Medeia Magazine - Março / Abril 2016

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MARÇO | ABRIL 2016

POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO Notável adaptação de Conrad ao contexto colonial português por Hugo Vieira da Silva

ARNAUD DESPLECHIN fala-nos de TRÊS RECORDAÇÕES DA MINHA JUVENTUDE um dos grandes filmes franceses do ano

A ASSASSINA

Deslumbramento visual e sonoro pelo grande mestre Hou Hsiao-hsien

Vamos desvendar o “enigma” de

SERGUEI EISENSTEIN O CONTO DOS CONTOS

UMA NOVA AMIGA François Ozon assina um filme pleno de humor e suspense emocional

Um carnaval de transgressão no novo filme de Matteo Garrone

Colaborações de Naum Kleiman, Georges Didi-Huberman Arnaud Desplechin, Jean-Michel Frodon, António Pinto Ribeiro, Hugo Vieira da Silva, Alexandre Andrade, Inês Lourenço, Felipe Bragança, MARÇO | ABRILentre 2016outros... 1


EDITORIAL

A ACADEMIA DAS MUSAS

Ao correr dos filmes

DE

LA ACADEMIA DE LAS MUSAS

JOSÉ LUIS GUERÍN

ESTREIA 21 ABR

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

Duração: 92 min

COM RAFFAELE PINTO, EMANUELA FORGETTA, ROSA DELOR MUNS, MIREIA INIESTA, PATRICIA GIL

Entre o “correr dos filmes” que se estreiam nos meses de Março e Abril (que nos transportam aos quatro cantos do mundo) e os “filmes que regressam”, redivivos, clássicos de todos os tempos abertos a novas leituras (o cinema russo, do mudo à Perestroika, também uma descoberta) se faz esta revista que agora lhe chega às mãos. Que, utilizando o título do livro de Dinis Machado, acabado de publicar, onde se reúnem os seus textos sobre cinema, é “o lugar das fitas”, as que programámos para si, de que falam e lhe falam cineastas, actores, escritores, filósofos, ensaístas, críticos… Do prazer do texto ao prazer da visão dos filmes nas salas, e /ou vice-versa, desejamos-lhe “boas fitas”!

As Nossas Salas: Cinema Monumental (Lisboa) Espaço Nimas (Lisboa) TMP Campo Alegre (Porto) Auditório Charlot (Setúbal) Theatro Circo (Braga) Teatro Académico Gil Vicente (Coimbra) Centro de Artes e Espectáculos (Figueira da Foz)

Programação sujeita a alterações de última hora. Confirme sempre em www.medeiafilmes.com Equipa Director: Paulo Branco Coordenação Editorial: António Costa Colaboram neste número: Alexandre Andrade, António Pinto Ribeiro, Arnaud Desplechin, Diana Cipriano, Fátima Castro Silva, Felipe Bragança, Filipe Guerra, Georges Didi-Huberman, Hugo Vieira da Silva, Inês Lourenço, Jean-Michel Frodon, Naum Kleiman, Nina Guerra, Renata Curado, Romain Duris. Design: André Carvalho e Catarina Sampaio Capa: Posto Avançado do Progresso Com o apoio

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O catalão José Luis Guerín trabalha a tensão entre o documentário e a ficção em A Academia das Musas, um filme sobre o desejo e o poder da palavra.

No início, Guerín instala-nos numa sala de aula da Universidade de Barcelona e filma, de forma documental, o curso que um filólogo napolitano ministra sobre o papel das musas na literatura, tomando como base A Divina Comédia de Dante. O que começa como um documentário sobre “uma experiência pedagógica do professor Raffaele Pinto, filmada por J.L. Guerín”, como se diz numa legenda ainda antes do título, vai-se gradualmente transformando, de forma subtil e elegante, numa ficção em torno do(s) jogo(s) de sedução entre o professor e as suas alunas/musas e o modo como estas vivem o seu desejo, filtrando-o através da literatura. Para Guerín, “movimento é emoção” e a palavra literária é o meio gerador de modulações, quer no interior do filme (a mutação do documentário em ficção e, em paralelo, a transformação de uma comédia romântica experimental num melodrama estilizado, em que a palavra adquire mesmo uma qualidade musical), quer no íntimo das personagens (o abismo entre o que sentem e o que dizem), as quais Guerín filma frequentemente em grande plano, tirando partido de superfícies espelhadas, janelas de cafés ou de carros (Kiarostami vemnos à mente nessas sequências dentro de automóveis, e até o professor deste filme e o de Like Someone in Love têm algo em comum). Por duas vezes em A Academia das Musas faz-se um itinerário rosselliniano. Há uma viagem à Sardenha, qual Stromboli, onde se registam pastores que cantam e criam poemas. Há depois uma “viagem a Itália”, a Nápoles e às imediações do Lago Averno. E se a sombra de Rossellini paira, paira sempre também um questionamento da ideia clássica do amor romântico, uma voz da dissidência (na última sequência no carro do professor, há uma margem de ambiguidade que se mantém). No fim, o olhar das actrizes não-profissionais de Guerín devolve-nos o desafio que este filme abraça desde o início. Fátima Castro Silva

Prémios e Festivais: Sevilla Film Festival – Melhor Filme Lisbon & Estoril Film Festival – Selecção Oficial, Em Competição


JÁ NOS CINEMAS

SALVE, CÉSAR! HAIL, CAESAR!

DE ETHAN COEN E

JOEL COEN

EM EXIBIÇÃO

Dur: 106 min

COM JOSH BROLIN, GEORGE CLOONEY, RALPH FIENNES, SCARLETT JOHANSSON, TILDA SWINTON, FRANCES MCDORMAND, JONAH HILL

Os irmãos Coen regressam à franca comédia com Salve, César!, uma fantasia sobre a era dourada do studio-system da Hollywood dos anos 50.

