar-nos a força que um rosto ou um corpo têm. A profissão da mãe, interpretada por Isabelle Huppert, está ligada a este tipo de construção, questionando a possibilidade de capturar a perda e a memória na fotografia (ou no cinema). Se somos capazes de mudar o significado de uma fotografia ou de um plano ao enquadrá-lo de forma diferente como podemos confiar nestes meios para cristalizar as nossas memórias? Trier não procura dar resposta a esta ou outras questões, apenas dá um enquadramento e capta memórias de uma história para que esta seja vista pelo espectador. Diana Cipriano
A precisão e subtileza da câmara de Sanna Lenken são ajudadas pelas interpretações das duas actrizes no centro desta narrativa, especialmente Rebecka Josephson, que nos guia por cada etapa do filme com uma interpretação magnética que nos faz sentir cada tremor de angústia ou cada sorriso de malícia. Diana Cipriano
Prémios e Festivais: Festival de Berlim – Urso de Cristal
12 MAIO | JUNHO 2016
Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Selecção Oficial, Em Competição Festival de Toronto – Sessões Especiais
ESTREIAS CINEMA
DHEEPAN - O REFÚGIO DHEEPAN
Dur: 115 min
DE JACQUES AUDIARD ESTREIA 12 MAIO COM JESUTHASAN ANTONYTHASAN, KALIEASWARI SRINIVASAN
Jacques Audiard acompanha o périplo de um trio de refugiados Tamil, do Sri Lanka natal, no fim da guerra civil, aos subúrbios de Paris, em Dheepan – O Refúgio, Palma de Ouro de Cannes 2015. O cinema de Audiard tem uma apetência especial por personagens que tentam (re)erguer-se a partir de situações de violência e de caos. Os seus filmes fazem-se também em contramão a uma certa introversão do cinema francês, ao escolher personagens pouco ou nada nele representadas. Trata-se de, refere Audiard, representar “diferentes rostos, linguagens, idiomas, pronúncias”, toda a real diversidade francesa. Em Dheepan – O Refúgio, em grande parte falado na língua Tamil, Jacques Audiard coloca o espectador sempre no lugar do Outro, fazendo-o olhar o mundo pelos olhos destes três completos estranhos, um ex-guerrilheiro (Dheepan) dos derrotados Tigres Tamil, uma mulher e uma menina órfã, que se assumem como uma família para conseguirem asilo em França.
Da selva do Sri Lanka à selva urbana de um bairro social dominado por gangs, Dheepan – O Refúgio é um tenso estudo de realismo social, mostrando a árdua adaptação destes “órfãos” a um novo território, uma nova língua e novos códigos, com a ferocidade da violência sempre iminente. Mas o que mais comove em Dheepan – O Refúgio é o detalhe e a justeza emocionais com que Audiard acompanha a gradual aprendizagem que os membros desta família, fictícia, fazem uns dos outros, dos seus papéis, anseios e medos, reinventando-se e reinventando-a, num drama, quase um melodrama, com um clímax em ambiência de thriller. Fátima Castro Silva
Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Palma de Ouro
QUE FAMÍLIAS! BELLES FAMILLES
Dur: 113 min
DE JEAN-PAUL RAPPENEAU ESTREIA 2 JUN COM MATHIEU AMALRIC, MARINE VACTH, GILLES LELLOUCHE
Após um hiato de doze anos, Que Famílias! marca o regresso de Jean-Paul Rappeneau, com uma comédia nostálgica ancorada num excelente ensemble de actores. “É um filme sobre a província, a França profunda mas já no caldo da globalização. Quis reencontrar alguma coisa dessa província que conheci enquanto criança e adolescente.” É na personagem de Mathieu Amalric que Rappeneau corporiza esse seu desejo de regresso às origens. É certamente o seu olhar e, sobretudo, a sua constante deambulação, que tudo conduzem. O frenético homem de negócios em trânsito que, depois de longa ausência no estrangeiro, faz uma visita-relâmpago à família, é um detonador da acção, um propulsionador de situações envolvendo as restantes personagens, mas essas situações, ao mesmo tempo que lhe desvendam (e a nós espectadores) os interesses e desavenças da(s) sua(s) família(s), (des)unida(s) por um segredo, reenviam-no para as memórias de infância na mansão familiar
(centro de litígio e símbolo de um tempo) e para um passado mal resolvido com a figura paterna, que as constantes revelações irão iluminar de forma radicalmente diferente. Questões como o casamento e o adultério, aquilo que é hereditário e o que é ilegítimo, a descaracterização iminente da pequena cidade de província, são temas que Rappeneau aflora num filme que ele próprio define como “melancómico”, servido por um vivo jogo de actores que, à engrenagem de comédia, lhe insufla ritmo e uma pulsação física que liberta as emoções e as faz circular. Fátima Castro Silva