Os Coen construíram um universo autoral profundamente idiossincrático. Ao também assegurarem fases tão fulcrais do processo criativo como a escrita de argumento, a montagem e a produção, mantêm a independência e a liberdade intactas no interior de uma indústria que os acolhe. Merecem o epíteto, sobretudo simbólico, de mavericks, assumindo o risco e a experimentação, no seu estilo único, capaz de convocar os géneros do cinema clássico de Hollywood (do film noir à screwball comedy, do filme de gansgters ao western), a literatura (incluindo a pulp fiction americana de Hammett, Chandler e Cain) e um humor cáustico, para contar histórias sobre uma América excêntrica e a obsessão pelo Sonho Americano. Nenhum outro lugar contribuiu mais ou melhor do que Hollywood, sobretudo no seu apogeu enquanto ‘fábrica de sonhos’, para veicular esse ideal americano. Em Salve, César!, Joel e Ethan filmam uma visão pessoalíssima dos bastidores dessa fábrica, da sua mecânica e dos seus intérpretes, expondo a sua bizarria e paranóia.

No centro de tudo está a personagem de Josh Brolin, ficcionada a partir de um fixer real, Eddie Mannix, que garantia a fluidez das produções da MGM, ao resolver problemas com os seus contratados, livrando-os de escândalos e da avidez dos tablóides. É o olhar do Mannix dos Coen e o seu pragmatismo, mesclado com dúvidas e crises de fé, que ancoram e unificam esta viagem pela esquizofrenia de cada plateau. Aí tanto se filmam elaboradas coreografias aquáticas, números musicais ou comédias sofisticadas, como um filme bíblico, de cuja rodagem a personagem de George Clooney

é raptada, tendo por trás uma maquinação de argumentistas comunistas, irados com a discrepância dos salários, numa referência, pelo avesso, ao período da “caça às bruxas” em Hollywood. Nunca a versatilidade dos Coen foi tão posta à prova como neste filme-tributo, divertido e mordaz, que Joel coloca próximo de The Hudsucker Proxy e O Brother, Where Art Thou?, classificando-o como um “filme estranho, que não se enquadra em lado nenhum”, e cuja rodagem foi, segundo Ethan, “muito esquizofrénica, mas estimulante, já que em cada semana se filmava um filme diferente”. Fátima Castro Silva

Prémios e Festivais: Festival de Berlim – Filme de Abertura

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ESTREIAS CINEMA

A ASSASSINA NIE YIN NIANG

DE HOU HSIAO-HSIEN

ESTREIA 17 MAR

COM QI SHU, CHEN CHANG, SATOSHI TSUMABUKI

Dur: 105 min

Jean-Michel Frodon, escritor, professor e crítico de cinema (Le Monde e Cahiers du Cinéma, do qual foi director) coordenou um livro sobre Hou Hsiao-hsien, e em 2012 apresentou no Leffest a retrospectiva que o festival lhe dedicou. É alma do blogue de cinema Slate.fr., onde escreveu sobre A Assassina na estreia em Cannes. Adaptou este texto num exclusivo para a Medeia Magazine.

A Assassina, do taiwanês Hou Hsiao-hsien, é uma autêntica maravilha visual (e sonora), uma espécie de oferta aos sentidos e à imaginação que não acontece frequentemente na vida de um espectador. A décima quinta longa metragem do mestre HHH abre com duas sequências a preto e branco. O papel que desempenham é ao mesmo tempo dramático – apresentando a heroína, uma aristocrata do século IX educada na arte de combater e de matar – e plástico – sublinhando, no formato antigo de uma imagem quase quadrada (o 1:1.33), a proximidade com a pintura chinesa clássica, na qual a tinta, o pincel e o branco do papel fazem nascer um mundo simultaneamente naturalista e metafísico. O filme continua depois a cores, mas sem se distanciar desta referência decisiva. Situado num contexto histórico marcado por uma grande desordem, numa época de inumeráveis rebeliões dos potentados locais contra o poder central do imperador, A Assassina é um filme de artes marciais. Mas é um filme de artes marciais que não se parece com nenhum outro. E que, não se parecendo com nenhum outro, expõe, no entanto, a verdade do género por inteiro. O seu motivo principal é o dilema da mestra guerreira Yinniang, dilacerada entre o dever de levar a cabo a sua missão assassina e a tentação de

Golden Horse Film Festival (Taiwan) – Melhor Realizador,

ceder aos sentimentos que a ligam ao seu sobrinho, hoje governador irredentista e que foi designado o seu alvo a abater. O cineasta trabalha de maneira inventiva e rica de significações e interrogações a matéria dos seus planos, alternando os enquadramentos largos com enquadramentos extremamente largos (que modificam a percepção dos primeiros). Satura as imagens de elementos heterogéneos, mas que se combinam de maneira sugestiva — tecidos, vegetais, rostos e trajes, peças de mobiliário — para engendrar, literalmente, uma nova matéria visual, que não pode existir senão no cinema. Multiplica os movimentos de câmara lentos como carícias, que acompanham movimentos circulares, que diríamos dançantes, ou descrevendo ambientes que reconfiguram o próprio sentido das acções. Organiza passagens harmoniosas, ou, ao contrário, em ruptura, mas sempre com uma enorme força, entre o interior e o exterior e entre o dia e a noite. E, sobretudo, radicaliza ao extremo o motivo rítmico do cinema de artes marciais, inspirando-se aqui mais nos clássicos de espadachins japoneses do que no cinema de género de Hong Kong. Deste modo, as aventuras guerreiras, os idílios, as conspirações e as manobras tornam-se simultaneamente uma verdadeira pesquisa sobre o próprio género, pesquisa levada a cabo com os meios da mise en scène, a procura do código secreto de um cinema inteiro, aberto para o horizonte utópico comum do espectáculo e da beleza, da tradição e da modernidade.

Melhor Filme, Melhor Fotografia, Melhor Banda Sonora,

Jean-Michel Frodon, Slate.fr / Medeia Magazine

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Melhor Realizador, Melhor Banda Sonora

Melhor Guarda Roupa e Caracterização

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ESTREIAS CINEMA

À SOMBRA DAS MULHERES L'OMBRE DES FEMMES

DE PHILIPPE

GARREL

ESTREIA 31 MAR

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

Dur: 73 min

COM CLOTILDE COURAU, STANISLAS MERHAR, LENA PAUGAM, VIMALA PONS

Philippe Garrel regressa às sinuosidades do amor, com Clotilde Courau e Stanislas Merhar.

O veterano Philippe Garrel não tirou um doutoramento nas questões do amor, mas toda a sua filmografia se tem consagrado a um estudo intensivo dos amantes. Liberté, la nuit (1984), La Naissance de l’amour (1993), Os Amantes Regulares (2005) ou A Fronteira do Amanhecer (2008) são apenas alguns desses momentos a recordar. À Sombra das Mulheres, na ordem natural da linguagem garreliana, volta observar a experiência íntima de um casal que se confronta com o fantasma da traição.