Prémios e Festivais: TIFF (Canadá) – Selecção Oficial
MAIO | JUNHO 2016 13
ESTREIAS CINEMA
A LAGOSTA THE LOBSTER
DE YORGOS LANTHIMOS
ESTREIA 19 MAIO Duração: 198 min
COM COLIN FARRELL, RACHEL WEISZ, LÉA SEYDOUX, JOHN C. REILLY
Uma sátira grotesca com contornos fantásticos, uma distopia recheada de humor, que nos seduz e nos assusta. Um cineasta talentoso e inventivo Yorgos Lanthimos já tinha mostrado o seu talento para criar e explorar construções sociais restritivas com os multi-premiados Canino, de 2009, e Alpeis, de 2011. Em A Lagosta, o realizador continua a trabalhar realidades paralelas à nossa, dominadas por leis absurdas, hipérboles dos elementos surreais da nossa vida em sociedade, construindo um universo esteticamente semelhante ao do espectador, mas recheando-o de regras bizarras que lhe conferem um tom mordaz, expondo alguns dos aspectos mais kafkianos da nossa própria existência. Este filme fecha uma trilogia satírica de situações extremas, que em Canino se focava no núcleo familiar e em Alpeis no sentido básico de identidade e sentimentos adjacentes, dando agora relevo às imposições sociais feitas ao indivíduo relativamente à sua “necessidade” de companhia.
Embora o universo de A Lagosta esteja minado de uma violência que pode a todo o momento irromper, esta nunca domina a acção, graças ao balanço contínuo entre o hediondo e o absurdo, que é apresentado de forma inexpressiva e matter of fact, originando vários momentos cómicos. O elenco, especialmente Colin Farrell, Ben Whishaw e John C. Reilly, é essencial para o sucesso deste aspecto. Yorgos Lanthimos consegue, com este seu primeiro filme falado em inglês, manter características que tornam a sua filmografia inventiva e singular, abrindo-a um público mais abrangente, que, após A Lagosta, descobrirá com gosto as suas obras anteriores. Diana Cipriano Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Prémio do Júri
TAKLUB
BREVEMENTE
TAKLUB
DE BRILLANTE MENDOZA
Duração: 97 min
COM NORA AUNOR, JULIO DIAZ, AARON RIVERA
O cineasta filipino Brillante Mendoza assina, com Taklub, um drama coral sobre a devastação causada pelo furacão Yolanda no seu país. Taklub tem uma curiosa génese. Logo após a tragédia (Novembro 2013), várias vozes se ergueram pedindo a Brillante Mendoza que sobre ela realizasse um filme. Relutante em explorar o sofrimento das vítimas, Mendoza recusou. Meses mais tarde, o governo filipino aborda-o para, tendo o Yolanda como exemplo e fundo, filmar um documentário sobre alterações climáticas. Visando um maior impacto junto do público, Mendoza decidiu-se antes por uma ficção, em co-produção com o governo. Centrando a acção um ano depois, ainda nos escombros da cidade de Tacloban (o título Taklub, é uma sua abreviatura) e num trio de personagens, Mendoza foca-se nas suas histórias interligadas, de luto e sobrevivência, para construir um retrato poderoso sobre a fragilidade e resiliência humanas. 14 MAIO | JUNHO 2016
Sem score, apoiando-se num argumento elíptico e num realismo urgente, de raiz documental, que o trabalho de câmara à mão favorece (do seu habitual director de fotografia, o sempre excelente Odyssey “Odie” Flores), Taklub examina, com subtileza, a devastação emocional e a frustração das suas personagens, presas num limbo perpétuo, numa armadilha de forças, naturais e humanas, a quem nem a fé parece socorrer. Na profunda incerteza do futuro que projecta, Taklub aproxima-se, sendo necessariamente diferente, do documentário do também filipino Lav Diaz sobre o mesmo tema, Storm Children – Book One. Fátima Castro Silva
Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Menção Especial Júri Ecuménico
OUTRAS PROGRAMAÇÃO ESTREIAS
A LEI DO MERCADO
LA LOI DU MARCHÉ
DE STÉPHANE
BRIZÉ
MONEY MONSTER
Dur: 93 min
COM VINCENT LINDON, KARINE DE MIRBECK
Premiado como Melhor Actor no Festival de Cannes e nos CÉSARS, Vincent Lindon protagonizou, de forma sublime, um filme poderoso e comprometido, A Lei do Mercado, que veio apresentar ao Lisbon & Estoril Film Festival, onde conversou connosco, sobre o seu trabalho de actor. Segue-se um excerto dessa conversa.