Pierre (Stanislas Merhar), um documentarista que está a trabalhar num filme sobre a Resistência Francesa, vive com Manon (Clotilde Courau), a mulher que se dedica a apoiá-lo nessa actividade tão pouco lucrativa para ambos. Amam-se, mas a relação parece abatida, tal como o estado do apartamento parisiense que

vão tentando pagar, com dificuldade. Pierre arranja uma amante (Lena Paugam), e Manon, sem saber, segue-lhe o exemplo. Desta conjuntura surge, além do eterno dilema entre os sentimentos e os prazeres do corpo, a falsa problemática de quem (o homem ou a mulher) tem mais “direito” a trair – reflexões enquadradas, como sempre, pela delicadeza estética do cineasta francês, numa nostalgia sincera da Nouvelle Vague. O preto e branco da película (a que já tinha regressado no filme anterior, Ciúme) funciona, aliás, como antídoto temporal, uma espécie de suspensão que inscreve os eventos a que assistimos naquele delicioso anacronismo que nos concentra mais na hábil composição e textura das ima gens, do que num “tema da actualidade”. Na verdade, não há qualquer sintoma de “actualidades” em Garrel, o conceito mais próximo disso será a modernidade registada no ADN do cinema que começou a fazer na década de

PHILIPPE GARREL

1960, e que permanece ilesa. Nos filmes mais recentes, Philippe Garrel habituou-nos ao protagonismo do filho, Louis Garrel, mantendo a porosidade entre a vida e a ficção, que também define a sua obra. Por sua vez, neste À Sombra das Mulheres, é exclusivamente na voz do narrador que percebemos a sua disseminada presença. Mas o filme assinala ainda outra novidade: o encontro do cineasta com o escritor e argumentista Jean-Claude Carrière, frequente colaborador de Luis Buñuel, que aqui deixa uma refrescante tonalidade de ironia. Inês Lourenço

Prémios e Festivais: Toronto International Film Festival – Selecção Oficial Sevilla Film Festival – Melhor Actriz

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ESTREIAS CINEMA

TRÊS RECORDAÇÕES DA MINHA JUVENTUDE TROIS SOUVENIRS DE MA JEUNESSE

DE ARNAUD DESPLECHIN ESTREIA 10 MAR

Dur: 123 min

COM QUENTIN DOLMAIRE, LOU ROY-LECOLLINET, MATHIEU AMALRIC

Entrevista ao realizador Arnaud Desplechin Cada episódio de Três Recordações da Minha Juventude apresenta uma personagem declinada segundo um subgénero cinematográfico diferente. Existe um único Dédalus, ou existem tantas versões deste quantos os registos e ambientes escolhidos para o retratar?

vezes. No cinema, na televisão, em DVD… Então, para retomar a expressão de Hitchcock, gosto de “encher a tapeçaria”. Acrescentar aqui e ali, esquinas sombrias, ou luminosas, pormenores, padrões que se descobrem aos poucos.

Gosto de pensar que um só Dédalus atravessa estas três aventuras. Um pouco adulto precoce, demasiado sisudo, apaixonado pelos livros, movido pela cólera que sente contra a sua mãe… E contudo, aquilo que define Dédalus é para mim a paixão que ele sente pelos amigos, e pelas suas companheiras. Descubro as suas facetas por detrás dos rostos daqueles que o rodeiam. Ele gosta de admirar. Admira Esther, e pode dizer-se que esta jovem inventa Paul.

Quando trabalha com actores tão fortes e versáteis como Mathieu Amalric ou Emmanuelle Devos, até que ponto é que os incita a envolverem-se no processo de criação das respectivas personagens?

A sobrecarga de ficção e de personagens que se nota em muitos dos seus filmes contribui para a persistência do filme para lá da exiguidade do seu tempo e espaço narrativos próprios. É um efeito deliberado? Tento fazer filmes pletóricos. Penso com frequência que os filmes são hoje em dia vistos numerosas 6

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Pois bem, curiosamente deixo-os muito à solta. Não os incomodo muito durante a preparação. Não os sobrecarrego com trabalho. Sou sobretudo eu quem se identifica com as personagens de maneira doentia, que as alimento com contradições, dores e paixões. A Emmanuelle e o Mathieu observam-me, divertidos. …Lembro-me de ter alugado um violino alto durante a rodagem de Reis e Rainha. Todas as noites, quando regressava a casa vindo da rodagem, praticava escalas de forma desajeitada. Não me servia de nada, mas eu continuava. O Mathieu, pelo seu lado, tinha aulas com uma pro-

ARNAUD DESPLECHIN

fessora de violino, mas eu deixava-os juntos, sem vigilância. É na rodagem que tento comunicar-lhes a febre que se instala em mim. E a Emmanuelle ou o Mathieu sabem incendiar os sentimentos. Se, num momento de fraqueza, assinasse um contrato que o obrigava a realizar um “remake” de um filme à sua escolha, que filme escolheria? Acho que existe um e só um filme cujo “remake” sonho em fazer, trata-se d’ O Barba-Ruiva, de Kurosawa. É a história de um jovem médico do século XIX, que aprende Medicina junto de um médico mais velho e que descobre a miséria social. Sinto uma autêntica paixão por este filme. Choro a cada vez que o revejo. Entrevistado por Alexandre Andrade


ESTREIAS CINEMA Passado, estás aí?

A segunda longa-metragem de Arnaud Desplechin, Comment Je Me Suis Disputé… (Ma Vie Sexuelle), de 1996, marcou o cinema francês. Neste mosaico complexo e hipertrofiado de relações frustradas e vidas sentimentais em suspenso, destacavam-se as personagens de Paul Dédalus e de Esther, um casal desesperado por se separar mas demasiado apegado às duradouras rotinas de dependência mútua que cultiva. Seis longas-metragens depois, entre as quais obras-primas como Esther Kahn (2000) e Reis e Rainha (2004), Desplechin oferece-se e oferece-nos aquilo que pode parecer um capricho. Três Recordações da Minha Juventude (2015) é ao mesmo tempo uma “prequela” e uma “sequela” de Comment Je Me Suis Disputé… mais de dez anos depois, Paul Dédalus, de regresso a França depois de uma estadia na Rússia, evoca três episódios da sua infância e adolescência, muito diferentes entre si em duração e registo: da fugacidade e tonalidade gótica do primeiro, passa-se para um improvável mas cativante thriller político, seguindo-se o ambiente de filme de adolescentes tão recorrente no cinema francês, aqui submetido à receita desplechiniana de subversão empática – típica de quem ama o cinema a ponto de se deleitar com a dinamitação das suas formas e códigos. Neste episódio, de longe o mais extenso dos três, assistimos à origem da relação entre Esther e Paul, cujo declínio lento e amargo era relatado no filme de 1996. Longe oferecer uma explicação para o catálogo de agruras sentimentais de que o seu herói padecerá, Desplechin mostra-nos como o vínculo entre as personagens nasce já fatalmente ambíguo e malsão e marcado por uma verbosidade oral e escrita que ao mesmo tempo as aproxima e desgasta – muito se fala e se escreve neste filme, e como é tocante a energia epistolar destes amantes, quase-adultos fiéis aos rituais românticos mais antiquados e à história da literatura.

Como num bildungsroman ao contrário, Paul aparece-nos sinistramente maduro e circunspecto, o que só torna mais nítida, em retrospectiva, a imaturidade e indecisão que o virão a tolher na sua idade adulta. Mathieu Amalric e Emmanuelle Devos, os sublimes actores que davam corpo ao casal, encontram aqui jovens substitutos à altura: Quentin Dolmaire e Lou Roy-Lecollinet. Desplechin é incapaz de fazer dois filmes idênticos: o seu gosto de experimentar e de se pôr constantemente à prova redunda aqui num objecto paradoxal e fascinante: uma revisitação de temas e obsessões imensamente livre, que abre ângulos e alçapões em vez de fechar círculos, e que deixa as suas personagens existir, amar e errar, únicas e frágeis. Alexandre Andrade

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Prémio SADC (Quinzena dos Realizadores) Prémios César – 11 Nomeações, incluindo Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Argumento Original

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ESTREIAS CINEMA

SERGUEI EISENSTEIN

EM ABRIL E MAIO NO ESPAÇO NIMAS E TMP CAMPO ALEGRE O historiador, crítico e programador de cinema Naum Kleiman, ex-director do Museu de Cinema de Moscovo, é o maior especialista mundial da obra de Serguei Eisenstein, para muitos o maior realizador de todos os tempos e um dos inventores do cinema moderno. Kleiman, que fundou a casa-museu Serguei Eisenstein em Moscovo, foi responsável pelo restauro de várias obras do cineasta e tem vindo a organizar a edição completa dos seus textos. Esteve recentemente em Portugal a convite da Cinemateca Portuguesa. Escreveu este texto para a Medeia Magazine.

Às vezes perguntam: valerá a pena mostrar, hoje em dia, os filmes de Serguei Eisenstein aos espectadores? Talvez este realizador pertença apenas à cultura soviética que, tal como a URSS, já faz parte do passado? Tenho certeza de que não só vale a pena como é necessário mostrá-los. Eisenstein é uma figura emblemática de um período de desenvolvimento não só do cinema e da arte na Rússia, mas da cultura de toda a humanidade. Como qualquer grande artista, Eisenstein reflectiu — directa ou metaforicamente — os mais importantes acontecimentos, ideias, esperanças e desilusões do século XX. Tanto a sua "trilogia da Revolução" (A Greve, O Couraçado Potiómkin, Outubro), como Alexandre Névski (filme antifascista baseado em acontecimentos do século XIII) e Ivan, o Terrível (filme histórico muito actual contra o despotismo) reflectem um certo estado da consciência social e da evolução histórica da Rússia, de importância universal. Eisenstein estava sempre a um nível mais alto e mais vasto do que a conjuntura política com que, não raro, o tencionam relacionar. Considerar, hoje em dia, os filmes de Eisenstein apenas "socialistas" ou "anticapitalistas" é a mesma coisa que caracterizar Balzac como "ideólogo do monarquismo" e Stendhal como "bonapartista". 8

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E terá grande importância para um leitor moderno saber se Dante Alighieri pertencia aos Guelfos ou aos Gibelinos? É óbvio que não podemos estudar a história utilizando as obras de arte como veículo. A arte não é uma ilustração de manual, não substitui o quadro científico da realidade, mas cria uma imagem dela. A imagem da revolução russa não foi criada por Eisenstein de acordo com a letra da época, mas sim de acordo com o seu espírito. Os acontecimentos revolucionários de 1905 não se desenrolavam em Odessa tal qual ele no-los apresenta. Porém, o episódio da escadaria em O Couraçado Potiómkin é uma espécie de resumo de tudo o que ocorreu durante a primeira revolução na Rússia: o massacre da manifestação pacífica de 9 de Janeiro na praça Dvortsóvaia em São Petersburgo, a repressão dos motins camponeses, a utilização das tropas contra o povo, os pogroms judaicos, as provocações contra os partidários da democracia… Assim, O Couraçado Potiómkin torna-se uma imagem do Protesto Nacional contra a Crueldade da Autarcia, uma imagem do Impulso para a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. Eisenstein, muitas vezes, é criticado por ter virado as costas ao herói individual, preferindo-lhe as massas do povo e até a multidão como "protagonista" do filme… Não, não é uma multidão. Muitas vezes