DE
JODIE FOSTER
COM JULIA ROBERTS, GEORGE CLOONEY
CAITRIONA BALFE, JACK O'CONNELL Lee Gates é uma bombástica personalidade da televisão. O seu popular programa sobre investimentos financeiros o torna-o no guru do dinheiro em Wall Street. Mas depois de Gates promover a compra de acções de uma empresa de alta tecnologia, que misteriosamente entra em crash, um investidor irado faz de Gates, da sua equipa e da sua produtora Patty Fenn reféns, durante a emissão ao vivo do programa. Gates e Fenn terão de encontrar uma forma para se manterem vivos e, simultaneamente, desvendarem a verdade por trás de uma teia de grandes mentiras financeiras.
ESTREIA 12 MAIO
Este é um filme que aborda o desemprego, não os seus números, mas as pessoas concretas. Sobretudo Thierry, um desempregado de longa duração, que interpreta…
ALICE DO OUTRO LADO DO ESPELHO JAMES ROBIN JOHNNY DEPP, SACHA BARON COHEN, ANNE HATHAWAY, ALAN RICKMAN, MICHAEL SHEEN
Vincent Lindon: Quando faço um filme, descubro sempre o que fiz sobretudo na altura em que estou em promoção e os jornalistas me fazem perguntas. Ao ler um guião tenho uma primeira impressão, e quando me deito à noite penso: “sonho em ser ele, tenho que ser ele, tenho que fazer este filme e tenho vontade de o fazer”; ou até, eventualmente: “não o quero fazer”. […] Não oiço ninguém quando tenho de escolher algo, porque sou eu que o vou fazer, não outra pessoa. O realizador [deste filme, Stéphane Brizé] deu-me o guião e eu li-o, fiquei extremamente comovido, foi imediato, deitei-me à noite a pensar para comigo: “preciso de ser ele, preciso de ser Thierry”.
DE
Quanto à psicologia da personagem, vou dizer o que penso: é um filme sobre mim porque é a ideia que tenho, que se fosse ele, se eu fosse Thierry, me comportaria assim. Então decidi: “Thierry sou eu e eu sou Thierry”, quer dizer, se eu fosse um homem desempregado e tivesse uma mulher como a dele, um filho como o dele, sonharia ser como ele. […]
ESTREIA 26 DE MAIO
COM
Alice regressa ao seu passado e ao País das Maravilhas, em auxílio do Chapeleiro Louco. No País das Maravilhas, cruza-se novamente com personagens como o Humpty Dumpty, o Cavaleiro Branco ou o Rei Vermelho.
WHERE TO INVADE NEXT DE
E então, quando interpreto Thierry, o que ele diz, fui eu que o disse, em primeiro lugar porque sou eu, é o meu nariz, a minha boca, os meus olhos, o meu corpo, sou eu, passei 17 dias dentro desse filme, então sou eu. O que foi dito fui eu que o disse, o que foi visto, fui eu que o vi, então… é como se houvesse um pacto entre a personagem e eu próprio. […] Ao fazer o filme sentia que passar por ser ele, ser o Thierry durante um período da sua vida, seria bom e que um dia eu ficaria contente por ter sido assim, por ter sido ele. [Transcrição e trad. Chen Gatete]
Prémios e Festivais: Césars – Prémio Melhor Actor Festival de Cannes – Prémio Melhor Actor Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial, Fora de Competição
MICHAEL MOORE
Where to Invade Next é o novo filme do realizador Michael Moore, no qual este desempenha o papel de “invasor amigo”, visitando uma série de países de forma a perceber como é que os EUA poderiam solucionar alguns dos seus problemas. No final, o autor de Fahrenheit 9/11 e Bowling for Columbine chega à conclusão que as soluções para os problemas norte-americanos já existem um pouco por todo o mundo – estão apenas à espera de ser adoptadas.
ESTREIA 16 JUNHO MAIO | JUNHO 2016 15
16 MAIO | JUNHO 2016