ESTREIAS CINEMA acham que a massa é multidão, pondo entre elas o sinal de igualdade e repetindo mecanicamente que a massa é um elemento destruidor. Uma massa organizada é sociedade, e não uma multidão. Nos seus primeiros filmes, Eisenstein mostra a transformação da multidão em povo, em criador da história. Aliás, vê também o caso contrário — a degradação da massa impelida pelas emoções mas carente de consciência, transformada numa multidão tomada pelo pânico, numa corrente cega que pisa as crianças. Estas imagens de auto-organização e autodestruição da massa social são de grande importância nos filmes de Eisenstein e muito actuais para qualquer sociedade. No final de Potiómkin, os marinheiros que se recusaram a abrir fogo contra os seus semelhantes tornam-se povo. Nisto — na rejeição da violência — consiste o sentido do filme. Entre nós, dizem muitas vezes que Potiómkin conclama à revolução. Entretanto, é o primeiro filme do período pósrevolucionário que declara: chegou o fim da violência. A mais importante frase neste filme é: "Irmãos! Contra quem estais a disparar?" A palavra mais importante da frase: "IRMÃOS!" Porque a Liberdade e a Igualdade sem a Fraternidade podem levar a uma nova opressão — à liberdade da repressão e à igualdade em escravidão. Eisenstein não se confinou nos limites do "cinema sobre a massa popular". Durante a sua estada em Hollywood, criou vários argumentos sobre a tragédia do super-indivíduo que se julga criador da história, ou, pelo contrário, sobre o pequeno homem, vítima da sociedade. Assim, tencionava filmar A Tragédia Americana de Dreiser como sendo a tragédia de um jovem a quem a sociedade incute a ideia de que o ideal é o êxito pessoal a qualquer preço — e esta mesma sociedade condena-o. Ao regressar à URSS, Serguei Eisenstein criou, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, um filme sobre a vida de Santo Alexandre Névski — guerreiro que organiza a resistência à agressão. O filme histórico era e é extremamente actual, inspirava à luta contra os nazis. Mas quando Stálin o encarregou de filmar uma película sobre Ivan, o Terrível, supondo que o realizador justificaria as crueldades do czar, Eisenstein criou uma imagem do tirano que destrói o Estado e a si próprio. Este filme é uma tragédia de envergadura shakespeariana, e foi proibido em vida do autor; hoje em dia é reconhecido como um filme clássico do cinema mundial.

Ainda em vida, Eisenstein era chamado o "Leonardo da Vinci do cinematógrafo", não só por causa do carácter multilateral dos seus talentos (cineasta, literato, teórico da arte, desenhador, pedagogo, publicista), mas também porque era um inovador, um experimentador, porque criava imagens insólitas e de certo modo enigmáticas. Há muitos manuscritos e desenhos dele que ainda não foram publicados, e os publicados não foram suficientemente estudados. Muitas gerações futuras vão tentar ainda desvendar o enigma de Serguei Eisenstein. Naum Kleiman [Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra]

Depois da retrospectiva completa de Andrei Tarkovsky, a Leopardo Filmes e a Medeia Filmes continuam a extensa operação dedicada ao cinema russo, com a exibição, a partir de 21 de Abril, dos filmes de Serguei Eisenstein e dos grandes cineastas das vanguardas dos anos 20 (Dziga Vertov, Aleksandr Dovjenko, Boris Barnet), e, em seguida, das obras da geração dos anos 60 e 70, contemporânea de Tarkovsky (Mikhail Romm, Marlen Khutsiev, Serguei Bondarchuk, Larissa Shepitko e Elem Klimov).

SERGUEI EISENSTEIN O COURAÇADO POTEMKINE 1925 OUTUBRO 1927 ALEXANDER NÉVSKI 1938 IVAN, O TERRÍVEL PARTE 1, 1942; PARTE 2, 1958 ALEKSANDR DOVJENKO ARSENAL 1928 BORIS BARNET A CASA DA RUA TRUBNAIA 1928 DZIGA VERTOV O HOMEM DA CÂMARA DE FILMAR 1929 MIKHAIL ROMM NOVE DIAS DE UM ANO 1961 [MIKHAIL ROMM], MARLEN KHUTSIEV E ELEM KLIMOV

E AINDA ACREDITO 1974 MARLEN KHUTSIEV CHUVA DE JULHO 1966

SERGUEI BONDARCHUK GUERRA E PAZ 1967 LARISSA SHEPITKO ASAS 1966 TU E EU 1971 ASCENSÃO 1976 ELEM KLIMOV ADEUS A MATIORA 1981

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ESTREIAS CINEMA

POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO

DE HUGO

VIEIRA DA SILVA

ESTREIA 17 MAR

Dur: 121 min

COM NUNO LOPES, IVO ALEXANDRE, DAVID CARACOL

Entrevista ao realizador Hugo Vieira da Silva Posto Avançado do Progresso é um filme sobre o colonialismo, sobre os aventureiros expedicionários em África no séc. XIX ou sobre a missão civilizacional europeia? O filme é sobretudo sobre o colonialismo Português, que parcialmente reflecte a ideologia civilizacional Europeia da época, mas que tem particularidades muito próprias, até porque no século XIX a presença Portuguesa em África contava já com cerca de 400 anos de existência. No final século XIX começaram a ser importados para Portugal e para o seu espaço colonial os novos modelos anglosaxónicos relativos ao “progresso” e à “civilização”, que no princípio eram um pouco estranhos ao tradicional modo de presença colonial Portuguesa em África. As duas personagens principais deste filme, João de Mattos e Sant’anna, representam essa geração de portugueses para quem, à luz dessa nova mentalidade, a África central se torna paulatinamente um lugar de “incompreensão” e que por isso mesmo se encontram numa encruzilhada identitária.

HUGO VIEIRA DA SILVA

A minha versão é também sobre como a memória das relações ancestrais entre portugueses e congoleses foi reprimida por esta nova geração. Ora os recalcamentos (aliás bastante comuns na História portuguesa), favorecem a emergência de fantasmas. Neste filme são então os fantasmas desse passado esquecido que emergem da floresta-tropical do Congo para assombrarem os Portugueses. E os fantasmas dizem respeito a essa história partilhada: À escravatura, à inquisição (que também existiu nos trópicos), à idiossincrasia cultural congolesa e aos seus ícones... Enfim, um longo manto amnésico que se perpetua até hoje. Um dos aspectos mais interessantes do filme é ele ser um filme de câmara, um huis-clos que acontece em África, continente sobre o qual temos sempre uma ideia de grandes espaços abertos, florestas intermináveis, ignorância dos limites territoriais. Quer comentar? Trabalhei na África central na zona tropical e subtropical, ao longo do curso do Rio Congo, lugar de florestas impenetráveis e labirínticas, habitadas pelos povos Kongo tanto a sul como a norte, na sua complexidade e variedade étnica, espaço que no

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ESTREIAS CINEMA

final do século XIX foi retalhado pelas chamadas fronteiras de “régua e esquadro” do colonialismo moderno. A África pré- “Conferência de Berlim” (1884) abunda em reinos e potentados. Por exemplo, no início do século XIX, um sertanejo português, para comerciar com reis e chefes localizados no hinterland, partindo habitualmente da costa e até chegar ao seu destino, teria de passar por dezenas de fronteiras e pagar vários tributos a chefes locais. Esta forma de comércio durou 400 anos e era a garantia da manutenção das estruturas de poder local. A partir do final século XIX, com a chegada em força das novas potências coloniais europeias e com a ocupação territorial efectiva, é imposta uma espécie de “terraplanagem” física, social e cultural que faz desaparecer essa África. Surge então nos países ocidentais a ideia de África como um espaço vazio, sem limites, história ou memória, o “não-lugar”. Esta noção é por exemplo romantizada por Conrad no Coração das Trevas, que, apesar de denunciar o colonialismo, descreve o Congo como uma espécie de espaço mítico, selvagem, insalubre e terrível. Por outro lado, no Conrad mais arguto e seminal (na minha opinião o do Um Posto Avançado do Progresso) a floresta é então um pequeno palco onde os mal-entendidos e a ambiguidade da relação colonial se encenam num jogo de esconde-esconde, de permanentes equívocos quase burlescos e onde as personagens Africanas ganham finalmente subjectividade. Quis acentuar essa dimensão teatral.

Interessou-me muito a forma como explora o pensamento mágico, as cosmologias desta região do Congo. E um aspecto muito bem tratado, a meu ver, é a impossibilidade do entendimento deste pensamento por parte dos dois comerciantes portugueses. No caso deles, a irracionalidade só lhes chega pela loucura. Está de acordo? Sim, concordo. A este respeito há um livro fascinante de um antropólogo Americano, Johannes Fabian, chamado Out of our Minds — Reason and Madness in the Exploration of Central Africa, onde, desconstruindo de forma sistemática os relatos de viagem e diários dos exploradores, cientistas ou comerciantes europeus que deambulavam pela África tropical no final século XIX, se prova que esses documentos são muitas vezes idealizados ou imprecisos e que na maior parte do tempo estes Europeus estariam num estado permanente de êxtase provocado pela doença, altas dosagens de quinino, álcool, opiáceos e outras drogas. A hipótese, que acho muito pertinente, é de que teria sido apenas nessa “zona” extática que os exploradores europeus transcenderam as suas limitações psicológicas e sociais, conseguindo alguma imersão nas culturas locais, o que teria proporcionado eventuais diálogos ou esporádicas relações um pouco mais “horizontais” do que o sistema colonial poderia supor. Diria que a loucura das minhas personagens é tanto gerada pela impossibilidade de compreensão do outro como pela emergência do reprimido, mas gostava de pensá-la como uma possibilidade de imersão cultural, provavelmente só possível quando os corpos se esquecem de quem são... Porque decidiu atribuir nomes da nobreza europeia aos africanos e vesti-los com fatos da corte? Na minha versão livre do Um Posto Avançado do Progresso, ao contrário do original o presente intersecciona-se com o passado, anulando o tempo cronológico. Num mesmo plano, no tempo presente do filme (finais do século XIX) ecoam fantasmaticamente personagens esquecidas desses 400 anos de relações. Havia, desde quinhentos, um reino Congolês com uma estrutura social copiada ao pormenor do reino português, como se no meio da selva tropical, no século XVI, se edificasse uma cópia de Portugal com reis e nobres negros de nomes e identidade portuguesas. Entrevistado por António Pinto Ribeiro

Prémios e Festivais: Festival de Berlim – Secção Forum

MARÇO | ABRIL 2016 11


ESTREIAS CINEMA

JOHN FROM JOHN FROM

DE JOÃO NICOLAU

ESTREIA 24 MAR

Dur: 100 min

COM JÚLIA PALHA, CLARA RIEDENSTEIN, FILIPE VARGAS, LEONOR SILVEIRA, ADRIANO LUZ

Em John From, João Nicolau “procura auscultar a lógica e as metamorfoses da paixão juvenil”. O realizador brasileiro Felipe Bragança, em cuja obra os jovens são também regularmente o centro, escreveu sobre o filme. John From é precioso para mim porquê faz um corte transversal no mundo. Diante de palavras de ordem secas a pulular nas redes sociais, posicionamentos duros a marcar os tempos de hoje com pressa de nos salvar de um diabo que somos nós mesmos – inclusive no cinema – o que o João Nicolau faz é parar e olhar de forma maravilhosamente detalhista, minuciosa e cómica, os pequenos caminhos da paixão (juvenil), no que ela transborda e desafia a apatia e a ordenação do mundo – ordenação que é daquela menina, mas também do ambiente que a cerca – não porque o ambiente seja “mau”, mas porquê é tão triste, frágil, desterrado quanto ela. O amor utópico, tropical, transportador da alma, é um atalho para o filme falar não do que nos oprime, mas do que nos afirma. E não são as grandes ações arquitetadas, os painéis sociais grandiloquentes, mas essas erupções de imaginação que podem fazer daquele bairro em Lisboa, a Melanésia, que podem criar uma fissura no possível e nos fazer lembrar que não há nada mais consistente do que essas nossas

patológicas vontades de beleza, de sermos arrebatados para nos reencontrar vivos. É tudo muito pequeno e pouco e precioso no filme, e daí o ser rodado em 16mm é de uma fragilidade lindíssima e necessária em tempos de gestos orgulhosos, de filmes tão cheios de importância. O filme de João é lindamente tímido, caladinho, pensativo, sussurrado, com o coraçãozinho batendo para ir do projetor até a tela. É político de forma sussurrada na forma como investiga a utopia amorosa juvenil atravessando a pausa de uma Lisboa cansada, macambúzia dos últimos anos de

Portugal. O sonho com os trópicos amorosos que invadem o coração da menina, é ao mesmo tempo afirmação e comentário, concretude do corpo apaixonado e metáfora da fuga. É luz e é suor. Tudo isso filmado como se estivesse a filmar um pedacinho de papel com um bilhete amoroso delirando, delirando. Onde o paraíso pode ser intangível como uma alegoria mágica ou se resumir a um jogo de frescobol. Não é o caso do clichê do “menos é mais”, do “cinema cotidiano”, não: é um gesto onde, sem alardes, o cinema lembra que pode ser mais quando para de se preocupar tanto em sobreviver de louros... e se deixa apaixonar. Felipe Bragança

Prémios e Festivais: Mostra de São Paulo, Brasil Sevilla European Film Festival Torino IFF, Itália

12 MARÇO | ABRIL 2016


JÁ NOS CINEMAS

O FILHO DE SAUL SAUL FIA

DE LÁSZLÓ NEMES

EM EXIBIÇÃO

Dur: 107 min

COM GÉZA RÖHRIG, LEVENTE MOLNÁR, URS RECHN

O filósofo e historiador de arte francês Georges Didi-Huberman, que no seu livro Imagens, Apesar de Tudo se referia ao inferno de Auschwitz dizendo que, apesar de não o podermos imaginar inteiramente, “devemos imaginá-lo, esse imaginável tão pesado”, não poderia deixar de reflectir sobre O Filho de Saul, e publicou recentemente um pequeno livro, Sortir du noir, Ed. de Minuit, uma carta aberta ao realizador húngaro László Nemes, de que aqui traduzimos um pequeno excerto, por cortesia do autor.

Paris, 24 de Agosto de 2015

Caro László Nemes, O seu filme, O Filho de Saul, é um monstro. Um monstro necessário, coerente, benéfico, inocente. O resultado de um desafio estético e narrativo extraordinariamente ousado. Como é que um filme que tem como objecto o Behemoth1 bem real que foi a máquina de extermínio nazi, nos enclaves de Auschwitz-Birkenau em 1944, poderia não ser um monstro, face às histórias que estamos habituados a descobrir, cada semana, nas salas de cinema sob o nome de “ficções”? É o seu filme outra coisa que não uma ficção? Não, evidentemente. Mas é uma ficção tão modesta quanto audaciosamente autorizada pelo real histórico muito particular de que trata. Daí a prova que é descobri-la. Na sala escura, durante a projecção, tive algumas vezes vontade, não de fechar os olhos, mas de que tudo o que você traz à luz neste filme regressasse, nem que fosse por instantes, ao negro. Que o filme ele próprio baixasse as suas pálpebras por um instante (o que acontece por vezes). Como se o negro me pudesse oferecer, no meio dessa monstruosidade, um espaço ou um tempo para respirar, para recuperar um pouco o fôlego [...]. Que prova, de facto, esta fulguração! Que prova esta multidão de imagens e este inferno de sons ritmando infatigavelmente a sua narrativa! Mas que prova necessária e fecunda!

Como muitos, entrei na sala escura armado de um certo conhecimento prévio [...] sobre a história (histórica) que a sua história (fílmica) trata, a saber, a máquina de morte nazi e o papel que aí tiveram os membros do Sonderkommando, essas equipas especiais formadas por prisioneiros judeus cujo terrível trabalho é sobriamente exposto, no início do seu filme, num intertítulo que os define pela expressão Geheimnisträger, os “portadores de segredo”. A sua história (a sua ficção) sai do negro: ela própria “carrega” esse segredo, mas para o trazer à luz. [...] [...] As imagens e os gritos do seu filme deixaram-me sem defesa, sem um saber protector. [...] Devo confessar-lhe que me pareceu poder rever, à minha frente, alguns dos meus mais antigos e mais penosos pesadelos. Nada há de pessoal nisso: é próprio do poder dos pesadelos revelar-nos alguma coisa da estrutura do real, e é próprio do poder do cinema revelar-nos a estrutura de pesadelo onde o real, ele próprio, frequentemente se urde. [...] [Georges Didi-Huberman, Trad. Fátima Castro Silva] 1O

nazismo foi comparado, ainda muito cedo, a esse monstro bíblico simétrico do Leviatã.

Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Grande Prémio do Júri, Prémio FIPRESCI

Prémios César – Nomeação para Melhor Filme Estrangeiro Oscars – Nomeação para Melhor Filme Estrangeiro Golden Globes - Melhor Filme Estrangeiro

MARÇO | ABRIL 2016 13


ESTREIAS CINEMA

RAMS HRÚTAR

Dur: 93 min

ESTREIA 7 ABR

DE GRÍMUR HÁKONARSON

EXCLU

CINEMSIVO AS M

EDEIA

COM SIGURDUR SIGURJÓNSSON, THEODÓR JÚLÍUSSON, CHARLOTTE BOVING

Uma história simples e directa, que nos leva até a uma Islândia rural tão remota como as paisagens que rodeiam os protagonistas deste filme. Numa vila pastoral na Islândia, os irmãos Gummi e Kiddi vivem em propriedades vizinhas e são ambos pastores e criadores de ovelhas e carneiros, mas há 40 anos que não trocam uma palavra. Após uma doença mortal que infectou rebanhos vizinhos, ambos colocam de parte as suas divergências para proteger aquilo que lhes é mais querido – os seus carneiros. Grímur Hákonarson transporta-nos para um local remoto, e apresenta, com naturalidade, o rigor da vida rural, a simplicidade dos seus protagonistas e o afecto profundo que sentem pelos seus rebanhos. Nenhum dos homens é casado ou tem filhos, e a sua existência é vivida maioritariamente em silêncio e os carneiros representam quase tanto uma família como um sustento. O realizador pontua a acção com vários momentos de humor, especialmente ao mostrar a rivalidade entre Gummi e Kiddi. Mas o coração do filme reside no pathos dos dois irmãos,

que lutam contra a perda do seu sustento e, até certo ponto, da sua razão de viver. Destaque aqui para as interpretações de Sigurður Sigurjónsson e Theodór Júlíusson, estes “homens de poucas palavras”, que inspiram tanto gargalhadas como lágrimas sinceras com os seus rostos fortes, expressivos e melancólicos. As paisagens islandesas, filmadas por Sturla Brandth Grøvlen em planos largos iluminados naturalmente, sublinham o isolamento das personagens, estabelecendo os seus silêncios como um reflexo da serenidade e austeridade que os rodeiam. Em Rams, todos os elementos técnicos e narrativos são minimalistas, criando um objecto emocionante e comovente. Diana Cipriano Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Prémio Un Certain Regard Festival de Toronto

O CONTO DOS CONTOS IL RACCONTO DEI RACCONTI

Dur: 125 min

DE MATTEO GARRONE

ESTREIA 31 MAR

COM SALMA HAYEK, VINCENT CASSEL, JOHN C. REILLY

No seu primeiro filme falado em inglês, Matteo Garrone adapta fábulas do poeta napolitano Giambattista Basile, criando um universo intencionalmente caótico. Após ter explorado narrativas contemporâneas napolitanas em Gomorra e Reality, Matteo Garrone mergulha agora em épocas passadas e repletas de fantasia, onde monarcas instáveis são postos à prova por criaturas mágicas. “Quase todos os meus filmes, desde L'imbalsamatore ou Primo Amore a Gomorra e Reality, têm elementos de fábula. Mas nesses casos comecei por trabalhar a realidade, transfigurando-a para uma dimensão fantástica e onírica. Desta vez fiz o contrário, peguei em fábulas e tornei-as em algo mais realístico e convincente. No entanto, esta é a primeira vez que me aventuro em territórios sobrenaturais e mágicos”, referiu o realizador em entrevista à Variety. Prémios e Festivais: Festival de Cannes – Selecção Oficial, Em Competição

O Conto dos Contos centra-se em três reinos vizinhos: num deles, um rei e uma rainha vivem atormentados pela infertilidade desta, até uma figura sinistra lhes oferecer uma perigosa solução. No segundo reino, um rei corrupto e sexualmente compulsivo fica encantado pela voz de uma mulher idosa, que ele pensa pertencer a uma jovem e formosa donzela. No último reino, conhecemos outro rei, obcecado com uma pulga que crescerá até ter proporções kafkianas, dando-lhe mais atenção do que à sua própria filha. Todo o desenvolvimento dos contos em acontecimentos cada vez mais fantásticos e horrendos é abordado com uma seriedade impassível, que dita o tom deste carnaval da transgressão. Um elenco de luxo, cores delirantes e uma direcção de arte excepcional são mais alguns dos ingredientes desta viagem de Garrone ao mundo das fábulas. Diana Cipriano

14 MARÇO | ABRIL 2016


OUTRAS PROGRAMAÇÃO ESTREIAS

UMA NOVA AMIGA

A SENHORA DA FURGONETA

UNE NOUVELLE AMIE

DE FRANÇOIS OZON ESTREIA 14 ABR

Dur: 105 min

COM ROMAIN DURIS, ANAÏS DEMOUSTIER, RAPHAËL PERSONNAZ, ISILD LE BESCO

NICHOLAS HYTNER MAGGIE SMITH, ALEX JENNINGS DOMINIC COOPER, JAMES CORDEN DE

COM

Esta é a história verídica da relação entre Alan Bennett, argumentista do filme aqui interpretado por Alex Jennings, e a singular Miss Shepherd (Maggie Smith), uma mulher de origem incerta que ‘temporariamente’ estacionou o seu veículo em Londres, no pátio de Bennett, onde viveu durante 15 anos. O que começa como um favor à força, torna-se numa relação que vai alterar a vida de ambos.

ESTREIA 17 MARÇO

Entrevista com Romain Duris Como é que se envolveu em Uma Nova Amiga? François Ozon telefonou-me e disse que queria falar comigo a propósito de um papel. “Acho que vais gostar porque ouvi dizer que querias interpretar uma mulher.” E isso é verdade. Desde pequeno que queria interpretar uma mulher, desde que a minha irmã mais velha me vestia como uma rapariga para jantar com a família ou amigos dos meus pais. Eu era a boneca dela e adorava. Talvez o simples prazer de ser uma rapariga era já uma forma de ser actor nessa altura! O que o atraiu na história? Adorei que a audácia desta transformação fosse motivada pela perda, filtrada pelos olhos da Claire e tornada possível através de sentimentos de amizade, e depois amor. O assunto do travestismo de David tornando-se Virginia é tratado de uma forma profunda e sensível, não é apenas um gag ou um mostruário para um actor. Adoro o modo como se desencadeia, com o David a dizer à Claire, de forma sincera, que vestir-se de mulher é uma maneira de preencher os instintos maternais de que a sua filha carece naquele momento. O seu desejo de travestir-se é bonito e consistente com o seu ser; os seus motivos são muito humanos e generosos.

O DIÁRIO DE UMA RAPARIGA ADOLESCENTE MARIELLE HELLER BEL POWLEY, ALEXANDER SKARSGÅRD, KRISTEN WIIG

DE

COM

Década de 70, São Francisco. Minnie Goetze é uma rapariga de 15 anos, que cresce num ambiente frenético e deseja vir a escrever histórias de banda desenhada. Curiosa e insaciável pelo mundo ao seu redor, Minnie é uma típica jovem adolescente em quase todos os aspectos, tirando o facto de manter uma relação com o namorado da sua mãe.

ESTREIA 24 MARÇO

O AMOR É UMA COISA ESTRANHA IRA SACHS JOHN LITHGOW, ALFRED MOLINA, MARISA TOMEI

DE

COM

E os seus motivos tornam-se mais pessoais, ele desfruta da experiência de uma forma muito pura e inocente. Sim, mesmo quando a Claire o acusa de travestir-se simplesmente para seu próprio prazer, tentei fazê-lo da forma o mais sincera possível, representá-lo sem ironia. Queria que fosse honesto, humano. Não queria confinar a personagem a um problema que fosse muito específico. Queria que o filme dissesse alguma coisa ao maior número de pessoas, que abrisse portas, que levantasse questões sobre género num sentido mais abrangente. Sim, podemos estar atraídos por outro género, e não há nada de errado com isso. [Trad. Renata Curado]

Prémios e Festivais: Prémios César – Nomeações para Melhor Actor e Melhor Guarda-Roupa Festival de Londres – Em Competição Festival San Sebastián – Prémio Sebastiene

Excertos de uma entrevista a Romain Duris, um dos protagonistas de Uma Nova Amiga, publicada no site oficial do realizador François Ozon, em www.francois-ozon.com

Após 39 anos juntos, Ben e George decidem dar o nó em Manhattan, na sequência da aprovação da lei que permite o casamento entre homossexuais. No regresso da lua-de-mel, Ben é despedido do seu emprego como maestro de coro numa escola católica. Sem economias, o casal percebe que não tem condições para continuar a pagar o seu pequeno apartamento em Chelsea. Depois de se juntarem para celebrar a união, família e amigos têm agora de se reunir para descobrir como ajudar Ben e George.

ESTREIA 21 ABRIL MARÇO | ABRIL 2016 15


16 MARÇO | ABRIL 2016


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